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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. SILVA, José Afonso da. José Afonso da Silva (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2013. 36p. JOSÉ AFONSO DA SILVA (depoimento, 2012) Rio de Janeiro 2013

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A

citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.

SILVA, José Afonso da. José Afonso da Silva (depoimento, 2012).

Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2013. 36p.

JOSÉ AFONSO DA SILVA

(depoimento, 2012)

Rio de Janeiro

2013

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Nome do Entrevistado: José Afonso da Silva

Local da entrevista: São Paulo, SP

Data da entrevista: 5 de junho 2012

Nome do projeto: História Oral do Campo Jurídico em São Paulo

Entrevistadores: Bruna Soares Angotti Batista de Andrade, Rafael Mafei e Luciana Reis

Transcrição: Maria Izabel Cruz Bitar

Data da transcrição: 9 de julho de 2012

Conferência de Fidelidade: Muriel Soares

** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por José Afonso da Silva em 05/06/2012. As partes

destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal CPDOC. A

consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.

B.A. – Dr. José Afonso, primeiramente, muito obrigada pela sua disponibilidade em nos

conceder essa entrevista, e eu gostaria que, inicialmente, o senhor falasse um pouco da sua

infância, da sua biografia, da data e local de nascimento e das suas origens familiares.

J.S. – Eu que agradeço. É uma honra fazer uma entrevista no CPDOC, que é uma instituição já

de renome. Fico muito honrado com isto. A minha infância foi muito simples, mas muito boa.

Eu nasci, na verdade, numa pequena fazenda e imediatamente fui para um povoado que tinha,

na época, o nome de Buritizal. E tinha lá poucas casas, enfim, era um lugar bastante pequeno.

Meu pai era um pequeno comerciante que tinha lá uma venda de secos e molhados, bebidas e

cereais, nesse povoado, e ali a gente permaneceu... Na família do lado de meu pai, a família

Afonso é uma família que tem dois ramos: Afonso da Silva e Afonso de Carvalho, que são

primos e que viviam ali. Esses “Afonsos” foram para esse lugarejo. Acho que vinham do lado

do Rio de Janeiro, não sei bem a origem. Mas o certo é que eles foram para um lugar que tem

perto de Pompéu, do outro lado do São Francisco1, que se chamava, na época, Abadia e hoje se

chama Martinho Campos, e ali parece que eles já vieram como uma família qualquer, e um

casal de Afonso foi lá para essa região de Pompéu. Pompéu, na ocasião, era município de

Pitangui. Aquele território que hoje é o município de Pompéu já chamava Pompéu. A vila

1 O entrevistado se refere ao Rio São Francisco.

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chamava Buriti da Estrada. Pitangui chamou Pompéu porque ali era uma fazenda – todo esse

território do município era uma fazenda –, a fazenda de uma famosa dona Joaquina do Pompéu.

A dona Joaquina do Pompéu era... Eles adquiriram esses terrenos no século XVIII, em 1770 e

alguma coisa – o marido dela era um militar –, e ali formaram a sua fazenda, com muito gado,

com muito escravo , enfim, viveram ali. Meu pai é trineto dela, pelo lado da mãe dele. O meu

avô chamava Luiz Afonso da Silva; a minha avó, mãe do meu pai, chamava Claudina Cândido

Cordeiro Valadares. São dos Cordeiro lá de Minas. Então a descendência, do lado meu pai, até

onde eu sei, do ramo mais distante que eu conheço, é pelo lado da dona Joaquina. O pai da dona

Joaquina nasceu em Viseu, e ele foi para Minas e, enfim, vivia em Mariana, foi depois para

Pitangui e ali constituiu a sua família. Já tinha a dona Joaquina. Dá umas histórias muito

interessantes até, mas não é o caso de contar agora. Do lado da minha mãe, o pai dela chamava

Virgílio Pereira de Lacerda e a mãe dela chamava Ana Joaquina, também Pereira de Lacerda, e

tinha um Faria no meio. Era também de perto de Pitangui, de uma família ali de perto de

Pitangui, e que acabaram indo também para esse povoado chamado Buritizal. Ali, meu avô, que

era neto de índia... A minha bisavó era índia. Chamava Germana, a mãe do meu avô. Ela era

filha natural, de uma família de Lacerda, que é a mesma família do Carlos Lacerda2 – distante,

mas é a mesma família. Não são parentes próximos, mas é a mesma família. E ela teve... Esse

meu avô sofreu muito ali. Enfim, encontrou minha avó, casaram e constituíram família, e

tiveram vários filhos, dez filhos, entre os quais a minha mãe. Enfim, a origem é essa. E ali

viveram, nesse Buritizal. Eu tinha... Eu ia fazer cinco anos, quando nos mudamos dali para um

outro lugarejo, muito menor até,com um nome mais estranho: chamava Queima Fogo. Meu pai

estava endividado com os negócios dele, precisava pagar as dívidas e foi... Acho que fez lá um

acordo com os credores e foi cuidar... para ver se pagava. Aí acabou pagando as dívidas dele.

Esse lugarejo chamado Queima Fogo, o nome era estranho porque lá, enfim, por volta de 1920,

a terra pegou fogo. A terra incendiou e aquele... E aí eles falaram: “Queima, fogo! Queima,

fogo!”, como uma espécie... E ficou o nome de Queima Fogo. Depois, numa outra... Eu morei

lá, e quando eu saí, logo que eu saí, tornou a pegar fogo. Depois, parece que chamaram alguém,

fizeram lá alguma pesquisa e disseram que tinha algum mineral ou alguma coisa assim. Não sei

bem como é que ficou isto. Bem, ali ficamos também. Meu pai pagou as dívidas, foi comprando

um gadinho e arrendou umas terras, também, não muito longe dali, e montou lá uma espécie de

sítio e criava... com umas 20 vaquinhas, com leite, e fazendo queijo, fazendo manteiga, porque a 2 Carlos Lacerda (1914-1977). Jornalista e político.

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gente só tinha uma desnatadeira à mão, que era um negócio interessante: tirava o creme, o soro

para o outro lado e batia na mão, para fazer a manteiga. E ali ficamos também um tempo, até

que uma doença... Fomos a Buritizal para uma missa e meu irmão, o irmão mais novo do que

eu, teve um problema na perna – e no fim, verificou-se que era um reumatismo – e ele ficou

parado na cama. Então, a gente acabou mudando outra vez para o mesmo lugar. Enfim, eu já

estava aí me aproximando dos meus dez anos. Eu tive, lá em Queima Fogo... De vez em quando

eu leio em algum lugar que eu aprendi a ler aos 15 anos. Não é isso. Eu aprendi a ler aos sete

anos de idade. Meu pai mexia com esse negócio pequeno, mas tinha um caixeiro. Caixeiro, na

verdade, era o balconista da época. Chamava caixeiro. O balconista resolveu dar aula para nós.

Eu tenho um irmão mais velho, e ele resolveu dar aula para nós, para meu irmão, eu e a minha

irmã mais nova. No fim, ficamos eu e meu irmão só. Meus pais já tinham tido mais três filhos

antes, que morreram antes do Hélio, que é o mais velho hoje, ainda está vivo, com 88 para 89

anos, vive em Andradas, em Minas Gerais. E ali no Queima Fogo meus pais tiveram mais

filhos. No fim das contas, foram 13 filhos, com os cinco que morreram, que morreram ainda na

infância, e sobreviveram oito. Hoje, hoje somos sete. Uma morreu já há algum tempinho.

Ficamos sete. São três mulheres e quatro homens, hoje. Eu sou o segundo. Mas, lá no Queima

Fogo, como eu dizia, o João Paulo – eu não sei o nome... Devo a ele a minha alfabetização. Ele

era primo do meu pai. Ele deu aula para nós, era muito rigoroso. Eu devo ter contado aí, não sei,

que ele punha a gente de castigo e riscava o pé, em pé, para ver se a gente não saía do lugar.

Mas, enfim, ele me ensinou as primeiras letras e as primeiras contas. Enfim, depois, ele foi

embora – a gente já ficou alfabetizado razoavelmente, mas naquela base do bê-á-bá –, ele foi

embora e veio uma tia, irmã da minha mãe, a Benedita, a Dita, que continuou dando aula para

nós. Deu também mais uns três ou quatro meses e foi embora, e minha mãe prosseguiu. Minha

mãe teve aulas com uma professora famosa, deste lugarejo chamado Buritizal, que alfabetizou

todo mundo lá. Era um lugar que tinha muito pouco analfabeto, e essa Filomena, a professora

Filomena, é que alfabetizou todo mundo, e minha mãe também. Tinha uma letra bonita e ela

prosseguiu, dando aquilo que ela sabia. Meu pai era praticamente analfabeto. Segundo ele, ele

teve cinco dias, aulas formais na vida. Mas, como ele mexia com comércio, então, ele foi

fazendo. Escrevia mal, contava pior ainda, era praticamente analfabeto, mas era uma boa

cabeça, viu. Eu sempre falo dele com emoção3. Enfim, esses primeiros tempos... Lá nesse

Queima Fogo, nós ficamos até mais ou menos uns sete ou oito anos, uma vida muito boa, de 3 Nesse momento o entrevistado fica com a voz trêmula.

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criança... saudável, o lugar era muito saudável, era um povo muito simples... Também, era um

povoado assim. A nossa casa ficava distante das outras famílias. Mas ali a gente brincava muito.

Eu tenho aí4 algumas anotações sobre isso. Meu pai sempre foi... Ele não era daqueles de

abraçar e beijar, não, mas tinha lá o seu modo de amar a família. Ele viajou uma vez para

Pitangui, foi votar, foi votar nas eleições para a Constituinte de 1933... É claro que hoje eu sei

disso, mas naquela época eu não sabia. Ali, quem dominava na região era o Chico Campos5,

que, todos sabem, que é o autor da Polaca6 e aquela coisa toda. E o meu pai foi votar, e de lá

ele trouxe três livros: trouxe um livro chamado Cartilha analítica, era usado no curso primário,

muito ilustrada; trouxe o livro A gramática superior, do Eduardo Carlos Pereira, que era uma

gramática famosa e ainda hoje tem importância; e um livro chamado Manuscrito, que tinha a

importância de trazer textos com a própria caligrafia de autores famosos, Machado de Assis,

Olavo Bilac, Coelho Neto. Enfim, os autores famosos da época estavam naquele livro. Eu me

lembro muito bem de alguns textos. Um deles é Um apólogo, que é um conto do Machado de

Assis sobre a história da agulha e da linha que costurava o vestido, enfim, era uma coisa bem

interessante. E aí eu fiquei alfabetizado. Então, quando nós voltamos para Buritizal, eu já

chegando aos dez anos, fui me matricular no grupo escolar. Buritizal é um lugar muito pequeno,

mas tem um grupo escolar muito bom, porque o Francisco Campos tinha sido secretário do

Interior do governo Antônio Carlos7, em Minas Gerais, de 26 a 30, e foi ele que ajudou a fazer a

Revolução de 1930, ele e aquele gaúcho lá que eu vou lembrar o nome daqui a pouco, e ele fez

uma reforma muito boa em Minas Gerais, no ensino: ele construiu, em Minas Gerais, 360

grupos escolares, de 1926 a 1930, e ele construiu nesse lugarejo, também. A fazenda dele era

perto. A fazenda dele estava entre Buriti da Estrada, que era a vila, e esse lugarejo. Eu

frequentei muito, quando criança, a fazenda dele. E aí ele construiu esse grupo escolar, que

ficou pronto por volta de 29, por aí. Então, quando voltamos ali... Quando nós nos mudamos de

Buritizal, eles estavam construindo o grupo. Ali, eu voltei, eu me matriculei, já mais ou menos...

