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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA GRASIELE DE OLIVEIRA MOTA MAGALHÃES TRAVESSIAS IDENTITÁRIAS E DESLOCAMENTOS DOS SUJEITOS NA LITERATURA ROSIANA Conceição do Coité 2012

Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

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Page 1: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS XIV

COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA

PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA

GRASIELE DE OLIVEIRA MOTA MAGALHÃES

TRAVESSIAS IDENTITÁRIAS E DESLOCAMENTOS DOS

SUJEITOS NA LITERATURA ROSIANA

Conceição do Coité

2012

Page 2: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

GRASIELE DE OLIVEIRA MOTA MAGALHÃES

TRAVESSIAS IDENTITÁRIAS E DESLOCAMENTOS DOS

SUJEITOS NA LITERATURA ROSIANA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao Curso de Letras com Habilitação em

Língua Portuguesa e Literaturas - Licenciatura,

da Universidade do Estado da Bahia (UNEB –

campus XIV) para obtenção do título de

Licenciada

Orientadora: Profa. Eugênia Mateus de Souza

Conceição do Coité

2012

Page 3: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

As viagens são sempre experiências de

estranhamento. Esse estranhamento não

ocorre apenas em relação ao outro, mas ao

próprio viajante. O que a viagem leva mais

profundamente a compreender é que “o

outro, só o alcançamos em nós mesmos.

[...] Não podemos apanhá-lo fora, só o

tocamos dentro de nós mesmos, pagando o

preço de nossa própria transformação”.

(S.CARDOSO)

Page 4: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Dedico esta monografia a Leonardo, meu esposo. Sujeito que nunca permanece nas

margens. Com determinação e coragem persistente, faz da sua vida uma constante

travessia de fronteiras para conquistar os objetivos. É um exemplo que teimo em seguir.

Como um dos resultados, tenho a conclusão deste trabalho e a chegada ao final do

curso; foi uma longa travessia de fronteiras, que me trouxeram a este objetivo. O que

me deixa muito feliz.

Page 5: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

AGRADECIMENTOS

Em especial, a minha mãe, que com seu cuidado e atenção, esteve sempre disposta a me

ajudar.

Ao meu esposo, companheiro que me apoiou em todos os momentos.

Aos amigos, Efigênia, Lívia e George, que se dispuseram sempre que precisei para

oferecer livros, correções de trabalhos ou partilhas de conhecimentos.

Aos colegas, que fizeram grande diferença nas partilhas de conhecimentos de atenção e

amizade. Aos que se tornaram parte da minha história e aos que se tornaram amigos, e

permanecerão.

A professora Eugênia Mateus, pela dedicação, pelo auxílio constante e por acreditar no

meu potencial.

Enfim, a todos que direta ou indiretamente, contribuíram para que eu chegasse até aqui.

Meu muito obrigada!

Page 6: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

RESUMO

O presente trabalho é uma releitura dos contos de Guimarães Rosa, Sôroco, sua mãe,

sua filha e A terceira margem do rio, presente na obra Primeiras histórias. Neste, faz-se

uma tentativa de verificar o processo de (des)construção dos personagens dos contos,

como representantes da sociedade contemporânea, influenciado pelas imagens do real e

seus efeitos sobre os sujeitos. A compreensão se dará, a partir de uma desconstrução do

texto, transportando o drama dos personagens para o mundo real. Para concretizar esta

releitura, parte-se das relações que a literatura estabelece com a realidade. Através dos

traços deixados pelo texto, tenta-se configurar os deslocamentos e desconstruções do eu,

que movem os sujeitos a uma travessia interior para assumir uma identidade autônoma

diante das transformações sociais. Utilizou-se na pesquisa, para fundamentar a análise

desse trabalho autores como: Bauman (2007), Tollentino (2007), Barthes (2002),

Giddens (2002), Foucault (2002), Leite (2001), Bonder (1998), Villaça (1996), Derrida

(1991), Grossmann (1982), Rosa (1988), dentre outros.

Palavras–chave: Guimarães Rosa. Literatura versus realidade. Loucura e sanidade.

(Des)construção do eu.

Page 7: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

ABSTRACT

The present work it is a reinterpretation of the stories of Guimaraes Rosa, Soroco, her mother, her daughter and the Third Margin of the river, present Early in the work histories. In this, it is an attempt to verify the process of (de) construction of the characters of the tales, as representatives of contemporary society, influenced by the images of the real and its effects on the subjects. Understanding takes place, from a deconstruction of the text, carrying the drama of

the characters into the real world. To achieve this rereading of the relations breaks down that literature with reality. Through the traces left by the text, attempts to set the displacement and deconstruction of the self, that move the subject to take a journey inside to an autonomous identity in the face of social transformations. It was used in the study authors as Bauman (2007), Tollentino (2007), Barthes (2002), Giddens (2002), Foucault (2002), Milk (2001), Bonder (1998), Villaça (1996), Derrida (1991), Grossmann (1982), Rose (1988), among others, to support the analysis of this work.

Key - words: Guimarães Rosa. Literature versus reality. Madness and sanity. (De) construction of self.

Page 8: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09

1 DIÁLOGOS LINGUISTICO-LITERÁRIOS: o fazer artístico rosiano e

expressão da loucura .............................................................................................

11

1.1 Ficção “versus” realidade ...................................................................................... 12

1.2 Limites e travessias ............................................................................................... 14

1.3 Nas malhas de loucura .......................................................................................... 16

2 AS MARGENS: os deslocamentos e a (des)construção do eu ............................. 20

2.1 Estranhamento e loucura ....................................................................................... 21

2.2 Fuga ou entrelugar ................................................................................................. 23

2.3 O sujeito e a fragmentação .................................................................................... 26

3 METÁFORAS DA REALIDADE NOS CONTOS ROSIANOS: as

dimensões existenciais dos personagens ..............................................................

29

3.1 Sorôco, sua mãe, sua filha: a herança dos sujeitos ................................................ 30

3.2 A terceira margem do pai: a ressignificação do sujeito ....................................... 33

3.3 A margem do filho: escolhas do sujeito ............................................................... 38

3.4 Travessias e deslocamentos: a busca dos sujeitos pela integração com o meio e

consigo mesmo ......................................................................................................

41

CONCLUSÃO ................................................................................................................... 45

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 47

Page 9: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

INTRODUÇÃO

Independente da classe, raça, posição social e geográfica ou período histórico, a

apreciação da literatura é uma atividade que enriquece o espírito. Sua linguagem universal

transcende o tempo e estabelece um elo entre os homens. Desta forma, ler e desfrutar de um

bom texto é apreender quem somos, alem de promover instantes de satisfação. O texto

literário é, por si só, um questionamento acerca do mundo em que vivemos.

Ao ler o texto, o leitor imprime nele as marcas da sua cultura e das suas preferências.

Como cada ser constitui-se de diversas realidades; ele “lê”, a partir dos instrumentos pessoais,

culturais e contemporâneos de que possui, fator que determina as (re)significações do texto.

Todos buscam a integração consigo mesmo e com o meio em que vivem, desta forma,

pretende-se mostrar nesta pesquisa, contingências culturais que estruturam a condição do

homem no mundo, bem como suas atitudes para assumir quem de fato é, levantando

questionamentos acerca da natureza humana.

Este trabalho aborda uma temática na qual todos estamos envolvidos. Somos

participantes e vítimas da estrutura social, desta forma, convêm meditar sobre as alterações e

conseqüências que (des)centram e (des)constroem as referencias identitárias de todos nós.

A estrutura metodológica aplicada a esta pesquisa, se fundamenta em leituras bibliográficas.

Apoiada em diversos autores como Bauman (2007), Tollentino (2007), Barthes (2002),

Giddens (2002), Foucault (2002), Leite (2001), Bonder (1998), Villaça (1996), Derrida

(1991), Grossmann (1982), Rosa (1988), dentre outros. Produzi esse trabalho que se firma

sobre a análise dos contos de Guimarães Rosa, Sôroco, sua mãe sua filha e A terceira margem

do rio, nos quais busquei respostas para o comportamento dos personagens a partir da

pluralidade de sentidos da linguagem literária, sob os vieses da (des)construção, e dos efeitos

da pós-modernidade na estrutura social e na vida de sujeitos.

Cabe lembrar que o tema abordado, não se referiu a uma situação generalizada dos

sujeitos, mas, de casos que podem ocorrer em meio à diversidade. Apresento aspectos da

existência/natureza humana, chamando atenção para comportamentos de sujeitos diante da

realidade social e suas transformações, inspirada na linguagem literária e nos contos de

Guimarães Rosa, que com sua linguagem, desenha personagens que representam pessoas

comuns, ao tempo que cria situações que contraiam o senso comum, deslocando e

desconstruindo a vida e o cotidiano.

Page 10: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Com base no exposto, deteve-se sobre os personagens do conto, por possuírem vidas

deslocadas, serem persistentes a resistirem física e psicologicamente às escolhas. Em seguida,

transportou-se tais aspectos fictícios para a realidade, comparando os comportamentos e

escolhas dos personagens com o de sujeitos reais. Como reflexão, interessou tratar das

travessias e deslocamento dos sujeitos, abordando a capacidade do homem de resistir ou se

adaptar às escolhas, e enfrentar conflitos com relação a si mesmo e ao espaço em que habita.

Nessa perspectiva, acredita-se ter alcançado o objetivo de mostrar a (des)construção e

(des)fragmentação dos sujeitos diante da travessia da vida, que deslocam as certezas

identitárias e de segurança, e insere o homem em uma interminável busca de si.

Page 11: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

CAPÍTULO 1 DIÁLOGOS LINGUÍSTICOS-LITÉRÁRIOS: o fazer artístico

rosiano e

a expressão da loucura.

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se

dispõe para a gente é no meio da travessia(Guimarães

Rosa).

A partir das relações históricas do homem com a realidade, que envolve todo o

processo dinâmico do mundo, em suas transformações; a literatura adentra-se nesse

processo e cria outros mundos. Realidades acrescidas de elementos singulares, capazes

de ampliar as possibilidades de pensar, do leitor.

No fazer literário encontra-se um emaranhado de elementos que envolvem fatos

históricos, cotidianos, sociais, psicológicos, transcendentes, etc. capazes de romper os

limites da ficção, aproximando-os da realidade. Nesse contexto exemplifica-se a

literatura de Guimarães Rosa, na qual encontra-se sujeitos que produzem mudanças em

suas próprias vidas, fato que favorece a uma nova consciência com relação a espaços

construídos, contextos inusitados que mexem com a estrutura social, familiar,

psicológica e cultural do ambiente e provoca o leitor a novas questões.

Neste capítulo, apresentam-se elementos da arte literária e, também, a sua

estreita relação com a história e suas transformações tanto sociais, como humanas. Faz-

se uma breve apresentação dos contos de Guimarães Rosa, Sôroco, sua mãe, sua filha e

A terceira margem do rio, objetos de análise desse trabalho, considerando os aspectos

da sua produção literária e as temáticas sobre os dramas humanos, a travessias e os

limites existenciais dos sujeitos/personagens, que apresentam comportamentos

próximos à loucura.

1.1 Ficção versus realidade

Diferente de qualquer outra linguagem, a Literatura, com sua capacidade,

desordena os padrões linguísticos e sociais do cotidiano e, como um espelho em que o

Page 12: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

homem se vê refletido, é capaz de conduzi-lo às profundezas da existência. A literatura

estabelece um diálogo entre as relações sociais e transforma em histórias as experiências

humanas.

