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Trecho do livro "Uma visao do fogo"

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Prólogo

Balançando delicadamente sob a lua cheia, o navio de pesquisa da Falkland Petróleo Avançado estava ancorado ao porto de Stanley. Seu casco, desgastado pelas intempéries após três semanas no mar, seus sen-síveis sensores debaixo do convés haviam sido chacoalhados pelas ondas implacáveis , e o geólogo chefe estava exausto.

Mas, ao inclinar-se sobre a pequena mesa do laboratório em sua cabine dianteira, o Dr. Sam Story não conseguia parar de olhar para uma rocha puxada de uma saliência em alto-mar pelo guincho subma-rino, movido por controle remoto, em seu último dia no Atlântico Sul. A pedra prateada cabia na palma de sua mão e tinha mais ou menos a forma e a espessura de uma carta de baralho. Ele a examinou por mais de uma hora com uma lupa, movendo lentamente a lente para cima, para baixo e para os lados; o geólogo de 53 anos de idade estava achando di-fícil aceitar o que via.

Por fim, o homem ajeitou-se no banco, piscou os olhos cansados , e acionou um pequeno gravador de áudio.

– Amostra E-33 – entoou com cautela. – Definitivamente parece com um fragmento de meteoro palasita. E, pelo que observo, as marcas de lascas na parte de trás indicam que o fragmento foi arrancado à mão de uma pedra maior. No entanto...

Ele pôs a pedra cuidadosamente sobre uma faixa de algodão que havia colocado na mesa e vestiu suas luvas de látex. A relíquia fora lava-da pelas águas congelantes durante séculos, talvez milênios, e superfí-cies ásperas e óleos corporais poderiam causar mais danos.

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O Dr. Story olhou de novo para a pedra e observou o símbolo que nela brilhava de forma sutil.

– Na outra face, estão traçadas quatro formas triangulares dis-postas como uma pirâmide – gravou ele. – Cada triângulo é formado por três arcos entrelaçados, com arcos pequenos e estendidos nos três vértices. Esses pequenos parecem ter, na verdade, o formato de garras ou presas. Não há garras nos cantos do triângulo central. Não faço ideia de qual seja o significado ou a função disso.

Ele se abaixou, olhando fixamente para a pedra.– No que diz respeito ao processo, a largura e a profundidade das

marcas sugerem que elas foram esculpidas por uma ferramenta mais precisa e menor do que a que foi usada para construir a própria relí-quia. Embora haja um bom número de tribos locais que possa ter escul-pido estas figuras, as extremidades das marcações são um verdadeiro mistério.

Pegando a lupa de novo, ele murmurou:– Cada lado de cada entalhe possui um perímetro arredondado

que sugere longos períodos de erosão. No entanto, essas bordas não estão desgastadas de maneira uniforme, mas estão realçadas, como bolhas. Bolhas como estas só poderiam ser geradas por um calor intenso, classe D, no mínimo, e os povos antigos não tinham meios para gerar 1150 graus Celsius.

O Dr. Story sentou, pegou o gravador, e sorriu. O moderno apare-lho parecia estranho e incongruente em suas mãos. Aquele subproduto relativamente sofisticado da tecnologia humana era muito menos inte-ressante do que uma simples pedra que havia sido retirada por acaso do fundo do oceano.

Não, corrigiu-se, isso não é simples. O magma vulcânico poderia chegar àquele nível de calor, mas mesmo isso era incomum. Quando a lava chegava à superfície, sua temperatura ficava próxima de 815 graus Celsius. Ele só havia visto este tipo de fusão e endurecimento em rochas de meteoritos que amoleciam e efervesciam durante sua passagem fla-mejante pela atmosfera e endureciam quando se chocavam com a super-fície mais fria, livre de fricção.

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– Mas isso não explica como os entalhes derreteram – murmurou ele no gravador. – Eles não podem ter atravessado a atmosfera. Isso sig-nificaria que tinham que vir do...

O Dr. Story se sentia cansado. Ele já estava acordado há quase 48 horas. Antes de pensar nas implicações que as evidências sugeriam, precisava de descanso.

Depois que desligou a luminária em cima da mesa, caiu na pe-quena cama embutida na parede. O suave balanço do porto era como um bálsamo após 21 dias em alto-mar. Apesar de uma ou outra pancada súbita no casco debaixo d’água – possivelmente uma baleia-piloto; os cetáceos vinham demonstrando uma surpreendente tendência a enca-lhar –, o cientista adormeceu em instantes.