Já tinham começado as aulas, e eu me lembro bem que eu cheguei, sentei ali, e aí a professora

tinha passado uma lição lá no quadro-negro, um texto lá para ler, e os alunos estavam lendo, um 4 O entrevistado se refere ao livro de memórias de sua autoria “A Faculdade e Meu Itinerário Constitucional.” Publicado em 2007, em São Paulo, pela editora Malheiros Editores. 5 Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968). Nomeado Ministro da Justiça por Getúlio Vargas e encarregado de escrever a Constituição de 1937, apelidada por críticos de “polaca”.. 6 O entrevistado utiliza-se de “apelido” dado à Constituição brasileira de 1937, em referência à Constituição polonesa, outorgada pelo líder do golpe militar na Polônia em 1921 7 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946). Formou-se Bacharel em Direito pela Faculdade da Universidade de São Paulo, em 1891 Foi presidente do estado de Minas Gerais entre 1926 e 1930.

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lia, outro lia. E eu via que os alunos, de vez em quando, erguiam a mão. Eu não sabia para que

era aquilo, mas eu também fazia. Aí alguém virou para mim: “Você sabe aquilo?”. “Eu sei.” Eu

sabia muito bem, porque eu bem era alfabetizado, eu tinha lido aqueles livros, tinha lido a

gramática do Eduardo Carlos Pereira, tinha lido aqueles livros com certa voracidade.

R.Q. – Isso em 1935 mais ou menos, que o senhor...?

J.S. – Isso mais ou menos em 35, quando voltamos para Buritizal. Aí nós, ela perguntou e aí o...

“Ele disse que sabe.” Ela perguntou, eu li tranquilamente, e passei para o segundo ano, porque

aí dava para passar para o segundo ano. Bom, no segundo ano, antes de terminar o segundo ano,

essa professora morreu e pararam as escolas, acabou a escola de lá. Foi uma pena, porque

realmente era um lugarejo em que praticamente não tinha analfabeto, porque a dona Filomena

tinha cuidado de alfabetizar quase todo mundo e o grupo estava alfabetizando os que vinham

vindo agora. Bom, meu pai mudou-se de lá, levou a gente para Pará de Minas, para continuar

frequentando a escola, mas não deu certo e tivemos que voltar. Até que Buriti da Estrada, que

era um distrito de Pitangui, adquiriu a sua autonomia, no dia 1º de janeiro de 1939, e aí vieram

novas professoras. E eu, já meio maduro, entrei aí na escola, terminei primeiro e o segundo ano

e fiz o terceiro ano. Eu não tenho o diploma de grupo primário. Só fiz até o terceiro ano. E aí eu

já estava me aproximando lá dos 15 anos, na verdade, porque já era 1940. E é daí que às vezes

as pessoas tiram que eu fui alfabetizado aos 15 anos. Não, eu fui alfabetizado aos sete anos,

entre seis e sete anos, e apenas fiz o grupo escolar... terminei o grupo... nem terminei; fiquei no

terceiro ano, porque não tinha o quarto ano, ali, nesse período. Bom, aí mudamos de lá e fomos

para Sete Lagoas. Bom, nesse meio, lá em Buritizal, meu pai continuava com o seu negócio

pequeno e fazia outras coisas: comprava porco, vendia isso, vendia aquilo, fazia roça... Enfim,

todas essas coisas, para ganhar a vida. Aí ele montou uma padaria. Veio um padeiro, e depois o

padeiro foi embora e eu fui ser o padeiro. Aí eu trabalhei de padeiro algum tempo, ali, uns dois

anos. Depois mudamos. Ele fechou tudo e mudamos para Sete Lagoas. Em Sete Lagoas, eu

trabalhei um pouco com mecânica, numa oficina mecânica, mas aí fui para o garimpo. Havia, na

época... Aí já era 1941 ou 1942, por aí. Aí fui para o garimpo. Era um garimpo importante, que

deu muito cristal, era uma terra vermelha, que é entre... perto de Paraopeba, no município de

Paraopeba. Ali eu fiquei... E eu já tinha me matriculado num curso, lá em Sete Lagoas, mas daí

fui para o garimpo e perdi o exame de admissão que tinha que fazer. Fiquei no garimpo ali uns

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três meses e voltei, e aí fomos para a Lagoa do Jacaré. Lagoa do Jacaré, hoje, chama-se São

José da Lagoa. É um povoado que pertence a Curvelo, ao município de Curvelo. Porque meu

pai estava com dificuldade, muita dificuldade – foi um período que ele passou muita dificuldade

– e aí ele alugou também uma padaria ali e eu fui fazer pão. Fazer pão e fazer garimpo,

misturando as coisas. E ali aprendi o ofício de alfaiate.

R.Q. – Professor, nesse período que o senhor mencionou, houve importantes acontecimentos

políticos, não só no Brasil como no mundo: a gente estava vivendo o período de Segunda

Guerra Mundial e todas as mudanças, no Brasil, do governo Vargas. O senhor tomava

conhecimento dessas coisas?

J.S. – Não. Da guerra, sim. Porque a guerra é um fenômeno que dificilmente você não toma

conhecimento. Quer dizer, um conhecimento... Às vezes, tinha jornal, você via, mas não era um

conhecimento que me chamasse muita atenção, não. Tanto que eu começo a dizer, nesse livro

aí8, que, direito constitucional, eu não sabia nada disso, não tinha contato com nada, não tinha

realmente esse conhecimento. Eu lia. Sempre pegava um livro. Eu lia bastante. Lá na Lagoa do

Jacaré, por exemplo, que eu tive a primeira... Lá em Buritizal, eu li muito, muita coisa, o que

podia, mas livros mediados à escola, às coisas. Havia lá um livro para o terceiro ano que era

muito interessante. Minas tinha uma escola primária muito boa. Sempre foi muito boa. Naquele

período era muito importante. Essa reforma do Chico Campos foi baseada no que havia de mais

moderno na ocasião: a didática da Escola Nova, a chamada Escola Nova. Ele trouxe professores

estrangeiros; ele mandou professores estudarem no estrangeiro. Foi uma reforma muito

importante e o ensino em Minas era muito bom. E eu fiz até o terceiro ano e acho que fiz um

curso muito bom. Bom, enfim, nesse período... Quer dizer, eu sabia... tinha gente sabia...

Naquela época, a gente... Como toda ditadura gosta muito de coisa cívica, para fazer uma

lavagem [risos], então, vinha, cantava aquelas coisas, cantava muito. E a gente cantava

sempre... cantávamos os hinos, as coisas que tinha que cantar na época. As professoras eram

muito boas e incentivavam muito, faziam espetáculos ali. Foi muito bom. Depois, fui para o

garimpo. Lá no garimpo, eu conto muito aí9 que houve uma pessoa lá que queria fazer um

8 O entrevistado se refere ao livro de memórias de sua autoria “A Faculdade e Meu Itinerário Constitucional.” Publicado em 2007, em São Paulo, pela editora Malheiros Editores. 9 O entrevistado se refere, novamente, ao seu livro de memórias especificado na nota de rodapé anterior.

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teatro. Eu lembro que a gente ensaiou lá uma peça, que eu só me lembro da... do panorama da

ponte [risos]. Mas, enfim, não tinha essa vivência, não tinha as coisas assim em mente, não. Só

mesmo quando acabou a guerra, aí mais claramente, e quando eu votei a primeira vez, aí já em

45.

B.A. – Quando o senhor votou pela primeira vez, foi ainda em Minas Gerais?

J.S. – Foi ainda em Minas Gerais. Eu vivia em Curvelo e eu me lembro que... Eu não tinha essa

vivência de política, nada. O prefeito era nomeado, então, você não tinha... Não tinha nenhum

movimento político, porque a ditadura não deixa ter movimento político, então, você não tem

nenhuma participação, e não tem condições de ter porque, simplesmente, é ditadura, é fechada.

Mas aí eu me lembro que, no dia 29 de outubro, eu era alfaiate, eu estava indo de manhã para a

alfaiataria e encontrei o senhor Corrêa. O senhor Corrêa era um comerciante, fazia uma cachaça

muito boa chamada Correinha, que ainda existe, e eu encontrei com ele. Era uma pessoa que

nunca tinha falado nada comigo, e ele estava entusiasmado. “Finalmente, o homem caiu!” Eu

fiquei... Eu não sabia nada do que aconteceu. “Será que machucou? Ele caiu.” [risos] Aí ele

disse que era o Getúlio que tinha caído. Porque o Getúlio tinha caído, e eu não sabia nada disso.

Só um pouco depois é que eu fui me informar. E eu trabalhava numa alfaiataria e o dono da

alfaiataria era um entusiasta do Getúlio. Quando eu trabalhava, ele nunca comentou, mas aí ele

se manifestou: “Ele era muito bom”. E eu falei: “Mas ele estava lá indevidamente”. Foi a

primeira manifestação minha condenando a ditadura: “Não, mas não devia estar”.

R.Q. – Esse alfaiate era José Alves dos Santos? É isso? Este alfaiate...

J.S. – Não. José Alves dos Santos era um morador da Lagoa do Jacaré. O José Alves dos Santos

é que me ensinou alfaiataria, lá na Lagoa do Jacaré. Em Curvelo era o Quinto alfaiate. Não me

lembro o primeiro nome. Acho que era José Quinto, ou alguma coisa assim.

B.A. – E essa eleição que o senhor votou pela primeira vez era para...? O senhor lembra para...?

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J.S. – Sim. Era a eleição para presidente, que se realizou no dia 2 de dezembro de 45, e eu votei

no Dutra. Votei no marechal Dutra10, mas sem saber porque e sem nenhuma consciência do que

estava fazendo. Mas eu acho que votei bem, porque, se tivesse sido eleito o brigadeiro11, nós

teríamos entrado numa ditadura talvez pior do que a do Getúlio. O pessoal que apoiava o

brigadeiro era muito autoritário. Mas, enfim, isso é mera cogitação. Você não sabe como seria

ou como não seria. Mas eu votei no Dutra. Para o Senado, eu votei num candidato que era da

região, era filho de Curvelo mesmo, [Inaudível] era um médico conhecido; e para deputado

federal, eu votei num outro Dutra, que eu não sei onde... nunca ouvi falar mais nele e não deve

ter sido eleito e não sei quem é. Quer dizer, então, era muito inconsciente, quer dizer, não sabia

em quem, não conhecia ninguém, não tinha nenhuma influência política, tinha vivido o período

da ditadura... Eu vivi quase só na ditadura: depois veio 64, mais ditadura.

