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As 24 horas de cada dia eram escassas e me forçavam a obe-decer ao toque do despertador às 5h30 e só voltar à cama àmeia-noite, cumprindo uma rotina exaustiva. Cursava duasuniversidades, a de Informática na UFF (Universidade Fede-ral Fluminense), em Niterói, e a de Economia, na UERJ(Universidade Estadual do Rio de Janeiro), e ainda trabalha-va dando aulas e fazendo consultorias. Passava o dia cruzandoa cidade dentro de um ônibus, testemunhando assaltos e aviolência urbana que vem há tempos dominando o Rio deJaneiro, aonde cheguei com a família aos 13 anos, seguindoa itinerância de um pai militar, que me viu nascer em MatoGrosso, e passar por Rio Negro, no Paraná, e Bento Gonçal-ves, no Rio Grande do Sul, antes de chegar a essa cidadevoltada para o mar.

O mar, porém, não fazia parte do meu dia-a-dia. Moravacom meus pais e mais seis irmãos em um bairro simples dosubúrbio. Minha relação com o mar continuava restrita aosmomentos de lazer, como ao longo da infância, quando meuspais juntavam os filhos, preparavam um piquenique e noslevavam até a praia mais próxima, onde passávamos o dia atéescurecer.

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Aos 20 anos, uma manhã de domingo e o sol quente meemprestaram ânimo para sair de casa rumo ao mar. Decidi iraté o point dos descolados, a praia do Pepê, na Barra daTijuca. No Rio de Janeiro cada faixa de areia reúne determi-nado grupo de pessoas, e o Pepê é o lugar das mulheres decorpos perfeitos, homens lindos e a turma que sempre sabiaos programas mais quentes da cidade, além, é claro, doswindsurfistas, para quem a areia quente e apinhada era sóuma paisagem, vista de longe, além da arrebentação.

Em pé, na beira da água, não conseguia tirar os olhos do movi-mento das coloridíssimas velas. Fascinada pelo vai-e-vem daspranchas, no embalo do vento cortando a água em velocida-de, descobri o windsurfe.Após tantas horas observando aque-la coreografia, minha observação acabou por atrair a atençãode um belo rapaz que me falou da escolinha de windsurfe quefuncionava aos finais de semana. Curiosa, fui um dia conhecer.Persistente, só saí de lá quando já dominava inteiramente aprancha. Apenas o anoitecer me expulsava do mar.

Era extremamente aplicada nos estudos e no trabalho e nãopensava em cuidar de mim. Um dia, após o término de umnamoro, criei o “momento Bel”. Um momento meu, dedica-do exclusivamente a mim. Queria me sentir melhor e maisbonita. Me matriculei em uma academia de ginástica, come-cei a freqüentar e detestei. Desisti por um breve período evoltei à malhação, dessa vez para valer. Duas horas do meuprecioso tempo eram gastos entre aparelhos de musculação,esteiras e pesos.

Nem imaginava que ao entrar na academia minha vida toma-ria outro rumo. Muito menos pelos 10 quilos de músculo que

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ganhei, frutos da disciplina que me impus, e bem mais pelopresente que recebi um belo dia de um companheiro de suor,o livro Cem dias entre céu e mar, do navegador solitário AmyrKlink. Passei a só falar em barcos. Além da prática do wind-surfe, virei uma estudante de náutica. Vivia em bibliotecas elivrarias, lendo e comprando tudo o que podia sobre o mar.Afinal, navegar é muito mais do que conduzir um barco aosabor do vento. É uma ciência.

Três foi o número de vezes que li e reli aquele relato daaventura a bordo de um barco a remo entre a África e aBahia. Completamente absorvida pelo livro, queria viver umaaventura como aquela. E iria começar por conhecer Paraty,a cidade onde vivia Amyr, em estilo colonial e classificadacomo Patrimônio Histórico Nacional, no litoral sul do esta-do do Rio. Era esse meu mais novo e forte desejo. Planejei aprimeira viagem sozinha de minha vida. Em janeiro de 1991fui passar cinco dias em Paraty. Me hospedei em um hotelsimples, na praia do Pontal, e logo na primeira noite fuibrindada com uma das imagens mais lindas que até hojeguardo na memória: a lua cheia, cor de laranja, saindo domar. Paraty, talvez o único caso de amor à primeira vista emtoda a minha história.