A porta se abriu e uma figura adentrou o recinto. Ele movia-se em silêncio, cauteloso. O balanço do barco era imprevisível e ele não queria cair em cima da mesa ou da cama.

O homem pousou um estojo de câmera vazio no chão. Guiado pela luz da lua que atravessava uma escotilha, rapidamente recolheu o tablet e o gravador de áudio. Envolveu o pequeno pedaço de rocha com a faixa de algodão e o colocou no estojo.

E então ele se foi, se afastando rápido do cais. Jogou os dois apa-relhos eletrônicos na água, viu-os afundando gorgolejantes sob o luar de marfim, e depois seguiu para o hotel Malvina House.

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Parte Um

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CaPítulo um

Era uma manhã excepcionalmente quente de outubro, mais adequada para um passeio do que para uma caminhada, mas Ganak Pawar e sua filha mantinham seu ritmo acelerado de costume enquanto seguiam em direção ao leste de Manhattan. Representante permanente da Índia nas Nações Unidas, o veterano de trinta anos de corpo diplomático ostenta-va uma estudada expressão de tolerância. A jovem Maanik, de 16 anos, parecia especialmente energizada pelo manto de luz solar que transbor-dava pela York Avenue.

– Papai, a sua apresentação na noite passada foi incrível! – disse Maanik. – Fiquei horas sem conseguir dormir, minha cabeça estava fer-vilhando com tantas ideias.

– Isso é gratificante – respondeu seu pai.– É hora de as pessoas pensarem de forma diferente em relação à

Caxemira, e você deixou claro seu ponto de vista na Assembleia Geral – disse ela. – Fico feliz que a CNN tenha feito a cobertura, foi totalmente inspirador.

– Estou feliz por você se sentir assim. Não estão me agradecendo universalmente por isso.

– Papai, você pisou no calo deles. Isso requer coragem!Ganak sorriu.– Eu “pisei no calo deles”, foi isso?– Você sabe o que quero dizer – disse sua filha, sorrindo. – De

qualquer forma, não seja tão modesto, especialmente agora. Agora é o momento de dar continuidade, com determinação.

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Ganak não tinha certeza se havia sido coragem ou desespero que o fez mostrar o vídeo de uma mãe da Caxemira sacrificando-se sobre seu filho morto. Tensões ocorriam na Caxemira de poucos em poucos anos, mas dessa vez era diferente. Trinta e duas pessoas haviam morri-do em dois dias, e o Paquistão e a Índia estavam mais uma vez brandin-do seus sabres nucleares. Talvez aquela vanglória familiar e cansativa houvesse compelido Ganak a sugerir que fizessem da Caxemira um protetorado da ONU. Se a ONU governasse provisoriamente a região, como fez em Kosovo durante nove anos, o povo poderia ganhar tempo para escolher se queria se juntar a um país ou ao outro, ou optar pela independência...

– Papai?– Sim?– Eu quero te ajudar a dar continuidade – disse Maanik, saltitan-

do com entusiasmo. – Você devia ouvir minhas ideias.Ele sorria enquanto a observava. Sua filha parecia tão madura em

sua jaqueta marrom de couro falso que cobria um vestido azul-escuro. Suas leggings eram douradas e alaranjadas, uma das pernas ostentava listras horizontais, e a outra era um turbilhão com uma padronagem de penas. Ela havia costurado as metades discrepantes por conta própria, combinando com um cachecol dourado e laranja. Ele notou com sur-presa que ela havia começado a fazer as sobrancelhas, e apesar de seu cabelo preto sempre ter sido forte e grosso, o jeito como o arrumou sobre o ombro era uma evolução recente.

Ela é tão diferente de sua mãe, pensou. Quando a família Pawar se mudou de Nova Déli para Manhattan, dois anos antes, e Maanik passou a estudar na escola secundária Eleanor Roosevelt, a menina começou imediatamente a mudar. Enquanto sua mãe, Hansa, era meditativa, Ma-anik pensava em voz alta. Enquanto Hansa planejava, Maanik improvi-sava. Hansa abraçava a tradição, mas Maanik gostava de andar de patins às escondidas com o filho do embaixador canadense. O guarda-costas americano dos Pawar, Daniel – que estava caminhando alguns passos atrás dos dois –, foi incumbido de, clandestinamente, ficar de olho na jovem quando ela não estivesse em casa.

