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TRIBUTO, DIREITO & RETÓRICA Luís Carlos Martins Alves Jr. $

TRIBUTO, DIREITO & RETÓRICA

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TribuTo, DireiTo & reTórica

Luís Carlos Martins Alves Jr.

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Luís CarLos Martins aLves Jr.

TRIBUTO, DIREITO & RETÓRICA

BrasíliauniCeuB

2014

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LUÍS CARLOS MARTINS ALVES JR.

Bacharel em Ciências Jurídicas, universidade Federal do Piauí – uFPiDoutor em Direito Constitucional, universidade Federal de Minas Gerais – uFMG

Professor de Direito Constitucional, Centro universitário de Brasília – CeuBProcurador da Fazenda nacional perante o supremo tribunal Federal

advogado

aLves Jr, Luís Carlos Martins. tributo, Direito & retórica. Luís Carlos Martins alves Jr. – uniCeuB : Brasília, 2014. 76 p. isBn 978-85-61990-40-4 1. Direito tributário. 2. Direito Constitucional. 3. Poder Judiciário. 4. Justiça Fiscal. 5. segurança tributária.

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SUmáRIO

PreFáCio ...........................................................................................................................................................5

aPresentação ............................................................................................................................................6

1. a (in)Justiça FisCaL e a (in)seGurança triButária na DinâMiCa Ju-risPruDenCiaL Do suPreMo triBunaL FeDeraL .......................................................7

2. Garantias e PriviLéGios Do CréDito triButário .......................................... 25

3. o CanCeLaMento Do reGistro Dos FaBriCantes De CiGarros: Pers-PeCtivas e exPeCtativas Do JuLGaMento Da ação Direta De inCons-tituCionaLiDaDe n. 3.952 ................................................................................................................42

4. o Pis e a CoFins Das instituições FinanCeiras: PersPeCtivas e ex-PeCtativas Do JuLGaMento Dos reCursos extraorDinários ns. 400.479 e 609.096 .............................................................................................................................................46

5. os MuniCíPios e a Guerra FisCaL Do issQn: uMa Breve anáLise aCerCa Das PersPeCtivas e exPeCtativas Do ProCesso e JuLGaMen-to Da aDPF 189 ...........................................................................................................................................51

6. PareCer: ação Direta De inConstituCionaLiDaDe n. 5.096 - correção da tabela do irPF ..............................................................................................................................................66

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PREFáCIO

Conheço Luís Carlos desde 1983, quando ainda usávamos calças curtas no colégio dos jesuítas de teresina.

embora seja tentado a pensar que evoluímos alguma coisa desde lá, o certo é que permanecem inalterados os pilares sobre que, da minha parte, repousa esta velha amizade: a admiração pelo caráter reto, pela inteligência rápida, pela cultura já então invejável, pela fala fluente, pelo espírito gregário, pela presença assertiva.

em sua produção como professor de Direito Constitucional, antigo advogado de contribuintes e hoje destacado Procurador da Fazenda nacional com atuação exclusiva perante o supremo tribunal Federal, Luís já fez muito de tudo: ensaios acadêmicos de fôlego, artigos de investigação doutrinária ou de matiz pragmático, arqueologia jurisprudencial, pareceres e conferências.

nos textos que compõem tributo, Direito & retórica, o autor se apresenta por inteiro. estão aqui o gosto pelos clássicos, a liberdade de espírito e a atração pela polêmica.

estão aqui ainda a robusta formação jurídica, a análise arguta e a atenção aos detalhes que não-raro selam a sorte de um caso judicial, como as alterações na composição dos tribunais.

está aqui, sobretudo, uma visão realista, mas ainda esperançosa, embora nada conformista, do Direito, do estado, da Família e do Homem, pois o autor é dos que sabem que, apesar de toda a Hermenêutica, há um momento no qual a interpretação resvala numa escolha, e que é neste instante decisivo – no qual o Juiz se vê frente a frente consigo mesmo – que o Direito se socorre da moral.

este não é o espaço para discutir as teses defendidas no livro. Como ocorrerá com o leitor, saí engrandecido mesmo quando não convencido, pois é também nas divergências, ou especialmente nelas, que se aclaram as ideias.

e poucos são tão bons debatedores como o meu amigo Luís.

são Paulo, setembro de 2014.

igor Mauler santiagoBacharel, Mestre e Doutor em Direito tributário pela uFMG

ex-Professor de Direito tributário da uFMGadvogado

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APRESENTAÇÃO

o presente livro condensa seis textos de minha lavra sobre alguns temas de direito tributário. Quatro desses textos nasceram de palestras que proferi, daí o caráter retórico do livro. Há um texto que nasceu de provocação acadêmica e visita o tema da guerra fiscal municipal em relação ao ISSQN. Há outro que se trata de um Parecer que proferi na qualidade de procurador da Fazenda nacional sobre a correção da tabela do irPF. esses outros dois textos também são retóricos.

o leitor perceberá que para mim o “tributo” é um “ônus” indispensável que deve incidir sobre todos os agentes econômicos como “bônus” por se viver em uma determinada sociedade. Mas esse “ônus” deve ser legal e legítimo. esse “ônus” não deve nem pode asfixiar a atividade produtiva nem desestimular o desejo de enriquecer. Há de haver um equilíbrio entre as necessidades arrecadatórias do Fisco e as possibilidades de cumprimento das obrigações fiscais dos contribuintes.

a tradição tributária brasileira tem sido marcada por uma irresponsabilidade fiscal, especialmente do lado do Estado. Mas não são poucos os contribuintes que não honram com as suas obrigações tributárias. Além de aspectos fiscais, há aspectos moralidade cívica, pois nos regimes democráticos ninguém tem o direito de não cumprir com os seus deveres e obrigações. e todos têm o direito de exigir que o estado também cumpra com os seus deveres e obrigações.

a Constituição brasileira, de origem democrática e de indiscutível legitimidade política, tem um catálogo de preceitos tributários que não encontra paralelo em outras Constituições de países democráticos e que possuem um alto grau de civilidade humana. esse catálogo tributário rivaliza com o rol de promessas normativas nela estampado. Para concretizar esses direitos constitucionais transformadores da realidade social, o estado necessitará de muitos recursos financeiros, pois “direitos não brotam das árvores”. É preciso armar o estado de recursos. é preciso blindar os contribuintes de eventuais abusos. é indispensável alcançar o ponto de equilíbrio. tarefa complexa.

neste livro falo sobre o importante papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário, em particular pelo supremo tribunal Federal, como guardião desse equilíbrio normativo. o stF deve decidir as questões constitucionais tributárias que lhe são submetidas cônscio da grave responsabilidade que carrega: julgar em absoluta conformidade com o Direito e com a Justiça.

espero que este livro possa servir como ponto de partida para debates tributários sérios ou para estudos acadêmicos mais aprofundados.

Por fim, o reconhecimento de dívidas irresgatáveis. Agradeço à minha esposa Pollyanna, dócil credora, e aos meus pequenos “fiscais” afetivos Luís Felipe e Carlos Augusto, meus tesouros existenciais.

Boa leitura!

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1. A (IN)JUSTIÇA FISCAL E A (IN)SEGURANÇA TRIBUTáRIA NA DINÂmICA JURISPRUDENCIAL DO SUPREmO TRIBUNAL FEDERAL1

Em homenagem aos meus diletos amigos Igor Mauler Santiago e José Emílio Medauar Ommati, que cumpriram as promessas de que se tornariam juristas brilhantes.

o tributo é um ônus econômico decorrente do suposto bônus de se conviver em uma determinada sociedade. os tributos são instrumentos indispensáveis para as relevantes políticas públicas do Estado, pois os recursos financeiros são obtidos precipuamente mediante a sua cobrança. Eles - os tributos - servem, basicamente, tanto para financiar o Estado quanto para modificar as condutas e hábitos sociais, como sucede, por exemplo, com a alta tributação sobre determinados bens ou produtos, como as bebidas alcoólicas e os fumígeros. Ou seja, os tributos têm finalidades eminentemente fiscais arrecadatórias ou extrafiscais pedagógicas.

tenha-se que o tributo se confunde com o poder estatal sobre as vidas e as liberdades humanas. Daí porque aliomar Baleeiro ter dito que onde se ergue o poder do estado estende-se a sombra do poder de tributar. nessa perspectiva, é preciso estudar e compreender o fenômeno tributário como instrumento fundamental para o financiamento do estado ou como instrumento normativo indutor de comportamentos humanos.

nessa toada, conhecer o sistema tributário, tanto em seu aspecto estático (textos normativos) quanto em seu aspecto dinâmico (práticas administrativas e judiciais), bem como no seu aspecto acadêmico (os discursos doutrinários), assim como nas experiências de outros estados e sociedades, é de extrema relevância. Cuide-se, no entanto, que nos sistemas democráticos, os tributos devem ser justos, no sentido de repartidos entre a maior quantidade possível de contribuintes, e devem permitir que esses contribuintes tenham segurança e confiança no próprio sistema jurídico.

eis a razão de se estudar, de modo aprofundado, os principais postulados normativos da atividade tributária do estado: a justiça e a segurança jurídica. o tributo é justo se adequado às necessidades do Estado e às possibilidades dos contribuintes. O tributo é seguro se sua cobrança é pautada pelo consentimento dos contribuintes e segundo os padrões normativos previamente estabelecidos e conhecidos por eles – os contribuintes.

nessa linha, é de se indagar: a dinâmica jurisprudencial do stF tem favorecido a um sistema jurídico-constitucional tributário justo? Dito de outra maneira: o stF tem declarado inconstitucionais os tributos injustamente cobrados? a justiça tem sido um parâmetro normativo nos julgamentos do supremo tribunal Federal?

E o postulado da paz, aqui entendido, como fim dos conflitos, das controvérsias, das dúvidas e das incertezas, que também podemos chamar de segurança jurídica, tem sido alcançado e realizado pela jurisprudência do STF no julgamento das questões fiscais?

as decisões do supremo tribunal Federal, em matéria tributária, consolidam o valor normativo segurança jurídica? Os cidadãos contribuintes podem ficar seguros, tranqüilos, com a prática jurisprudencial do stF? em suas decisões, o stF torna possível o reconhecimento da confiabilidade no sistema tributário? Em suas decisões, o STF fortalece

1 Texto de palestra proferida no III Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito Brasileiro, na Cidade do serro – MG, em 30.8.2012. tema central: Justiça Fiscal, orçamento e efetivação dos Direitos Fundamentais. evento realizado na Pontifícia universidade Católica de Minas Gerais, campus serro - MG, entre os dias 27 e 31 de agosto de 2012.

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a ideia de cognoscibilidade dos provimentos tributários? e o contribuinte pode projetar e calcular os seus encargos fiscais, a partir das decisões judiciais do STF? No plano da realidade, o contribuinte, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, pode confiar na jurisprudência do supremo tribunal Federal em matéria tributária, no sentido de que as decisões da Corte traduzem e consubstanciam a indispensável segurança e a desejada justiça?

a depender do prisma que se enxergue as decisões da Corte, pode-se dizer que o supremo tribunal Federal tem cometido algumas falhas em sua missão constitucional de viabilizar a justiça fiscal e de consolidar a segurança tributária. Para a maioria dos autores de direito tributário, o Tribunal tem sido muito mais sensível às necessidades financeiras do estado do que aos direitos fundamentais dos contribuintes.

Isso não significa que o Supremo Tribunal Federal seja uma Corte confirmadora de todas as práticas normativas fiscais do Estado, ou que o Tribunal não tenha decisões favoráveis aos contribuintes ou mesmo que as decisões favoráveis ao Fisco estejam erradas. Mas, segundo a crítica exposta em várias teses jurídico-acadêmicas, o supremo tribunal Federal tem tomado decisões fiscalmente injustas e que trazem insegurança tributária para os contribuintes. e essas decisões afetam a credibilidade institucional da Corte e quebram a confiança no sistema jurídico-tributário.

Pois bem, passemos ao exame do texto constitucional e de interessantes decisões tributárias do supremo tribunal Federal, e vejamos se a Corte tem julgado as questões tributárias em estrita obediência à Constituição, sem descurar das necessidades sociais e da realidade econômica do Brasil.

uso o termo “dinâmica jurisprudencial” porque compartilho do entendimento que vê o Direito como “organismo vivo”, que deve se adaptar às realidades e às necessidades para continuar válido e vigente. o mesmo sucede com os magistrados e tribunais: devem se adaptar aos tempos que vivem, sob pena de serem ignorados. todo “organismo” para continuar sobrevivendo e para continuar a existir, necessita de se adaptar. Quem não se adapta não sobrevive.

Passo ao exame do texto constitucional. a república Federativa do Brasil, ou seja, a união Federal, os estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, que se pretende e que se quer um estado que seja Democrático e de Direito, tem, como fundamentos, naquilo que interessa imediatamente ao tema, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa e a soberania popular (art. 1º, itens, CF).

Forte nesses alicerces político-normativos, a república (o todo e as suas aludidas partes componentes – união Federal, estados-membros, Municípios e Distrito Federal) elegeu os seguintes objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, itens, CF).

tenha-se que já no Preâmbulo da Constituição estão revelados os parâmetros normativos que animaram os esforços dos representantes políticos no exercício do poder constituinte originário, no sentido de que fosse assegurado o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como os valores supremos de nossa Pátria.

a Constituição Federal de 1988 é um texto normativo ambicioso. regula múltiplas e complexas tarefas para os poderes públicos, para os indivíduos, para a sociedade,

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para o conjunto de pessoas ou coletividades que se encontram no território brasileiro. Muitas, senão a totalidade, dessas tarefas estabelecidas pela Constituição têm custos e estes custos e despesas necessitam de ser suportados por “alguém”.

Com efeito, as promessas constitucionais sociais implicam ônus financeiros ou para o estado (aqui entendido como Poder Público) ou para as empresas ou para os indivíduos ou para todos. o estado não produz nem gera riquezas. o estado se apropria das riquezas geradas ou produzidas pelos indivíduos e pelas empresas. Quem gera riqueza é a sociedade, através dos indivíduos e das empresas.

essa apropriação se dá, sobretudo, por meio de tributos. os tributos são a apropriação por parte do estado de parcela das riquezas geradas ou produzidas pelos indivíduos e empresas. Por meio dos tributos, o Estado se financia para o desenvolvimento de suas atividades. não é tarefa do estado gerar riquezas. é sua tarefa viabilizar a geração de riquezas.

Mas porque o estado necessita tanto dos tributos que arrecada dos indivíduos e das empresas? Porque o estado transfere parte das riquezas produzidas pela sociedade para si? as respostas podem ser encontradas na Constituição.

Com efeito, a Constituição estabeleceu, no artigo 6º, que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desemparados. Essas promessas constitucionais para se tornarem realidade exigem esforços do Poder Público. e esses esforços custam muito dinheiro. é preciso ter dinheiro para concretizar de modo ótimo esses direitos.

a Constituição estabelece, no artigo 7º inciso iv, que é direito do trabalhador urbano ou rural que trabalhe ao menos 44 horas por semana, um salário-mínimo que seja capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

esse salário-mínimo será suportado pelos empregadores particulares ou estatais, ou pelo estado via benefícios da seguridade social (art. 201, § 2º, CF). Peço licença para um dado curioso e revelador do aspecto patrimonialista do estado brasileiro, que está muito longe de ser uma república que a todos trata com igualdade e dignidade, como tão bem assinalou raymundo Faoro no clássico “os Donos do Poder”.

é que o cidadão que recebe um salário-mínimo deve usar esse salário para si e para sua família, e deve, com esse salário, que é mínimo, arcar com as suas necessidades vitais básicas, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. tudo com um salário-mínimo. o mínimo salário deve cobrir as máximas despesas do trabalhador e as de sua família. Mas os “nobres” (e aqui o termo nobre é no sentido de pertencente à nobreza, uma casta que se julga superior) deputados, senadores, ministros, magistrados e demais altas figuras da esfera política brasileira ou da alta burocracia estatal, dos três Poderes, que ganham muito mais do que um salário-mínimo, recebem auxílios de várias ordens: moradia, alimentação, transporte, creche, saúde etc.

vejam, com um salário-mínimo o cidadão deve viver, se alimentar, se transportar, se limpar, se educar, se cuidar, se precaver para o futuro etc. Mas um “nobre” parlamentar ou magistrado ou um “alto” membro da elite estatal não consegue “sobreviver” apenas com o seu “salário”. ele necessita desses vários auxílios. Há algo de errado nessa equação. Quem ganha pouco tem de aprender a viver com o pouco. Mas quem ganha muito não pode viver

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com esse muito, necessita de muito mais. Quem paga a conta? Como e com que dinheiro essa conta é paga?

Mas retorno às promessas constitucionais sociais, que exigem prestações ou ações positivas do estado. na Constituição, em seu artigo 23, itens, está disciplinada a competência comum da união, dos estados, dos Municípios e do Distrito Federal. vejamos quais são as tarefas comuns dos entes componentes da república Federativa do Brasil:

art. 23. é competência comum da união, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

i - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;

ii - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

iii - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

iv - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

vi - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;

viii - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;

ix - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;

x - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;

XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;

xii - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.

Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a união e os estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Considerando que estamos em ano de eleições municipais, vejamos o que determina a Constituição como tarefas dos Municípios:

art. 30. Compete aos Municípios:...

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;

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VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

...

ix – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

não é preciso ser um gênio em matemática ou economia para saber que essas tarefas constitucionais implicam gastos, pois exigem ações político-administrativas concretas. Quem pagará a conta? Como essa conta será paga?

Continuo com as promessas constitucionais de caráter prestativo ou positivo. na Constituição, no título vii que versa sobre a ordem econômica e Financeira - que tem por fim assegurar a todos existência digna -, nos Capítulos II e III, que cuidam respectivamente da Política urbana e da Política agrícola e Fundiária e da reforma agrária, o constituinte regula tema social delicado, que também tem impacto nas finanças públicas.

Mas as generosas bondades constitucionais encontram o seu estuário no título viii que versa sobre a ordem social, entre os artigos 193 a 232. nesses aludidos dispositivos constitucionais estão reveladas as facetas éticas e morais do estado brasileiro, com a normatização da bondade e da misericórdia, que deveria ser em defesa dos hipossuficientes. o título viii epigrafado como da ordem social é a regulação jurídica da bondade, e segundo dispõe o artigo 193 tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar a justiça sociais. reiteramos na insistência cansativa, essa generosidade normativa tem custos. não há direitos fundamentais sociais gratuitos. todos os direitos fundamentais sociais custam caro. indaga-se: quem vai pagar a conta? Como esse dinheiro será arrecadado?

nada obstante, vejamos alguns desses direitos que revelam a “mão visível do estado” nas desequilibradas relações humanas. Comecemos com a própria ideia constitucional de “seguridade social”, que compreende um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, com “universalidade da cobertura e do atendimento” (art. 194, itens, CF).

entre os artigos 196 e 200 da Constituição Federal estão arrolados enunciados normativos relativos à saúde, que deve ser direito de todos e dever do Estado, e que deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

segundo a Constituição, as ações e serviços de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada e devem constituir um sistema único que deve disponibilizar atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. esse sistema único de saúde, conhecido pela sigla sus, recebeu diretamente da Constituição as seguintes competências:

art. 200. ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

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ii - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

iii - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

iv - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

viii - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

esse sistema é um “super-sistema”, é o suPer-sus. e o constituinte ainda se deu ao luxo de proibir a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País (art. 199, § 3º, CF). Depois da saúde, a seguridade social alcança a previdência, que é geral, contributiva e obrigatória, tendo a seguinte missão:

art. 201. a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:

i - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;

II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;

iii - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;

iv - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;

v - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.

esse citado § 2º determina que nenhum benefício terá valor mensal inferior ao salário-mínimo, e no § 4º está assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o “valor real”. nos dispositivos sobre a previdência social, está disciplinado o modelo brasileiro de aposentadoria para aqueles que não têm regime próprio de previdência, que são basicamente os servidores públicos e os militares. é a previdência de um estado-“providência”, aquele que “acredita” que tudo pode e tudo realiza. esse estado “providencial”, verdadeira secularização do “poder divino” ou divinização do “poder temporal”, se mostra eloqüente ao cuidar da assistência social. eis o que dispõe a Constituição:

art. 203. a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

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I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;

iii - a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Pois bem, essas são as principais promessas constitucionais relativas à seguridade social. e essas promessas são tão sérias, que o supremo tribunal Federal já decidiu que o Poder Público (ou união ou estados ou Municípios) não pode invocar a cláusula da “reserva do possível” para se furtar do cumprimento de suas obrigações constitucionais (are 639.337, rel. Min. Celso de Mello).

a denominada “cláusula da reserva do possível” consiste em uma fundamentação normativa, de base factual e financeira, que eximiria o Poder Público do dever de cumprir com as suas obrigações sociais, tendo em vista a sua “impossibilidade” financeira ou administrativa. ou seja, segundo o stF, se o Poder Público prometeu, via Constituição, deve cumprir. no jargão contratual: pacta sunt servanda. no jargão popular: “ajoelhou, tem de rezar”. Mas, indaga-se: donde vem o poder econômico do estado? Que outras tarefas deverão ser sacrificadas?

Cuide-se que as tarefas constitucionais éticas vão além. o estado é responsável pela educação, cultura e desporto, conforme o disposto nos artigos 205 a 216. segundo a Constituição, a educação é direito de todos e dever do estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

tarefa ambiciosa. educar é preparar o indivíduo para que ele possa realizar os seus projetos pessoais de vida, a sua autoestima, onde quer que ele queira. isso é o básico. o indivíduo educado é aquele que tem a real possibilidade de concretizar os seus sonhos. é o indivíduo com habilidades e capacidades máximas (e não as costumeiras mínimas) que possam viabilizar, em qualquer tempo e lugar, a plenitude de suas possibilidades e potencialidades. Mas que habilidades básicas (porém máximas, insista-se) deve ter esse indivíduo? o que é que ele deve saber? ele deve saber ler, escrever e calcular, como reverbera João Marcéllo Favella de Macêdo Claudino Fernandes. se além dessas três habilidades, esse indivíduo ainda for criativo e for possuidor de um excelente caráter e de uma correta moralidade, melhor ainda. é a formação educacional perfeita. esse deve ser o ensino básico fundamental.

ou seja, a educação deve possibilitar que ele saiba ler, compreender e escrever muito bem um texto em português. e também que seja capaz de ler, compreender e de escrever em outro idioma, preferencialmente o inglês e o espanhol. em um passado distante, era grego e latim, amanhã...

além dessa capacidade de leitura, de compreensão e de escrita, tanto no português, quanto no inglês e no espanhol, esse indivíduo deve ter um ágil e agudo raciocínio lógico-matemático. ele deve saber fazer cálculos e ponderações. Com essas habilidades

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básicas (porém insisto em seu grau ótimo), esse indivíduo estará apto a aprender outros conhecimentos e novas habilidades, em qualquer lugar e tempo, e poderá se desenvolver plenamente, tanto como trabalhador ou profissional, quanto cidadão. Ele poderá ser uma pessoa em sua plenitude existencial, confiante e com autoestima. Essa é a principal tarefa da educação: forjar uma pessoa plena.

Pois bem, o estado avocou para si essa gigantesca responsabilidade. é bem verdade que pede o auxílio da família e da própria sociedade. o estado pode até instruir, mas quem educa de verdade é a Família. sobre o ministério do ensino, dispõe a Constituição:

art. 206. o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

i - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

ii - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

iii - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

vi - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

vii - garantia de padrão de qualidade.

VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.

Algumas dessas disposições constitucionais merecem reflexões. Ficaremos com dois aspectos. Primeiro o que cuida da gratuidade do ensino prestado nos estabelecimentos oficiais. Com efeito, o ensino deve ser prestado gratuitamente para aqueles que não podem pagar por ele. Para os manifestamente carentes e para os necessitados. os que podem pagar devem pagar. o fato de o ensino ser prestado pelo estado, pelo Poder Público, não o torna necessariamente gratuito. é preciso superar esse paradigma, verdadeiro dogma, de que tudo que é público é gratuito.

O outro aspecto que merece reflexão diz respeito ao “piso dos professores públicos”. neste País, o “piso” é do magistério. o “teto” é da magistratura (art. 37, xi, CF). Que presente temos? Que futuro teremos? uma nação onde o magistério está no “piso”, no “chão”, e a magistratura está no “teto”, no “céu”, é uma nação que necessita refletir profundamente acerca dos seus valores mais caros e mais relevantes.

o maior e melhor salário público deste País deveria ser para o professor de matemática do ensino fundamental, com dedicação exclusiva, que tenha especialização, mestrado, doutorado e livre-docência e publicações relevantes. Que seja uma verdadeira sumidade na arte de fazer o aluno aprender matemática e de raciocinar com rigor e com lógica.

