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Três Semanas Com Meu Irmão - Nicholas Sparks e Micah Sparks.pdf

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  • TTRRSS SSEEMMAANNAASS

    CCOOMM OO MMEEUU IIRRMMOO

    Nicholas Sparks e Micah Sparks

    Ttulo original: Three Weeks with My Brother Traduo de Saul Barata EDITORIAL PRESENA

    Aquele que amigo, -o em todo o tempo; e o irmo conhece-se nos

    transes apertados.

    Provrbios 17:17

  • PRLOGO

    Este livro foi escrito por causa de uma brochura que recebi, pelo

    correio, na Primavera de 2002.

    Fora um dia normal em casa da famlia Sparks. Passara boa parte da

    manh e do princpio da tarde a trabalhar no meu romance O Sorriso das

    Estrelas, o trabalho no me correra bem e estava desejoso que o dia

    chegasse ao fim. No escrevera tanto quanto pensara, nem fazia ideia

    daquilo que iria escrever na manh seguinte. No estava, por isso, na

    melhor das disposies quando, finalmente, desliguei o computador e dei

    por concludo o trabalho do dia.

    No fcil viver com um escritor. Sabia-o porque a minha mulher j

    me tinha informado desta realidade e voltou a faz-lo naquele dia. Para ser

    franco, no a afirmao mais agradvel para se ouvir e, embora fosse

    fcil pr-me na defensiva, acabei por perceber que discutir o assunto com

    ela no resolvia coisa alguma. Em vez disso, tinha aprendido a olh-la nos

    olhos, ao mesmo tempo que lhe respondia com aquelas palavras mgicas

    que qualquer mulher deseja ouvir:

    - Meu amor, tens toda a razo.

    Haver quem pense que, por eu ser um autor relativamente bem

    sucedido, escrever uma tarefa que fao sem esforo. Muitas pessoas

    imaginam que ocupo apenas umas poucas horas do dia a escrevinhar as ideias medida que me vo ocorrendo, o que me deixaria o resto do tempo livre para descansar beira da piscina, a discutir com a minha

    mulher as nossas prximas frias num lugar extico.

    Na realidade, a nossa maneira de viver no difere muito da de

    qualquer famlia normal da classe mdia. No dispomos de um quadro de

    pessoal domstico nem fazemos grandes viagens e, embora tenhamos uma

    piscina no jardim das traseiras, rodeada de cadeiras de descanso, j no me

    recordo da ltima vez em que as cadeiras foram usadas; e no so usadas

    porque, durante o dia, nem eu nem a minha mulher dispomos de muito

    tempo para ficarmos sentados sem fazer nada. Eu, por causa do meu

    trabalho. Ela, por causa da famlia. Ou, para ser mais preciso, por causa

    dos nossos filhos.

  • que temos cinco. No seria um nmero exagerado se vivssemos

    na poca dos pioneiros mas, nos nossos dias, j suficiente para sermos

    olhados de esguelha. No ano passado, durante uma viagem, aconteceu que

    travmos conhecimento com outro casal jovem. A conversa como as

    cerejas e o problema dos filhos acabou por surgir. O casal tinha dois filhos

    e mencionou-os pelos nomes; a minha mulher engasgou-se com os nomes

    dos nossos.

    Por momentos a conversa parou, enquanto a outra mulher procurava

    assegurar-se de que nos estava a ouvir bem.

    - Tm cinco filhos? - acabou por perguntar.

    - Temos.

    A outra pousou uma mo simptica no ombro da minha mulher.

    - Perderam o juzo?

    Os nossos rapazes tm doze, dez e quatro anos; temos duas gmeas

    que vo a caminho dos trs anos. Apesar de no saber muito acerca do

    mundo, sei que os filhos tm uma forma engraada de nos obrigar a sermos

    objectivos. Os mais velhos sabem que me ocupo a escrever romances,

    embora por vezes tenha as minhas dvidas de que eles compreendam o que

    significa criar uma obra de fico. Por exemplo: durante uma aula de

    apresentao, foi perguntado ao meu filho de dez anos qual era a profisso

    do pai, ao que ele, enchendo o peito de ar, respondeu: O meu pai passa o dia a brincar com o computador! O mais velho, por sua vez, j declarou por diversas vezes - com o ar mais solene - que: Escrever fcil. Difcil dactilografar.

    Como acontece com muitos escritores, trabalho em casa, mas as

    semelhanas acabam a. O meu escritrio no um qualquer santurio

    situado no recato de um andar alto; em vez disso, a porta abre directamente

    para a sala de estar. J li que muitos escritores necessitam de uma casa

    sossegada para se concentrarem, mas eu tenho a sorte de no precisar de

    silncio para trabalhar. uma boa caracterstica, pois suponho que, sem

    ela, nunca conseguiria escrever nada. Gostaria que compreendessem que a

    minha casa um pandemnio de actividade, desde a altura em que a minha

    mulher e eu saltamos da cama, at ao momento que nos deixamos cair nela,

    no final do dia. Passar o dia na nossa casa tarefa capaz de esgotar

    qualquer pessoa. Para comear, os midos tm energia. Reservas e mais

  • reservas de energia. Energia em quantidades assombrosas. Multiplicada por cinco, seria energia suficiente para iluminar a cidade de Cleveland. E

    os midos, por qualquer processo mgico, alimentam a energia uns dos

    outros, cada um reflecte a energia dos outros, como se fosse um espelho. E

    preciso no esquecer o contributo dos trs ces e que at a prpria casa

    parece concorrer para a energia geral. Um dia normal inclui: pelo menos

    um filho doente, brinquedos espalhados de uma ponta outra da sala que,

    como por magia, reaparecem logo depois de terem sido arrumados, ces a

    ladrar, crianas que riem, o telefone a tocar, entregas e envios de

    encomendas por correio expresso, trabalhos escolares perdidos, aparelhos

    avariados, projectos escolares para o dia seguinte que os nossos filhos, por

    qualquer motivo, s nos do a conhecer no ltimo momento, treinos de

    basebol, treinos de ginstica, treinos de futebol, treinos de Tae Kwon Do,

    chegadas e partidas de tcnicos de reparao de qualquer coisa, portas a

    bater, crianas a correr pelo corredor, crianas que atiram coisas, crianas

    que choram por terem cado, crianas que nos abraam, ou crianas que

    choram por precisarem dos pais naquele preciso momento. Quando os meus sogros nos deixam, aps uma semana de estada junto de ns, o

    caminho para o aeroporto parece-lhes demasiado longo. Levam os olhos

    inchados e mostram a expresso assarapantada dos veteranos que

    conseguiram sobreviver ao desembarque na praia de Omaha. Em vez de

    me dizer adeus, o meu sogro abana a cabea e sussurra-me: Boa sorte! Vais precisar de muita!

    A minha mulher aceita como normal toda esta actividade em casa.

    paciente e raramente se enerva. Na maior parte dos casos, parece at viv-

    la com prazer. A minha mulher, tenho de o admitir, uma santa.

    Ou talvez seja apenas maluca.

    C em casa, a abertura do correio est por minha conta. , afinal,

    uma tarefa indispensvel, que, no decurso da nossa vida de casados, se

    transformou em mais um daqueles pequenos encargos que me vieram parar

    s mos.

    Recebi aquela brochura, pelo correio, num dia igual a qualquer outro.

    Lexie tinha seis meses, estava constipado e no deixava que a me o

    deitasse, Miles tinha pintado a cauda do co com tinta fluorescente e

    passeava orgulhosamente a sua obra, Ryan precisava de estudar para um

  • teste mas esquecera-se do manual na escola, pelo que decidiu resolver o problema e gastou todo o papel higinico que conseguiu enfiar pela

    sanita abaixo, Landon andava, uma vez mais, a pintar as paredes. S

    no consigo recordar o que Savannah estava a fazer mas seria algo de

    perturbador, pois, apenas com seis meses de idade, j estava a aprender

    com os irmos. A isto h que acrescentar a televiso com o som alto, os

    rudos da cozinha, o ladrar dos ces, os telefones a tocar, tudo a concorrer

    para um barulho catico que parecia tornar-se insuportvel. Suspeitei que

    at a minha santa esposa deveria estar muito perto dos limites. Afastando-

    me do computador, respirei bem fundo e pus-me de p. Ao passar pela sala

    de estar, passei uma vista de olhos por aquele mundo maluco e, com aquele

    instinto que s os homens possuem, descobri de imediato o que era preciso

    fazer. Pigarreei, atra por momentos a ateno de todos e anunciei

    calmamente:

    - Vou ver se o carteiro j veio.

    Instantes depois, saa porta fora.

    Como a nossa casa se encontra afastada da estrada, habitual

    levarmos cinco minutos para ir caixa do correio e voltar. A barafunda

    desapareceu no preciso momento em que fechei a porta atrs de mim.

    Caminhei lentamente, a saborear o silncio.

    Uma vez de volta a casa, verifiquei que a minha mulher tentava

    limpar a saia, suja de bolo e saliva, enquanto segurava simultaneamente as

    duas bebs. Landon estava junto dela, de p, a tentar chamar a ateno da

    me, que ainda fazia o possvel para ajudar os dois filhos mais velhos nos

    trabalhos escolares. Ao ver a maneira eficiente como ela se descartava de

    tantas tarefas ao mesmo tempo, senti o corao inchar de orgulho; ergui o

    mao de correspondncia, de maneira a que ela o pudesse ver, e anunciei:

    - Fui buscar o correio.

    Olhou para mim, de baixo para cima:

    - Nem sei o que faria sem ti! - respondeu. - A tua ajuda preciosa.

    Assenti.

    - S fao a minha obrigao. No tens de me agradecer.

    Como todas as pessoas, recebo a minha quota de lixo postal. Separei

    o que era importante daquilo que seria deitado fora. Paguei facturas, dei

  • uma vista de olhos pelos artigos de umas revistas e estava a preparar-me

    para guardar tudo quando reparei num folheto que, inicialmente, pusera na

    pilha do lixo. Vinha da associao de alunos da Universidade de Notre

    Dame e anunciava uma viagem por Terras dos Adoradores do Cu. A excurso chamava-se Cu e Terra e daria a volta ao mundo, durante um perodo de trs semanas, em Janeiro e Fevereiro de 2003.

    Interessante, pensei, ao comear a folhear a brochura. A viagem

    - num jacto alugado - incluiria excurses s runas dos Malas da

    Guatemala e dos Incas do Peru, s esttuas gigantes da ilha de Pscoa e s

    ilhas Cook, na Polinsia. Haveria tambm visitas a Ayers Rock, na

    Austrlia; a Angkor Vat, aos Campos da Morte e ao Museu do Holocausto

    de Phnom Penh, no Camboja; ao Taj Mahal e ao forte ambarino de Jaipur,

    na ndia; s igrejas escavadas na rocha, de Lalibela, na Etipia; ao Hipogeu

    e a outros templos antigos da ilha de Malta; e, finalmente, se as condies

    climatricas o permitissem, uma possibilidade de observar as auroras

    boreais em Tromso, uma localidade situada 480 quilmetros a norte do

    Crculo Polar rctico.

    J em criana me sentia fascinado pelas culturas antigas e pelas terras

    longnquas e, ao ler a descrio de cada uma das visitas propostas, a

    propsito da maioria delas dei comigo a pensar: Sempre desejei ver isto. Era uma oportunidade nica de fazer a viagem da minha vida, de ir a

    lugares que me povoavam a imaginao desde os tempos de menino. No

    entanto, quando acabei de ler o prospecto, suspirei e pensei: Talvez um dia....

