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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 Transições para o 'futuro passado': memórias em disputa e „revanchismo‟ na imprensa brasileira MARIA LUIZA DE CASTRO MUNIZ Introdução O presente trabalho, desenvolvido no âmbito da dissertação Opinião pública e Opinião publicada: representação política, Diretas Já e a grande imprensa nos (des)caminhos da abertura, tem por objetivo analisar os posicionamentos da grande imprensa brasileira, através dos jornais O Globo e a Folha de S. Paulo dois dos maiores jornais em circulação no Brasil atualmente. Por meio da análise de editoriais publicados pelos dois veículos impressos foi possível caracterizá-los em função de posicionamentos político-ideológicos e das relações estabelecidas com o Estado e a sociedade. Este trabalho centra-se, principalmente, na análise das opiniões publicadas ao longo de todo o ano de 1984 e, de forma auxiliar, na década anterior. As opiniões nitidamente contrastantes dos dois jornais em relação às Diretas Já! motivaram inicialmente o recorte temático. Contudo, os avanços para compreensão da grande imprensa como ator político suas características históricas, políticas e ideológicas , com o avançar da pesquisa, diluíram a visão contrastante. À primeira vista, nota-se que O Globo se caracterizava por uma postura mais conservadora, alinhada com o regime militar e defensor incondicional das condições tuteladas de abertura e transição. Já a Folha de S. Paulo, ao longo de uma década (1974-84), segue apresentando uma imagem mais afinada com os ―anseios democráticos‖ da sociedade civil, principalmente a partir da reformulação editorial concebida em meados de 1970 e desenvolvida nos anos seguintes. O jornal da família Frias passou a reforçar, progressivamente, uma postura crítica em relação ao regime e de oposição às manobras de tutela e continuísmo impostas durante os governos Geisel e Figueiredo. A Campanha Nacional pelas Diretas Já fez aguçar as diferenças entre as respectivas linhas editoriais. Enquanto O Globo se opunha à mobilização nacional fazendo uso de uma série de argumentos e justificativas em defesa do sistema representativo, a Folha advogava Bacharel em História e Comunicação Social/Jornalismo, mestre em Ciência Política, professora do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) e pesquisadora assistente da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (REGGEN).

Transições para o 'futuro passado' · Transições para o 'futuro passado': memórias em disputa e „revanchismo‟ na imprensa brasileira ... A relação entre o jornalismo e

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    Transies para o 'futuro passado':

    memrias em disputa e revanchismo na imprensa brasileira

    MARIA LUIZA DE CASTRO MUNIZ

    Introduo

    O presente trabalho, desenvolvido no mbito da dissertao Opinio pblica e

    Opinio publicada: representao poltica, Diretas J e a grande imprensa nos

    (des)caminhos da abertura, tem por objetivo analisar os posicionamentos da grande

    imprensa brasileira, atravs dos jornais O Globo e a Folha de S. Paulo dois dos maiores

    jornais em circulao no Brasil atualmente. Por meio da anlise de editoriais publicados

    pelos dois veculos impressos foi possvel caracteriz-los em funo de posicionamentos

    poltico-ideolgicos e das relaes estabelecidas com o Estado e a sociedade. Este trabalho

    centra-se, principalmente, na anlise das opinies publicadas ao longo de todo o ano de

    1984 e, de forma auxiliar, na dcada anterior.

    As opinies nitidamente contrastantes dos dois jornais em relao s Diretas J!

    motivaram inicialmente o recorte temtico. Contudo, os avanos para compreenso da

    grande imprensa como ator poltico suas caractersticas histricas, polticas e ideolgicas

    , com o avanar da pesquisa, diluram a viso contrastante. primeira vista, nota-se que O

    Globo se caracterizava por uma postura mais conservadora, alinhada com o regime militar e

    defensor incondicional das condies tuteladas de abertura e transio. J a Folha de S.

    Paulo, ao longo de uma dcada (1974-84), segue apresentando uma imagem mais afinada

    com os anseios democrticos da sociedade civil, principalmente a partir da reformulao

    editorial concebida em meados de 1970 e desenvolvida nos anos seguintes. O jornal da

    famlia Frias passou a reforar, progressivamente, uma postura crtica em relao ao regime

    e de oposio s manobras de tutela e continusmo impostas durante os governos Geisel e

    Figueiredo.

    A Campanha Nacional pelas Diretas J fez aguar as diferenas entre as respectivas

    linhas editoriais. Enquanto O Globo se opunha mobilizao nacional fazendo uso de uma

    srie de argumentos e justificativas em defesa do sistema representativo, a Folha advogava

    Bacharel em Histria e Comunicao Social/Jornalismo, mestre em Cincia Poltica, professora do

    Centro Universitrio do Distrito Federal (UDF) e pesquisadora assistente da Rede de Economia

    Global e Desenvolvimento Sustentvel (REGGEN).

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    em favor da presso popular, fazendo ecoar um unssono desejo pelo voto direto para

    escolha do presidente da Repblica. Entretanto, a despeito das dissonncias opinativas,

    significativas convergncias despontam como indicativos do iderio liberal que caracteriza

    a grande imprensa.

    Por meio da perspectiva terica adotada, busco evidenciar a atuao poltico-

    ideolgica dos proprietrios da grande imprensa de forma que, num primeiro plano, o carter

    liberal da grande imprensa concebido sob a marca da tenso existente entre o liberalismo e

    o favor. Ou seja, tendo em vista as elites que conciliam os benefcios de dois universos,

    buscando conjugar o prestgio de sustentarem opinies avanadas ditas modernas com

    as vantagens do atraso (Rouanet: 1993; 320). Nesse sentido, importante deixar claro que

    o contedo reacionrio e autoritrio do liberalismo de nossas elites agrrias, industriais ou

    financeiras concebido para alm da simples oposio autoritarismo versus liberalismo, j

    que ambos se embolam na constituio da revoluo burguesa1. Tendo em vista uma

    suposta unidade bsica do pensamento poltico burgus, a matriz desse pensamento

    identificada por duas expresses do contratualismo anglo-saxo: de um lado o padro

    autoritrio (Hobbes) e de outro o padro liberal (Locke)2.

    A partir de literatura especfica3, considero que a viso de classe da grande

    imprensa expressa e legitimada atravs de preceitos que envolvem o paradigma da

    objetividade. Assim, incorporo a ideia de que justificativas tcnicas para

    racionalizao e acelerao da lgica produtiva no jornalismo caracterizam construes

    ideolgicas e reforam relaes hegemnicas. A relao entre o jornalismo e a disputa por

    1 Ver: CERQUEIRA FILHO, G. e NEDER, G. A Teoria Poltica no Brasil & O Brasil na Teoria Poltica

    . Fonte: http://www.historia.uff.br/artigos/gizlene_4encontro.pdf . Artigo apresentado no 4o

    Encontro Nacional da Associao Brasileira de Cincia Poltica, 21-24 de julho de 2004 (PUC/ RJ)

    2 Esta abordagem advm de leitura do livro Autoritarismo afetivo A Prssia como sentimento, onde

    Cerqueira Filho (2005) evidencia a combinao inesperada de duas expresses vistas como

    antagnicas: Aquilo que Thomas Hobbes teme, e do temor faz emergir o conceito de Estado

    absolutista, exatamente o que d segurana a Adam Smith e substncia ao conceito de mercado

    (p.105). Da a ideia de que a diferena entre os dois seria mais de contextualizao histrica e no

    tanto de natureza poltico-ideolgica. Respectivamente, Estado intervencionista e a mo invisvel do

    mercado, cumprem para cada um a funo de controle e domesticao daquilo que o pensamento

    conservador (totalitrio ou liberal) registra por metforas para no referir-se luta de classes. Ver:

    CERQUEIRA FILHO: 2005, pp. 104-7.

