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INTRODUÇÃO Nestes últimos anos, e mais amplamente nestes últimos decénios, a reflexão teológica sobre Cristo tem ocupado um lugar cada vez maior. Não somente pela quantidade dos escritos, senão que mais ainda pela importância dos mesmos. Tal constatarão impõe-se com essas sumidades da Teologia contemporânea que são K. Barth, R. Bultmann, K. Rahner e H. Urs Von Balthasar. À primeira vista poder-se-ia pensar que esta constatação é menos pertinente para o período mais recente, no qual as preocupações e as urgências pareceriam situar-se antes do lado da teologia da Igreja, da reflexão sobre a moral, dos problemas da antropologia ou da questão de Deus. Mas isto não é tão certo como parece! Com efeito, tudo leva a crer que o impressionante aggiornamento e as múltiplas transformações que constituem os frutos actualmente produzidos pelos trabalhos da geração precedente estão fazendo aparecer na consciência da Igreja a necessidade de um duplo movimento: - um movimento de abertura mais destacada para a diferença que representam os "outros": os que não têm fé e o mundo moderno em seu conjunto; - e um movimento de introspecção da fé sobre si mesma, para determinar com precisão o que acontece com a identidade cristã como tal. Ora, justamente lá onde a teologia visa a cumprir simultaneamente as duas tarefas que lhe são impostas por esses dois movimentos que lhe são hoje vitais, ela opera na realidade uma "concentração cristológica" bem nítida, ou seja: ela refere incessantemente a Jesus Cristo, como à sua fonte e seu critério, o essencial daquilo que pretende ter a dizer. O chamar Jesus Cristo não deve ser uma considerado pura e simplesmente como algo adquirido, mas como uma tarefa! 1

Tratado de Cristologia

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teologia

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INTRODUÇÃO

Nestes últimos anos, e mais amplamente nestes últimos decénios, a

reflexão teológica sobre Cristo tem ocupado um lugar cada vez maior. Não

somente pela quantidade dos escritos, senão que mais ainda pela importância

dos mesmos. Tal constatarão impõe-se com essas sumidades da Teologia

contemporânea que são K. Barth, R. Bultmann, K. Rahner e H. Urs Von

Balthasar. À primeira vista poder-se-ia pensar que esta constatação é menos

pertinente para o período mais recente, no qual as preocupações e as urgências

pareceriam situar-se antes do lado da teologia da Igreja, da reflexão sobre a

moral, dos problemas da antropologia ou da questão de Deus. Mas isto não é

tão certo como parece!

Com efeito, tudo leva a crer que o impressionante aggiornamento e as

múltiplas transformações que constituem os frutos actualmente produzidos

pelos trabalhos da geração precedente estão fazendo aparecer na consciência da

Igreja a necessidade de um duplo movimento: - um movimento de abertura

mais destacada para a diferença que representam os "outros": os que não têm fé

e o mundo moderno em seu conjunto; - e um movimento de introspecção da fé

sobre si mesma, para determinar com precisão o que acontece com a

identidade cristã como tal.

Ora, justamente lá onde a teologia visa a cumprir simultaneamente as

duas tarefas que lhe são impostas por esses dois movimentos que lhe são hoje

vitais, ela opera na realidade uma "concentração cristológica" bem nítida, ou

seja: ela refere incessantemente a Jesus Cristo, como à sua fonte e seu critério,

o essencial daquilo que pretende ter a dizer.

O chamar Jesus Cristo não deve ser uma considerado pura e

simplesmente como algo adquirido, mas como uma tarefa!

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CAPÍTULO I

DIVERSIDADE E UNIDADE DA CRISTOLOGIA

As épocas de crise e de transformação profunda na Igreja e na fé

comportam novas tarefas para a teologia: reclamam uma concentração no

essencial, uma nova reflexão sobre o núcleo central e os fundamentos da fé

cristã. Não estranha, pois, que a questão de Jesus, o Cristo, tenha adquirido

hoje uma nova urgência e um significado. O esforço, perceptível em toda

parte, de encontrar novos acessos e novos enfoques para a Cristologia situa-se

claramente sob o signo desta reflexão sobre o centro que vivifica e informa a

totalidade da fé cristã: a confissão de fé em Jesus, o Cristo.

Sem dúvida, quem espera desta concentração sobre o essencial uma

maior unidade da própria Cristologia, vê-se constantemente desiludido. Nos

nossos dias, em vez de diminuir, aumentou o número das tentativas feitas para

compreender mais profundamente a figura de Jesus de Nazaré e exprimir de

uma forma apropriada o seu significado universal. A exposição que a seguir

faremos de algumas abordagens cristológicas específicas proporciona uma

primeira visão sumária desta grande diversidade das novas tentativas

cristológicas actuais. Diante deste facto, o observador atento pode sentir um

certo temor: é precisamente o núcleo mais íntimo da fé cristã, a confissão de fé

em Jesus Cristo, que manifestamente corre o risco de dissolver-se nas mãos da

teologia actual e de diversificar-se em uma medida extrema. Será que, dentro

do quadro estritamente delimitado da própria Cristologia, pode mais uma vez

haver um "pluralismo legítimo"?

Esta pergunta lancinante do presente encontra já no Novo Testamento

uma resposta clara e inequívoca. já nos próprios e vários escritos

neotestamentários descobre-se uma impressionante ampla diversidade da fé

cristológica em face de um centro último e simples, sem que haja contradição

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entre as duas coisas. As diferentes apresentações da Cristologia bíblica são

englobadas por uma unidade última, que pode ser considerada como o ponto de

partida e o objectivo de toda reflexão sobre Jesus, o Cristo: a unicidade e a

originalidade absoluta do evento Jesus Cristo e o significado universal

eminente de Jesus Cristo para todos os homens de todos os tempos

permanecem, para além de todas as diferenças, como centro de fé cristã e ao

mesmo tempo cristológica: "Não existe nenhuma salvação fora dele; pois

debaixo do céu não há nenhum outro nome oferecido aos homens, que seja

necessário à nossa salvação" (Act 4,12).

Esta asserção central de toda Cristologia, que visa o carácter

insuperável de um nome único, e consequentemente de uma pessoa única,

manifestamente só pode ser verificado de uma forma concreta sempre nova.