Entende-se, pois, Literatura, como um espaço promotor de transformação do

sujeito, capaz de capturá-lo para lugares e possíveis “verdades” sobre o eu e a realidade

circundante. Através da mimese e das metáforas, criam-se espaços e lugares físicos e

metafísicos em que indivíduos/personagens passam a habitar ao se deslocarem da

realidade. Este deslocamento ocorre porque a linguagem literária tanto regula o

pensamento em várias direções - cria realidades que potencializam ou limitam o leitor –

quanto transfigura-se polissêmicamente - modifica o real, transpõe o tempo, move os

lugares, as pessoas, o mundo. É uma linguagem que se (des)materializa.

De acordo com Judite Grossmann (1982, p.23) o discurso literário é sutil, ao

ponto de imbricar as relações entre a realidade e a ficção, englobando, representando e

deslocando as origens desses discursos ora em um, ora noutro. Segundo ela, a literatura

se vale da realidade para existir, e, por conter a linguagem universal, transcende o

tempo e estabelece um elo entre os homens e a história.

O texto literário provoca, apresenta inconformismos, problematiza a realidade,

transpira valores, modelos e padrões morais e éticos e acompanha estas transformações.

Ele reflete as interrelações humanas e do homem com o mundo; (re)cria a vida e a

realidade, ao tempo que conduz o leitor à dimensão existencial, histórica, sociocultural e

política da humanidade através da palavra. Os caminhos traçados pela obra literária são

descontínuos, a linguagem consegue particularizar o universal, o coletivo e o individual.

Segundo Foucault (2002, p. 239), o jogo das palavras e a exploração fonética,

semântica e sintática tornam o texto capaz de absorver a realidade. Estes recursos

acrescem a multiplicidade semântica, e ao leitor cabe a função de (re)ordenar a sua

percepção. Através das emoções o texto ficcional envolve os mundos real e imaginário

e, assim, ultrapassa os limites da significação e promove outras formas de perceber esta

realidade.

Nesse aspecto, o texto se desconstrói, pois o leitor, ao contactá-lo, interpreta-o,

apreende-lhe os sentidos, manifesta o seu ponto de vista. Esta desconstrução do texto,

portanto, não garante certezas na sua infinitude de sentidos, mas conduz o leitor a

desvendar suas artimanhas, porque discurso literário, não só imita como acentua as

situações universais do homem. Derrida (1972, p.12) cita que o texto “provoca a

dúvida, inquieta, mente, simula, engana, teatraliza a verdade, joga com o leitor”. Para

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Grossmann (1982, p.35), a singularidade dos elementos que se apresentam na obra

literária representa uma continuidade universal das questões humanas. Entretanto, quase

sempre eles estão impronunciados, pois foram invertidos, reelaborados e apresentados

em forma de paródias e metáforas.

A literatura rosiana envereda pelos caminhos da desconstrução tão comuns à sua

escrita. Na sua obra, o autor trata de questões universais, metaforiza a vida, o destino, as

travessias. Sua linguagem desenha personagens que representam pessoas comuns, cria

situações que contrariam o senso comum, transforma, desloca, (des)constrói a vida, o

cotidiano. As personagens enfrentam perturbações com seus “eus” e com o mundo

exterior, por isso, exige mudanças de vidas, que fazem com que estes personagens

passem a viver de modo ainda não experimentado.

Constata-se nos contos rosianos, uma descentração dos sujeitos e uma

(des)construção dos modelos de identidade que se formaram ao longo do tempo.

Direcionam-se, portanto, possíveis olhares para a metáfora da “loucura”. A loucura da

incompreensão social que leva o homem à experiência de confrontar-se consigo mesmo

e com a sua verdade.

Nos contos Sôroco, sua mãe, sua filha e A terceira margem do rio (objetos de

análise deste trabalho), depara-se com a representação da transcendência, sob uma

multiplicidade de sentidos e significações. Realidades que ocasionam complexas

relações entre verdade e ilusão, loucura e sanidade. Os personagens dos contos são

pessoas comuns, mas diferem do senso comum, porque transformam o cotidiano e são

impelidos a transformações.

Em Sorôco, sua mãe, sua filha, o leitor depara-se com um sujeito, excluído da

sociedade (Sorôco) que ao passar sua vida cuidando de duas loucas, carece entrar em

comunhão com os mundos interno e externo, deixar vir à tona seu verdadeiro eu. Ele

decide conduzir sua mãe e sua filha, loucas, para serem internadas; Episódio que leva-o

a viver e a assumir a sua própria “loucura”.

Em A terceira margem do rio, encontra-se um sujeito, o pai, que ao passar a

viver dentro do rio, sobre as águas, dentro de uma canoa, cria e se estabelece em outra

margem – “terceira margem” – recusa-se a usar a palavra, desapega-se das coisas e das

pessoas e se distancia da vida social e cultural. Decisão que aparenta ser

desestruturadora, mas, para ele, talvez necessária, enquanto o filho, narrador da história,

que se enquadra no senso comum, passa a viver à “margem”, observando e narrando a

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vida do pai. E, sem coragem de assumir quem é, e em que acredita, teme ser excluído

socialmente e acaba por viver na mediocridade.

Assim, a arte literária constrói percepções acerca da (des)construção da

identidade, como aquela que envolve a sociedade moderna, na qual se instaura um

modelo social que provoca dissolução de valores, de referências e significados dos

ambientes/espaços habitados. Interferências na idéia que o sujeito possui de si mesmo,

que pode conduzi-lo a comportamentos que fogem dos padrões sociais e, quiçá

provoquem espanto e exclusão. Atitudes que estão representadas nos limites e travessias

dos eus, expressos ficcionalmente como representações alegóricas influentes na obra

apresentada.

1.1 Limites e travessias

Como fenômeno que se concretiza a partir das relações sócio-históricas e das

interferências na interpretação do leitor, pode-se dizer que a literatura é uma constante

travessia para a construção de novos sentidos, novos valores e significados. Semelhante

a uma instituição social, ela está em contínua mudança e adaptação. Tece as buscas,

orienta-se pelo pensamento, pelos processos políticos e históricos, pelas vivências

culturais e sociais, pelos conflitos e ações do homem. Promove um mergulho na

história, na cultura e na própria identidade do indivíduo, é apresentada, pois, como o

denominador comum das experiências humanas.

À medida que alcança as experiências do homem, a realidade literária sofre o

processo de reelaboração, em que o real é modificado e surgem as paródias, a mimese e

a metáfora. Para Vargas Llosa (2004, p. 16), isso se faz necessário, pois a Literatura

expressa um tipo de verdade muito sensível, que só pode ser expressa de forma

disfarçada, o motivo segundo ele, é que quase todos os homens são insatisfeitos com a

vida que levam e gostariam de viver de modo diferente. Para moderar esse desejo, surge

a ficção, que se caracteriza por uma travessia de fronteiras entre dois mundos. Uma

interação entre o fictício e o imaginário que se inserem, um no contexto do outro.

De acordo com Lígia Leite (2001, p.6) quem narra as histórias, fá-lo a partir do

que viu, do que viveu ou testemunhou, e também do que imaginou, sonhou ou desejou.

Assim, o discurso literário fragmenta a realidade, possível através da linguagem, que

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(des)organiza, (des)constrói o que se vive, sente e ouve. A linguagem literária encena a

vida, como um mecanismo que resgata, analisa e representa as forças que alimentam a

sociedade e a existência humana. Desse modo, quando o leitor experimenta os múltiplos

signos do texto, ele transpõe limites, e (des)faz travessias. Como já foi citado, o texto

provoca dúvida, inquieta, joga com o leitor, portanto, exige envolvimento e atenção para

compreender as outras existências encontradas no texto.

A experiência da literatura conduz o leitor ao rompimento de fronteiras, fazer

uma partilha, independentemente da posição social, período histórico ou situação

financeira, com a humanidade. A literatura imita, inventa, revela e/ou representa o

mundo e as atividades humanas, cria oportunidades para o leitor se colocar como

participante na produção de sentidos do universo representado. Segundo Terry Eagleton

(1997, p.5) essa propriedade do texto, aliena a fala comum, provoca estranhamento e

conduz o leitor a vivenciar uma experiência subjetiva, intensa, capaz de provocar

comoção, perturbações, e chegar à catarse que, para Rogel Samuel (2002, p.11) é “[...] a

consequência da tensão provocada pelos elementos do texto”, uma experiência que

transforma esse leitor participante da história ou uma extensão dela.

O mundo representado no texto, com as múltiplas possibilidades de

compreensão, é possível através da mimese - definida como fenômeno que envolve o

processo artístico do homem. O meio de representar a realidade a partir do imaginário.

Cenário ideal em que o vivenciado no mundo real, passa para outro plano, o plano do

simulacro, da ambiguidade, das verdades subjetivas que modificam desfocam ou

apagam as cenas reais e as transformam nas imagens do texto. Conforme escreveu

Vargas Llosa (2004, p. 23), a obra fictícia consegue ao mesmo tempo, apaziguar e atiçar

as insatisfações do homem. É um conjunto de sentidos capazes de unir em um único

espaço várias linguagens e pontos de vista, que em outros tipos de discursos se

tornariam contraditórios. O discurso literário revela coisas que nenhum outro é capaz de

dizer.

Apesar de manter relações com a realidade, os espaços, o tempo, e os

personagens da obra literária, constituem um mundo que só passa a existir quando

inventado, e como uma invenção humana, a criação literária está submetida ao

imaginário do autor e entrelaçada a ele.

Buscou-se nesse trabalho, analisar o conto de Guimarães Rosa, Sôroco, sua mãe,

sua filha e A terceira margem do rio, por serem textos que possuem um discurso

intenso, narrativas baseadas em um processo de (des)construção de vidas e vozes,

Page 16: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

metáforas de destinos, de margens e travessias, que conduzem personagens a algum

lugar. Características peculiares do estilo desse autor que, com sua linguagem, consegue

unir as inquietações humanas presentes em todos os tempos e lugares e conduzir o leitor

ao mistério da existência humana, da essência da vida, e o faz sob uma perspectiva

enigmática.

Observa-se, que esse processo na obra de Guimarães Rosa, supõe transgressão,

estranheza, estremece a consciência, ativa o imaginário, invade o tempo e o espaço da

realidade e desperta o leitor a fazer experiências que não são alcançáveis no cotidiano,

além da sensação de prazer, que Barthes (2002, p.12) define como um instante

insustentável e puramente maravilhoso. Uma experiência possível, pois o discurso

literário e o jogo da ficção possibilitam ao sujeito real mergulhar nas cenas imaginárias,

fazem com que o leitor transite entre o real e o imaginário, tornando-se, portanto, capaz

de alterar o seu cotidiano.

As narrativas, pois, apresentam um processo de construção e desconstrução,

travessias e limites, que envolvem passado, presente e exige do leitor atenção para unir

os elementos que constituem a (in)existência percebida na história dos personagens.

Tratam da mutabilidade do cotidiano e das experiências humanas e apontam para a

estreita relação entre o real e o fictício. O discurso é intenso, envolve a subjetividade do

leitor e ao entrelaçar as linguagens dos dois mundos (real e ficção) é possível perceber

motivos que podem conduzir muitos sujeitos às malhas da loucura.