    3 Ver, entre outros: Lattman-Weltman, F. Imprensa carioca nos anos 50: os anos dourados. Em: ABREU,

    Alzira Alves; RAMOS, Plnio de Abreu (org.) [et. al.]. A imprensa em transio: o jornalismo brasileiro

    nos anos 50. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 1996. Ver tambm: MORETZSOHN,

    Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 192p. E para

    uma abordagem mais aprofundada do tema: SODR, Nelson Werneck. A histria da imprensa no Brasil.

    Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966.

    http://www.historia.uff.br/artigos/gizlene_4encontro.pdf

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    hegemonia concebida aqui segundo contribuies gramscianas, que situam os jornais no

    mbito dos aparelhos privados de hegemonia.

    Metodologicamente, como forma de analisar os mecanismos argumentativos

    adotados, os editoriais foram identificados segundo temas predominantes. Foram definidos

    cinco eixos temticos a partir dos atores citados: regime militar (Presidente, membros do

    Governo, Foras militares etc.); sistema representativo (Partidos polticos, Colgio Eleitoral,

    Lideranas polticas); sociedade mobilizada (sindicatos, movimentos sociais, entidades

    profissionais etc.); questo econmica (Estado/ agente econmico, setores produtivos,

    investidores estrangeiros), conjuntura internacional (pases vizinhos). Os eixos, ainda que

    restritos para abranger a complexidade daquela conjuntura, representam flexveis recortes de

    uma atualidade composta pelo autoritarismo e pela liberalizao; pela abertura e pelos

    continusmos; pelo endividamento, por sua crise e pelas prescries do Fundo Monetrio

    Internacional; por mobilizaes sociais e pelo desfecho conciliador transio democrtica.

    Enfim, pelos mltiplos horizontes de expectativa (Koselleck: 2006), dentre os quais aquele

    exposto pela grande imprensa apenas uma das alternativas.

    O Futuro passado nos horizontes da opinio publicada

    A grande imprensa se fizera historicamente porta-voz de uma determinada

    concepo de modernizao/desenvolvimento identificada com o modelo evolutivo e

    universal transposto s naes ditas perifricas/subdesenvolvidas desde os remotos

    tempos coloniais. Ao longo de nossa via brasileira, nossa modernizao esteve

    associada idias-fora como o lema positivista da bandeira brasileira ordem e

    progresso , reatualizado entre os anos 50 e 60 na forma das diretrizes segurana

    nacional e desenvolvimento. Desde a primeira metade do sculo XX, foi incorporada

    esquerda a ideia de uma aliana em favor da revoluo democrtico-burguesa, sendo

    posto em evidncia o problema da inexistncia de uma burguesia nacional incapaz de

    exercer seu papel. Com algumas variaes, esse raciocnio comeou a ser questionado4

    atravs da reinterpretao do papel das chamadas economias pr-capitalistas e do

    passado supostamente feudal da regio, que caracterizaria um atraso a ser corrigido.

    4 Alguns autores foram responsveis por formar um conjunto de crticas contundentes tese do carter

    feudal da economia colonial. Entre eles: Roberto Simonsen, o historiador argentino Srgio Bag, Luis

    Vitale, Caio Prado Jnior e Celso Furtado. Alm disso, destaca-se o trabalho Andr Gunder Frank

    que, com base nos autores mencionados, defendera uma mudana de paradigma ao defender que no

    se falasse de economia feudal na regio, mas de modalidades de expanso do capitalismo comercial e,

    posteriormente, do capitalismo industrial (Dos Santos: 2000; 90).

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    Por meio desta concepo, conectada longa durao proposta por Braudel,

    busco apresentar o pano de fundo necessrio compreenso do posicionamento de

    classe da grande imprensa liberal brasileira incorporando algumas contribuies do

    historiador alemo Reinhart Koselleck (2006), autor de Futuro passado: contribuio

    semntica dos tempos histricos.

    Neste livro, o autor apresenta semnticas envoltas no conceito temporal em

    destaque. De forma simplificada, diria que sua nfase repousa sobre a relao entre

    passado, presente e futuro na histria moderna5. Trata-se, portanto, do processo que

    caracterizou a modernidade e tambm fizera com que a dimenso inescapvel do

    devir empurrasse a ao social desde os espaos da experincia aos horizontes da

    expectativa duas categorias histricas utilizadas pelo autor. Conforme a tese de

    Koselleck, atravs dessa mudana, a histria (Geschichte) pareceu estar disponvel aos

    homens, numa forma peculiar de acelerao que caracterizaria a nossa modernidade

    ocidental. a respeito do incio dos tempos modernos e da perspectiva que se

    descortina a partir daquele futuro concebido pelas geraes passadas o futuro

    passado que o historiador alemo formula suas anlises. Tais percepes relacionadas

    ao uso do tempo como ferramenta metodolgica so utilizadas para compreenso dos

    processos de abertura, transio e redemocratizao na segunda metade do sculo XX

    na Amrica Latina.

    Regime militar: a viso saneadora de 64 e o anti-revanchismo de 84

    Os jornais selecionados defenderam em editoriais, destacados espaos de disputa

    pela reconstruo da memria, uma interpretao saneadora do golpe civil-militar de

    1964, bem como mensagens anti-revanchistas. Estas ltimas, em nome da

    pacificao, situavam as arbitrariedades dos agentes de Estado num tempo (ultra)

    passado. Alm disso, a despeito das diferentes abordagens da sociedade mobilizada, a

    opinio publicada caracterizou-se pela associao do contedo anti-estado aos valores

    democrticos e anti-ditatoriais, tornando hegemnicos os horizontes de expectativa de

    5 A abordagem de Koselleck repousa sobre o conceito singular e coletivo de histria a Histria

    (Geschichte) forjado no remoto sculo XVIII. Nesse sentido, retrata em detalhes a mudana ocorrida

    na passagem de uma concepo plural, de inmeras histrias, para a de uma nica histria, no

    singular. Antes da referida mudana, a expresso latina historia (Historie) guardava a sabedoria

    acumulada do passado, a cincia das coisas e dos acontecimentos. Com a mudana progressiva, a

    histria como realidade e como reflexo passou a ser designada por um nico conceito (Geschichte).

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    uma determinada classe constituda pelos proprietrios da chamada grande imprensa

    essencialmente burguesa e liberal.