Paraty foi descoberta na segunda expedição portuguesa aoBrasil, em 1502, e guarda o calçamento de pedras que come-çou a ser feito no século XVIII, com um detalhe singelo: asruas apresentam uma depressão junto ao meio-fio que pos-sibilita o escoamento das águas das chuvas e permite a inva-são de marés mais altas, principalmente em dias de lua cheiae lua nova, o que no passado garantia a limpeza da cidade.Justamente por isso as casas foram construídas 30 centímetros

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acima do piso da rua, para estarem a salvo da água do marque, ainda hoje, por vezes transforma o centro histórico emum espelho d’água, transformando a cidade num cenárioainda mais especial.

Foi na pequena cidade de 36 mil habitantes para onde memudei definitivamente – se é que na minha vida algo é defi-nitivo – em 1991, que pela primeira vez me passou pela ca-beça a idéia de cruzar o oceano Atlântico a bordo de umbarco. Corria o ano de 1996 e Pedro Costa, um amigo fotó-grafo português, de passagem por Paraty me presenteou comum broche da Expo 98, que aconteceria dois anos mais tardeem Lisboa. Uma exposição temática, onde o mar era a gran-de vedete e o tema central Os oceanos, um patrimônio para ofuturo. Nessa altura eu só falava, pensava e sonhava em nave-gar. Não sei se vivia mais dentro d’água, enfiada numa canoae no leme do laser, ou fora dela. Em terra, devorava livrossobre náutica, cartas e mapas.A súbita idéia de ir para a Expo evoltar navegando pelo Atlântico invadiu meus pensamentos,e no meio da madrugada já avançava em direção à imaginárialinha do Equador, rumo ao Brasil.

Minha vida era remar e velejar. E trabalhava, é claro, e muito,informatizando a cidade. Minha relação com o dinheiro sem-pre foi tranqüila e inconstante. Horas tinha muito, outras horaso suficiente e algumas vezes nenhum. Nunca me preocupeiem demasia com isso. Um dia recebi um convite para umfinal de semana em Búzios, na casa de amigos, no litoral nortedo Rio de Janeiro, onde, além do ótimo vento, a ferveção éconstante. A noite emenda no dia e Búzios só dorme com osol já bem quente.

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Saímos de Paraty e fomos ao Rio de Janeiro pegar Ana Cláudia,minha irmã mais nova que nos acompanharia na viagem.Algumas horas mais tarde, ao chegar a Búzios, um jornaljogado em cima da mesa atraiu minha atenção. Meus olhosfocaram a manchete no alto da página: “Falta um mês para a inauguração da Expo 98.” Os sonhos deflagrados naquelamadrugada de devaneios em Paraty imediatamente volta-ram à mente. Queria estar na Expo, sentia que tinha queestar na Expo.

Ao voltar do final de semana para deixar minha irmã emcasa, meu pai me contou a novidade: minha outra irmã,Kátia, estava indo trabalhar em Portugal. Assim como eu,ela era analista de sistemas e tinha sido chamada para traba-lhar lá. A mudança da moeda na Europa e a mudança deséculo resultaram no recrutamento de muitos profissionaisda área de informática. Enlouqueci. Parecia que todos os ca-minhos me empurravam para Lisboa. Eu também queria ir,mas tudo o que tinha era uma imensa vontade. Dez dias maistarde, porém, minha irmã ligou, disse a meu pai que mecomprasse uma passagem e me embarcasse para a Europa.Recorri a um amigo e lhe tomei um empréstimo de mil dóla-res. Desembarquei na Europa exatamente no dia da abertu-ra da Expo 98.