B.A. – Na casa do senhor, tinha alguma experiência política? O pai do senhor frequentava

algum...?

J.S. – Não.

R.Q. – Ou seus irmãos, ou tios, ou, enfim, alguém da família?

J.S. – Não.

R.Q. – Alguém do seu convívio?

J.S. – Não, ninguém. Eu vivia num lugar pequeno que não tinha vida política. Quer dizer,

quando era época de eleição, por exemplo, seguia o Chico Campos, que era dali. E ia votar em

Pitangui. Montava a cavalo e ia votar em Pitangui, era longe. Ia votar em Pitangui. Tem uma

história interessante, tinha lá um Tibúrcio Rodrigues Braga, que era poeta popular, ele ia para a

eleição e fazia versos lá, “Pitangui...”. Tem até publicado. Mas eu não tinha informação

nenhuma, nem do que eles iam fazer lá em Pitangui. Meu pai ia para votar. Hoje eu sei que ele

10 Eurico Gaspar Dutra (1883-1974). Militar e político. Foi eleito presidente do Brasil nas eleições de 1945, assumiu o governo no dia 31 e janeiro de 1946. 11 Eduardo Gomes (1896-1981). Candidatou-se duas vezes à presidência, não tendo sido eleito em nenhuma das ocasiões.

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ia para votar. Na época eu não tinha essa informação. Meus pais não conversavam muito com a

gente. Nem entre si, nem muito com a gente. Eu acho que, lá em casa, um pouco... Os filhos,

nós, quando nos juntamos, hoje, não conversamos quase. Não tivemos esse hábito de conversar

muito dentro de casa. Então, não tinha esse hábito. Tivemos... Eu tive, especialmente, e meus

irmãos também, tivemos uma infância muito boa, muito sem problema, muito livre, muito livre,

[Inaudível], fazendo o que queria. E meu irmão mais velho, quando a gente vivia ainda no

Queima Fogo, lá com seus oito anos, oito para nove anos, ele sofreu um acidente, porque ao

mexer com um boi, o boi movimentou a cabeça e furou o olho dele, então, ele ficou cego de um

olho. Então, tudo isso interferiu muito nas relações de família etc. Minha mãe se dedicou muito

a ele, e eu fiquei meio de escanteio [risos], essa coisa que é normal, mas que a criança se

ressente. De qualquer forma, foi uma infância boa. Mas apanhei, levei chicotada, levei... Minha

mãe batia muito; meu pai batia menos.

B.A. – E como se deu a decisão do senhor de vir para São Paulo?

J.S. – Pois é. Eu estava em Curvelo... Eu tinha saído de Curvelo para fazer o exército em Belo

Horizonte. Servi ao exército, voltei para Curvelo e montei uma alfaiataria.

B.A. – Em que ano era isso?

J.S. – Eu voltei em 1946. E eu fui viajar... Foi em 1946, portanto, na época da Constituição. Aí

eu já via esse burburinho a respeito da vida política, porque aí eu estava... Eu voltei para

Curvelo, montei a minha alfaiataria e fui trabalhar. Eu tinha esse meu irmão que sofreu

reumatismo e ficou com a perna encolhida e ele foi para um hospital lá em Belo Horizonte e

ficou três anos lá tratando da perna. Espichou, mas ficou com a perna dura. E como ele foi para

o hospital, um dia meu pai recebeu realmente uma carta do dono do hospital para apoiar a

candidatura do Milton Campos para o governo de Minas, e ele fez realmente um certo

movimento – muito simples, porque não tinha nem condições de fazer muito – para arranjar

votos para o Milton Campos – um movimento político sem vivência. Mas a verdade é que a

minha alfaiataria nem estava dando grande coisa, mas a minha... Eu tentei estudar, em Curvelo.

Eu frequentei um curso... Isso depois que eu voltei do exército. Eu frequentei um curso

particular de uma senhora, dona Alfa. O que é interessante dela é que ela tinha sido também do

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integralismo e continuava apaixonada pelo integralismo. Chegou a fazer movimento em Belo

Horizonte. E ela que me deu aulas algum tempo e, de certo modo, me abriu o olho para várias

coisas. E eu ia fazer... E já estava com 21 anos. Eu queria fazer o ginásio. Mas aí também não

deu certo e eu acabei... Aí eu resolvi: “Eu vou embora, vou procurar um jeito de estudar”. Tinha

muito colega, muito alfaiate de lá que tinha ido para o Rio de Janeiro, e eu falei: “Não vou para

o Rio de Janeiro, porque eu quero estudar e, no fim, eu fico nesse rolo com os amigos e acabo

não fazendo”. Então, eu saí de lá com a intenção de estudar. Não sabia o quê. Não tinha a menor

ideia do que eu ia fazer. Nem sabia muito bem o que era esse estudar. Aí, fechei a alfaiataria,

vendi o violão [risos], saí de Minas. Comprei passagem e vim embora. Tomei o trem aí por

volta das dez horas da manhã, no dia 27 de novembro. Eu me lembro bem que, naquela época,

estava começando [Inaudível] da Nossa Senhora da Graça, em que festejam a Nossa Senhora da

Graça, que era uma influência dos Estados Unidos. E aí vim para cá.

B.A. – Em que ano?

R.Q. – Em 1947.

J.S. – Em 1947. Eu saí no dia 27 de novembro de 1947 de lá, e desci em Belo Horizonte, fui

para a casa de um primo, dormi lá e, no outro dia de manhã, peguei o trem e vim embora para

São Paulo. Viajei o dia todo, a noite toda e cheguei em São Paulo às nove horas da manhã, e aí

já no dia 29. Cheguei, portanto, no dia 29 de manhã, em São Paulo. Levei um susto muito

grande, quando saí da estação e ouvi aquele barulhão, assim. Era ali na Rangel Pestana, aquela

estação que fica lá, aquele barulhão assim, e o trânsito. Eu levei um susto terrível. Estava

garoando – porque naquela época tinha garoa, mesmo – estava garoando, e eu andei por ali a

procura de uma pensão. Porque esse meu primo tinha estado aqui e tinha ficado numa Pensão

Bragança, na rua ali do lado da estação, não sei o quê Pinto, do lado da estação Roosevelt. Aí eu

fui lá. Eu tinha uns 600 cruzeiros e alguma coisa. Era um bom dinheiro: dava para a pensão por

uns três meses. Aí eu fui lá, “olha, eu queria um quarto”. Não era quarto; era cama. Ele... “Uma

cama custa dez cruzeiros.” Dei dez cruzeiros para ele. “Então me mostra, eu quero dormir.” Ele

falou: “Então você tem que pagar mais dez cruzeiros.” “Então, não durmo e eu não pago”, e saí

por ali. E ali, vi uma alfaiataria, entrei e pedi serviço. Era sábado. Pedi serviço e, já na segunda-

feira, eu comecei a trabalhar.

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R.Q. – O senhor lembra o nome da alfaiataria?

J.S. – Não.

R.Q. – Ou o nome do alfaiate.

J.S. – Não. Eu fiquei uma semana só. Eu sei que era na... Não sei se era a rua do Hipódromo.

Enfim, uma daquelas ruas ali no Brás. Eu cheguei e trabalhei uma semana e ganhei 280 reais.

Ele, no sábado, foi me pagar e disse: “Olha, eu não posso te pagar os 80. Eu te dou 200”. Aí eu

não voltei. “Não vou trabalhar numa alfaiataria que não paga.” Nem voltei mais lá. E eu não

tinha... Eu tinha um conhecido aqui, mas nem sabia onde é que ele estava. Mas, no domingo,

logo... Eu cheguei no sábado e, no domingo, eu saí do Brás e vim a pé até à Praça da Sé,

almocei por ali e, depois, no fim da tarde, eu fui procurar. Eu sabia que ele morava na rua

General Osório, mas não sabia aonde. Aí eu peguei a rua General Osório. Quando eu vinha

vindo, voltando, aí na Barão de Limeira, na esquina com São João, dou de cara com o cara, que

estava voltando do futebol. Ele era corinthiano. “Ah, você?!” Aí eu fui morar na casa dele. Ele

morava numa casa de família e tinha lá um quarto, eu fui morar lá. E a alfaiataria, já no outro

dia eu fui procurar serviço e, ali na Boa Vista, entrei numa alfaiataria – eu vi anunciado e fui lá.

O dono era Vito Seripieri. Ele tinha um filho que estava fazendo direito, na ocasião. Vito

Seripieri, baixinho, falante, italiano. Ele me levou no gabinete dele, era todo chique. “Aqui,

você vai... Eu comecei aqui lavando privada.” “Mas eu não quero lavar privada.” [risos] Bom,

fiquei ali, trabalhei ali um pouco. Ali eu tive... Bom, aí eu já estava acompanhando mais ou

menos os problemas políticos, porque estava vivendo numa vida política, o país já estava

realmente na mão [Inaudível], já estava... Já era 47, o Adhemar12 já era governador. E ali

estiveram ali dois rapazes de Goiânia que eram integralistas, e eles queriam ver realmente o

Plínio. O Plínio Salgado13 já tinha criado o partido dele, que era o Partido de Representação

Popular. Aí fui com eles uma vez... Ouvi o discurso do Plínio e fiquei horrorizado, “isso não

serve”. Bom, enfim, continuei a estudar: me matriculei num curso prático ali para o concurso do

12 Ademar Pereira de Barros (1901-1969). Aviador, médico, empresário e político. 13 Plínio Salgado (1985-1975). Político, escritor e jornalista.

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Banco do Brasil. Fiz o concurso e não passei. Fiz duas vezes e não passei. Fiz uma terceira e

não passei. Tinha contabilidade, eu não...

R.Q. – Todo esse tempo, o senhor trabalhando na alfaiataria?

J.S. – Todo esse tempo. Eu trabalhei no Vito... Trabalhei ali, eu acho que uns seis meses. Talvez

nem isso. Depois eu fui trabalhar numa ali no número 61 da São Bento. No primeiro andar era a

alfaiataria do Lobato era freguês e eu trabalhei num paletó do Monteiro Lobato14. Também

trabalhei ali uns três meses. Depois fui trabalhar com um rapaz lá no Bom Retiro. Eu fiquei

também lá uma temporada, mas o sujeito não tinha dinheiro. “Não vou trabalhar num lugar que

não paga. Não adianta nada”, e saí para procurar trabalho. Aí o que a gente fazia era o seguinte:

quando a gente ficava desempregado, ia ali para a rua João Brícola – porque ali que era a

redação do Diário popular –, pegava o Diário popular e saía para ver emprego, porque era um

jornal que tinha emprego popular. Aí eu vi que estavam precisando de um oficial alfaiate na Ao

preço fixo. A Ao preço fixo ficava numa casa ali na Praça do Patriarca, onde está aquele prédio

hoje, entre a São Bento e a Direita. Ali tinha um prédio velho, alto, não me lembro... sei lá dois

andares, ou um andar, não sei, e em cima ficava a Ao preço fixo, e ele fazia roupa, fazia roupa

para mulheres, e estava precisando exatamente de um alfaiate para fazer roupa de mulher.