    Estudos anteriores e anlises pontuais no mbito da pesquisa realizada permitem

    destacar a confluncia da grande imprensa em geral na sustentao dos aspectos acima

    mencionados, particularmente na conspirao golpista de pr-646. Bernardo Kucinski

    (1991) relaciona a morte do jornalista Vladmir Herzog com a crise do padro

    complacente. Este consistia numa manobra liderada pelos generais Ernesto Geisel e

    Golbery do Couto e Silva, que conceberam a articulao poltica entre governo e imprensa,

    abrandando a censura e garantindo maior complacncia com o governo. O assassinato do

    jornalista nas dependncias do DOI-CODI de So Paulo, em outubro de 1975, foi um dos

    principais detonadores de protestos em meio categoria, das presses por parte de

    defensores dos direitos humanos em busca de informaes sobre os desaparecidos polticos

    e das demais manifestaes que tomaram o espao pblico. Numa conjuntura de

    complacncia com a abertura controlada, o mrtir jornalista contribura para acirrar crises

    agudas, inclusive no mbito das redaes (KUCINSKI: 1991, pp. 60).

    Buscando afinar-se com as demandas da sociedade civil, a Folha de S. Paulo

    aborda, no contexto do fechamento do Congresso em 19777, uma questo que emergiria

    com fora nos editoriais de 1984: o voto secreto popular sempre se far sentir na

    exigncia de alternativas do Poder, a esse voto popular cabendo o direito de escolher

    por via direta ou indireta, com o Colgio Eleitoral ampliado ou no. Como um fim

    maior a ser privilegiado, o jornal referia-se ao projeto poltico existente na expectativa

    da Nao, desde que o chefe do Governo abriu a perspectiva de normalizao

    institucional8.

    J na viso impressa pelo jornal O Globo, o governo Geisel escrevia um Roteiro

    fiel (1.04.1977)9, afinado com a Revoluo de Maro, no seu 13 aniversrio, fiel aos

    6 Entre outros, ver: ABREU, Alzira Alves de. A participao da imprensa na queda do governo Goulart.

    Em:1964 -2004. 40 anos do Golpe. Rio de Janeiro: 7letras, 2004; e DREIFUSS, Ren Armand. 1964:

    a conquista do Estado. Ao poltica, poder e golpe de classe. Petrpolis: Vozes, 1981.

    7 Aps 15 dias, o governo anunciara o Pacote de Abril, que no apenas definia de forma autoritria a questo da

    Reforma do Judicirio piv do recesso imposto ao Congresso Nacional como tambm impunha um

    conjunto de mudanas constitucionais com o intuito de favorecer a representatividade de setores mais

    conservadores ligados ao governo.

    8 Folha de S. Paulo,1 de abril de 1977, editorial Os meios e os fins, p.2

    9 O Globo, 1 de abril de 1977, editorial Roteiro fiel, Capa.

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    princpios e objetivos que lhe deram origem numa hora dramtica da nossa histria

    republicana e da prpria sobrevivncia nacional. A propsito de um discurso do

    presidente, feito para militares e empresrios na Vila Militar, o jornal carioca referiu-se

    ao movimento que salvou o Pas da subverso e da anarquia. Dessa forma, se fazia

    bastante claro o alinhamento quase incondicional com o regime militar. A Revoluo,

    conforme a voz do jornal, negava qualquer concesso ou tolerncia aos inimigos da

    liberdade, pois faz-lo equivaleria a trair os fundamentos polticos e ticos de toda obra

    de reconstruo brasileira10

    , supostamente iniciada em 1964. Passado o decnio, num

    total de seis pargrafos, o jornal dedicara os trs ltimos aos rumos da abertura

    desestatizante, em sintonia com os compromissos democrticos da Revoluo.

    Afirmava-se, conclusivamente: O Estado abre amplamente as portas para que a

    iniciativa privada ocupe os espaos vazios na faixa prioritria da nossa economia,

    investindo em atividades bsicas do desenvolvimento. Destacava-se ainda a iniciativa

    do presidente de incluir a participao do trabalhador no novo modelo, tornando-o

    acionista do sistema. Nestes termos, o nmero de aes concedidas ao trabalhador

    dependeria de um comportamento responsvel e da cooperao com o sistema, como

    ser observado mais adiante.

    Igualmente, no contexto da Campanha pelas Diretas J e do processo sucessrio de

    1984, O Globo e a Folha divergiram em inmeros aspectos. Apresentavam, contudo, vises

    similares em relao ao chamado revanchismo. A Folha argumentava que a campanha

    cvica pelo restabelecimento das eleies diretas para escolha do presidente da

    Repblica deveria afastar-se do fantasma do revanchismo argentino. Para tanto, fazia

    aluso ao caso vizinho no editorial Argentina, outra realidade (12.01.1984). Logo no

    incio daquele ano, quando as Diretas J caminhavam para atingir seu auge em termos

    de mobilizao nacional, o jornal constatava que a vitria das foras oposicionistas nos

    principais estados do Brasil, desde as eleies diretas de 1982, contrariando alguns

    receios, no despertou o sentimento revanchista. O notvel processo no sentido da

    pacificao nacional e da superao dos ressentimentos provocados pelos excessos,

    tanto da resistncia ao regime militar quanto da represso oficial, fazia parte dO

    legado poltico de 198311

    . Numa reconstruo histrica, a palavra excesso produz o

    10 O Globo, 1 de abril de 1977, editorial Roteiro fiel, Capa.

    11 Folha de S. Paulo, 3 de janeiro de 1984, editorial O legado poltico de 1983, p.2. (grifo meu)

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    efeito de subtrair a sistematicidade12

    caracterstica das arbitrariedades praticadas durante

    o regime militar. No demais lembrar que a radicalizao da represso de carter

    revolucionrio se dera de forma rotineira, sistemtica, institucionalizada e padronizada

    (FICO: 2004)13

    . Logo, tendo em vista o complexo sistema de represso, o uso daquela

    palavra numa referncia aos desaparecimentos e s prticas de tortura evidenciava o

    recurso a uma figura de linguagem que visa suavizar determinada informao; tratava-

    se, portanto, de um eufemismo.

    Meses depois, o jornal realizou uma das muitas pesquisas de opinio pblica, por

    meio da Pesquisa Folha (futuro Datafolha). Em editorial publicado no dia seguinte

    publicao dos resultados da pesquisa 64, rumo posteridade (2.04.1984) o jornal

    conclua (grifo da autora):

    Por falta de informao e, talvez, ainda mais por falta de vivncia pessoal, o fato que nada

    menos que 42,4% dos jovens paulistanos entre 14 e 19 anos declararam no saber se a ascenso

    dos militares foi boa ou foi ruim para o Brasil. Supondo que esse resultado possa ser

    extrapolado para o resto do pas, no poderia haver sinal mais claro de que o movimento de

    1964 se incorpora histria e deixa de ser um dado significativo para as oposies polticas das

    novas geraes14.