Com excelentes professores no ensino fundamental, bem preparados, bem remunerados, bem estimulados e entusiasmados, não necessitaremos de tantos juízes, promotores, advogados, delegados, auditores, fiscais, policiais, fóruns, delegacias, presídios e de todo o aparato de repressão estatal. Com excelentes professores no ensino fundamental,

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teremos uma sociedade mais civilizada, mais harmônica, mais pacífica, com indivíduos cônscios de seus deveres e de seus direitos. uma sociedade educada e civilizada se constrói investindo no magistério, em vez da magistratura.

As melhores inteligências e os mais bem preparados e qualificados devem ser canalizados para o magistério, e não para a magistratura. Precisamos de bons professores. Quanto melhor for o professor, menos trabalho sobrará para o juiz. Mas será que suas excelências os magistrados permitirão isso? será que os juízes permitirão que os professores tenham uma remuneração mais vantajosa? Será que nós, profissionais do direito, os “sacerdotes desse Deus secularizado que é o estado”, os conhecedores dessa “religião secularizada que é o Direito”, vamos permitir isso, que a educação seja mais importante que o Direito?

as respostas a essas indagações são fundamentais. Que tipo de povo queremos ser? um povo educado ou um povo algemado? Penso que educação é tão importante que não deveria estar nas mãos do estado, mas da sociedade. tradicionalmente, a partir das concepções totalitárias de Platão, o estado tem usado a educação para domesticar, para manipular. a educação, na mão da sociedade, deve ser usada para civilizar, para libertar, para permitir que o indivíduo possa ser o que ele quiser ser, e não ser aquilo que os outros queiram que ele seja. educar é preparar o indivíduo para que ele tenha condições de explorar todas as suas potencialidades.

indaga-se: o nosso estado tem alcançado essa missão? o brasileiro, especialmente o nascido no seio de uma família carente de recursos econômicos, é preparado para ser o que ele quiser ser, ou ele é aquilo que mal consegue ser? Quanto custa uma educação de boa qualidade para tornar uma pessoa verdadeiramente apta para o trabalho e para a cidadania? E não qualquer trabalho ou qualquer cidadania, mas o trabalho altamente qualificado que essa pessoa queira desenvolver ou da cidadania plena, que essa pessoa queira participar. Quanto estamos dispostos a gastar com educação?

Mas não é só a educação que a Constituição impõe como tarefa social do estado. além dela – a educação - temos a cultura e o desporto, como já assinalamos. a cultura, segundo a Constituição, será viabilizada e garantida a todos pelo estado, com o pleno exercício dos respectivos direitos e acesso às suas fontes nacionais, com o apoio e o incentivo à valorização e a difusão de suas manifestações (arts. 215 e 216, CF).

também é dever do estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de todos e de cada um, devendo o Poder Público incentivar o lazer, como forma de promoção social (art. 217, CF).

em terreno próximo ao da educação, a Constituição determina que o estado promova e incentive o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, tendo em vista, no geral, o bem público, o progresso das ciências, a solução dos problemas brasileiros e o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional (art. 218, itens, CF).

ainda na seara das promessas constitucionais ambiciosas, a Constituição dispõe acerca dos denominados direitos de 3ª geração: os ambientais. Com efeito, enuncia a Constituição:

art. 225. todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

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§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

i - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

ii - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

iv - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

v - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

vi - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Mas a sanha reguladora da Constituição de 1988 foi além. Dispôs, cheia de boas intenções, sobre família, criança, adolescente, jovem e idoso (arts. 226 a 230, CF). a Constituição procurou normatizar tudo, nada lhe escapa, tudo é matéria constitucional. recordando os enunciados constitucionais bondosos temos algumas das mais belas passagens de textos normativos da história da humanidade. É rica e refinada a estética da Constituição. Colho da Constituição as seguintes passagens de bondade normativa:

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades

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não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

ii - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

a Constituição determina tarefas e responsabilidades para os pais, para as famílias e para os filhos:

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

art. 230. a família, a sociedade e o estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

tenho dito que se essas promessas constitucionais se tornassem realidade, nós poderíamos nos orgulhar de sermos brasileiros. Com efeito, cuidar das crianças, dos idosos e das pessoas com deficiências, além de proteger os adolescentes e os jovens, revela um profundo senso moral, revela que nós sabemos o que é o certo. A dificuldade consiste em fazer a “coisa certa”.

Por fim, a Constituição (artigos 231 e 232) dispõe sobre a situação dos índios, reconhecendo-lhes a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. em relação aos povos indígenas, que são tão brasileiros quanto quaisquer outros de nós, e merecem ser tratados com respeito e consideração, o estado deve viabilizar que eles também – os índios – possam ter acesso à melhor educação, ao ensino de línguas (português, inglês e espanhol), ao ensino de matemática e ao desenvolvimento de seu raciocínio lógico, pois ele – o índio – não é “bicho”, é gente e deve ser tratado como tal: com respeito e consideração.

Índio deve ter acesso aos bens de consumo e às facilidades do desenvolvimento econômico, tecnológico e científico da humanidade. Eles devem participar do desenvolvimento cooperativo entre os povos. eles – os índios – são povo brasileiro. e como brasileiros devem ser tratados. nessa perspectiva, o índio educado, assim como qualquer outra pessoa educada, pode decidir o seu destino, em vez de viver o destino que lhe foi traçado, seja pelo estado seja pelos seus ancestrais. a pós-modernidade também deve ser viabilizada para os índios, em vez de aprisioná-los na pré-modernidade.

Com isso, finalizamos as promessas constitucionais sociais. Esses mandamentos implicam custos. Donde virá o dinheiro para tornar realidade, para concretizar em ponto ótimo essas obrigações? o dinheiro decorrerá do estado ou dos tributos arrecadados pelo estado? À luz do texto constitucional, se tomarmos os mandamentos contidos nos dispositivos da ordem econômica e Financeira (arts. 170 a 192, CF), perceberemos que a

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atividade produtiva não compete ao Estado, mas sim aos indivíduos e às empresas, que são corporações vocacionadas ao lucro.

segundo a Constituição, é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (art. 170, parágrafo único, CF). nessa toada, nos termos da Constituição e ressalvados os casos nela previstos, a exploração direta de atividade econômica pelo estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei (art. 173, CF). Isso significa que a regra é a atividade produtiva particular. a exceção é a atividade produtiva estatal.

é de se indagar: no Brasil de hoje, ainda se faz necessária a existência de “empresas estatais”, no caso, de empresas públicas e de sociedades de economia mista? Para mim a resposta é negativa. o Brasil de hoje, para ter futuro, não se pode dar ao luxo de possuir “empresas estatais”. Não há mais justificativas convincentes da necessidade da existência dessas “empresas estatais”. Muitas dessas “empresas estatais” já prestaram relevantes serviços ao País, mas hoje elas não necessitam de continuarem sob as rédeas governamentais. todas elas deveriam ter o capital aberto, ser privatizadas, com a venda de suas ações nas bolsas de valores. Dessas “estatais”, o estado deve cobrar tributos, em vez de ser sócio ou gestor.

aonde pretendo chegar: quanto mais forte e pulsante for a iniciativa privada, mais tributos poderão ser arrecadados. Para que o estado consiga cumprir com as suas obrigações sociais, ele deve abdicar de sua atuação empresarial. o mundo empresarial é o mundo da concorrência e da competitividade. o estado não sabe conviver na concorrência e na competitividade. Daí porque se faz necessária a venda de todas, sem exceção, “empresas estatais”, especialmente daquelas que evocam sentimentos atávicos de nacionalismo e de patriotismo.

a Pátria não necessita de o estado empresário. a Pátria e os brasileiros que nela vivem necessitam de segurança, de justiça, de educação, de saúde, de estradas, de aeroportos, ferrovias, hidrovias, infovias e de tudo que possa melhorar o crescimento econômico e o nosso desenvolvimento social. sem produção de riquezas, não há distribuição de rendas.

indaga-se: o estado pretende abrir mão desse poder empresarial? as corporações sindicais dos trabalhadores dessas “empresas estatais” e as dos empresários que se beneficiam dessas “estatais” permitirão? e a sociedade, povo brasileiro, o que quer?

visto que as principais receitas do estado decorrem dos tributos, nos aproximamos do tema central de nossa intervenção. Com efeito, a Constituição Federal é uma Constituição tributária. os dispositivos constitucionais tributários são vários e cuidam de modo analítico e minucioso desse tema (título vi – Da tributação e do orçamento, arts. 145 a 169, CF), de sorte que o sistema tributário brasileiro está praticamente desenhado no texto da Constituição.

a Constituição Federal concedeu ao tributo um destaque normativo privilegiado. Certo, podemos dizer que os tributos brasileiros são os seguintes: impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios. na Constituição está delimitada a competência tributária de cada um dos entes da república. o texto informa quais são os tributos que poderão ser criados e instituídos pela união, quais poderão ser criados e instituídos pelos estados e quais poderão ser criados e instituídos pelos Municípios. essa já uma primeira garantia de segurança dos contribuintes.

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tenha-se, por oportuno e necessário, que a Constituição dispõe de modo explícito acerca das “Limitações Constitucionais ao Poder de tributar” (arts. 150 a 152, CF). Isso significa que a Constituição pretende constranger o poder estatal de tributar. No embate entre o Fisco e o Contribuinte, o “escudo” constitucional serve para proteger o contribuinte contra o “porrete” tributário do estado. essas disposições tributárias estão esparramadas no texto, como se percebe dos enunciados relativos às contribuições da seguridade social. essas contribuições também são tributos, pois são obrigatórias e compulsórias. o estado brasileiro é “pantagruélico”, é “faminto”, e procura arrecadar com voracidade. Qual a razão?

as respostas podem ser encontradas nas suas tarefas. a Constituição destinou ao estado múltiplas tarefas. o estado se agigantou, tornou-se “paquidérmico”, oneroso, dispendioso. Logo, o primeiro passo para a diminuição da carga tributária passa pela diminuição do tamanho do estado. se a sociedade quer um estado “gigante”, “providencial”, deve arcar com o financiamento dele. Mas será que é isso que a sociedade quer? Será que esse estado é o mais indicado para o povo brasileiro? Pessoalmente, entendo que não. entendo que quanto mais forte e gigantesco for o estado, mais fraca será a sociedade e mais acanhado será o indivíduo.

Mas, essa é uma decisão que compete à sociedade como um todo. Que tipo de sociedade queremos ter? Que tipo de cidadania queremos exercer? Que tipo de gente queremos ser? as respostas indicarão os caminhos de nossa nação e os caminhos que individualmente cada um de nós pretende seguir.

Nada obstante o caráter panfletário dessas reflexões, remanescem questões judiciais sobre a cobrança de tributos, com forte apelo aos ideais constitucionais de justiça e de paz, aqui entendida como segurança jurídica. os tributos são válidos se criados e instituídos em estrita obediência aos comandos constitucionais. essa é a missão precípua do supremo tribunal Federal em matéria tributária: garantir que o estado crie ou institua tributos em conformidade com a Constituição e garantir que o estado possa cobrar dos contribuintes os tributos instituídos em harmonia com a Constituição.

vejam que a “via é de mão dupla”. Proteger o contribuinte em face das eventuais inconstitucionalidades tributárias do estado e permitir que o estado cobre dos contribuintes os tributos instituídos de acordo com a Constituição. estado democrático de direito exige o tributo legalmente válido e moralmente justo. ao Fisco, nas sociedades livres, não interessa extorquir o contribuinte, mas tão somente recolher aquilo que lhe é devido. o contribuinte responsável, nas sociedades livres, deve cumprir com as suas obrigações fiscais e pagar o tributo devido. ao “Fisco” o que é do “Fisco”, em paródia ao santo que habitou em nosso meio.

Pois bem, como tem sido a dinâmica jurisprudencial do stF nesse campo? vejamos alguns casos concretos apreciados pela suprema Corte brasileira.

Começo com o julgamento do recurso extraordinário n. 377.4572 que versou sobre a validade jurídica da revogação, por meio de lei ordinária, da isenção da CoFins concedida,

2 BrasiL, supremo tribunal Federal. recurso extraordinário n. 377.457. relator Ministro Gilmar Mendes. Plenário. Julgado em 17.9.2008. acórdão Publicado em 19.12.2008. EMENTA: Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação pelo art. 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade. 3. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente constitucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 4. A LC 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conhecido mas negado provimento.

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por meio de lei complementar formal, às sociedades civis de profissão regulamentada. A questão tributária de fundo não oferecia maiores dificuldades, pois a isenção tributária estava concedida por lei complementar formal, mas que era materialmente ordinária. sendo assim, poderia a lei ordinária revogar a isenção instituída via lei complementar, pois se cuidava de lei formalmente complementar, mas materialmente ordinária.

todavia, havia um ingrediente problemático. é que o superior tribunal de Justiça havia editado a súmula 276 com o seguinte teor:

As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado.

ora, havia uma súmula de um tribunal superior, daquele é considerado a segunda Corte mais importante do País. ante esse quadro, foi submetida ao stF a questão da modulação dos efeitos, para que somente a partir do julgamento da questão no stF fosse restabelecida a cobrança do aludido tributo. era uma questão de segurança tributária. os contribuintes se fiaram em uma Súmula do STJ e em vários precedentes dessa Corte Superior. É evidente que isso, por si só, seria mais do que suficiente para proteger o contribuinte da retroatividade da decisão do stF. nada obstante essa situação, o stF entendeu que não era o caso de modular os efeitos de sua decisão e estabeleceu que desde 1996 era devida a COFINS pelas sociedades civis de profissão regulamentada.

Esse entendimento enfraqueceu a ideia de segurança e de confiabilidade tributária. Qual a mensagem pedagógica transmitida pelo stF? não devem os contribuintes confiar nas decisões pacificadas nos outros tribunais. Esse tipo de mensagem enfraquece as demais instâncias judiciais.

Esse entendimento do Tribunal se fiou em precedente estabelecido no julgamento do recurso extraordinário n. 370.6823, que discutiu o tema do creditamento de iPi dos produtos isentos, não-tributados ou tributados à alíquota zero, o STF rejeitou a proposta de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por entender que a questão apreciada e decidida não cuidou de nova jurisprudência, mas tão-somente de reversão de precedente. um dos aspectos aduzidos pelo tribunal, para não conceder a requestada modulação dos efeitos, consistiu na possibilidade de se criarem situações diferenciadas entre os contribuintes, pois alguns pagariam o tributo devido e outros deixariam de pagar, o que maltrataria o postulado da justiça.

no entanto, no julgamento do recurso extraordinário n. 556.6644 o tribunal palmilhou outro caminho. no mencionado re 556.664, que decretou a inconstitucionalidade

3 BrasiL, supremo tribunal Federal. recurso extraordinário n. 370.682. redator Ministro Gilmar Mendes. Plenário. Julgado em 25.6.2007. acórdão Publicado em 19.12.2007. EMENTA: Recurso extraordinário. Tributário. 2. IPI. Crédito Presumido. Insumos sujeitos à alíquota zero ou não tributados. Inexistência. 3. Os princípios da não-cumulatividade e da seletividade não ensejam direito de crédito presumido de IPI para o contribuinte adquirente de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero. 4. Recurso extraordinário provido.

4 BrasiL, supremo tribunal Federal. recurso extraordinário n. 556.664. relator Ministro Gilmar Mendes. Plenário. Julgado em 12.6.2008. acórdão Publicado em 14.11.2008. EMENTA: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS A LEI COMPLEMENTAR. DISCIPLINA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 E 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. I. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. As normas relativas à prescrição e à decadência

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dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, no tocante aos prazos prescricionais e decadenciais das contribuições da seguridade social, o tribunal entendeu que os valores já pagos e que não foram objeto de reivindicação, seja judicial ou administrativa, não deveriam ser devolvidos, de modo que foram considerados legítimos os recolhimentos efetuados em conformidade com os prazos previstos nos citados artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91.

Qual a mensagem pedagógica do tribunal nesse julgamento? Que todo contribuinte, na dúvida, não deve pagar ou se pagar deve discutir o pagamento na esfera judicial ou administrativa. Foi uma decisão provocadora de litigiosidade. andou bem o stF? no plano de política judiciária, a resposta é negativa, pois o contribuinte se vê na contingência de questionar todo e qualquer tributo e pedir a repetição dos pagamentos feitos.

e no tocante ao plano da Justiça, como o supremo tribunal Federal tem decidido? Há decisões declarando a invalidade do tributo, por violação do parâmetro normativo da Justiça? ou reconhecendo a sua validade por ser justo? Qual a ideia de justiça tributária do STF? A ideia de justiça está intimamente ligada à ideia de igualdade, de isonomia, de equidade, bem como a de capacidade contributiva.

nessa senda, o supremo tribunal Federal tem um entendimento que não pode, sob pretexto da justiça ou da igualdade, conceder benefícios fiscais, como sucedeu no julgamento do recurso extraordinário n. 405.5795 que cuidou da extensão às importadoras de pneus dos benefícios concedidos às empresas montadoras. A mesma fundamentação influenciou a decisão do Tribunal na discussão sobre o tratamento tributário diferenciado do siMPLes para as microempresas. Cuidava-se, na referida hipótese, do julgamento da ação Direta de inconstitucionalidade n. 1.6436. no julgamento, ainda que precário da ação

tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada a lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1º, da CF de 1967/69) quanto sob a Constituição atual (art. 146, b, III, da CF de 1988). Interpretação que preserva a força normativa da Constituição, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Permitir regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação, implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente e à segurança jurídica. II. DISCIPLINA PREVISTA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. O Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966), promulgado como lei ordinária e recebido como lei complementar pelas Constituições de 1967/69 e 1988, disciplina a prescrição e a decadência tributárias. III. NATUREZA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES. As contribuições, inclusive as previdenciárias, têm natureza tributária e se submetem ao regime jurídico-tributário previsto na Constituição. Interpretação do art. 149 da CF de 1988. Precedentes. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei 1.569/77, em face do § 1º do art. 18 da Constituição de 1967/69. V. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SEGURANÇA JURÍDICA. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.

5 BrasiL, supremo tribunal Federal. recurso extraordinário n. 405.579. relator Ministro Joaquim Barbosa. Plenário. Julgado em 1º.12.2010. acórdão Publicado em 4.8.2011. Ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. PNEUS. BENEFÍCIO FISCAL. REDUÇÃO DE 40% DO VALOR DEVIDO NAS OPERAÇÕES REALIZADAS POR MONTADORAS. PEDIDO DE EXTENSÃO A EMPRESA DA ÁREA DE REPOSIÇÃO DE PNEUMÁTICOS POR QUEBRA DA ISONOMIA. IMPOSSIBILIDADE. LEI FEDERAL 10.182/2001. CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTS. 37 E 150, II). CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (ART. 111). Sob o pretexto de tornar efetivo o princípio da isonomia tributária, não pode o Poder Judiciário estender benefício fiscal sem que haja previsão legal específica. No caso em exame, a eventual conclusão pela inconstitucionalidade do critério que se entende indevidamente restritivo conduziria à inaplicabilidade integral do benefício fiscal. A extensão do benefício àqueles que não foram expressamente contemplados não poderia ser utilizada para restaurar a igualdade de condições tida por desequilibrada. Precedentes. Recurso extraordinário provido.

6 BrasiL, supremo tribunal Federal. ação Direta de inconstitucionalidade n. 1.643. relator Ministro

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Cautelar n. 1.1097, a Corte entendeu que não viola a isonomia tributária a sobrecarga fiscal incidente sobre as instituições financeiras, tendo em vista os ditames constitucionais.

no concernente ao imposto de renda das pessoas físicas, o tribunal decidiu que os contribuintes não têm direito à correção monetária das tabelas, como ocorreu no julgamento do recurso extraordinário n. 388.3128. ainda no tocante ao imposto de renda pessoa física, o tribunal tem uma jurisprudência defensiva, no sentido de não conhecer, a questão das limitações normativas dos valores despendidos com educação, sob o entendimento de cuidar-se de matéria infraconstitucional e que se cuidaria da hipótese de o Judiciário atuar como legislador “positivo”, como se vê no julgamento do agravo de instrumento n. 724.8179.

Maurício Corrêa. Plenário. Julgado em 5.12.2002. acórdão Publicado em 14.3.2003. EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. SISTEMA INTEGRADO DE PAGAMENTO DE IMPOSTOS E CONTRIBUIÇÕES DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS PROFISSÕES LIBERAIS. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. LEGITIMIDADE ATIVA. PESSOAS JURÍDICAS IMPEDIDAS DE OPTAR PELO REGIME. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Há pertinência temática entre os objetivos institucionais da requerente e o inciso XIII do artigo 9º da Lei 9317/96, uma vez que o pedido visa a defesa dos interesses de profissionais liberais, nada obstante a referência a pessoas jurídicas prestadoras de serviços. 2. Legitimidade ativa da Confederação. O Decreto de 27/05/54 reconhece-a como entidade sindical de grau superior, coordenadora dos interesses das profissões liberais em todo o território nacional. Precedente. 3. Por disposição constitucional (CF, artigo 179), as microempresas e as empresas de pequeno porte devem ser beneficiadas, nos termos da lei, pela “simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas” (CF, artigo 179). 4. Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do SIMPLES aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

7 BrasiL, supremo tribunal Federal. ação Cautelar n. 1.109. redator Ministro ayres Britto. Plenário. Julgado em 31.5.2007. acórdão publicado em 19.10.2007. EMENTA: PROCESSO CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE A FOLHA DE SALÁRIOS. ADICIONAL. § 1º DO ART. 22 DA LEI Nº 8.212/91. A sobrecarga imposta aos bancos comerciais e às entidades financeiras, no tocante à contribuição previdenciária sobre a folha de salários, não fere, à primeira vista, o princípio da isonomia tributária, ante a expressa previsão constitucional (Emenda de Revisão nº 1/94 e Emenda Constitucional nº 20/98, que inseriu o § 9º no art. 195 do Texto permanente). Liminar a que se nega referendo. Processo extinto.

8 BrasiL, supremo tribunal Federal. recurso extraordinário n. 388.312. redatora Ministra Cármen Lúcia. Plenário. Julgado em 1º.8.2011. acórdão publicado em 11.10.2011. EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL E ECONÔMICO. CORREÇÃO MONETÁRIA DAS TABELAS DO IMPOSTO DE RENDA. LEI N. 9.250/1995. NECESSIDADE DE LEI COMPLEMENTAR E CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E DO NÃO CONFISCO. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NA PARTE CONHECIDA, A ELE NEGADO PROVIMENTO. 1. Ausência de prequestionamento quanto à alegação de inconstitucionalidade formal da Lei n. 9.250/1995 por contrariedade ao art. 146, inc. III, alínea a, da Constituição da República. 2. A vedação constitucional de tributo confiscatório e a necessidade de se observar o princípio da capacidade contributiva são questões cuja análise dependem da situação individual do contribuinte, principalmente em razão da possibilidade de se proceder a deduções fiscais, como se dá no imposto sobre a renda. Precedentes. 3. Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo. 4. Recurso extraordinário conhecido em parte e, na parte conhecida, a ele negado provimento.