Até mesmo para mim, que nunca penso que as coisas sãoimpossíveis, que jamais perco a esperança, que tenho a certe-za de conseguir sempre o que quero e me proponho a fazer,era difícil de acreditar. Como podia estar ali, se há um mês sótinha um sonho. Achei que era a confirmação absoluta daforça do querer.

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Em seguida, no entanto, percebi que era muito também doresultado de meu esforço. Caso eu não tivesse estudadotanto, não estaria preparada, de uma hora para outra, a seradmitida em uma empresa de outro país que, em comumcom o meu, só tinha o idioma. Me sentia pronta a conquistarPortugal, e antes de qualquer coisa estava a visita à Expo 98.Ao entrar no Pavilhão do Conhecimento dos Mares, nãoresisti, chorei. Nesse momento me senti forte.

Ali tive a certeza de que poderia conquistar meus sonhos. Opavilhão foi o mais visitado da exposição, mais de 2,5 milhõesde pessoas passaram por ele. Podíamos ver a relação dohomem com os oceanos ao longo dos tempos. Hoje esteespaço virou Pavilhão do Conhecimento, um museu interati-vo de ciência e tecnologia, localizado no Parque das Nações,antiga Expo 98.

Portugal e o salário em euros eram a chance de viabilizaçãodo desejo mais profundo, navegar o mundo. Um desejo que,de maneira inconsciente, começou a tomar forma nos oitoanos que morei em Paraty, quando ia diariamente para o mar.As pessoas me conheciam salgada, sabiam que vivia dentrod’água. Por vezes pegava meu barco, me afastava, sozinha, echorava ao tocar no mar. Pura emoção, sem nenhuma expli-cação. Ao olhar Paraty, sorria, “que bom estar aqui”.

Comecei a remar por ser a forma mais acessível de navegar. Iaali por perto, tinha receio de ser atropelada por uma embarca-ção maior ou enfrentar uma mudança de tempo. Para vencer asbarreiras, fui estabelecendo pequenas e possíveis metas. Paratyestá situada numa das maiores baías do país, a baía da IlhaGrande, com 1.125 quilômetros quadrados, que se divide em

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duas: a baía de Paraty e a de Angra dos Reis. A primeira ida àIlha Grande foi um acontecimento.A Ilha tem 193 quilômetrosquadrados, a maior da baía. Já foi local de quarentena de doen-tes e abrigou uma colônia penal, mas hoje é um paraíso dapesca, do mergulho e do turismo. Quando atraquei a canoa napraia me senti feliz e vitoriosa.Até ali eu só pensava em chegarà ilha mais próxima. Desde então meu horizonte foi se alargan-do, até ganhar os contornos do mundo.

Fui aumentando distâncias, repetindo percursos em temposreduzidos, escolhendo rotas mais difíceis, buscando o mar emdias de tempestade. Remava sem tréguas, estudava náuticasem parar. Minha frota aumentava, ganhei de Amyr Klink ocaiaque Brasileirinho, um caiaque de fibra de vidro, modeloturismo, que a Opion deixou em Angra dos Reis, a 100 qui-lômetros de Paraty, para que eu participasse do CampeonatoBrasileiro de Canoagem. Participei do evento e dias depoistomei um ônibus e fui pegar o barco na Defesa Civil, ondeficou guardado depois da competição. Quando o oficial meperguntou onde estava o carro para levar o caiaque, disseque morava bem pertinho e ia levar mesmo pelo mar. Eleacreditou, me ajudou a botar o barco na água e lá fui eu, sembússola ou carta de navegação, sabendo estar fazendo umatraquinagem. Oito horas depois chegava em casa, saborean-do a aventura. Mais tarde, levei uma bronca do presidente daAcoar (Associação de Canoagem Oceânica de Angra dos Reis)e também chefe da Defesa Civil, Marcelo Lopes. Já esperavapor essa bronca, sabia que ele não ia permitir minha aventu-ra se eu tivesse revelado minha verdadeira situação.