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Ganak não conseguia decidir se estava preocupado por ela ter dado de ombros para os velhos costumes ou se devia se orgulhar por ela estar vivendo a própria vida. Hansa não gostava, mas Ganak não tinha certeza. Suas habilidades diplomáticas eram às vezes testadas em casa de uma forma que poderia rivalizar com a atual crise na Caxemira.

Pensar na Índia e no Paquistão fez que ele parasse de sorrir. Ul-timamente, levar Maanik a pé para a escola era uma das únicas formas de se refugiar.

– Maanik, quero ouvir suas ideias, mas devo adverti-la, às vezes é aconselhável fazer uma pausa depois de um empurrão.

– Como isso pode ser algo sensato? – perguntou a moça. – Se uma coisa está em movimento, por que não mantê-la em movimento?

– Eu li os relatórios em casa antes de sairmos esta manhã. A Ín-dia e o Paquistão estão ambos enfurecidos enquanto o resto do mundo aplaude a ideia de um protetorado.

– Esse é o meu ponto – disse Maanik, sem se deixar intimidar. – Agora você precisa convencer a Índia e o Paquistão.

– Ah. É assim tão simples?– Talvez não seja tão simples, mas minhas ideias podem ajudar

com isso. Andei pensando em editoriais para você, comunicados de im-prensa, mas especialmente... – Ela se virou e caminhou de costas, de frente para ele e radiante. – E se você me deixar entrevistá-lo e filmá-lo falando sobre a situação? As emissoras de TV iriam se refestelar com isso, os pais veriam com seus filhos, seria algo casual e nada ameaçador, mas feito com o coração, entende? Poderíamos fazer com que as pessoas se familiarizassem com a sua proposta através de uma conversa e não de argumentos. Se fizermos da forma certa, talvez o vídeo venha a ser viral.

Ganak ficou impressionado. Maanik havia preparado uma apre-sentação por conta própria. Essa revelação sobre sua filha era uma das razões pelas quais, mesmo em meio a uma crise, ele insistia em manter sua caminhada de meia hora até a escola, sem telefones celulares.

– Essas são ideias muito criativas, Maanik.

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– O.K.! Então o próximo passo é dar um tempo da escola e co-meçar um estágio com você na sede das Nações Unidas. Na verdade, o colégio provavelmente vai contar isso como uma aula...

Ganak a interrompeu.– Estagiários na sede devem estar na pós-graduação. Estudantes

do ensino médio estão fora de questão.– Mas, Bapu... – Ela tentou amolecer seu coração usando o termo

híndi para “papai”. – Eu tenho inteligência e vontade. E agora a minha ajuda é fundamental.

– Eu agradeço o seu interesse, mas cada membro da equipe é bem credenciado, não apenas bem-intencionado.

– Exceções podem ser feitas...– Exceções são exceções.Maanik franziu a testa.– Não entendi.– Significa que não dá. Sinto muito, Maanik.Ela virou-se e caminhou de frente novamente, visivelmente

frustrada.– Então, eu deveria apenas desperdiçar os meus dias tendo ideias

sem jamais torná-las realidade?– Você é uma jovem excepcional...– Garanto a você, estou perdendo tempo na escola.– Você está aprendendo sobre outras vidas, outros tempos.– Enquanto eu ignoro o fato de que nossa pátria poderia entrar

em guerra? Estou presa em meio à irrelevância, Bapu. Eu quero ajudar.– Seus livros não são irrelevantes.– Sério? E se um soldado maluco de um dos exércitos estiver, de

fato, se preparando para lançar uma ogiva dessa vez? O que você faria, falaria com ele sobre um romance que leu? Ou sobre um poema?

– Maanik, minha vida, você está prestes a perder esta discussão. – Ele sorriu.

– Hã? – Ela parou na esquina da 76th Street, jogou todo o seu peso sobre um dos quadris, e ergueu as sobrancelhas para o pai. – Como?

Ele deu um sorriso.

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– Você é jovem e impaciente. Eu estive onde você esteve, mas você não esteve onde eu estive.

Maanik se virou de repente para o homem loiro de 1,90m e nariz torto que estava atrás deles.