    A perspectiva destacada seria mantida nos meses seguintes aps a rejeio pela

    Cmara, em 25 de abril de 1984, da emenda Dante de Oliveira, que restabeleceria as

    eleies diretas naquele ano. O tema do revanchismo voltou aos editoriais por ocasio das

    manchetes publicadas, respectivamente, nos dias 25 e 27 de julho: AURELIANO

    EXIGE QUE TANCREDO PRESERVE O MOVIMENTO DE 64 e TANCREDO DIZ

    QUE 64 J HISTRIA. J poca da consolidao das negociaes em torno da

    Aliana Democrtica Frente Liberal e grupo peemedebista e da chapa Tancredo-

    Sarney, a Folha observava a dificuldade de conciliar o interesse poltico do presente

    com os simbolismos do passado. Alm disso, deixava aparente determinada perspectiva

    acerca da relao com esse passado recente:

    12 Em O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004), Daniel Aaro Reis afirma que a

    sociedade brasileira, aps aderir a valores e s instituies democrticas, enfrenta grandes em

    compreender como participou, num passado ainda muito recente, da construo de uma ditadura, que

    definiu a tortura como poltica de Estado (grifo meu). Ver: REIS, D. A. Ditadura e sociedade: as

    reconstrues da memria. Em: REIS, D.A.; RIDENTI, M.; MOTTA, R.P.S. (orgs.). O golpe e a

    ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.334p.

    13 Ver: FICO, Carlos. Alm do golpe: a tomada do poder em 31 de maro de 1964 e a ditadura militar.

    Rio de Janeiro: Record, 2004.

    14 Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1984, editorial 64, Rumo posteridade, p.2

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    Tais casos [de eventual punio de militares] j esto enquadrados na Lei de Anistia de 1979,

    portanto, cobertos pelo esquecimento. Bem ou mal essa lei assegurou a reintegrao dos que

    pegaram em armas contra o regime, o que foi um passo decisivo para pacificao poltica do

    pas. At por uma questo de coerncia as oposies devem reconhecer pblica e explicitamente

    que o mesmo benefcio se aplica aos agentes de represso acusados de abuso.

    S no admissvel na perspectiva da normalizao democrtica qualquer acordo pblico ou

    privado destinado a obstruir a ao da justia comum na apurao de crimes comuns. Mas no

    podemos conceber que uma clusula dessa natureza esteja implcita na exigncia do vice-

    presidente Aureliano Chaves aos seus aliados15

    Como observa lvaro Rico em relao ao caso uruguaio, a convivncia pacfica

    entre vtimas e algozes se traduziu na consigna sem vencidos nem vencedores, a

    qual justificava a impunidade dos responsveis pelas violaes aos direitos humanos. A

    respeito daqueles que denunciaram publicamente os fatos ocorridos durante a ditadura

    uruguaia dizia-se que tinha los ojos en la nuca ou buscavam o revanchismo16

    . Rico

    ainda menciona o olvido institucional em referncia Ley de Caducidad de la

    Pretensin Punitiva del Estado (1986). Esta, na prtica ao menos, equivale nossa Lei

    de Anistia, a qual aparece no editorial acima bastante prxima da palavra

    esquecimento. Vale aqui retomar a ideia de Michael Pollack, para quem o longo

    silncio [da memria subterrnea] sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento a

    resistncia que uma sociedade civil impotente ope ao excesso de discursos oficiais

    (Pollack: 1989, p. 5). E as tais memrias subterrneas, opostas memria oficial, no

    permanecem hermticas e intactas. Ao contrrio, elas prosseguem seu trabalho de

    subverso no silncio e de maneira quase imperceptvel afloram em momentos de crise em

    sobressaltos bruscos e exacerbados. A memria entra em disputa. Nesse sentido, vlido

    inferir que os manifestantes em 84, para alm do direito ao voto, tenham desaguado suas

    memrias silenciadas ao longo de 20 anos no manancial das Diretas J.

    Como sustentao para a tese da sucesso do presidente Figueiredo pelo pleito

    indireto, O Globo tambm defendeu a tese do anti-revanchismo em inmeros

    editoriais. Este, contudo, era diretamente associado ao perigo de radicalizao da

    Campanha pelas Diretas J. O jornal carioca reconhecia aos primeiros dias de 1984 o

    15 Folha de So Paulo, 26 de julho de 1984, editorial Ainda o revanchismo, p.2 (grifos da autora)

    16 Para uma viso recentemente apresentada acerca do revanchismo por ocasio de reivindicao da Lei

    de Anistia pela OAB, ver: REIS FILHO, Daniel Aaro. Anistia, uma reviso. Texto publicado em O

    Globo, 14 de janeiro de 2010, Seo Opinio. Fonte (Acessado pela ltima vez em julho de 2010):

    http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2010/01/14/anistia-uma-revisao-915527695.asp

    http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2010/01/14/anistia-uma-revisao-915527695.asp

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 9

    presidente argentino recm-eleito, Ral Alfonsn, como um estadista, cujo desejo era

    o de realmente promover a pacificao nacional, evitando o revanchismo antimilitar

    [que] constituiria a pior alternativa para a Argentina democratizada.17

    Em vias de

    decomposio aps a Guerra das Malvinas (1982), o aparelho militar argentino

    diferenciava-se do brasileiro, o que determinava significativas variaes entre os dois

    processos de abertura e transio. No mbito dos eixos temticos da conjuntura

    internacional e do regime militar, a Argentina identificada como o mau exemplo, o

    qual deveria ser evitado a todo custo especialmente sendo excludos os

    passionalismos e radicalismos das Diretas J, acreditava O Globo.

    A meno a fatos histricos mediante reviso do passado foi tambm convertida em

    mecanismo argumentativo, consistindo em nova convergncia opinativa entre os jornais. E

    isso ocorrera no exclusivamente em espaos destinados ao gnero opinativo, como

    possvel observar no Especial 31 de maro 20 anos dO Globo. No alto da pgina trs

    posio de destaque, se considerarmos regras grficas do jornalismo , o jornal imprimiu

    um breve resumo do histrico sobre a data comemorativa, exibindo viso pacifista do

    golpe (grifos da autora):

    A Revoluo de 64 foi feita sem derramamento de sangue porque os dois lados evitaram o

    confronto armado. A trajetria do movimento nestes 20 anos foi uma sucesso de negociaes

    entre partidos e foras polticas e sociais, entre Governo e sociedade, entre Executivo e Legislativo

    entrecortada de hiatos mais ou menos longos, mais ou menos profundos; perodos de predomnio

    da contestao armada, perodos, com ou sem contestao, de exceo e arbtrio. nos processos

    de sucesso presidencial que as crises se condensam: a Revoluo, nesse sentido, no representou

    uma ruptura to radical com a tradio republicana18.