9 BrasiL, supremo tribunal Federal. agravo de instrumento n. 724.817. relator Ministro Dias toffoli. Primeira turma. Julgado em 7.2.2012. acórdão publicado em 9.3.2012. EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. IRPF. Lei nº 9.250/95. Limitações à dedução com despesas para educação. Ofensa reflexa. Impossibilidade de atuação do judiciário como legislador positivo. Precedentes desta Corte. 1. A discussão relativa à limitação da dedução, na declaração de ajuste anual do imposto de renda, dos valores pagos a título de educação, na forma da Lei nº 9.250/95, insere-se no âmbito infraconstitucional, sendo certo, ainda, que eventual ofensa à Constituição, caso ocorresse, dar-se-ia de forma reflexa ou indireta. Precedentes desta Corte. 2. Impossibilidade do Poder Judiciário atuar como legislador positivo para estabelecer isenções, reduções de tributos e deduções de despesas da base de cálculo. Tais hipóteses são sempre dependentes de lei que as preveja. 3. As alegações deduzidas no agravo são insuficientes para infirmar a fundamentação que ampara a decisão agravada, a qual

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nada obstante essa jurisprudência defensiva, o stF será instado a se manifestar novamente e diretamente sobre esse tema, em face da decisão da Corte especial do trF da 3ª região que declarou inconstitucional a limitação aos valores gastos com educação na dedução da base de cálculo do IRPF, sob a justificativa de que essa limitação fere direito fundamental social indisponível. essa decisão do trF3 foi tomada nos autos da arguição de inconstitucionalidade n. 0005067-86.2002.4.03.6100, processo n. 2002.61.00.005067-010. a oaB ajuizou a aDi 4.92711 requerendo a decretação de inconstitucionalidade dessas limitações.

se encontra em sintonia com a orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal Federal. 4. Agravo regimental não provido.10 BrasiL, tribunal regional Federal da 3ª região. arguição de inconstitucionalidade Cível n. 0005067-

86.2002.4.03.6100 sP, Processo n. 2002.61.00.005067-0 sP. relator Desembargador Federal Mairan Maia. Órgão especial. Julgado em 28.3.2012. acórdão publicado em 14.5.2012. ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. LIMITES À DEDUÇÃO DAS DESPESAS COM INSTRUÇÃO. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 8º, II, “B”, DA LEI Nº 9.250/95. EDUCAÇÃO. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. DEVER JURÍDICO DO ESTADO DE PROMOVÊ-LA E PRESTÁ-LA. DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO. NÃO TRIBUTAÇÃO DAS VERBAS DESPENDIDAS COM EDUCAÇÃO. MEDIDA CONCRETIZADORA DE DIRETRIZ PRIMORDIAL DELINEADA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO. A INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE GASTOS COM EDUCAÇÃO VULNERA O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

1. Arguição de inconstitucionalidade suscitada pela e. Sexta Turma desta Corte em sede de apelação em mandado de segurança impetrado com a finalidade de garantir o direito à dedução integral dos gastos com educação na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física de 2002, ano-base 2001.

2. Possibilidade de submissão da quaestio juris a este colegiado, ante a inexistência de pronunciamento do Plenário do STF, tampouco do Pleno ou do Órgão Especial desta Corte, acerca da questão.

3. O reconhecimento da inconstitucionalidade da norma afastando sua aplicabilidade não configura por parte do Poder Judiciário atuação como legislador positivo. Necessidade de o Judiciário - no exercício de sua típica função, qual seja, averiguar a conformidade do dispositivo impugnado com a ordem constitucional vigente - manifestar-se sobre a compatibilidade da norma impugnada com os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Compete também ao poder Judiciário verificar os limites de atuação do Poder Legislativo no tocante ao exercício de competências tributárias impositivas.

4. A CF confere especial destaque a esse direito social fundamental, prescrevendo o dever jurídico do Estado de prestá-la e alçando-a à categoria de direito público subjetivo.

5. A educação constitui elemento imprescindível ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao exercício da cidadania e à livre determinação do indivíduo, estando em estreita relação com os primados basilares da República Federativa e do Estado Democrático de Direito, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Atua como verdadeiro pressuposto para a concreção de outros direitos fundamentais.

6. A imposição de limites ao abatimento das quantias gastas pelos contribuintes com educação resulta na incidência de tributos sobre despesas de natureza essencial à sobrevivência do indivíduo, a teor do art. 7 º, IV, da CF, e obstaculiza o exercício desse direito.

7. Na medida em que o Estado não arca com seu dever de disponibilizar ensino público gratuito a toda população, mediante a implementação de condições materiais e de prestações positivas que assegurem a efetiva fruição desse direito, deve, ao menos, fomentar e facilitar o acesso à educação, abstendo-se de agredir, por meio da tributação, a esfera jurídico-patrimonial dos cidadãos na parte empenhada para efetivar e concretizar o direito fundamental à educação.

8. A incidência do imposto de renda sobre despesas com educação vulnera o conceito constitucional de renda, bem como o princípio da capacidade contributiva, expressamente previsto no texto constitucional.

9. A desoneração tributária das verbas despendidas com instrução configura medida concretizadora de objetivo primordial traçado pela Carta Cidadã, a qual erigiu a educação como um dos valores fundamentais e basilares da República Federativa do Brasil.

10. Arguição julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão “até o limite anual individual de R$ 1.700,00 (um mil e setecentos reais)” contida no art. 8º, II, “b”, da Lei nº 9.250/95.

11 BrasiL, supremo tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 4.927. requerente: Conselho Federal da ordem dos advogados do Brasil. requeridos: Câmara dos Deputados e outros. relatora ministra rosa Weber.

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será uma grande oportunidade para o stF enfrentar a questão do valor normativo da educação. À luz dos precedentes do supremo tribunal Federal, e da perspectiva de que para a Corte não é dado ao Judiciário, em matéria tributária, inovar o ordenamento jurídico como legislador positivo, a expectativa é no sentido da reforma do acórdão recorrido e do restabelecimento do limite na dedução do irPF. Mas, haja vista o posicionamento da Corte em outras matérias, com uma postura ativista em nome da dignidade da pessoa humana, não ficarei espantado se o STF chancelar a decisão do TRF 3 ou der provimento ao pleito da oaB. aguardemos.

Finalizo. retomo ao começo de nossa exposição. o tributo há de ser legalmente devido e moralmente justo. o tributo há de ser uma contraprestação legítima do contribuinte ao Estado, pelos seus gastos e despesas. Para nós fica a expectativa de que o STF, em seus julgamentos, saiba discernir as situações nas quais o tributo seja constitucionalmente válido, permitindo a sua cobrança, e que saiba proteger o contribuinte nas hipóteses de o estado extrapolar dos rigorosos limites dos mandamentos da Constituição.

Do contrário, vale a advertência de Proudhon acerca do que é ser governado pelo estado:

Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espionado, dirigido, legiferado, numerado, regulado, recrutado, doutrinado, catequizado, controlado, conferido, avaliado, aquilatado, censurado e comandado por criaturas que não têm o direito, nem a sabedoria, tampouco a virtude para tal. Ser governado significa ter todas as suas atividades e transações observadas, registradas, computadas, tributadas, timbradas, medidas, numeradas, calculadas, licenciadas, autorizadas, admoestadas, obstruídas, proibidas, emendadas, corrigidas e punidas. Significa, a pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser coagido a contribuir, disciplinado, depenado, explorado, monopolizado, extorquido, oprimido, lesado e roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de reclamação, ser reprimido, multado, difamado, perseguido, caçado, maltratado, espancado, desarmado, amarrado, estrangulado, aprisionado, julgado, condenado, fuzilado, deportado, sacrificado, vendido e traído; e, para coroar tudo isso, ser objeto de escárnio, ridículo, zombaria, injúria e desonra. isso é governo; isso é justiça; isso é moralidade.

Para encerrar, na experiência brasileira, o estado não é solução dos nossos problemas, mas a causa e a raiz de nossos males. a solução dos nossos problemas não está nos governos, nem nas leis ou nos tribunais. a solução está em nós mesmos, na sociedade e nos indivíduos, na nossa energia cívica e no nosso compromisso patriótico com o bem comum de todos. Quanto mais civilizada for a nossa sociedade, quanto mais educados forem os indivíduos, menos necessidade teremos de estado e de governos, e, por consequência, de tributos.

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2. GARANTIAS E PRIVILÉGIOS DO CRÉDITO TRIBUTáRIO12

Em honra à memória das 242 pessoas que tragicamente faleceram em Santa Maria – RS e em homenagem às 123, que nada obstante feridas, felizmente sobreviveram.

todos conhecemos a clássica obra “o Mercador de veneza”, de William shakespeare.13 nessa obra, o mercador e cristão antônio empenha uma libra de sua carne, como cláusula penal, na hipótese de não cumprimento do contrato que assinara e se comprometera junto ao judeu shylock. o contrato é assinado em veneza, onde deverá ser executada essa aludida cláusula penal, tendo em vista o descumprimento da promessa contratual avençada.

O próprio Antônio, às vésperas da execução da citada cláusula penal, compreendia que o Doge (chefe político) da República de Veneza não poderia deixar de atender à reivindicação do judeu shylock e deveria permitir o integral cumprimento do contrato. é que, se acaso o Doge não garantisse a fiel execução do contrato e de sua respectiva cláusula penal, a justiça do Estado ficaria comprometida e Veneza deixaria de ser um local seguro para os negócios, uma vez que os contratos não seriam mais protegidos pelas leis nem pelos juízes. nessa peça teatral, em veneza, contrato assinado era contrato cumprido.

todos sabemos o resultado do julgamento acerca do cumprimento dessa mencionada “cláusula penal”: se o judeu exercesse o seu direito de execução sofreria pena de morte e teria o seu patrimônio confiscado pela República, pois, segundo as leis venezianas, estava impedido de derramar uma gota de sangue cristão.

Pois bem, se na veneza shakespeareana o crédito era sagrado, em nosso País ele é profano. esse caráter profano do crédito, especialmente do tributário, se torna mais evidente a partir das sagradas escrituras, pois os “publicanos - cobradores de impostos” estavam, segundo os padrões religiosos da época da anunciação evangélica, no rol dos grandes pecadores.14 a imagem histórica dos “cobradores de impostos” não é das mais atrativas. todavia, como ensinava aliomar Baleeiro15, onde se ergue o poder do estado se projeta a sombra do poder de tributar.

Conquanto seja o poder de tributar uma decorrência do poder do estado, todos sabemos das imensas dificuldades que os Fiscos, ou federal ou estaduais ou municipais, sofrem na recuperação dos seus créditos. ocorre que o crédito tributário, apesar de todas as suas garantias e privilégios legais16, sofre do mesmo mal que acomete o crédito em geral neste País: a dificuldade em ser recuperado.

12 texto de conferência proferida no encontro nacional de Procuradorias Fiscais, na cidade de Porto alegre – rs, em 10.4.2013, no auditório da aJuris. evento realizado pela associação nacional dos Procuradores de estado - anaPe, associação dos Procuradores do estado do rio Grande do sul – aPerGs e escola superior da advocacia Pública - esaPerGs, entre os dias 10 e 12 de abril de 2013.

13 sHaKesPeare, William. O mercador de Veneza (1596). tradução de F. Carlos de almeida Cunha Medeiros e oscar Mendes. são Paulo: Martins Fontes, 2006.

14 Bíblia sagrada. novo testamento. Mateus, capítulo 21, versículo 31; Lucas, capítulo 19, versículos 1-9.15 BaLeeiro, aliomar. Limitações constitucionais ao poder de limitar. 7ª ed. atualizada por Misabel abreu

Machado Derzi. rio de Janeiro: Forense, 2005. 16 BrasiL. Lei n. 5.172, de 25.10.1966. Código tributário nacional, Capítulo vi – Garantias e Privilégios

do Crédito tributário, arts. 183 a 193.

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Com efeito, o iPea – instituto de Pesquisa econômica e aplicada17, em pesquisa realizada entre novembro de 2009 e fevereiro de 2011, divulgada em janeiro de 2012, revelou que somente 2,8% das execuções fiscais federais resultam em algum leilão judicial, com ou sem êxito. Do total de processos, em apenas 0,3% dos casos o pregão gera recursos suficientes para satisfazer integralmente o débito, enquanto que a adjudicação dos bens do executado extingue a dívida em 0,4% dos casos.

nessa aludida pesquisa, o iPea, por meio de entrevistas junto aos órgãos do Judiciário, percebeu a pouca efetividade dos leilões, dada a sua burocrática complexidade, de modo que muitas das varas federais implantadas nos últimos 5 (cinco) anos anteriores a essa pesquisa jamais realizaram qualquer pregão. o iPea revelou que, em decorrência das execuções fiscais, 25,8% implicam no pagamento integral da dívida, mas em 36,8% ocorrem a extinção pelo reconhecimento de decadência ou de prescrição, 18,8% decorrem do cancelamento da inscrição do débito e 13% de sua remissão.

Segundo o IPEA, em regra as execuções fiscais ou fracassam absolutamente ou recuperam integralmente o débito. o iPea revelou que a taxa de êxito do executado, via embargos ou exceção de pré-executividade, chega a 22,5%. Daí porque o iPea ter indicado que não vale a pena, no aspecto estritamente econômico, ajuizar execuções fiscais abaixo de r$20.000,00 (vinte mil reais). todavia, continuou o iPea, essa implantação de novo piso mínimo deveria vir acompanhada de implementação de medidas de redução do risco moral (moral hazard ) associado ao não pagamento de tributos.

neste nosso complexo Brasil as Leis, os Contratos, as sentenças ou os Decretos não são “levados muito a sério”, tampouco se pode falar em um “império do direito”. “império do Direito” e “Levando os Direitos a sério”, como todos sabemos, são algumas expressões que se tornaram famosas graças ao magistério doutrinário do “jus-idealista” ronald Dworkin.18

Neste gigantesco País, é difícil o respeito às leis, visto que não são poucos os refratários ao cumprimento de suas obrigações e deveres. é traço atávico dos brasileiros.19 e essa tradição de desobediência não se restringe apenas ao campo fiscal. Tomemos, à guisa de exemplo, o que sucede em relação às regras de trânsito, especialmente nas grandes cidades brasileiras. infelizmente nas nossas metrópoles, onde deveria reinar a urbana civilidade, vivenciamos uma verdadeira selvageria e irracionalidade caótica no trânsito, pois não são poucos os que desrespeitam os mais comezinhos padrões de convivência. a razão dessa situação caótica não está na ausência de leis ou regulamentos, mas de educação cívica das pessoas e de incompetência dos Poderes estatais.

17 BrasiL. instituto de Pesquisa econômica e aplicada. Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Comunicados do iPea n. 127. Brasília, 2012. acesso: www.ipea.gov.br.

18 Ronald Dworkin, um dos maiores jusfilósofos de todos os tempos, recentemente falecido (14.2.2013), autor de importantes livros: The Philosofal os Law, Taking Rights Seriously, Law’s Empire, A Matter of Principle, Life’s Dominion, Sovereign Virtue, Is Democracy Possible Here?, Freedom’s Law, Justice in Robes, A Badly Flawed Election: Debating Bush v. Gore, The Supreme Court Phalanx, Justice for Hedgehogs e Reason and Imagination: The Selected Correspondence of Learned Hand. Quase todos esses livros estão disponíveis em traduções para o português.

19 BuarQue De HoLanDa, sérgio. Raízes do Brasil. 26ª ed. são Paulo: Companhia das Letras, 1995. O homem cordial é o sujeito que não tem por hábito o respeito às normas e às instituições.

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ou a lei deve valer para todos, ou não vale para ninguém. no Brasil, infelizmente, para não poucos, especialmente para os poderosos, as leis somente servem se lhes servirem.20 ora, a civilidade de um povo se mede também pelo respeito e obediência às leis e instituições. Essa combinação é explosiva: falta de ética das pessoas aliada à falta de responsabilidade dos agentes estatais. eis umas das causas de nossos problemas de convivência social e de desobediência aos mandamentos normativos que devem regular a vida coletiva de modo civilizado e humanizado. onde o estado é omisso tende a explodir a violência do mais “poderoso” sobre o “comum”.

volto ao direito tributário. essa lamentável tradição brasileira de não cumprimento das leis e de costumeiro desrespeito ao Direito deita suas raízes no período colonial.21 A partir daquele cenário social e político, deixar de recolher os tributos à Coroa lusitana significava um ato de desobediência civil e de insubmissão ao poderio português. assim, enquanto o Brasil esteve sob o domínio de Portugal, o não pagamento de impostos poderia ter um sentido “político”.

tenha-se que com a chegada da real família portuguesa, instalando no Brasil a sede do império lusitano, tem início uma nova fase na tributação brasileira. todavia, foi mantido o eixo de uma pesada carga fiscal, decorrência de um culto exagerado que se presta ao estado, como assinala arnaldo Godoy22. na longa experiência brasileira, o estado tem sido maior e mais importante que a sociedade.

Pois bem, se houve momentos em nossa história que o não pagamento de tributos poderia ser justificado como ato legítimo em oposição a um Estado ilegítimo, a partir de 5.10.1988, com o pleno restabelecimento das franquias democráticas e com a consolidação do estado de Direito, esse tipo de postura é moralmente inaceitável e juridicamente inadmissível.

Com efeito, desde a promulgação da vigente e reinante Constituição da república, a nenhuma pessoa natural ou jurídica é dado o direito moral e legítimo de não pagar os tributos, salvo se obtiver expressa autorização judicial ou legislativa ou administrativa. eis a nossa imensa responsabilidade ética como procuradores fiscais. Com esteio no postulado republicano e em homenagem ao princípio da igualdade de todos perante a lei, nós, procuradores fiscais, temos o dever jurídico e moral de cobrarmos todos os tributos que estejam sob nossa responsabilidade.

Ninguém tem o direito de não pagar as suas dívidas fiscais. Ninguém tem o direito de não honrar com os seus compromissos tributários. é um dever cívico o pagamento dos seus débitos. é uma obrigação republicana cobrar dos devedores. é um truísmo, mas no estado Democrático de Direito, todo aquele que não cumpre com o seu dever de cooperação social, dentro de suas capacidades e possibilidades, sobrecarrega os demais.23

assim, sempre que algum contribuinte, seja pessoa natural ou jurídica, deixar de pagar os tributos legalmente devidos, ele sobrecarrega com ônus excessivo os que estão honrando com os seus compromissos e deveres fiscais.24 nos regimes políticos democráticos,

20 “ou restaura-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Frase de stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de sérgio Porto. Ponte Preta, stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta. são Paulo: José olympio, 2011.

21 Faoro, raymundo. Os donos do poder : formação do patronato brasileiro. 7ª ed. rio de Janeiro: Globo, 2001, pp. 163-275.

22 GoDoY, arnaldo sampaio de Moraes. História da tributação no período joanino (1808-1821). Brasília: esaF, 2008, p. 147.

23 raWLs, John. Uma teoria da justiça. tradução: almiro Piseta e Lenita esteves. são Paulo: Martins Fontes, 2000. 24 tiPKe, Klaus. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. tradução: Luiz Dória Furquim. Porto alegre:

sergio antonio Fabriz, 2012.

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ninguém tem o direito - jurídico ou moral - de não pagar os tributos devidos, salvo nas situações excepcionais e explicitamente reconhecidas pelo próprio estado (legislador ou administrador ou julgador).25

e por que no estado Democrático de Direito o não pagamento de tributos não pode ser visto como um ato legítimo de desobediência civil? a resposta consiste no fato de que a desobediência civil pressupõe que os legítimos canais de manifestação das insatisfações estejam obstruídos.26 nas democracias os insatisfeitos, incomodados e injustiçados podem mudar a situação dentro de procedimentos legítimos e pacíficos, usando dos instrumentos jurídicos e políticos disponíveis.27

nas democracias é possível, dentro da lei, mudar o sistema social e político. é possível mudar a própria Lei.28 nos regimes políticos democráticos, plurais e abertos, como tem sido o brasileiro desde 1988, é possível disputar e ganhar eleições, sejam os partidos da situação sejam os de oposição. nas sociedades abertas e democráticas, é possível conquistar as mentes e os corações das pessoas, por meio do diálogo, da palavra, do convencimento, da razão e da verdade.29 na democracia, o indivíduo, ser humano e humanizado, deve ter vez, voz e voto.30 no regime de liberdades democráticas, a divergência de opiniões e o dissenso ideológico devem ser seriamente considerados e efetivamente respeitados. as maiorias dominantes não têm o direito de extinguir as minorias.31

nessa perspectiva, nos regimes democráticos onde deve reinar o estado de Direito, não pagar os tributos devidos viola o pacto social fundante da coletividade. é indecente furtar-se, sem justo e válido título, ao cumprimento de seus deveres cívicos e de suas obrigações tributárias. nas democracias legítimas e nas repúblicas decentes as leis devem ser respeitadas e obedecidas por todos, sejam governantes poderosos ou humildes cidadãos, sejam ricos sejam pobres, homens ou mulheres, brancos ou negros, crentes ou ateus. ou seja, nos regimes democráticos e republicanos todos, independentemente de suas características, devem pautar suas ações e comportamentos em conformidade com o Direito e com a Justiça. ninguém deve estar acima das leis.

no Brasil republicano e democrático essa é nossa tarefa, enquanto procuradores fiscais: cobrar os tributos devidos, legalmente válidos e moralmente justos. Não sem razão que o recepcionado Código tributário nacional, em seu artigo 3º, dispõe que a atividade administrativa fiscal é plenamente vinculada. Ou seja, não depende da vontade ou da discricionariedade ou dos caprichos da autoridade fiscal a cobrança de tributos. É um imperativo legal e moral. tributo que se deve é tributo que se deve pagar.

Mas qual tributo se deve pagar? Como se sabe que se deve pagar um tributo? Quem deve pagar o tributo? Quanto se deve pagar? Quem pode cobrar esse tributo devido? Como deve proceder a administração tributária? as respostas a essas indagações necessitam

25 naBais, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos – contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: almedina, 1998.

26 Costa, nelson nery. Teoria e realidade da desobediência civil. rio de Janeiro: Forense, 1990. 27 HaBerMas, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. tradução: Flávio Beno siebeneichler.

rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2003. 28 BoBBio, norberto. O futuro da democracia. tradução: Marco aurélio nogueira. são Paulo: Paz e terra, 2000.29 PoPPer, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. tradução: Milton amado. são Paulo: itatiaia, 1987. 30 MaGaLHães, José Luiz Quadros de. Poder municipal – paradigmas para o estado constitucional brasileiro. Belo

Horizonte: Del rey, 1997. 31 KeLsen, Hans. A democracia. tradução: ivone Castilho Benedeti e outros. são Paulo: Martins Fontes, 1993.

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que visitemos o sentido jurídico e o alcance normativo de “obrigação tributária”32, de “crédito tributário”33 e da própria dinâmica da “administração tributária”34. após essas visitas, surpreenderemos o tema específico desta intervenção: as garantias e os privilégios do crédito tributário.35

o crédito tributário é o direito que possui a Fazenda Pública de exigir o pagamento de determinado tributo, após o lançamento válido. nos termos do art. 142, Ctn, a constituição do crédito tributário pressupõe o lançamento, que vem a ser o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Por expressão determinação legal, a atividade de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (Ctn, art. 142, parágrafo único).

Veja-se que a lei determina que somente o lançamento dá azo à Fazenda Pública o direito de cobrar o crédito tributário. Isso não significa que somente se houver o lançamento é que surge o dever de pagar o tributo. Com efeito, a cobrança do crédito tributário requer o prévio lançamento, mas é possível que o sujeito passivo da obrigação tributária pague a sua dívida fiscal antes de ocorrido o lançamento administrativo, pela simples existência do fato gerador, como preceitua o art. 150, caput e § 1º, Ctn.

nos artigos 113 e 114, Ctn, estão enunciados os sentidos normativos de “obrigação tributária” e de “fato gerador”. esses temas foram objeto de considerações dos maiores nomes do direito tributário nacional, tendo em vista as confusões terminológicas e normativas decorrentes de sua inadequada compreensão e aplicação. eis alguns desses geniais tributarias brasileiros: aliomar Baleeiro36, rubens Gomes de sousa37, amílcar de araújo Falcão38, souto Maior Borges39, alfredo augusto Becker40, Geraldo ataliba41, Paulo de Barros Carvalho42, sacha Calmon43, Misabel Derzi44 dentre outros destacados nomes da justributarística brasileira. nada obstante as eventuais disceptações doutrinárias, esses termos encontram-se consagrados normativamente, inclusive com reconhecimento constitucional, como se vê nos dispositivos constitucionais relativos aos tributos e às contribuições sociais (CF, arts. 145 a 156; e art. 195, itens).

O “fato gerador” dá ensejo à “obrigação tributária” e ao seu consequente “crédito tributário”, mas, insista-se, somente com o “lançamento tributário” surge o direito da Fazenda Pública de cobrar o tributo devido.