1.3 Nas malhas da Loucura

Enquadrar-se como membro pertencente a um grupo qualquer, é referencial de

segurança e identidade para qualquer sujeito, entretanto, o momento atual da história

sugere, constantemente, a construção de novos modelos de comportamentos. O

rompimento das fronteiras globais e o poder do mercado quebraram também as

distâncias identitárias, o que provoca constantes transformações nas certezas do homem

com relação a vários aspectos da sua vida.

O bombardeio de informações que transitam a sociedade atual de forma

globalizada, contrariam a realidade econômica, psicológica e cultural de grande parte da

população. E, à medida que as distâncias se encurtam e a sociedade torna-se massifica,

Page 17: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

determinam-se os tipos de consumo, padrões para hábitos e modelos de conduta.

Cobranças quase impossíveis de se acompanhar. Assim, muitos sujeitos entram em

crises existenciais ou quebram “algumas regras” para satisfazer, ou não a apelos do

mercado e da mídia.

De acordo com Hall (2006, p.9), as transformações que ocorrem, alteram a

identidade e a concepção que o indivíduo possui como “sujeito integrado”. É um

momento crítico, no qual muitos homens se afastam da democracia, da cidadania, da

ética, do respeito ao ser humano, à ordem social e à vida. As relações tornam-se

superficiais. Deixar-se conhecer pelo próximo pode comprometer a segurança. O outro,

portanto, torna-se uma ameaça e, consequentemente, a reciprocidade já não denota uma

extensão da natureza humana.

De acordo com Enriquez (apud TOLENTINO 2007, p. 21), o sentido existencial

do homem resulta da sua ocupação em alguma instituição social que lhe forneça

segurança e designe um status quer seja ele formalizado ou não. Contudo, a sociedade

contemporânea dificulta a convivência entre os homens. Os grupos de amigos, a família,

a escola, empresas etc., tornam-se desafios para exercitar e/ou manter a segurança e a

partilha. Em razão da predominância do materialismo, do consumismo e do

imediatismo, o homem passa a se apoiar em referências que descentralizam seu eu.

Viver requer suportar implicações. E, na atualidade, toma-se como exemplo o

autoritarismo, o desemprego, a miséria, degeneração da vida urbana (violência, pobreza,

drogas), que para Tolentino (2007, p.16), são problematizações do tempo e dos espaços

da globalização. À proporção que a estrutura social sofre alterações, o individuo

necessita lidar com tal realidade, com as interrelações que mudam consequente e

continuamente, bem como consigo mesmo.

Depara-se com mais um ciclo da história, período no qual, o ponto de vista

social, político e econômico altera as definições do que é normal e anormal nos padrões

de vida, de consumo, de escolha e de comportamento dos sujeitos. Criam-se categorias -

cidadão ou estrangeiro. Qualificam-se, seleciona ou perseguem os indivíduos. São

estabelecidos padrões de aceitabilidade do outro como participante ou não do meio

social.

De acordo com Bauman (2007, p.17) “em vez de grandes expectativas e sonhos

agradáveis, o “progresso” evoca insônia cheia de pesadelos de “ser” deixado para trás”.

Diferente de pregar a segurança existencial, a coletividade e a solidariedade, prega-se o

que diz o ditado popular, “cada um por si Deus por todos”. Situação angustiante que em

Page 18: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

alguns sujeitos provoca tensões, inseguranças e incertezas, e os levam a lutar contra o

“meio”, tomando distância ou enfrentando-o. O “ser” fragmenta-se e desloca-se.

Giddens (2002, p. 40) comenta que, por se sentir ameaçado, o indivíduo teme perder-se

a si mesmo e depara-se com uma grande tarefa: estar atento para refazer suas ações e ter

coragem para enfrentar o cotidiano. Ele ainda escreve que a atitude natural desses

sujeitos deve ser levantar perguntas sobre mundo, sobre os outros e sobre si mesmo, e

estas perguntas devem ser respondidas para que possam enfrentar com naturalidade suas

questões existenciais. Quem não responde às suas questões necessárias não viverá

normalmente e poderá entrar em desequilíbrio.

Os homens, ao longo de toda vida, buscam segurança e conforto existencial, e

quando não a encontram na sua forma concreta buscam ao menos, a sensação de sentir-

se seguro. Não obstante, caminham em uma via inconstante e imprevisível, pois sofrem

ameaças de verem diminuídas as capacidades de ação. Enfrentam o que Hanciau (apud

VILLAÇA, 1996 p. 136) define como um cruzamento, de diferentes e complexas

referências identitárias.

Para Giddens (2002, p.138), a transição constante do ambiente tende a provocar

nos indivíduos crises de identidade, destarte, cada um deve assumir o compromisso com

a sua existência, criar pontos estratégicos que o fortaleçam, para que, em determinados

momentos aja de forma a construir sentidos úteis à vida. É no ambiente social que o

individuo manifesta potencialidade, vontade, inteligência, sensibilidade, interage

consigo e com o mundo. Mas, quando habita um espaço que sofre transformações

rápidas e constantes, é provável que entre em conflito.

Sempre, e em qualquer lugar, existirão indivíduos com comportamentos que

diferem dos outros, dos padrões e das regras definidas socialmente. Tais atitudes podem

representar (re)ações e rupturas com regras e padrões da sociedade. Dado o exposto, o

modelo de sociedade atual, em alguns momentos, exige que sujeitos visualizem novos

destinos e estejam preparados para romperem com certos padrões que podem contrariar

o senso comum.

Para Foucault (2002, p. 214), não existe cultura no mundo em que se permita

fazer tudo. Sabe-se que o homem não cresce governado pela liberdade, mas pelo limite.

Portanto, o sujeito que não obedece às regras nem se integra a essas atividades será

considerado marginal ou louco. Ainda, segundo o autor (2002, p. 163), a loucura faz

parte de um dos níveis estruturais da segregação social: para ele, a loucura não é

Page 19: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

encontrada no estado selvagem, só existe na sociedade, dentro das normas que isolam,

reprimem e excluem.

Cabe enfatizar que este trabalho trata de analisar deslocamentos e travessias de

sujeitos, que não sabem dizer o que querem, ou não são compreendidos no que dizem

ou como dizem, bem como em seus silêncios. Consequentemente são julgados por suas

atitudes, considerados ou tratados como loucos, fator que permite colocar entre

parênteses, inúmeras perguntas sobre as complexas convenções sociais que

comprometem a linguagem e os atos dos sujeitos.

Como fruto do imaginário, o texto fictício apresenta inúmeras configurações e

impõe que seja interpretado, portanto, o leitor deverá fazer uma travessia de fronteiras

para encontrar os possíveis recortes da realidade. Como produto de um autor, cada texto

possui uma temática do mundo e Guimarães Rosa através da sua linguagem, provoca

reflexões sobre a essência e o aprendizado da vida, a incompletude humana e os

comportamentos incomuns dos sujeitos (personagens).

Em vista disso, o drama dos sujeitos do conto, pode ser comparado ao dos

sujeitos modernos, que vivenciam concretamente os desdobramentos das organizações e

estruturas sociais, que assim como podem solidificar sua condição no mundo, podem

também causar estranhamento, fragmentação e deslocamentos do eu.

CAPÍTULO 2 AS MARGENS: Deslocamentos e (des)construção do eu.

O mais importante e bonito do mundo é isto:

que as

pessoas não estão sempre iguais, mas que elas

vão sempre mudando (Guimarães Rosa).

Ainda que seja muito arriscado fazer uma travessia literária, percorrer os

caminhos oferecidos pelo texto é um aprendizado complexo, exige antes, aprender a

olhar e a sentir a força das palavras.

É também prazeroso, pois na obra rosiana parte-se com personagens em suas

experiências, viaja-se nas histórias através das imagens, para só assim, perceber os

elementos que brotam do texto.

Page 20: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Além dos espaços físicos, o autor cria também espaços metafísicos, mundos que

atraem o leitor, pois estabelece relações com o interior subjetivo de cada sujeito,

recheado de emoções e imaginação.

Os contos de Guimarães Rosa provocam reflexões, levantam questões sobre as

verdades existenciais dos personagens e consequentemente do leitor. Ao proporcionar

aos personagens vidas singulares o autor contraria regras e padrões sociais.

Tais personagens não se submetem à lógica da razão, porém, habitam lugares

sem regras. Abrem caminhos para que se possa dialogar com outros modos de ser ou de

comportar-se no mundo, sem, contudo deixar de fazer diferença na vida de alguns

outros sujeitos. Por esse motivo, apenas se levantam possíveis hipóteses acerca dos

motivos de seus comportamentos.

Este capítulo apresenta personagens diferentes, que rompem com a rotina;

deparam-se com desafios, bem como os conflitos, que envolvem o ser na continuidade

da vida.

Através dos traços deixados pela linguagem literária e pelo estilo rosiano, tenta-

se captar elementos capazes de melhor configurar a travessia, os deslocamentos e a

desconstrução do eu, posicionando-se sobre o comportamento estranho dos personagens

que podem ser motivados por alguma fuga, ou negação, resultado ou não da

fragmentação interior.

2.1 Estranhamento e loucura

Uma das principais características do texto literário é o trabalho estético da

linguagem, entretanto, os aspectos formais não são tão importantes quanto os

semânticos, pois são estes que criam o sentido existencial da literatura. Como o

anteriormente citado, os deslocamentos de sentidos possibilitados pela obra literária

criam rompimentos, margens, e uma consequente admiração que transforma o texto em

um espaço de múltiplas significações. Desta forma, o fazer artístico literário tem o

potencial de intensificar a experiência de descoberta, encanto e contemplação das

coisas. Desautomatizar as experiências cotidianas e como resultado, provocar

estranhamento.

Segundo Barthes (2002, p.9), “O texto pode criar caminhos que conduzam o

leitor ao desfrute oferecido pelo autor”. Artifícios dos quais a literatura se apropria para

Page 21: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

provocar no leitor uma admiração, capaz de instigar e dificultar a percepção e a leitura.

O texto comumente apresenta-se de forma inusitada, pois rompe com a razão, foge do

convencional e desfamiliariza o cotidiano. Desafia os conceitos preconcebidos sobre o

mundo, favorece à estranha sensação de novidade e provoca um choque entre as coisas

pré estabelecidas. A visão apreendida das coisas, do espaço e do tempo se alarga e se

estreita. Surge um universo de significações que introduzem o leitor em uma dimensão

que só através da arte é possível experimentar.

O texto explora múltiplos sentidos, e estabelece novas e diferentes significações,

como nos contos de Guimarães Rosa, Sôroco, sua mãe, sua filha e A terceira margem

do rio. O autor lança um olhar sobre a vida cotidiana do homem, com seus medos e

dramas. O leitor retira reflexões sobre o mistério da existência e transcende no processo

de fruição. Ao internalizar a experiência dos personagens, pode despertar em si o desejo

de também transpor limites e desafios existenciais, bem como superar os

condicionamentos que interferem na vida cotidiana.

O autor subverte o lugar comum, cria mundos singulares, deslocados, insere o

inusitado em histórias com personagens que, em seu modus vivendi difere do comum;

são estranhos, marginais, estáveis, fronteiriços. Apresenta elementos de onde se pode

refletir sobre a jornada individual, em direção à auto reflexão e ao autoconhecimento.