Com o remo fui uma autodidata. Aprendi a técnica na marra,com a prática. No rastro da travessia Angra dos Reis–Paraty

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vieram outras inúmeras travessias. Fiz a costa brasileira, percor-rendo mais de 1.600 quilômetros. Em várias aventuras entreSantos e Salvador vivi de tudo um pouco. Correntes contrárias,ventos fortes, calmarias, tempestades. Foram tantas noites dor-midas na areia de praias desertas, tanto carinho recebido dequem nunca me vira antes, tanto esforço físico e um punhadode histórias para lembrar e contar. A bordo de um pequenocaiaque passei centenas de horas sozinha, na companhia do mar.

Ainda me recordo da luta para atravessar a Barra da Tijuca,indo de Paraty para o Rio de Janeiro, obrigada a remar bemperto da arrebentação para vencer o vento leste e a correntecontrária. Fiquei por duas horas em frente ao mesmo prédioda orla da Barra, sem sair do lugar. Finalmente alcancei aUrca, bairro carioca na entrada da baía de Guanabara, 13 horasapós a partida, e cheguei ao Iate Clube, em meio a uma festae convidados elegantes, inteiramente molhada e despentea-da. Levei 33 horas para passar de Macaé para o Farol de SãoTomé, em Campos, norte do Rio de Janeiro, e à noite o frioera tanto que coloquei plástico entre as roupas.

Como esquecer lugares encantados que os remos me levaramcomo a enseada de Garapuá, na ilha de Tinharé, em Morro deSão Paulo, na Bahia, isolada entre manguezais, com dois qui-lômetros de praia de águas profundas e quentes? Apenas umvilarejo de pescadores, água do mar cristalina, o céu muitoazul em contraste com o verde dos mangues e a quantidadede aves marinhas e peixes que completavam o cenário que, detão maravilhoso, parecia irreal.

O caiaque também me levou por lugares nunca antes pormim navegados, do outro lado do oceano, agora nas águas

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frias do Atlântico Norte. Em Portugal minha ligação com omar continuava íntima e constante. A cada sexta-feira saía deLisboa para fazer travessias no litoral português, uma costainóspita e perigosa que à primeira vista parece bem assusta-dora. São muitos cabos, pedaços de terra a serem contorna-dos que se estendem para o mar, como o cabo Mondego,cabo Espichel, cabo da Roca, cabo de São Vicente, entreoutros. Na primeira aventura tomei o trem em Lisboa e fuiaté Caminha, ao norte, na fronteira com a Espanha, de ondese estende o litoral, por 840 quilômetros, da foz do rioMinho até a foz do rio Guardiana, em Vila Real de SantoAntônio. Comecei do norte e fui percorrendo a cada semanaum pedacinho de costa.

O remo só não bastava. Com o passar do tempo fui conhe-cendo pessoas em Paraty que também gostavam de velejar ecomecei a fazer rápidas viagens, levando barcos para outroslugares, sempre entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Emuma dessas viagens levei o barco com o qual Amyr Klink feza viagem à Antártica, o Paratii, para o Museu Nacional doMar, em São Francisco do Sul, no litoral nordeste de SantaCatarina. Fui como marinheira, ao lado de Flávio Schutze,meu namorado na época, e Eduardo Louro, um grande nave-gador, cujo currículo registra mais de 100 mil milhas navega-das e o fato de ter sido o primeiro brasileiro a participar deuma regata em solitário.

Aconteceu o que jamais poderia imaginar: mareei. Fiqueimuito mal, queria morrer, mas não perdi a pose, levei até ofim a tarefa de fazer o almoço, comi, e só ao final me deitei epensei: “Aqui acaba minha vida de marinheira.” Um minu-to foi o tempo suficiente para me fazer voltar atrás. Subi ao

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convés, respirei fundo e acabei com o enjôo. Reassumi oposto e a partir de então passei a velejar em barcos grandes.Esta viagem foi especial, pois tive a oportunidade de conhe-cer o museu, que anos depois presenteei com minha canoaManhã. Fiquei encantada com o resgate da riqueza da histórianáutica brasileira, através das diversas embarcações e dasréplicas, perfeitas.