32 Ctn, arts. 113 a 138. 33 Ctn, arts. 139 a 193. 34 Ctn, arts. 194 a 208. 35 Ctn, arts. 183 a 193. 36 BaLeeiro, aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. atualizado por Misabel Derzi. rio de Janeiro:

Forense, 2005.37 sousa, rubens Gomes. Compêndio de legislação tributária. são Paulo: resenha tributária, 1975. 38 FaLCão, amílcar de araújo. O fato gerador da obrigação tributária. são Paulo: rt, 1973. 39 BorGes, José souto Maior. Lançamento tributário. 2ª ed. são Paulo: Malheiros, 1999.40 BeCKer, alfredo augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed. são Paulo: Lejus, 1998. 41 ataLiBa, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5ª ed. são Paulo: Malheiros, 1992. 42 CarvaLHo, Paulo de Barros. Direito tributário – fundamentos jurídicos da incidência. 7ª ed. são Paulo: saraiva, 2009. 43 CaLMon, sacha. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. são Paulo: rt, 1982. 44 DerZi, Misabel. Direito tributário, direito penal e tipo. 2ª ed. são Paulo: rt, 2007.

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Cuide-se que o parágrafo único do art. 116, Ctn, acrescentado pela Lei Complementar n. 104/2001, preceitua que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.45 46

esse aludido preceito normativo foi atacado via ação Direta de inconstitucionalidade (aDi) n. 2.446, proposta perante o supremo tribunal Federal (stF), pela Confederação nacional da indústria (Cni). até o presente momento o tribunal não se pronunciou sobre a validade jurídica do objurgado dispositivo normativo. esse julgamento é de vital importância para as administrações tributárias, pois se trata de um mandamento de moralidade jurídica.

Com efeito, é postulado universal do direito dos povos civilizados que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Em matéria tributária, devem ser draconianas as consequências normativas e administrativas para todos que visam fraudar a verdade fiscal.47 A citada determinação legal consiste nisso: permitir que a fiscalização tributária não considere atos fraudulentos ou que visem, de modo aparentemente legal, adulterar a legitimidade da tributação.

Para uma adequada solução desse problema normativo o stF deverá investigar as circunstâncias fáticas que deram ensejo a esse questionado preceito normativo, bem como perspectivar a finalidade desse mandamento jurídico em sintonia com os dispositivos constitucionais e com os valores protegidos pelo sistema jurídico.48 49

o stF e todos os demais órgãos judiciários brasileiros, sejam singulares, sejam colegiados, devem sempre pautar suas decisões com esteio no ordenamento jurídico e nas práticas normativas válidas e intersubjetivamente aceitáveis. as decisões judiciais em matéria tributária devem ser em absoluta conformidade com o ordenamento jurídico, pois não é dado à autoridade judicial, no exercício de sua competência, desconsiderar os preceitos normativos.50

A fidelidade aos mandamentos jurídicos extraídos direta ou indiretamente da Constituição, das Leis, dos tratados e demais provimentos normativos é a principal garantia decorrente do princípio da segurança jurídica.51 52 53 eis a razão de o sistema tributário nacional ser tão extensivo, e, ante esse caráter amiúde analítico, tornar-se tão complexo e problemático, pois além de um feixe de preceitos tributários contidos

45 roLiM, João Dácio. Normas antielisivas tributárias. são Paulo: Dialética, 2001. 46 Pereira, Cesar a. Guimarães. Elisão tributária e função administrativa. são Paulo: Dialética, 2001. 47 GoDoi, Marciano seabra de. Fraude a la ley y conflicto em la aplicación de las leyes tributarias. Madrid: instituto

de estudios Fiscales, 2005. 48 torres, ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 4ª ed. rio de Janeiro: renovar, 2006. 49 anDraDe, José Maria arruda de. Interpretação da norma tributária. são Paulo: MP, 2006. 50 GaMa, tácio Lacerda. Competência tributária – fundamentos para uma teoria da nulidade. são Paulo: noeses, 2009. 51 áviLa, Humberto. Segurança jurídica – entre permanência, mudança e realização no direito tributário. são Paulo:

Malheiros, 2011. 52 torres, Heleno taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. são Paulo: rt, 2011. 53 anDraDe, Fábio Martins de. Modulação em matéria tributária – o argumento pragmático ou consequencialista de

cunho econômico e as decisões do STF. são Paulo: Quartier Latin, 2011.

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na Constituição tem-se uma invencível legislação federal, estadual, distrital e municipal regulando o fenômeno tributário.54

Volto à obrigação e ao crédito tributário. No CTN, art. 119, está disposto que o sujeito ativo da obrigação tributária é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento. a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária é o sujeito passivo da obrigação. esse sujeito passivo pode ser o próprio contribuinte ou o responsável tributário (Ctn, arts. 121 e 122).

No art. 123, CTN, há relevante garantia fiscal, uma vez que preceitua que as convenções particulares não podem ser opostas à Fazenda Pública para modificar a definição legal do sujeito passivo das respectivas obrigações tributárias, salvo exceção legal específica.

ainda no plano da normatização da sujeição passiva, o Ctn, arts. 124 a 127, disciplina os institutos da solidariedade, da capacidade e do domicílio tributário, quase sempre em sentido favorável ao cumprimento dos deveres fiscais dos contribuintes ou responsáveis. Cuide-se que no tocante à solidariedade tributária, por exemplo, não há que se falar em benefício de ordem, de modo que o Fisco pode escolher entre os sujeitos passivos os mais adequados para a solvência do crédito.

também não podem ser opostas ao Fisco as eventuais irregularidades ou informalidades ou incapacidades dos sujeitos passivos, como forma de escapar do cumprimento de suas obrigações tributárias.

no concernente ao domicílio tributário do sujeito passivo, como garantia ao crédito, a legislação permite à autoridade administrativa que recuse o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo (art. 127, § 2º, CTN).

na Constituição Federal, art. 150, § 7º, foi dado reforço normativo ao instituto da responsabilidade tributária, quando dispôs que a lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.

no Ctn, a responsabilidade tributária está regulada no capítulo v, arts. 128 a 138. O tema acerca da validade e da conveniência da técnica fiscal da substituição tributária, corolário da responsabilidade tributária tem sido objeto de vários questionamentos judiciais, inclusive com manifestações do supremo tribunal Federal.

o stF iniciou o julgamento das aDis ns. 2.675 e 2.777, em 26.11.2003, havendo até o presente momento 10 votos prolatados, com 5 pela procedência e 5 pela improcedência. Faltava colher o voto do ministro ayres Britto. Mas em face de sua aposentadoria, teremos de aguardar a posse de novo ministro para que essas ADIs sejam finalmente decididas. Nada obstante, o Tribunal reconheceu a repercussão geral de questões relativas à substituição tributária nos autos dos rree 596.832, 593.849 e 598.677.

esse tema não é novo para o stF. no julgamento da aDi 1.851 o tribunal chancelou a técnica segundo a qual o “fato gerador presumido” é válido e que a sua devolução preferencial ocorreria na hipótese de sua não realização. a Corte irá decidir, nos aludidos feitos, se na hipótese de base de cálculo inferior à presumida é lícito ao contribuinte a restituição proporcional.

54 CarraZa, roque antônio. Curso de direito constitucional tributário. 25ª ed. são Paulo: Malheiros, 2009.

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não vislumbro vedação constitucional a essa possibilidade, cabendo ao legislador fiscal a conveniência desse tipo de medida normativa. O Tribunal deve fazer juízo de “legalidade jurídica”, em vez de juízo de “conveniência política”.

Quanto ao instituto em si da substituição tributária, tenha-se que o tribunal tem mantido a sua chancela a essa técnica fiscal, corolário da responsabilidade tributária, reitera-se: rree 603.191, 213.396, 194.382 e 266.523. além da substituição, no citado capítulo relativo à Responsabilidade Tributária, encontram-se preceitos sobre a responsabilidade dos sucessores (arts. 129 a 133, Ctn), que visam guarnecer os créditos tributários, tornando-o o mais objetivo possível.

Tenha-se que a Lei Complementar n. 118/2005 introduziu modificações e excepcionou essa objetividade do crédito tributário para as situações de falência ou de recuperação judicial.

nessa toada de proteção ao crédito tributário, no Ctn, arts. 134 e 135, estão enunciados preceitos relativos à responsabilidade de terceiros, com especial ênfase para as hipóteses de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. a jurisprudência do superior tribunal de Justiça tem sido no sentido de aplicar essa cláusula tributária de modo restritivo, como se viu no julgamento do resp n. 1.101.728.

no stF, nos autos do re 562.276, foi declarada a inconstitucionalidade do art. 13 da Lei 8.620/93, na parte em que determinou que os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada responderiam solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social. É de ver, portanto, que para esses tribunais o instituto da responsabilização de terceiros deve ser utilizado com extrema cautela pela administração tributária.

outro tópico que merece atenção consiste na responsabilidade por infração (arts. 136 a 138, Ctn). o Código dispõe que, salvo disposição legal em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato. ou seja, a infração tributária é objetiva. todavia, o Ctn torna a responsabilidade do agente pessoal em algumas situações particulares (art. 137).

Cuide-se que por meio do instituto da “denúncia espontânea” da infração (art. 138, Ctn) exclui-se a responsabilidade e as sanções normativas decorrentes do cometimento das infrações.

trilhando os dispositivos contidos no Ctn alcançamos o título iii que versa sobre o “crédito tributário”. Preceitua o Código (arts. 139 a 141) que o crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta.

nada obstante, continua o Ctn, as circunstâncias que modificam o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que excluem sua exigibilidade, não afetam a obrigação tributária que lhe deu origem.

é um aparente paradoxo. Mas, como dito, é só uma aparência, pois o que o Ctn dispõe que nada obstante seja o crédito tributário uma decorrência da obrigação tributária com ela não se confunde, tendo a sua autonomia jurídica e o seu próprio regime normativo.55

55 sCHoueri, Luís eduardo. Direito Tributário. são Paulo: saraiva, 2011, pp. 519-529.

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nessa linha, como já aludimos o direito da Fazenda Pública de exigir o cumprimento da obrigação tributária se dá com o lançamento tributário. sem lançamento não há crédito. e sem crédito não há direito de cobrar. o lançamento, regulado entre os artigos 142 a 150 do Ctn, é um dos temas mais relevantes do direito tributário.56 segundo o disposto no Ctn, há três modalidades de lançamento tributário: o de ofício, o por declaração do contribuinte e o por homologação da Fazenda.

no judiciário brasileiro houve grande disceptação no tocante ao prazo de repetição de indébito tributário em relação aos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, resultando em um entendimento pacificado na “Tese dos 5 + 5”, como se infere no julgamento do eresp n. 644.736. em face dessa jurisprudência, foi editada a Lei Complementar n. 118/2005, que procurou normatizar essa interpretação.

sucede que o stF, nos autos do re 566.621, decretou a inconstitucionalidade da aplicação retroativa contida no referido art. 4º da mencionada LC 118/2005. Manteve, contudo, incólume o referido art. 3º, de modo que foi superada a “Tese dos 5+5” e o prazo foi reduzido, portanto, de 10 contados do fato gerador para 5 anos contados do pagamento indevido.

após cuidar do lançamento tributário, o Ctn disciplina, entre os artigos 151 a 155, as hipóteses de suspensão do crédito tributário. segundo o Código, suspendem a exigibilidade do crédito: a) a moratória; b) o depósito do seu montante integral; c) as reclamações e os recursos, nos termos da legislação; d) a concessão de liminar ou de tutela antecipada ou em mandado de segurança ou em outras espécies de ação judicial; e e) o parcelamento.

o Código continua o tratamento normativo da moratória e do parcelamento. Em relação à moratória, dispõe no parágrafo único do art. 154, que ela não aproveita aos casos de dolo, fraude ou simulação do sujeito passivo ou do terceiro em benefício daquele. a rigor, esse tipo de preceito normativo deveria ser desnecessário, pois é postulado universal dos direitos e deveres dos povos civilizados que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Mas, em nosso País, infelizmente, se tudo não estiver bem escrito e bem enunciado, mesmos as “obviedades” se tornam excêntricas, e um ato torpe se torna um ato juridicamente válido e admissível.

após tratar das hipóteses de suspensão do crédito tributário, o Ctn, nos artigos 156 a 174, normatiza as modalidades de extinção do crédito. segundo o Ctn extinguem o crédito tributário: a) o pagamento; b) a compensação; c) a transação; d) a remissão; e) a prescrição; f ) a decadência; g) a conversão do depósito em renda; h) o pagamento antecipado e homologado; i) a decisão administrativa irreformável e judicialmente insindicável; j) a decisão judicial passada em julgado; k) a dação em pagamento em bens imóveis.

o pagamento, para a Fazenda Pública, é o melhor instrumento de extinção do crédito tributário. Mas, uma vez que o devedor fiscal se recusa a pagar a sua dívida tributária, da melhor e mais simples se transforma na mais complexa de todas as modalidades de extinção do crédito tributário.

o Código regula o dever da Fazenda Pública de repetir (ou devolver) o que foi indevidamente pago aos cofres públicos. Com efeito, nos estados Democráticos de Direito, que devem se pautar pela “legítima legalidade”, o poder deve se contentar em

56 BorGes, José souto Maior. Lançamento tributário. 2ª ed. são Paulo: Malheiros, 1999.

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receber o que lhe seja efetivamente devido, nem a mais nem a menos. os contribuintes devem pagar o estritamente devido. o que for indevidamente pago deve ser devolvido a quem pagou.

nessa linha, a interpretação a ser dada ao preceito contido no artigo 166 merece cuidadosa atenção. enuncia o citado dispositivo que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.

o stF editou duas súmulas tendo esse tema como pano de fundo: a 71, de 13.12.1963, e a 546, de 3.12.1969.

na súmula 71 está enunciado que “embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto”. na súmula 546 está enunciado que “cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo.

nada obstante as intenções do legislador, chanceladas pela suprema Corte, parece-me que o estado não deve se apropriar indevidamente do que não lhe seja de direito. assim, entendo que aquele que recolheu tributo indevido tem o direito a sua repetição.

insisto que o estado Democrático de Direito é o “poder legal e legítimo”. é ilegítimo que o estado se aproprie de valores indevidos. Dentro dessa “legítima legalidade” o Ctn regula os institutos da prescrição e da decadência tributárias. a rigor, ocorrido o fato gerador da obrigação tributária nasce, em princípio, o dever do sujeito passivo de pagar o tributo. o direito da Fazenda de exigir esse pagamento somente ocorre com a constituição, via lançamento, do crédito tributário. é uma situação aparentemente paradoxal.

se a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária implica o dever do sujeito passivo, em princípio, como a outra “face dessa moeda” deveria surgir o direito da Fazenda. Mas, como dissemos, não é essa a sistemática do Código. o direito da Fazenda surge com o crédito. o crédito surge com o lançamento, e não com o fato gerador da obrigação tributária.

Pois bem, um dos postulados éticos supremos dos sistemas jurídicos dos povos civilizados consiste na segurança ou na paz.57 o tempo é um fator de estabilização, de segurança e de paz. as situações jurídicas devem ocorrer dentro de determinados marcos temporais. esse aspecto ético do Direito foi bem capturado pelo ministro Cezar Peluso, nos autos do re 363.889, que cuidou dos temas coisa julgada e ação de investigação de paternidade, ocasião em que Sua Excelência afirma que ninguém consegue viver dignamente sem certeza jurídica.

Como viver em um mundo incerto, inseguro, sem paz, é muito perigoso, cuidou o Ctn de estabelecer os prazos para que a Fazenda constituísse o seu crédito e, uma vez constituído, pudesse cobrar esse crédito (arts. 173 e 174). assim, conforme preceitua o Código, o prazo decadencial de constituição do crédito se dá em 5 anos. e o prazo prescricional para a sua cobrança também se expira em 5 anos. Por esse mesmo postulado de segurança jurídica,

57 áviLa, Humberto. Segurança Jurídica – entre permanência, mudança e realização no direito tributário. são Paulo: Malheiros, 2011.

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o contribuinte também prazos para exigir da Fazenda a devolução do indevidamente pago, conforme já aludimos.

E, antes de alcançarmos o capítulo específico das garantias e privilégios do crédito tributário, passamos pelo Capítulo v que versa sobre a exclusão do crédito tributário (arts. 175 a 182). segundo o Ctn excluem o crédito tributário a isenção e a anistia.

ainda viceja no fértil solo jurídico brasileiro um forte debate acerca das similitudes e diferenças entre os institutos tributários da isenção e da imunidade. Cuide-se que esse debate não é só acadêmico, pois há manifestações do stF que a partir dessa distinção entre isenção e imunidade enseja consequências normativas distintas, como sucedeu no julgamento do direito de creditamento iPi nas hipóteses de insumos imunes ou isentos ou sujeitos à alíquota zero: RREE 212.484, 357.277, 353.657, 370.682 e 566.819.

Pois bem, nada obstante essas distinções normativas, na linha do magistério doutrinário de sacha Calmon58, entendo que a isenção é a exoneração legalmente qualificada, enquanto que a imunidade é a exoneração constitucionalmente qualificada. Ou seja, a diferença entre a imunidade e a isenção encontra-se no veículo normativo. a isenção é veiculada pela lei. a imunidade é veiculada pela Constituição.

em reforço dessa perspectiva colho o disposto no art. 150, § 6º, CF, que preceitua que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas e contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.

é de ver, portanto, que se cuida de uma garantia constitucional ao crédito tributário. nada obstante, tenha-se que para o contribuinte o que efetivamente importa é se ele deve pagar e quanto ele deve pagar de tributo. se houver norma exonerando do dever de pagar ou diminuindo o quanto se deve pagar, para o contribuinte pouco importa o veículo normativo ou o nome do instituto exonerativo, se imunidade, não-incidência, isenção, redução de base de cálculo, redução de alíquota, alíquota-zero etc.

todos sabemos que essa especial proteção do crédito tributário decorre de alguns hábitos equivocados de política fiscal no Brasil. Não são raras as políticas fiscais que manipulam os tributos com finalidades extrafiscais, com indesejáveis consequências, como sucede, por exemplo, com as “guerras fiscais” entre Estados ou entre Municípios.

Não se está a infirmar a possibilidade de o Estado usar os tributos com finalidades extrafiscais, pois em algumas situações isso se faz necessário, como ocorre, por exemplo, com a forte oneração de fumígeros ou de bebidas alcoólicas, cuja principal finalidade é pedagógica, visando desestimular o consumo desses produtos nocivos e insidiosos à saúde das pessoas.

Mas o que temos acompanhado é uma política tributária voltada, não raras vezes, para atender a outras finalidades, com a utilização de instrumentos fiscais como se fossem instrumentos de incentivo econômico. esse uso equivocado do direito tributário é nocivo à coletividade. Essas práticas normativas problemáticas normalmente se transformam em questões judiciais.

58 CoeLHo, sacha Calmon navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 8ª ed. rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 876.

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Mas essas questões judiciais problemáticas se tornam dramáticas quando o contribuinte confia na legislação estadual ou municipal e essa legislação é posteriormente declarada inconstitucional, devendo o contribuinte pagar valores que julgava não devidos.59 Para essas situações excepcionais o sistema jurídico tem o instituto normativo da modulação dos efeitos.

a partir do combativo magistério de rui Barbosa60 (o pai fundador do constitucionalismo republicano brasileiro) a doutrina jurídica nacional tem agasalhado o dogma da nulidade da lei declara inconstitucional. assim, segundo esse entendimento, a lei inconstitucional não pode ter produzido efeitos válidos e a decisão judicial que decreta a sua inconstitucionalidade tem caráter “declaratório” e com efeitos retroativos.

Com efeito, já sob a égide da Constituição de 1988, e tendo em perspectiva o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2, restou pacificado no seio da jurisprudência brasileira esse entendimento segundo o qual a lei inconstitucional é nula ab initio. sem embargo da vetustez desse dogma e da respeitabilidade de seus defensores, entendo que a tese kelseniana61 da anulabilidade da lei inconstitucional, em vista do caráter constitutivo da decisão de reconhecimento da inconstitucionalidade, com efeitos prospectivos, seja mais coerente com vida real.

é bem verdade, que em situações excepcionais, o tribunal admite a possibilidade de afastar esse dogma da nulidade com a concessão de efeitos prospectivos, acolhendo a tese da anulabilidade, com esteio nos artigos 27, Lei 9.868/99; e 11, Lei 9.882/99, que autorizam o tribunal, por 2/3 dos votos dos ministros da Corte, tendo em vista razões de segurança jurídica e ou de excepcional interesse social. o tribunal também passou a manipular os efeitos das decisões nos feitos de controle difuso de constitucionalidade, como ocorreu no julgamento do re 197.917.

no recente julgamento do re 586.453, a Corte decidiu que a exigência para modular os efeitos de decisão em matéria constitucional necessita da aprovação de 2/3 dos membros, nos mesmos moldes do que ocorre com o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. o tribunal, por uma questão de coerência normativa, aproximou o modelo processual do recurso extraordinário com repercussão geral do modelo processual do controle concentrado de constitucionalidade.

Mas eis uma situação peculiar do sistema jurídico brasileiro. nos termos do art. 97 da Constituição Federal, somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

assim, no caso do stF, somente 6 votos podem declarar uma norma inconstitucional. Mas para modular os efeitos da decisão são necessários 8 votos. ora, o que é mais importante? Declarar a inconstitucionalidade ou modular os efeitos das decisões? À luz da dinâmica jurisprudencial do stF, modular os efeitos é mais importante do que declarar a inconstitucionalidade de uma norma. a rigor, deveria ser o contrário. Para declarar uma norma inconstitucional deveria ser exigido o voto de 8 ministros ou 2/3 dos membros de

59 anDraDe, Fábio Martins de. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. são Paulo: Quartier Latin, 2011.

60 BarBosa, rui. Atos inconstitucionais. Campinas: russell, 2003. 61 KeLsen, Hans. Jurisdição constitucional. são Paulo: Martins Fontes, 2003.

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um tribunal ou de seu órgão especial, enquanto que a sua modulação poderia ser feita pelo quórum da maioria simples.

a modulação dos efeitos de uma decisão judicial não passa de um ato de política judiciária, pautada pela conveniência e oportunidade. insisto, o grave não é a modulação de efeitos, mas a declaração de inconstitucionalidade. Por que defendo a anulabilidade das leis e a modulação de seus efeitos? Porque no mundo da vida real, entre o início de um processo legislativo e o fim de um processo judicial dista longo prazo. Assim, o dogma deveria ser o caráter constitutivo da sentença de inconstitucionalidade com efeitos prospectivos. excepcionalmente os efeitos deveriam ser retroativos.

no mundo real, das situações concretas da vida, as leis vigem até decisão judicial ou legislativa em contrário. assim, enquanto não houver decisão judicial suspendendo a validade e eficácia de uma lei, essa lei deve continuar vigendo e produzindo efeitos jurídicos. Passados vários anos, uma decisão judicial, ainda que seja do stF, declarando a inconstitucionalidade de uma lei não pode desprezar todo o período de vigência normativa dessa lei. Isso provocaria incerteza, insegurança, instabilidade, enfim, provocaria o caos. E o direito é ordem. a razão de ser do sistema jurídico é impor a ordem sobre o caos. De modo que decisão judicial provocadora de caos é uma não-decisão. Direito é Paz com Justiça.

retorno ao crédito tributário. Chegamos nas suas garantias e privilégios (arts. 183 a 193, Capítulo vi, Ctn).o Código, coerentemente, preceitua que as garantias atribuídas neste Capítulo ao crédito tributário não excluem outras que sejam expressamente previstas em lei, em função da natureza ou das características do tributo a que se refiram.

Portanto, que no plano dos textos legislativos, o crédito tributário goza de especial proteção e todo reforço em favor do fortalecimento do crédito tributário é justificado por sua posição sobranceira. no art. 184, Ctn, tem dispositivo de grande proteção ao crédito tributário, na medida em que somente os bens e rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis estarão fora do alcance da responsabilidade tributária.