    Na altura, no podia ser, no dispunha de tempo. Trs semanas

    afastado dos midos? Longe da minha mulher? Sem pegar no trabalho?

    Impossvel. Era ridculo, melhor seria esquecer o episdio. Coloquei

    o folheto no fim da pilha.

    Mas havia um problema: no conseguia esquecer-me da excurso.

    que eu sou um realista; e pensei que, no futuro, a Cat (abreviatura

    de Cathy) e eu teramos oportunidades de viajar. No entanto, embora

    soubesse que, um dia, poderia convencer a minha mulher a visitar o Taj

    Mahal ou Angkor Vat, no alimentava quaisquer iluses de a persuadir a ir

    ilha de Pscoa, Etipia ou s florestas da Guatemala. Por estarem to

    fora de mo e haver tantas outras coisas para ver, e tantos lugares aonde ir,

  • as visitas a reas remotas nunca deixaro de ser includas no captulo de

    talvez um dia... Um dia que, quase de certeza, nunca chegar.

    Porm, recorrendo a um golpe cruel, talvez a pudesse levar a visitar

    tudo de uma s vez; e assim, dez minutos mais tarde, uma vez desaparecida

    a cacofonia da sala de estar, que terminara to misteriosamente como tinha

    comeado, encontrava-me na cozinha na companhia da minha mulher, com

    a brochura aberta em cima da bancada. Como um mido a descrever o seu

    acampamento de Vero, fui apontando os pormenores mais significativos e

    a minha mulher, que havia muito se habituara s minhas fantasias,

    limitava-se a ouvir as minhas divagaes. Quando terminei, fez um aceno

    de cabea.

    - Hum!... - foi o nico comentrio.

    - Isso significa concordncia ou discordncia?

    - Nem uma coisa nem outra. S gostaria de saber os motivos que

    te levam a mostrar-me isso tudo. No me parece que possamos ir.

    - Eu sei. Mesmo assim, pensei que gostarias de dar uma vista de

    olhos.

    A minha mulher, que me conhece melhor do que qualquer outra

    pessoa, sabia que o motivo no era apenas aquele.

    - Hum! - repetiu.

    Dois dias depois, acompanhava a minha mulher num passeio pelo

    bairro. Os midos mais velhos iam nossa frente, os outros trs seguiam

    em carrinhos, e aproveitei para levantar de novo a questo da viagem.

    - Estive a pensar na excurso - disse, com ar desprendido.

    - Que excurso?

    - Aquela viagem volta do mundo. A do folheto que te mostrei.

    - Porqu?

    Respirei fundo:

    - Bem... gostarias de ir?

    Ela deu mais uns passos antes de responder:

  • - claro que gostaria de ir. Parece uma maravilha, mas no

    possvel. No posso estar longe das crianas durante trs semanas. E se

    acontece alguma coisa? Numa emergncia, no teremos qualquer hiptese

    de regresso atempado. Quantos voos h para um lugar como a ilha de

    Pscoa? Lexie e Savannah ainda so bebs e precisam de mim. Todos

    precisam de mim... - admitiu, com a voz embargada. - provvel que

    outras mes fossem, mas eu no.

    Assenti. Sabia de antemo qual seria a resposta dela.

    - No te importarias se eu fosse?

    Olhou-me por cima do ombro. Eu viajava muito por causa do

    trabalho, gastava dois a trs meses em cada ano em viagens de promoo

    dos livros e tais viagens eram sempre difceis de suportar pela famlia.

    Mesmo que nem sempre estivesse disposto a mergulhar de cabea no caos,

    no sou completamente intil nas coisas da casa. A Cat tem uma vida

    social que a afasta de casa com certa frequncia; uma vez por outra, toma o

    pequeno-almoo com as amigas, faz trabalho regular voluntrio na escola,

    frequenta o ginsio, joga bunco com um grupo de senhoras conhecidas e

    passeia; ambos sabemos que, para no dar em doida, ela precisa de sair de

    casa. Nessas alturas, assumo o meu papel de pai solteiro. Porm, logo que

    me ausento, torna-se-lhe difcil, ou mesmo impossvel, fazer qualquer coisa

    fora de casa. O que no nada bom para a sanidade mental da minha

    mulher.

    Alm disso, os midos gostam que estejamos ambos presentes.

    Quando saio, e admitindo que isso possvel, o caos aumenta, como que a

    encher o espao que eu deixei vazio. Nem necessrio dizer que a minha

    mulher est farta das minhas viagens. Compreende que elas fazem parte do

    meu trabalho, o que no significa que as aprecie.

    Nesta perspectiva, a minha pergunta era perigosa.

    - realmente importante para ti? - acabou por perguntar.

    Respondi-lhe com toda a franqueza:

    - No. Se no quiseres que v, no vou. Mas gostaria de ir.

    - E irias sozinho?

    Acenei que no.

    - Na realidade, estava a pensar em ir com o Micah - respondi,

  • referindo-me ao meu irmo.

    Caminhmos em silncio durante um bocado, at que ela me

    olhou de frente:

    - Penso que seria uma excelente ideia!

    Depois de regressarmos do passeio, e ainda sem querer acreditar

    totalmente, dirigi-me ao escritrio para ligar para o meu irmo, que vive na

    Califrnia.

    Ouvi o telefone a tocar, um som mais distante que o de um telefone

    fixo. O Micah nunca atende o telefone de casa; quando quero falar com ele,

    tenho de ligar para o telemvel.

    - Ei! Nicky - gorjeou. - O que que se passa?

    Apesar da idade, o meu irmo continua a chamar-me pelo meu nome

    de criana. Efectivamente, at ao quinto ano, sempre me chamaram Nicky.

    - Descobri uma coisa em que poders estar interessado.

    - Diz l!

    - Recebi um folheto pelo correio e... de qualquer das formas, para

    no me alongar demasiado, gostaria de saber se ests interessado em

    acompanhar-me numa viagem volta do mundo. Em janeiro.

    - Que gnero de viagem?

    Passei os minutos seguintes a descrever-lhe os pontos de maior

    interesse, a folhear a brochura enquanto falava. Quando terminei, registou-

    se um silncio do outro lado do fio.

    - Ests a falar a srio? - indagou. - E a Cat deixa-te ir?

    - Disse que sim - hesitei. - Escuta, sei que uma deciso importante

    e por isso no preciso que me respondas j. Ainda dispomos de muito

    tempo para confirmar a viagem. S quis que pensasses no assunto. Quero

    dizer, sei que tens de discutir a questo com a Christine. Trs semanas

    muito tempo.

    Christine a mulher do meu irmo; como rudo de fundo, ouvia-se o

    choro fraco da filha recm-nascida, a Peyton.

    - Tenho a certeza de que estar de acordo. Mas vou falar com ela e

    depois ligo-te.

  • - Queres que te envie o folheto?

    - Pois, claro - respondeu Micah. - No achas que devo saber para

    onde vamos?

    - Envio-o, hoje mesmo, por correio expresso - concordei. - Sabes

    uma coisa?

    - O que ?

    - Vai ser a viagem das nossas vidas.

    distncia, quase consegui v-lo sorrir.

    - Estou certo que sim, maninho. Vai ser, de certeza.

    Despedimo-nos e, j depois de desligar o telefone, fiquei a olhar os

    retratos de famlia com que ornamento as estantes do escritrio. Na maior

    parte, so fotografias dos midos; vi os meus filhos como meninos e bebs;

    havia uma fotografia com os cinco, tirada pelo Natal, poucos meses antes.

    Ao lado desta, estava uma fotografia da Cathy e, num repente, peguei na

    moldura, a pensar no sacrifcio que ela acabava de fazer.

    No. Era evidente que no estava entusiasmada com aquela ausncia

    de trs semanas. Nem a entusiasmava a ideia de no me ter junto dela, para

    a ajudar a cuidar dos cinco filhos; enquanto eu passeava pelo mundo, ela

    ficaria a suportar o fardo por inteiro.

    Ento, que motivo a levara a dizer sim?

    Como j afirmei, a minha mulher compreende-me melhor do que

    qualquer outra pessoa; e sabia que o meu desejo imperioso tinha mais a ver

    com a vontade de estar junto do meu irmo do que com a prpria viagem.

    Esta , portanto, uma histria de irmos.

    a histria do Micah e de mim, alm de ser tambm uma histria da

    nossa famlia. Uma histria de tristeza e de alegria, de esperana e de

    solidariedade. a histria das maneiras como nos tornmos adultos, das

    modificaes por que passmos e dos caminhos diferentes que seguimos,

    mas, conseguindo, de certo modo, tornarmo-nos ainda mais chegados. ,

    por outras palavras, a histria de duas viagens; uma viagem que me levou,

    e ao meu irmo, a lugares exticos espalhados pelo mundo, e de uma outra,

    a de toda uma vida, que nos tornou os melhores dos amigos.

  • CAPTULO UM

    Muitas histrias encerram uma lio simples e a histria da nossa

    famlia no constitui excepo. Para poupar os leitores, fao um pequeno

    resumo.

    Para comear, ns, os filhos, fomos concebidos. A lio, pelo menos

    segundo a verso da minha me catlica, a seguinte:

    - Nunca se esqueam - avisou, - de que, diga a igreja o que

    disser, o mtodo do calendrio no funciona.

    Eu tinha doze anos e fiquei a olhar para ela:

    - Est a dizer que todos ns somos acidentes?

    - Pois estou. Todos, um por um.

    - Mas acidentes agradveis, ou no?

    Sorriu.

    - Do gnero mais agradvel.

    Porm, depois de ouvir esta histria, no sabia muito bem o que

    pensar. Por um lado, era bvio que a minha me no lamentava ter tido

    filhos. Por outro, ver-me como um acidente, ou poder imaginar que a

    minha sbita apario neste mundo se devia a umas taas de champanhe a

    mais, no era bom para o meu amor-prprio. Mesmo assim, serviu para eu

    passar a ver as coisas com maior clareza, pois sempre procurara imaginar o

    motivo que levara os meus pais a no pensarem melhor antes de terem

    filhos, embora, verdade seja dita, tambm no tivesse a certeza de que eles

    estivessem preparados para o casamento.

    Os meus pais nasceram no mesmo ano, em 1942, e como tnhamos

    acabado de entrar na Segunda Guerra Mundial, os meus avs serviram

    ambos nas foras armadas. O meu av paterno era oficial de carreira; o

    meu pai, Patrick Michael Sparks, passou a infncia em bolandas, de uma

    base militar para outra, quase sempre educado pela me. Era o mais velho

    de cinco irmos, extremamente inteligente e estudou num colgio interno,

    em Inglaterra, at ser admitido na Universidade de Creighton, em Omaha,

    Nebraska. Foi ali que conheceu a minha me - Jill Emma Marie Thoene.

  • Tambm era a filha mais velha. Tinha trs irmos e irms mais

    novos; passou a maior parte dos anos de crescimento em Nebraska, onde

    adquiriu a paixo pelos cavalos, que iria durar toda a sua vida. O pai era

    um empresrio que no decurso da vida se envolvera em diversos negcios.