    A Folha, em matrias e editorial, tambm recordou a data. Publicado em 31 de

    maro, o editorial 20 anos depois oferecia ao leitor uma verso de 64 que valorizava a

    incapacidade de Jango e a perigosa permissividade aos movimentos sociais fonte de

    seu descontrole como elementos responsveis pela ruptura poltico-institucional

    (grifos da autora):

    (...) Foroso reconhecer, antes de tudo, que a ruptura das instituies ento em vigor

    correspondeu s exigncias de significativos setores da sociedade brasileira, inseguros quanto aos

    destinos do Pas. O governo Joo Goulart no se mostrou capaz de conter dentro dos limites da

    ordem e da lei19 o caudal de presses polticas e reivindicaes sociais. Concomitantemente a um

    17 O Globo, em 17 de janeiro de 1984, editorial Sem revanchismos.

    18 O Globo, 1 de abril de 1984, p.3

    19 Note-se que, em 2 de abril de 1964, a Folha defende o golpe justamente Em defesa da lei: No

    surtiram efeito os apelos razo e ao patriotismo dos homens a quem se acha confiada a sorte do pas.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 10

    desempenho adverso da economia, as freqentes invases de terras, o emprego abusivo da arma da

    greve, a quebra da disciplina e da hierarquia nos quartis, tudo isso gerou uma crise que

    desembocou na deposio do Presidente.

    O tom crtico do jornal se faz sentir, nos pargrafos seguintes, acerca da

    interveno das Foras Armadas no processo poltico, feita em nome da salvaguarda da

    democracia: Em verdade, apesar do batismo oficial de Revoluo [sic], o movimento

    no realizou uma obra digna deste conceito20

    criticava a Folha, antes de desfiar o

    rosrio dos equvocos e fragilidades do degenerado projeto de construo do Brasil-

    grande-potncia, oitavo do mundo capitalista.

    Sistema representativo e Sociedade Mobilizada: eles participam, ns

    participamos

    Numa anlise dos editoriais relacionados com os eixos que do ttulo a este subitem,

    busquei considerar a opinio dos jornais em dois sentidos: (1) o jornal opina sobre o eixo e (2)

    o jornal como parte do eixo. No primeiro caso, as divergncias entre a Folha e O Globo foram

    sendo aguadas na medida da progressiva mobilizao social contrria ao regime. Esta, no

    processo da abertura, marcada significativamente pelo novo sindicalismo que surgiu em

    fins de 70, a partir da ao dos metalrgicos das montadoras automobilsticas multinacionais e

    dos que trabalhavam nas empresas siderrgicas nacionais concentradas em torno da cidade de

    So Paulo. No rastro do ambiente de efervescncia social existente ao declnio da ditadura

    militar, foram eclodindo inmeros movimentos sociais e populares (estudantil, de mulheres,

    de negros, urbanos, contra a carestia etc.). Muitos deles, tal como as Comunidades Eclesiais

    de Base (CEBs), estiveram sob o abrigo institucional da Igreja Catlica, atravs da

    Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

    (...)No houve rebelio contra a lei, mas uma tomada de posio em favor da lei. Na verdade, as

    Foras Armadas destinam-se a defender a patria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a

    ordem.Ver (acessado pela ltima vez em 29 de agosto de 2010):

    http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-02b.shtml.

    20 Em meio srie de reportagens intitulada Os 20 anos do Movimento de 64, em 1 de abril de 1984, a

    Folha publicou a reportagem Processo poltico leva muitos a mudar de lado. Na mesma pgina o

    jornal publica uma srie de fotos do presidente Figueiredo e, a imagem de uma carta que o leitor era

    convidado a enviar ao presidente: Recorte esta carta e mande para Braslia. Assim, o presidente vai

    saber quantos brasileiros realmente querem eleies em 1984. Dizia-se numa legenda abaixo:

    Corrente pelas diretas: quem a quebrar, ter Maluf na Presidncia (p.4; 1 Caderno). No mesmo dia,

    na p.6, o jornal publicou matria destacando a postura da Folha em relao aos excessos do regime:

    Na reao aos excessos, a posio da Folha.

    http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-02b.shtml

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 11

    O movimento dos trabalhadores deu luta democrtica um ponto importante de

    sustentao e, inicialmente, at contava com a tolerncia dos veculos da grande imprensa. A

    ideia de autonomia sindical defendida por parte dos trabalhadores ao final dos anos 1970 era

    bem vista pelos jornais e at desejvel. A busca por um novo padro de negociao entre

    patres e empregados, no regulada pelo Estado, chegou a ser saudada como prova de

    superao da herana de um velho sindicalismo. Este era considerado artificial e

    paternalista, bem como criado pelo Estado Novo para servir a si prprio muito mais do que

    aos trabalhadores. A defesa da nova proposta foi feita sob a premissa de que ao longo do

    regime militar o movimento sindical vinculado ao Estado at 1964 atravs da mobilizao

    das cpulas sindicais em torno do governo Goulart e a favor de suas teses conspiratrias

    foi depurado das influncias esprias21

    . Essa interpretao era compartilhada pela Folha,

    embora seus editoriais apresentassem perspectiva mais sensvel s reivindicaes trabalhistas.

    Valorizando a disciplina do operrio na fbrica e no meio social, O Globo

    justificava a tutela estatal sobre os sindicatos nos governos posteriores a 64 em funo

    das necessidades de uma poltica econmica que inclu[a], entre seus pontos bsicos, o

    severo controle de salrios e de preos22

    . Meses depois, em 2.11.1978, O Globo

    apresentou A Reavaliao das greves. Nela constatava-se: esse delicado campo das

    relaes entre capital e trabalho precisa reencontrar uma frmula consistente de

    disciplina. Mais adiante, a reavaliao considera que o Governo aceitou um modus

    vivendi com as negociaes diretas, inclusive atendendo postulao de certos

    empresrios animados pelo carter apoltico e pacfico das primeiras greves

    metalrgicas (grifo da autora).

    Nos anos seguintes, o posicionamento dO Globo evolura para uma oposio

    ainda mais frontal. Vale destacar que as primeiras greves e mobilizaes trabalhistas da

    dcada de 80 foram percebidas pelo jornal como Uma ofensa ao trabalhador

    (13.05.1980). Ele prprio seria o afetado pela intranqilidade social num quadro

    brasileiro j marcado por tantas preocupaes. A crise econmica, convm lembrar,

    21 O Globo, 1 de maio de 1978, editorial Dia do trabalhador, Capa. Na capa dO Globo de 1 de maio de

    1978 o jornal anunciara a escolha dO operrio padro de 1978. Tratava-se de uma campanha do

    jornal e do Servio Social da Indstria (SESI) criada 23 anos antes para escolha anual do operrio

    padro e reconhecimento de mritos individuais no apenas do trabalho, mas tambm no lar e na

    comunidade, de todos os milhes de brasileiros que, no anonimato das fbricas, do todos os dias,

    valiosa colaborao para o enriquecimento e o progresso da comunidade. O Globo, O operrio

    padro de 1978, Capa.