Isso significa que somente lei federal pode indicar quais bens e rendas estão fora da garantia do crédito tributário. somente a lei pode indicar o que não será alcançado pela responsabilização tributária. nada obstante o rol de bens impenhoráveis no art. 649 do Código de Processo Civil, é de se interpretar o art. 184, Ctn, em sentido mais robusto, pois a execução do crédito tributário é especial e na dúvida entre a aplicação de uma lei geral ou de uma lei específica, prevalece a específica.

a jurisprudência contrária ao crédito tributário é excepcional, como ocorre na hipótese de proteção ao bem de família, nos termos da Lei 8.009/1990, desde que não sejam de tributos ou contribuições decorrentes do próprio imóvel.todavia, o stF, apreciando questões tributárias envolvendo os Correios, tem decidido que a eCt - empresa Brasileira de Correios não pode ter os seus bens penhoráveis para o pagamento de suas dívidas, sejam fiscais, trabalhistas ou de qualquer natureza, por força do disposto no art. 12 do Decreto-Lei n. 509/1969, excepcionando a regra disposta no art. 173, § 2º, CF, como se vê nos autos dos rree 220.906 e 601.392.

o stF, no caso da eCt, tem entendido que ela tem, para efeitos de dívidas fiscais e trabalhistas, o mesmo regime jurídico das pessoas jurídicas de direito público, mas no recente julgamento do re 589.998, que cuidava da eventual estabilidade do servidor público, preconizada no art. 41, CF, o tribunal entendeu inaplicável aos empregados da eCt. nos citados leading cases que reconheceram esse regime jurídico de direito público da

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eCt, o tribunal, enfrentando uma penhora dos bens da eCt, decorrente do cumprimento de decisão judicial em execução trabalhista, criou a figura do “precatório informal” e da “interpretação constitucional com base no próprio supremo”.

o “precatório informal” foi o que disse o Ministro nelson Jobim. sua excelência (fl. 479, RE 220.096) disse que a ECT tem recebe um ofício do TRT e faz um lançamento. ou seja, sem nenhuma base normativa a eCt paga suas dívidas com espeque em um “precatório informal”. À míngua dessa base normativa, o Ministro ilmar Galvão indagou se esse entendimento é firmado no “direito natural”, pois não há respaldo no “direito positivo brasileiro”. o Ministro Moreira alves rebate dizendo que não é por direito natural, mas com base em interpretação do Supremo Tribunal Federal (fls. 479-483).

Mas, indago: a interpretação do stF tem qual base normativa? nenhuma. o parâmetro do tribunal foi ele mesmo, pois o sistema normativo vigente (art. 100, CF) não autorizava o tribunal a decidir que a eCt pagasse os seus débitos via precatórios informais. Com a vênia das opiniões divergentes e com todo o respeito e acatamento às decisões do stF, nenhum tribunal pode decidir as causas com base em si próprio. Há de haver um parâmetro normativo válido e vigente, sob pena de cairmos no arbítrio e despotismo judicial. toda decisão judicial, seja de que grau for, deve estar em conformidade com o ordenamento jurídico, deve estar em sintonia com o Direito e com a Justiça.

Juiz ou tribunal que decide com base em si mesmo, lembra o barão de Munchausen. Como todos sabem, o ilustre personagem narrava uma estória segundo a qual ele e seu cavalo caíram em um lago, estavam afundando, mas o barão teve a ideia de se puxar pelos próprios cabelos, e retirou a si e a seu cavalo apenas com a força de seu braço soerguendo-se, pelas próprias tranças do cabelo, sem nenhum ponto de apoio externo.62 Foi o que fez o tribunal no citado exemplo. em rigor, todas as vezes que um juiz ou tribunal decide sem amparo no ordenamento jurídico, ele faz às vezes do mencionado Barão.63

esse tipo de comportamento judicial, com a devida vênia, enfraquece a confiança no sistema jurídico. E quebra de confiança no Direito é ruim para a credibilidade das instituições. Crédito é credibilidade.

o Ctn, no art. 185, enuncia que presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou o seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. essa presunção é afastada se o sujeito passivo reservar valores suficientes para garantir o pagamento de seus débitos devidamente inscritos (art. 185, parágrafo único).

a Lei Complementar n. 118/2005 acrescentou ao Ctn o artigo 185-a que dispôs de reforço processual à proteção do crédito ao permitir que mediante ordem judicial sejam postos em indisponibilidade os bens e direitos patrimoniais do devedor, inclusive com o bloqueio eletrônico de ativos financeiros. Essas medidas constritivas são draconianas, mas ou a proteção ao crédito tributário é forte e é para valer, ou não há que se falar em garantia do crédito.

62 rasPe, rudolf erich. As aventuras do barão de Munchausen. tradução: ana Goldberger. ilustrações: Gustave Doré. são Paulo: iluminuras, 2013, p. 66.

63 Marcelo neves apresenta três categorias de juízes: o Hidra, que só julga com base em princípios; o Hércules (não no sentido dworkiano), que só julga com base em regras; e o iolau, que procura aplicar corretamente os princípios e as regras. neves, Marclo. entre Hidra e Hércules – princípios e regras constitucionais. são Paulo: Martins Fontes, 2013.

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Cuide-se que nos termos do art. 204, Ctn, a dívida regularmente inscrita goza de presunção de certeza e liquidez e tem efeito de prova pré-constituída, podendo, todavia, ser ilidida mediante prova inequívoca a cargo do sujeito passivo ou de terceiro interessado.

no título do visitado Capítulo vi constam os termos “garantias” e “privilégios”, mas o Código, a partir do art. 186 dispõe sobre “preferências”. segundo o Ctn, o crédito tributário prefere a quaisquer outros créditos, exceto os decorrentes da legislação trabalhista ou de acidente de trabalho, bem como na hipótese de falência, em relação aos créditos extraconcursais.

a jurisprudência tem admitido que os créditos alimentares tenham preferência sobre os créditos tributários, mas dúvidas pairam em relação aos honorários advocatícios. inicialmente o stJ entendeu que os créditos de honorários advocatícios seriam alimentares e teriam preferência sobre os créditos tributários (resp 608.028). Posteriormente e atualmente essa orientação se modificou, e segundo o STJ os créditos tributários preferem aos honorários advocatícios (eresp n. 1.146.066).

nada obstante o entendimento segundo o qual os créditos alimentares preferem aos créditos tributários, entendo que essa preferência decorre em relação àqueles oriundos de sentenças judiciais ou de pensões alimentícias, diretamente envolvidos na controvérsia judicial. sendo assim, entendo correto o entendimento do stJ no sentido de que os créditos tributários preferem aos honorários advocatícios.

Tema que interessa à Federação é concernente ao concurso de preferências disposto no parágrafo único do art. 187 do Ctn. segundo o Código, o crédito da união prefere em relação aos créditos dos estados e Municípios; os dos estados preferem aos dos Municípios. o stF tem a súmula 563, de 15.12.1976: o concurso de preferência a que se refere o art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, I, da Constituição Federal.

Pessoalmente entendo defensável a tese segundo a qual em face da Constituição de 1988 esse preceito deve ser interpretado de outra maneira (em conformidade com a Constituição de 1988), pois não há hierarquia normativa entre a união, os estados e os Municípios, uma vez que existente, isso sim, uma repartição constitucional de competências políticas e administrativas.64

o Código disciplina outras preferências do crédito tributário, como a que determina o pagamento preferencial de créditos vencidos ou vincendos em face de créditos habilitados em inventários ou arrolamentos ou processos de liquidação judicial (arts. 189 e 190).

o Ctn, no art. 191, preceitua que a extinção das obrigações do falido requer prova de quitação de todos os tributos. e no art. 191-a preceitua que a concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos. Determina o Código, no art. 192, que nenhuma sentença de julgamento de partilha ou de adjudicação será proferida sem prova de quitação de todos os tributos relativos aos bens do espólio, ou às suas rendas. e, como último dispositivo do citado Capítulo vi, tem-se o disposto no art. 193 que preceitua que salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada, relativos à atividade em cujo exercício contrata ou concorre.

64 CarvaLHo, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 22ª ed. são Paulo: saraiva, 2010, pp. 649-650.

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esses são os preceitos normativos contidos no Ctn sobre as garantias, privilégios e preferências do crédito tributário, sem embargo da existência de outras normas de reforço do crédito. Mas, como enuncia o próprio Ctn, essas garantias, privilégios e preferências não se esgotam no específico capítulo nem mesmo no próprio Código.

Convém tecer breves considerações administração tributária e o poder dever de fiscalização do Estado (arts. 194 a 208). O Tribunal enfrentará, novamente, a questão da quebra do sigilo bancário ou financeiro diretamente pelas autoridades administrativas, nos autos do re 601.314. Diz-se novamente porque a Corte, nos autos do re 389.808, decidiu que sem ordem judicial não pode a administração tributária quebrar o sigilo bancário dos contribuintes. essa decisão, com a devida vênia, foi um duro golpe na fiscalização tributária e poderá ocasionar imensos prejuízos à recuperação do crédito tributário.

entendo que o disposto no art. 145, § 1º, CF, autoriza o acesso direto, pelas administrações tributárias, dos dados financeiros e bancários dos contribuintes, sem necessidade de uma ordem judicial, bastando, tão somente o devido processo administrativo, que já é bastante rigoroso nessas hipóteses de sigilo bancário e sigilo fiscal. Além do citado preceito, o art. 37, inciso XXII, CF, dá suporte normativo a uma integração das administrações fazendárias, visando, insista-se ao fortalecimento do crédito tributário. sabemos todos que a Constituição Federal é uma Constituição tributária.

outro tema sensível para as administrações fazendárias consiste na jurisprudência do STF em relação às sanções políticas. Com efeito, o Tribunal tem uma tendência jurisprudencial segundo a qual os eventuais ônus administrativos que venham a constranger o devedor fiscal são sanção política. Essa linha interpretativa da Corte tem de ser vista com bastante cautela, pois o eventual afrouxamento da fiscalização e de ônus administrativos pode ensejar a práticas reiteradas de descumprimento da legislação tributária. ora, esse hábito reiterado afeta, inclusive, a concorrência e a competitividade entre os agentes econômicos, pois, insista-se, o não cumprimento das obrigações fiscais de alguns criará desequilíbrios com os que cumprem os seus deveres: súmulas 70, 323 e 547; aDis 173 e 395, aC 1.657 e re 413.782.

Parece-me que a vedação às sanções políticas tributárias deve ocorrer na hipótese de ato ou procedimento estatal for manifestamente desarrazoado e desproporcional, colocando em risco a atividade empresarial ou econômica lícita do contribuinte.

Estou me aproximando do final. Iniciei recordando uma peça de Shakespeare, agora recordarei outra peça shakespeareana, mas da autoria de ariano suassuna intitulada o “auto da Compadecida”65, na sua adaptação para o cinema/televisão66, que também tem uma “cláusula penal” similar à contida em “O Mercador de Veneza”.

Mas nesse caso surpreenderei outra passagem desse clássico da arte brasileira. Cuida-se da ordem do cangaceiro “capitão” severino de aracaju para que um “cabra” seu atire no Padre e no Bispo. o jagunço diz que não gosta de matar padre não, que dá um azar danado, mas que “capitão” mandou, está mandado. e atira matando os sacerdotes católicos.

65 suassuna, ariano. O Auto da Compadecida. 11ª ed. rio de Janeiro: agir, 1975.66 arraes, Guel; FaLCão, adriana; e FaLCão, João. O Auto da Compadecida (adaptação da obra de Ariano

Suassuna). rio de Janeiro: rede Globo, 1999.

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É o que muitas vezes ocorre conosco, procuradores fiscais. Nem sempre gostamos de fazer o que fazemos: cobrar tributos. Mas se a “capitã” Lei mandou está mandado. não temos alternativa a não ser cobrar os tributos legalmente devidos. De preferência sem ter de cortar uma libra de carne ou uma “tira de couro”. e sem ter de derramar uma gota de sangue.

Hora de finalizar, pois estou abusando da sua generosa paciência. Antes, contudo, peço licença para falar a partir do coração. Sou de muito longe. Minhas raízes estão fincadas em Campo Maior – Pi, há quase 4.000 km de distância de Porto alegre. estou em Brasília - DF, mas sou nordestino. no Planalto Central lancei minhas sementes e com o arado do meu esforço, tenho colhido bons frutos e nele - Planalto Central - estão os tesouros de minha vida, meus pequeninos filhotes Luís Felipe (goianiense) e Carlos Augusto (brasiliense).

No plano profissional tenho tido muita satisfação, especialmente no aspecto acadêmico. Quando recebi o convite feito pelo procurador Guilherme valle Brum, destacado aluno do curso de Mestrado do CeuB, fui colhido por um sentimento de imensa vaidade e um misto de preocupação. isso porque nesta sagrada terra, que é o rio Grande do sul, há muita tradição. e muitos são os respeitáveis nomes do direito brasileiro que vicejaram e vicejam nesse solo rico de produção de grandes juristas. Creio que o Guilherme deve ter se esforçado bastante para convencer os seus pares a me convidarem, pois com tantos outros nomes altamente qualificados, ele foi buscar um pálido professor e procurador da Fazenda. essa escolha e aceitação de meu nome só revela a generosidade dos eminentes procuradores desse estado.

somente os idiotas de plantão imaginam que o gaúcho é um separatista. Quem fala isso não conhece a história de lutas e quanto o rio Grande defendeu as fronteiras nacionais. todos os demais brasileiros somos devedores dos esforços gaúchos pela unidade nacional. talvez não haja povo mais brasileiro que o povo gaúcho.

Peço licença para tocar em um assunto doloroso para todos. o convite que recebi foi logo após a tragédia de santa Maria, e, confesso, ainda estava abalado por esse triste acontecimento. Por isso que, antes de encerrar, não poderia deixar de prestar minhas sinceras homenagens à memória das vítimas daquela tragédia.67 o rio Grande sofreu, chorou. o restante do Brasil sofreu junto. Mas o povo gaúcho é um peleador intimorato, e, apesar de sua colossal dor, sairá mais unido e mais forte desse lamentável acontecimento.

esse episódio é uma dolorosa página de bronze da história do Brasil. não devemos nos esquecer daquelas vítimas e não devemos apagar os registros desse episódio. Devemos sempre honrar a memória de todas aquelas pessoas tragicamente falecidas. Que essa triste página da história brasileira sirva de lição para todos nós, pois ninguém, desde as mais altas autoridades da república até o mais humilde dos cidadãos, pode negligenciar os seus deveres e suas obrigações, sejam as jurídicas, sejam as morais ou cívicas.

67 triste episódio de amplo conhecimento público ocorrido na madrugada do dia 27.1.2013, que resultou na morte de 242 pessoas, com outras 122 feridas, em decorrência de um incêndio ocorrido em casa noturna dessa Cidade.

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3. O CANCELAmENTO DO REGISTRO DOS FABRICANTES DE CIGARROS: perspectivas e expectativas do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.95268

Em homenagem a Eros Roberto Grau, jurista completo, que simplificou e desnudou as falsas complexidades do Direito.

o Partido trabalhista Cristão – PtC protocolou em 10.9.2007 a referida aDi n. 3.95269 postulando pela decretação de inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.822/1999, que deu nova redação ao inciso II do art. 2º do DL 1.593/1977, e do art. 2º (in totum) e do § 5º do art. 2º do DL 1.593/77, incluídos pela Medida Provisória n. 2.158-35/01.

eis os enunciados dos aludidos dispositivos atacados:

art. 2o o registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos:

i - desatendimento dos requisitos que condicionaram a concessão do registro;

ii - não-cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela secretaria da receita Federal;

III - prática de conluio ou fraude, como definidos na Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, ou de crime contra a ordem tributária previsto na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, ou de qualquer outra infração cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, importação e comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado.

................................................................

§ 5º Do ato que cancelar o registro especial caberá recurso ao secretário da receita Federal, sem efeito suspensivo, dentro de trinta dias, contados da data de sua publicação, sendo definitiva a decisão na esfera administrativa.

o Partido requerente invoca jurisprudência do stF que proíbe a utilização das “sanções políticas”. Com efeito, se analisarmos essa questão apenas através do prisma do direito tributário, não há a menor dúvida que estamos diante das intituladas “sanções políticas”. ou seja, se se olhar apenas e tão somente a questão tributária em si, não temos

68 texto de palestra proferida no xvii Congresso internacional de Direito tributário da associação Brasileira de Direito tributário – aBraDt, em homenagem ao ministro teori Zavascki. tema central: “tributação e Federalismo”. Tema da mesa: “Administração tributária – entre conflituosidade e contratualização”. Tema da palestra: “O cancelamento do registro dos fabricantes e importadores de cigarros, à luz das súmulas 70 e 547 do stF (aDi n. 3.952)”. evento realizado no hotel Mercure Lourdes, entre os dias 25 e 27 de setembro de 2013. Data da palestra: 26.9.2012.

69 BrasiL, supremo tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.952. Plenário. relator ministro Joaquim Barbosa. requerente: Partido trabalhista Cristão – PtC. requeridos: Presidente da república e Congresso nacional. Amici curiae: Confederação nacional dos trabalhadores na indústria – Cnti, instituto Brasileiro de ética Concorrencial – etCo, sindicato da indústria do Fumo do estado de são Paulo – sinDiFuMo, e sindicato da indústria do Fumo no estado do rio Grande do sul – sinDiFuMo/rs. Brasília, 2007.

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a menor dúvida em dizer que as súmulas 70, 323 e 54770 deveriam ser aplicadas nessa controvérsia, e a aludida ação deveria ter o seu pedido julgado procedente.

É cediço, à luz da remansosa jurisprudência do STF71, que são inválidos os instrumentos normativos indiretos que tenham como finalidade obrigar o contribuinte ao pagamento dos tributos ou ao cumprimento das obrigações fiscais acessórias. Todavia, se olharmos essa questão além do direito tributário, se apreciarmos essa controvérsia à luz do Direito como um todo, na linha do magistério de eros roberto Grau72, veremos que os preceitos normativos impugnados podem ser considerados válidos.

Cuide-se que na qualidade de procurador da Fazenda nacional confeccionei Peça em defesa da validade normativa desses preceitos normativos questionados.73 nesse mencionado trabalho conclui que: a) o devido processo legal substantivo foi respeitado; b) a produção de cigarros é atividade econômica tolerada pelo estado; c) necessidade de ponderações de interesses, pois há a defesa da saúde pública, da defesa do consumidor e da defesa da concorrência; d) a livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna; e) Todas as normas e medidas jurídicas para controlar com rigor e austeridade a produção de cigarros são constitucionalmente válidas, politicamente legítimas, moralmente aceitáveis e socialmente desejáveis.

em 21.10.2010, o relator ministro Joaquim Barbosa votou pela interpretação conforme de modo que a cassação do registro especial seja considerada constitucional, se simultaneamente estiverem presentes os seguintes requisitos condicionantes: a) observar o vulto dos créditos tributários devidos; b) respeitar o devido processo legal de controle de validade da restrição; c) respeitar o devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários.

o relator chegou a essas conclusões após analisar a questão além do aspecto estritamente tributário. Reitero. Se ficarmos atados apenas aos aspectos estritamente fiscais não tenho a menor dúvida em dizer que incidiriam as súmulas 70, 323 e 547 e deveria ser julgado procedente o pedido da aDi 3.952.

retorno. após o voto do relator, houve um rápido debate entre ele e os ministros Cármen Lúcia, Celso de Mello, Marco aurélio, ellen Gracie e Cezar Peluso. Como não se chegou a um consenso, a ministra Cármen Lúcia pediu vista dos autos para melhor exame. Cuide-se, nada obstante, que sua excelência tinha se manifestado, inicialmente, no sentido de julgar improcedente o pedido da ação.

O início da apreciação dessa ADI 3.952 foi anterior à finalização do julgamento do re 550.76974, que também teve como pano de fundo normativo o aludido DL 1.593/77.

70 súmula 70: é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo; súmula 323: é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos; Súmula 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

71 rMs 9.698, re 39.933, re 63.045, re 60.664, re 63.047, re 64.054, aDi 173, aDi 394, re 413.782, re 374.981, are 736.155...

72 Grau, eros roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4ª ed. são Paulo: Malheiros, 2006.73 aLves Jr., Luís Carlos Martins alves. Parecer – IPI: regime especial relativo às empresas fabricantes de cigarros.

revista Dialética de Direito tributário n. 169. são Paulo: Dialética, outubro de 2009. esse Parecer também está disponível no livro de minha autoria intitulado Direito Constitucional Fazendário, que pode ser acessado diretamente na página virtual da aGu, no item publicações da aGu (www.agu.gov.br).

74 BrasiL, supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 550.769. Plenário. relator ministro Joaquim Barbosa. recorrente: american virginia indústria e Comércio importação e exportação de tabacos Ltda. recorrida: união Federal (Fazenda nacional). Amici curiae: instituto Brasileiro de ética

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Mas nesse re 550.769 estava em apreciação uma situação concreta e particular de uma determinada empresa que tinha inadimplência tributária contumaz e, com essa inadimplência, estava obtendo uma vantagem competitiva em relação às adimplentes. Cuide-se que em 22.5.2013, o tribunal, por maioria, vencidos os ministros Gilmar Mendes, Marco aurélio e Celso de Mello, e estando ausente a ministra Cármen Lúcia, desproveu o re 550.769 da empresa. o ministro Luís roberto Barroso não participou desse mencionado julgamento.

se levarmos em consideração o resultado desse citado re 550.769, da atual composição, provavelmente votarão pela procedência do pedido da aDi 3.952 os ministros Celso de Mello, Marco aurélio e Gilmar Mendes. esses 3 ministros partilham do entendimento segundo o qual o impugnado DL 1.593/77 se trata de um ucasse normativo que merece o rótulo de “sanção política”. tenha-se, no entanto, que a ministra Cármen Lúcia participou do julgamento da ação Cautelar n. 1.65775, que serviu de preparação para o citado re 550.769, e se manifestou contrariamente ao postulado pela empresa tabagista.

Insisto. Se olharmos apenas através do prisma tributária enxergaremos uma flagrante “sanção política”. Mas se formos além da arrecadação tributária, poderemos perceber que esse DL 1.593/77 está em sintonia com a Constituição da república. Com efeito, o estado apenas tolera o exercício dessa atividade econômica que fabrica produtos danosos à saúde pública.

esses produtos fumígeros agridem não somente o indivíduo que os consomem diretamente, mas tem potencial de causar danos às pessoas que mesmo sem consumi-los diretamente podem sofrer com a contaminação da “fumaça” e do “mau cheiro” provocados. eis a razão pela qual, surge o interesse público, não apenas estatal, mas social, de embaraçar e dificultar a produção e o consumo de cigarros. Esse embaraço encontra respaldo tanto na legislação nacional, quanto na estrangeira e internacional. o combate ao consumo do cigarro faz parte da agenda de saúde global, como se vê nas diretivas da oMs.

Nesse passo, devem ser draconianas as normas e medidas relacionadas à indústria tabagista. Todavia, essa severidade não significa despótica arbitrariedade estatal, como alega o partido requerente. essas restrições devem ser justas, ou seja, devem ser razoáveis e proporcionais: compatíveis, adequadas, necessárias e aceitáveis. Devem ser ações e medidas normativas que traduzam os ônus e deveres da indústria tabagista no exercício de seus direitos constitucionalmente assegurados.

Com a devida vênia, é através do prisma dos ônus e deveres que a presente controvérsia deve ser examinada. o enfoque pretendido pelo requerente não é o mais adequado. nesse caso, os direitos fundamentais da indústria tabagista estão em necessária vinculação ao cumprimento de seus deveres fundamentais. só com o cumprimento de todas

Concorrencial – etCo, sindicato da indústria do Fumo do estado de são Paulo – sinDiFuMo, e sindicato da indústria do Fumo no estado de são Paulo. Brasília, 2007.

75 BrasiL, supremo tribunal Federal. Ação Cautelar n. 1.657. Plenário. redator ministro Cezar Peluso. requerente: american virginia indústria e Comércio importação e exportação de tabacos Ltda. requerida: união Federal (Fazenda nacional). Brasília, 2007. ementa do acórdão: RECURSO. Extraordinário. Efeito suspensivo. Inadmissibilidade. Estabelecimento industrial. Interdição pela Secretaria da Receita Federal. Fabricação de cigarros. Cancelamento do registro especial para produção. Legalidade aparente. Inadimplemento sistemático e isolado da obrigação de pagar Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI. Comportamento ofensivo à livre concorrência. Singularidade do mercado e do caso. Liminar indeferida em ação cautelar. Inexistência de razoabilidade jurídica da pretensão. Votos vencidos. Carece de razoabilidade jurídica, para efeito de emprestar efeito suspensivo a recurso extraordinário, a pretensão de indústria de cigarros que, deixando sistemática e isoladamente de recolher o Imposto sobre Produtos Industrializados, com conseqüente redução do preço de venda da mercadoria e ofensa à livre concorrência, viu cancelado o registro especial e interditados os estabelecimentos.

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as suas obrigações legais (fiscais, sanitárias, trabalhistas, ambientais etc.) é que a indústria tabagista poderá exercer o seu direito de produzir e de vender cigarros. Conquanto esteja em controvérsia o regime especial do iPi, a presente análise deve ser feita a partir do direito econômico e da extrafiscalidade tributária.