Sobrevindo novos graus da compreensão, novos horizontes e novos contextos,

e ocorrendo situações históricas novas, este significado universal é expresso

cada vez de um modo novo e diferente. Assim, percebe-se na Cristologia

neotestamentária um aprofundamento da Cristologia primitiva da exaltação (cf.

Act 2,32-36: depois da sua ressurreição, Jesus é exaltado e constituído Senhor e

Messias): passando pela Cristologia de dois graus, também ela anterior à

redacção do Novo Testamento (cf. Rm 1,3s: modo de ser terrestre - modo de

ser celeste), chega-se à representação desenvolvida da preexistência celeste, da

maneira de ser terrestre e da glorificação de Jesus Cristo (cf. Fl 2,6-11). O

evangelho de João acentua a passagem para a Cristologia de encarnação sob a

representação dominante de uma "Cristologia construída de cima" (cf. Jo 1,1-

í8), ao passo que o anúncio de Jesus pelos evangelhos sinópticos considera

retrospectivamente o Jesus terrestre. A respeito disso, mesmo a imagem do

Cristo em Marcos, em Mateus e em Lucas mostra traços diferentes e traços que

caracterizam os evangelistas específicos. Quanto aos títulos cristológicos de

soberania, com frequência discutidos (por exemplo, Filho do homem, Messias

Cristo, Senhor, Filho de Deus, Salvador), também eles merecem atenção: são

ensaios tateantes que tentam explicar o significado universal de Jesus de

Nazaré em diferentes horizontes de compreensão. Eles mostram que todos

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esses atributos só adquirem o seu verdadeiro significado a partir do seu sujeito,

"Jesus"; em cada caso, não é o título que aclara e limita o lugar de Jesus, mas é

a figura de Cristo que caracteriza e ultrapassa os citados atributos. Com

clareza ainda maior, as epístolas do Novo Testamento atestam a diversidade da

Cristologia bíblica. Ao lado do carácter eclesiológico nitidamente marcado e

concretizado (Ef, CI), elas desenvolvem o significado de Cristo para o culto e o

sacrifício (epístola aos Hebreus: Cristo, o Sumo Sacerdote, que ultrapassa o

Antigo Testamento e os seus sacrifícios). Ao mesmo tempo, as epístolas

contêm as primeiras tentativas de fazer de Cristo a chave da compreensão do

mundo inteiro, e portanto os germes de um desdobramento cósmico e

cosmológico da Cristologia (CI 1,15-20; Hb 1,2s; Ef 1,10: Cristo como

"recapitulação" (anakephalaiosis) e consumação que eleva o universo).

Esta descrição sucinta da diversidade e da mobilidade impressionantes

da Cristologia neotestamentária revela muito claramente que a confissão de fé

em Cristo só pode conservar a sua identidade e a sua verdade em uma mudança

constante. É precisamente o centro mais íntimo da fé cristã, a afirmação firme

de um significado da figura e da mensagem de Jesus Cristo que transcendem o

tempo e o espaço, que impulsiona a uma interpretação sempre nova em

diferentes horizontes de compreensão. A unidade e a simplicidade do dogma

cristológico reclamam, para a manifestação da sua verdade, uma multiplicidade

e uma diversidade de Cristologias que traduzam em palavras a única confissão

na fragmentação e ria concretude da história. Fica assim mantida, dentro da

Cristologia, a unidade da fé, graças ao facto de que, apesar de toda a

diversidade, a confissão fundamental "Jesus é Senhor" (1Cor 12,3; Rm 10,9; Fl

2,11) permanece e tem que permanecer determinante para todos. A ligação

com o único nome e a única pessoa Jesus de Nazaré e com a sua trajectória

permanece constitutiva para todas as tentativas cristológicas.

Sobre este pano de fundo, o amplo leque das tentativas cristológicas

atuais, discutidas mais adiante, adquire um significado positivo. Esta

diversidade da Cristologia actual de modo algum destrói a unidade da fé em

Cristo, o centro da fé cristã, senão que confere a essa confissão, na situação

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pluralista do nosso tempo, uma expressão sempre nova. Em todas elas, trata-se

de traduzir para a linguagem, de uma forma convincente e sem dissimulação, o

significado universal e insuperável de Jesus Cristo. A diferença das abordagens

brota, portanto, da consciência de uma responsabilidade pela apresentação

presente e pela encarnação actual da fé. Este esforço conjuga á maneira mais

íntima a unidade e a multiplicidade da Cristologia e funda uma diversidade

cheia de tensões, tanto no Novo Testamento como no presente.

5

CAPÍTULO II

PERSPECTIVAS COMUNS A CRISTOLOGIA ATUAL

Todo esforço teológico desenvolve-se em um horizonte determinado da

história das ideias e dos problemas, e é, no mais íntimo, marcado e co-

determinado pelos movimentos gerais de pensamento e pelas correntes do

tempo.

Sem dúvida, esta informação preliminar sobre a situação actual do

pensamento cristológico só pode assinalar um número reduzido de orientações

novas, mas trata-se de orientações tanto mais fundamentais. Todavia, sob a

forma sucinta que aqui se impõe, pode-se perceber um horizonte comum às

diferentes tentativas e às diferentes realizações, e com isso o próprio carácter

peculiar e a originalidade delas poderão em cada caso adquirir contornos mais

nítidos. E este apanhado facilita a classificação das diferentes tentativas

cristológicas em um quadro mais amplo e possibilita, à luz deste pano de

fundo, uma avaliação crítica.

1. AS CONSEQUÊNCIAS DO PENSAMENTO HISTÓRICO

O pensamento histórico da época moderna exerceu directa e

indirectamente a sua influência sobre a Cristologia do presente; transformou

decisivamente tanto as tarefas como a configuração dela. Menos directamente,

mas de um modo não menos decisivas a descoberta da historicidade de todas as

asserções de fé influenciou o pensamento cristológico e o recolocou em

movimento. Ao mesmo tempo a revolução decisiva que levou a uma forma

histórica de pensamento produzia consequências bastante directas para a

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transformação interna e para a nova estruturação da Cristologia em seu

conjunto. Passaremos agora a apresentar um pouco mais detalhadamente estas

duas novas orientações.