Fui para Portugal para ver a Expo 98 mas acabei ficando. Noscinco anos em que morei em Lisboa a idéia era juntar dinhei-ro, pagar algumas dívidas e um dia comprar meu barco parame lançar ao mar. O tempo foi passando e, aos poucos, fui memoldando à sociedade portuguesa. Um bom apartamento,carrão parado na porta, terninhos de grandes marcas no armá-rio e dinheiro na conta. Mas não me sentia feliz.A saudade deParaty aumentava a cada dia. Queria voltar ao Brasil, montarum projeto para dar a volta ao mundo em solitário, reencon-trar minha alegria e felicidade. Era a hora de viver meu sonho,embora nesse momento só eu acreditasse nele.

Meus pais, irmãos e amigos achavam uma loucura. Comopoderia abdicar daquela vida confortável de Lisboa para melançar em uma aventura? Tinha tudo o que queria. Restavaapenas encontrar alguém, casar e ter filhos para seguir omodelo de felicidade que a maioria adota e reconhece. Masnão, esse não era o meu modelo, queria navegar, precisavanavegar para ser plenamente feliz. É claro que pensei tam-bém em ter filhos, mas a navegação chegou na frente.Afinal, construir um relacionamento estável é algo muitodifícil para quem está sempre partindo. A vida nos impõeescolhas e minha paixão pelo mar se encarregou de fazê-laspor mim.

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Em 2003 entrei no avião no Aeroporto Internacional deLisboa louca para pousar direto no Rio de Janeiro e correrpara Paraty, meu querido porto seguro, a cidade que escolhipara viver. Mas meu retorno não foi exatamente como tinhaimaginado. Não sei quem havia mudado, se a cidade ou eu.Montei uma loja de artigos ligados ao mar, mas minha paz jánão morava mais na cidade.

Com o sonho de Paraty desfeito, a volta ao mundo ganhavavulto. Era esse o objetivo maior. Recebi um convite para tra-balhar em Brasília e aceitei. Foram seis meses sem velejar. Eraum momento de equilíbrio, mais um “momento Bel”.Comecei a me planejar. A primeira providência foi operar avista e reduzir os sete graus de miopia que poderiam ser fataisem uma longa viagem, onde óculos e lentes de contato nemsempre estariam salvos dos banhos provocados por ondas etempestades.A segunda, estudar e muito para a prova de capi-tão.Voltei aos livros com a mesma disciplina e persistência desempre. O resultado não poderia ser diferente: aprovada.Brasília está fincada no meio do planalto central do Brasil enão é abençoada com a proximidade do mar. Sendo assim,troquei as horas na água por passeios, trabalho, festas e beijosna boca, pensando que ali começava a se concretizar o proje-to da mais longa e importante travessia que já havia feito.

Em Brasília também comecei a escrever muito. Tinha umamigo escritor e sempre lhe mandava textos para que lesse ecomentasse. Era uma forma de fugir do meu mundo concre-to e viver paixões, viagens e sonhos.

Ainda tenho no computador um e-mail que mandei para ele,em 15 de setembro de 2005:

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Hoje peguei um livro do José Saramago que começa assim: “Umhomem foi bater à porta do rei e disse-lhe, dá-me um barco...” Ele étão pedante que acaba por ganhar o barco.

Todos os dias ao acordar me vejo no mesmo dilema. Eu quero umbarco. Mas não basta somente um barco. Quero levantar os panos esumir em meio a tempestades, calmarias e descobrir ilhas desconheci-das, que, apesar de existirem em mapas, são lugares distantes paraserem conhecidos.