Nos textos rosianos, percebem-se ainda ausências de sentidos na lógica de vida

dos personagens, um tipo de loucura, sem começo ou fim, sem preocupação com tempo

cronológico, com vida social. Vidas com abismos e vazios. Personagens com uma

lógica de vida, difícil de compreender. “[...] ele começou a cantar, [...] mas sozinho,

para si” (ROSA, 1988, p.22), “Nosso pai passava ao largo [...] sem deixar ninguém se

chegar à pega ou à fala” (p. 34). “Tiro por mim, no que queria, e no que não queria, só

com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos(p. 34)”.

Despertam questionamentos sobre o não estar vivo, o não existir. Em suma,

experiências que revelam o interior do ser em seu constante trilhar existencial. Levanta

reflexões sobre os complexos mecanismos que movem o ser humano, e conduzem o

leitor à busca por desvendar além dos elementos do texto, seus próprios enigmas e

fronteiras.

É possível aplicar as palavras de Barthes (2002, p. 20) ao texto de Guimarães

Rosa, “[...] não devorar, não engolir, mas pastar com minúcias, redescobrir [...]”. Os

desvios da linguagem rosiana criam espaços que provocam a investigação.

Proporcionam travessias, encontram-se reveladas partes do real com o fictício que

Page 22: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

deslizam para imagens fantásticas e oportunizam o deleite e também a autoconsciência

do leitor e permitem estabelecer uma inter-relação com aspectos psicológicos e sociais.

Na literatura rosiana, os personagens fazem travessias existenciais complexas;

fazem experiências que qualquer sujeito real pode fazer. Acontecimentos cotidianos,

mas que se tornam extraordinários, e por isso, estranhos. Enfrentam a tentativa de

ressignificar a vida através de jornadas que fogem da lógica comum estabelecida do

mundo. Problematizam o existir e, segundo Barthes (2002) provocam o estranhamento a

ponto de despertar no leitor o desejo de participar do texto como continuidade de si.

Quando um sujeito depara-se com situações estranhas, ou seja, com o novo, ele

costuma enfrentar ou fugir. Na mesma medida, o texto provoca essas possibilidades no

leitor. Ou ele se deixa absorver pela leitura ou a abandona. Segundo Roland Barthes

(2002, p. 11) “o prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas [...]”. Na obra

de Rosa, o leitor sente-se obrigado a romper com alguns valores e convicções, para

participar do jogo dialógico e extrair seus significados. Se deixar envolver por lacunas

estranhas que o texto oferece, e quiçá descobrir ou ocupar seus vazios existenciais.

ainda conforme o autor citado ( p.39) o prazer oferecido pelo texto “[...] não é um

resíduo ingênuo; não depende de uma lógica de entendimento e da sensação; é uma

deriva, algo ao mesmo tempo revolucionário e associal e não pode ser assumido por

nenhuma coletividade [...]”.

A arte literária, capaz de promover tal experiência, ultrapassa limites, move o

pensamento, transcende o sujeito e as coisas, o eu e o mundo e o próprio discurso. Na

prática, ela supera o cotidiano. E como representação pode produzir no sujeito leitor

mudanças de conduta, de valores e novas concepções de mundo.

Desta forma, o texto em seu estranhamento, aproxima-se do mistério existencial

e da busca essencial dos sujeitos, que recorrem à experiências capazes de conduzi-lo ao

seu verdadeiro eu, ou não. Para tanto, livram-se dos (pré)conceitos que os outros

atribuem a si, perdem ou assumem máscaras e (des)fazem alguns papéis representados

convenientemente, segundo o modelo de sociedade no qual estão inserido. Não

obstante, assumir a verdadeira essência exige o preço de manifestar particularidades que

se diferenciam do dito “normal”. A diferenciação que origina estranhamento ocasiona a

marginalização, exclusão e transforma em louco aquele que não aceita seguir os padrões

de conduta de determinado grupo social. E muito sujeitos, por não suportarem tal

realidade, poderão, ou não, fugir para outros lugares em busca de um novo existir.

Page 23: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

2.2 Fuga ou Entre lugar

À medida que estuda Guimarães Rosa, o leitor sente-se cada vez mais motivado

a prosseguir e perseguir os mistérios que se escondem por trás dos personagens, com

suas vidas e histórias inquietantes, comportamentos fora dos padrões, que confrontam a

razão e a concepção de mundo que está instaurada em cada sujeito real.

Rosa, com sua linguagem, que por si só é questionadora, direciona os olhares

para a profundeza do ser através de personagens que propiciam essa experiência. Eles

incomodam o leitor com suas reações, comportamentos incomuns e silêncio. Os

personagens possuem características peculiares, e por esse motivo, são capazes de “ver”

além do cotidiano, vivem e assumem realidades inatingíveis pelo senso comum e desta

forma ressignificam suas vidas e de quem os rodeiam. Segundo Santos (1999, p. 58) a

definição do sujeito se dá, a partir do seu comprometimento com questões existenciais,

que implicam nos gestos, no falar e no agir a partir da interioridade. Contudo, não se

deve isolar o exterior, pois ambos são os responsáveis por constituírem os sentidos da

existência.

Os sujeitos observados na obra de Rosa ocupam espaços inusitados, apresentam

atos e comportamentos que fazem com que o leitor adentre esses “lugares” - físicos ou

psicológicos - instigados a “olharem” a sua maneira o mistério que habita as vidas, e, no

invisível, encontrar os possíveis significados. Segundo Oliveira (Ano I, p.18) Rosa

“tenta captar o infinito [...] traduzi-lo em palavras, em signos e em símbolos”.

Nos contos rosianos, o leitor mergulha em um tipo de mistério quase

indecifrável, porque as histórias e seus personagens consistem em um perder-se no

tempo e no espaço, um perder-se de si, dos outros e dos referenciais. A experiência dos

personagens sugere dúvida, isolamento, solidão, que se sujeitam como a um rito de

passagem, quiçá necessário, e que poderá conduzi-los a outro mundo. Ao encontro do

“eu” ou com um novo “eu”.

Livres, ou não, das amarras convencionais fogem das regras, portam-se como

estranhos no mundo ou em um mundo estranho. Por esta razão, considera-se que estão

em conflito existencial ou surtaram em alguma loucura. Segundo Foucault (2002, p.

216), “A loucura abre uma reserva lacunar [...] que faz ver esse oco no qual língua e fala

implicam-se.”

Page 24: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Ao criarem sua própria linguagem para nela se sustentarem, antes necessitam

criar um lugar, para que possam se estabelecer, lugares imaginários, lugares não

especificados. Lugares distantes da comunicação. Em Sôroco, sua mãe, sua filha e A

terceira margem do rio, existem uma deficiência na comunicação entre os sujeitos,

ficam silenciosos, incompreendidos. Em consequência, criam ilhas, ficam presos, cada

um em seu mundo. “Sôroco[...] no sofrer assim das coisas, ele, no oco sem beiras,

debaixo do peso” (ROSA, p.21). O pai de A terceira margem, “[...] só executava a

invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio.” (p.33). Quanto ao

filho; “Eu fiquei aqui, de resto. Eu permaneci com as bagagens da vida” (p.34).

De certa forma, esses lugares em que se colocam os personagens rosianos,

Sôroco, em Sôroco, sua mãe, sua filha e o pai e o filho em A terceira margem do rio

fazem pensar sobre os sujeitos modernos que enfrentam certo esvaziamento das

experiências sociais e (des)construção das relações intercomunicativas. Segundo

Bauman (2007, p.8), “A comunidade [...] parece cada vez mais destituída de

substância”. De acordo com Giddens (2002, p. 137) “O lugar torna-se [...] menos

significativo do que costumava ser como referente externo da vida do indivíduo.” Em

decorrência, instalam-se sentimentos de insegurança ou medo, que não são apenas

externos, mas vem também de dentro dos indivíduos, que se isolam, distanciam-se e

separam-se do convívio social.

Estabelecem-se no entrelugar que, de acordo com o conceito de Silviano

Santiago (2000), é um atravessamento, entrelaçamento e confronto de línguas, dos

espaços, de culturas, enfim, que acabam por instituir outro lugar, no qual os sujeitos

necessitam assumir outros comportamentos. Nesse entrelugar “Surgem novos discursos,

diferentes sujeitos, dinâmicas de fronteiras” (HANCIAU apud Villaça, 1996, p. 12). E

na (re)construção individual resta a cada um constituir a sua verdade interior.

O deslocamento e a desterritorialização dos sujeitos apontam para um espaço

capaz de promover uma redefinição identitária, o que experimentam pode ser um

“lugar” de (re)descobertas, de auto-afirmação ou ainda um lugar de perder-se para não

mais encontrar-se. Para Foucault (2002, p. 216), “A loucura apareceu [...] como uma

prodigiosa reserva de sentidos.” Os personagens do conto estão na margem, e entre

margens. Talvez seja por esse motivo que os “lugares” dos personagens são flutuantes e

quase incompreensíveis, entrelugares. Segundo Fonseca e Alves (2000, p.113),

Guimarães Rosa:

Page 25: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Constrói personagens em trânsito, ou loucos desajustados,

habitantes de um mundo imediatista e pragmático, que por isso

mesmo, parecem capazes de fazer mergulhar o ser humano mais

fundo em sua problemática.

Ao se perceberem nas margens do cotidiano, partem em busca de um espaço, ou

refúgio que não lhe ofereça risco. Necessitados de mudança desestruturam os padrões

ou rompem com eles. Estes fatos lhes fazem criar mundos e transformá-los em espaços

ricos de significações. Segundo Caldas (Ano I, p. 33), a obra de Guimarães Rosa, “[...]

condensa as inquietações humanas que estão presentes em todos os lugares e tempos”.

Através dos seus artifícios lingüísticos e estéticos, ele consegue transmitir ao leitor, que

a linguagem literária subordinada à realidade, propicia a compreensão da condição do

sujeito que perde seu contato, sua conexão, seja com o mundo interior e com a própria

vida, seja com as transformações sociais ou cotidianas.

O entrelugar habitado pelos personagens pode representar possibilidade de

reflexão do sujeito para se encontra consigo mesmo, entender suas relações consigo e

com o espaço, ou uma problematização que o autor propõe para refletir sobre o

estranhamento provocado ao ambiente social quando um sujeito se retira ou reage de

modo incomum como fuga ou busca de soluções para algum conflito interior.

2.3 O sujeito e a fragmentação

Como manifestação das experiências humanas transformadas em histórias, o

texto literário consegue penetrar no íntimo de indivíduos e apresentar a mobilidade

interior no processo de (des)construção do eu. As narrativas oferecem ao leitor

possibilidades de perceber o real, como se não existissem os recursos da mimese ou das

metáforas.

Aspectos encontrados nos contos de Guimarães Rosa, os quais abrem

perspectivas sobre a natureza humana e fazem pensar sobre diferentes modos e

possibilidades de se viver. Portanto, “[...] o mundo representado há de se tornar como se

fosse um mundo” (ISER, 2002, p. 403). A semelhança do texto com o real permite que

através dele sejam encontrados elementos empíricos do mundo.

Page 26: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Para Iser (2002, p. 409) “A diversidade de compreensões do texto literário

mostra o limite da semântica”. Daí torna-se compreensível o potencial que tem o texto

de representar a condição humana no mundo, bem como as relações intercomunicativas

em diversos tempos e lugares. Ao despertar para questões sobre as transformações

históricas e socioculturais que interferem a integração do sujeito no mundo e no meio

em que vive, estabelece uma realidade na qual o “eu” se (des)fragmenta, e o indivíduo

reage através de alterações no comportamento, na linguagem ou na vida. Nos contos,

Sôroco, sua mãe, sua filha e A terceira margem do rio os personagens enfrentam o

isolamento e a solidão, sujeitam-se a uma (des)integração e (des)construção de si

mesmo, ao tempo que, parecem procurar espaços que lhes ofereçam alguma segurança

ou equilíbrio interior.

