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Reportagem Especial VITÓRIA, ES, SEGUNDA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2014 ATRIBUNA 3 EXPERIÊNCIA NA PRISÃO Mais de 300 ações contra o Estado E m cerca de cinco anos, pelo menos 300 pessoas foram parar em cadeias do Estado e depois essas prisões foram decla- radas indevidas pela Justiça. Isso porque, desde janeiro de 2008 até o último dia 15, já existem 304 ações contra o Estado de pri- sões ilegais, segundo dados da Pro- curadoria Geral do Estado (PGE). De acordo com o órgão, entre os motivos estão: cumprimento de pena superior, prisão por paga- mento de pensão alimentícia que já foi efetuado, acusação de prática errônea, registros cadastrais penais ou civis desatualizados e outros. O presidente da Associação dos Peritos Papiloscópicos do Espírito Santo (APPES), Antônio Tadeu Nicoletti Pereira, citou que um dos tipos de prisão ilegal é aquela em que a pessoa é processada porque algum criminoso apresentou o do- cumento dela ao ser preso. Tam- bém há casos em que o bandido diz o nome errado na delegacia, o que pode fazer com que o proces- so recaia sobre um inocente. “Depois que a pessoa bate no sis- tema inocente, fica lá e ninguém le- va fé. Bandido não diz mais o pró- prio nome, diz o nome de outro porque sabe que o sistema é falho”. O presidente da APPES expli- cou que no Estado não existe um sistema informatizado que possi- bilite a pesquisa das impressões digitais na hora em que os docu- mentos são apresentados pelos acusados na delegacia. “Uma cópia do documento é en- viada para a perícia e ele é escanea- do, mas não é comparado, pois a pesquisa é manual e não há peritos suficientes para isso. Só quando o titular do documento é intimado, que a perícia vai analisar. Todo dia faço laudo de falsa identidade usa- da para cometimento de crime”. FACILIDADE O procurador de Justiça do Mi- nistério Público Estadual (MPES) Sócrates de Souza afirmou que bandidos usam documentos de forma indevida com facilidade por- que não há um banco de dados on- de a polícia faça a conferência. Sou- za acredita, ainda, que nem todos absolvidos são de fato inocentes. “A pessoa pode ser absolvida por diversas razões, ora porque não praticou o crime, ora porque as provas não dão a certeza para o juiz que deveria condenar”. INJUSTIÇA “Nos primeiros três dias, quis me matar” Por causa de uma falha na Justi- ça, o chaveiro Fábio de Paulo Ribei- ro, 33 anos, ficou preso 25 dias sem nunca ter cometido crime algum. Fábio contou que perdeu os do- cumentos em 2003, e logo regis- trou um boletim de ocorrência. Só que em 2005, o cunhado dele foi preso e apresentou na delegacia a identidade perdida do Fábio. “Eu não sabia que meu cunhado estava com meus documentos. Ele foi preso por porte ilegal de arma, mas o processo veio para o meu nome”. Fábio foi preso por meio de um mandado de prisão no dia 5 de setem- bro de 2011. “Nos primeiros três dias, quis me matar. Muitos acreditaram em mim, mas alguns acharam que eu fosse bandido e perdi clientes. Movi uma ação contra o Estado”. KADIDJA FERNANDES/AT OUTROS CASOS Após perder documentos Um armador civil de 43 anos ficou preso durante um dia no Departamen- to de Polícia Judiciária (DPJ) de Caria- cica, no dia 2 de abril do mês passado. Ele perdeu os documentos depois de esquecê-los em um táxi, em 2002. Só que um criminoso apresentou os documentos perdidos ao ser preso, o que gerou quatro mandados de prisão no nome do armador. Ele só foi libera- do após resultado de exame pericial. LEONE IGLESIAS – 03/04/2014 Direito à indenização Após ficar dois anos preso por enga- no, o pintor Ricardo de Souza Montei- ro, de 33 anos, conseguiu ganhar uma indenização de R$ 160 mil do Estado. Ele foi preso em março de 2009, no Bairro República, em Vitória, sob acu- sação de sequestro, furto e diversos outros crimes. RODRIGO GAVINI – 23/09/2013 No lugar do irmão O agricultor