Talvez seja egoísta, pois quero uma viagem só minha.Aí me questio-nam. É auto-afirmação? Quer provar o quê para quem? Me olho noespelho. O tempo não pára. Mas há beleza. Os olhos ainda têm brilho,não há rugas, apesar da idade e do sol. Falta, no entanto, o sorrisoda realização.

Será que é prepotência, arrogância, querer ser feliz? Pensar diferente,sonhar diferente? Eu sinto que minha química se altera quando estouem conjunção com meu mundo.

O tempo não pára e sei que não tenho muito tempo.Todos dizem:Você tem todo o tempo do mundo. É só ter calma.Aí acordo cedo, vouao trabalho, mais um dia se passa, e outro e outro. No fim de algunsmeses as moedas não chegam. A matemática não bate. E dois maisdois não são quatro. É muito menos.

Para que rei eu peço um barco? Caminho pela Marina, vejo muitosbarcos ancorados que nunca saberão o que é navegar. Foram construí-dos para tal, mas o destino os poupou das aventuras.

Para que rei eu peço um barco? Caminho pela estrada que beira alinha de trem. O comboio passa rápido. O vento é forte, mas não tãoforte para me livrar das minhas frustrações.

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Para que rei eu peço um barco?

Na minha loucura me dou conta de que não há rei.E no reflexo do rioTejo vejo meu rosto. As rugas já aparecem, a beleza me foge, o temponão pára. Passa.

Para que meu projeto ganhasse vida o dinheiro era funda-mental, a começar para a compra do barco. Pensei que a saídaera voltar a Portugal e não titubeei.Arrumei as malas, bati naporta da consultoria que me arranjara o emprego anterior eacabei voltando ao mesmo banco. Dessa vez, porém, a vidaera outra. Só pensava em economizar. Morava em um aparta-mento acanhado, não tinha luxos, roupas de grife ou carrosbacanas. Só fazia trabalhar, contar dinheiro e pesquisar preçosde barcos. Fiquei neurótica, meu lema era “não conviver”.Todos os dias, após o trabalho, passava horas na Internet pro-curando barcos.

No trabalho, o som altíssimo do walkman explodia na minhacabeça, embora fosse proibido. Era preciso que me tocassempara que percebesse que alguém queria falar comigo, inclusi-ve o chefe. Me tornei uma pessoa intratável, obcecada. Nada,excluindo meu sonho, tinha valor, nada me importava, nadaera relevante. Só não perdia o emprego porque era umamáquina de trabalhar. Produzia o dobro, o triplo comparadaa outros analistas de sistemas.Até que comecei a sentir a crisedos 40 anos. Estava muito bem fisicamente, era uma mulherbonita, malhada, arrumada. Mas até quando? Até quando iriater forças para encarar um barco em solitário e os desafiosimpostos pela aventura? Abdiquei de ter filhos e família paranavegar, então tinha que ir. Havia chegado ao meu limite. Eraagora ou nunca.

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Embalada pelo lançamento do Brasil 1, barco brasileirocomandado por Torben Grael que participaria da VolvoOcean Race, a mais famosa das regatas de volta ao mundo,montei um projeto na cabeça. Iria lançar a segunda edição dolivro sobre minhas travessias a remo, afinal fiz a perigosacosta portuguesa e a costa brasileira de Santos a Vitória con-tra a corrente, no Boat Show, uma grande feira náutica, noRio de Janeiro. Isso me daria projeção para atrair patrocínios.A segunda etapa seria comprar um barco e fazer a travessia doAtlântico e a terceira participar da Minitransat, uma regataoceânica em solitário, que parte de La Rochelle, na França, echega a Salvador, na Bahia. Com isso já teria currículo sufi-ciente para o pulo maior: a volta ao mundo.