Naquela época, usava muito uns casaquinhos de mulher com aquelas anquinhas. E eu fui lá. Eu

nunca tinha feito isso. Ele perguntou: “Você tem prática?”. “Prática, não tenho, mas...” Aí:

“Está bom. Então vem”. Cheguei lá, tinha uma mesa grande, tinha um alfaiate aqui, outro aqui,

ele me botou no meio e botou um tailleur ali para eu fazer. Eu olhei para um, olhei para outro,

falei: “Olha, eu nunca fiz isso, não sei fazer, vocês vão me ajudar”. “Pode deixar, a gente faz

com você.” E realmente ajudaram. Eu fiz o primeiro e aí eu fui fazendo o resto, esses tailleurs.

Naquela época, usava uma saia muito comprida e tailleur de anquinha, então, você fazia uma

anquinha aqui. Ali trabalhei também muito tempo. E ao mesmo tempo, estava fazendo os

estudos. Nesse período, eu tinha... Eu tinha descoberto, quando estive naquela pensão...

Naqueles oito dias lá na Pensão Bragança, eles me mudavam de cama todo dia: um dia estava

nessa aqui; no outro dia, estava na outra. Eu fiquei uma semana lá. Aí, num desses dias, me

puseram num quarto lá com umas sete camas, aí chegaram lá umas pessoas, uns caminhoneiros,

sei lá o que eram, e um começou a falar de que era químico e que tinha feito o madureza, e aí eu 14 José Bento Monteiro Lobato (1882-1942). Escritor. Graduou-se em Direito por imposição da família.

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perguntei: “Mas o que é esse negócio de madureza?”. “Você faz o ginásio, sem necessidade de

frequentar o curso.” “Mas isso vale?” “Vale.” Então, fiquei com aquilo na cabeça. E aí, quando

eu não passei nos concursos que eu estava querendo passar... Porque eu queria passar

exatamente para criar condições melhores para estudar. Aí eu fui procurar um curso de

madureza, que era na São Bento, também. Dali eu... Eu frequentei ali uns oito meses e fui fazer

o exame no Colégio Estadual Regente Feijó, lá de Itu. O governo designava, ou a Secretaria da

Educação designava os colégios em que você tinha que fazer esse concurso, porque no período

anterior houve muita fraude em cursos em colégios particulares, então, só designavam colégios

estaduais. Naquela época, os colégios estaduais eram muito bons, o ensino público era muito

bom. Então, fui fazer no Regente Feijó. Nós éramos 360 candidatos e passamos onze. E aí eu

adquiri as condições de prosseguir os meus estudos e fui fazer um colégio estadual aqui

pertinho, nesse Colégio Fernão Dias Paes, aqui na...

B.A. – Na Pedroso15 .

J.S. – ...na Pedroso.

B.A. – Como funcionava o madureza? Era um curso para depois fazer uma prova para ver se

podia mudar de ano?

J.S. – Não. O curso, você fazia se quisesse. Você podia pedir a matrícula no colégio que ia fazer

o exame e fazer. Você não precisava frequentar curso nenhum. A gente frequentava o curso

para se preparar. Eles davam as... Porque o madureza, na ocasião, era toda a matéria do ginásio.

Depois criaram o supletivo, com matérias selecionadas. Mas lá, não, era toda a matéria do

ginásio. Os exames eram mais facilitados, porque você fazia... Alguns exames eram só orais e

outros eram só escritos. Eu frequentei porque eu queria me preparar para fazer os exames.

Então, frequentei dez meses. Era o Curso Madureza Rossi. Tinham ali dois ou três, aqui em São

Paulo. E aí estudei, fiz... Era muito deficiente. Eu tinha história natural na ocasião e, um dia

qualquer, o professor pegou e me deu duas horas seguidas de história natural. Tinha um curso

bom de português; tinha um curso de latim, que não era assim tão grande coisa, o professor

dizia: “Estudem senão vocês não passam”. Mas, enfim, fui fazer os tais exames. Tive muita 15 Avenida Pedroso de Morais.

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sorte, porque, quando cheguei lá em Itu, já não encontrei mais pensão, nem hotel, nem nada, e

havia um grupo lá de uns 20 ou 30 que não tinham encontrado, e ali tinha um seminário de

menores – formação de padre, chamada de menores não sei por quê, acho que eram menores,

nos primeiros tempos no seminário – e os padres eram muito bons e eles nos acolheram.

Compraram colchões e nos acolheram, e nós pagamos uma importância pequena, muito

razoável, ali, com comida e tudo. E eles ajudavam a gente, davam aula. E tinha futebol, tinha

tudo lá, pingue-pongue, tinha tudo, para ajudar a gente. E davam aula para a gente. Só para você

ver como a gente tem sorte – se você abrir aqui16, você vê que eu narro esse fato –, um padre

deu uma história do Ovídio e dissecou aquilo tudo, tudo, na gramática, na literatura, toda a

interpretação. Excelente, não é? Bom, aquilo não caiu lá no madureza, não, mas veio cair no

vestibular aqui, para mim, exatamente aquele texto.

R.Q. – Do Ovídio?

J.S. – É, do Ovídio, exatamente aquele texto. E aí me deu oportunidade de passar com certa

facilidade. E lá os padres... O certo é que eu estava fazendo... Eu narro isso aí, também. Eu

estava fazendo e tinha um rapaz que chegou para mim um dia e falou: “Olha, você passou em

tudo até agora”. Mas faltava a história natural. Bom, então eu peguei e comecei a aprender a

história natural, não é? [risos] Mas, enfim, fui fazer o tal do exame de história natural. Eu sou

uma pessoa tímida – até hoje, mas naquela época eu era muito mais – muito encaramujado, e aí

eu entrei para fazer o exame, era uma sala, um anfiteatro cheio de gente e cinco professores ali.

Aí eu passei na frente e disse: “Olha, vejam o que vocês vão fazer. Eu já passei em tudo até

agora...”. Eu não sabia nada. Mas não sabia mesmo. E me botaram lá um esqueleto na frente,

“que osso é esse?”, “que osso é aquele?”. Enfim, me aprovaram. Acho que tiveram pena. Talvez

tenham visto as outras matérias. Tive sorte em vários momentos, nesse exame. No de

matemática... Eu, quando fiz esses concursos do Banco do Brasil que não passei, tinha um

professor de matemática que achava que eu passava em tudo. E eu não fui bem em aritmética.

Ele falou: “Vou te dar um curso de álgebra de graça”. Ele me telefonava todo sábado: “Ao

meio-dia, estou te esperando”.

16 O entrevistado se refere ao livro de memórias de sua autoria “A Faculdade e Meu Itinerário Constitucional.” Publicado em 2007, em São Paulo, pela editora Malheiros Editores.

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B.A. – Qual o nome dele?

J.S. – Rubens Carpinelli. Ele tinha casado há pouco e morava aqui numa dessas travessas da

Rebouças, quase esquina com a Rebouças. Eu sempre fico pensando que é onde havia aquele

restaurante In Citta que é na Rebouças, porque a casa era muito parecida e sempre fico

pensando que é aquilo. Até supus que cheguei a escrever que era lá. E ele me dava aula de

álgebra. Foi o que me salvou lá. Porque, realmente, era uma questão que eu tinha que

desenvolver e eu desenvolvi e não dava certo no final. Mas, como eu desenvolvi tudo muito

certinho, porque eu sabia fazer isso... Não deu certo. Aí eu escrevi: “Deve ter algum sinal

trocado, porque não está dando certo e está bem desenvolvido”. E realmente tinha um sinal

trocado. Consideraram certo.

B.A. – E deve ter sido um exame rigoroso, porque, de 360, o senhor disse que passaram onze.

J.S. – Ah, foi. Na verdade, o pessoal não era muito bem preparado. Também tinha isso. Mas era

rigoroso. Era um exame rigoroso, especialmente porque tinha havido fraude anteriormente. Era

muito rigoroso. E a prova de geografia e de história era só oral. Na de geografia, também por

acaso, sorte, eu tinha lido, uns 15 dias antes, que finalmente tinha sido reconhecida, aberta a

Faculdade de Direito de Goiânia. Li aquilo. Aí, quando chega lá, cai para mim a Região Centro-

Oeste. [Inaudível], tropeça ali, levanta acolá. [risos] E eu falei: “A região é tão pobre que não

tem... O senhor vê, do ponto de vista cultural, só tem uma Faculdade de Direito, em Goiânia”.

“Não tem.” “Tem.” “Não tem.” “Tem.” E ficou aquela coisa. Aí chega o inspetor. “O que é que

houve?” “Eu afirmo que tem uma Faculdade de Direito em Goiânia, agora tem, foi criada, e o

professor afirma que não.” Aí o inspetor confirmou.[risos]

B.A. – E a partir daí...

J.S. – A partir daí, eu vim fazer o colégio.

[FINAL DO ARQUIVO I]

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R.Q. – Professor, quando o senhor conclui o madureza, o senhor já tinha direito em mente?

J.S. – Não, eu não tinha a ideia precisa do que eu ia fazer. Eu sabia que eu ia prosseguir com os

estudos. Isso era definido. Eu tinha que fazer ainda o colégio. E como eu decidi desde logo fazer

o clássico e não o científico. Como sabem, naquela época, o segundo grau, o colegial tinha dois

cursos: o clássico, para quem pretendia fazer humanas, e o científico, para quem queria fazer as

exatas e biológicas. Como eu defini logo o clássico, eu excluí da possibilidade da minha

preferência já as exatas e biológicas. Então, medicina, engenharia, tudo isso estava afastado.

Então eu já tinha pelo menos uma tendência. A tendência realmente já estava para direito. Bom,

e eu não tinha muita informação, porque trabalhava o dia todo e ia estudar à noite, mas, de

qualquer forma... Aí eu já estava trabalhando numa alfaiataria onde eu trabalhei muito tempo,

que era uma camisaria, que era o Alfredo. O Alfredo... Ali na rua Guatapará tem uma lojazinha

compridinha assim, e ele era ali. Era uma casa muito importante, uma camisaria muito

importante. E nessa época ele já tinha mudado e, num certo momento, eles resolveram abrir, lá

na camisaria, também um setor de roupa de homem: calça, paletó etc. E porque eu já estava

desempregado. Eu peguei o Diário popular e vi que eles estavam querendo alguém para fazer

paletó, e eu fui lá. Fui lá, me apresentei, ele perguntou se eu tinha prática, “eu tenho prática”...

Tinha. Nessa época, eu tinha trabalhado no Rondino, e o Rondino era um muito bom, então, eu

tinha me aperfeiçoado bastante com paletó. E aí o sujeito me perguntou... Na Pardal Alfaiataria,

só tinha um, que era o chefe dele próprio, até aquele momento. Aí ele me perguntou: “Mas

quanto é que você quer ganhar?”. Eu falei: “Eu quero ganhar 1.500 cruzeiros”, que era um bom

salário. Ele falou: “É, mas assim não vai dar, porque nem eu ganho isso”. “Está bom”, e fui

embora. Eu falei: “Vai dar, porque ele vai forçar para eu ir, para melhorar a história dele”.