A Igreja e a sua doutrina, sujeitas à lei da história

No decurso de um longo processo, acompanhado de crises graves e que

começou com o Iluminismo e continua até o presente imediato, passou-se a

reconhecer cada vez melhor que a própria Igreja e a sua doutrina estão em

grande escala sujeitas à lei da história. Uma vez que todas as afirmações de fé

se inserem na cosmovisão e nos pressupostos mentais do seu tempo, uma vez

que são no mais íntimo co-influenciadas pelas categorias e pela linguagem do

seu tempo, elas não podem absolutamente ficar fora da mudança histórica dos

tempos e dos mundos, do pensamento, da palavra e da acção. Por conseguinte,

a verdade e o sentido inalienável mais íntimo dessas asserções de fé exprimem-

se constantemente de um modo que depende das circunstâncias e deve,

consequentemente, ser formulado novamente e de outra maneira, no caso de

ocorrer mudança de condições; somente assim o sentido delas pode manter

incessantemente o seu valor. Esta descoberta decisiva da historicidade de todas

as asserções de fé foi afinal expressamente sublinhada pela declaração

Mysterium Ecclesiae da Congregação romana para a doutrina da fé, datada de 5

de julho de 1973. Nela se lê especificamente o seguinte:

"No que concerne a esta condição histórica, cabe observar

primeiramente que o sentido contido nos enunciados da fé depende, por

um lado, do alcance semântico da linguagem empregada em uma

determinada época e em determinadas circunstâncias ... (Eis por que)

aconteceu por vezes que... algumas dessas fórmulas cederam o lugar a

novas maneiras de exprimir-se".

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O que está dito nessa declaração, depois de uma longa hesitação e

sempre com muita reserva e prudência, a Igreja dos primeiros séculos o havia

praticado muito naturalmente e em virtude da sua convicção mais íntima. Não

é, portanto, a historicidade como tal das verdades de fé, mas o conhecimento

reflectido dessa historicidade, ou, se quisermos, a redescoberta dela e as

consequências que daí derivam, que parecem haver transformado

profundamente a situação actual. Já a ampla variedade das Cristologias

neotestamentárias que esboçamos no capítulo anterior mostrou que os autores

bíblicos, em condições e circunstâncias transformadas, faziam valer a única

confissão 'de fé em Jesus o Cristo, de um modo sempre novo. Não é diferente

o modo de proceder dos Concílios cristologicamente importantes de Niceia

(325) e de Caledónia (451). Para exprimir sem risco de erro a única e idêntica

verdade da fé em Cristo para o seu tempo, e preservá-la de erros e de mal-

entendidos, não têm receio de valer-se de categorias do pensamento

helenístico. O dogma de Niceia declara que o Filho é "consubstancial" (homo-

ousios) ao Pai; a definição de Caledónia tenta explicar a relação entre a

divindade e a humanidade em Jesus Cristo mediante os conceitos de "natureza"

(physis) e de "pessoa" (hypostasis): Jesus Cristo é verdadeiro Deus e

verdadeiro homem, uma pessoa em duas naturezas. Nos dois casos,

incorporam-se à confissão cristológica conceitos não bíblicos do pensamento

da respectiva época. Não obstante, a fé bíblica em Cristo permanece a norma

última para a utilização dessas categorias e desse modo de falar helenísticos.

Eis por que não se pode falar de uma helenização irreflectida e falsificadora da

fé cristã ou cristológica; pelo contrário: novas pesquisas demonstraram

claramente que este recurso ao pensamento da época contradizia também a este

pensamento, e que a fé exprimia nessas categorias da época a sua verdade mais

peculiar e mais original. O "homo-ousios" do Concílio de Nicéia, por

exemplo, rompe ao mesmo tempo com o quadro mental helenístico e a sua

cosmologia triádica, pois coloca claramente o Filho do lado de Deus e com isso

faz com que perca toda a sua legitimidade a esfera vaga situada entre Deus e a

criação. Também o Concílio de Caledónia decide antes uma regulamentação

8

terminológica que deve ser utilizada nessa época para explicitar ortodoxamente

a confissão bíblica de fé em Cristo, e imprime ao conceito de pessoa

(hypostasis) um novo significado no contexto da Cristologia. A "des-

helenizacão" da fé cristã, em si legítima e hoje incontestavelmente necessária

(A. von Harnack), não pode desconhecer estes factos, assim como não deve

desconhecer o direito histórico que tinha aquela época de exprimir a sua fé em

categorias do tempo de então e, assim, conservá-la. Só esta maneira de ver dá à

Cristologia de hoje a possibilidade de tentar agora, por sua vez, uma nova

interpretação e uma nova formulação da fé em Cristo, no horizonte do

pensamento actual. Se considerarmos assim historicamente a verdade de fé,

Nicéia e Constantinopla não significam simplesmente o ponto final de uma

evolução, como se, na sucessão dos tempos, tivéssemos que limitar-nos à

simples repetição do que foi dito outrora; pelo contrário, é aqui que o direito o

dever de uma interpretação sempre nova da fé cristológica nas categorias do

presente encontram o seu fundamento. Eis por que o dogma cristológico de

Caledónia, antes de tudo, colocou os fundamentos para uma grande mobilidade

histórica do pensamento cristológico. Desconhecida ou esquecida por muito

tempo, esta mobilidade foi redescoberta para a época atual. Karl Rahner

sublinhou de um modo impressionante esta função absolutamente dinâmica da

fórmula de Caledónia, por ocasião dos festejos do décimo quinto centenário

daquele Concílio (451-1951):

"Temos, pois, não somente o direito, mas o dever de compreender

esta definição ao mesmo tempo como um ponto de chegada e como um

ponto de partida. Precisaremos distanciar-nos daquela definição, não

para abandoná-la, mas para melhor compreendê-la, para penetrá-la com

toda a nossa inteligência e todo o nosso coração, para, através dela,

aproximar-nos o máximo do indizível Inacessível, do Deus sem nome, que

quis que o procurássemos e o encontrássemos em Cristo Jesus e por Ele.