Pedi demissão, passei a mão em Bes, meu gato adorado cujonome tirei das iniciais do Banco Espírito Santo, onde traba-lhava, e voei para o Brasil disposta a conseguir um patrocínio.Mais uma vez, só eu acreditava. Por coincidência, fazia dezanos que tinha feito minha travessia na costa brasileira. Erafevereiro, meu inferno astral. Decidi voltar aos lugares poronde tinha passado, reviver aquela história. Queria reduzir aansiedade antes de lutar por um patrocínio. Peguei o carro evoltei a cada lugarejo procurando pessoas com as quais con-versei, que me acolheram.

Fiz uma retrospectiva da minha viagem a remo e fui até oarquipélago de Abrolhos, que ainda não conhecia, no extre-mo sul da Bahia. Um lugar lindo, formado por cinco ilhas eonde, desde 1983, é proibida a pesca e caça na região. Não háhotel e só é permitido o desembarque de turistas em uma dasilhas, mesmo assim na companhia de um guia do Ibama.Imponente, cravado na ilha de Santa Bárbara, está um gigan-

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tesco farol de navegação, uma relíquia dos tempos do Impé-rio, que ainda conserva imensas lâminas de cristal capazes de,em boas condições de tempo, tornar os reflexos visíveis aténo continente, a mais de 80 quilômetros de distância.

Parti então decidida para Santo André, um pouco mais aonorte que Abrolhos, também no litoral baiano, à procura deum empresário amigo que havia me apoiado nas travessias aremo. Cheguei à sua casa e fui direta. Falei do projeto, daconstatação de que nunca juntaria o dinheiro suficiente notempo das forças que ainda me restavam e que precisava dealguém que apostasse no meu sonho e me patrocinasse. Eleouviu em silêncio e sua mulher me contou uma incrível coin-cidência que me encheu de esperança. Ela revelou que elegostava de ler o livro de minhas travessias, Paraty Porto dosSonhos, que lhe presenteei um ano antes, e que, sem que osdois percebessem, alguém, provavelmente um dos filhos,havia colocado na mala que eles levaram do Rio de Janeiro,onde moravam, para a Bahia. Passados dois dias ele disse:“Izabel vai para o Rio e vamos trabalhar nessa história.” Tudoestava prestes a virar realidade.

Rio Boat Show, 6 de maio de 2006.A alguns metros observa-va cheia de orgulho o estande que a Tekprom Eventos tinhamontado para mim. Agora esta empresa era a responsávelpelas minhas viagens. No estande colocamos à venda os pri-meiros exemplares do meu livro Brasil e Portugal a remo.

A feira foi um sucesso, meu estande, supervisitado. Vendivários livros, mas também recebi muitas críticas. “Quem eraessa tal de Izabel Pimentel?” Já contava com alguns patrocí-nios, mas a pergunta sobre quem eu era persistia.

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No início me assustei. Mas depois, sempre com um sorriso,respondia a todas as perguntas. Mais de uma vez escutei quea roupa que vestia não era de velejador. Sorria e respondia:“Não é de velejador, mas é de mulher.” No último sábado dosalão dei uma palestra sobre meu livro. Minhas pernas tre-miam. Nunca tinha falado para tanta gente e estava muitoinsegura. Mas, no final, meu pai, que é supercrítico, disse queestava muito boa. Fiquei feliz.

Voltando aos meus planos iniciais: eu tinha visto um barco naEspanha, quase novo, com o qual eu faria a travessia Portugal–Brasil e também a regata Minitransat. Mas o negócio que es-tava engatilhado acabou não saindo e veio então a idéia decomprar um barco para a travessia do Atlântico e construirno Brasil outro para a regata. Me empolguei em repetir ospassos do Brasil 1 e navegar a bordo de um barco 100% bra-sileiro. Sendo assim, alterei os planos e decidi comprar ummais barato para a travessia e correr a regata com um novi-nho em folha.

Achei em Portugal um barco que preenchia os requisitos.Liguei para fechar a compra e mandar um sinal imediatamen-te, já que um amigo fora ver o barco e atestara que estava emboas condições. O vendedor me tranqüilizou, disse que nãoprecisava de sinal e que quando eu chegasse a Lisboa o negó-cio seria efetivado.