[risos] Fui para casa e fiquei lá. No outro dia... Isso eu acho que foi... Não sei se foi numa sexta-

feira. Enfim, na segunda-feira, eu estava lá esperando o horário para ir buscar o Diário popular,

aí ele mandou me chamar. E aí eu fui trabalhar lá, na área de paletó. Peguei o primeiro paletó...

Cheguei lá, tinha que pregar uma manga. A manga é uma das coisas mais difíceis de fazer no

paletó. É a manga e a gola, a coisa mais difícil. Era um veludo azul. Eu sempre fico com a ideia

de que era para o Walter Ceneviva17, não sei. Mas, de qualquer forma, me deram aquilo. Ele me

deu, eu peguei, olhei, não entrava, a manga não... A gente fala: “Não entra. A manga não entra.

Ela não entra”. Era tudo na medida, não é? Eu falei: “Não entra. Se não...”. E o contramestre 17 Walter Ceneviva, advogado.

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não aceita a gente pôr fora. “Se não recortar, não entra. Se não acertar, não entra.” Aí ele

próprio pegou, e não deu. Ele falou: “Faça o que você quiser”. Aí eu cortei e entrou. Aí eu

fiquei com a moral. [risos] Bom, enfim, trabalhei ali muito tempo. Ele mudou depois para a

Sete de Abril, e ali, eu saía da Sete de Abril... E eu me matriculei num curso de italiano que

funcionava no prédio da antiga Associados. Ali, no quinto andar, funcionava um curso de

italiano. Eu saía às seis horas da alfaiataria, entrava ali – eu entrava seis e pouquinho –, saía às

sete e vinha aqui para o colégio, vinha fazer o clássico aqui. Aí a minha professora de português

estava fazendo direito. Eu tenho a impressão que foi daí que surgiu um pouco a minha

preferência pelo direito. E eu viajava com ela, porque ela morava... Eu morava na Conselheiro

Nebias na época, então, eu saía daqui, tomava o ônibus aqui e tomava o bonde lá, para ir para a

Conselheiro Nebias, e ela morava ali do lado da Barão de Limeira, bem perto. Então, a gente

viajava praticamente todas as noites conversando e tal. Então, eu suponho... Não tenho uma

passagem muito clara de que realmente ela tenha me induzido a isso. Eu sei que ela estava

fazendo direito e eu suponho que por aí é que eu fui me encaminhando para o direito. Eu já

tinha tomado uma decisão de que era no campo das humanas, então, a escolha estava só entre

filosofia e direito, mesmo. Então, fui fazer direito.

R.Q. – Isso que ano era, quando o senhor...? É em 1950 e 1951, quando o senhor frequentava o

clássico?

J.S. – Eu frequentei o clássico em 1950, 1951 e 1952.

R.Q. – O senhor se recorda da eleição de 1950?

J.S. – Ah, recordo. Aí eu votei...

R.Q. – A eleição do Getúlio.

J.S. – Votei no Getúlio. Aí eu votei no Getúlio porque votei contra o brigadeiro18. Eu já tinha

votado uma vez contra ele. Votei no Getúlio, e aí eu já estava mais consciente, eu já esperava

que... Eu já tinha visto o governo do Dutra, eu já tinha uma certa noção das coisas, e lia jornais 18 Eduardo Gomes (1896-1981). Militar e político.

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mais, então, já estava mais conscientizado. E não me impressionou o fato de o Getúlio ter sido

antes o ditador porque... “Bom, agora a situação é outra, então... É eleitoral.” Enfim, eu tenho

bastante clareza que votei...

B.A. – E o senhor, durante o clássico, teve contato com literatura? O que o senhor mais lia?

J.S. – Ah, tinha. Aí eu li bastante, especialmente no terceiro ano. Porque a professora, no

terceiro ano, ela dava literatura. Então, eu li o que eles chamam... Li A moreninha, essa

literatura... Eu já tinha tomado conhecimento da literatura lá em Minas. Quando eu era padeiro

lá em São José da Lagoa, eu li o meu primeiro romance e fiquei encantado, que foi Iracema,

que encanta todo mundo, o jovem, não é? Li o primeiro romance. Aí eu fiquei sabendo. Quando

eu estava em Curvelo, eu li muito romance. Eu li na época, em Curvelo, até o romance do

Gorki, A mãe, que é um romance famoso do Gorki, revolucionário. Então, eu li muito ali. Li

muito, muito, muito. Li coisas boas, mas li coisas ruins, também. Li várias obras. Ali eu li

várias obras do José de Alencar: Senhora, Diva... Diva, porque eu tinha uma namorada Diva e

eu vim embora porque ela casou com outro. [risos] E fiz a roupa do noivo, ainda. Mas aí eu lia

bastante. E quando vim para cá, eu comprava muito romance. E eu passei um mês muito sem

dinheiro porque eu comprei Os sertões. Eu passava ali... A Forense era na São João, e eu

passava na Forense, tinha lá uma cadeira, e eu sentava ali e ficava lendo. Aí eu quis comprar Os

sertões. Custava 40 cruzeiros. E eu conhecia muito esses autores todos porque eu tinha...

Quando ainda em Curvelo, aquela professora me indicou, como um livro de português bom, e

era bom mesmo, o Português prático, de Marques da Cruz, que tem uma parte de literatura

interessante e sempre se refere... citava muito texto de autores muito importantes. E acho que

tudo isso me levou também à literatura. Aí, eu nesse... Eu tinha mudado de pensão, tinha ido

morar na casa desse amigo com quem eu encontrei, aí na General Osório, e não sabia que tinha

que pagar adiantado e gastei o dinheiro com Os sertões. Não gastei tudo; tinha dinheiro para...

Só que aí ele me advertiu que eu tinha que pagar adiantado. Então, paguei adiantado e fiquei

com pouco dinheiro para comer. Aí eu ia comer no China uma lavagem. Ia comer no China ou

comer o prato feito, não é? O famoso PF. Mas, enfim, essas coisas todas fazem parte da

experiência de vida. Foi muito bom.

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B.A. – Eu gostaria que o senhor falasse um pouco do vestibular e do preparo para o vestibular e

da escolha pela São Francisco, também.

J.S. – O vestibular foi outro momento de sorte. Você sabe, eu trabalhava no Alfredo, e aí eu

estava no terceiro ano do colégio e queria fazer um preparatório para vestibular. Tinha o

Castelões, ali na São Bento, que era muito bom, era recomendado. Então, procurei o gerente lá

do Alfredo e falei com ele: “Olha, eu vou embora. Eu quero fazer o vestibular e não posso

mais... Tenho que fazer esse preparatório de manhã, então, não posso trabalhar mais”. Eu nem

sabia o que eu ia fazer, porque eu tinha que arranjar um trabalho, de qualquer forma, e não sabia

se ia conseguir um trabalho de meio dia. Mas ele falou: “Não, não vai embora, não. Faça o

seguinte, você... Lá na Barão de Itapetininga, tem uma sala lá, você vai cortar calças. Então,

durante esse período, você recebe lá os cortes, tem os modelos, você corta as calças”. E tinha

uma máquina para cortar. Aquilo, em duas horas eu fazia tudo, e ficava o resto para estudar. E

me matriculei no Castelões. No Castelões, eu não tive nem um dia, a secretária me chamou: “O

senhor vai pagar só a metade”. É que tinha uma... A menina que trabalhava lá era irmã de uma

das moças camiseiras que trabalhavam no Alfredo, e a camiseira falou: “Ele é alfaiate e tal...”.

Então, o Castelões ficou sabendo e mandou... Ótimo, e aí eu fiz o curso. Ali, sim, ali tinha um

professor de português realmente fantástico, um professor de latim realmente fantástico, tinha

mesmo, chamava-se Geraldo de Souza, estava no quinto ano da faculdade, Geraldo Roberto de

Souza. Depois, chegou a desembargador e se aposentou como desembargador. Excelente

professor. E a minha opção era de francês, e tinha o professor de francês, que também era muito

bom. Ali eu li... Porque as aulas eram dadas com base num livro do Daudet, Lettres de mon

moulin (Cartas do meu moinho). Depois eu fui conhecer, lá perto de Avignon, o moinho dele.

Então eu fiz, realmente, latim, português e francês. A língua estrangeira que eu escolhi foi

francês. E eu fiz, como disse, o vestibular. Terminei, fiz a matrícula... E não tinha dinheiro para

a matrícula – era 150 cruzeiros, e o Antonio Morimoto19, que tinha morado na pensão comigo, é

que me emprestou. O Morimoto depois foi deputado em várias legislaturas, deputado federal em

várias legislaturas – ele morreu há uns cinco anos, e ele é que me emprestou o dinheiro para eu

pagar a... Pagava-se. Naquela época pagava. Depois houve a proibição de pagar, porque escola

pública, não tinha que cobrar nada, não é? Pagava porque o vestibular era feito na escola e os

professores da escola é que eram os examinadores. Então, eu fui fazer latim, fiz latim e, como 19 Antonio Marimoto (1934- 2007)

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disse, caiu aquela história do Ovídio que foi dissecada lá em Itu; português era o Sampaio

Dória, que era professor da Casa. O Sampaio Dória era professor de constitucional e de direito

internacional privado da Casa; foi ministro da Justiça na transição do período do José Linhares

para a eleição, foi ministro da Justiça da época; era dono do Colégio Rio Branco, um dos donos,

e tinha uma gramática muito interessante, chamada Como se aprende português, que ensina

bem. Ele era apaixonado pela... Eu conto isso aí20. Ele era apaixonado pela análise lógica, a

análise sintática. Mas ele sabe fazer isso; não é mecânico. A maioria é mecânico. Mas, enfim,

eu fiz com ele. Literatura, eu acho que caiu realmente... Quem foi? Bom, não me lembro. Mas,

enfim, não havia grande problema. Não sei se foi Machado de Assis... Enfim, não havia grande

problema. Mas, no oral, eu acho que eu não fui muito bem, porque no fim eu passei com média

cinco e alguma coisa. E francês eu fiz com o professor Ataliba Nogueira21, que era professor de

teoria geral do estado, que ainda brincou comigo, que tinha a pronúncia... Perguntou de onde eu

era; eu falei que era mineiro. Tinha a pronúncia estranha, não é? ”Não é de Campinas?” Ele era

de Campinas. Bom, enfim, passei bem. O texto que caiu foi um texto do livro, do romance de

Mauriac, Le mal. Era uma leitura de algumas coisas sobre gramática, análise. Não era uma coisa

do outro mundo, não. Passei bem. Passei bem em latim, que era com o Alexandre Correia, a

fera. Mas foi tranquilo, eu passei muito bem, eu passei... eu acho que no quadragésimo nono

lugar.

R.Q. – Quantas vagas eram à época, o senhor se lembra?

J.S. – Eram 360. Bom, eram 300, mas passavam 360 e entravam 360, porque havia sempre um

movimento aí. Trezentos e sessenta que entraram. Na minha turma, entraram 360. Aí dividiram:

cento e vinte para cada uma daquelas salas grandes. Mas, no fim, quando nos formamos, já

eram 400 e muitos, porque tinha uma turma anterior que era de um grupo de professores que

reprovava muito, então, ficaram...