    22 Idem.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 12

    avanava com ameaas de forte recesso. Na economia de mercado opinava O

    Globo todos os fatores devem funcionar como num sistema de vasos comunicantes e

    segundo regras bem definidas [e] equitativas23

    . A viso auto-regulvel do mercado

    inclua a necessidade de o pas adequar sua poltica econmica ao fluxo econmico e

    financeiro internacional, mesmo que ao preo da crescente desigualdade social e

    superexplorao24

    do trabalho. Algumas reivindicaes dos metalrgicos em greve

    eram colocadas na lista de exigncias a extremos jamais alcanveis. O jornal

    defendia tambm a tese da ilegalidade da greve, apontando a palavra de ordem do

    boicote ou sabotagem produo para substituir a continuao da falta ao trabalho (a

    greve) como uma espcie de ao terrorista.

    A Folha, por sua vez, aborda no editorial No fio da navalha (8.04.1979) um momento

    tambm crtico da greve dos metalrgicos do ABC naquele ano, quando ela foi declarada

    ilegal pelo Tribunal Regional do Trabalho. No h exagero em dizer-se que a distncia da

    violncia mediu-se pelo fio da navalha afirmava a Folha, concluindo que uma ordem

    social no pode confiar em legislao e instituies impotentes para encaminhar conflitos

    inevitveis de interesse. A soluo apresentada foi a seguinte: rever, com alta prioridade,

    inclusive em nome do combate inflao, a legislao que regula as relaes entre capital e

    trabalho, para que cessem as ambiguidades e se tornem desnecessrias as mediaes

    informais e improvisadas25

    .

    Por um lado, o jornal paulista, especialmente em contraponto ao seu concorrente

    local (O Estado de S. Paulo26

    ), expressava maior sensibilidade para com as

    reivindicaes trabalhistas, dedicando seus editoriais importncia da formulao de

    um novo contrato social democrtico. Por outro, a trajetria empresarial traada pelos

    23 O Globo, 3 de maio de 1980, editorial Vasos comunicante, p.4.

    24 Para maior abordagem deste conceito, ver: MARINI, Ruy Mauro. Dialtica de la dependencia (1973).

    Em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/critico/marini/04dialectica2.pdf (Extrado de Ruy

    Mauro Marini, Dialctica de la dependencia, Mxico: Ediciones Era, 11 reimpresin, 1991, pp. 9-77).

    25 Folha de S. Paulo, 8 de abril d 1979, editorial No fio da navalha, p.2

    26 OESP de 10 outubro de 1984 publicou: O PT, totalitrio; e, pois, reacionrio. OESP primava por

    desqualificar o esforo de construo do partido, como por exemplo em 1984, quando o partido

    decidiu no participar do colgio indireto que elegeria Tancredo Neves como presidente da Repblica

    e Jos Sarney, vice. A postura que se alterou s quando aps numa profunda reforma editorial que

    inclusive lhe acrescentou cores na primeira pgina o concorrente da Folha passou a abrir espao

    para opinies mais esquerda, segundo afirmao de Carlos Alberto F. de Melo. Ver: MELO,

    Carlos Alberto Furtado de. Imprensa e democracia: a transformao da Folha de S. Paulo e a criao

    do Partido dos Trabalhadores. Dissertao de mestrado. Orientao do prof. Dr. Miguel Wady Chaia.

    So Paulo: PUCSP, 1996.

    http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/critico/marini/04dialectica2.pdf

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 13

    donos do jornal apontaria no ano das Diretas J para um rgido controle industrial e

    tecnolgico, implantado atravs do pioneiro Projeto Folha (1984). Na Apresentao de

    Mil Dias: seis mil dias depois, de Carlos Eduardo Lins da Silva, Otvio Frias Filho

    deixa em evidncia um elemento importante da (re)construo que vinha sendo feita da

    prpria identidade do jornal em vista da abertura e transio democrticas:

    Mais recentemente, a industrializao da imprensa tornou possvel ao mercado, regular o que era antes

    regulado apenas pela ideologia. Um compromisso impessoal, milimtrico e quantitativo, com a

    superfcie pblica que paga pela informao que consome, tende a substituir os compromissos fluidos,

    baseados no favor e na misso, com o Estado ou a sociedade (2005; 48).

    A respeito de uma determinada mentalidade gerencial, constituda como

    mentalidade de mercado, Mattelart estabelece relao com a globalizao do mercado

    financeiro nos anos 80. Dessa forma, o autor denota a reabilitao da empresa jornalstica

    como instituio social cidad. Os princpios de gerenciamento se erigem em dogma,

    afirma o autor, e se tornam a verso tcnica do poltico. A fora do dogma do

    gerenciamento estaria na impregnao de seus modelos no conjunto de outras instituies

    que, para resolverem suas crises, apelam aos critrios de desempenho e flexibilidade tidos

    como aprovados no mercado. Assim, nos dizeres de Mattelart, o modelo de comunicao

    empresarial se naturalizou como tecnologia de gesto simblica das relaes sociais e se

    difundiu no conjunto da sociedade como o nico eficaz (apud Moretzsohn: 2002; 112)27

    .

    Diretor de redao da Folha em1984, Frias Filho destacara, por sua vez, os benefcios do

    taylorismo na redao, destacando as preocupaes na racionalizao da tarefa

    jornalstica em benefcio de outra espcie de misso: aquela estabelecida na relao com o

    leitor-consumidor-cidado. Lins da Silva cita as palavras do diretor quanto questo da

    estratgia de mercado discutida no texto Vampiros de papel: o carter mercadolgico

    da notcia que, para o proprietrio da Folha, institui, numa ponta, a imprensa burguesa, na

    outra o pblico burgus, e entre ambos uma simbiose de interesses complementares (Silva:

    2005; 57).

    Na primeira verso do Manual geral de redao, principal subproduto do

    Projeto Folha, o verbete mandato do Leitor explicitava uma espcie de contrato

    entre jornal e leitorado: Nas sociedades de mercado cada leitor delega, ao jornal que

    assina ou adquire nas bancas, a tarefa de investigar os fatos, recolher material

    27 A autora cita a seguinte obra: MATTELART, A. Histoire de lutopie plantaire de la cite

    prophtique la socit globale. Paris, La Dcouverte, 1999.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 14

    jornalstico, edit-lo e public-lo. Se o jornal no corresponde s exigncias, o leitor

    suspende esse mandato (apud Albuquerque e Holzbach: 2008; 160). Assim, definia-

    se uma verso particular do contrato representativo clssico, sustentada em quesito

    comercial e pela garantia de um jornalismo crtico, apartidrio, pluralista e

    moderno. As anlises at aqui desenvolvidas em torno das opinies publicadas

    sugerem que o alcance do propagado pluralismo encontra-se limitado numa

    perspectiva de classe. Esta perspectiva marca no apenas o posicionamento da Folha,

    mas dos demais veculos da grande imprensa.

    Em diversos editoriais publicados ao longo de 1984 a Folha defendeu o voto

    direto e, em favor da soberania popular, ficou conhecida como o jornal das Diretas.

    O jornal paulista defendeu em inmeros editoriais a independncia do Congresso, no

    em relao presso popular, mas aos militares/lideranas polticas/ partidos polticos.