Retornaremos sempre àquela fórmula porque, quando for preciso dizer

sucintamente o que encontramos no inefável conhecimento que é a nossa

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salvação, será sempre na humilde e sóbria clareza da definição de

Caledónia que desembocaremos. Mas só desembocaremos

verdadeiramente nela (o que é diferente de limitar-nos a repeti-la), se ele

for, para nós, não somente um ponto de chegada, mas também um ponto

de partida". in "problèmes actuels de christologie"

Necessidade de exprimir de maneira nova a declaração de Caledónia

Essas afirmações, que têm valor de programa, tiram as últimas

consequências da descoberta da historicidade de todas as asserções de fé, e

indicam a direcção que deve tomar o pensamento cristológico. O sentido mais

íntimo e a intenção verdadeira de Caledónia precisam hoje ser expressos de um

modo novo. Em lugar do encontro outrora necessário com o pensamento

helenístico de consequências longínquas, tem que ocorrer uma reordenação da

Cristologia no horizonte do pensamento actual. A influência do pensamento

histórico libertou, portanto, primeiro a Cristologia da sua paralisia e colocou

em evidência a necessidade de uma renovação constante e de um esforço

corajoso de reflexão nova. Ademais, o pensamento histórico da actualidade

exerce também uma influência imediata na transformação interna da

Cristologia.

Em face da Cristologia que, em Caledónia e depois de Caledónia, se

apresentava como uma Cristologia de encarnação e essencialista, e dissimulava

amplamente as dimensões da existência terrestre e humana de Jesus, o que

agora aparece em primeiro plano são antes as categorias dinâmicas e funcionais

e as categorias históricas. Não é mais o aspecto estático e ôntico da

constituição interna do Homem Deus Jesus Cristo que agora se encontra no

centro da perspectiva, mas a existência concreta de Jesus, a maneira como Ele

apresentava, na sua própria vida, a sua existência de homem e de criatura e o

seu ser divino de Filho. São justamente as afirmações singelas da Escritura

acerca de um crescimento interno do jovem rapaz Jesus (Lc 2,40.52), da fé (Hb

10

12,2) e da obediência (Fl 2,8) de Jesus que revelam esta história interna por

muito tempo esquecida e essa historicidade da vida de Jesus. As tentações e as

provações de Jesus, que se prolongam até à cruz e são contadas várias vezes no

evangelho, precisam, portanto, ser seriamente consideradas se quisermos

compreender a sua caminhada histórica feita de obediência. Elas aparecem

como manifestações externas de um diálogo muito intenso, travado entre o

Filho de Deus existente como homem deste mundo e o Pai celeste. Perante

uma Cristologia empobrecedora de encarnação e essencialista, o caminhar

histórico de Jesus adquire um significado inalienável. Na sua fé que se entrega

ao Pai, o Jesus terrestre vive o seu ser divino e eterno de Filho e com isso se

torna o lugar em que aparecem o amor e a fidelidade de Deus neste mundo.

Já estas indicações fragmentárias e incompletas mostram como, no

horizonte de uma consideração histórica, a Cristologia de Caledónia é

transformada por dentro. O ponto de partida não é mais, agora, a encarnação e

a unidade de Jesus com Deus, ali afirmadas uma vez por todas, mas a

realização histórica dessa unidade na relação concreta de Jesus com Deus:

relação que só encontra a sua clareza inequívoca e a sua consumação 'no

evento da cruz e da ressurreição. Eis por que a fórmula, “Jesus é Deus” não se

limita à descrição de um estado; ela não afirma uma identidade intemporal e

imóvel entre duas grandezas, senão que engloba a história indicada de Jesus,

cheia de movimento e rica de tensões, na sua dimensão divino-humana, e

descreve assim o movimento dessa unidade de Jesus com Deus.

Mudança decisiva na concepção do ser

O que preparou as categorias necessárias para tal reinterpretação do

dogma calcedoniano de Cristo foi uma mudança decisiva ocorrida na

concepção do ser. Se, para Calcedónia e para a metafísica grega, determinante

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naquele Concílio, qualquer devir e qualquer transformação eram considerados

como uma lacuna e uma limitação, em contrapartida o idealismo alemão -

sobretudo ele redescobriu, para a época moderna, a mobilidade e a

historicidade intrínseca a todo ser. O interesse pelo concreto e pelo vivente,

por aquilo que vem a ser e se transforma, adquire com isso um novo peso. O

ser e a história não são mais coisas que se contrariam, senão que estão ligados

em uma unidade. Até "o ser de Deus está em devir" (E. Jüngel), já que, em

Jesus Cristo, Deus engajou-se por inteiro na história humana e penetrou esta

última no que ela tem de mais íntimo. Foi sobretudo Hegel quem reconheceu e

destacou este significado teológico-histórico da Cristologia e as suas

consequências. Com Schelling, além disso, o sentido mais profundo do ser

pode ser definido como amor: este funda a unidade na diferença persistente, e

engloba a mudança do tempo pela sua fidelidade. A partir daqui, em seguida, a

unidade de Jesus com Deus pode ser compreendida como uma história de amor

e de fidelidade. Projectada sobre este pano de fundo, a história concreta de

Jesus até sua morte e sua ressurreição adquire o seu significado inalienável.

O que aqui afirmamos é inevitavelmente ainda muito formal e genérico.

Os esboços que seguem mostrarão, porém, com tanto mais clareza, que

multiplicidade de novas possibilidades foram abertas pelo pensamento

histórico da Cristologia atual. Mas antes precisamos ainda assinalar outros

backgrounds e outras perspectivas para a reflexão cristológica da actualidade.

2. A PESQUISA FUNDADA NO NOVO TESTAMENTO

Uma vez tornada possível e ao mesmo tempo necessária no contexto de

um pensamento histórico, a nova reflexão actual sobre a Cristologia certamente

tinha que reportar-se antes de tudo ao documento primevo da fé, o Novo

Testamento. O testemunho nele consignado sobre Jesus o Cristo permanece,

12

afinal, para todos os tempos, fonte e norma do pensamento cristológico. No

entanto, quanto mais audaciosa e seriamente se efectuava esta volta à

Cristologia do Novo Testamento, tanto mais problemas daí resultavam: quanto

mais se deixava a mensagem neotestamentária falar sem dissimulação, tanto

mais inquietantes e assustadoras pareciam as consequências que daí advinham.