B.A. – Ficaram para trás.

20 O entrevistado se refere ao livro de memórias de sua autoria “A Faculdade e Meu Itinerário Constitucional.” Publicado em 2007, em São Paulo, pela editora Malheiros Editores. 21 José Carlos de Ataliba Nogueira (1901-1983). Advogado, historiador e professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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J.S. – ...para trás.

R.Q. – Isso em 1953, o senhor entra?

J.S. – Eu entrei em 1953.

R.Q. – O senhor tinha 27 para 28 anos de idade, é isso?

J.S. – É. Eu entrei... Eu comecei as aulas em março e eu ia fazer 28 [anos] em abril.

R.Q. – O senhor era mais velho do que a maioria dos seus colegas, portanto.

J.S. – Era mais velho do que a maioria dos meus colegas. Deviam ter uns dois ou três mais

velhos: tinha um que era de Santo André, o Antônio, que devia ser mais velho...

R.Q. – Isso afetava em alguma coisa o seu convívio com os colegas? O senhor desenvolveu

amizades?

J.S. – Não. Eu convivi muito bem com os colegas, uns jovens bons. Eu não tenho... Muito bem.

É claro, lá se faz sempre grupos, e você tem os grupos mais chegados. Eu já fui para a escola de

cabeça raspada, e encontrei na porta um rapaz alto, cabeludo, “falei, bom, deve ser veterano”.

Aí eu perguntei para ele: “Você sabe onde é a sala do primeiro ano?”. Ele falou: “Não. Vamos

ver”. Contornamos ali as salas e fomos ver lá nos quadros. Aí ele viu quando passou. “É aqui.”

Ele também estava procurando. Ele também era calouro. Só que ele pagou para não sofrer o

trote. Ele disse que não pagou. Ele disse que obteve um atestado médico. Ele tinha um primo,

casado com a tia dele... um tio, na verdade, um médico, casado com a tia dele, que deu um

atestado para ele dizendo que ele não podia sofrer trote.

B.A. – E o senhor se lembra o nome dele?

J.S. – Do médico?

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B.A. – Não, desse colega.

J.S. – Ah, lembro muito. Depois ele foi meu compadre, batizou o Virgílio22, é padrinho do

Virgílio, foi na minha cerimônia de casamento. Chama-se Antônio Di Munno Corrêa. Era de

São Carlos. Depois ele foi morar na Casa do Estudante. Ele morava lá, e quando chegava assim

no fim do mês, a mesada dele acabava, aí ele escalava a gente para... aonde é que ele ia almoçar.

Um dia ele me escalou. “Está bom. Você quer ir lá em casa, vamos”. Eu morava na Conselheiro

Nebias, era uma espécie de porão, mais elegante – era por baixo ali de um daqueles palacetes.

Eu cheguei lá em casa sem avisar nada e só tinha arroz. Só tinha arroz e ovo. “Está bom, é isso

que tem para comer.” Ele nunca mais me escalou, porque, é claro, ele não gostou muito da

comida. [risos] Mas convivi muito com ele e com um grupo muito bom. Nós temos um grupo

que ainda convivemos muito. Hoje, estamos reduzidos a quatro... cinco casais. Convivemos

muito, sempre estamos jantando juntos e ainda convivemos muito, porque um deles foi o

presidente da Comissão de Formatura e a Comissão de Formatura está organizada até hoje e

organiza as festas de formatura até hoje. Está começando a organizar agora, porque nós já

fizemos os 50 anos e já estamos indo para 55 anos, não é? Cinquenta e cinco. A nossa formatura

foi em 1957. Então, estamos aí para fazer mais uma festa, e deve ser agora neste ano.

R.Q. – Quem são esses colegas com os quais o senhor ainda hoje...?

J.S. – Hoje, nós temos o dr. Hamilton Caetano de Mello23, que é o presidente da Comissão; tem

o dr. João Lopes Guimarães24, que foi do Ministério Público; tem um que veio depois, porque a

mulher dele que é colega de turma, que é o José Roberto Ferreira; e outro que veio depois, que é

o Tito Hesketh25, que foi desembargador, juiz desembargador, e depois se incorporou à nossa

turma. Então, nós temos hoje esses quatro, um grupo que... E ainda nos reunimos com

frequência, na casa de um ou na casa de outro, ou nos restaurantes. A gente sempre se reúne,

somos amigos mesmo. Alguns... Tinham outros, que foram morrendo e nos deixaram.

22 Luís Virgílio Afonso da Silva. Filho do entrevistado e professor do Departamento de Direito do Estado da Universidade de São Paulo. 23 Hamilton Caetano de Mello, advogado. 24 João Lopes Guimarães, promotor público aposentado. 25 Tito Hesketh . Desembargador aposentado, advogado.

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R.Q. – Quem eram outros colegas da sua turma que o senhor considera que tenham sido

marcantes por qualquer coisa, por amizade, por...?

J.S. – Marcantes? Dalmo Dallari26, que você conhece; Ada Pellegrini Grinover27, que você

conhece; Modesto Carvalhosa28, que você conhece; o Manoel Gonçalves Ferreira Filho29... A

nossa turma foi a que deu mais professores titulares na faculdade até hoje, desde quando se

criou... Tem uma que deu mais, mas não havia concurso. Desde que se criou o sistema de

concurso, a nossa turma é que deu mais. Você tem: Manoel Gonçalves Ferreira Filho; eu;

Modesto Carvalhosa, que depois saiu, não foi titular... Titular mesmo: o Manoel; o Dalmo; a

Ada, a Ivette Senise30; eu. Nós somos seis. E mais outros: o Modesto Carvalhosa, que chegou a

ser associado, depois saiu da escola; teve o José Franco da Fonseca31, já falecido, que foi

promotor, também, mas chegou a ser professor associado; e tinha o Benedito Motta, que chegou

a ser professor associado. Então, titulares, foram todos desse grupo aí.

R.Q. – Luiz Carlos Bresser Pereira foi da sua turma, também?

J.S. – Foi da minha turma. O Luiz Carlos Bresser Pereira32 foi da minha turma. Juízes... Juiz,

têm vários: o Carlos Antônio Antonini33, que foi desembargador; o Adalberto Camargo

Aranha34, desembargador... Têm vários deles.

B.A. – O dr. Rubens de Moraes, que o senhor cita...

26 Dalmo de Abreu Dallari. Foi diretor da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo entre 1986 e 1990.   27 Ada Pellegrini Grinover. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e procuradora do estado de São Paulo aposentada. 28 Modesto Carvalhosa. Advogado. 29 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Foi Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo de 1973 a 1974. 30 Ivette Senise Ferreira. Advogada. Foi eleita como 37º diretora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tendo sido a primeira mulher a ocupar este cargo, de 1998 a 2002.. 31 José Roberto Franco da Fonseca. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, promotor público e procurador de justiça aposentado. 32 Luiz Carlos Gonçalves Bresser-Pereira. Advogado, professor da Fundação Getúlio Vargas e economista. 33 Carlos Antônio Antonini. Desembargador aposentado. 34 Adalberto Camargo Aranha. Professor e Desembargador aposentado.

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J.S. – Rubens de Moraes, que eu não sei onde é que ele anda, Rubens de Moraes, que foi

também da nossa turma.

R.Q. – O senhor teve um colega de turma para quem o senhor fez uma dedicatória muito

especial no seu livro...

J.S. – Ronaldo Porto Macedo. O Ronaldo é uma dessas unanimidades de amigo. Não havia

quem não gostasse do Ronaldo. E quem eu conheci muito cedo, porque eu o conheci no

cursinho – vários deles eu conheci no cursinho –, ele e a mulher dele, porque depois ele casou

com uma colega. A Ivette Senise, também eu conheci no cursinho. E ele, como eu morava na

Conselheiro Nebias e ele morava na Barra Funda, ele vinha do trabalho – ele trabalhava na

Estrada de Ferro Santos-Jundiaí –, ele passava na minha porta e a gente saía conversando. Às

vezes, passava a noite conversando. Era um belo rapaz. Depois casou com uma colega de turma.

E ele fazia parte desse grupo que se reunia sempre, até... Ele teve um câncer de pulmão e

faleceu ainda jovem. Ele faleceu quando ele estava sendo previsto para ser o secretário da

Justiça do governo Montoro35. Ele estava organizando essas coisas, mas faleceu antes disso.

R.Q. – Durante seu período de faculdade, o senhor tinha envolvimento na política acadêmica?

J.S. – Tive. Tivemos, sim. Eu era do Partido Libertador. Lá tinha o Renovador e o Libertador,

na época. Depois, tinha o Independente, que fez o presidente da nossa turma, que é o

Guilherme.

R.Q. – O senhor se recorda das diferenças programáticas assim dos partidos?

J.S. – Tinha?! [risos] Não, não. O que a gente achava é que o Renovador, apesar do nome, era

mais conservador, mais ligado aos conservadores, e o outro era mais liberal um pouco. Mas não

tinha grande diferença. Não tinha grande diferença, não. E o Dalmo foi candidato à presidência

e, com ele, eu fui candidato a conselheiro fiscal ou alguma coisa assim. Tive mais voto do que

ele, mas não fomos eleitos.

35 André Franco Montoro (1916-1999). Governador de São Paulo entre 1983-1987.

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B.A. – Eu queria saber por que o senhor acha que teve esse número de professores titulares na

turma do senhor.

J.S. – Você sabe que a nossa turma não foi uma turma de bons políticos acadêmicos. Tanto que

não foi a nossa turma que fez o presidente. O presidente era de uma turma anterior. Ele se

reprovou para ser candidato. O irmão dele montou um partido para ele ser candidato e ele se

reprovou para ser candidato. Aí ele foi candidato da nossa turma, mas não era da nossa turma.

Era um belo sujeito, mas não... Ele fez uma gestão também tranquila. Mas não fomos bons

políticos. Então, eu suponho que isso deve... A razão pode ser que esteja por aí: como não

foram muito políticos, talvez estivessem tendido a ser alguma coisa no campo jurídico. A gente

não sabe muito bem quais os mecanismos que acabam levando a gente para algum lugar. Desde

o início eu já tive uma certa inclinação para vir a ser professor. O Dalmo36 também foi logo. O

Manoel37 foi fazer curso no exterior já com essa intenção e voltou, já fez livre-docência e

entrou. O Manoel foi o primeiro da turma a assumir uma titularidade, e depois vieram os outros.

Depois veio o Dalmo; eu; a Ada, que também vem depois; a Ivette, que vem bem depois. Aí foi

isso. Eu não sei bem como é que... que explicação tem isso. Talvez, o fato de... E é curioso o

seguinte, o Manoel foi para direito constitucional; eu fui... Eu não fui titular de constitucional;

eu sou de legislação tributária, mas a minha tendência sempre foi [direito] constitucional. E o

nosso professor de constitucional não era um homem que tivesse uma capacidade de fazer

discípulos. Ele até saiu antes do curso, porque foi ser ministro da Educação do Café Filho.

B.A. – Quem era?

J.S. – Era o Cândido Motta Filho38. Depois foi ministro do Supremo.