    Quando a minha me era adolescente, era proprietrio de um cinema em

    Lyons, vila com umas centenas de habitantes, aninhada ao lado da estrada,

    no meio de terras de cultivo. De acordo com a minha me, o cinema fora

    uma das razes que a obrigaram a estudar num colgio interno. Segundo

    queria fazer crer, fora enviada para longe por ter sido apanhada a beijar um

    rapaz. Porm, quando lhe fiz perguntas acerca do caso, a minha av

    rejeitou a histria energicamente:

    - A tua me sempre gostou de contar histrias - revelou. - Era capaz

    de inventar as coisas mais estranhas, apenas para provocar a reaco dos

    outros midos.

    - Sendo assim, por que que a mandou para o colgio interno?

    - Por causa dos homicdios - explicou a av. - Na altura, foram

    assassinadas muitas raparigas de Lyons.

    Percebi.

    De qualquer das formas, quando saiu do internato, a minha me

    matriculou-se na Universidade de Creighton, tal como o meu pai; suponho

    que foram as similitudes entre as suas vidas que lhes despertaram o

    interesse mtuo. Qualquer que fosse o motivo, comearam a namorar no

    primeiro ano e acabaram por se apaixonar. Namoraram pouco mais de um

    ano e casaram-se a 31 de Agosto de 1963, ambos com 21 anos de idade,

    antes do incio do ltimo ano do curso.

    Meses depois, o mtodo do calendrio falhou e a me aprendeu a

    primeira das suas trs lies. Micah nasceu no dia 1 de Dezembro de 1964.

    Na Primavera, estava novamente grvida e eu vim a seguir, no dia 31 de

    Dezembro de 1965. Na Primavera seguinte, ficou grvida da minha irm, a

    Dana, e decidiu que, a partir daquela altura, seria ela a encarregar-se do

    controlo dos nascimentos.

    Concluda a licenciatura, o meu pai decidiu-se por um mestrado em

    gesto, na Universidade de Minnesota e, no incio do Outono de 1966, a

    famlia mudou-se para perto de Watertown. A minha irm Dana nasceu, tal

    como eu, a 31 de Dezembro. A me ficou em casa para cuidar de ns,

  • enquanto o marido frequentava a universidade durante o dia para, noite,

    servir num bar.

    Como os meus pais no podiam pagar rendas altas, vivamos a vrios

    quilmetros da cidade, numa velha casa rural que, era a minha me que o

    jurava, estava assombrada. Anos mais tarde, contou-me que, a altas horas

    da noite, costumava ver e ouvir coisas - choros, gargalhadas e conversas

    murmuradas - mas que, mal se levantava para ver como ns estvamos, os

    rudos desapareciam.

    Uma explicao razovel era que a me sofria de alucinaes. No

    por ser maluca - a me foi provavelmente a pessoa mais estvel que

    conheci - mas por ter passado os primeiros anos de casada num mundo

    nebuloso de completa exausto. E no falo daquele tipo de exausto que

    algum consegue remediar se ficar mais algum tempo na cama, durante uns

    dias. Estou a referir-me a um tipo de total exausto fsica, mental e

    emocional que faz a pessoa ter o aspecto de quem foi obrigado a andar s

    voltas, preso pelas orelhas, antes de ser deixado cair na mesa da cozinha,

    mesmo em frente da famlia. A sua vida deve ter sido um verdadeiro

    inferno. Com 25 anos de idade e trs filhos que ainda usavam fraldas de

    pano, ficou completamente isolada durante dois anos, se exceptuarmos as

    visitas que a me lhe fez. No havia familiares prximos para darem uma

    ajuda, ramos pobres e vivamos no meio de coisa nenhuma. A me nem

    podia aventurar-se numa ida cidade mais prxima, pois o pai levava o

    carro para a universidade e para o emprego. Acrescente-se um par de

    invernos do Minnesota, em que a neve chegou, literalmente, ao telhado,

    subtraia-se a eterna falta de tempo do marido, some-se o choro e os gritos

    interminveis de bebs e crianas que mal andavam, e nem assim

    poderemos imaginar como a minha me se sentiria desesperada. Do meu

    pai no podia esperar muitas ajudas; naquela altura da vida, ele no estava

    em condies de a ajudar fosse no que fosse. Muitas vezes tenho pensado

    nos motivos que o levavam a no procurar um emprego normal, mas ele

    apenas fazia o que podia para conciliar o trabalho, a frequncia das aulas e

    o tempo de estudo. Saa de casa logo pela manh e regressava bastante

    depois de toda a famlia ter ido para a cama. Portanto, excluindo os trs

    filhos pequenos, a me no tinha mais ningum com quem conversar.

    Devia passar dias, ou talvez semanas, sem conseguir participar de uma

    nica conversa entre adultos.

  • Por ser o mais velho, a me atribua ao Micah responsabilidades

    excessivas para to tenra idade, responsabilidades que eu nunca pensaria

    atribuir a um dos meus filhos. A minha me sempre procurou meter na

    cabea dos filhos os antigos valores do Mdio Oeste, pelo que as

    obrigaes do meu irmo mais velho no tardaram a ser impostas: Haja o que houver, tens a obrigao de tomar conta do teu irmo e da tua irm. E, embora s tivesse trs anos, ele conseguiu. Ajudou a dar-nos de comer, a

    mim e minha irm, deu-nos banho, guiou os nossos passos incertos

    atravs do quintal da casa. Nos lbuns da famlia existem fotografias de

    Micah a embalar a irm e a dar-lhe o bibero, apesar de ser pouco maior do

    que ela. Acabei por compreender que ele at foi beneficiado pela situao,

    pois no se perde nada com a prtica do sentido de responsabilidade. No

    um sentimento que aparea de sbito, s por termos necessidade dele.

    Contudo, penso que, por ser frequentemente tratado como adulto, Micah se

    convenceu de que era adulto e que tinha certos direitos. Suponho que a

    situao lhe criou um sentimento quase adulto de teimosia, que se

    manifestou muito antes de ele ir para a escola.

    Efectivamente, a minha mais antiga lembrana envolve o meu irmo.

    Eu tinha dois anos e meio, Micah era um ano mais velho, estvamos num

    fim-de-semana do final do Vero e a erva tinha mais de trinta centmetros

    de altura. O meu pai preparava-se para a cortar e j tinha retirado o

    aparador do barraco. Acontece que o meu irmo era doido pelo aparador

    de relva e lembro-me vagamente de o ouvir pedir ao pai que o deixasse

    cortar as ervas, muito embora no tivesse fora suficiente para empurrar a

    mquina. O pai recusou, mas o meu irmo, com os seus quinze quilos de

    peso, no conseguia ver a lgica da situao. Nem, segundo me disse mais

    tarde, estava disposto a conformar-se com um tal disparate.

    Nas suas prprias palavras:

    - Decidi fugir.

    Pois, sei o que esto a pensar. Com trs anos e meio, nunca poderia ir

    longe. O meu filho mais velho, o Miles, quando tinha a mesma idade

    tambm costumava ameaar-nos com a fuga, o que nos levou, Cathy e a

    mim, a responder-lhe: Avana. Mas tens de ter a certeza de no passar da esquina. Sendo uma criana meiga e tmida, Miles nunca passaria alm da esquina, at onde eu e a me o podamos vigiar atravs da janela da

    cozinha.

  • Mas o meu irmo era diferente. O seu raciocnio deveria ser mais ou

    menos este: Vou fugir para bem longe e, como costumo tomar conta dos meus irmos, acho que tenho de os levar comigo.

    E assim fez. Meteu a nossa irm, de apenas dezoito meses, no

    carrinho, pegou-me na mo e, escondendo-se com as sebes para escapar

    deteco dos nossos pais, comeou a conduzir-nos para a vila. A vila,

    bom que se diga, ficava a trs quilmetros de distncia e o nico caminho

    para l chegar obrigava ao atravessamento de uma estrada com duas faixas

    de rodagem.

    E quase conseguimos. Recordo-me de caminhar por entre os campos

    com ervas da minha altura, a observar a exploso de cores das borboletas

    naquele cu de Vero. Pareceu-nos que estvamos condenados a caminhar

    eternamente, mas conseguimos atingir a estrada. E ficmos ali, na berma

    da estrada - trs crianas de menos de quatro anos e, note-se, uma delas

    ainda de fraldas - atingidos por poderosas deslocaes de ar provocados

    pelos camies e automveis que passavam por ns a mais de cem

    quilmetros por hora, a pouco mais de cinquenta centmetros de distncia.

    Recordo-me do meu irmo ter dito: Quando eu te disser, tens de correr depressa, dos sons das buzinas e do guinchar de pneus que se seguiram ordem de Corre!, dos meus passos incertos ao atravessar a estrada, a tentar acompanh-lo.

    Depois disso, as recordaes so menos ntidas. Lembro-me de me

    sentir cansado e de ter fome, e de acabar por subir para o carrinho onde ia a

    minha irm, enquanto Micah nos arrastava, como um chefe de matilha a

    arrastar o tren atravs das neves do Alasca. Era giro, era uma aventura. E,

    apesar de tudo, sentia-me em segurana. Micah tomaria conta de mim e a

    nossa me nunca deixava de me ordenar: Faz o que o teu irmo mandar!

    J ento, fazia o que me mandavam. Ao contrrio do meu irmo,

    cresci a fazer o que me mandavam.

    Recordo-me de que, algum tempo depois, atravessmos uma ponte e

    subimos um monte; uma vez chegados l acima, avistmos o vale onde se

    espraiava a vila. Anos mais tarde, apercebi-me de que devemos ter

    caminhado durante vrias horas, pois pernas pequenas como as nossas no

    conseguiriam grandes velocidades; tambm me recordo vagamente de o

    Micah nos prometer um gelado. Foi ento que ouvimos os gritos e, olhando

    por cima do ombro, vi a nossa me, a correr pela estrada acima. Gritava-

  • nos que parssemos, ao mesmo tempo que brandia o mata-moscas por cima

    da cabea.

    Era o instrumento que usava para nos castigar. O mata-moscas!

    O meu irmo odiava o mata-moscas.

    Micah era, sem sombra de dvida, o alvo mais frequente do mata-

    moscas. A mam gostava do objecto pois, embora fizesse barulho, no

    magoava verdadeiramente quando batia por cima da fralda ou das calas. O

    que interessava era o som, cada pancada parecia o rebentar de um balo;

    ainda hoje, sinto uma espcie de sentimento de vingana quando o uso em

    casa para matar insectos.

    No foi preciso muito tempo para que Micah tentasse uma nova fuga.

    Meteu-se num sarilho qualquer, mas desta vez foi o pap que resolveu

    utilizar o mata-moscas. Por aquela altura, o Micah j estava farto daquele

    tipo de castigo e, por isso, quando viu que o pai ia pegar no mata-moscas

    disse com firmeza:

    - No vai bater-me com isso!

    O pai voltou-se, de mata-moscas em punho e esse foi o momento que

    Micah escolheu para arrancar. Sentado na sala, vi o meu irmo de quatro

    anos passar a correr por mim, vindo da cozinha, e lanar-se escada acima,

    com o pai a persegui-lo a curta distncia. Ouvi os sons de ps no primeiro

    andar e apercebi-me de que no quarto o meu irmo se entregava a diversas

    acrobacias desconhecidas, para, momentos depois, zarpar escada abaixo,

    passar novamente por mim, seguindo para a cozinha at sair pela porta das

    traseiras, correndo com uma velocidade que eu nunca lhe conhecera.

    A soprar com falta de ar - fumou durante toda a vida - o pap desceu

    a escada de roldo e foi atrs dele. Durante horas, no vi nenhum deles.