Isto evidenciou-se primeiro no tempo do Iluminismo. Uma observação

serena e não preconcebida do Novo Testamento levava a uma Descoberta

prenhe de consequências: era muito difícil conciliar a imagem do Jesus dos

evangelhos com a imagem do Cristo dos escritos neotestamentários mais

tardios; o Jesus pré-pascal e o Jesus pós-pascal apareciam como figuras muito

diferentes e dificilmente conciliáveis. G. E. Lessing observava finalmente, a

este propósito, que "a religião do Cristo, que ele conhecia e praticava, como

homem" se apresenta nos evangelhos de maneira bem diferente e bem mais

completa que "a religião cristã que fez dele o objecto do seu culto". Afinal,

Jesus, segundo o testemunho claro dos evangelhos, não tomou por tema da sua

pregação a sua própria pessoa e a sua divindade, mas sim o Reino de Deus e o

correspondente chamado à conversão e à fé. Era muito difícil fugir à suspeita

de que o "Cristo da fé" constituía uma alienação e uma desfiguração, e até uma

falsificação consciente do Jesus Histórico original. Entre o Jesus pré-pascal e o

Cristo pós-pascal havia manifestamente um abismo, o qual se abria não

somente na doutrina eclesial posterior das duas naturezas, mas já no próprio

Novo Testamento. Ora, com isso a fé eclesial em Cristo perdia em grande

parte a sua base: ela só podia aparecer como uma mitologia e uma ideologia, da

qual os autores em seguida procuraram libertar-se através da redescoberta do

"verdadeiro Jesus".

A pesquisa sobre a vida de Jesus

A consequência disso foi uma longa história da "pesquisa sobre a vida

de Jesus" (Leben-lesu-Forschting), que começou com H. S. Reimarus e

13

determinou todo o século XIX. Deixando de lado a pregação da Igreja,

suspeita de ideologia, bem como a sua fé em Cristo, visivelmente carregada de

mitologia, tentou-se descobrir, para a actualidade, o autêntico e verdadeiro

Jesus da história, fazendo-o ver como ele realmente foi. De um modo bem

pessoal e muitas vezes completamente contraditório, os autores serviam-se dos

evangelhos neotestamentários, ou melhor: tentava-se juntar em um todo

independente aquilo que, depois de uma exclusão mais ou menos crítica da fé

posterior em Cristo, ainda sobrava dela. Desde Fr. Schleiermacher, esta

pesquisa sobre a vida de Jesus passou até a ser utilizada em favor da

apologética eclesial. Nesse projecto, via-se a possibilidade de, sem recorrer ao

dogma cristológico cunhado pelas Igrejas, encontrar, por vias históricas, um

suporte e um fundamento para a verdade da fé posterior em Cristo. Em

particular, a consciência divina, especial e única no seu género, que Jesus tinha

de si mesmo, foi destacada e considerada como uma "prova" irrefutável da fé

eclesial na verdadeira divindade dele.

No entanto, todas essas tentativas de reconstruir a vida e a actividade

reais de Jesus a partir dos evangelhos estavam de antemão fadadas ao

fracasso. Foi o que constatou Albert Schweitzer, no início do nosso século,

em um estudo impressionante sobre toda a história da pesquisa acerca da vida

de Jesus. Conforme ele demonstrava detalhadamente, "toda época

subsequente da teologia reencontrava as suas próprias ideias em Jesus, não

tinha condições de apresentar de outro modo a figura dele de uma forma viva.

E não eram somente as épocas que se reencontravam em Jesus: cada

indivíduo o recriava segundo a sua personalidades Com isso estava

definitivamente sepultada a esperança de descobrir a figura original de Jesus à

luz da análise psicológica e da evolução histórica nos evangelhos ou "por

detrás" deles.

O avanço da crítica histórica da Bíblia confirmou ainda mais esta

descoberta. Antes de tudo, pelo método da história das formas, que se revelou

de grande alcance, foi possível perceber que os próprios evangelhos constituem

o resultado de um processo tradicional muito complexo. Os seus próprios

14

relatos são inspirados e marcados pela fé pós-pascal da comunidade cristã: foi

somente a partir desta perspectiva que os evangelistas reuniram e colocaram

por escrito a tradição sobre a vida de Jesus. O que determinou a estruturação e

o conteúdo dos evangelhos não foi o interesse histórico, mas sim a volta, em

atitude de fé, ao Jesus terrestre. Acontece que, com essas descobertas, parecia

estar definitivamente barrado qualquer acesso ao Jesus da história. Para além

do "simples facto" (o Dass) da existência histórica de Jesus, obviamente não se

podia afirmar nada mais. Também R. Bultmann tirou esta consequência com

toda a clareza.

Situação difícil da Cristologia actual

Consequentemente, a volta acentuada ao Novo Testamento e ao seu

testemunho sobre Jesus o Cristo colocou, portanto, a Cristologia actual em uma

situação difícil: o que está no centro do esforço actual não é, portanto, somente

a questão da unidade do Jesus pré-pascal e do Cristo pós-pascal, mas também,

e mais ainda, a busca de um acesso ao Jesus da história. Os dois problemas

modificaram profundamente a configuração do pensamento cristológico. Uma

nova reflexão sobre o significado cristológico decisivo da ressurreição, bem

como a "nova questão do Jesus histórico" caracterizam muito particularmente a

situação atual. E então as descobertas e os resultados assinalados dá história do

problema foram adoptados de uma forma diferenciada.

A ressurreição de Jesus, princípio de toda Cristologia

A confissão de fé explícita em Cristo no Novo Testamento e a tensão

com isso provocado entre o Jesus anunciado têm a sua origem, segundo o

testemunho dos escritos neotestamentários, na ressurreição de Jesus

crucificado. Esta ressurreição constitui o princípio de toda Cristologia. Ela

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dirige o olhar para a pessoa deste Ressuscitado, que agora ocupa o centro.

Contudo, pelo fato de o Jesus terrestre e crucificado ser reconhecido e

confessado como o Ressuscitado e, consequentemente, como aquele que é

confirmado por Deus de uma forma absolutamente única, o evento da

ressurreição funda a unidade e a diversidade, a continuidade e a

descontinuidade entre o Jesus pré-pascal e o Cristo pós-pascal. Eis por que, no

brilho da fé pascal, a história da vida terrestre de Jesus é reconhecida e

transmitida no seu significado único e universal. Todavia, não é somente a sua

"mensagem" ("Sache") o conteúdo da sua pregação, que neste caso ocupam o

primeiro plano, mas também o próprio Jesus Cristo, a sua pessoa e a sua

verdade. Deste Jesus, visto como o Ressuscitado, o Novo Testamento fala,

portanto, de um modo completamente novo e diferente, que impregna todas as

dimensões da sua existência terrestre, ultrapassando-as. As tentativas,

balbuciantes e tateantes, mais do que exaustivas, através das quais a fé pós-

pascal fala de Jesus como Messias, Senhor, filho de Davi e Filho de Deus,

mostram isto com clareza e até encontram acesso nos relatos dos evangelhos.