    Entre os editoriais que podem servir de exemplo, cito Congresso sem presses

    (10.04.1984), Congresso sem tutela (18.04.1984) e Congresso soberano j (25.04.1984)

    este ltimo publicado no dia da votao da emenda Dante de Oliveira. Diante da

    derrota da emenda, o jornal paulista se coloca do mesmo lado da trincheira que o

    leitor, como porta-voz da frustrao e dos anseios da sociedade civil; da sua indignao

    e esperana; j desempenhando o papel que viria a ser delineado na verso particular do

    contrato representativo to mais fortalecido quanto mais numerosos e slidos forem os

    mandatos delegados atravs da aquisio habitual nas bancas ou de assinaturas do

    jornal (Albuquerque e Holzbach: 2008).

    Esta Folha no foi a primeira nem a nica a exigir diretas-j. Mas no mediu esforos, desde o

    incio, para que a campanha se transformasse nesse grande festival de civilizao poltica que

    vimos presenciando e estimulando. nessa condio que dirigimos agora um apelo aos nossos

    leitores e a todos os brasileiros, cidados desta Ptria renascida. (...) Em lugar da violncia, a

    participao; em lugar do tumulto, a tranqilidade; em lugar d desespero, a persistncia; em lugar

    do desnimo, a vitalidade renovada a cada revs. (...) Acima de tudo necessrio manter a ordem,

    a paz e a tranqilidade. (...) Continuemos com a mesma intransigncia e com a mesma esperana.

    (...)28

    Ao longo da campanha de 1984, O Globo criticava indiretamente a postura assumida

    pela Folha em defesa do mandato imperativo: Colando no ndex aqueles de opinio

    28 Folha, 26 de abril de 1984, editorial Cai a emenda, ns no, CAPA. A Folha imprimiu a cor do luto: Use preto

    pelo Congresso Nacional dizia uma faixa da mesma cor no alto da pgina ao dia 26 de abril. Em caixa alta a

    manchete noticiava um sentimento, algo estranho aos preceitos da objetividade jornalstica: A NAO

    FRUSTRADA! Uma grande tabela indicava ainda, nominalmente, o SIM e o NO do deputado de cada

    Estado.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 15

    contrria ao seu radicalismo, os novos inquisidores revivem velhos comportamentos

    obscurantistas e fascistas29

    . Em Metamorfoses do Governo Representativo, Bernard Manin

    (1995) observa que o governo representativo nunca foi um sistema em que os eleitos tivessem

    a obrigao de realizar a vontade dos eleitores e complementa: esse sistema nunca foi uma

    forma indireta de soberania popular (Manin: 1995, p. 10). Segundo o autor, a diferena entre

    governo representativo e governo do povo pelo povo no estaria na existncia de um corpo

    especfico de delegados, mas na ausncia de mandatos imperativos. Para O Globo, a

    superioridade do sistema representativo repousava justamente no fato de permitir um

    distanciamento entre as decises do governo e a vontade popular:

    A tendncia popular definida nos comcios, assim como nas pesquisas de opinio pblica, no

    vai diretamente para o processo decisrio da democracia. Os partidos polticos e o Congresso esto

    basicamente incumbidos de promover a intermediao seletiva dessas propenses, para que elas

    possam chegar, no final, representando a mdia do pensamento, das aspiraes e das

    reivindicaes de toda a sociedade. (...) Quando assumem o carter de mquina de presso e se

    apiam nos valores intimidativos da quantidade, eles [os comcios] significam o oposto da

    negociao, da busca de frmulas consensuais, e, portanto se afastam de princpios fundamentais

    da democracia.30

    O posterior apoio candidatura Tancredo-Sarney fizera o jornal redefinir seu

    posicionamento. O princpio evocado princpio (clssico) da representao permanecia

    o mesmo. Contudo, no segundo semestre de 1984, o jornal passou a advogar em favor de

    uma interpretao diferenciada. O Globo incorporava a Campanha pelas Diretas J como

    elemento catalisador da candidatura Tancredo-Sarney, legitimando assim a via indireta de

    escolha do futuro presidente31

    . O que vemos neste momento a opinio pblica

    disciplinando o seu mpeto mudancista, conclui o jornal, e canalizando-o para a soluo

    transitria mas legal e pacfica do sistema indireto. Nos termos expressos, a Nao

    dava abrigo ao Colgio Eleitoral, aceitando-o como instrumento de sua vontade.

    Entretanto, destaque-se a mudana em relao interpretao do princpio representativo

    oferecida no primeiro semestre: o eleitor indireto est informado de que no poder fugir

    impunemente sua funo de representante daqueles que o elegeram, ou seja, o povo.

    Estavam estabelecidas as regras do mandato imperativo, dispositivo utilizado na

    argumentao em favor da conciliao (dominao pelo alto).

    29 O Globo, 19 de abril de 1984, editorial No o fim do mundo.

    30 O Globo, 20 de abril de 1984, editorial Os limites da vontade popular.

    31 O Globo, 13 de setembro de 1984, editorial Muita gente, muito voto.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 16

    Tendo em vista o uso de termos como opinio pblica ou povo no pargrafo

    anterior, convm uma breve observao. Os editoriais analisados apresentam expresses que

    remetem aos desejos e expectativas de uma coletividade: vontade da Nao; voto

    popular; Ptria; coletividade; conscincia nacional; civilizao; conscincia

    democrtica; direito popular; campanha cvica; demanda cvica; foras

    representativas, realidade nacional etc. O uso destes termos pelos peridicos serve

    sustentao das prprias opinies publicadas. Considerando algumas das condies de

    produo do discurso poltico32

    cumpre realar tal recurso argumentativo e persuasivo que

    permite ao jornal situar a prpria posio no plano das determinaes mais longnquas e mais

    amplas. A exemplo de artifcios usados em discursos polticos, merece ateno a evocao da

    noo de poder pblico. Assim, a opinio publicada ou mesmo a plataforma de um

    candidato encontra ali sua sustentao perante o (e)leitor.

    A respeito da abordagem dos eixos do sistema representativo e da sociedade

    mobilizada, O Globo enxergava a presso popular sobre o Legislativo assim

    identificadas as manifestaes pblicas em favor das eleies diretas como uma

    heresia democrtica33

    e manteve intacta durante o processo sucessrio sua defesa das

    instituies forjadas no mbito do regime autoritrio. No se tratava de invalidar os

    anseios populares, mas de garantir que eles seriam atendidos seguindo a lgica

    oportuna de um desdobramento democrtico34

    . Na viso expressa pelo jornal, a ao

    popular direta, atravs de marchas ou greves (estratgia antipovo35

    ), caminhava em

    sentido contrrio ao da democracia, tendo em vista a conjuntura poltica, econmica e

    social. A mobilizao e reivindicao de direitos nos moldes adotados pelos

    movimentos sociais ligados s bases populares e s entidades civis, com apoio dos

    partidos polticos de oposio ao governo, eram desqualificadas como expresso da

    32 Devo esta interpretao abordagem presente no livro Argumentao e discurso poltico, de Haquira

    Osakabe (1999). Neste livro, o autor analisa o discurso poltico de Getlio Vargas usando as

    ferramentas metodolgicas da Lingstica e da Anlise do discurso. Sem que essa citao signifique a

    pretenso de um maior contato com essas disciplinas dedicadas ao estudo da lngua e da linguagem,

    parece til a ideia, oferecida pelo autor, de enfatizar como proposta metodolgica as condies de

    produo do discurso. Neste esforo, a perspectiva histrica e a Cincia Poltica podem cumprir um

    papel central. Ver: OSAKABE, Haquira. Argumentao e discurso poltico. 2 Ed. So Paulo: Martins

    Fontes, 1999. (p.82).