    Depois de escurecer, quando j estava na cama, vi a mam a trazer o Micah

    para o nosso quarto. Depois de o deitar e lhe ajeitar a roupa, beijou-o na

    face. Apesar da escurido, notei que ele estava nojento; cheirava a poeira e

    parecia ter passado as ltimas horas debaixo da terra. Logo que a me saiu,

    perguntei ao Micah o que tinha acontecido.

    - Disse-lhe que ele no ia bater-me com aquilo - respondeu.

    - E bateu?

  • - No. No conseguiu agarrar-me. E depois no foi capaz de me

    encontrar.

    Sorri, a pensar: Eu sabia que conseguias.

  • CAPTULO DOIS

    O telefone tocou uns dias depois de eu ter enviado as informaes

    sobre a excurso ao Micah. Estava no escritrio, sentado secretria, a

    lutar com outro dia de escrita difcil e o meu irmo comeou a falar mal

    levantei o auscultador.

    - Esta viagem ... espantosa! - exclamou. -j viste bem aonde vamos?

    Vamos ilha de Pscoa e ao Camboja! Visitamos o Taj Mahal! Vamos ao

    deserto australiano!

    - Eu sei. No fantstico?

    - Mais do que fantstico. esmagador! Reparaste que vamos viajar

    num tren puxado por ces, na Noruega?

    - Sim, eu sei...

    - E passear em cima de elefantes, na ndia!

    - Eu sei...

    - E vamos a frica! frica, meu Deus!

    - Eu sei...

    - Vai ser fantstico!

    - Presumo que a Christine disse que podias ir?

    - Eu disse-te que ia.

    - Eu sei. Mas a Christine aprova a ideia?

    - No se pode dizer que esteja muito entusiasmada, mas concordou.

    Quero dizer... frica! ndia! Camboja! Com o meu irmo? O que que ela

    havia de dizer?

    Podia ter dito que no, pensei. Tinham dois filhos: Peyton, com

    apenas dois meses, e Alli, com nove anos; e Micah estava a planear uma

    viagem a comear menos de um ms depois do primeiro aniversrio de

    Peyton. Contudo, como acontecia com Cathy, eu tinha a certeza de que

    Christine percebera que Micah precisava de estar comigo, tanto quanto eu

    precisava de estar com ele, embora por razes diferentes. Como irmos,

    tnhamo-nos habituado a depender um do outro em alturas de crise, uma

    dependncia que ainda se tornara mais intensa quando crescemos.

  • Apoivamo-nos mutuamente quando enfrentvamos problemas de ordem

    emocional, vivamos os bons e os maus momentos de cada um.

    Aprendramos muito acerca de cada um de ns e, embora seja normal a

    existncia de intimidade entre irmos, comigo e com o Micah o sentimento

    era ainda mais profundo. O som da voz dele nunca deixava de me recordar

    da infncia que passmos juntos, o seu riso provocava o inevitvel

    ressurgir de memrias distantes, imagens de h muito esquecidas que

    emergiam sem aviso, como bandeiras agitadas pela brisa.

    - Nick? Est? Ainda ests a?

    - Sim, estou aqui. Estava s a pensar.

    - Sobre o qu? Sobre a viagem?

    - No - confessei. - Estava a pensar sobre as nossas aventuras de

    midos.

    - Em Minnesota?

    - No. Em Los Angeles.

    - Como que foste recordar-te disso?

    - No sei muito bem - admiti. - Acontece, por vezes.

    Em 1969, trocmos os invernos rigorosos de Minnesota por

    Inglewood, na Califrnia. O

    pap fora aceite para fazer o programa de doutoramento na

    Universidade do Sul da Califrnia e mudmo-nos para uma espcie de

    bairro social. Incrustada no centro de Los Angeles, a comunidade onde

    vivamos ainda tinha presentes as terrveis memrias dos motins de Watts,

    em 1965. ramos uma das poucas famlias brancas no prdio degradado de

    apartamentos, a que chamvamos lar, sabendo que os nossos vizinhos mais

    prximos incluam prostitutas, traficantes de drogas e membros de bandos

    de rua.

    Era uma casa minscula, com dois quartos, sala e cozinha, mas tenho

    a certeza de que a mam a considerava uma enorme melhoria em relao

    vida que levara em Minnesota. Mesmo que continuasse longe do apoio dos

    familiares, pela primeira vez, em dois anos, tinha vizinhos com quem podia

    falar, mesmo que fossem diferentes das gentes com quem fora criada em

  • Nebraska. Tambm podia deslocar-se loja e comprar as mercearias ou,

    pelo menos, sair de casa e ver sinais de vida humana.

    normal que os filhos olhem os pais com reverncia e eu, em

    criana, no era diferente. Com olhos castanhos-escuros, cabelo escuro e

    pele leitosa, achava a minha me bonita. Apesar das dificuldades que

    enfrentmos em pequenos, no me recordo de ela ter descarregado as suas

    frustraes sobre os filhos. Era uma daquelas mulheres nascidas para ser

    mes e amava os filhos incondicionalmente; em muitos aspectos, ns

    ramos toda a sua vida. Sorria mais do que qualquer outra pessoa que

    conheci. No com esses sorrisos postios, que parecem forados e nos

    causam calafrios. Os sorrisos da mam eram genunos e despertavam-me o

    desejo de me aninhar nos seus braos, que estavam sempre abertos para

    ns.

    O meu pai, pelo contrrio, de certa maneira permanecia um mistrio

    para mim. De cabelo louro arruivado, tinha sardas e fazia queimaduras de

    sol com facilidade. Entre ns, era o nico apreciador de msica. Tocava

    harmnica e guitarra, alm de assobiar compulsivamente quando se sentia

    cansado, o que parecia estar sempre a acontecer. No que o pudssemos

    censurar. Em Los Angeles adoptara a mesma rotina que tinha em

    Minnesota: aulas, estudo e trabalho nocturno como porteiro e barman, para

    que pudssemos satisfazer as necessidades bsicas da vida. Mesmo assim,

    para equilibrar o oramento, tinha de contar com a ajuda dos pais dele e da

    mulher.

    Quando estava em casa, era vulgar estar preocupado a ponto de

    parecer ausente. A memria mais constante que guardo do meu pai de o

    ver sentado mesa, de cabea inclinada para um livro. Um verdadeiro

    intelectual, no era o gnero de pai que gostasse de brincar com filhos, de

    andar de bicicleta ou dar passeios a p; como, porm, nunca vivemos

    experincias diferentes, tambm no nos preocupvamos. Pelo contrrio, o

    seu objectivo, pelo menos para ns, os filhos, era ser o ganha-po e o

    disciplinador. Quando passvamos das marcas, o que acontecia com

    excessiva frequncia, a mam ameaava-nos de que informaria o pap,

    logo que ele chegasse a casa. No sei por qu, mas a simples ameaa

    deixava-nos aterrados; suponho que tal acontecia por no o conhecermos

    bem.

    Os anos passados em Minnesota tinham cimentado a amizade entre

    os irmos. Durante anos, Micah, Dana e eu ramos os nicos amigos com

  • que cada um de ns podia contar, uma situao que se manteve em Los

    Angeles. Partilhvamos o mesmo quarto, brincvamos com os mesmos

    brinquedos e estvamos quase sempre juntos. Nas manhs de sbado,

    enroscvamo-nos volta do televisor para vermos desenhos animados e

    podamos passar horas a fio a imitar personagens da agora defunta srie de

    cowboys, de Johnny West. Entre os bonecos tnhamos figuras de aco,

    como o G.I. Joe, a Famlia West (Johnny, Jane e os midos), soldados

    (General Custer e o Capito Maddox), um foragido (Sam Cobra) e ndios

    (Geronimo, Chefe Cherokee e Aguja Lutadora), alm de fortes, vages do

    Oeste, cavalos e manadas de vacas. Ao longo dos anos, devemos ter

    juntado trs ou quatro exemplares de cada componente dos jogos.

    Brincvamos com as figuras, incluindo-as em aventuras sucessivas, at se

    desfazerem.

    Como a minha irm era a mais nova, ficava mais em casa a fazer

    companhia me, enquanto Micah e eu comemos gradualmente a

    descobrir o mundo exterior. Os nossos pais pareciam acreditar - com

    bastante ingenuidade, penso eu - que, juntos, estaramos em segurana,

    quaisquer que fossem os perigos da rua e comearam a deixar-nos explorar

    as proximidades da casa antes de eu chegar aos cinco anos. A nica

    exigncia era estarmos em casa hora do jantar. Nem o pap nem a mam

    se deram ao trabalho de estabelecer limites geogrficos para as nossas

    excurses, desde que cumprssemos a nossa parte; aquela liberdade foi

    aproveitada ao mximo. Eu ia para onde o meu irmo fosse, sempre atrs

    dele, com o Micah a ser cada vez mais o meu heri. Passmos as tardes a

    explorar edifcios de apartamentos a cair, ou a confraternizar com as

    raparigas da vizinhana, que estacionavam nos passeios a incentivar os

    possveis clientes. Passmos horas sem fim a observar rapazes que

    reparavam carros no parque de estacionamento, outras vezes sentvamo-

    nos nas escadas com vrios bandos de rapazes que bebiam cerveja e se

    entretinham com as namoradas. Era divertido, havia sempre alguma coisa

    para ver ou para fazer e por vezes ouviam-se tiros, mas longe. No me

    lembro de nos termos assustado com eles.

    Por qualquer razo, estvamos em segurana naquele bairro.

    Suponho que toda a gente, incluindo os membros dos bandos, sabia que

    no representvamos qualquer ameaa e que possivelmente ramos ainda

    mais pobres do que eles. ramos desesperadamente pobres. Em midos

    fomos criados com leite em p, batatas e papas de aveia. S quando fui

    para a escola que aprendi que no estado natural o leite um lquido.

  • Nunca comamos fora, no visitvamos museus, no amos a bailes, nem

    ao cinema. O carro que o pap comprou para ir para o trabalho e para a

    universidade custou menos de cem dlares. Quando fomos para a escola,

    tnhamos umas botas e um par de calas por ano; quando se rompiam, a

    mam colocava-lhes um remendo; e ia pondo sempre mais remendos, at

    as nossas calas parecerem ter sido munidas, na origem, de joelheiras. Os

    poucos brinquedos, quase s Tinkertoys, Lincoln Logs e as figuras da

    Famlia West, j mencionadas, eram prendas de anos ou de Natal;

    habitumo-nos a no pedir nada que vssemos quando amos ao

    supermercado com a mam.

    S agora me apercebo de que provavelmente vivamos abaixo da

    linha de pobreza. certo que, na altura, no sabamos disso e, para ser

    franco, no estvamos interessados em sab-lo. E a mam no aceitava

    quaisquer das nossas queixas. Era uma adepta intransigente da firmeza.

    Detestava lamrias, detestava queixas, detestava desculpas e sempre

    procurou erradicar estes traos da personalidade dos filhos. Se alguma vez

    dissssemos qualquer coisa do gnero Mas eu quero aquilo!, obtnhamos sempre a mesma resposta. Encolhia os ombros e dizia calmamente:

    Recolhe as garras, tigre. O que desejas e o que apanhas so quase sempre duas coisas completamente distintas.