Pelo fato de o próprio Deus ter agido em Jesus na sua ressurreição, Jesus, na

qualidade de "o Cristo", é o centro, o conteúdo e a norma de toda fé posterior.

Esta acção de Deus em Jesus crucificado obriga, portanto, a uma modificação,

ou até a uma reviravolta no testemunho bíblico sobre o Cristo (modificação

esta que, na própria Bíblia, de modo algum é dissimulada ou artificialmente

disfarçado!): o Jesus terrestre (pré-pascal) deve agora ser anunciado como o

Cristo e o Filho de Deus (pós-pascal) exaltado. É por isso que o fundamento

interno real de toda confissão cristológica se encontra na ressurreição de Jesus.

Somente esta provoca a tensão entre o Jesus anunciante e o Cristo anunciado, e

engloba os dois ao mesmo tempo; consequentemente, já não cabe falar de um

abismo intransponível entre os dois. Trata-se antes de uma "nova vinda

daquele que já veio" (E. Jüngel) - uma vinda que, na verdade, só é acessível na

fé. A ressurreição de Jesus permanece, portanto, o dado fundamental e o ponto

'de partida de toda confissão cristológica. Sem ressurreição, não há fé em

Cristo; esta caminhada histórica da Cristologia, particularmente sublinhada

16

pela reflexão sobre o Novo Testamento, determina de uma forma nova as

abordagens cristológicas de hoje.

Contudo, este destaque que se dá à ressurreição de Jesus e ao seu

alcance eminentemente cristológico tende a ultrapassar-se. À luz da

ressurreição, o que se crê e se conta a outros não é um mito intemporal, mas é

uma história concreta que é transmitida na linguagem. O facto de toda

pregação cristológica ser efectuada em nome de "Jesus" mostra que aqui a

unicidade e a originalidade única de uma pessoa e da sua história recebem um

valor novo e universal. Embora toda fé em Cristo assente as suas raízes no

evento da ressurreição, esta última, tomada sozinha, permaneceria por demais

formal é por demais susceptível de interpretações arbitrárias para o

desenvolvimento concreto da Cristologia. São justamente os evangelhos

neotestamentários que conduzem a atenção à figura concreta e histórica de

Jesus de Nazaré como fundamento e norma supremos da mensagem cristã.

A nova questão do Jesus histórico

É partindo daqui que sobretudo Ernst Kasemann (e depois dele, muitos

outros) colocou, como um programa a cumprir, a nova questão do "Jesus

histórico". Com a ajuda do método histórico-crítico ele abre um acesso,

estreito mas seguro, para uma Cristologia pré-pascal, "implícita", que se pode

discernir, segundo o testemunho dos evangelhos, na autoridade e na atitude do

Jesus terrestre, e que está no fundamento da Cristologia pós-pascal, "explícita".

Há que reconhecer uma importância peculiar à autoridade que o Jesus terrestre

reivindica para a sua pregação, pelo facto de colocá-la ao lado e até acima da

palavra de Deus contida no Antigo Testamento; a mesma importância tem a sua

relação única com Deus, o poder que Ele se atribui de perdoar os pecados, a

autoridade soberana com a qual convida a segui-lo etc. A autoridade e a atitude

de Jesus, a sua palavra e a sua acção fazem explodir todos os limites daquilo

que se conhecia até então, e todos os esquemas anteriores de profetas e de

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homens de Deus. A sua unicidade e a sua originalidade absoluta exprimem-

se, portanto, já no carácter peculiar da sua existência terrestre. Desta forma,

porém, "a tradição, nascida da fé da comunidade, não é um simples produto da

imaginação, mas uma resposta a Jesus, à sua pessoa e à sua missão na sua

totalidade?" Com este acesso ao Jesus histórico e à autoridade da sua palavra,

parece superado o cepticismo radical em relação à tradição bíblica; o

cepticismo cede o lugar a uma avaliação crítica e nuançada dos testemunhos

neotestamentários. Um dado fundamental em todo caso digno de atenção, e

sobretudo cristologicamente significativo, já pode nos evangelhos ser

considerado como a pedra original da tradição sobre Jesus. Eis por que a

Cristologia posterior pode entender-se como sendo o desdobramento legítimo

de uma reivindicação extraordinária do Jesus terrestre.

Indubitavelmente, esta questão só recebe a sua justificação e a sua

limitação no conjunto da Cristologia bíblica. Com efeito, verdades de uma

importância central que permanecem inacessíveis em virtude de uma limitação

metodologicamente necessária e legítima: pois só se pode considerar como a

verdade histórica incontestável aquilo em que a atitude e a pregação de Jesus se

separam e se distinguem do seu tempo, bem como do ambiente e da situação da

comunidade primeva. Mas, nesta perspectiva bem restrita, não se pode

apreender e avaliar suficientemente nem a mensagem escatológica de Jesus,

nem a sua cruz e a sua ressurreição. Além disso, o "Jesus histórico" permanece

necessariamente, naquilo que conseguimos saber sobre ele, mais pobre do que

aquilo que na verdade era o "Jesus terrestre". A vida real de Jesus era

certamente bem mais variada e mais rica de conteúdo do que aquilo que se

pode demonstrar como sendo autenticamente histórico, segundo os evangelhos.

É por isso que o "Jesus histórico" deve, até certo ponto, ser considerado como

uma ficção científica que só pode conter um aspecto parcial da realidade mais

rica desse Jesus terrestre, exactamente como ele era. Precisamente a

proximidade de Jesus ao seu tempo é incontestavelmente o que o caracteriza,

tanto quanto à sua originalidade claramente discernível; no entanto, é

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exactamente isto que em grande parte há de ser negligenciado pelo método da

pesquisa histórico-crítica sobre Jesus, que visa o que é distintivo.