Aguiar e Silva (1979) enfatizam que a literatura é um trabalho artístico à

sombra de inúmeras facetas que expressam inconfundivelmente as emoções e os

mistérios do homem. De acordo com Aleilton Fonseca (2000), os personagens rosianos,

ao habitarem em um mundo que imita o real, promovem o mergulho do leitor na

problemática humana para perceber que a vida, cercada pela fugacidade das alegrias e

da insatisfação dos desejos, está marcada pelo estigma da morte.

Por meio das relações com o outro, o homem se constrói como sujeito. Mas, é

através das escolhas, dos atos, dos gestos, do silêncio e mesmo da fala, que manifesta

quem ele é. Quando se está em equilíbrio consigo mesmo e com o ambiente no qual

vive, o sujeito consegue se relacionar com as diversas realidades do cotidiano e

apreende-as, à medida que administra os desafios que carecem de respostas. Ao

contrário, o sujeito em possível conflito interior, assume posturas incoerentes com os

padrões do meio social e cultural em que vive.

Ao se deparar com algum embate interior versus exterior, o individuo não

questiona apenas a sim mesmo, mas também os outros, à medida que busca possíveis

respostas que solucionem os desafios à sua frente, e ressignifique sua vida.

Provavelmente, esta fase de transição provocará algum tipo de resistência por parte dos

outros com quem ele convive. Ao passo que alguém experimenta o novo, perde medos,

liberta-se de leis e quebra padrões, passa a ser tratado ou recebido como estrangeiro, ou

louco. Para Foucault (2002, p. 26) “Quando acredito ter um corpo, estou seguro de ter

uma verdade mais firme que aquele que imagina ter um corpo de vidro”. De acordo com

Santos (1999, p.57)

Page 27: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Definir-se será comprometer-se com a existência de

materialidades corporais [...] Não que a exteriorização ponha

sobre a existência certezas, mas possibilidades de ação, por atos

que, num certo momento formam sentidos úteis à vida.

Mudança de comportamento torna-se inevitável, pois o indivíduo encontra-se em

possível fase de reformulação das suas verdades. Toma-se como exemplo as atitudes de

Sôroco, em Sôroco, sua mãe, sua filha e do pai e do filho em A terceira margem do rio.

O homem anseia por transcendência, e transcender supõe transgressão. Abandonar

alguns valores socioculturais preestabelecidos pode ajudar o sujeito a alcançar a

essência da sua alma. Segundo Bonder (1998, p.13) “O ser humano é talvez a maior

metáfora da própria evolução, cuja tarefa é transgredir algo estabelecido”. Romper

fronteiras, para alguns sujeitos é um grande desafio, destarte, esta não violação, pode

levar a crises identitárias como ocorre com Sôroco, em Sôroco, sua mãe,sua filha, após

o embarque da mãe e da filha: “[...] estava voltando para casa, como se estivesse indo

para longe, fora de conta.” (ROSA, 1988, p.21) e com o filho em A terceira margem do

rio, “Sofri o grave frio dos medos, adoeci [...] Sou homem depois desse falimento? Sou

o que não foi, o que vai ficar calado (ROSA, p.37)”. Ainda segundo Bonder (1999), a

maior traição que o homem pode cometer é contra si mesmo, quando se acomoda e não

caminha em direção ao que acredita ser melhor para si.

O modelo social contemporâneo, preza que os indivíduos aprendam a ser

flexíveis; os padrões de comportamento que foram instituídos com o tempo não servem

mais. Os processos de contínuas e rápidas mudanças deslocam as estruturas internas do

homem, pois abalam as referências que lhes dão suporte e servem de ancoragem para

que o sujeito estabilize sua existência no mundo. Mudança que para Bauman (2007,

p.18) faz “o mundo parecer mais traiçoeiro e assustador.” Portanto, deve-se adaptar ao

momento para agir adequadamente e não ser deixado para trás. Bauman (2007, p.8)

acrescenta que “os laços [...] que antes teciam uma rede de segurança [...] tornam-se

cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários”.

Paralisar-se em decorrência dos conflitos existenciais, é aumentar as

possibilidades de uma existência sem sentido. Desta forma a fragmentação interior do

sujeito se faz necessária, e é positiva quando este caminha em busca de soluções e

respostas para suas questões. Para Bonder (1999, p. 51), “Passar por um processo de

mutação de maneira bem-sucedida é irromper em outro corpo que não se sabia que

Page 28: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

poderia conter nosso “eu”. Todo homem necessita do processo de mutação, pois através

da (des)fragmentação, ele torna-se conhecedor de si mesmo e dos outros.

Todo sujeito, de alguma maneira, procura respostas que satisfaçam suas

necessidades. “Viajam” física ou metafisicamente pelo mundo e vão se (re)construindo

à medida que transitam pelas diversas realidades encontradas. Travessias são

necessárias, para que aconteçam mudanças físicas, psicológicas e no meio em que se

vive. Transitar por lugares ora limitrófes e estreitos, que provocam desconforto e

angustias, ora lugares que outrora se tornaram amplos e libertadores, apontam para essas

necessidades existenciais, de (des)construção e (des)fragmentação do eu para tornar-se

um sujeito melhor.

Ao tentar traduzir o infinito em palavras, como escreveu Oliveira (Ano I, p.18),

Guimarães Rosa surpreende o leitor ao ilustrar a travessia e os deslocamentos dos

sujeitos em sua constante viagem pela vida, à medida que alcança aspectos existenciais

do homem real.

CAPÍTULO 3 METÁFORAS DA REALIDADE NOS CONTOS ROSIANOS: as

dimensões existenciais dos personagens.

O correr da vida embrulha tudo. A vida

é assim: esquenta e esfria, aperta e daí

afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é

coragem

(Guimarães Rosa).

Page 29: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Em sua literatura, Guimarães Rosa singulariza a linguagem, os personagens,

inverte o discurso e propõe travessias. Ao (des)construir os padrões linguísticos,

desencadeia a (des)construção do olhar do leitor. Nesse sentido, ao criar histórias e

personagens que fogem da lógica do mundo, propicia uma compreensão do leitor que

transcende à própria narrativa.

Como a literatura incorpora o movimento histórico, social e cultural da

humanidade, modificando as experiências do homem, ela altera o lugar comum e abre

espaço para que se dialogue com outras formas de estar, viver e ser no mundo. Nessa

condição, e sem isolar o foco narrativo, estabelece-se um diálogo com as inquietações,

os medos, a insegurança e a vida do sujeito no mundo real, bem como seus

comportamentos diante de tais situações.

Neste capítulo, aproxima-se ficção e realidade propondo-se tecer as buscas

existenciais do homem, a partir da necessidade que tem o sujeito de encontrar-se com

seu eu para assumir uma identidade e autonomia diante dos padrões sociais, que

impõem um modelo de comportamento a seguir.

Com relação aos personagens dos contos Sôroco, sua mãe, sua filha e A terceira

margem do rio, não há justifica racional para o(s) comportamento(s) do(s) sujeito(s) -

Sôroco- apesar de estranho comportar-se sobriamente durante longos anos da vida a

cuidar de duas loucas e após enviá-las ao hospício, assumir um comportamento

semelhante ao delas, ou o fato que ocorre com as pessoas que assistem ao

acontecimento, romperem coletivamente, com os limites da sanidade ao acompanharem

Sôroco. Há também a estranheza do comportamento do pai, que abandona família e o

ambiente social para viver só, em silêncio, sobre águas de um rio. E ainda, a anulação

social e pessoal do filho, para estabelecer-se em um lugar sem perspectivas, parado, à

margem do rio, a alimentar-se de esperanças quase nulas durante toda vida.

Obviamente, estes sujeitos serão classificados como loucos, ou desequilibrados.

Porém, como na literatura tudo pode, e, na interpretação, o leitor (re)constrói a história.

Cabe aqui, analisar apenas a travessia pessoal dos sujeitos, na (in)superação dos

desafios que a vida impõe, bem como os resultado da experiência.

3.2 Sôroco, sua mãe e sua filha: a herança dos sujeitos.

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O conto Sôroco, sua mãe, sua filha, compõe a obra Primeiras histórias, de

Guimarães Rosa, que foi publicada em 1962 e aborda uma temática que permite

observar aspectos da loucura nos personagem que compõem a história.

Inicialmente, o narrador do conto relata a reunião das pessoas da cidade, que se

põem à espera de Sôroco “[...] de ajuntamento, em beira do carro” (ROSA, 1988, p.18).

Sujeito estranho, que chega à estação a conduzir duas loucas, que serão embarcadas no

trem que as levarão para hospício: “A mãe [...] de idade, com para mais de uns setenta.

A filha [...] só tinha aquela (p. 19). “[...] Afora essas, não se conhecia dele parente”

(p.19).

A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os

espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de

admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma

carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas

roupas ainda de misturas, tiras e faixas, dependuradas [...] A

velha só estava de preto, com fichu preto, ela batia com a

cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se

assemelhavam. (ROSA, p. 19).

Como escreveu Perrone – Moisés (2002, p.213) a “„loucura‟ assusta e fascina”.

Segundo ela, as pessoas da comunidade ao se reunirem para assistir ao fato, portam-se

como curiosas, mas também temerosas, não das loucas, mas da loucura. Por esse

motivo, tomam distância, “cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo

mais do que os outros o acontecer das coisas” (ROSA, p.18), talvez uma maneira de

manterem suas máscaras, se defenderem da própria “loucura”. Pois, de acordo com

Perrone-Moisés, é impossível estabelecer limites entre esta e a sanidade mental.

No texto, Sôroco porta-se como um ser desterrado, parece um ser alheio ao

mundo à sua volta. Aparenta assumir em sua vida, sentidos que não são parecidos com

os do senso comum. “[...] homenzarrão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma

barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam

medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava”

(Rosa, 1988, p.18).

Diante da loucura da sua mãe e sua filha, e dos cuidados que a elas dedicou por

longos anos, Sôroco pode ter se transformado em um sujeito associal; seja por sentir-se

excluído pela função que assumia; de cuidador de loucas, ou por parte da população.

Page 31: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

[...] De antes Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de

morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram,

ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi

preciso.Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as

providências de mercê. (ROSA, p.19-20).

Pode ter sido este motivo, que o levou a separar-se das duas. Quiçá, ele seria o

que de fato se apresentava, alguém que vivia com uma ausência, o oco da solidão de ser

sozinho mesmo acompanhado. Diante da sua condição, as pessoas o enxergavam em

uma transcendência marginal, do estranhamento. A auto anulação para cuidar da sua

mãe e sua filha, levou Sôroco à necessidade de assumir seu verdadeiro eu. Decisão que

lhe provocará efeitos. Ao embarcar no trem sua mãe e sua filha, ele irá deparar-se com

um novo destino, que poderá mudar sua vida definitivamente. Circunstância que o

insere em uma possível crise existencial. Ser, ou não ser?

Sôroco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de

chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais

espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de

poder falar algumas palavras. Ao sofrer a assim das coisas, ele,

no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixas, exemploso. E

lhe falaram: „o mundo está dessa forma...‟ (ROSA, 1988, p.21).