B.A. – E o senhor cita nas suas memórias que mais ou menos 50 mulheres se formaram com o

senhor nas Arcadas, na turma do senhor. Eu queria saber como era a presença feminina nas

Arcadas.

36 Dalmo de Abreu Dallari. 37 Manoel Gonçalves Ferreira Filho (referência completa na nota de rodapé de número 15). 38 Cândido Motta Filho (1897-1977). Advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e político.

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J.S. – Era um enfeite, não é? O povo brincava muito que, na verdade, elas estavam lá para

arranjar casamento. Mas nós tínhamos excelentes amigas lá. Eu tinha... Eu até conto bem, no

primeiro dia, quando entraram... Naquela época, as mulheres usavam o vestido batendo lá nos

pés. Cabelo curto e saia comprida. E aí desceram três, pam-pam-pam, ali na sala. Eu me lembro

que teve a primeira aula da Goffredo39. Antes da aula, desceram. E eram três colegas. Tinha a

Doracy De Maria e a Iracy De Maria e a outra, a Sônia. As duas [primeiras] eram irmãs. A

Doracy... O Di Munno, nós tínhamos entrado juntos, ele ficou tomado pela Doracy. Ele era

noivo em São Carlos, e no fim, acabou o noivado e casou com a Doracy, no fim do curso. E a

Doracy era importante porque ela financiava o nosso café com chantilly ali no... Tinha um café

ali junto do Itamaraty, aí ela financiava. E a gente saía toda tarde. E aí, já mais tarde, a gente foi

fazendo cada vez mais amizade e foram formando-se os grupos. E o grupo era esse, era o Celso;

o Ronald Caputo; o Ronaldo Porto Macedo; o João Lopes Guimarães e outros que saíam. E eu,

no segundo ano... Já no terceiro ano, eu fui fazer filosofia, fiz vestibular e fui fazer filosofia. Aí

eu já tinha deixado a alfaiataria, não era mais alfaiate, e dava aula de português num colégio lá...

na Escola de Comércio, lá no Brás, na rua Coimbra. Então, eu trabalhava à noite, tinha aula...

Durante a tarde, num certo momento... Não era todo dia, na filosofia. Então, tinha a tarde um

pouco mais livre. Porque depois, quando eu fui fazer... Depois que eu entrei na faculdade, eu

também... Eu tinha saído lá do Alfredo, então, eu fui trabalhar lá em casa mesmo. Eu levava

peças de tecido para casa para fazer calça para.. Já era para o Armando, também na Barão de

Itapetininga, e depois para o Corrêa, ali na Gabus Mendes, por ali. Então, durante os dois anos

do primeiro curso, eu estava fazendo isto. Fiz lá um concurso para professor de latim, ganhei o

primeiro lugar, fui dar aula num cursinho aí, não me dei bem, porque o dono do cursinho queria

outro candidato, que não passou, e, enfim, eu acabei não ficando e fui dar aula nesse curso de...

fui dar aula lá no Brás. Então, ia dar aula à noite, durante certo período, e em alguns dias, à

tarde... Aí já saía com esse grupo passeando. Era o grupo com quem a gente tinha mais... Mas

eu tinha uma convivência muito boa com as mulheres todas. Tinha gente muito bem preparada.

Elas se preparavam muito bem.

R.Q. – O senhor teve uma professora, não teve? O senhor foi aluno da professora Esther, de

direito penal. Ou não?

39 Goffredo Carlos da Silva Telles (1915-2009). Advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e político.

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J.S. – Da Esther? Fui.

R.Q. – Então, já havia uma mulher como professora.

J.S. – Já havia uma mulher como professora. Não chegou a titular. Ela não fez o concurso para

professor titular. Mas eu fui... Só tinha ela na época, a Esther Figueiredo Ferraz40. Ela era livre-

docente de penal e nos deu aula em substituição ao Soares de Mello41, que, naquela ocasião,

estava fazendo o curso da Escola Superior de Guerra, lá no Rio, então, ele ia, ficava lá, e ela

dava duas aulas e ele dava uma. E era muito melhor a aula dela do que a dele.

B.A. – Queria perguntar para o senhor como foi essa escolha pela filosofia, ao longo do curso

de direito, em 55.

J.S. – Ao longo do curso de direito. Quando eu comecei a fazer o curso de direito... Talvez até,

eu digo isso, talvez, um pouco a influência do Goffredo42. O Goffredo deu a primeira aula... O

Goffredo era um professor muito bom, muito estimado, e ele... Na verdade, ele dava filosofia.

Ele não dava propriamente introdução à ciência do direito, como devia ser, que é uma coisa

mais simples. Ele dava filosofia, e aquilo... E eu comecei... Eu li muito filosofia do direito, li a

obra do Miguel Reale43... O Miguel Reale tinha uma obra muito boa sobre os fundamentos do

direito e eu li no primeiro ano. Então, eu li muito filosofia do direito. E eu falei: “Bom, acho

que preciso fazer filosofia”, e fui fazer filosofia. Eu me matriculei, eu estava no terceiro ano, e

fiz... Foi bom. Fiz Platão, fiz Descartes, com o Lívio Teixeira; tinha um professor... Naquela

época, a psicologia também fazia parte do curso de filosofia. Depois separou. Tinha uma

professora de psicologia. E o interessante é que ela deu lá uns exercícios sobre a psicologia

gestáltica e tinha lá uma medida qualquer, a gente tinha que fazer, e eu estava fazendo com um

rapaz que era de lá... O rapaz era daquela família lá de Blumenau, Hering, daquela... de tecidos

40 Esther de Figueiredo Ferraz (1915-2008). Advogada. Foi ministra da educação e cultura (MEC), ocasião em que se tornou a primeira mulher a ocupar um ministério do Estado. Foi também a primeira mulher: a lecionar na Universidade de São Paulo, a ocupar o cargo de reitora na Universidade Presbiteriana Mackenzie e a ocupar uma cadeira na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 41 José Soares de Mello. Foi professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 42 Goffredo Carlos da Silva Telles. 43 Miguel Reale (1910-2006). Reitor da  USP  entre 1949-­‐1950 e  1969-­‐1973.

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e roupas, daquela família, e deve ter se tornado, enfim, o gerente ou o presidente das empresas,

porque ele estava se preparando para isso. Ele fazia economia, e filosofia juntos. E eu estava

fazendo aquilo e não conseguia, e ele falou: “Você está ficando cego”. Sabe que eu saí dali e, no

outro dia, me deu uma dor na vista... Eu estava com uma uveíte terrível. Era no fim do ano.

Portanto, eu perdi os exames lá, porque não fiz, e fiz mal na São Francisco – deu para passar,

mas mal –, e fui cuidar da uveíte. Quase fiquei cego, realmente. Mas, enfim, eu acho que fui

levado exatamente para isso porque me pareceu que aquilo era importante para o curso de

direito que eu estava fazendo, e fui levado por causa dessas leituras e, possivelmente, fui levado

às leituras por causa das aulas do Goffredo, e por isso... Depois voltei, no ano seguinte, para

fazer o primeiro ano outra vez, e aí o professor queria que eu fizesse [Inaudível]. “Não, eu não

vou fazer.” Ele falou: “Não, você faz o que o segundo ano está fazendo. É Kant”. “Está bom,

vou fazer Kant.” Foi muito melhor. Mas aí não cheguei nem ao fim do ano, saí, porque não

estava bem com a vista e estava pesado dar aula à noite, frequentar a filosofia à tarde e a

Faculdade de Direito de manhã. Então, estava realmente difícil. E tinha que ajudar em casa.

Porque eu tinha que dar dinheiro para a casa, porque aí a família já tinha vindo, os irmãos, meu

pai, e minha mãe, doente.

B.A. – Em que ano que eles vieram para São Paulo?

J.S. – Eles vieram em... Acho que foi mais ou menos em 1955. Em 54 ou... Vieram meio

picados. Primeiro veio o meu irmão mais velho, o Hélio, que já era casado lá e veio, veio

trabalhar numa relojoaria aí, a Hermes Martin; depois veio a minha irmã e... duas irmãs; depois

veio um outro irmão, já falecido; e finalmente, ali por volta de 54, ali vieram o meu pai e a

minha mãe e os dois filhos mais jovens, que eram o Manoel e a Salete.

B.A. – Eu queria que o senhor comentasse um pouco a didática dos professores em sala de aula

na São Francisco e como era essa experiência como aluno.

R.Q. – A vivência de curso: se o aluno ia na aula, se não ia, se aparecia no exame... Como é que

era ser aluno da São Francisco?

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J.S. – A frequência não era ruim. A frequência era razoavelmente boa, na São Francisco.

Digamos, uma frequência de 80%, ou um pouco mais. Era uma frequência boa, na São

Francisco. A didática não era grande coisa, porque a escola nem foi feita para ser uma escola de

boa didática, não é?. Quer dizer, uma escola que faz salas para 150... A média, eu descrevo aí44

o número de pessoas que cabem na sala, é 150, 160, 180. Às vezes, havia menores, mas, enfim,

são salas muito grandes. São salas para aulas magnas, para aulas conferências. Quer dizer, não

são salas para dar aulas que não sejam desse tipo. Não havia nenhum aparelho... Não tinha

quadro-negro. Quer dizer, nosso quadro-negro... Depois eu fui dar aula na economia, e lá você

tem. O quadro-negro é uma parede toda, você usa... O quadro-negro, precisa de uma ciência

para usar bem. Depois eu fiz um curso de didática. Como eu fui professor de ensino comercial e

precisava do registro... Aí o Ministério da Educação criou um curso aqui de aperfeiçoamento do

professor do ensino comercial e eu frequentei. Tinha um professor de didática muito bom, que

era o Rafael Grisi, muito bom; tinha um professor de psicologia bom; enfim, e ele mostrou

como é que se usa um quadro-negro. O quadro-negro, você não pode apagar; você tem que

deixar. Vai desenvolvendo e deixa tudo lá, tudo estampado lá. Aquele negócio de que você

escreve, apaga, escreve não é o modo de usar o quadro-negro. Mas aí precisa ser um quadro-

negro adequado, também. E lá havia poucos que usavam. Havia o Teotônio Monteiro45, que era

professor de finanças, que usava, e usava bem – um quadro-negro muito pequeno, mas, afinal

de contas, ele ainda conseguia usar bem –, o professor de medicina legal usava bem e o

professor Miguel Reale. O Miguel Reale fazia um esquema muito simples: eram três ou quatro

quadros, e desenvolvia. O Miguel Reale não consultava nada na aula, nem o Almeidinha, que

era o professor de medicina legal, também não consultava nada e dava umas aulas muito

gostosas, muito boas, e o Teotônio. O Teotônio, depois ele saiu, em agosto, porque ele foi ser

deputado federal, se elegeu e foi embora. Mas os outros eram aulas magnas. Uns bons, outros

ruins. O professor Vidigal não dava aula magna, porque não fazia discurso. Ele dava aula ali em

tom professoral, mesmo – não aquela coisa de discurso, consultando coisas. E foi um dos

grandes professores que eu tive, foi o professor Luís Eulálio de Bueno Vidigal46, de processo

civil. E que reservava as quartas-feiras... Ele dava temas e reservava as quartas-feiras para 44 O entrevistado se refere ao livro de memórias de sua autoria “A Faculdade e Meu Itinerário Constitucional.” Publicado em 2007, em São Paulo, pela editora Malheiros Editores. 45 Teotônio Monteiro de Barros (1901-1974). Advogado. Foi professor na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 46 Luís Eulálio de Bueno Vidigal (1901-1995). Advogado e professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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debater com os alunos. Então, didática mesmo, tem: o Vidigal, que, a meu ver, era o melhor;

Miguel Reale; o de medicina legal, que era o Almeidinha; o Teotônio, em finanças; e o

Cesarino. O Cesarino Júnior47 tinha um problema que, a meu ver, até impediu que ele fizesse

muitos discípulos. Apesar de que, com o tempo, ele até fez. O programa dele era muito extenso

e ele dava aquilo muito... Ele usava o quadro-negro, mas era muito fragmentado, então você não

fazia uma visão global daquilo. Mas era bom. Era bom, fazia estudar, dava exercício, era

rigoroso.