– Daniel, você acha que esse é um bom argumento?– Estou neutro nessa questão, minha senhora – disse o guar-

da-costas com um sorriso. Por trás dos óculos de sol de lentes espelhadas, seus olhos prestavam atenção nos pedestres que se moviam ao seu redor, ao mesmo tempo em que sua visão periférica se voltava para os carros que passavam, rápido demais, no meio da avenida. Ele ficou olhando ao longo da rua e, assim que acendeu o sinal verde para pedestres, todos cruzaram a York, dando em um quarteirão estreito cheio de edifícios de tijolos vermelhos e folhas verdes que começavam a perder a cor.

– Maanik – advertiu Ganak –, deixe ele fazer o trabalho. – Sua voz ficou rapidamente mais macia. Isso sempre acontecia quando ele conversava com sua filha. – Quanto a você, seu trabalho é aprender a ter paciência e adquirir educação e experiência, delas virá a sabedoria.

– Paciência – disse ela, impaciente.– Você sabia que essa é a minha missão principal? Orientar as

pessoas pacientemente, com compaixão. Guiá-las, nada de forçar a barra para que elas pensem da mesma forma que eu, ou ajam de acordo com a minha vontade. Eu trabalho para um protetorado na Caxemira, mas isso é lento. Você vê isso como algo menos corajoso da minha parte do que agitar os punhos ou erguer a voz? Vou lhe dizer, é mais!

A jovem, de repente, lembrava a menina que ainda estava verde na memória do pai. Eles andaram em silêncio. Impulsivamente, Ganak pegou sua mão. A moça apertou-a com força.

Os dois chegaram ao trecho da calçada em frente às portas da escola. O local estava cheio de estudantes e alguns professores enviando mensagens de texto ou trocando conversas apressadas antes das ativi-dades do primeiro período, que começavam às 7h45. Hoje eles se dedi-cariam à disciplina conhecida como Clube dos Direitos Humanos, que alternava com Modelo das Nações Unidas – uma simulação extracur-ricular de organismos da ONU. Mas Maanik não estava correndo para

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encontrar seus amigos. Seu pai percebeu que ela estava pensativa e quase lamentou ter tido aquela conversa.

Quando ele olhou em volta, parecia que todos do lado de fora da escola estavam abatidos. Depois que mostrara o vídeo do suicídio da mãe para a Assembleia Geral, este havia se tornado viral. Ele lamentou tal fato, em especial considerando que alguns daqueles adolescentes pro-vavelmente o haviam assistido, e muitos mais devem ter ouvido falar dele. Mas o mundo precisava de um empurrão para que as tensões infi-nitas na Caxemira pudessem ser sepultadas. O Conselho de Segurança tinha que pressionar a Índia e o Paquistão, ou eles só pressionariam um ao outro até que, sim, um dia, talvez, um general enlouquecido pusesse fim às tensões de uma forma muito pior. O embaixador estava ciente de que havia tornado a situação ainda mais séria. Até porque, depois de afastar a filha de um lugar onde ela sentiu que poderia ter alguma in-fluência, Ganak não poderia culpá-la por sua solenidade.

– Não fique pensando tanto nisso – disse ele, beijando-a na testa. – Confie no seu pai.

– Eu confio – disse ela. – É nos outros que eu não confio.Ganak sorriu.– E esse é o problema, não é? Alguém tem que ser o primeiro a

baixar a espada e acreditar que o outro quer a mesma coisa.Ele acenou e se virou na direção da First Avenue. Ele e Daniel

andariam meia hora rumo ao sul, até o edifício das Nações Unidas, e Ganak aproveitava o tempo para ensaiar mentalmente suas estratégias e fazer ligações telefônicas. Sem Maanik do seu lado, ele prestava atenção na cidade, passava a ouvir os aviões e os helicópteros mais acima, os ca-minhões fazendo entregas, os carros disparando em ruas esburacadas. Ouviu o som de uma motocicleta roncando de forma ensurdecedora, mas o ignorou, sem pensar.

Daniel não ignorou o barulho. O ruído do escapamento era tão alto, que a moto precisaria ter canos retos, pouco comuns no tranquilo e antigo Upper East Side de Manhattan. Daniel ficou olhando a moto-cicleta virar na 76th Street – era preta com remate em vermelho, e quem a guiava era magro e também usava roupas pretas. Ela quase atingiu

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um grupo de operários fazendo um conserto na esquina e rugiu ao pas-sar por um sujeito que segurava uma placa onde se lia devagar. Isso também estava errado: o trabalhador estava se afastando do cruzamento onde deveria orientar o trânsito. Seus passos eram longos e seu olhar se fixou no embaixador Pawar. Protegido pela placa, sua mão livre desapa-receu sob seu colete amarelo e vermelho.