Amilton Rosa de Santa, 29 anos, ficou preso 16 dias por engano em Linhares, por causa do próprio irmão, José Rosa, em abril do ano passado. José foi preso por tráfico e deu o nome de Amilton, que depois foi detido. Ao ser solto, Amilton dis- se que iria processar o Estado. WILTON JUNIOR – 10/04/2013 Banco de dados é solução O chefe da Polícia Civil no Esta- do, Joel Lyrio, afirmou que o go- verno tem uma parceria público- privada para a criação de um ban- co de dados civil, que resolveria os problemas das prisões ilegais por falsa apresentação de identidade. “O governo identificou esse pro- blema e quer resolvê-lo. A questão de se evitar essa falsificação vai ser resolvida com o banco de dados ci- vil informatizado. Talvez ainda es- te ano haja licitação”, explicou. Quanto ao problema da Polinter registrar que o acusado tem passa- gem pela polícia, mesmo após ter sido absolvido, Lyrio relatou que isso pode ocorrer porque o banco de dados da Polinter e o da Justiça não são conjugados. “Mas a própria pessoa pode tirar uma cópia da certidão de bons an- tecedentes e entregar na Polinter que o problema é resolvido”. Já a Secretaria de Estado da Jus- tiça (Sejus) informou, por meio de nota, que todos os internos do Centro de Detenção Provisória de Viana II (CDPV II) recebem trata- mento de acordo com a Lei de Execução Penal e participam de atividades de ressocialização. JULIA TERAYAMA – 20/07/2013 JOEL LYRIO: licitação este ano ANÁLISE “Injustiças diárias nas delegacias” “Em tempos de grande súplica social por mais e mais prisões, talvez o melhor caminho seja mostrar justamente o risco que todos corremos diante do incre- mento punitivo. Em verdade, o brasileiro cla- ma por prisão, mas não tem no- ção da gravidade que é retirar a liberdade de uma pessoa, nem consegue se ver como alvo pos- sível do sistema penal. As injustiças diárias que pre- senciamos nas delegacias e nos fóruns são provas de que deve- mos impor severas restrições le- gais para a decretação de prisão de um ser humano.” Clécio Lemos, Mestre em Direito Penal e professor de Direito Penal e Criminologia Preso quatro meses Um garçom de 28 anos, de Co- latina, ficou preso de novembro do ano passado até março deste ano, porque o irmão dele apre- sentou a certidão de nascimento do garçom ao ser preso, após cometer um roubo, em 2005. Em março, a Justiça revogou a prisão, pois a coleta das digi- tais mostrou que o crime foi co- metido pelo irmão do garçom. Preso ao registrar ocorrência O mecânico Cícero Eduardo de Souza, 34 anos, não imaginou que fosse voltar ao presídio pelo fato de ir até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência (BO), após perder os documentos. Ele contou que foi preso em 1998, porque cometeu um roubo, mas que cumpriu toda a sua pena em 2003, quando ganhou a liber- dade e recomeçou a sua vida. Só que, no último dia 29, quando foi a uma delegacia registrar uma ocorrência, ele recebeu voz de pri- são porque constava no sistema que ele teria fugido da Penitenciá- ria Agrícola do Estado, em Viana, em 2007. Ele disse que havia um engano, mas foi encaminhado para a unidade, onde ficam os detentos que cumprem regime semiaberto. Cícero ficou preso até a última terça-feira, quando foi desfeito o mal entendido. Para o mecânico, foi um período traumatizante. “Foram os piores dias da minha vida! Eu me senti um animal, um lixo, porque fiquei numa cela iso- lada. Fiquei até desorientado, pois passou aquele filme todo da minha vida novamente. Vou processar o Estado porque esses dias foram muito humilhantes para mim”. SEJUS A Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) informou, por meio de no- ta, que vai investigar se houve falha na inclusão do nome do interno no cadastro de foragidos da unidade. A Sejus afirmou que, durante os dias em que ele passou na unidade, esteve em cela separada dos outros internos e recebeu assistência jurí- dica, psicossocial e médica.