Este breve resumo mostrou que a Cristologia actual superou

amplamente as dificuldades de uma pesquisa fundada no Novo Testamento. O

conjunto diferenciado, constituído pela questão histórica de Jesus e pela

ressurreição, parece tornar possível uma solução desses problemas que

pareciam acabar com a fé em Cristo a partir da sua raiz. Todavia, o quanto esta

maneira bipolar de fundamentar a Cristologia permanece ao mesmo tempo

essencial e necessária, eis justamente o que provam, com o seu carácter por

vezes unilateral, as abordagens cristológicas que adiante exporemos.

3. A RESPONSABILIDADE PÚBLICA DA FÉ

As duas perspectivas apresentadas ainda precisam de um complemento

importante e ao mesmo tempo necessário. A própria Cristologia actual só terá

cumprido a sua tarefa se chegar a mostrar a importância, o significado salvífico

de Jesus Cristo e da sua mensagem para o nosso tempo. Mas isto deve

decididamente inserir-se no pensamento actual e entrar nas suas questões e

preocupações. Para apresentar de um modo compreensível e atraente ao

homem de hoje esta mensagem de salvação de Jesus o Cristo, a Cristologia

actual tem, portanto, "o dever de, a cada momento, perscrutar os sinais dos

tempos e interpretá-los à luz do Evangelho". É dos problemas ligados a este

dever, e das perspectivas da Cristologia actual, que iremos agora falar

sucintamente.

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Dever e perspectivas da Cristologia actual

Em concreto, trata-se aqui da questão da hermenêutica adequada, dos

pressupostos e das condições de um encontro entre a confissão original de fé

em Cristo e o desafio do presente. No entanto, esta hermenêutica da

Cristologia não pode ser determinada de um modo fixo. Ela caracteriza-se,

pelo contrário, por uma grande elasticidade e uma grande mobilidade, como o

demonstrará a breve análise que segue. Com efeito, uma vez que os "sinais dos

tempos" desempenham um papel decisivo na hermenêutica da Cristologia, esta

última permanece particularmente sujeita à mudança histórica e se encontra

constantemente sob a influência dos movimentos gerais de pensamento e das

correntes do tempo. Em condições transformadas, a hermenêutica cristológica

(como qualquer outra) deve, portanto, servir-se de categorias novas e

diferentes; somente assim ela pode ajudar a provar e a assumir com

responsabilidade a pertinência da fé em Cristo para cada época (cf. 1 Pd 3,15).

Rudolf Bultmann tentou uma nova abordagem fundamental para tal

hermenêutica da Cristologia como de todo o Novo Testamento, servindo-se

então antes de tudo das categorias básicas da filosofia existencial. Através de

uma interpretação existencial, ele relaciona os textos bíblicos com a

mentalidade actual e desentranha a sua verdadeira mensagem. Esta não

consiste na simples comunicação de determinados conteúdos, na informação

sobre fatos e acontecimentos de outrora. Trata-se antes, decididamente, da auto

compreensão, da compreensão existencial do indivíduo. Todos os relatos

bíblicos visam a uma só e única coisa: sacudir o homem para fazê-lo sair do

seu esquecimento de si mesmo, dirigir-se a ele para falar-lhe de uma nova

possibilidade da sua maneira de existir' e prometer-lhe finalmente na fé a nova

compreensão da sua existência a partir da graça de Deus e pela acção salvífica

de Jesus Cristo. Desta forma, a Cristologia adquire como ainda se mostrará

detalhadamente mais adiante o carácter de um apelo existencial supra-temporal

e cada vez mais novo. A promessa concreta da salvação produz-se, portanto,

sob a modalidade de uma auto-compreensão transformada.

20

Dimensão social ou política da mensagem de Jesus

Não há dúvida de que este programa hermenêutico de uma

interpretação existencial, desenvolvido por Bultmann e seus sucessores,

permanece enclausurado nos limites restritos de uma perspectiva individualista.

É justamente aqui que começa a nova reflexão actual, pois ela sublinha a

dimensão social ou "política" da mensagem neotestamentária, em face de uma

concepção puramente existencial e individual. Também para esta nova

abordagem, diversos movimentos de pensamento da actualidade têm

imprimido um impulso decisivo.

A importância crescente da sociologia, da psicologia social, assim

como das ciências sociais e políticas em geral, levou a reconhecer com clareza

os limites da "hermenêutica existencial". Aparece aqui nitidamente quanto o

homem, a despeito de toda a sua individualidade, tem que ser compreendido

como ser social, quanto ele é determinado e marcado, até no que tem de mais

íntimo, pelos dados comuns da vida humana. É na mesma direcção que orienta

a ampla renovação das teorias sociais marxistas em' um neo- marxismo

ocidental crítico em relação aos sistemas, que também ele coloca no primeiro

plano as Estruturas sociais (ou "políticas") da existência humana. Não é mais a

renovação da compreensão individual da existência que assume um significado

peculiar, mas a exigência de uma mudança total dos dados políticos e sociais.

Como caminho concreto para este objectivo, procura-se provocar uma

mudança da consciência pública; bem entendido, a esta mudança deve

acrescentar-se um engajamento crítico e político do indivíduo.

Precedendo a esta politizacão geral (no sentido da relação social) vem,

do lado exegético, a redescoberta do "Jesus histórico". Provavelmente pode-

se demonstrar como históricas a oposição, que parece absolutamente

revolucionária, de Jesus à sociedade do seu tempo e a sua acção social

radicalmente nova. Eis por que, no sentido político mais vasto, mas não no

sentido político mais restrito, Jesus pode aparecer como "revolucionário",

tanto mais que termina na cruz, evento de um alcance eminentemente político.

21

As dimensões sociais da sua atitude e da sua acção adquiriram, portanto, no

quadro de uma "hermenêutica política", um novo significado: a realização

prática da igualdade e da fraternidade de todos, a oposição a toda soberania

humana graças ao valor absoluto conferido à soberania de Deus, a prática

pessoal de uma liberdade nova situada para além de todos os limites da lei e

da convenção todos estes factores aparecem agora mais fortemente na

perspectiva da fé em Cristo e requerem um deslocamento dos acentos. Esta

virada para uma hermenêutica política na teologia e sobretudo na Cristologia

proporciona a possibilidade de formular de um modo exacto para o presente a

pertinência social concreta da mensagem cristã e de libertá-la da acanhada

perspectiva existencial e individual. Como as afirmações desta Cristologia

orientada politicamente até à função eminentemente política e pública da cruz

de Cristo encontram o seu ponto fixo na figura terrestre e histórica de Jesus,

este novo enfoque cristológico pode atender com maior exactidão e mais

completamente do que em Bultmann à exigência de uma "desmitologização",

de uma compreensão completa e actual da mensagem bíblica.