    As suas opinies acerca da firmeza fariam tremer muitos dos pais dos nossos dias. Quando o Micah foi para a escola, por exemplo, o

    transporte em autocarros escolares estava a ser usado para forar a

    integrao racial nas escolas urbanas. Resultado: no podia frequentar a

    escola que existia na rua onde morvamos; em vez disso, tinha de caminhar

    quase dois quilmetros at paragem do autocarro, atravessando avenidas

    com trfego intenso e bairros onde imperava a violncia, sem contar com

    um atalho que atravessava uma lixeira. No primeiro dia da escola infantil, a

    mam acompanhou-o at paragem do autocarro; no dia seguinte, foi

    sozinho. Passada uma semana, queixou-se mam de que umas raparigas

    mais crescidas, talvez do stimo ano, o tinham encurralado na lixeira e lhe

    tinham roubado o dinheiro para o leite. E tinham-no ameaado: se no lhes

    levasse uma moeda de cinco cntimos em cada dia, batiam-lhe.

    - Disseram que me daro uma tareia das grandes! - concluiu Micah, a

    chorar.

    Um pai ou uma me tm diversas maneiras de tratar uma situao

    deste tipo. Por exemplo: a mam podia comear a acompanh-lo

  • regularmente escola, ou acompanh-lo um dia, enfrentar as raparigas e

    amea-las com a polcia se ocorresse outro incidente. Podia procurar saber

    quem eram os pais delas e falar com eles ou encontrar algum que desse

    uma boleia ao filho. Talvez at pudesse falar com algum da escola.

    Nada que se ajustasse mam. Em vez disso, depois de Micah ter

    contado a sua histria, levantou-se da mesa e ausentou-se da sala durante

    alguns minutos. Quando regressou, trazia na mo uma velha lancheira,

    ferrugenta e amolgada, que tinha usado na infncia.

    - Amanh, meto-te o almoo aqui dentro, em vez de o levares num

    saco de papel - comeou, - e se elas tentarem tirar-te o dinheiro, toma

    balano e bate-lhes com isto. Assim...

    Erguendo o brao como se fosse uma domadora de lees, comeou a

    descrever crculos largos com a lancheira, a demonstrar como se fazia,

    enquanto o Micah se mantinha sentado, a observar.

    No dia seguinte, o meu irmo de seis anos de idade, a transportar a

    velha lancheira, marchou a caminho da escola. E, como tinham ameaado

    fazer, as raparigas cercaram-no quando ele se recusou a dar-lhes a moeda

    exigida. Quando a primeira avanou, Micah fez exactamente com a me

    lhe tinha ensinado.

    Nessa noite, no quarto, Micah relatou-me o que tinha acontecido.

    - Rodei com quanta fora tinha - explicou.

    - No estavas com medo?

    Acenou que sim, de lbios cerrados.

    - Mas continuei a rodar a lancheira e a bater-lhes at fugirem, a

    chorar.

    Resta acrescentar que as raparigas no voltaram a incomod-lo.

    Em 1971, voltmos a mudar de casa, desta vez para Playa del Rey,

    outro bairro de Los Angeles. Por motivos bvios (os tiros nocturnos

    comearam a soar excessivamente perto), os nossos pais acharam que o

    local era mais seguro para ns do que Inglewood.

    Entretanto, eu tinha iniciado a pr-primria mas, como havia um

  • ano a separar-nos e a cidade de Los Angeles prosseguia a mesma

    poltica de transportes escolares, eu e o Micah ficmos em escolas

    diferentes. Se os alunos da minha turma se pareciam com os que se

    poderiam encontrar num subrbio de uma cidade de Iowa, Micah era

    levado para uma escola da cidade, sendo a nica criana branca da turma.

    Apesar disso, passvamos as tardes juntos e a fazer o mesmo que

    fazamos em Inglewood, como um par de midos sem medo do mundo.

    Saamos do nosso complexo de apartamentos e amos para onde nos

    apetecia, durante horas; caminhvamos vrios quilmetros at marina,

    onde ficvamos a admirar os barcos ancorados, ou subamos pelos pilares

    dos viadutos da estrada, ou pelos postes da electricidade, procura de ovos

    de pssaros, quando no decidamos explorar casas vagas, desmoronadas

    ou queimadas pelo fogo procura de qualquer coisa interessante que

    tivesse sido abandonada. Outras vezes, seguamos pelas traseiras do nosso

    complexo de apartamentos, atravessvamos umas quantas avenidas e

    saltvamos algumas cercas para visitar a escola secundria. No final da

    tarde, o local costumava estar vazio e ns adorvamos os grandes espaos

    ao ar livre, muito mais vastos do que os das nossas escolas elementares.

    Corramos, jogvamos s escondidas ou limitvamo-nos a percorrer os

    corredores a espreitar as salas vazias. Um dia, descobrimos um corvo em

    cima de uma rvore e ficmos logo cativados. Comemos a segui-lo

    enquanto saltava de uma rvore para outra. Depois desse dia, sempre que

    amos at escola, procurvamos o corvo e quase sempre o

    encontrvamos. Depois de o chamarmos durante um bocado, amos fazer

    qualquer outra coisa. Porm, no tardvamos a avistar novamente o corvo

    numa das rvores prximas do lugar onde de momento estivssemos a

    brincar. Passado pouco tempo, no havia lugar da escola onde no

    vssemos o corvo. Andava sempre nossa volta. Depressa nos

    apercebemos de que o corvo nos seguia.

    Comemos a dar-lhe comida. Se lanssemos umas migalhas para o

    cho, o corvo mergulhava, comia e voava para a rvore. Pouco a pouco,

    comeou a demorar-se o suficiente para permitir a nossa aproximao.

    Depois, comemos a trazer-lhe passas e a ave passou a confiar mais em

    ns. Chegmos ao ponto de pormos a passa de uva ao alcance da mo e o

    corvo no hesitava e vinha com-la. Para nosso espanto, o pssaro tinha-se

    tornado uma espcie de animal domstico e comemos a pensar nele

    como tal. Levmos a mquina fotogrfica da mam e conseguimos grandes

    planos do corvo, que mostrvamos, cheios de orgulho, depois de as

  • fotografias terem sido reveladas. E at lhe demos um nome: Blackie. O

    Blackie era formidvel. O Blackie era giro. O Blackie, viemos depois a

    descobrir, era um monstro.

    To interessados no corvo, viemos a descobrir que ele estava ainda

    mais interessado em ns. Especialmente no nosso cabelo. Como ramos

    louros, os nossos cabelos brilhavam ao sol e os corvos, segundo

    aprendemos mais tarde, adoram tudo o que brilha. Os corvos tambm

    constroem ninhos. Juntando as duas coisas, pode imaginar-se o que

    aconteceu de seguida.

    Uma tarde, estvamos na escola quando, de repente, o Blackie veio a

    voar na nossa direco, mergulhando sobre as nossas cabeas, uma e outra

    vez, obrigando-nos a fugir. O Blackie seguiu-nos. A envergadura das asas

    do corvo parecia ter aumentado extraordinariamente de um dia para o

    outro; no tardmos a ter de correr, a gritar para salvarmos a vida,

    enquanto o Blackie zunia por cima das nossas cabeas. Escondemo-nos

    durante algum tempo perto de umas mquinas, a tentarmos descobrir a

    maneira de voltarmos para casa; acabmos por sair do esconderijo e, vendo

    o caminho livre, corremos para casa.

    No conseguia acompanhar a passada do Micah e pouco a pouco fui

    ficando para trs. Num instante, o Blackie mergulhou e pousou na minha

    cabea, a coisa mais aterradora que alguma vez acontecera na minha ainda

    curta vida. Entrei em pnico, incapaz de respirar ou de mover qualquer

    msculo. Sentia as garras do corvo a rasgarem-me a cabea e, como que

    para aumentar o horror, a ave comeou a vibrar-me fortes bicadas, com a

    cabea a descer e a subir como as bombas dos poos de petrleo de

    Oklahoma. Gritei. O Blackie bicou com mais fora. E assim continuou:

    bicada, grito, bicada, grito, bicada, grito, bicada, grito. Era como se o corvo

    tentasse por todos os meios abrir-me um buraco na cabea para me sugar

    os miolos.

    Recordo-me vagamente de ver o meu irmo voltar para trs, l de

    longe, pois s se apercebera do regresso do corvo depois do meu primeiro

    grito. Rodando sobre os calcanhares, Micah correu para mim, gritando-me

    que me defendesse da ave, mas eu sentia a cabea oca e ficara imobilizado.

    Tudo o que conseguia fazer era ficar para ali, com o Blackie a matar-me,

    bicada a bicada.

  • claro que Micah soube o que devia fazer. A gritar e a agitar os

    braos energicamente, conseguiu que a demonaca ave deixasse de me

    bicar o couro cabeludo. Depois, como o Blackie continuou a mergulhar

    sobre ns, Micah despiu a camisa e agitou-a nossa volta, como se fosse

    uma bandeira. Finalmente, o Blackie refugiou-se nas rvores.

    No caminho para casa senti-me embaraado por ter tido tanto medo.

    O Micah no tivera medo. O Micah tinha tratado do Blackie quando eu

    entrei em pnico. O Micah lutou, enquanto eu me deixei ficar paralisado.

    Acabei por crer que, ao contrrio de mim, o Micah podia fazer tudo o que

    fosse preciso. E, enquanto me esforava por lhe acompanhar a passada,

    desejei, mais do que nunca, ser exactamente como ele.

  • CAPTULO TRS

    Depois de confirmados os lugares na excurso volta do mundo, eu

    e o Micah entregmo-nos aos necessrios preparativos. Entre outras coisas,

    precismos de diversas vacinas, incluindo as da febre amarela e das

    hepatites A e B, bem como os passaportes e vistos para a ndia, Etipia e

    Camboja.

    Com a Primavera a acabar para dar lugar ao Vero, falei muitas

    vezes com o meu irmo, mas, fenmeno estranho, quanto mais falvamos

    mais divergiam as nossas expectativas a respeito da aventura que se

    aproximava. Enquanto o Micah demonstrava um entusiasmo crescente em

    relao aos lugares que amos visitar, eu ficava cada vez mais ansioso por

    causa da partida; quando me ligava para falar da viagem, eu dava comigo a

    evitar o assunto.

    Chamem-lhe o arrependimento do consumidor, mas, gradualmente,

    fui encarando a ideia de que cometera um erro ao decidir comprar a

    viagem. Por mais excitante que a ideia fosse, por mais que desejasse visitar

    todos aqueles lugares, no me imaginava a andar por fora durante semanas.

    Entre o trabalho e a famlia, parecia-me que, desde h sculos, nunca me

    sobrara tempo para nada. Se a minha casa era um lugar catico, a minha

    carreira era ainda mais atarefada; a ideia de viajar por prazer no s me

    aumentava a ansiedade, como tambm me fazia sentir complexos de culpa.

    Se podia dispensar um ms, por que no pass-lo com os midos? Ou com

    a minha mulher? Se o tempo mal chegava para tudo, como diabo podia

    pensar em ficar um ms por fora, em viagem de turismo.

    Naquela viagem, tudo me parecia errado. Porm, se soubessem a

    situao em que eu estava em 2002, os leitores compreenderiam os

    motivos da minha preocupao.

    Gosto de pensar que a vida como uma corrente de gua, com

    rpidos e quedas de gua. Na vida de qualquer pessoa existem perodos em

    que tudo parece flutuar calmamente. Seguimos na nossa canoa, a remar

    sem pressas, a apreciar a paisagem. Um dia corre para o seguinte, faz-se o

    que preciso e, sem se saber bem como, ainda resta tempo para descansar.