Desembarquei em Portugal e fui logo ver o barco, com quefaria a travessia treino, Portugal ao Brasil; e foi quando tiveuma bela surpresa: havia outro comprador na minha frente.

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Desmoronei, afinal ao atravessar o Atlântico estava certa deque o barco era meu.Tinha levado uma desanimadora rasteira.

Voltei à busca frenética na Internet. O tempo corria, tinhaque comprar meu barco e voltar para o Brasil navegando, docontrário, à medida que o tempo passasse, a viagem seria difi-cultada pelas condições climáticas. Achei um barquinho naFrança. Sem falar com ninguém tomei o primeiro avião paraParis e de lá pegaria um trem para a Bretanha.As coisas deci-didamente não iam muito bem. O vôo foi cancelado e passeium dia inteiro no aeroporto de Lisboa esperando próximoavião. A mala com minhas roupas impermeáveis e casacossumiu na confusão da troca de vôos.

Cheguei à França sem agasalho, enfrentei um frio insuportá-vel e achei que nunca conseguiria um quarto de hotel. Apósrodar por mais de uma hora dentro de um táxi, que já queriame largar na estação de trem, consegui um hotel nível B etombei exausta antes de, na manhã seguinte, embarcar notrem para Saint Quay-Portrieux, a 470 quilômetros de Paris,uma cidade conhecida como Porto do Amor, onde os veleja-dores dividem democraticamente suas águas com os navios ea pesca comercial.A cidade ganhou fama ainda por ser a capi-tal francesa do coquille Saint-Jacques, fruto do mar que cos-tuma freqüentar as mesas da alta gastronomia. Très chic, diriamos franceses.

Ao olhar para o barco tudo passou a fazer sentido. Me apai-xonei. A intuição feminina me dizia que aquele era o barcoque enfrentaria o oceano Atlântico comigo. Resolvi na hora,

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paguei e me tornei a feliz proprietária do Ti Punch, umpequeno barco a vela, um minitransat Proto Berret, de 21pés ou 6,5 metros de comprimento, construído em 1987 porYves Dupasquier. Só que havia um detalhe, ele não tinhaequipamentos elétricos e eletrônicos indispensáveis para umatravessia desse porte. Era preciso mudar sua categoria parapreencher as exigências da capitania. Mais trabalho à vista.Não importava, já estivera bem mais distante de conseguir.Agora, mal ou bem, tinha o meu barco.

Era como se tivesse chegado a hora de cumprir o que prome-ti a mim mesma aos 22 anos, olhando o mar de Copacabana.Havia terminado a leitura do livro Navegando solitário ao redordo mundo, escrito em 1899 pelo canadense Joshua Slocum, oprimeiro homem a dar a volta ao mundo em solitário, vistopela última vez em 1909, saindo pelo rio Orinoco, e dadooficialmente como desaparecido em 1924. Sentada em umdos bancos do famoso calçadão da avenida Atlântica, olhei ohorizonte e em voz baixa murmurei: “Slocum, eu tambémvou conseguir.” Atravessar o oceano Atlântico foi o iníciodessa promessa, a primeira etapa e a confirmação de minhacerteza de que vou realizá-la.

Hoje finalmente consigo entender o que se passara dentro dopeito no mesmo lugar, na mesma praia de Copacabana, dessavez com os sapatos nas mãos e os pés na areia, aos 13 anos,quando cheguei ao Rio de Janeiro. Metida no vestido brancode corpo em lastex e saia em babados, feito por mim, olhavapara o mar e sentia alguma coisa que não conseguia entender,identificar ou traduzir. Era uma inquietude que se somava às

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incertezas de menina adolescente. Forte, tão forte que atéhoje me lembro da cena, nos mais ricos detalhes, com umaúnica diferença: agora sei perfeitamente que a inquietaçãosignificava que o mar estava à minha espera e era lá que meencontraria e viveria o mais completo sonho de minha vida.

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