Tribuna 18 05

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Reportagem Especial

VITÓRIA, ES, SEGUNDA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2014 ATRIBUNA 3

EXPERIÊNCIA NA PRISÃO

Mais de 300 açõescontra o EstadoEm cerca de cinco anos, pelo

menos 300 pessoas foramparar em cadeias do Estado e

depois essas prisões foram decla-radas indevidas pela Justiça.

Isso porque, desde janeiro de2008 até o último dia 15, já existem304 ações contra o Estado de pri-sões ilegais, segundo dados da Pro-curadoria Geral do Estado (PGE).

De acordo com o órgão, entre osmotivos estão: cumprimento depena superior, prisão por paga-mento de pensão alimentícia que jáfoi efetuado, acusação de práticaerrônea, registros cadastrais penaisou civis desatualizados e outros.

O presidente da Associação dosPeritos Papiloscópicos do EspíritoSanto (APPES), Antônio TadeuNicoletti Pereira, citou que um dostipos de prisão ilegal é aquela emque a pessoa é processada porquealgum criminoso apresentou o do-cumento dela ao ser preso. Tam-bém há casos em que o bandidodiz o nome errado na delegacia, oque pode fazer com que o proces-so recaia sobre um inocente.

“Depois que a pessoa bate no sis-tema inocente, fica lá e ninguém le-va fé. Bandido não diz mais o pró-prio nome, diz o nome de outro

porque sabe que o sistema é falho”.O presidente da APPES expli-

cou que no Estado não existe umsistema informatizado que possi-bilite a pesquisa das impressõesdigitais na hora em que os docu-mentos são apresentados pelosacusados na delegacia.

“Uma cópia do documento é en-viada para a perícia e ele é escanea-do, mas não é comparado, pois apesquisa é manual e não há peritossuficientes para isso. Só quando otitular do documento é intimado,que a perícia vai analisar. Todo diafaço laudo de falsa identidade usa-da para cometimento de crime”.

FAC I L I DA D EO procurador de Justiça do Mi-

nistério Público Estadual (MPES)Sócrates de Souza afirmou quebandidos usam documentos deforma indevida com facilidade por-que não há um banco de dados on-de a polícia faça a conferência. Sou-za acredita, ainda, que nem todosabsolvidos são de fato inocentes.

“A pessoa pode ser absolvida pordiversas razões, ora porque nãopraticou o crime, ora porque asprovas não dão a certeza para ojuiz que deveria condenar”.

I N J U ST I ÇA

“Nos primeiros três dias, quis me matar”Por causa de uma falha na Justi-

ça, o chaveiro Fábio de Paulo Ribei-ro, 33 anos, ficou preso 25 dias semnunca ter cometido crime algum.

Fábio contou que perdeu os do-cumentos em 2003, e logo regis-trou um boletim de ocorrência.

Só que em 2005, o cunhado delefoi preso e apresentou na delegacia aidentidade perdida do Fábio.

“Eu não sabia que meu cunhadoestava com meus documentos. Ele foipreso por porte ilegal de arma, mas oprocesso veio para o meu nome”.

Fábio foi preso por meio de ummandado de prisão no dia 5 de setem-bro de 2011. “Nos primeiros três dias,quis me matar. Muitos acreditaramem mim, mas alguns acharam que eufosse bandido e perdi clientes. Moviuma ação contra o Estado”.

KADIDJA FERNANDES/AT

OUTROS CASOS

Após perder documentosUm armador civil de 43 anos ficou

preso durante um dia no Departamen-to de Polícia Judiciária (DPJ) de Caria-cica, no dia 2 de abril do mês passado.

Ele perdeu os documentos depoisde esquecê-los em um táxi, em 2002.Só que um criminoso apresentou osdocumentos perdidos ao ser preso, oque gerou quatro mandados de prisãono nome do armador. Ele só foi libera-do após resultado de exame pericial.

LEONE IGLESIAS – 03 / 0 4 / 2 0 1 4

Direito à indenizaçãoApós ficar dois anos preso por enga-

no, o pintor Ricardo de Souza Montei-ro, de 33 anos, conseguiu ganhar umaindenização de R$ 160 mil do Estado.

Ele foi preso em março de 2009, noBairro República, em Vitória, sob acu-sação de sequestro, furto e diversosoutros crimes.