    Depois, a corrente comea a fluir mais depressa, ainda possvel controlar

    tudo, mas j necessrio um pouco mais de esforo. A seguir, vm os

    rpidos e, de sbito, tudo se torna mais difcil. Pode surgir um novo

  • projecto de trabalho, talvez adoea uma pessoa de famlia, podemos ter de

    nos mudar ou ser despedidos do emprego. Quaisquer que sejam as razes,

    nestes perodos s pensamos em dirigir a canoa, em nos mantermos a

    flutuar. De

    manh, logo ao acordarmos, sentimos que j estamos atrasados, pois,

    para fazer tudo o que necessrio, cada dia uma nova correria frentica,

    um novo contra-relgio. E, depois, os rpidos fazem-nos correr ainda mais

    depressa, temos de ir com a corrente. Temos de, precisamos de, no temos escolha. Continuamos em frente, sempre em frente. L mais adiante, ouve-se o estrondear da catarata e convencemo-nos de que s nos

    resta remar ainda com mais energia. Temos de passar por aqueles rpidos

    e, seja como for, atingir guas calmas. A no ser assim, vamos ser

    engolidos pela catarata.

    Era a que eu estava no ano de 2002: no meio dos rpidos, a

    manobrar com frenesim, com a catarata a aproximar-se. Mentalmente.

    Fisicamente. Emocionalmente. E j por ali andara nos trs anos anteriores.

    No me orgulho disso. No um sinal de xito. uma vida sem

    qualquer equilbrio e, a longo prazo, a catarata acabar por nos apanhar.

    Agora sei isso. O problema que no o sabia naquela altura.

    No entanto, a minha mulher compreendeu a situao. Cat uma

    daquelas pessoas para quem fcil manter o equilbrio. No apenas uma

    me atenciosa, pois tem dezenas de amigas com quem fala regularmente.

    dedicada famlia e, no entanto, ocupada como estava (cinco filhos, trs

    deles com menos de dois anos, so o suficiente para manter qualquer me

    ocupada), passava os seus dias sem aquele sentimento de aflio a que eu

    no conseguia escapar. Ela, mais do que ningum, sabia que eu necessitava

    de um escape; tambm sabia que a minha inclinao natural seria negar

    que precisava dele e que, de repente, arranjaria uma desculpa para no

    fazer a viagem. Ou pior: recusar-me-ia a desfrut-la, mesmo se fosse.

    Uma noite, j deitada, fez-me perguntas acerca da viagem e voltei a

    resmungar as minhas dvidas sobre o assunto.

    Virou-se na cama e olhou-me de frente:

    - Vais divertir-te - salientou. - E precisas de ir. Nunca fizeste nada de

    semelhante.

    - Eu sei. Mas, na realidade, a altura no boa.

  • - A altura boa nunca chegar. Vais estar sempre muito ocupado.

    Faz parte do teu carcter.

    - No faz nada.

    - claro que faz. De facto, nunca te permites pensar em no

    estares muito ocupado.

    - S nos ltimos dois anos.

    Cathy abanou a cabea:

    - No, meu querido. Andaste sempre muito ocupado, desde que

    te conheo. No podes passar sem isso. - Achas que no?

    - Acho.

    Pensei melhor:

    - Nos prximos dois anos vou estar realmente muito ocupado.

    Mas, depois, vou trabalhar menos. Dentro de uns dois anos, acho que

    terei tempo para uma viagem destas.

    - Disseste o mesmo h uns dois anos.

    - Disse?

    - Pois disseste.

    Fiz uma pausa.

    - Acho que estava enganado. Mas, desta vez, tenho a certeza de que

    no estou.

    Ao meu lado, ouvi a minha mulher suspirar.

    A despeito das palavras dela, a sensao de angstia que sentia

    tornou-se ainda maior com a aproximao do Outono. O Micah, tal como a

    minha mulher, sentiu a minha hesitao ao falarmos pelo telefone e

    comeou a ligar-me com maior frequncia, fazendo o que podia para me

    animar.

    - Ol, Nick! - dizia-me ao telefone. - Recebeste a encomenda que a

    TCS nos mandou?

  • A TCS era a agncia de viagens encarregada da excurso. Estava no

    escritrio, a trabalhar no meu novo romance: Laos Que Perduram; as duas

    caixas, recebidas havia duas semanas, estavam a um canto; ainda no lhes

    tocara.

    - Recebi, mas ainda no a abri.

    - Porqu?

    - Ainda no tive tempo.

    - Pois bem, arranja-o - redarguiu. - Enviaram um material bem

    interessante. Mandaram um bluso, uma mochila e uma mala, alm de

    outros utenslios. H tambm um itinerrio...

    - Vou abrir as caixas neste fim-de-semana.

    - Devias abri-las j - insistiu. - De facto, penso que j lhes

    devias ter enviado um dos atestados mdicos. E tens de decidir qual o

    lugar que desejas visitar na Guatemala. Tens de escolher entre as runas e o

    mercado da cidade. Tens de mandar a informao at ao final da semana.

    Fechei os olhos, descontente por ter arranjado mais um motivo de

    preocupao.

    - Est bem. Vou tratar disso esta noite, se puder.

    Houve uma longa pausa do outro lado.

    - O que que se passa contigo? - perguntou o Micah.

    - Nada - respondi.

    - No pareces muito entusiasmado com isto.

    - Mas vou animar. Quando chegar a altura da partida. Ainda no tive

    tempo para pensar nisso, tenho tido muito trabalho. Ficarei mais

    entusiasmado com o aproximar da hora da partida. De momento, estou

    assoberbado de trabalho.

    O Micah respirou fundo:

    - Ests a cometer um erro.

    - O que que pretendes dizer?

  • - Ainda no percebeste? - perguntou. - A expectativa a parte

    essencial de toda a viagem. A excitao da partida, os lugares a ver, as

    pessoas que vamos encontrar. Tudo isso faz parte do gozo.

    - Eu sei. Mas...

    Ele no me deixou prosseguir.

    - No ests a ouvir o que digo, maninho. Nunca te esqueas de que o

    entusiasmo uma parte importante da vida. O trabalho importante, a

    famlia importante, mas, sem entusiasmo, no te fica nada. Se te recusas a

    antever o gozo, ests a enganar-te a ti prprio.

    Fechei os olhos, sabendo que ele tinha razo, mas ainda imerso no

    mar das minhas obrigaes.

    - Acontece apenas que, de momento, tenho outras prioridades.

    - Essa uma parte do teu problema - alvitrou, na sua voz calma. -

    Tens sempre outras prioridades.

    Enquanto a curiosidade se tornou um dos aspectos regulares do incio

    da vida escolar do Micah, eu descobri que adorava a escola. Tudo foi fcil

    no meu primeiro ano: a professora era amorosa, os midos simpticos e

    nada me pareceu difcil de aprender. No entanto, por ser um ano mais

    velho, o Micah continuava adiantado em relao a mim na maioria das

    matrias. Ou, pelo menos, eu partia desse princpio.

    Os nossos pais inscreveram-nos nos Escuteiros Infantis e um dos

    nossos projectos foi construir um foguete de madeira, impulsionado por

    uma carga de COZ e mantido em posio por um arame, que depois

    pusemos a concurso com outros foguetes feitos por outros escuteiros. O

    Micah e eu fomos sozinhos at ao centro recreativo, uma caminhada de

    cerca de trs quilmetros, ambos nervosos acerca da nossa participao. O

    meu foguete perdeu na primeira partida. Mas o Micah ganhou a primeira

    partida e continuou a ganhar. O seu foguete acabou por ficar em segundo

    lugar no conjunto das provas, o que me fez sentir simultaneamente orgulho

    e inveja em relao a ele. Era a primeira vez que experimentava aquele

    sentimento de inveja em relao ao meu irmo, um sentimento que

    aumentou quando ele recebeu uma braadeira vermelha como prmio, por

    entre grandes aplausos. Apercebi-me de que ele podia fazer tudo melhor do

    que eu. Entretanto, tambm recebi uma braadeira, que foi dada a todos os

  • participantes que, como eu, no se tinham classificado, mas melhor seria

    que no ma tivessem dado. Ainda estava a aprender letras e sons, j sabia

    ler palavras pequenas, mas muitas vezes no compreendia as palavras mais

    compridas. No fazia ideia do que dizia a braadeira; s

    sabia que tinha sido dada aos escuteiros a quem as provas no tinham

    corrido bem.

    Mesmo assim, fiz um esforo para tentar ler o que dizia a braadeira.

    Tinha duas palavras e a primeira era Meno. Consegui l-la sem grande esforo, mas a segunda no fazia muito sentido, pelo que tentei vocaliz-la.

    Comeava por HO, tinha um R no meio, e terminava em SA... Os meus

    lbios comearam a formar a palavra e, de repente, senti-me desfalecer.

    Oh, no!, pensei. No pode ser...

    Recomecei a tentativa de ler a palavra. Mas no havia dvidas,

    estava ali, para toda a gente ver.

    A palavra comeou a rodar e finalmente entendi. Claro, pensei, fazia

    sentido. Senti um n no estmago e quis chorar. L longe, no meio dos

    vencedores, vi o meu irmo a exibir com orgulho o foguete e a braadeira

    que ganhara. Quanto aos outros, os que eram como eu, tinham tido a

    actuao que a braadeira mencionava. Horrorosa. Tinham-me dado uma

    braadeira que dizia Meno Horrorosa.

    No me recordo de ter sado de l mas no me esqueci do regresso a

    casa. O Micah viu que eu estava perturbado mas continuei a abanar a

    cabea sempre que ele me perguntava o que tinha. Finalmente, quando o

    desgosto se tornou insuportvel, atirei-lhe com a braadeira.

    - Vs! - gritei. - A minha prova foi horrorosa. o que diz a

    braadeira.

    - A braadeira no diz isso.

    - Ento, l!

    Comeou a soletrar a palavra, a tentar vocaliz-la, como eu tinha

    feito; depois, lentamente, olhou para mim, como se tambm ele estivesse

    prestes a chorar.

    - No justo - murmurou.

  • Oh!... No! Eu tinha razo. Apercebi-me de que estivera a alimentar

    a esperana de ter lido mal. De que tinha cometido um erro. Mas no tinha

    e senti que a barragem que me continha as emoes estava prestes a

    rebentar.

    - Fiz o melhor que podia... No podia fazer melhor... - tartamudeei e,

    logo de seguida, comecei a chorar. Sentia os ombros agitarem-se com

    violncia e o Micah a pr-me um brao volta dos ombros, chegando-me

    para ele.

    - Eu sei. E o teu foguete no era horroroso.

    - Mas eles disseram que era.

    - Quem se interessa com o que eles dizem? Eu achei que o teu

    foguete era um dos melhores.

    - No achaste nada.

    - claro que achei. Fizeste um bom trabalho. Estou orgulhoso pelo

    teu foguete. E nunca mais volto aos Escuteiros Infantis. Depois do que eles

    te fizeram, no volto l.

    Nem sei se as palavras dele me fizeram sentir melhor ou pior; s

    sabia que precisava dele.

    Por aquela altura, eu queria pr a questo para trs das costas, mas o

    Micah no pensava assim.

    - No posso acreditar que tenham dito que foste horroroso -

    continuou a resmungar e, de cada vez que o dizia, os ombros tremiam-me

    ainda mais.

    Quando chegmos a casa, encontrmos a me na cozinha a preparar o

    jantar. Voltou-se para ns.

    - Ol, pessoal! Como que correram as coisas?