Nesse momento, abre-se um abismo em sua vida, limites que marcarão a divisão

entre o ter uma família, uma referência e o passar a viver sem ela. Já foi citado nesse

trabalho, que todo sujeito carece de integração com o meio, no qual pode manifestar

seus pensamentos, suas emoções e criar laços fraternos, os quais resultam da aceitação

do sujeito em um determinado grupo, no qual ele forma uma idéia de si, e pode se

manifestar no meio social. No entanto, depara-se com retratos da exclusão; a separação

entre o lugar em que mora Sôroco “[...] Apontavam, da Rua de baixo” (ROSA, 1988,

p.19), e a estação, onde as pessoas estão reunidas, remetendo à distância entre a

normalidade e a loucura.

Page 32: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Segundo Perrone-moisés ( 2002, p. 213), as loucas, retratam “um constado de

enormes diversidades desta vida”. Diante disso, encontra-se nos comportamentos das

“loucas” sinais de humanidade; diferentes das pessoas que se reuniram à parte para

assistir ao embarque das mulheres - porfiando, cada um em sua “sensatez”. Estas,

apesar da condição, demonstram compreensão e afeto.

A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara

dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo,

mas representava de outras grandezas, impossíveis. Mas a gente

viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento

muito antigo – um amor extremoso (ROSA, p. 20)

Deste comentário e da situação a qual enfrenta o personagem Sôroco, visualiza-

se uma cena possível de ser encontrada nas sociedades reais. O preconceito, e o

distanciamento social provocado pela marginalização. As pessoas costumam se apoiar

em suas máscaras, (des)constroem o outro, para esconder suas verdades. Contata-se,

pois, a existência das margens; duas margens: a dos “loucos”, e a dos que acreditam

serem normais, que se põem a assistir o acontecido, ao longe.

A decisão de Sôroco foi muito difícil para sua vida, ou existência. Deixar partir

as únicas pessoas com quem ele estabelece relações sociais, o que poderá aumentar

ainda mais o seu viver solitário. Estranho e silencioso possuía interrelações quase nulas

- que giravam em torno da mãe e da filha, loucas, das quais ele cuidava. Encontra-se

(des)construído, enfrenta uma divisão existencial.

[...] se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou,

para ir‟s embora. Estava voltando para casa, como se estivesse

indo para longe, fora de conta. Mas, parou. Em tanto que se

esquisitou, parecia que is perder-se de si, parar de ser. Assim,

num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se

podia prevenir [...] num rompido -ele começou a cantar, alteado,

forte, mas sozinho para si – e para a cantiga, mesma, de

desatino, que as duas tinham cantado (ROSA, 1988, p. 21).

Inicia-se um confronto por parte do personagem com o seu eu, assume um

comportamento semelhante ao das loucas. A partir desse momento; no conto, percebe-

se que Guimarães Rosa tematiza, não só a loucura e o comportamento das pessoas em

Page 33: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

relação a ela, mas, também a vida humana como uma loucura. Esta que era observada à

distância pelo povo, apossa-se de todos:

A gente se esfriou, se afundou – um instanteo [...] e foi sem

combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de

uma só vez [...] principiaram também a acompanhar aquele

canto sem razão. E com as vozes tão latas! Todos caminhando,

com ele, Sôroco, e cantando que cantando, atrás dele, os mais

detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de

não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

(ROSA, 1988, p.21)

Em uma atitude, aparentemente irracional, forma-se uma procissão atrás de

Sôroco, e, conforme escreve Cezar & Santos (2003, p.27) é da “ Rua de Baixo” que

aponta a família. E, na “Rua de Baixo” que o conto termina, colocando fraternalmente

toda comunidade, inclusive Sorôco [...] “a assumirem agora a loucura da qual tanto

tinham querido proteger-se”. Como se nesse momento, em uma “atitude solidária” todos

ousassem assumir também sua própria loucura, mas ao retornar para suas casas,

retomariam seus comportamentos convenientes aos padrões sociais; nos quais a loucura

é proibida.

Confunde-se loucura e sanidade, confirmando que não há limites entre uma e

outra, tanto Sôroco, como a população daquela comunidade, por um momento,

atravessam as margens que cotidianamente são intransponíveis. Alienam o tempo,

rompem as fronteiras sociais, os limites entre as ruas de baixo e de cima, quiçá o que

controlava a passagem da loucura e da sanidade. Confirmando o que citou Perrone-

moisés (2002), é a constatação da enorme diversidade que a vida apresenta.

O personagem pode ter assumido a “loucura” que ele guardou por muito tempo,

manteve-se “são”, para cuidar de seres que dependiam dele – sua mãe e sua filha.

Contudo, a cantiga destoante que iniciou com as duas loucas, foi assumida por Sôroco, e

logo por toda a gente, revelam como o homem, em situações diversas pode contrariar

valores, ou princípios, e exteriorizar, o que lhe foge do controle.

3.1 A terceira margem do pai: a (re)ssignificação do sujeito.

Page 34: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

O conto A terceira margem do rio, que compõe a obra Primeiras historias, de

Guimarães Rosa, publicado em 1962, narra a história de um homem comum, “[...]

cumpridor, hordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho [...]” (ROSA, 1988, p. 32),

que manda construir uma canoa, e, num certo dia, sem apresentar razões, abandona

esposa, filhos e a vida social para viver sobre as águas do rio, dentro da canoa.

Este sujeito abre mão das relações sociais, das amizades, do cotidiano e

principalmente da sua família, para isolar-se dentro dessa canoa até o fim. Um

rompimento que inquieta o leitor. Como um homem cumpridor, ordeiro, positivo desde

menino, pode trocar uma existência aparentemente significativa, por outra,

aparentemente sem coerência?

Parece que Guimarães Rosa quer representar a complexidade da existência

humana. Nesta condição, visualiza-se na aventura do personagem, uma travessia quase

inexplicável, repleta de significações, que reclamam por tradução. Ao despertar para

isso, o leitor surpreende-se envolvido com a trama. Segundo Cortazar (1993, p. 126)

“No decorrer da leitura, não podemos evitar uma profunda experiência emocional”.

Faz-se necessário, questionar a margem onde o pai passa a habitar. Logicamente

só existem duas margens no rio, esquerda e direita. No entanto, ele cria uma margem

entre as margens; a terceira margem. Nesta, sobre o movimento das águas, estabelece-

se sem nunca determinar um destino. “Só executava a invenção de se manter naqueles

espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca

(ROSA, 1988, p.33)”.

Ao se manter até o fim da vida naquele lugar o personagem estabelece um

entrelugar, que é o entrelaçamento, confronto, mesclagem, (SANTIAGO, 2000) de

inúmeros elementos e aspectos individuais e coletivos da estrutura social e da natureza

humana. Entende-se que, ao constituir ou instituir outro lugar ele assume também novos

comportamentos, e altera os de quem vive ao seu redor bem como o ambiente que

abandona. Esse contexto pode ser transportado para margens do mundo real, nas quais

vivem ou são obrigados a viver, alguns indivíduos. A vida atual impõe às pessoas uma

contínua mudança de costumes e situações no ambiente social.

Segundo Bauman (2007, p. 8) “A „comunidade‟ [...] parece cada vez mais

destituída de substância [...] os laços inter-humanos [...] se tornam cada vez mais frágeis

e reconhecidamente temporais”. O homem, ao viver em insegurança constante, precisa

mudar de atitudes, parar, refletir e compreender o que acontece no mundo. Carece de

pontos de referências que lhe garantam sossego interior.

Page 35: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Dessa forma, o personagem pai de A terceira margem do rio, parece que deseja

partir desse mundo inseguro “líquido” (BAUMAN 2007). E, em uma atitude

aparentemente insana, opta por viver na solidão e no silêncio. Desliga-se da estrutura

social, das pessoas e da família para atingir seu objetivo indecifrável. Como a literatura

estabelece um diálogo com as relações sociais e transforma em histórias as experiências

humanas, traduz-se pelo viés da metáfora, que a experiência do personagem, pode se

tratar dos conflitos existenciais do homem com o meio e com ele mesmo.

De acordo com Judite Grossmann (1982, p.67) “Essa situação do discurso

literário, imita e acentua a situação universal do homem, que tem a realidade

fragmentariamente, através da linguagem”. O personagem – o pai, homem cumpridor,

hordeiro, positivo, parece também em sua mudança de vida, querer transmitir alguma

mensagem ao seu filho e àqueles que ficam.

O contínuo processo de mudança em que o homem está sujeito, o coloca na

condição de viajante em direção a novas experiências e passagens. Para Oliveira (2010,

p. 54), “Antes de ser uma partida em busca de conhecer ou reencontrar lugares ou

pessoas, a viagem é primordialmente um encontro do viajante com ele mesmo”. Sperber

(apud, Oliveira, 2010, p. 54) escreve que nestas “viagens”, o espaço se abre, amplia-se e

se renova, e, à proporção que o espaço se desenvolve, desenvolve-se também o

psicológico do sujeito.

Conforme escreve Ettore (2001, p. 45):

O eu da terceira margem do rio, é de fato aquele que com mais

clareza entrevê a resposta, e chega a isso justamente

“instalando-se” [...] na própria pergunta; colocando-se para

sempre naquela dobra infinita, enrugando o tecido da existência

[...] distinguindo na sua contiguidade o aquém do além.

O pai pode desejar instituir o novo, despertar os que ficaram nas outras margens

para a condição existencial, e para a necessidade de o sujeito assumir a sua

individualidade diante dos desafios da vida e dos conflitos interiores. Segundo, Bonder

(1999, p. 46), “surpreender é [...] a maior prova de poder do ser humano”. Surpreender

os outros, mas também a si mesmo. Fazer o que ainda não foi feito. Transgredir, para

transformar.

Page 36: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Para esse autor, a consciência humana sabe que deve transcender à moral,

romper com a tradição. Esta é a lei da vida para que seja constituído o novo e a espécie

tenha sua continuidade. Ser em certa medida, “imoral”. Desconstruir padrões. Ainda

segundo Bonder (1999), esta é uma atitude louvável, à medida que a transgressão

promove transformações, mudanças de comportamento, de linguagem, pensamento e

atitudes positivas nas outras pessoas e nos valores preestabelecidos.

O universo que o pai passa a habitar além de exigir coragem e desbravamento.

Reclama por tradução.

De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas

friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu

velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem

fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas

beiras, nem ilhas e coroas do rio, não pisou mais em chão nem

capim (ROSA, 1988, p. 34).

Nesse contexto, chama-se atenção para o que ocorre no espaço que o pai

abandona. Sua partida causou certa desordem no cotidiano da família, dos vizinhos e da

região. Incitou mudanças de comportamento, pensamentos e atitudes em quem ficou nas

margens do rio.

As vozes das noticias se dando pelas certas pessoas –

passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda

– descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em

ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava o

rio, solto, solitariamente (ROSA, p. 33).

Tiveram aqueles que se comoveram: “os parentes, vizinhos e conhecidos [...] se

reuniram, tomaram juntamente conselho (ROSA, p.34)”. Quem veio ajudar a família:

“[...] o tio [...] para auxiliar na fazenda e nos negócios (p.34)”. Quem tentou promover a

situação: “[...] homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato

dele (p.34)”. Quem se mudou: “minha irmã [...] com o marido para longe daqui. Meu

irmão resolveu e se foi, para uma cidade [...] minha mãe terminou indo também (p.