R.Q. – A disciplina do Cesarino era direito social?

J.S. – Direito social. Como dizia o Ademar Ferreira, “como se todo direito social não fora”.

[risos]

B.A. – E o senhor cita nas memórias também uma reivindicação dos alunos da sua época por

prática, um conflito entre a prática e a teoria.

J.S. – Não, não tinha. Não tinha prática nenhuma. Nunca teve nada. Nunca tive nada. Você

tinha as aulas teóricas, sempre assim. Você tinha professores bons, como esses que eu citei,

mais didáticos, do ponto de vista didático; você tinha professores de aula magna melhores, que

sabiam falar melhor, e tinha professores mais medíocres. O meu professor de direito civil lia o

texto do Código. Praticamente repetia aquilo. E como ele não tinha... A impressão que eu tinha

é que ele não tinha muita confiança que os alunos aprendiam e ele não andava muito, não saía

muito do lugar. Então, a gente chegava no final do ano e tinha visto muito pouca coisa. Foi

nosso paraninfo. Era um homem muito humilde, muito humano até, mas tinha uma espécie de

dificuldade, realmente. Era uma pessoa simples. E tinham professores muito ruins. O Soares de

Mello, eu considerava muito ruim. Era professor de penal. Ele fazia discurso, fazia realmente

discurso, porque ele era orador, gostava de ser orador, então, fazia discursos muito bonitos: o

primeiro era muito bom; o segundo era melhor; o terceiro era... e do quinto em diante a gente já

não achava mais graça naquilo. E não dava a matéria. Então, três anos praticamente perdidos,

47Antonio Ferreira Cesarino Junior (1906-1992). Foi professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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em direito penal. Não foi totalmente perdido. Quando veio a Esther48, ela realmente deu aulas

de direito penal. O professor de constitucional era ruim e, digo com franqueza, não tinha

vocação nenhuma para direito. O pai dele foi professor da Faculdade de Direito.

R.Q. – Quem era?

J.S. – Cândido Mota Filho49. Era um crítico literário, dizem que muito bom, um sujeito muito

culto, mas não era... Eu digo porque, nas memórias dele, praticamente ele diz que, realmente,

não era o campo dele. Tanto que a Ada, nas memórias dela, ela diz no livro que não sabia como

é que o José Afonso e o Maneco50 e o Dalmo51 podiam ter escolhido o direito constitucional, se

não tiveram aula de direito constitucional. Nunca tivemos aula de direito fundamental, direito

humano, nada disso. Tinham algumas aulas sobre a organização do estado, nada de mais.

Direito fundamental não era matéria que interessava esse povo dar.

R.Q. – Esse conteúdo mais restrito do direito constitucional era algo que se devia a uma

escolha, digamos, didática ou, talvez, a uma ausência de uma escolha desse professor? Ou, por

exemplo, na PUC, o direito constitucional, e um pouco por toda parte, tinha essa noção mais

restrita?

J.S. – Em geral, era assim. Em geral, eles seguiam o esquema da Constituição, que começava

pela organização do Estado e organização do poder, e aí, quando chegava nos direitos

fundamentais, já não tinha muita coisa... muito tempo mais. Mas eu acho que é uma escolha

também, porque são professores... Veja, o direito constitucional, então, não tinha nenhuma

significação. Era o direito privado. O país era privatista, as escolas eram privatistas e o direito

público não tinha grande significação, e o direito constitucional não tinha significação,

realmente não tinha. Então, o professor dava um pouco a organização do Estado, a organização

do poder, e dava mal. Não é coisa para dar... Se o sujeito desse criticamente: o que é divisão de

poder, o que é isso... Mas não dava, não. Ele só dava aquilo que estava na Constituição e as

48 Esther de Figueiredo Ferraz. (Referência completa na nota de rodapé de número 29). 49 Cândido Mota Filho (1897-1977).Advogado. Professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Político, foi ministro do STF entre 1956-1968. Utilizou algumas vezes o pseudônimo de Pablo Queiroga. 50 Manoel Gonçalves Ferreira Filho (referência completa na nota de rodapé de número 15). 51 Dalmo de Abreu Dallari (referência completa na nota de rodapé de número 12).

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coisas, sem nenhuma expressão mais importante do direito constitucional. Quer dizer, o sujeito

podia realmente dar aquilo, mas dar com certa visão crítica, com certa reflexão, mais

aprofundado. Não, nada disso interessava. Nada disso interessava. E isso não interessava porque

dar direito fundamental, a não ser a propriedade – essa dava, a não ser a propriedade era abrir

realmente um campo que não interessava muito aos conservadores. A escola era muito

conservadora, sempre foi. Ainda é um pouco, mas naquela época, então, era muito. Quer dizer,

para o Dalmo entrar lá, não foi brincadeira, não foi fácil, foi uma briga forte.

R.Q. – Nessa época, em 53 e 54, o clima político no Brasil era muito conturbado: a eminência

do Lacerda começa no golpe contra o Getúlio, reagindo...

J.S. – Muito, é verdade.

R.Q. – Esse tipo de acontecimento chegava à sala de aula? Ou ficava no pátio?

J.S. – Chegava.

R.Q. – Como é que os professores...?

J.S. – Não. Os professores, não. A não ser o Canuto Mendes de Almeida52, que discutia, porque

ele era getulista e ele discutia muito lá.

R.Q. – Canuto Mendes de Almeida é processo penal?

J.S. – Processo penal. Mas isso já em 57. Porque ele deu aula em 57. Mas ele discutia. Você

tinha o Salomão Ésper53, por exemplo, que era colega de turma, e o Salomão Ésper era

lacerdista doente – e antigetulista, também, mais doente ainda – e discutia muito com o Canuto,

porque o Canuto era getulista. Mas os professores, nem sempre. Nas aulas, geralmente eles não

tocavam. Em princípio, não.

52 Joaquim Canuto Mendes de Almeida (1906-1990). Foi promotor público e professsor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 53 Salomão Ésper. Graduou-se bacharel pela faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Jornalista e radialista.

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R.Q. – Nem em constitucional, o rompimento da ordem constitucional?

J.S. – Não. Não. Eles davam aula... Era aquilo que estava na Constituição. O que estava

acontecendo não tinha interesse para o direito constitucional deles, não. Quer dizer, era como se

o direito constitucional não tivesse conteúdo nenhum. Então, não tinha nada. “Isso não diz

respeito a nada disso aqui.” Então, não tinha ligação, uma coisa com a outra. Ninguém falava

nada, “vê, caiu isso”, “aconteceu isso”, “veja aqui”. Não ligava a nada. Isso não interessava.

Dava aquilo formalmente, tal como estava no texto formal da Constituição. Mal, dava mal,

porque não fazia reflexão nenhuma sobre isso. Não fazia e não levava em consideração o que

estava acontecendo no país, que era de importância constitucional muito grande. Quer dizer,

quando o Getúlio morreu, se matou, o Carlos Lacerda tinha estado lá, então, nós ficamos muito

impressionados com tudo isso. E como a escola era antigetulista, por causa da ditadura dele, e

não percebeu as mudanças, não percebeu nada disso, então fizeram... Quem era o presidente era

o Fasano, me parece, dessa família aí, e fizemos uma passeata muito grande, muito grande, aqui

na Universidade porque aí tinha a Politécnica, havia a medicina... A Politécnica era aqui, e a

medicina. E ia tudo para lá. E fomos em passeata. Muita gente. E fomos encontrando gente pelo

caminho e fomos ao palácio – era o Garcez –, ao [palácio] Campos Elíseos, onde era o palácio

do governo, para pedir que ele interferisse para a renúncia do Getúlio. Isso foi no dia 23 de

agosto à noite. Aí, dali nos dispersamos. Eram quase onze horas, por aí. Fui embora. Quando

chega no outro dia de manhã, tinha gente soltando fogos, não é? Aí saímos, e eu falei: “O que

está acontecendo?”. Fui para a faculdade. Aí a faculdade já estava em alvoroço, porque a

Conceição da Costa Neves, que era Conceição Santamaría – a Conceição da Costa Neves era

deputada e era getulista, era do PTB –, ela queria invadir a faculdade, e aí os alunos foram para

lá, para defender a faculdade. Cheguei lá, mas eu, quando fui para a faculdade, eu já fui...

“Espera aí. O que é que a gente fez?! Como é que a gente não tem a consciência de verificar que

esse povo todo é golpista e que nós estamos apoiando um grupo que quer dar um golpe?”.

Então, quando eu cheguei na faculdade, eu já estava completamente outro. Quando eu vi

aquilo... De manhã, eu ouvi o rádio, ouvi aquilo, eu falei: “Espera aí. O que é que nós fizemos?!

Como é que não temos a consciência de verificar que Carlos Lacerda, esse pessoal da UDN é

tudo golpista? E fomos ainda apoiar isto?!”. Então, quando eu cheguei lá, já era outro, eu não

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tinha mais nada com isso. Fui para lá, “vamos defender a faculdade”, é claro. “Aqui, ninguém

vai entrar.”

B.A. – Por que ela queria entrar na faculdade?

J.S. – Ela queria ir lá porque, bom, queria fazer o movimento político dela.

R.Q. – O senhor era segundanista, nessa época?

J.S. – Eu era segundanista, estava no segundo ano.

R.Q. – Acho que acabou a fita aqui e a gente vai ter que encerrar por hoje. Está muito bom o

papo agora porque está começando... Muito obrigado, professor. Podemos fazer, na próxima

semana, no mesmo horário então?

J.S. – Podemos fazer.

R.Q. – Acho que nove e meia é bom, porque a gente chega às nove e ajeita todo o equipamento.

J.S. – Está bom. Tudo bem.

R.Q. – Muito obrigado. Foi muito interessante.

B.A. – Obrigada.

J.S. – Eu que agradeço a vocês.

B.A. – Gostei muito do livro, professor.

J.S. – Desse aí?

B.A. – Muito. Até comprei. Semana que vem, vou trazer para o senhor autografar.

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J.S. – Ah, com prazer. Eu não ofereço porque esse...

[FINAL DO DEPOIMENTO]