    33 O Globo,18 de fevereiro de 1984, editorial Avano sem presses.

    34 O Globo, 19 de fevereiro de 1984, editorial O voto sem radicalizaes.

    35 O Globo, 12 de outubro de 1984, A grande vtima, o povo.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 17

    vontade popular. O jornal as caracterizava como sendo movidas por pretenses

    individualistas, unilaterais, incapazes de traduzir uma sociedade pluralista.

    De acordo com Marcos Francisco N. de Eugnio, a imprensa captou o carter

    festivo do movimento das Diretas, procurando fazer circular a imagem de uma

    sociedade que, mesmo oprimida, no perdia o senso de humor e a cordialidade

    (Eugnio: 1995; p. 214). O autor observa ainda que a nfase sobre o carter festivo dos

    comcios o que acabou sendo incorporado cobertura dO Globo e da Rede Globo,

    aps crticas omisso da mobilizao de propores nacionais no noticirio destoara

    do discurso implacvel com os protestos que espalhavam o caos na cidade paulista em

    1983. Ao fazer o elogio da transgresso simblica da ordem, sugere Eugnio, talvez

    a Grande Imprensa procurasse expiar a perspectiva da desagregao social contida no

    protesto e a tenso natural da presena popular nas praas e ruas (Eugenio: 1995; p.

    214).

    Ao expressar sua discordncia em relao deciso do Comit Pr-diretas de

    realizar uma paralizao nacional no dia da votao da emenda Dante de Oliveira,

    a Folha no utiliza argumentos econmicos, como o caso dO Globo. Sua opinio

    fundamentada sobre a tese da unio nacional em contraposio ao potencial

    fragmentador da paralizao entendida como sendo nada menos que uma greve

    geral. Nesse sentido, delimita-se a validade da estratgia, apontando os limites

    daquela forma de presso dos trabalhadores: A forma da eleio do presidente da

    Repblica no uma questo de carter social, mas de carter poltico. Ela exige o

    emprego de instrumentos prprios da luta poltica.36

    Foram previstas

    consequncias desastrosas e uma profunda fratura no movimento sem

    precedentes que vinha exigindo em unssono a restaurao do direito popular ao

    alto governo.

    Aquela campanha com forte contedo popular, apesar do grito unssono pr-

    diretas, no eliminava os conflitos inerentes a uma sociedade de classes, a despeito da

    exaltao em torno do seu carter cvico unitrio. No se trata de diminuir seu papel

    de destaque no tabuleiro sucessrio e sua relevncia histria, mas sim de evidenciar uma

    propagada unidade que no comportava plenamente a pluralidade de vises e interesses

    dspares.

    36 Folha de S. Paulo, 5 de abril de 1984, Greve contra diretas-j

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 18

    Consideraes Finais

    A burguesia tem uma teoria absolutamente prpria da opinio pblica, diz

    Mattelart (1973: 214). Na relao jornal/leitor, chamei ateno para o artifcio discursivo

    de falar em nome de instncias ltimas para defender e legitimar vises de classe a

    cosmoviso burguesa e liberal. Matizes de um liberalismo mais democrtico,

    reconhecidas no caso da Folha, devem ser analisadas no mbito das mudanas vividas por

    aquele jornal em busca da (re)definio da prpria identidade poltica e jornalstica.

    preciso considerar ainda que o fazer jornalstico nas redaes comportava certa

    heterogeneidade de perfis poltico-ideolgicos, a despeito de hierarquias e da orientao

    editorial predominante.

    A questo participao direta/ representao foi equacionada nos seguintes termos

    pelos peridicos analisados: a Folha, ao cumprir o mandato supostamente concedido pelo

    seu leitorado, exibe seu status e uma maior fatia do mercado. Alm disso, no decnio

    estudado, o jornal se destaca poltica e jornalisticamente por valorizar em sua linha editorial

    a conjugao do verbo participar na primeira pessoa do plural: Cai a emenda, ns no

    (26.04.1984). O Globo, numa linha mais conservadora e de forma bastante restritiva s

    manifestaes populares, submetia o direito de participar ao direito de ser representado. A

    perigosa cooptao das massas, que viria da ampliao de mecanismos de participao

    direta, foi (e vem sendo) tratada como uma ameaa a ser combatida em benefcio da

    democracia representativa. Numa analogia ponderada pelas diferenas que separam as

    conjunturas, O Globo parece reproduzir o discurso expresso pelos pais fundadores do

    modelo norte-americano de democracia liberal. O federalista James Madison (1751-1836),

    por exemplo, em artigo a respeito da Utilidade da Unio como preservativo contra as

    faces e insurreies, defendia que em um governo mais possvel que a vontade

    pblica, expressa pelos representantes do povo, esteja em harmonia com o interesse pblico

    do que no caso de ser ela expressa pelo povo mesmo, reunido para este fim.37

    A Folha faz

    aluso relao entre imprensa e associativismo, presente na obra de Tocqueville. Contudo,

    a pretenso de representar em suas pginas o pluralismo da sociedade limitada pela

    viso de classe expressa na relao com o passado, com as demais classes e segmentos

    37 MADISON, James. Utilidade da Unio como preservative contra faces e insurreies. In:

    HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. Coleo Os pensadores. So

    Paulo: Victor Civita Editor, 1985, p. 98.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 19

    sociais, com a prpria histria e as memrias subterrneas. E, claro, com o tempo futuro,

    projetado a partir de valores e interesses do presente. O pluralismo, portanto, est longe

    de ser contemplado por uma nica linha editorial.

    Por fim, a abordagem aqui privilegiada buscou ser uma contribuio para a crtica s

    confuses tericas e prticas que, no contexto da abertura brasileira, equacionaram e

    igualaram os seguintes elementos: liberalismo poltico = liberalismo econmico =

    democracia = antiestatismo (Dos Santos: 1991; 133). O presente trabalho foi orientado

    tambm no sentido de demonstrar que, atravs da linha editorial adotada no perodo

    destacado, os veculos selecionados pertencentes a oligoplios familiares, parte

    significativa dos grupos empresariais de comunicao no Brasil expressaram sua viso

    de classe como porta-vozes da opinio pblica ou numa suposta expresso dos anseios e

    interesses da totalidade da Nao. Ao fazerem isso disputavam pela hegemonia de seus

    horizontes, impressos em espaos de significativa visibilidade e relevncia no cenrio

    poltico.

    ***

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