A legislação combatida tem como finalidade regular a atividade econômica de produzir cigarros garantindo que mediante concorrência predatória e preços convidativos não haja o predomínio entre as indústrias. Nesse específico caso, a liberdade concorrencial prevalece sobre a livre iniciativa, em homenagem à função social da propriedade (empresa privada), evitando-se o abuso do poder econômico, que se dá com o não cumprimento das obrigações fiscais. Além da proteção à liberdade de concorrência, reitera-se que o principal objetivo da forte carga tributária sobre o cigarro consiste em desestimular o seu consumo, haja vista os malefícios para a saúde pública provocados pelo seu uso.

Decorre dessa verdade elementar a consequência de que todas as normas e medidas jurídicas para controlar com rigor e austeridade a produção de cigarros são constitucionalmente válidas, politicamente legítimas, moralmente aceitáveis e socialmente desejáveis. Forte nesse ponto-de-partida inquestionável, no sentido de que se deve apreciar o problema através dos ônus e deveres para depois se alcançar os direitos, pode-se entender que o DL 1.593/77 é juridicamente válido.

Pois bem, tem o Poder Público o direito de cancelar o registro especial de pessoa jurídica que tem como objeto social a produção ou comercialização de produtos fumígeros pelo descumprimento das obrigações fiscais? A autoridade competente poderia ser o Secretário da receita? Com a vênia das respeitáveis dissensões, as respostas são positivas. aqui não se está utilizando o poder de tributar para destruir, mas para desestimular o consumo de produtos nocivos, e, paradoxalmente, para permitir a concorrência e a competitividade. Paradoxalmente por que do ponto de vista de uma “moralidade romântica”, na qual o Poder Público deve fazer o que é certo e desejável, a produção, a venda e o consumo de cigarros deveriam ser proibidos.

Mas o Poder Público não raras vezes age com esteio no “pragmatismo realista”, ou seja, faz o que é conveniente e possível. eis a razão para não proibir, mas apenas tolerar o cigarro. essa tolerância se dá, nada obstante, criando uma série de embaraços a essa atividade econômica danosa à saúde pública. E aí surgem outras indagações. Pode o Estado, via instrumentos tributários, criar embaraços para o desenvolvimento de atividades econômicas ou para a produção de bens ou de serviços que sejam danosos à saúde ou à integridade das pessoas? sim. a Constituição veda, como “sanções políticas”, o uso da estrutura tributária para desestimular atividades lícitas, mas danosas à sociedade? Não.

não se trata aqui do “estado Babá” (Nanny’s State) que não reconhece a autonomia e a responsabilidade dos indivíduos, mas de um estado responsável pelo bem-comum de todos e de cada um. no “estado Babá” haveria a proibição. no estado democrático, há a tolerância.

Finalizo. volto para a aDi 3.952. o resultado dessa ação direta dependerá, como soe acontecer, das premissas que serão adotadas pelos ministros. se partirem da premissa de que a questão é eminentemente tributária, na linha dos entendimentos de Celso de Mello, Marco aurélio e Gilmar Mendes, o tribunal aplicará as mencionadas súmulas que vedam as “sanções políticas”. Mas se partirem da premissa de que a questão não é diretamente fiscal, mas de saúde pública, deverá prevalecer o voto do relator ministro Joaquim Barbosa. aguardemos.

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4. O PIS E A COFINS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS: perspectivas e expectativas do julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 400.479 e 609.09676

Em homenagem aos professores Sacha Calmon e Misabel Derzi, dois dos grandes ícones do direito tributário brasileiro.

nos autos do referido recurso extraordinário n. 609.09677, sob a relatoria do ministro ricardo Lewandowski78, o stF reconheceu a repercussão geral da discussão sobre a incidência do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras.79 Cuide-se que o tribunal, em sessão plenária de 19.8.2009, iniciou o julgamento do mencionado recurso extraordinário n. 400.47980, sob a relatoria do ministro Cezar Peluso – recentemente aposentado -, no qual se discute a incidência da COFINS sobre as receitas financeiras operacionais das companhias seguradoras. nesse referido re 400.479, após o extenso voto do relator, em antecipação aos votos dos demais ministros, o ministro Marco aurélio pediu vista dos autos para melhor exame. em 4.5.2012, sua excelência devolveu os citados autos para julgamento. está-se no aguardo de sua reinclusão na pauta do Plenário da suprema Corte.

esses aludidos julgamentos são a continuação das discussões acerca da validade constitucional do alargamento da base de cálculo da CoFins instituída pelo § 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98. Com efeito, o stF iniciou a apreciação desse tema (CoFins Base De CáLCuLo) em 12.12.2002, nos autos do recurso extraordinário n. 346.084, sob a relatoria originária do ministro ilmar Galvão, mas que teve como redator do acórdão o ministro Marco aurélio.nesse re 346.08481, a Corte decidiu que não poderia o legislador

76 texto de conferência a ser proferida no xvi Congresso internacional de Direito tributário da associação Brasileira de Direito tributário – aBraDt, em homenagem ao ministro Luiz Fux. tema central: “Jurisdição tributária”. tema da mesa: “os conceitos de faturamento e receita no âmbito do Pis/CoFins, do iCMs e do iss. tema da conferência: “o debate sobre o Pis/CoFins das instituições Financeiras”. evento realizado no Hotel ouro Minas, entre os dias 19 e 21 de setembro de 2012. Data da Conferência: 20.9.2012.

77 BrasiL, supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 609.096. Plenário. relator ministro ricardo Lewandowski. recorrentes: Ministério Público Federal e união Federal (Fazenda nacional). recorrido: Banco santander do Brasil s/a.

78 LeWanDoWsKi, ricardo. Recurso Extraordinário n. 609.096. voto. acórdão. Folhas 131 e 132. supremo tribunal Federal: Brasília, 2011: “Com efeito, o tema apresenta relevância do ponto de vista jurídico, uma vez que a definição sobre o enquadramento das receitas financeiras das instituições financeiras no conceito de faturamento para fins de incidência da COFINS e da contribuição para o PIS norteará o julgamento de inúmeros processos similares, que tramitam neste e nos demais tribunais brasileiros. Ademais, a discussão também apresenta repercussão econômica porquanto a solução da questão em exame poderá ensejar relevante impacto financeiro no orçamento das referidas instituições, bem como no da Seguridade Social e no do PIS. Além disso, a matéria em debate guarda similitude com a questão tratada no RE 400.479-AgR-ED/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, submetido ao julgamento do Plenário desta Corte em 18/8/2009, mas suspenso, na mesma data, em razão do pedido de vista do Min. Marco Aurélio.”

79 Recurso Extraordinário n. 609.096. Preliminar de repercussão geral. Julgado em 3.3.2011. acórdão publicado em 2.5.2011. ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. COFINS E CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS. INCIDÊNCIA. RECEITAS FINANCEIRAS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. CONCEITO DE FATURAMENTO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

80 BrasiL, supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 400.479. Plenário. relator ministro Cezar Peluso. recorrente: axa seguros Brasil s/a. recorrida: união Federal (Fazenda nacional).

81 BrasiL, supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 346.084. Plenário. redator ministro Marco aurélio. recorrente: Divesa Distribuidora Curitibana de veículos s/a. recorrida: união Federal (Fazenda nacional). Julgamento em 9.11.2005. acórdão publicado em 1º.9.2006. eMenta: CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE - ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 - EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO - INSTITUTOS -

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autorizar a incidência do Pis/CoFins sobre “a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvidas e da classificação contábil adotada”.

no citado julgamento que decretou a inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo da CoFins, estabelecida no referido § 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98, o redator do acórdão ministro Marco aurélio82 entendeu que somente poderia incidir a mencionada contribuição, àquela época, antes do advento da Emenda Constitucional n. 20/98, sobre a receita bruta ou faturamento:

o que decorra quer da venda de mercadorias, quer da venda de serviços ou de mercadorias e serviços, não se considerando receita diversa.

sucede, no entanto, que o ministro Cezar Peluso83, conquanto acompanhasse o redator na decretação de inconstitucionalidade, entendeu que o faturamento é a receita decorrente das atividades empresariais típicas da pessoa jurídica. no referido julgamento desse recordado re 346.084 houve um pequeno debate entre os ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio sobre a eventual incidência da COFINS sobre as receitas financeiras de instituições que prestam serviços financeiros.84 nesse mencionado debate deixou-se aberta a porta para a discussão acerca da incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras e das companhias seguradoras.

EXPRESSÕES E VOCÁBULOS - SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - PIS - RECEITA BRUTA - NOÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada.

82 auréLio, Marco. Recurso Extraordinário n. 346.084. voto. acórdão. Folhas 1.266 e 1.267. supremo tribunal Federal: Brasília, 2006.

83 PeLuso, Cezar. Recurso Extraordinário n. 346.084. voto. acórdão. Folhas 1.210 e 1.255. supremo tribunal Federal: Brasília, 2006.

84 Recurso Extraordinário n. 346.084. Debate entre os ministros Cezar Peluso e Marco aurélio. acórdão. Folhas 1.254 e 1.255. supremo tribunal Federal: Brasília, 2006. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “Sr. Presidente, gostaria de enfatizar meu ponto de vista, para que não fique nenhuma dúvida ao propósito. Quando me referi ao conceito construído no RE 150.755, sob a expressão ‘receita bruta de venda e mercadorias e prestação de serviço’, quis significar que tal conceito está ligado à ideia de produto do exercício de atividades empresariais típicas, ou seja, que nessa expressão se inclui todo incremento patrimonial resultante do exercício de atividades empresariais típicas. Se determinadas instituições prestam tipo de serviço cuja remuneração entra na classe das receitas chamadas financeiras, isso não desnatura a remuneração de atividade própria do campo empresarial, de modo que tal produto entra no conceito de ‘receita bruta igual a faturamento’.” O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Mas, ministro, seria interessante, em primeiro lugar, esperar a chegada de um conflito de interesses, envolvendo uma dúvida quanto ao conceito que, por ora, não passa pela nossa cabeça.” O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “Mas passa pela cabeça de outros. Já não temos poucas causas, Sr. Ministro, para julgar. Quanto mais claro seja o pensamento da Corte, melhor para a Corte e para a sociedade”. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Não pretendo, neste julgamento, resolver todos os problemas que possam surgir, mesmo porque a atividade do homem é muito grande sobre a base de incidência desses tributos. E, de qualquer forma, estamos julgando um processo subjetivo e não objetivo e a única controvérsia é esta: o alcance do vocábulo ‘faturamento’. E, a respeito desse alcance, temos já, na Corte, reiterados pronunciamentos”. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “É o que estou fazendo: esclarecendo meu pensamento sobre o alcance desse conceito”. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Senão, em vez de julgarmos as demandas que estão em Mesa, provocaremos até o surgimento de outras demandas, cogitando de situações diversas”.

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Pois bem, se o tema da inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo do PIS/COFINS já restou pacificado no seio do Tribunal, a discussão quanto ao alcance da incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras e companhias seguradoras não está sepultada, tendo em vista as mudanças de composição da Corte e o fato de que as variações de composição têm significado variações de jurisprudência.85

Esse dado necessita de reflexões: a mudança de composição da Corte deve implicar na mudança de orientação jurisprudencial? a jurisprudência é do tribunal ou é da maioria dominante naquele período? e na hipótese de súmula vinculante, se houver uma mudança de composição que não autorize o seu cancelamento? e se a maioria dominante não pretender se subordinar à súmula vinculante? À luz do texto constitucional, a jurisprudência é da Corte e não da composição momentânea, por isso que as súmulas vinculantes necessitam de pelo menos 2/3 dos ministros aderindo a sua aprovação, depois de reiteradas decisões sobre o tema. ou seja, a súmula vinculante deve nascer madura e ponderada e deve ter a chancela de pelo menos 8 ministros da Corte (art. 103-a, CF).

Por esse ângulo, na hipótese de mudança de composição e que eventualmente 7 ministros discordem da vigência e aplicabilidade de alguma súmula vinculante, em homenagem à segurança e à confiabilidade do Tribunal, esses 7 ministros deverão se curvar ao mandamento dominante da súmula. Com isso, pretendeu o constituinte criar condições de estabilidade institucional na jurisprudência do stF. Mas e se os 7 ministros se mantiverem rebeldes à súmula vinculante? Qual a saída institucional? Nos termos do art. 52, II, CF, o senado Federal deverá processar e julgar os ministros do stF por crime de responsabilidade.

Com efeito, nos termos da Lei n. 1.079, de 10.4.1950, art. 39, itens 4 e 5, são crimes de responsabilidade dos ministros do stF, além de outros, ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo e proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções. ora, se os ministros não respeitarem a súmula do próprio tribunal estarão incorrendo nos aludidos crimes de responsabilidade.

85 Quando houve o início do julgamento do citado re 346.084, em 12.12.2002, o tribunal estava sob a presidência do ministro Marco aurélio e tinha em sua composição os seguintes ministros: Moreira alves, sydney sanches, sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos velloso, ilmar Galvão, Maurício Corrêa, nelson Jobim, ellen Gracie e Gilmar Mendes. Quando o julgamento do re 346.084 se encerrou, em 9.11.2005, a Corte era presidida pelo ministro nelson Jobim e tinha em sua composição os seguintes ministos: sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos velloso, Marco aurélio, ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, ayres Britto, Joaquim Barbosa e eros Grau. no início do julgamento do re 400.479, em 19.8.2009, o tribunal era presidido pelo ministro Gilmar Mendes e tinha a seguinte composição: Celso de Mello, Marco aurélio, ellen Gracie, Cezar Peluso, ayres Britto, Joaquim Barbosa, eros Grau, ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Até o final deste de 2012 ocorrerá a aposentadoria do ministro presidente ayres Britto e segundo notícias veiculadas nos órgãos de imprensa também solicitará aposentadoria o ministro decano Celso de Mello. atualmente, além desses dois ministros citados, a Corte é composta pelos ministros Marco aurélio, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa (futuro presidente), ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias toffoli, Luiz Fux e rosa Weber. nessa toada, o tribunal, em 2012, terminará o ano desfalcado de 3 ministros, em face da aposentadoria do ministro Peluso e da iminente aposentadoria do ministro ayres Britto e da cogitada aposentadoria do ministro Celso de Mello. aguardemos as próximas nomeações para o stF. espera-se que a Presidenta da república escolha alguém, com pelo menos 35 anos de experiência profissional (e não apenas de vida, pois o STF não é lugar de “menino”), de notável saber jurídico e de reputação ilibada. Há brasileiros com essas qualidades. Que sua excelência seja iluminada pela razão e pelo bom senso na hora de indicar o homem ou a mulher para a cátedra suprema da magistratura brasileira. Para a vaga decorrente da aposentadoria do ministro Peluso a escolha do ministro teori Zavascki homenageou a Constituição.

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Mas se o tribunal, via mandado de segurança ou qualquer outro expediente, trancar ou infirmar o processo e o julgamento do Senado Federal em face de crime de responsabilidade de algum de seus membros? nessa hipótese, a saída institucional é dramática: Forças armadas para garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem (art. 142, CF).

Pessoalmente, tenho plena convicção de que os ministros que têm assento nas cátedras do stF são pessoas responsáveis e absolutamente conscientes das graves responsabilidades que o cargo lhes impõe, de modo que essas alusões são meras especulações acadêmicas. nada disso que cogitamos se tornará realidade. espero. Com efeito, a história brasileira tem revelado que os ministros do stF têm demonstrado um agudo faro de sobrevivência institucional, de modo que não é da tradição da Corte agredir frontalmente os demais poderes nem extrapolar das suas atribuições constitucionais.86

Retorno ao tema do PIS/COFINS das instituições financeiras. Nessa perspectiva, a discussão sobre a incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras, ante as variações de composição do Tribunal, pode revelar surpresas. Mas quais são os principais fundamentos normativos e argumentos jurídicos levantados pelos contribuintes? Quais são os da Fazenda nacional?

Os contribuintes alegam, em síntese, que as receitas financeiras não são sujeitas à incidência do PIS e da COFINS, por não serem receitas de serviços, pelo fato de que não decorrem da venda de mercadorias ou da prestação de serviços que sejam remuneradas por um “preço”, pois este – o preço – viabiliza o faturamento ou a receita bruta.87 a Fazenda nacional defende posição diametralmente contrária: as receitas financeiras das instituições financeiras são as suas receitas operacionais típicas e sobre elas devem incidir o Pis e a CoFins.88

o acórdão recorrido nos autos do multireferido re 609.096, oriundo do egrégio tribunal Federal da 4ª região, sob a lavra do eminente juiz federal convocado Leandro Paulsen, acolheu a pretensão do contribuinte e decidiu que as receitas financeiras não se enquadram no conceito de faturamento.89

86 Confira-se: ALVES JR., Luís Carlos Martins. Memória Jurisprudencial – Ministro Evandro Lins. Brasília: supremo tribunal Federal, 2009 (www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoinstitucionalmemoria).

87 Constam nos autos dos citados rree 400.479 e 609.096 pareceres confeccionados, em defesa dos interesses dos contribuintes, por juristas excepcionais e admiráveis: José souto Maior Borges, Paulo de Barros Carvalho, Celso antonio Bandeira de Mello, alcides Jorge Costa, Marco aurélio Greco, tércio sampaio Ferraz Jr., José arthur Lima Gonçalves e Humberto ávila.

88 aLves Jr., Luís Carlos Martins. Direito Constitucional Fazendário. Brasília: escola da aGu, 2011 (www.agu.gov.br/publicações/livroseletronicos).

89 BrasiL. tribunal regional Federal da 4ª região. apelação em Mandado de segurança n. 2005.71.00.019507-0/rs. 2ª turma. relator Juiz convocado Leandro Paulsen. Julgamento em 7.8.2007. eMenta: “TRIBUTÁRIO. PIS E COFINS. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. Apenas durante a vigência temporária do art. 72 do ADCT é que se viabilizou a cobrança de PIS das instituições financeiras sobre a receita operacional bruta. De janeiro de 2000 em diante, não há mais tal suporte constitucional específico a admitir outra tributação que não a comum. O STF declarou a inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da L. 9.718/98, por entender que a ampliação da base de cálculo da COFINS por lei ordinária violou a redação original do art. 195, I, da Constituição Federal, ainda vigente ao ser editada a mencionada norma legal. Tomado o faturamento como produto da venda de mercadorias ou da prestação de serviços, tem-se que os bancos, por certo, auferem valores que se enquadram em tal conceito, porquanto são, também, prestadores de serviços. É ilustrativa a referência, feita em apelação, à posição n. 15 da lista anexa à LC 116, em que arrolados diversos serviços bancários, como a administração de fundos, abertura de contas, fornecimento ou emissão de atestados, acesso, movimentação, atendimento e consulta a contas em geral etc. Mas as receitas financeiras não se enquadram no conceito de faturamento.”

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no voto que o juiz Leandro Paulsen prolatou por ocasião desse citado julgamento, há a seguinte passagem favorável às pretensões dos contribuintes:

também esclarecedor é o art. 2º da mesma LC 116 ao dispor no sentido de que o imposto sobre serviços não incide sobre o ‘valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras’.

é que, embora sob a denominação de não-incidência, não se trata de prestação de serviços, de modo que não pode ser tributado a título de iss, tampouco a receita correspondente poderia ser considerada como receita de prestação de serviços.

Esse será o tema central da controvérsia: se a intermediação financeira é prestação de serviços e se as receitas decorrentes dessa intermediação financeira são as operacionais das instituições financeiras, sujeitas, portanto, à incidência do PIS e da COFINS. 90 Malgrado o brilhantismo daqueles que entendem que as receitas financeiras das instituições financeiras e das companhias seguradoras não devem sofrer a incidência do Pis e da CoFins, entendo que razão não lhes assiste.

Com efeito, o que o stF decidiu, quando decretou a inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo da CoFins (art. 3º, § 1º, Lei 9.718/98), foi que as receitas não-operacionais estariam fora da incidência desse aludido tributo. Logo, em sentido contrário, as receitas operacionais sofreriam a incidência normativa dessa contribuição social. Também não colhe o argumento de que as intermediações financeiras prestadas pelas instituições financeiras não seriam prestações de serviços, pelo fato de que estariam excluídas da incidência do issQn. ora a exclusão reforça o caráter de serviço dessa atividade das instituições financeiras, pois somente se exclui o que se estava dentro. Do contrário, ante a imunidade tributária dos templos religiosos diremos que eles não são prédios? ou que a imunidade dos livros lhes afasta o caráter de mercadorias?

em suma, com esteio nos precedentes do stF e estribado no texto constitucional, podemos defender que todas as receitas operacionais das atividades empresariais típicas, regulares e habituais da pessoa jurídica se sujeitam ao recolhimento do Pis/CoFins, especialmente as instituições financeiras possuidoras de indiscutível poderio econômico e patrimonial superior ao de vários outros contribuintes. De modo que, sem embargo dos judiciosos argumentos contrários, acredito que o stF decidirá pela incidência desses mencionados tributos sobre as receitas operacionais das instituições financeiras e das companhias seguradoras. Aguardemos.

90 tenha-se que a 2ª turma do stF, no julgamento dos rree 346.983 e 525.874, que versava acerca da contribuição ao PIS das instituições financeiras, decidiu pela validade jurídica da Medida Provisória n. 517/94. eis as ementas dos acórdãos dos referidos feitos: TRIBUTO. Contribuição para o PIS. Medida Provisória nº 517/94. Fundo Social de Emergência. Matéria estranha à MP. Receita bruta. Conceito Inalterado. Constitucionalidade reconhecida. Recurso provido. A Medida Provisória nº 517/94 não dispõe sobre Fundo Social de Emergência, mas sobre exclusões e deduções na base de cálculo do PIS. (BrasiL. supremo tribunal Federal. recursos extraordinários ns. 346.983 e 525.874. 2ª turma. relator ministro Cezar Peluso. Julgados em 16.3.2010. acórdãos publicados em 14.5.2010).

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5. OS MUNICÍPIOS E A GUERRA FISCAL DO ISSQN: uma breve análise acerca das perspectivas e expectativas do processo e julgamento da ADPF 18991

O Estado Federal brasileiro tem uma característica que é essencial para o aprofundamento do processo democrático: confere autonomia política a organizações estatais territorialmente menores, e por isso mais próximas e sensíveis às diretrizes apontadas pela comunidade. Quanto mais poderes conferidos aos Municípios, maior é a possibilidade de se construir o Estado democrático. Obviamente que não será apenas a descentralização política, administrativa, legislativa e judiciária o fator responsável pelo funcionamento da democracia participativa, legitimadora das mudanças sociais e econômicas permanentes, mas este é um pressuposto necessário que será complementado por outros fatores, como a própria estrutura organizacional. (José Luiz Quadros de Magalhães)92

Introdução

o presente texto tem como objeto o processo da aDPF 189, que tramita no stF sob a relatoria do ministro Marco aurélio, e que foi ajuizada pelo Governador do Distrito Federal em face de Lei Complementar do Município de Barueri/sP, que instituiu benefícios fiscais em relação ao ISSQN – Imposto sobre serviços de qualquer natureza, tributo de competência municipal, e que teriam diminuído a base de cálculo desse tributo.

A justificativa deste trabalho descansa sua importância no fato de que segundo o arguente (o Governador do DF), a referida legislação, ao instituir benefícios fiscais de ISSQN, provocou uma “guerra fiscal predatória”, pois criou incentivos à margem da Constituição, que estariam a agredir o princípio federativo e o mandamento constitucional que estabelece a alíquota mínima a ser praticada pelos Municípios em relação a esse aludido imposto.

A finalidade deste texto consiste em verificar a consistência argumentativa e a coerência narrativa desenvolvida pelos atores processuais no curso dessa aludida demanda. Também verificaremos o sentido e o alcance normativo dos preceitos constitucionais empolgados nessa controvérsia, bem como as possibilidades decisórias do tribunal.

será analisado o instituto da aDPF, suas hipóteses de cabimento, seus legitimados (ativos e passivos) e as suas vantagens processuais em relação a outros institutos processuais constitucionais, mormente a aDi – ação direta de inconstitucionalidade e a aDC – ação declaratória de constitucionalidade, especificamente no tocante ao questionamento de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal e na possibilidade de se questionar atos ou normativos anteriores à vigente Constituição.

o texto visitará o tema da autonomia dos Municípios e as implicações do mandamento constitucional que lhes reconhece como parte componente e indissociável

91 artigo escrito para a obra coletiva “Federalismo e tributação – contributos da academia jurídica para um Brasil melhor”, sob a organização dos professores Misabel abreu Machado Derzi, onofre alves Batista Júnior e André Mendes Moreira, em comemoração à fundação, em 1931, do programa de Doutorado da Faculdade de Direito da universidade Federal de Minas Gerais. Este artigo homenageia o professor Paulo Neves de Carvalho, um dos maiores juspublicistas do Brasil, de quem tive a honra de ser aluno no curso de Doutorado em Direito da UFMG.