RODRIGO GAVINI – 23/09/2013

No lugar do irmãoO agricultor Amilton Rosa de

Santa, 29 anos, ficou preso 16dias por engano em Linhares,por causa do próprio irmão, JoséRosa, em abril do ano passado.

José foi preso por tráfico e deuo nome de Amilton, que depois foidetido. Ao ser solto, Amilton dis-se que iria processar o Estado.

WILTON JUNIOR – 10/04/2013

Banco de dados é soluçãoO chefe da Polícia Civil no Esta-

do, Joel Lyrio, afirmou que o go-verno tem uma parceria público-privada para a criação de um ban-co de dados civil, que resolveria osproblemas das prisões ilegais porfalsa apresentação de identidade.

“O governo identificou esse pro-blema e quer resolvê-lo. A questãode se evitar essa falsificação vai serresolvida com o banco de dados ci-vil informatizado. Talvez ainda es-te ano haja licitação”, explicou.

Quanto ao problema da Polinterregistrar que o acusado tem passa-gem pela polícia, mesmo após tersido absolvido, Lyrio relatou queisso pode ocorrer porque o bancode dados da Polinter e o da Justiçanão são conjugados.

“Mas a própria pessoa pode tiraruma cópia da certidão de bons an-tecedentes e entregar na Polinterque o problema é resolvido”.

Já a Secretaria de Estado da Jus-

tiça (Sejus) informou, por meio denota, que todos os internos doCentro de Detenção Provisória deViana II (CDPV II) recebem trata-mento de acordo com a Lei deExecução Penal e participam deatividades de ressocialização.

JULIA TERAYAMA – 20/07/2013

JOEL LYRIO: licitação este ano

ANÁLISE

“Injustiças diáriasnas delegacias”

“Em tempos de grande súplicasocial por mais e mais prisões,talvez o melhor caminho sejamostrar justamente o risco quetodos corremos diante do incre-mento punitivo.

Em verdade, o brasileiro cla-ma por prisão, mas não tem no-ção da gravidade que é retirar aliberdade de uma pessoa, nemconsegue se ver como alvo pos-sível do sistema penal.

As injustiças diárias que pre-senciamos nas delegacias e nosfóruns são provas de que deve-mos impor severas restrições le-gais para a decretação de prisãode um ser humano.”

Clécio Lemos, Mestre em DireitoPenal e professor de Direito Penal e

Criminologia

Preso quatro mesesUm garçom de 28 anos, de Co-

latina, ficou preso de novembrodo ano passado até março desteano, porque o irmão dele apre-sentou a certidão de nascimentodo garçom ao ser preso, apóscometer um roubo, em 2005.

Em março, a Justiça revogoua prisão, pois a coleta das digi-tais mostrou que o crime foi co-metido pelo irmão do garçom.

Preso ao registrar ocorrênciaO mecânico Cícero Eduardo de

Souza, 34 anos, não imaginou quefosse voltar ao presídio pelo fatode ir até uma delegacia registrarum boletim de ocorrência (BO),após perder os documentos.

Ele contou que foi preso em1998, porque cometeu um roubo,mas que cumpriu toda a sua penaem 2003, quando ganhou a liber-dade e recomeçou a sua vida.

Só que, no último dia 29, quandofoi a uma delegacia registrar umaocorrência, ele recebeu voz de pri-são porque constava no sistema

que ele teria fugido da Penitenciá-ria Agrícola do Estado, em Viana,em 2007. Ele disse que havia umengano, mas foi encaminhado paraa unidade, onde ficam os detentosque cumprem regime semiaberto.

Cícero ficou preso até a últimaterça-feira, quando foi desfeito omal entendido. Para o mecânico,foi um período traumatizante.

“Foram os piores dias da minhavida! Eu me senti um animal, umlixo, porque fiquei numa cela iso-lada. Fiquei até desorientado, poispassou aquele filme todo da minha

vida novamente. Vou processar oEstado porque esses dias forammuito humilhantes para mim”.

SEJUSA Secretaria de Estado da Justiça

(Sejus) informou, por meio de no-ta, que vai investigar se houve falhana inclusão do nome do interno nocadastro de foragidos da unidade.

A Sejus afirmou que, durante osdias em que ele passou na unidade,esteve em cela separada dos outrosinternos e recebeu assistência jurí-dica, psicossocial e médica.