35)”. E, como ocorre no mundo real, houve quem julgou; “[...] todos pensaram de nosso

pai a razão em que não queriam falar: doideira (p. 34)”.

Page 37: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

O comportamento transgressor daquele pai, ao diferir dos padrões comuns,

entrou para a categoria de loucura. Foucault (2002, p.170) escreve que em estado de

loucura “o sujeito cobre uma superfície de linguagens que jamais é fechada, e onde os

outros vão poder intervir por sua [...] decisão obstinada de tudo alterar”. Segundo esse

autor, o sujeito “normal” integra-se naturalmente com as atividades da linguagem, do

trabalho, da fala, da reprodução social, do lúdico, etc. Aquele em desequilíbrio

transgride tais padrões e regras definidas socialmente. Por essa razão, o personagem de

A terceira margem do rio pode entrar nessa categoria, embora ele transcenda estas

possibilidades.

Para mim, não é doideira, nem transcendência, nem outra vida

na dimensão metafórica destes últimos termos. Acho que a fuga

se deve a uma insatisfação com o mundo, não no sentido moral

dessa colocação, mas com o mundo que o homem constrói

enquanto possibilidade de construção social, de troca de valores.

(GOULART, apud PARREIRA, 2001, p.8)

Para Bonder (1999, p.82) “aquele que não faz uso de todo o potencial de sua

vida, diminui de alguma maneira o potencial de todos os demais”. Conforme escreveu

Ettore (2001), o comportamento do pai aparenta existir um excesso de lucidez que

desvia pra a loucura. Seu comportamento incompreensível ultrapassa a capacidade do

outro de entender e poder tomar alguma atitude para ajudá-lo, ou ter uma idéia clara da

situação. “[...] o personagem é apenas a função que ele preenche: a de verificar, no seu

ficar teimoso e instável [...] no seu precário ancorar-se numa realidade virtual, numa

verdade “terceira” [...]” (ETTORE, 2001, p. 46).

Segundo Caldas (Ano I, p. 33-37) ninguém é terminado, e, é exatamente no fato

de nenhum ser estar terminado, que se encontra o belo da vida. O homem, seja em

qualquer momento histórico, ou sociocultural, está sempre a despertar atenção, provocar

encanto ou indignação. Atitudes que provocam transformações no ambiente social e nas

outras pessoas em algum aspecto.

Em A terceira margem do rio, depara-se com um contraste entre as

características pessoais de cada indivíduo; enquanto o pai ousa atravessar as margens, à

vida e a si mesmo, o filho – o narrador da história - teme e estaciona em uma margem, a

observar a passagem do tempo na (in)ação, sem ressignificar seu existir.

Page 38: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Caldas (Ano I p. 33-37) escreve que um dos grandes norteadores da produção

rosiana, é transmitir pela linguagem o aprendizado da vida. Apreende-se, entre as

diversas possibilidades de interpretações do conto, que a travessia desse personagem - o

pai, com o estranhamento provocado, anuncia a necessidade de cada sujeito encontrar-

se consigo mesmo. Silenciar e retirar-se em certa medida para evitar insensatez.

Conclui-se que o rio e as margens podem representar a vida. O homem é

responsável por significá-los. Existem diversos rios para se atravessar e inúmeras

margens a serem ocupadas. Há quem permanece na margem da rotina, que é levado por

outros a alguma margem. Há quem fica ao sabor das águas, quem enlouquece por não

saber, ou temer navegar, e quem se posiciona com indiferença. Mas, há também

aqueles que se colocam sobre a sua margem, tomam sua canoa, assumem a direção e,

em seu silêncio, cumprem a missão, ou a escolha. Aventuram-se na travessia,

desbravam novas possibilidades e (re)significam a vida o rio e as margens. Encontram-

se com seu verdadeiro eu.

A opção feita pelo pai instituiu o diferente, pois ele quebrou regras, instaurou o

novo e transformou o ambiente à sua volta, ainda que ninguém tenha obtido explicações

a respeito da decisão de (re)significar a sua vida, seja por loucura ou por sanidade. Ao

estar no meio do rio, introspectivo, o pai poderia desfrutar da visão ampla dos dois

lados, acompanhar a mudança das pessoas e do ambiente com o passar do tempo.

Poderia ou não, optar pelo retorno a uma das margens. Mas, não o fez

Assim, ainda que não tenha deixado herdeiro da sua missão, já que seu filho não

ousou assumir seu lugar. Surpreendeu certamente a si mesmo, pela resistência, pela

coragem e determinação em superar os limites. E muito mais aos outros, pois

estabeleceu um novo lugar, do ainda não experimentado. Recusou a viver na margem.

Assumiu a sua verdade, envolvido em sua solidão. Ao “sentir- se”, (des)fragmentou-se e

(re)significou-se.

3.2 A margem do filho: escolhas do sujeito.

Em A terceira margem do rio, depara-se com um contraste. A resistência às

margens a que pai e filho optaram viver. Ao pai, coube a escolha de viver entre

margens, numa teima persistente. Ao filho a escolha de se por à margem na condição de

Page 39: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

um ser deslocado, apesar de permanecer na margem do rio a relatar o que ocorre com

ele mesmo, com seus familiares, com os que o rodeiam, bem como sua experiência com

seu pai, que se dá pelo silêncio.

O pai a quem o filho devota seu tempo e sua vida permanece inacessível. “Nosso

pai, passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém

chegar à pega ou à fala (ROSA, 1988, p. 34)”. Este, a quem cabe, segundo o modelo

culturalmente estabelecido, transmitir e ensinar aos filhos conhecimentos sobre a moral

e os valores sociais, recusa-se a fazê-lo. Ele se importava apenas com sua travessia

pessoal, quem quisesse fazer tal experiência que seguisse seu exemplo.

O pai ao negar tal partilha com o filho, talvez desejasse que este o seguisse,

construísse sua canoa para acompanhá-lo na travessia da terceira margem. Ou pode tê-lo

deixado livre para fazer a escolha de sua viagem, de sua travessia pela vida. O filho,

porém, optou por se estabelecer na margem a uma espera sem fim, alimentando-se de

um passado, “[...] no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava:

assunto que jogava para trás meus pensamentos” (ROSA, p.34). Nesta condição não se

dava conta do passar dos anos. “Eu fiquei aqui, de resto [...]” (p.35). Isto é, ele

permaneceu como narrador da travessia do pai, e não da sua. Segundo Oliveira (2010, p.

54)

Antes de ser uma partida em busca de conhecer ou reencontrar

lugares ou pessoas, a viagem é primordialmente um encontro do

viajante com ele mesmo, com identidades e diferenças, nas

relações que estabelece ao longo do caminho.

Ao estabelecer-se em uma das margens, com pouca integração e interação, este

filho, narrador, anulou-se para os padrões de convivência sociocultural, posicionou-se

como um tradutor de silêncios e dos mistérios da vida do seu pai, que não volta, não se

comunica, não altera o comportamento. “Só executava a invenção de permanecer

naqueles espaços do rio, de meio a meio sempre dentro da canoa, para dela não saltar

nunca (ROSA, 1988, p. 33)”.

Este filho se debruça sob a perda e a longa e diária jornada de voltar à margem

do rio, para colocar alimento “Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto

de comida [...]” (p.33). Acompanhar os movimentos do pai, “[...] o severo que era, de

não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava [...]” (p.34). Tentar encontrá -

Page 40: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

lo, “[...] a gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu” (p. 35). Aprisiona-se nas

tentativas de compreender a decisão do pai. Parece não importar-se com a mudança de

condição e lugar das pessoas. “Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos

[...] Eu fiquei aqui, de resto. [...] Eu permaneci com as bagagens da vida” (p.35). Seu

comportamento é tão estranho quanto o do seu pai. Contata-se que em algum momento

o filho declara uma verdade, sobre seu pai, “Nem queria saber de nós” (p.35).

Não existe lógica em uma pessoa permanecer por muitos anos dentro de uma

canoa pequena, sem descer a terra. “[...] na vagação, no rio, no ermo – sem dar razão de

seu feito” (p.36). Ainda assim, em uma decisão que parece insana este permanece na

espera do pai. Nessa condição, narra o seu drama, a trama do pai, e a própria condição

medíocre da qual lamenta, depois que lhes apontam “uns primeiros cabelos brancos [...]

Sou homem de tristes palavras” (p.36). Pode-se inferir que o personagem, demonstra

certa incapacidade ou impossibilidade de assumir sua individualidade para enfrentar

desafios e novas possibilidades; experimentar a novidade criada pelo pai, que é viver

entre margens, sobre as águas do rio. Nesse contexto, percebe-se a diversidade dos

temperamentos humanos. Como cada pessoa reage em determinadas situações da vida.

Possui limitações e (in)capacidades de construir ou não uma canoa para assumir a sua

terceira margem.

Para Bonder, (1998, p. 47- 48):

Todos nós deparamos com lugares estreitos em determinado

momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso

desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e

limitadores. [...] O corpo não gosta de sair, de mudar. São a

estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe

saída.

O espaço vazio, causado pelos silêncios, cria margens que apontam para a

necessidade de sempre haver entre os homens algum tipo de linguagem que promova a

comunicação. “Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse

as coisas fossem outras” (ROSA, p. 36). O filho, à mercê do pai, paralisou sua vida,

vive sem sonhos, e com muitas ilusões, não foi capaz de vê a si próprio, anulou-se.

Fixou-se na margem. “E fui tomando idéia. [...] Sou doido?” (p. 36).

Page 41: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

O filho deveria ter aprendido que certas experienciais, quando não

compartilhadas, não podem ser contadas. “Mas por afeto mesmo, de respeito, sempre

que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: “-

Foi meu pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas,

que era mentira por verdade” (ROSA p. 35).

O homem precisa pensar e refletir sobre as mudanças que ocorrem no mundo e

no ambiente social. Atitude que o ajudará a compreender os acontecimentos que alteram

valores costume e estilos de vida. Encontrará, portanto, respostas que o ajudem a

interpretar a complexidade do mundo, da vida, e sinta-se seguro de si e no espaço em

que habita. Do contrário, terá “uma vida precária, vivida em condições de incerteza

constante. (BAUMAN 2007, p. 8). Terá uma vida líquida. “Sou homem de tristes

palavras. De que era que eu tinha, tanta culpa?”(ROSA, p. 36). Sua libertação interior

poderia ter ocorrido ao cumprir sua promessa: “Agora o senhor vem, não carece mais...

[...] eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...”(p. 36). Contudo, sofre as culpas de não

ser capaz de trocar de lugar com o pai. “Sofri o grave frio dos medos [...]” (p.37). Após

a longa espera pelo aparecimento do pai, a imagem que surge o amedronta. “[...] depois

de tamanhos anos decorridos! [...] ele me pareceu vir: da parte do além. E estou

pedindo, pedindo, pedindo um perdão” (,p.37).

Destaca-se o contraste do conto; um pai que ousou e um filho que temeu. O

filho teve oportunidades, de experimentar o lugar do pai, e talvez viver a sua travessia.

Mas, quando prestes a fazer a troca para decifrar tal experiência, ou encontrar o sentido

do seu existir, vira as costas.

Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do

mundo. Mas, então, ao menos, que no artigo da morte, peguem

em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa

água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,

rio a dentro – o rio (ROSA 1988, p. 37).