92 MaGaLHães, José Luiz Quadros de. Poder municipal – paradigmas para o estado constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del rey, 1997, p. 50.

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da Federação brasileira. o reconhecimento dessa autonomia constitucional pelo stF será objeto de nossas considerações.

Com efeito, a questão controvertida submetida ao crivo do supremo tribunal Federal, via aDPF 189, aborda os seguintes temas problemáticos: a) o Município tem autonomia constitucional para modificar a base de cálculo do ISSQN?; b) o Município tem o direito de reduzir a base de cálculo ou conceder incentivos fiscais que impliquem a diminuição da carga tributária do ISSQN?; c) Essa redução da carga tributária do ISSQN é “guerra fiscal”?; d) Essa eventual “guerra fiscal”, em sede de tributo municipal, pode ser compreendida como um “conflito federativo”?; e) Esse eventual “conflito federativo” pode ser atacado judicialmente via aDPF perante o stF?; f) o tribunal deve conhecer da citada arguição?; e g) o tribunal deverá julgar procedente ou improcedente o pedido da arguição?

Convém informar que todas as peças processuais examinadas neste artigo, bem como os demais julgamentos do supremo tribunal Federal, podem ser acessados diretamente na página virtual desse citado tribunal93.

neste artigo pretendemos apontar as melhores soluções para a citada aDPF 189.

A ADPF 189

em 8.9.2009, o Governador do Distrito Federal, com esteio nos artigos 102, § 1º; e 103, inciso v, da Constituição Federal94, e no artigo 2º, inciso i, da Lei n. 9.882/199995, protocolizou a petição inicial96 de ajuizamento da arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental97, com pedido de suspensão liminar da eficácia de norma, em face do artigo 41 da Lei Complementar n. 118/2002 (Código tributário)98, do Município de Barueri/sP, na

93 eis o endereço eletrônico do supremo tribunal Federal: www.stf.jus.br94 art. 102, § 1.º: a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição,

será apreciada pelo supremo tribunal Federal, na forma da lei.95 art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

v - o Governador de estado ou do Distrito Federal; art. 2o Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: i - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade

96 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Petição Inicial. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

97 art. 1o a arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o supremo tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

i - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (Lei 9.882/99).

98 artigo 41. a base de cálculo do imposto é o preço do serviço, assim considerada a receita bruta, a qual se aplicam as alíquotas constantes do anexo i desta lei.

§1º. os prestadores de serviços constantes do anexo ii pagarão o imposto em quantidade de uFesP nela especificada.

§2º. Os prestadores de serviços especificados nos itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92, da Lista de Serviços, pagarão à razão de 18 UFESP´s anuais.

§3º. Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92, da Lista de serviços, forem prestados por sociedades de profissionais, estas ficarão sujeitas ao imposto, anualmente, na forma do § 2º deste artigo, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviço em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.

§4º. não se aplica o disposto no parágrafo anterior quando houver sócio não habilitado ao exercício de

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redação dada pela Lei Complementar municipal n. 185/2007, por suposta violação ao artigo 1º, caput, da Constituição Federal99, e ao artigo 88 do ato das Disposições Constitucionais transitórias – aDCt100. o feito restou tombado como aDPF 189101, sob a relatoria do ministro Marco aurélio.

atividade correspondente ao objetivo da sociedade ou quando houver participação societária de outra pessoa jurídica, caso em que se aplica a alíquota de 2% (dois por cento) sobre o preço do serviço.

§5º. os prestadores de serviços a que se referem os §§ 1º, 2º e 3º deste artigo recolherão o imposto sobre serviços de Qualquer natureza da seguinte forma:

i - em quantia equivalente a 50% (cinqüenta por cento) de seu valor, por ocasião da inscrição inicial; ii - havendo continuidade da atividade, por seu valor integral, até o prazo previsto em regulamento,

por exercício; iii - em quantia equivalente a 50% (cinqüenta por cento) de seu valor, por ocasião do encerramento da

atividade, se ocorrer no primeiro semestre do exercício. iv - por seu valor integral, na ocasião do encerramento da atividade, se ocorrer no segundo semestre do

exercício. §6º. não serão excluídos da base de cálculo do imposto o valor dos materiais fornecidos pelo prestador e

o valor das subempreitadas vinculados à prestação do serviço. §7º. na prestação do serviço a que se refere o item 101, da Lista de serviços, o imposto será calculado

sobre a base de cálculo, entendida esta como a parcela do preço correspondente à proporção direta da parcela da extensão das rodovias exploradas no território do Município, ou da metade da extensão de ponte que a una a outro município.

§8º. a base de cálculo apurada nos termos do parágrafo anterior: i - será reduzida, não havendo posto de cobrança no território do Município, para sessenta por cento do

seu valor; II - será acrescida, havendo posto de cobrança no território do Município, do complemento necessário à

sua integralidade em relação às rodovias exploradas, observado o disposto no parágrafo seguinte. §9º. Para efeitos do disposto nos §§ 7º e 8º, consideram-se rodovias exploradas os trechos limitados pelos

pontos eqüidistantes entre cada posto de cobrança de pedágio ou entre o mais próximo deles e o ponto inicial ou terminal das rodovias.

§10. Constituem parte integrante do preço do serviço: a) o montante deste imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle; b) os valores acrescidos e os encargos de qualquer natureza, ainda que de responsabilidade de terceiros; c) os ônus relativos à concessão do crédito, ainda que cobrados em separado, na hipótese da prestação de

serviços, sob qualquer modalidade; d) o montante do imposto transferido ao tomador do serviço cuja indicação nos documentos fiscais será

considerado simples elemento de controle; e) os valores dispendidos direta ou indiretamente, em favor de outros prestadores de serviços, a título de

participação, co-participação ou demais formas da espécie; f) os descontos ou abatimentos concedidos a qualquer título ao tomador do serviço. §11. O preço de determinados serviços poderá ser fixado pela autoridade competente em pauta que reflita

o valor corrente na praça.99 art. 1º a república Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:100 art. 88. enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos i e iii do § 3º do art. 156 da

Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso iii do caput do mesmo artigo: (incluído pela emenda Constitucional nº 37, de 2002)

i - terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968; (incluído pela emenda Constitucional nº 37, de 2002)

II - não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso i. (incluído pela emenda Constitucional nº 37, de 2002)

101 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

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ao Distrito Federal, nos termos do art. 32, § 1º, CF, são atribuídas as competências legislativas (e administrativas) reservadas aos estados e Municípios.102 Daí porque o interesse jurídico e econômico no ajuizamento de aDPF versando sobre tributo municipal.

Pois bem, segundo o aludido arguente, o referido art. 41 da Lei Complementar municipal 118/2002 tem agredido o princípio federativo (art. 1º, caput, CF) e o mandamento constitucional que estabelece os limites mínimos de alíquota do Imposto sobre serviços de qualquer natureza (issQn) que podem ser aplicados pelos Municípios (art. 88, aDCt), o que, para o arguente, implicaria desrespeito ao princípio da igualdade entre os entes da Federação.

o arguente, após sustentar o cabimento e a viabilidade da citada aDPF (tema que será objeto de nossas considerações oportunamente), no mérito, ataca a mencionada legislação municipal ao informar que esse provimento normativo burla determinação constitucional ao criar benefícios fiscais de ISSQN que se tornariam atrativos para as empresas prestadoras de serviços, pois permitiriam a dedução na base de cálculo do citado imposto municipal as despesas decorrentes com outros tributos.

segundo o arguente, a tributação do issQn no município de Barueri tornou-se menos onerosa que em relação aos demais entres tributantes do ISSQN, no caso específico, o Distrito Federal. nessa perspectiva, segundo o arguente, a preferência empresarial por um ou outro Município não pode decorrer desse tratamento tributário privilegiado, pois todos os municípios devem resguardar o percentual mínimo efetivo de 2% para a alíquota do issQn.

o arguente recorda que na redação originária da Constituição Federal havia uma previsão para a fixação de alíquotas máximas para o ISSQN (art. 156, § 4º, I, CF)103. sucede, no entanto, que foi editada a emenda Constitucional n. 37/2002 que acrescentou o mencionado artigo 88 ao aDCt e estabeleceu, até a edição de competente lei complementar nacional, a alíquota mínima de 2%, com algumas exceções.

Para o arguente, essa determinação constitucional no sentido do limite mínimo de 2% e a proibição de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resultasse, direta ou indiretamente, na redução dessa referida alíquota mínima, visava evitar “guerras fiscais” entre os Municípios, em homenagem ao princípio do equilíbrio federativo.

tendo esse princípio federativo como “pedra de toque” e como “cláusula pétrea”, o arguente passa a defender a sua postulação, e argumenta que as eventuais dificuldades financeiras dos entes federativos não lhes autoriza a uma “guerra fiscal” a ser travada com outros entes da Federação, vindo a trazer prejuízos para os demais municípios.

em suma, segundo o arguente, a autonomia constitucional dos Municípios não pode chegar ao ponto de estabelecer desequilíbrios financeiros e tributários com os outros entes da federação, sob pena de agressão ao princípio do federalismo, “cláusula pétrea” constitucional104.

102 § 1º - ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos estados e Municípios.103 § 4º Cabe à lei complementar: I – fixar as alíquotas máximas dos impostos previstos nos incisos III e IV

(redação originária do art. 156, § 4º, CF). 104 art. 60, § 4º, i, CF. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado.

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o arguido105, Município de Barueri/sP, no mérito, defende a validade do preceito impugnado forte no art. 156, iii, CF106, e que a legislação municipal está em sintonia com o desenho constitucional. o Município aduz que não introduziu originalidade ou inovação em relação ao cálculo do issQn, mas dispôs de modo similar ao que contido em diversas legislações tributárias municipais107.

Segundo o arguido, a legislação impugnada contém a definição da base de cálculo do issQn exigido pelo Município de Barueri, “aclarando o seu conceito, em relação aos serviços que menciona, mediante a indicação de elementos que não o integram e, por isso, não podem ser considerados na apuração do imposto devido”. a tese do arguido consiste em dizer que o conceito de serviço, hipótese de incidência do issQn, consiste na receita bruta que decorre de sua prestação.

Para o arguido, a legislação municipal assegura aos contribuintes, em fidedigna obediência à Constituição, o direito de serem tributados corretamente, sem a inclusão de elementos estranhos ao figurino normativo desse imposto.

o Município arguido defende a tese segundo a qual os municípios não integram a Federação brasileira, a despeito do caput do art. 1º e do caput do art. 18, todos da Constituição Federal108, pois, segundo o arguido, a Federação seria composta apenas dos estados e da união. e, com espeque no magistério de roque Carrazza e de Paulo de Barros Carvalho, aduz que o Município não tem representação no Congresso nacional. esse argumento visava afastar o eventual conflito federativo justificador da citada ADPF.

em sua manifestação, o Município acosta parecer da lavra do eminente professor aires Fernandino Barreto109 que defende a validade jurídica e a higidez normativa do preceito legislativo acossado. o arguido alega que a sua legislação não teria o condão de ferir o princípio federativo, pois o seu alcance normativo ficaria restrito ao seu respectivo território, sem que impactasse outras unidades da Federação. ademais, segundo o arguido, a formulação da política fiscal municipal é de competência das autoridades locais, para que efetivem a autonomia constitucional que possuem.

instado, o advogado-Geral da união110, no mérito, se manifestou pela procedência parcial da arguição, sob o entendimento de que a legislação do Município agrediu o art. 146, iii, “a”, CF111, no que dispôs sobre a base de cálculo do imposto, que seria matéria de

105 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Manifestação do Arguido. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

106 art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: iiii – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

107 são Paulo, Porto alegre, rio de Janeiro...108 Constituição Federal. art. 1º, caput. a república Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel

dos estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ...; art. 18, caput. a organização político-administrativa da república Federativa do Brasil compreende a união, os estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

109 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186. Parecer de Aires Fernandino Barreto. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

110 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Manifestação do Advogado-Geral da União. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

111 Art. 146. Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,

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competência de lei complementar nacional112, bem como modificou a base de cálculo “preço

especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

112 Lei Complementar n. 116, de 31.7.2003, que dispõe sobre o imposto sobre serviços de Qualquer natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências.

art. 1o o imposto sobre serviços de Qualquer natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.

§ 1o o imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País.

§ 2o Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte interestadual e intermunicipal e de Comunicação – iCMs, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.

§ 3o o imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.

§ 4o a incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado. art. 2o o imposto não incide sobre: i – as exportações de serviços para o exterior do País; ii – a prestação de serviços em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, dos diretores e membros

de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados;

iii – o valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras.

Parágrafo único. não se enquadram no disposto no inciso i os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.

art. 3o o serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos i a xxii, quando o imposto será devido no local:

i – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1o do art. 1o desta Lei Complementar;

ii – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa;

iii – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e 7.19 da lista anexa; iv – da demolição, no caso dos serviços descritos no subitem 7.04 da lista anexa; V – das edificações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres, no caso dos serviços descritos no

subitem 7.05 da lista anexa; vi – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação

final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, no caso dos serviços descritos no subitem 7.09 da lista anexa;

vii – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, parques, jardins e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.10 da lista anexa;

viii – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores, no caso dos serviços descritos no subitem 7.11 da lista anexa;

IX – do controle e tratamento do efluente de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos, no caso dos serviços descritos no subitem 7.12 da lista anexa;

x – (vetaDo) xi – (vetaDo) XII – do florestamento, reflorestamento, semeadura, adubação e congêneres, no caso dos serviços

descritos no subitem 7.16 da lista anexa; xiii – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas e congêneres, no caso dos

serviços descritos no subitem 7.17 da lista anexa; xiv – da limpeza e dragagem, no caso dos serviços descritos no subitem 7.18 da lista anexa;

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xv – onde o bem estiver guardado ou estacionado, no caso dos serviços descritos no subitem 11.01 da lista anexa;

xvi – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados ou monitorados, no caso dos serviços descritos no subitem 11.02 da lista anexa;

xvii – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda do bem, no caso dos serviços descritos no subitem 11.04 da lista anexa;

xviii – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e congêneres, no caso dos serviços descritos nos subitens do item 12, exceto o 12.13, da lista anexa;

xix – do Município onde está sendo executado o transporte, no caso dos serviços descritos pelo subitem 16.01 da lista anexa;

xx – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista anexa;

xxi – da feira, exposição, congresso ou congênere a que se referir o planejamento, organização e administração, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.10 da lista anexa;

xxii – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou metroviário, no caso dos serviços descritos pelo item 20 da lista anexa.

§ 1o no caso dos serviços a que se refere o subitem 3.04 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza, objetos de locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não.

§ 2o no caso dos serviços a que se refere o subitem 22.01 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de rodovia explorada.

§ 3o Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no local do estabelecimento prestador nos serviços executados em águas marítimas, excetuados os serviços descritos no subitem 20.01.

art. 4o Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.

art. 5o Contribuinte é o prestador do serviço. art. 6o os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a

responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais.

§ 1o os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte.

§ 2o sem prejuízo do disposto no caput e no § 1o deste artigo, são responsáveis: i – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha

iniciado no exterior do País; ii – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária dos serviços descritos nos

subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12, 7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa.

art. 7o a base de cálculo do imposto é o preço do serviço. § 1o Quando os serviços descritos pelo subitem 3.04 da lista anexa forem prestados no território de mais

de um Município, a base de cálculo será proporcional, conforme o caso, à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada Município.

§ 2o não se incluem na base de cálculo do imposto sobre serviços de Qualquer natureza: i - o valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços previstos nos itens 7.02 e 7.05 da lista de

serviços anexa a esta Lei Complementar; ii - (vetaDo) § 3o (vetaDo) art. 8o as alíquotas máximas do imposto sobre serviços de Qualquer natureza são as seguintes: i – (vetaDo) ii – demais serviços, 5% (cinco por cento). art. 9o esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação.

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do serviço”, que deve ser o valor integral que o usuário deve pagar ao prestador do serviço, sem qualquer dedução dos custos envolvidos em sua prestação. e, segundo o aGu, houve agressão ao suscitado limite de 2% fixado pelo art. 88 do ADCT.

intimado, o Procurador-Geral da república113, no mérito, seguiu o traçado do aGu e se manifestou pela parcial procedência do pedido, forte na inconstitucionalidade da lei municipal no que alterou a base de cálculo do imposto, que seria de competência da legislação complementar nacional e na agressão ao art. 88 do aDCt.

o Município de são Paulo/sP114 ingressou no feito na qualidade de “amigo da Corte” (amicus curiae) e defendeu a procedência do pedido da aDPF com a decretação de inconstitucionalidade da legislação de Barueri, na linha do que aduzido pelo arguente, pelo aGu e pelo PGr.

o relator, ministro Marco aurélio, em 3.9.2011, negou seguimento ao pedido formalizado na ADPF sob a justificativa de que não se cuidava de risco ao princípio federativo, que ao seu entender seria restrito aos conflitos que envolvessem a União Federal, os Estados Federados e o Distrito Federal. Segundo o relator, não há conflito federativo se estiver o Município como parte. ademais, para o relator, a eventual agressão a dispositivo constitucional seria transversa, pois não se estaria violando diretamente preceito fundamental da Constituição.115

Contra essa decisão monocrática, o arguente interpôs o recurso de agravo regimental defendo o cabimento e a procedência da aDPF, forte na tese da possibilidade de haver agressão ao princípio federativo por parte de eventual “guerra fiscal municipal” e que o objeto normativo da aDPF é mais amplo, alcançando, inclusive leis ou atos normativos municipais.116

o arguido impugnou o referido recurso de agravo do arguente e defendeu a decisão monocrática do relator, forte na tese segundo a qual não há conflito federativo decorrente de atuação municipal e que não há preceito constitucional descumprido.117

o relator ainda não se pronunciou sobre o citado recurso de agravo regimental, nem submeteu a questão à apreciação do soberano plenário do Supremo Tribunal Federal.

art. 10. Ficam revogados os arts. 8o, 10, 11 e 12 do Decreto-Lei no 406, de 31 de dezembro de 1968; os incisos iii, iv, v e vii do art. 3o do Decreto-Lei no 834, de 8 de setembro de 1969; a Lei Complementar no 22, de 9 de dezembro de 1974; a Lei no 7.192, de 5 de junho de 1984; a Lei Complementar no 56, de 15 de dezembro de 1987; e a Lei Complementar no 100, de 22 de dezembro de 1999.

113 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Manifestação do Procurador-Geral da República. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

114 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Manifestação do Município de São Paulo (amicus curiae). Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

115 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Decisão monocrática do Relator. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

116 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Agravo Regimental do Arguente. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

117 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189. Impugnação do Arguido. Plenário. relator ministro Marco aurélio. arguente: Governador do Distrito Federal. arguido: Município de Barueri/sP. interessado: Município de são Paulo/sP. Brasília, 2009.

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a questão processual, assim como a de mérito, está em aberto. nada obstante, não temos o direito de nos demitir da controvérsia nem do debate.

antes, no entanto, de avançarmos na análise da aDPF 189, teceremos algumas brevíssimas considerações acerca do sentido e do alcance da autonomia constitucional dos Municípios, e como essa autonomia tem sido entendida pelo magistério doutrinário e aplicada na dinâmica jurisprudencial do stF.

A autonomia constitucional dos Municípios

a autonomia constitucional dos Municípios está consagrada explicitamente no art. 30, incisos, CF,118 sem embargo do que disposto nos artigos 1º e 18, do mesmo diploma, e em vários outros preceitos da Constituição. essa autonomia política, legislativa e administrativa dos Municípios é mandamento constitucional. Mas como essa autonomia tem sido entendida pelo magistério doutrinário e como tem sido aplicada pela jurisprudência do stF?

no plano doutrinário, parcela substantiva dos relevantes autores brasileiros de direito público, desde os clássicos orlando Magalhães Carvalho119 e victor nunes Leal120, passando por autores como Hely Lopes Meirelles121, e os mais recentes como José nilo de Castro122, defende uma interpretação forte à autonomia constitucional dos Municípios. entre os constitucionalistas, vemos os respeitáveis Paulo Bonavides123, Luiz Pinto Ferreira124, José afonso da silva125, raul Machado Horta126 e Manoel Gonçalves Ferreira Filho127,

118 art. 30. Compete aos Municípios: i - legislar sobre assuntos de interesse local; ii - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; iii - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da

obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; iv - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; v - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de

interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil

e de ensino fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à

saúde da população; viii - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do

uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; ix - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação

fiscalizadora federal e estadual.119 CarvaLHo, orlando Magalhães. Problemas fundamentaes do município. são Paulo: Companhia editora

nacional, 1937.120 LeaL, victor nunes. Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil. 7ª ed. são Paulo:

Companhia das Letras, 2012.121 MeireLLes, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 17ª ed. são Paulo: Malheiros, 2013.122 Castro, José nilo de. Direito municipal positivo. 7ª ed. Belo Horizonte: Del rey, 2010.123 BonaviDes, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. são Paulo: Malheiros, 2000.124 Pinto Ferreira, Luiz. Curso de direito constitucional. 10ª ed. são Paulo: saraiva, 1999.125 siLva, José afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. são Paulo: Malheiros, 1999.126 Horta, raul Machado. Direito constitucional. 5ª ed. Belo Horizonte: Del rey, 2010.127 Ferreira FiLHo, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 35ª ed. são Paulo: saraiva, 2009.

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com ensinamentos favoráveis ao reconhecimento dos Municípios como entidade política autônoma e componente indissociável da Federação brasileira.

é bem verdade, todavia, que em se tratando de matéria tributária, há uma tendência, entre tributaristas de boa cepa128, de se interpretar de modo restritivo os poderes legislativos municipais, pois na experiência histórica brasileira, o poder de tributar tende ao abuso fiscal, daí a importância de fortes limitações constitucionais ao poder de tributar,129 restando, por consequência, pouca margem de manobra fiscal para os Municípios, pois o esquadro normativo tributário encontra-se desenhado no texto da Constituição Federal.

Mas se no âmbito fiscal, assim como nas matérias de competência exclusiva ou da união ou dos estados, são estreitas as margens de conformação legislativa dos Municípios, em outras províncias jurídico-legislativas, onde possa vicejar o “interesse local”, essas entidades políticas podem atuar com maior liberdade, como se vê na dinâmica jurisprudencial do supremo tribunal Federal.

Com efeito, o tribunal editou a súmula 645 com o seguinte teor: É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial. segundo a Corte, essa questão estaria albergada pelo vocábulo “interesse local”, de modo que incidiria o comando do art. 30, i, CF.

ainda em sede de interesse local, registre-se o entendimento do ministro Celso de Mello130:

não vislumbro, no texto da Carta Política, a existência de obstáculo constitucional que possa inibir o exercício, pelo Município, da típica atribuição institucional que lhe pertence, fundada em título jurídico específico (CF, art. 30, I), para legislar, por autoridade própria, sobre a extensão da gratuidade do transporte público coletivo urbano às pessoas compreendidas na faixa etária entre sessenta e sessenta e cinco anos. na realidade, o Município, ao assim legislar, apoia-se em competência material -- que lhe reservou a própria Cr -- cuja prática autoriza essa mesma pessoa política a dispor, em sede legal, sobre tema que reflete assunto de interesse eminentemente local. Cabe assinalar, neste ponto, que a autonomia municipal erige-se à condição de princípio estruturante da organização institucional do Estado brasileiro, qualificando-se como prerrogativa política, que, outorgada ao Município pela própria Cr, somente por esta pode ser validamente limitada.

essa orientação interpretativa da Corte, no sentido de fortalecer o alcance do art. 30, i, CF, pode ser vislumbrada em outros feitos.131

128 CarraZa, roque antônio. Curso de direito constitucional tributário. 25ª ed. são Paulo: Malheiros, 2009; CarvaLHo, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 22ª ed. são Paulo: saraiva, 2010; aMaro, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16ª ed. são Paulo: saraiva, 2010; MaCHaDo, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 19ª ed. são Paulo: Malheiros, 2001; e CoeLHo, sacha Calmon navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 8ª ed. rio de Janeiro: Forense, 2005.