    Durante algum tempo nenhum de ns abriu a boca. O Micah mostrou

    a braadeira que ganhara, com a mo em baixo, como que embaraado.

    - Fiquei em segundo lugar - informou.

    A mam pegou na braadeira e levantou-a bem alto.

    - Caramba! Parabns! Um segundo lugar!

  • - Quase ganhava - acrescentou o Micah. - Bem, o segundo lugar

    fantstico. E tu, Nick?

    Encolhi os ombros, sem responder, a tentar conter as lgrimas. A

    expresso dela suavizou-se.

    - No conseguiste uma braadeira?

    Acenei que sim.

    - Conseguiste uma braadeira?

    Voltei a acenar que sim.

    - Mas no interessa.

    - claro que interessa. Posso v-la? - Neguei com a cabea. - Por

    que no, meu amor?

    - Porque - acabei por dizer, comeando a ir-me abaixo. - Diz

    que eu fui horroroso!

    Cerrei as plpebras numa v tentativa de as conter, mas as lgrimas

    irromperam.

    - No diz nada disso - informou a mam.

    - Diz, diz sim senhora - interrompeu o Micah. - Diz que foi

    horroroso.

    Comecei a soluar ainda mais e a mam abraou-me.

    - Posso v-la?

    Talvez fosse a segurana que sentia nos braos da minha me, mas

    acabei por reunir a coragem de meter a mo no bolso para tirar de l a

    braadeira amachucada. A mam deu-lhe uma olhadela e usou um dedo

    para me obrigar a levantar o queixo para ela.

    - No diz horrorosa - informou. - O que aqui est escrito honrosa.

    Isto bom, doura. Diz aqui que ficaram satisfeitos com o teu trabalho.

    Fizeste um trabalho honroso.

    De princpio, no tive a certeza de estar a ouvir bem. Porm,

    passados momentos, quando ela soletrou a palavra, senti-me bastante

    melhor. No entanto, em parte, preferia nunca ter recebido qualquer

    braadeira.

  • Em 1971, a regio de Los Angeles foi abalada por uma srie de

    tremores de terra. O primeiro aconteceu a meio da noite e recordo-me de

    ter acordado e de sentir a cama a tremer violentamente, como se algum

    estivesse a tentar fazer-me cair.

    A Dana acordou quase ao mesmo tempo e comeou a gritar. Eu

    ouvia o ribombar e o som das paredes a estalar, vi os brinquedos a cair. O

    cho vibrava, parecia quase lquido e pensei que no fazia ideia do que

    estava a acontecer. Sabia que no era coisa boa e suspeitei de que

    corramos perigo. O Micah tambm percebeu o mesmo e saltou da cama

    para nos proteger, a mim e nossa irm. Estava a conduzir-nos para o

    centro do quarto, para nos aconchegarmos, quando o pai entrou de roldo

    pelo quarto. Estava nu e de olhos esbugalhados. Nenhum de ns o vira nu,

    pelo que a viso dele enquadrado pela porta foi ainda mais chocante do que

    tudo o que nos estava a acontecer. A mam vinha logo atrs mas, ao

    contrrio do marido, vestia uma camisa de dormir. J dentro do quarto,

    rodearam-nos e foraram-nos a ir para o cho, onde ficmos todos, bem

    juntos. A seguir, na tentativa de nos protegerem do entulho que caa,

    ambos se deitaram por cima de ns.

    O solo continuava a ressoar, as paredes continuavam a oscilar, mas

    havia algo de calmante no facto de estarmos amontoados, como uma

    famlia. Por mais aterradora que a situao me parecesse, recordo-me de

    que, subitamente, senti que no ia suceder-nos nada de mal e que, no

    sabia muito bem como, aquele sinal evidente de amor parental e de

    preocupao connosco seria suficiente para nos proteger. S quando vi os

    estragos na televiso que me apercebi bem da gravidade da situao. Por

    toda a cidade havia edifcios derrubados e as auto-estradas abriram fendas.

    A magnitude do sismo foi avaliada em 7,2 da escala de Richter, fazendo

    dele um dos tremores de terra mais violentos alguma vez sofridos naquela

    zona.

    Para o meu irmo e para mim, o sismo obrigou-nos a inspeccionar

    pessoalmente os prejuzos, pelo que passmos os dias seguintes a

    inspeccionar e a procurar, como se fssemos funcionrios da FEMA

    (Agncia Federal de Controlo de Situaes de Emergncia). Talvez fosse

    uma maneira de expulsarmos o medo do nosso sistema e, durante o dia,

    parecia resultar. Porm, noite, deitados nas camas, sentamos dificuldade

    em adormecer e tnhamos pesadelos.

  • Depois do grande sismo, as rplicas continuaram durante vrios dias.

    A princpio, os nossos pais continuaram a correr para o quarto dos filhos,

    como tinham feito na primeira noite. Porm, com a continuao das

    rplicas, a resposta deles tornou-se mais lenta, at que deixaram de vir ver

    o que se passava connosco. Depois disso, comemos ns a correr para o

    quarto deles.

    No meio de uma nova rplica, vomos para o quarto deles, saltmos

    como peixes desde os ps da cama e ouvimos o ar escapar-se dos pulmes

    dos nossos pais quando lhes aterrmos em cima do peito. O pap,

    obviamente cansado por ser acordado a meio da noite, deu importncia

    exortao da mam:

    - Faz qualquer coisa, Mike! - e decidiu, de uma vez por todas, pr

    cobro situao. Saltou da cama para o meio do quarto e nu, uma vez mais

    (mas agora j estvamos habituados a v-lo assim), comeou a executar o

    que parecia ser uma dana ndia a pedir chuva. A agitar os braos acima da

    cabea, andava em crculos, e cantava:

    - Pra, tremor de terra. Pra, oh, ei, poderoso tremor de terra vai-te

    embora... - e, no momento em que deixou de andar roda, repentinamente,

    o cho deixou de tremer.

    Ficmos a olhar para ele, embasbacados. Ainda apavorados, vimo-lo

    regressar cama e mandar-nos embora.

    Suponho que no necessrio explicar a importncia de uma cena

    daquelas em mentes infantis; depois de termos regressado s nossas camas,

    o significado tornou-se claro, tanto para o meu irmo como para mim.

    Coincidncia? Julgo que no!

    Como o Micah explicou solenemente:

    - O pap tem poderes mgicos.

    O que, valha a verdade, nos fez olhar para o nosso pai de uma

    perspectiva completamente diferente, v-lo a uma nova e excitante luz e,

    tenho de o dizer, quando voltei escola no fiz segredo do que acontecera.

    Os meus colegas de turma tambm ficaram espantados.

    Para alm de fazer parar os tremores de terra, o pap tambm era

    capaz de fazer parar a chuva. Nem sempre, bom que se diga; s quando

    amos de carro e durante perodos muito curtos de tempo. A intensidade da

    chuva no era importante, pois, enquanto seguamos pela estrada, o pap

  • olhava-nos por cima do ombro e por vezes perguntava se estvamos

    preparados para sentir a chuva parar. Se dizamos que sim, mandava que

    fechssemos os olhos, lembrando-nos que no podamos espreitar, e, no

    momento certo, ordenava Pra, e a chuva deixava de cair. O silncio era absoluto durante um segundo, no se ouvia a chuva a bater no tejadilho,

    para, subitamente, recomear de novo a bater. Como ele explicava: Fazer parar a chuva obriga a um enorme dispndio de energia. No coisa que se

    possa fazer durante muito tempo.

    Uns anos mais tarde, reparei que o meu pai s parecia dispor de tais

    poderes quando estvamos prestes a passar por debaixo de uma ponte ou

    de um viaduto.

    Em 1972, a situao da famlia comeou a mudar. Ento, com a

    minha irm no jardim infantil, a mam pde comear a trabalhar, de modo

    que, acabada a escola, ficvamos sozinhos. Havia uma vizinha idosa que

    supostamente tomava conta de ns, mas era raro que o fizesse. Em vez

    disso, subamos at ao apartamento dela, dizamos que j estvamos em

    casa e no lhe ligvamos mais importncia durante o resto da tarde. Uma

    situao que tambm lhe convinha. Era uma guardi do tipo chamem-me s em casos graves, no quero perder a telenovela e, alm do mais, estvamos to habituados a ter as tardes por nossa conta que no

    precisvamos de ter algum para nos vigiar.

    Quando ramos pequenos, tanto eu como o meu irmo sofremos um

    nmero extremamente elevado de acidentes, o que no de surpreender.

    Quanto a mim, um adolescente partiu-me a cabea com uma pedrada (o

    que provocou o envolvimento da polcia e uma visita do meu pai, que

    ameaou o dito adolescente com danos fsicos importantes se a situao se

    repetisse), perdi dois dentes quando estava a aprender a andar de bicicleta,

    magoei os dois pulsos e os dois tornozelos e quase cortei um dedo com um

    caco de vidro. O meu irmo teve acidentes do mesmo gnero, mas talvez

    tenham sido mais frequentes e mais graves.

    Mesmo assim, se exceptuarmos as vacinas obrigatrias, raramente

    fomos levados a mdicos ou a dentistas. Quando digo raramente, quero

    dizer talvez uma vez, quando havia fortes possibilidades de morrermos. Tinha dezoito anos quando, pela primeira vez, pus os ps num consultrio

    de dentista. Por vezes, ficava a pensar na quantidade de sangue que seria

  • preciso perder para levar os meus pais a ceder e a decidirem levar-me a um

    posto mdico. No tinham razes de ordem religiosa para evitarem os

    tratamentos mdicos, apenas pensavam que procurar os cuidados de sade

    era no s uma perda de tempo como tambm incorrer em gastos que eles

    no tinham capacidade financeira para suportar. Acrescente-se a tudo isto a

    necessidade de sermos duros e chegmos situao, eu e o meu irmo, de

    s vermos mdicos na televiso. Recordo-me, por exemplo, de que depois

    de ter sido atingido pela pedra, fiquei com o rosto literalmente coberto de

    sangue. No via bem e mal consegui cambalear at casa.

    - Amanh, ests so que nem um pro - concluiu a mam, depois de

    observar a ferida. - Tens a cabea dura.

    Felizmente, a minha cabea era realmente dura e conseguiu sarar por

    si prpria.

    Contudo, foi por essa altura que a minha irm sofreu um ataque de

    epiglotite, uma inflamao potencialmente fatal da epiglote. Nem eu nem o

    Micah sabamos exactamente o que estava a acontecer com a nossa irm

    naquela manh; s sabamos que ardia de febre, estava plida, delirava e

    tinha vomitado durante a noite. Os nossos pais, que sabiam distinguir o que

    era uma verdadeira emergncia, apressaram-se a lev-la ao hospital.

    Infelizmente, na falta de um seguro de sade, o hospital exigiu um depsito

    de duzentos dlares, pelo que, depois de l deixar a famlia, o pap largou a

    toda a velocidade, para ir procura de quem lhe emprestasse aquela

    importncia.

    A mam foi com a Dana para dentro do hospital e mandou que

    esperssemos junto de uma rvore, entrada do parque de estacionamento.

    - S podem ir daqui at ali, e ali - apontou, a desenhar uma sebe

    imaginria com uns quinze metros quadrados. Mesmo naquela idade,

    reconhecemos o medo na voz da mam e j tnhamos suficiente sensatez

    para agir exactamente como ela mandou.