Do lado de fora da escola, ninguém reagiu ao primeiro tiro. Era apenas um ruído alto abafado pelo ronco da motocicleta. Mas Ganak virou-se e congelou. Era com isso que os assassinos estavam contando: uma paralisia o tornaria um alvo fácil. Era exatamente para esse tipo de reação que Daniel havia sido treinado.

Um instante antes do disparo do operário, Daniel já estava em movimento. O guarda-costas abraçou o embaixador e caiu pesadamente no chão de concreto com ele, ao mesmo tempo em que se virava com sua arma nove milímetros já sacada. Ele se inclinou sobre o seu braço esquerdo enrijecido, protegendo o embaixador, enquanto mirava na di-reção da rua com o direito.

Depois do segundo e do terceiro tiro, os pedestres começaram a correr e a gritar enquanto iam em busca de vãos de portas ou se agacha-vam atrás dos carros. Os veículos estacionados e as árvores dificultavam que o pistoleiro encontrasse seu alvo. À leste, os alunos, os professores e todos que estavam do lado de fora da escola gritavam. Metade da mul-tidão jogou-se na calçada, outros se amontoaram contra as paredes; os poucos que ainda estavam em pé se agarraram uns aos outros e se ajoe-lharam, voltando seus peitos e rostos para a calçada. Maanik ficou con-gelada, tremendo de medo. A professora de inglês, Sra. Allen, agarrou a menina pelo colarinho e forçou sua cabeça para baixo.

Maanik, inquieta, mesmo presa ao abraço protetor daquela mu-lher, tentou levantar a cabeça. Ela não podia gritar. Não podia nem mes-mo abrir a boca. Não houve um quarto tiro. Isso significava que os três primeiros haviam sido bem-sucedidos? A menina pensou em Daniel, e se perguntava se ele estava bem, se algum daqueles tiros o havia acerta-do. Ela sentiu o concreto frio contra sua bochecha direita, e uma folha

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seca amassada debaixo do seu rosto, enquanto se esticava para ter uma visão mais ampla do quarteirão.

Ouviam-se sirenes ao longe. A Sra. Allen hesitou, mas acabou se ajoelhando. Alguém tinha que ver como estava o pai de Maanik e não podia ser a menina.

– Fique aqui – ordenou a professora.Mary Allen fez um sinal para que outro aluno ficasse com Maanik

e correu agachada em direção à First Avenue e aos corpos na calçada. Ela não viu sangue, embora tivesse visto de relance uma figura usando um colete de operário amarelo e vermelho pulando na garupa de uma motocicleta. Sentiu seus ouvidos explodindo com o barulho da moto irrompendo rumo ao leste. E reconheceu as figuras do pai de Maanik e do guarda-costas amontoadas. Um dos corpos se agitou, se sentou, seus cabelos loiros absorvendo a luz do sol. Ele se virou para o corpo que estava parcialmente cobrindo. A cabeça do homem se ergueu. O sujeito apoiou a mão na calçada, fez força para se erguer, e caiu. A Sra. Allen correu para o seu lado, apoiou-o com suas mãos, e gritou por cima dos ombros.

– Maanik, ele está bem! Ambos estão bem!Muito embora isso não fosse inteiramente verdade: logo ela notou

o sangue na calçada. Examinou todo o corpo do embaixador até ver o sangue jorrando da manga da camisa do guarda-costas e concluiu que fora ele que havia sido atingido. Então gritou para que alguém chamasse a enfermeira da escola.

Quinze minutos depois, após desligar uma ligação para a esposa, Ganak Pawar ergueu delicadamente a cabeça da filha que se apoiava em seu ombro e a ajudou a se sentar mais ereta no sofá da sala do diretor. Tirou uma folha seca e quebradiça que havia se grudado na bochecha da me-nina. Os dois estavam sozinhos, ambos ilesos. Daniel fora levado para o hospital, pois estava perdendo sangue rapidamente, e seu braço direito ficara imprestável, embora os paramédicos lhe tivessem garantido que ele ficaria bem.

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