Perigo de um novo mito

Também aqui, sem dúvida, ameaça o perigo de erigir o "Jesus

político" em um novo mito, e de ignorar levianamente as implicações mais

profundas da fé bíblica em Cristo. Este perigo aparece claramente em uma

direcção teológica ou, se quisermos, cristológica, que inquestionavelmente faz

da "causa de Jesus" (Sache Jesu) a sua preocupação mais íntima, mas

perdendo de vista a pessoa de Cristo no seu presente e no seu futuro

permanentes. Visado muito seriamente e cientificamente justificado por Willi

Marxsen, em conexão com a sua interpretação da ressurreição, este tema

teológico da "causa de Jesus" tornou-se um slogan. O apelo à "causa de

Jesus" serve muitas vezes à legitimarão de programas sociais e político-

eclesiais. "Jesus na sociedade iníqua" (Adolf Holl) torna-se assim uma

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etiqueta arbitrariamente amovível e um critério objectivo que muitas vezes

encontra a sua aplicação sem fé verdadeiramente pessoal em Cristo e com um

empobrecimento considerável da teologia bíblica. As dimensões escatológicas

e teológicas da figura e da mensagem de Jesus deixam de ser vistas, da

mesma forma que a sua ressurreição e a sua ascensão, que dizem respeito

mais à pessoa dele do que à sua "causa". O que se deve manter como

objecção crítica perante esta corrente moderna é que, em Jesus Cristo, a

pessoa e a causa estão do início até o fim indissoluvelmente unidas, e que o

próprio Jesus é a causa em pessoa e, por esta razão, todo apelo exclusivista à

"causa de Jesus" e às suas implicações políticas ignora o Cristo concreto.

Forma legítima da Cristologia política

Com mais profundidade e maior solidez aparece, ao contrário, uma

nova expressão da soteriologia, a doutrina da redenção em Cristo. Também ela

se mantém irrecusavelmente sob o signo desta orientação para o ser social do

homem. A partir daí coloca-se a nova questão da dimensão política da

redenção, portanto da sua realidade e do seu alcance social. Referindo-se ao

comportamento concreto de Jesus e à sua liberdade contagiante, pode-se,

portanto, compreender a "redenção como libertação" (H. Kessler); a Igreja

pode então ser considerada como "instituição de liberdade crítica em relação à

sociedade". Trata-se aqui, portanto, de uma forma legítima' e objectivamente

fundada da "Cristologia política", que busca conscientemente preencher os

lugares ainda vazios da fé em Cristo, e também de enfatizar o significado

universal de Jesus para a actualidade. já que esta hermenêutica política,

englobante em Cristologia, integra tanto o escândalo da cruz de Cristo quanto a

sua ressurreição, e apresenta estas verdades como "recordações perigosas" para

o presente (M. J. B. Metz), a responsabilidade pública da fé cristã e sobretudo

da fé cristológica aparece aí em todo o seu valor e sem mutilação. Que

também aqui não estejam resolvidos todos os problemas, não há nada de

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estranhar, tanto mais que o debate está ainda em pleno andamento.

Entretanto, todos esses enfoques continuam sendo tentativas dignas de atenção,

que procuram formular o significado salvífico universal de Jesus Cristo de um

modo adaptado à época e compreensível.

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CONCLUSÃO

Esta breve análise da virada moderna da hermenêutica individual e

existencial para a hermenêutica socio-política dentro da Cristologia parece

indicar três grandes grupos de problemas, que revestem uma importância

determinante para a discussão cristológica atual.

Uma nova reflexão sobre o que significa o Espírito de Cristo deveria, em

contrapartida, permitir enxergar melhor o resultado negativo e o fracasso de

toda a pura dialéctica e levar à docta ignorantia deste mistério permanente no

qual se perde a nossa vida e toda a história.

A Cristologia, como tarefa a cumprir, poderia então dizer que o sombrio

mistério da nossa vida não é uma queda no vazio e no nada, que a sua

obscuridade é antes, por assim dizer, o negativo e a outra face de um amor

concreto e no entanto incompreensível, que engloba tudo e ultrapassa qualquer

expectativa.

A Cristologia assim entendida não seria somente uma teoria sobre Cristo,

mas ao mesmo tempo uma iniciação à caminhada no seguimento de Jesus que

se realiza no Espírito. Somente a tal realização da verdade, repleta do Espírito

pode revelar plenamente a verdade de Cristo.

Somente em alguns casos, sem dúvida, o carácter comum assim afirmado

deve ser interpretado como resultante de uma dependência maior ou menor; na

maioria dos casos este caracter comum se detecta, apesar da originalidade

peculiar que caracteriza claramente cada autor.

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BILBIOGRAFIA

GONSALEZ FAUS, La Humanidad Nueva, Ensaio de Cristologia. Presencia Teológica. Ed. Sal Terrae, Santander 19948.

NEUFELD, K. H., Problemas y Perspectivas de Teologia Dogmática. Ed. Sígueme, Salamanca 1987.

RAHNER, K., Problemes Actuels de Cristologie, in Ecrites Teologiques I. Paris 1959.

SCHILSON, A. - KASPER, W., Cristologia - Abordagens contemporâneas. Ed. Loyola, São Paulo 1990.

WALTER KASPER, Jesus el Cristo. Verdad y Imagen, Ed. Sígueme, Salamanca 1994.

26

ÍNDICE

INTRODUÇÃO...............................................................................................1

CAPÍTULO I: Diversidade e Unidade da Cristologia...................................2

CAPÍTULO II: Perspectivas comuns à Cristologia actual..............................6

1. As consequências do pensamento histórico......................................62. A pesquisa fundada no Novo Testamento.......................................133. A responsabilidade pública da fé.....................................................20

CONCLUSÃO...............................................................................................25

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................26

ÍNDICE.........................................................................................................27

27