Na sua longa espera, deixou de viver a sua vida, não se reconhece mais, ficou

perdido nas margens do seu próprio existir. Diz o bom senso: “quem toma distância

para olhar, consegue ver melhor”. Aquele filho não foi capaz de assumir o seu processo,

apesar de ficar na posição de observador e narrador, distante de tudo. Excedeu-se em

Page 42: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

apenas observar, perdeu-se na (in)ação, perdeu-se a si mesmo, perdeu também a chance

de mudar de lugar.

O pai volta, apenas quando o filho decide tomar seu lugar.

Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à

popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei o

que me urgia, jurado e declarado. [...] Ele me escutou. Ficou em

pé. Manejou remo n‟água, proava para cá, concordado. [...] ele

tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro,

depois de tamanhos anos decorridos! (ROSA 1988, p. 37).

O silêncio mantido por tantos anos pode ter sido de espera persistente, para que

alguém se oferecesse a experimentar tal travessia. Quiçá, seja também essa terceira

margem, um lugar de silêncio, de meditação, de encontro com o verdadeiro eu. Faltou

ao filho problematizar sua vida, sua rotina, seu cotidiano. Ele perdeu-se na espera e não

se deu conta da possível intenção do pai. Viveu uma vida sem sentidos, enquanto o pai

na ausência foi capaz de „dizer‟ tanto. Não assumiu o compromisso com a sua

existência, nem a (res)significou. Permaneceu estagnado diante da mobilidade social.

Não compreendeu nem assumiu a missão.

3.3 Travessias e deslocamentos: a integração dos sujeitos com o meio e consigo

mesmo

O conto reproduz instantes da condição humana, e, em vista das situações

significativas que apresenta em seus textos, desperta no leitor, inúmeras sensações.

Segundo Cortázar (1993, p. 151-2) no conto, é possível fazer um recorte como faz um

fotógrafo, numa obra de qualidade; estabelece e fixa um limite para um determinado

momento ou acontecimento, que sejam capazes de envolver a razão e a emoção do

leitor.

Em Sôroco, sua mãe, sua filha e A terceira margem do rio, Guimarães Rosa ao

apresentar aspectos que retratam a essência humana e o mistério do existir no mundo,

aponta para a necessidade que tem o sujeito de se posicionar diante dos outros e no

ambiente social com autonomia e equilíbrio interior.

Page 43: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

Em cada época da história a vida é percebida e vivida por vieses que

correspondem à realidade contemporânea. Ao longo do tempo as sociedades

problematizam a existência humana, as relações sociais e a realidade, de formas

peculiares. Na literatura rosiana encontra-se essa possibilidade. As alterações sociais,

podem (des)fragmentar e por em jogo o modelo de identidade constituído e modelado

com a extensão do tempo, e podem ocasionar crises identitárias no sujeitos.

Segundo Giddens (2002, p. 50):

A “luta do ser contra o não ser” é a tarefa perpétua do indivíduo,

não apenas “aceitar” a realidade, mas criar pontos ontológicos

de referência como parte integrante do “seguir em frente” no

contexto da vida cotidiana.

Portanto, conforme Bauman (2007, p. 20) este sujeito deve.

[...] procurar, encontrar e praticar soluções individuais para

problemas socialmente produzidos [...] tentar tudo isso por meio

de ações individuais, solitárias, estando munido de ferramentas e

recursos flagrantemente inadequado para essa tarefa.

A identidade de um sujeito se constitui a partir da capacidade de inserir-se e

comportar-se no ambiente, à medida que vai elegendo um estilo de vida, de valores e

escolhas. A nova rotina estabelecida na sociedade moderna pode causar uma ruptura

com o passado, um rompimento com as tradições. Por essa razão, o personagem

rosiano, o pai, pode ter se inquietado, e se retirou para responder às perguntas - quem

sou, e o que quero para mim - diferente do filho, que não se inquietou. Tardou-se em

refletir sua condição, em fazer e responder suas perguntas. Não seguiu o exemplo do

pai. Deixou de ser ele mesmo, tornou-se “mais um” no mundo. Sem referências, não

dimensionou a sua identidade, nem (re)construiu seu eu.

As organizações sociais direcionam ou classificam as escolhas individuais e os

padrões de comportamento dos sujeitos como aceitáveis ou não. Contudo, no momento

atual, elas se tornam cada vez mais inconsistentes. Ao passo que os espaços se ampliam

e as informações se disseminam rapidamente pelo mundo, cria-se uma

intercomunicação em todos os ambientes e classes sociais. Diante desse sistema social,

com amplas opções de escolhas, cada vez mais o homem vê diminuída sua capacidade

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de ação. “[...] experimenta sentimentos de impotência em relação a um universo social

cada vez mais amplo e alheio” (GIDDENS, 2002, p. 178).

Segundo Bauman (2007), o momento histórico no qual se vive, gera muita

insegurança existencial. O bombardeio de informações, o sensacionalismo da mídia com

o foco em tragédias, violências e miséria, a cobrança do mercado pelo corpo perfeito,

pela alimentação saudável e vida longa, desencadeiam medo e pânico, porque não pode

acompanhar tal excesso de cobranças.

Os sujeitos, independentemente da situação cultural ou posição econômica,

sentem-se obrigados a atenderem às demandas universalizadas que lhes chegam. De

acordo com Bauman (2007, p. 18) isso faz “[...] o mundo parecer mais traiçoeiro e

assustador, e estimulam [...] ações defensivas – que vão, infelizmente, acrescentar vigor

à capacidade do medo de se autopropagar [...]”. Situação angustiante para alguns

indivíduos. Provoca tensões que fazem com que reajam e lutem contra essa realidade.

Enquanto outros poderão surtar, entrando em crise existencial.

Mergulhado nessa “liquidez” (BAUMAN, 2007), o sujeito entra em choque com

o que deseja e pode fazer e o que consegue e deve fazer. Apesar de mais autônomos,

livres para fazer escolhas e assumi-las, depara-se com uma liberdade deslocada, rompe-

se com modelos e valores constituídos ao longo do tempo. “As velhas identidades, que

por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas

identidades, fragmentando o indivíduo moderno. (HALL, 2006, p. 7)”.

O caminho do autoconhecimento é sempre longo e difícil, é necessário possuir

ou conquistar autoconfiança e vencer os próprios medos. É sabido que todo sujeito

teme. Mas, enquanto alguns possuem coragem para assumir os desafios da jornada

pessoal, outros necessitam de força, são reféns do medo e da insegurança.

De acordo com Bauman (2007), o modelo social moderno, preza que os

indivíduos aprendam a ser flexíveis, pois os padrões de comportamento fixados com

tempo já não servem mais. Deve-se preocupar com ações adequadas para o momento de

agora. Para Giddens (2000, p.40), nessa condição, “A atitude natural põe entre

parênteses perguntas sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o mundo dos objetos,

que devem ser dadas como respondidas para que se possa enfrentar o cotidiano”. Esse

autor ainda trata que, se o sujeito não resolver suas questões existenciais, não manterá o

controle psíquico nem conseguirá viver normalmente.

Giddens (2000, p. 72) ainda escreve que o individuo deve enfrentar os riscos

que surgem com as rupturas aos padrões de comportamento estabelecidos. Assumir a

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própria vida, que envolve correr riscos, implica enfrentar a diversidade, as travessias.

Que podem resultar em perdas e ganhos. Para esse autor (2000, p. 72) “É a coragem de

enfrentar os riscos que levam à autorealização”.

O homem, inserido no ambiente social e real, em constante transformação,

depara-se com o processo contínuo de (res)significar a sua existência. Diante das

mudanças que podem ameaçar a sua identidade e interferir na sua travessia pela vida,

precisa ficar atento, envolver-se, questionar-se, tomar distância, e medir as

consequências. Assumir novas atitudes, ou com medo de si e dos outros ficar estagnado

enquanto o tempo e a vida passam.

Nesse contexto, o texto de Guimarães Rosa, com seus múltiplos sentidos,

permite que se transporte a experiência dos personagens para a do sujeito real. O

encantamento provocado pela obra transcende as significações, move o leitor a fazer

suas travessias e sondar as margens onde habita. Contudo a vida é uma constante, as

margens se transformam com o tempo e demandam novas travessias. Cabe a cada

sujeito, preparar-se física e psicologicamente para fazer sua própria viagem. Que é uma

descoberta de “mundos”, em que o sujeito depara-se com as próprias mudanças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certa da quantidade de trabalhos existentes sobre o conto Sôroco, sua mãe,

sua filha e A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, empenhei-me na tentativa de

produzir um trabalho autêntico. Claro, foi necessário buscar embasamentos no que já foi

produzido sobre esta obra e, em diversos autores, necessários para a articulação do meu

texto e justificar meus pensamentos.

Contei com a ajuda da minha orientadora, que acreditou e me permitiu transitar

entre as linguagens das quais me identifico. E, também, a ajuda de amigos, que se

tornaram um grande auxílio para transformar este texto numa escritura melhor e mais

original, segundo os princípios estilísticos.

Assumi os riscos de fazer uma travessia literária, e passei a percorrer os

caminhos oferecidos pelo texto rosiano, o que se transformou em um grande

aprendizado, exigiu-me sentir a força das palavras. Foi necessário partir com os

personagens, viajar na história, para assim, perceber os elementos que brotavam do

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texto de narração singular e de extrema solidez nos entrelaces linguísticos, com nuances

indefinidamente sagazes para o processo de fruição de leitura.

Foi a partir desse encantamento que me identifiquei com o conto. Inicialmente,

me chamou atenção pela sua carga semântica. Em seguida contagiou-me, do modo

como Cortazar postula-os (1993, p. 126), “Se cada conto começa por interessar a

inteligência termina apoderando-se da alma”.

Guimarães Rosa, ao permitir que seus personagens procedam de uma forma

singular, liberta-os ou aprisiona-os nos limites da razão. A partir dos personagens

aparentemente não analisáveis, bem como o espaço que habitam. Assumi a

responsabilidade de desconstruir o texto, sem, contudo, anular a sua essência. A

travessia dos personagens despertou-me para situações em que se deparam os sujeitos –

reais no processo de aprendizado existencial e, foi sobre estas situações e verdades que

passei a me debruçar.

Durante o processo de construção do trabalho, mostrei que apesar de

polissêmico e descontínuo, o texto literário é capaz de conduzir o leitor às dimensões

históricas, socioculturais e existências do homem. Ao desconstruir o texto - apoiada nos

autores pesquisados, fui descobrindo os impasses que permitiram novas hipóteses para o

mesmo.

Mostrei como as transformações sociais interferem na idéia que o sujeito

possui de si. (Des) constroem referências que podem fazê-los tomarem decisões que

fogem dos padrões sociais e provoquem exclusão. Atos que entram na categoria de

loucura, e no texto configuraram-se como uma metáfora da busca existencial do sujeito,

que para assumir seu verdadeiro eu, age de forma diferenciada, transgredindo os

padrões de normalidade.

Portanto, o presente trabalho teve por objetivo, apresentar a relação da obra

literária com a história, com as relações sociais e as experiências humanas. Tomando-se

como base nos contos rosianos para tratar das possíveis razões que levam o sujeito à

fragmentação interior, bem como sua jornada ao encontro de si mesmo.

Page 47: Travessias identitárias de deslocamentos dos sujeitos na literatura risiana

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