    Estava um dia quente, talvez a temperatura rondasse os 38 C. Fomos

    deixados para li, sem comida nem gua e, para afastarmos o calor da ideia,

    passmos as horas seguintes a trepar rvore e a caminhar no interior da

    nossa sebe imaginria. Inventmos um jogo que nos levava at aos limites

    da vedao imaginria, sem passarmos para l da linha. A dada altura,

    tropecei e ca em cima da linha. Recordo que me levantei rapidamente, mas

    a ideia de ter desobedecido minha me, acrescida do cansao que ja

  • sentamos, trouxe-me lgrimas aos olhos. Como sempre, naquele tipo de

    situaes, tinha l o meu irmo para me confortar; com o brao dele volta

    dos meus ombros, resolvemos sentar-nos sombra, para passarmos o que

    nos pareciam ser horas interminveis.

    A dada altura, perguntei:

    - Achas que a Dana vai morrer?

    - No - respondeu.

    - O que que ela tem?

    - No sei.

    - Ento, como que sabes que no vai morrer?

    - Porque no vai. Eu sei que no.

    Olhei-o de lado.

    - A mam parecia assustada. O pap tambm.

    Concordou com um aceno de cabea.

    - No quero que ela morra - declarei.

    Era a primeira vez que enfrentava uma situao daquelas e senti

    medo. Como famlia, tnhamos pouco, mas sempre contramos uns com os

    outros. Mesmo sendo mais pequena e no poder, por isso, meter-se em

    aventuras como eu e o Micah, a Dana estava j a demonstrar alguns dos

    melhores aspectos da personalidade da me. Mostrava-se sempre alegre;

    soltava gargalhadas, sorria e era a minha melhor amiga, nos dias em que

    no andava junto do meu irmo. Tal como eu, adorava o jogo de Johnny

    West e, noite, passvamos horas a jogar.

    Eu e o Micah formvamos um quadro triste e curioso, ali, naquele

    parque de estacionamento. Pessoas desconhecidas viam-nos logo que

    saam dos carros para irem visitar algum doente; voltavam, horas depois, e

    notavam que continuvamos sentados no mesmo lugar. Houve quem nos

    oferecesse refrescos e comida, mas abanmos as cabeas e afirmmos que

    estvamos bem. Havamos sido ensinados a no aceitar nada de ningum.

    Um pouco mais tarde, quando o meu irmo estava a trepar a rvore,

    desequilibrou-se e caiu no pavimento. Caiu sobre o pulso e gritou; quando

    me mostrou o brao, vi que o pulso comeava a inchar e a ficar arroxeado.

  • Trocmos impresses, pusemos a hiptese de ele ter o pulso partido.

    Chegmos a pensar em desobedecer mam, em entrar no hospital para lhe

    contar o que tinha acontecido; no sabamos se o brao teria de ser

    engessado.

    Contudo, no samos do mesmo stio. No podamos. No final,

    acabmos por saber que a minha irm estava salva e descobrimos que o

    pulso do Micah tinha uma luxao, no estava partido, mas na altura no

    sabamos de nada. Por isso, permanecemos sentados, de corao pesado

    pelo medo, sozinhos; pouco falmos durante o resto da tarde.

  • CAPITULO QUATRO

    Depois de ouvir as recriminaes do Micah por no estar a encarar

    com o devido entusiasmo a ideia de ir viajar volta do mundo, desliguei o

    telefone e fiquei a pensar no que o meu irmo acabara de me dizer. No que

    a Cat andava a dizer-me. No que o meu agente andava a dizer-me. Naquilo

    que, de facto, toda a gente me dizia acerca da viagem, sempre que eu a

    mencionava. A despeito dos argumentos lgicos, apesar de a ideia ter sido

    minha, a perspectiva

    de iniciar a viagem continuava a no me provocar qualquer

    entusiasmo.

    No se dava o caso de eu estar a passar os meus dias num estado de

    tristeza e abatimento. Para ser franco, andava muito atarefado e retirava

    uma tremenda satisfao de tudo o que estava a fazer. A minha mulher

    tinha razo: eu estava muito ocupado por gostar de estar muito ocupado.

    Cismava que, provavelmente, o meu problema estava no facto de

    concentrar todas as minhas energias s em trs ocupaes - pai, marido e

    escritor - que me deixavam pouco tempo para quaisquer outras actividades.

    Desde que tudo se enquadrasse naquelas pequenas divisrias, bem

    arrumadas, que construra para mim mesmo, eu sentia que dominava a

    situao. No me limitava a fazer coisas, sentia-me bem. No entanto, como

    tudo o que conseguia fazer estava contido naquelas mesmas ocupaes, a

    ideia de ultrapassar os limites das divisrias e fazer coisas novas, como

    viajar, partir aventura ou passar trs semanas com o meu irmo, no s

    me parecia impossvel, mas tambm um compromisso de que

    eventualmente viria a arrepender-me. E num raro momento de claridade,

    num ano caracterizado pela nebulosidade, de sbito, apercebi-me de que

    tinha comeado a impor-me limites demasiado estreitos.

    Se no conseguia encontrar excitao na ideia de fazer uma viagem

    volta do mundo, que espcie de pessoa era eu? Nem eu sabia. S sabia que

    no queria ficar assim para sempre. De uma forma ou de outra, precisava

    de readquirir o meu equilbrio.

    Existem, como se sabe, milhares de livros e de programas que nos

    sugerem mtodos para endireitarmos a vida, alm de especialistas de todo

    o gnero que se gabam de ter as respostas. Porm, instintivamente, quis

  • esclarecer as situaes com a nica pessoa que tinha vivido as mesmas

    situaes de vida que eu vivera: o meu irmo.

    Durante os trs ltimos anos, o Micah tambm tivera as suas lutas

    pessoais, especialmente acerca da f. Deixara praticamente de rezar e a

    religio tornara-se um tema em que no se sentia vontade. A mulher dele,

    a Christine, dera-me conta das suas preocupaes em mais de uma ocasio,

    pois era devotada s suas crenas crists, tal como Micah j fora;

    lentamente, comecei a compreender que, de certa forma, aquela era uma

    oportunidade de nos ajudarmos um ao outro. E, assim, comecei a encarar a

    excurso segundo uma nova perspectiva: seria menos uma viagem volta

    do mundo e mais uma viagem para redescobrir quem eu era e as maneiras

    como me tinha tornado no que era.

    Quando reflectia sobre a minha infncia, quase sempre a recordava

    com uma luz sem sombras, como se as bordas escuras nunca

    tivessem existido. Ou, a existirem, eram algo de que me podia vangloriar,

    uma espcie de menes honrosas. Com a passagem dos anos, situaes

    perigosas transformaram-se em anedotas divertidas; momentos dolorosos

    deram origem a narrativas carregadas de inocncia. No passado, quando

    me perguntavam como eram os meus pais, a resposta habitual era que a

    minha me e o meu pai eram pessoas comuns e normais,

    como normal fora a minha infncia. Contudo, ultimamente tenho

    vindo a aperceber-me de que, embora parcialmente verdadeiros, os

    meus comentrios continham a sua dose de falsidade; e s depois de terem

    nascido os meus prprios filhos que comecei a compreender as presses

    constantes que afligiam os meus pais. Ter filhos uma fonte de

    preocupaes e no tenho dvidas de que os nossos pais, apesar da

    liberdade que nos concediam, tinham preocupaes constantes connosco.

    Contudo, se criar filhos uma tarefa difcil, aprendi que o casamento

    representa um desafio ainda maior e, quanto a isso, o dos meus pais no foi

    excepo.

    No incio de 1972, os meus pais lutavam para conservar o lar intacto.

    ramos crianas e no nos apercebamos dos pormenores; s sabamos que

    o pap passara a assobiar constantemente, o que era um sinal de mau

    agouro. No meu pai, o som daquelas melodias sem nome, que subia e

    descia, representava um primeiro sinal que ns, os filhos, nos habituramos

    a detectar, de que ele estava furioso.

  • Numa segunda fase, resmungava e assobiava enquanto andava em

    crculos e se recusava a falar fosse com quem fosse. A terceira fase

    significava o cerrar dos lbios e, na quarta, comeava a ficar vermelho. Por

    vezes, conseguia parar uma eventual progresso para o lanamento da

    bomba nuclear, mas, se atingia a quinta fase, aquela em que enrolava a

    lngua por cima dos dentes inferiores, de modo a deix-la fora da boca e

    mantida naquela posio pelos dentes de cima, os filhos sabiam que

    chegara a altura de se decidirem: ou fugiam ou escondiam-se. Sabamos

    que ia pegar no cinto, que tinha substitudo o mata-moscas como

    instrumento de punio.

    Apesar de ainda serem raros, estes momentos estavam a acontecer

    com frequncia crescente. Olhando para trs, no consigo atribuir-lhe as

    culpas. Em 1963, era um jovem estudante, mal alimentado e recm-casado;

    nove anos mais tarde, continuava a ser um estudante mal alimentado, mas

    entretanto contrara a responsabilidade de prover as necessidades de uma

    famlia de cinco pessoas. O trabalho obrigava-o a ir estudando a passo de

    tartaruga, e tentar escrever uma dissertao com trs filhos a usarem o

    apartamento como espao de recreio era suficiente para pr qualquer

    pessoa maluca.

    Por sua vez, a mam continuava a adorar-nos sem equvocos.

    Quando a seguamos at loja ou quando ela nos levava igreja, estava

    sempre disposta a manifestar o seu orgulho perante algum que estivesse

    por perto. Era dotada de uma fantstica capacidade para esquecer o quanto,

    por vezes, conseguamos ser maus, mas a capacidade de perdoar era

    temperada pela prpria fora de vontade que sempre procurara instilar-nos.

    Por mais bravios que nos tornssemos, por mais que nos afastssemos nas

    nossas aventuras, para mim e para o meu irmo nunca houve dvidas sobre

    quem mandava. Se a mam nos mandava estar em casa hora do jantar,

    ns cumpramos a ordem. Se nos mandava limpar o nosso quarto,

    encetvamos a tarefa logo de seguida. E se fizssemos asneira, ela faria

    tudo para que corrigssemos o erro imediatamente. Quando o julgava

    necessrio, defendia-nos como uma fera. Quando a professora deu uma

    bofetada no Micah, pela tarde, a mam irrompeu pela escola e arrastou-me,

    a mim e ao meu irmo atrs dela.

    - Se volta a bater num dos meus filhos, chamo a polcia e mando-a

    prender. No volte a tocar nos meus filhos.

  • A caminho da sada, eu e o Micah vnhamos de peito inchado, como

    dois galos, a pensar: Toma l, velha bruxa. A mam mostrou-te quem que manda...

    - Mam, tu s a maior - cantarolou Micah. A me voltou-se

    para ele e encostou-lhe um dedo na cara.

    - No quero que te passe pela cabea que eu desconheo o motivo

    por que ela te bateu. Se calhar, mereceste a bofetada. E se alguma

    vez

    voltares a falar com ela no mesmo tom, eu me encarregarei de te

    demonstrar o que levar uma verdadeira bofetada.

    - Est bem, mam.

    - Sabes que te adoro, no sabes?

    - Sei, mam.

    - Sabes que estarei sempre pronta a defender-te, no sabes?

    - Sei, mam.

    - Mas nem por isso deixo de estar desapontada contigo. E vais

    ficar de castigo.

    Micah ficou de castigo, mas o desapontamento dela foi o pior de

    tudo. Odivamos desapont-la.

    A despeito das presses a que os nossos pais estavam sujeitos,

    medida que fomos crescendo, o pap foi ficando mais vontade conn