129 BaLeeiro, aLioMar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7ª ed. atualizada por Misabel abreu Machado Derzi. rio de Janeiro: Forense, 2005.

130 BrasiL. supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 702.848. relator ministro Celso de Mello. recorrente: Ministério Público do estado de são Paulo. recorrida: Câmara Municipal de Barretos. Decisão de 30.4.2013. Diário de Justiça de 14.5.2013.

131 BrasiL. supremo tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.340. relator ministro ricardo

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em matéria tributária, o tribunal, apreciando o recurso extraordinário n. 591.033132, decidiu pela autonomia municipal no tocante à condução das execuções fiscais dos respectivos créditos tributários, em precedente relevante.

o que se percebe, da leitura de várias decisões do stF133, no tocante à autonomia constitucional dos Municípios, é que a Corte tende a decidir favoravelmente à maior liberdade legislativa e administrativa dos entes municipais, especialmente nas situações problemáticas que mereçam soluções político-normativas locais, salvo nas matérias que sejam eminentemente federais ou estaduais, ou quando o bem jurídico tutelado estiver a merecer uma proteção normativa mais forte, como sucedeu, por exemplo, com o piso salarial dos professores do ensino público134.

Lewandowski. requerente: Governador do estado de santa Catarina. requerida: assembleia Legislativa do estado de santa Catarina. Julgamento em 6.3.2013. Diário de Justiça de 9.5.2013. ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ESTADO DE SANTA CATARINA. DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA POTÁVEL. LEI ESTADUAL QUE OBRIGA O SEU FORNECIMENTO POR MEIO DE CAMINHÕES-PIPA, POR EMPRESA CONCESSIONÁRIA DA QUAL O ESTADO DETÉM O CONTROLE ACIONÁRIO. DIPLOMA LEGAL QUE TAMBÉM ESTABELECE ISENÇÃO TARIFÁRIA EM FAVOR DO USUÁRIO DOS SERVIÇOS. INADMISSIBILIDADE. INVASÃO DA ESFERA DE COMPETÊNCIA DOS MUNICÍPIOS, PELO ESTADO-MEMBRO. INTERFERÊNCIA NAS RELAÇÕES ENTRE O PODER CONCEDENTE E A EMPRESA CONCESSIONÁRIA. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO, POR LEI ESTADUAL, DAS CONDIÇÕES PREVISTAS NO CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO LOCAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - Os Estados-membros não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente local e a empresa concessionária, ainda que esta esteja sob o controle acionário daquele. II - Impossibilidade de alteração, por lei estadual, das condições que se acham formalmente estipuladas em contrato de concessão de distribuição de água. III - Ofensa aos arts. 30, I, e 175, parágrafo único, da Constituição Federal. IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.

132 BrasiL. supremo tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 591.033. relatora ministra ellen Gracie. recorrente: Município de votorantim. recorrido: edson Douglas Barbosa. Julgamento em 17.11.2010. Diário de Justiça de 25.2.2012. eMenta: TRIBUTÁRIO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. MUNICÍPIO. VALOR DIMINUTO. INTERESSE DE AGIR. SENTENÇA DE EXTINÇÃO ANULADA. APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO AOS DEMAIS RECURSOS FUNDADOS EM IDÊNTICA CONTROVÉRSIA. 1. O Município é ente federado detentor de autonomia tributária, com competência legislativa plena tanto para a instituição do tributo, observado o art. 150, I, da Constituição, como para eventuais desonerações, nos termos do art. 150, § 6º, da Constituição. 2. As normas comuns a todas as esferas restringem-se aos princípios constitucionais tributários, às limitações ao poder de tributar e às normas gerais de direito tributário estabelecidas por lei complementar. 3. A Lei nº 4.468/84 do Estado de São Paulo - que autoriza a não-inscrição em dívida ativa e o não-ajuizamento de débitos de pequeno valor - não pode ser aplicada a Município, não servindo de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária. 4. Não é dado aos entes políticos valerem-se de sanções políticas contra os contribuintes inadimplentes, cabendo-lhes, isto sim, proceder ao lançamento, inscrição e cobrança judicial de seus créditos, de modo que o interesse processual para o ajuizamento de execução está presente. 5. Negar ao Município a possibilidade de executar seus créditos de pequeno valor sob o fundamento da falta de interesse econômico viola o direito de acesso à justiça. 6. Sentença de extinção anulada. 7. Orientação a ser aplicada aos recursos idênticos, conforme o disposto no art. 543-B, § 3º, do CPC.

133 BrasiL. supremo tribunal Federal. RE 381.367, ADI 307, ADI 3.549, ADI 2.240, ADI 3.365, RE 251.542, ADI 512, RE 117.809, RE 572.762, ADI 3.114, MS 25.295, ADI 692, RE 330.213, RE 276.546, ADI 2.355, RE 197.917, RE 185.487, ADI 1.749, AI 189.433 e ADI 687.

134 BrasiL. supremo tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.167. relator ministro Joaquim Barbosa. requerentes: Governador do estado de Mato Grosso do sul e outros. requeridos: Congresso nacional e Presidente da república. Julgamento em 627.4.2011. Diário de Justiça de 24.8.2011. eMenta: CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. PACTO FEDERATIVO E REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA. PISO NACIONAL PARA OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA. CONCEITO DE PISO: VENCIMENTO OU REMUNERAÇÃO GLOBAL. RISCOS FINANCEIRO E ORÇAMENTÁRIO. JORNADA DE TRABALHO: FIXAÇÃO DO TEMPO MÍNIMO PARA

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Perspectivas e expectativas da ADPF 189

nos termos do § 1º, art. 4º, da Lei 9.882/1999, não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade. Como o ato do Poder Público que estaria a agredir preceito fundamental da Constituição Federal tem caráter (ou natureza) municipal não poderia ser questionado via ação direta de inconstitucionalidade nem via ação declaratória de constitucionalidade.135

Com efeito, as leis ou atos normativos municipais podem ser questionados, via ação direta de inconstitucionalidade estadual (ou eventual ação declaratória de constitucionalidade estadual), perante os respectivos tribunais de Justiça estaduais na hipótese de agredirem diretamente a Constituição do respectivo estado, como se infere do art. 125, § 2º, CF136, e de precedente estabelecido pelo stF nos autos da reclamação 383137, que superou o entendimento esposado pelo tribunal na reclamação 370138.

segundo o supremo tribunal Federal, a partir dos referidos julgamentos das mencionadas reclamações 370 e 383, a lei municipal ou estadual que agredisse a Constituição estadual somente poderia ser questionada, em controle abstrato e direto, perante o

DEDICAÇÃO A ATIVIDADES EXTRACLASSE EM 1/3 DA JORNADA. ARTS. 2º, §§ 1º E 4º, 3º, CAPUT, II E III E 8º, TODOS DA LEI 11.738/2008. CONSTITUCIONALIDADE. PERDA PARCIAL DE OBJETO. 1. Perda parcial do objeto desta ação direta de inconstitucionalidade, na medida em que o cronograma de aplicação escalonada do piso de vencimento dos professores da educação básica se exauriu (arts. 3º e 8º da Lei 11.738/2008). 2. É constitucional a norma geral federal que fixou o piso salarial dos professores do ensino médio com base no vencimento, e não na remuneração global. Competência da União para dispor sobre normas gerais relativas ao piso de vencimento dos professores da educação básica, de modo a utilizá-lo como mecanismo de fomento ao sistema educacional e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de proteção mínima ao trabalhador. 3. É constitucional a norma geral federal que reserva o percentual mínimo de 1/3 da carga horária dos docentes da educação básica para dedicação às atividades extraclasse. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. Perda de objeto declarada em relação aos arts. 3º e 8º da Lei 11.738/2008.

135 Nos termos do art. 102, I, ‘a’, CF, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. não cabe aDi ou aDC, perante o stF, em face de lei ou ato normativo municipal, que estaria a agredir a Constituição Federal.

136 art. 125, § 2º, CF: Cabe aos estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição estadual, vedada a atribuição de legitimação para agir a um único órgão.

137 BrasiL. supremo tribunal Federal. Reclamação n. 383. Plenário. relator ministro Moreira alves. reclamante: Município de são Paulo. reclamado: tribunal de Justiça do estado de são Paulo. interessado: Procurador-Geral de Justiça do estado de são Paulo. Julgamento em 11.6.1992. Diário de Justiça de 21.5.1993. ementa do acórdão: Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. - Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente.

138 BrasiL. supremo tribunal Federal. Reclamação n. 370. Plenário. relator ministro octavio Gallotti. reclamante: assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso. reclamado: tribunal de Justiça do estado do Mato Grosso. Julgamento em 9.4.1992. Diário de Justiça de 29.6.1993. ementa do acórdão: Argüição da inconstitucionalidade de leis estaduais, mediante invocação da Carta local, mas também em contraste com preceitos e princípios da Constituição Federal. Controvérsia acerca da competência para o julgamento da correspondente ação direta. Reclamação tida como procedente, por julgamento concluído em 9 de abril de 1992.

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respectivo tribunal de Justiça estadual. e na hipótese de lei municipal que estivesse a agredir a Constituição Federal não caberia provocar diretamente o stF, via aDi ou aDC.

todavia, a partir da edição da Lei 9.882/1999, que regulou a arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nos termos do art. 1º, parágrafo único, i, caberá a aDPF, perante o stF, em face lei ou ato normativo municipal. nessas situações, há várias decisões do tribunal admitindo aDPF contra lei ou ato normativo municipal que esteja sendo acusado de violar preceito constitucional fundamental, como sucedeu com a aDPF n. 1139.

Daí que cabível, prima facie, a aDPF contra lei municipal em face da Constituição Federal. O relator, monocraticamente, negou seguimento à ADPF 189 por entender ausente o conflito federativo, uma vez que a participação de Município não permite que se cogite de conflito federativo, nos termos do art. 102, I, ‘f’, CF140.

nessa situação duas serão as soluções. se se admitir o fundamento normativo constitucional do ministro Marco aurélio, relator dessa aDPF, o tribunal deverá revisar a sua jurisprudência acerca do cabimento de aDPF contra lei ou ato normativo municipal e decretar a inconstitucionalidade da parte do inciso i, parágrafo único, art. 1º, da Lei 9.882/1999, que enuncia o termo “municipal”.

a outra solução possível é manter a sua jurisprudência, não decretar a inconstitucionalidade desse aludido termo “municipal” do texto da referida Lei 9.882/1999, e dar uma interpretação conforme aos preceitos normativos envolvidos, no sentido de que a alínea ‘f’ do inciso I do art. 102, CF, não se aplica na hipótese de controle abstrato de validade constitucional. ou seja, esse citado dispositivo constitucional alcançaria as situações concretas, ou seja as causas que não tenham como objeto do pedido a declaração direta e abstrata de inconstitucionalidade.

139 BrasiL. supremo tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1. Plenário. relator ministro néri da silveira. arguente: Partido Comunista do Brasil – PC do B. arguido: Prefeito do Município do rio de Janeiro. Julgamento em 3.2.2000. Diário de Justiça de 7.11.2003. ementa: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. 2. Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental. 3. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Necessidade de o requerente apontar a lesão ou ameaça de ofensa a preceito fundamental, e este, efetivamente, ser reconhecido como tal, pelo Supremo Tribunal Federal. 4. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de defesa da Constituição, em controle concentrado. 5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: distinção da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. 6. O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental há de ser “ato do Poder Público” federal, estadual, distrital ou municipal, normativo ou não, sendo, também, cabível a medida judicial “quando for relevante o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”. 7. Na espécie, a inicial aponta como descumprido, por ato do Poder Executivo municipal do Rio de Janeiro, o preceito fundamental da “separação de poderes”, previsto no art. 2º da Lei Magna da República de 1988. O ato do indicado Poder Executivo municipal é veto aposto a dispositivo constante de projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, relativo ao IPTU. 8. No processo legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo - que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, - no conceito de “ato do Poder Público”, para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário, - eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, - poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. 10. Argüição de descumprimento de preceito fundamental não conhecida, porque não admissível, no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado.

140 Art. 102, I, ‘f ’, CF: Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe, processar e julgar, originariamente, as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.

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sendo assim, como a aDPF tem como objeto do pedido a decretação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face de preceito da Constituição Federal, em controle abstrato, não incidiria a reserva suscitada pelo relator da aDPF 189, com esteio no multirreferido art. 102, I, ‘f’, CF.

ademais, o argumento esgrimido pelo Município arguido no sentido de que os Municípios não compõem a Federação brasileira, porque não têm assento no Congresso Nacional, não resiste à literalidade de vários dispositivos141 da Constituição que revelam que os Municípios são partes componentes da Federação brasileira e que a sua autonomia é princípio constitucional sensível, apto a ensejar a intervenção federal (art. 34, VII, ‘c’, CF) 142.

o outro fundamento normativo utilizado pelo ministro Marco aurélio, segundo o qual a controvérsia não afrontaria diretamente preceito fundamental, mas tão somente por via transversa agrediria a Constituição, não convence, pois a alegação do arguente infirma a legislação municipal em face de dispositivos da Constituição e do aDCt no que estaria a modificar, indevidamente, segundo o arguente e segundo o AGU, a PGR e o Município de são Paulo, a base de cálculo do issQn, fora do esquadro constitucional.

sendo assim, em linha de princípio, o parâmetro normativo que diretamente serve de conforto de validade é o texto da Constituição Federal, de modo que é a própria supremacia jurídica da Constituição Federal que está sendo posta em apreciação na aDPF 189. o Município arguido defende a compatibilidade de sua legislação com a Constituição Federal. o Distrito Federal – arguente – defende a incompatibilidade dessa legislação com a Constituição Federal.

na eventual superação das preliminares de conhecimento da aDPF 189, no mérito a questão provoca algumas controvérsias acerca da autonomia tributária dos Municípios em sede de issQn.

Com efeito, nos termos do art. 156, iii, CF, a competência municipal para instituir e cobrar o issQn estará condicionada pelos limites estabelecidos em lei complementar nacional. E, nos termos do § 3º, incisos, do referido art. 156, a lei complementar nacional fixa os limites mínimos e máximos das alíquotas do issQn, bem como as formas e condições da concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais em relação a esse tributo.

é de ver, portanto, que a autonomia tributária municipal, em sede de issQn, é restrita. Daí que, nada obstante o disposto no § 6º do art. 150, CF143, a legislação municipal deve estar em sintonia com a indigitada lei complementar nacional, na linha do aduzido no art. 146, incisos I, II, III, alíneas ‘a’ e ‘b’, CF.

esses aludidos preceitos constitucionais reduzem a autonomia municipal para modificar a base de cálculo do ISSQN e visam evitar o surgimento de “guerras fiscais” municipais em sede de issQn. Considerando que os Municípios são entes políticos da Federação, não restam dúvidas que o sentido desses dispositivos visa combater essa aludida

141 Constituição Federal. Arts. 1º; 18; 19; 23; 29; 30; 34, VII, ‘c’; 35; 37; 39; 75; 100; 105, II, ‘c’; 125, § 2º; 144, § 8º; 145; 146; 147; 149; 150; 150, § 6º; 156 etc.

142 Art. 34, VII, ‘c’, CF. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: c) autonomia municipal.

143 art. 150, § 6º, CF. § 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, xii, g.

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“guerra fiscal” e alcançam medidas normativas que direta ou indiretamente criem situações tributárias favoráveis em relação a outros Municípios.

no caso objeto de nossas considerações, a aDPF 189 deverá ter o seu pedido julgado procedente? a resposta dependerá das premissas constitucionais adotadas pelos ministros do supremo tribunal Federal.

se se adotarem as premissas do Município arguido e se aceitar a tese forte da autonomia constitucional municipal, os ministros julgarão improcedente o pedido da aDPF e reconhecerão a plena higidez normativa do preceito legal impugnado. Mas, se acaso entenderem que a autonomia municipal, em sede de issQn, é fraca e dependente da regulamentação normativa da legislação complementar nacional e que cabe ao tribunal pacificar a “guerra fiscal municipal”, os ministros deverão julgar procedente o pedido da aDPF.

Mas qual seria a melhor solução para esse caso? nada obstante tenhamos uma tendência para enxergar a autonomia constitucional municipal de modo forte, concedendo ao citado art. 30, incisos, CF, uma interpretação favorável à liberdade de criação e aplicação normativa, pois defendemos que é no Município onde o indivíduo exerce sua plena cidadania, e onde as empresas têm suas sedes e a partir delas se projetam no desenvolvimento de suas atividades econômicas, entendemos que deverá prevalecer a tese de combate à “guerra fiscal”, pois não deve o direito tributário ser instrumento de desequilíbrios entre as unidades políticas da Federação, na linha aduzida pela advocacia-Geral da união.

Considerações finais

Preceitua a Constituição, ensinam os doutrinadores e aplicam os ministros do stF, que o Município é ente político integrante da Federação brasileira, tendo a mesma dignidade normativa que a união, os estados e o Distrito Federal, mas com competências constitucionais distintas e demarcadas pela Constituição.

Pode haver conflito federativo entre Municípios, pois essas pessoas jurídicas de direito público são entidades políticas autônomas e componentes da Federação brasileira. Daí que A “guerra fiscal tributária municipal” é uma realidade que deve ser combatida politicamente, normativamente e judicialmente, pois afeta de modo danoso o equilíbrio financeiro dos municípios.

a aDPF 189 deve ser conhecida, pois esse instituto processual tem, dentre suas finalidades, a verificação da compatibilidade direta entre lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal. a aDPF 189 deve ser julgada procedente, pois a legislação questionada ultrapassou o esquadro constitucional permitido e criou situação de desequilíbrio tributário entre Barueri e outros Municípios brasileiros.

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6. PARECER: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 5.096 - correção da tabela do IRPF

ação Direta de inconstitucionalidade n. 5.096. interpretação Conforme à Constituição. Artigo 1º da Lei 11.482, de 31.12.2007. Conselho Federal da ordem dos advogados do Brasil.

Correção da tabela do imposto de renda da Pessoa Física. índice de 61,24%.

Precedente: recurso extraordinário n. 388.312

necessidade de audiências públicas, ante a gravidade do tema e os seus reflexos na economia e nas finanças do País.

“O estabelecimento em bases permanentes do equilíbrio fiscal e da estabilidade monetária requer mudanças profundas na forma de gestão do Estado brasileiro. Supõe definições clara sobre o tipo de Estado que desejamos ter e o encaminhamento das reformas estruturais decorrentes dessa opção. Choca-se, por isso mesmo, com atitudes arraigadas no setor público e na sociedade sobre o papel do Estado, especialmente sobre a concepção e a execução do gasto público.

...

A inflação é o mais injusto e cruel dos impostos. São os mais pobres que o pagam. Empresas e famílias de alta renda aprenderam a se defender. Têm acesso aos substitutos da moeda que a indexação e um sofisticado mercado financeiro desenvolveram nos muitos anos de convívio com a inflação elevada. Enquanto isso os assalariados de baixa renda e a legião dos excluídos do Brasil industrial veem deteriorar-se a cada dia o valor de seus escassos rendimentos.

...

A reorganização fiscal do Estado é a pedra fundamental do processo de estabilização, ainda que este requeira medidas adicionais para quebrar a ‘inércia inflacionária’ decorrente da indexação e, por fim, chegar ao estabelecimento de um novo padrão monetário estável”. (exposição de Motivos n. 395, de 7.12.1993 – Plano real).

Parecer pela improcedência do pedido da Ação.

ação Direta De inConstituCionaLiDaDe n. 5.096

reLator Ministro roBerto Barroso

reQuerente: ConseLHo FeDeraL Da orDeM Dos aDvoGaDos Do BrasiL

reQueriDos: PresiDente Da rePÚBLiCa e ConGresso naCionaL

1. Cuida-se de expediente encaminhado pela Consultoria-Geral da união solicitando o encaminhamento de manifestações da Procuradoria-Geral da Fazenda nacional, com o objetivo de subsidiar as informações que deverão ser prestadas pela excelentíssima senhora Presidenta da república, em face da propositura, pelo Conselho Federal da ordem dos

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advogados do Brasil, de ação Direta de inconstitucionalidade, tombada sob o número 5.096, sob a relatoria do Ministro roberto Barroso, que postula “interpretação conforme à Constituição” do artigo 1º da Lei 11.482/2007 (na redação da Lei 12.496/2011).

2. Com efeito, requer a oaB seja julgado procedente o pedido formulado na aludida ação direta, “conferindo-se interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da Lei 11.482/2007 (redação Lei 12.496/2011), com vistas a assegurar que a correção da tabela para o ano-calendário de 2013 reflita a defasagem de 61,24% ocorrida desde 1996, bem como para os anos-calendários de 2014 em diante, que seja reconhecida a atualização da tabela pelo iPCa.

3. além desse pedido central, subsidiariamente a oaB pede que, se acaso se entenda que o índice de correção da tabela do IRPF/2013 não deva refletir a defasagem de todo o período, seja feita a modulação aos efeitos da decisão para que se corrija a tabela de 2013 frente ao ano anterior (2012) com base no iPCa de 5,91% em vez de 4,5%, e a recomposição dos prejuízos dos anos anteriores seja aplicada nos próximos 10 anos, no percentual de 10% ao ano.

4. alternativamente aos pedidos central e subsidiário, a oaB requer, caso o tribunal entenda que se está diante de uma omissão parcial do legislador, que seja declarada a plena fungibilidade da ADI em ADO, oficiando-se à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal para adoção das medidas necessárias, e fixando-se prazo para cumprimento da decisão.

5. a pretensão do requerente não deve ser acolhida pelo stF.

6. Com efeito, o tribunal, recentemente, julgou o re 388.312 e repeliu pretensão em tudo similar, como se vê da ementa do respectivo acórdão:

eMenta: reCurso extraorDinário. Direito ConstituCionaL e eConÔMiCo. Correção Monetária Das taBeLas Do iMPosto De renDa. Lei n. 9.250/1995. neCessiDaDe De Lei CoMPLeMentar e ContrarieDaDe aos PrinCíPios Da CaPaCiDaDe ContriButiva e Do não ConFisCo. reCurso ConHeCiDo eM Parte e, na Parte ConHeCiDa, a eLe neGaDo ProviMento. 1. ausência de prequestionamento quanto à alegação de inconstitucionalidade formal da Lei n. 9.250/1995 por contrariedade ao art. 146, inc. iii, alínea a, da Constituição da república. 2. a vedação constitucional de tributo confiscatório e a necessidade de se observar o princípio da capacidade contributiva são questões cuja análise dependem da situação individual do contribuinte, principalmente em razão da possibilidade de se proceder a deduções fiscais, como se dá no imposto sobre a renda. Precedentes. 3. Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo. 4. recurso extraordinário conhecido em parte e, na parte conhecida, a ele negado provimento. (Plenário. Julgamento finalizado em 1º.8.2011. acórdão publicado em 10.10.2011).

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7. segundo proclamado na aludida ementa (item 3), “conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo”.

8. a aDi proposta pela oaB deveria sofrer o mesmo destino que sofreu a ação Direta de inconstitucionalidade n. 4.071: improcedência da demanda.

9. essa aDi 4.071 foi proposta pelo Partido da social Democracia Brasileira – PsDB em face do art. 56 da Lei 9.430/96, preceito normativo que estabeleceu que as sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passassem a recolher a CoFins/Pis sobre as respectivas receitas brutas. sucede, todavia, que em 17.9.2008, o Plenário do STF, nos autos dos RREE 377.457 e 381.964, resolveu definitivamente a controvérsia. ante essa situação judicial, o relator (saudoso ministro Menezes Direito) indeferiu a inicial, nos seguintes termos:

DeCisão

vistos.

o Partido da social Democracia Brasileira ‘ PsDB ajuizou, em 22 de abril de 2008, ação direta de inconstitucionalidade, tendo por objeto o art. 56 da Lei nº 9.430/96, por incompatibilidade com o arts. 69, 146, inciso iii, ‘b’, 150, §6º e 154, inciso I, da Constituição Federal.

eis o teor do dispositivo impugnado, verbis:

‘Art. 56. As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991’.

a tese central do requerente é conhecida, baseando-se em que o art. 6º, inciso ii, da Lei Complementar nº 70/91, o qual isentava as sociedades profissionais do pagamento da COFINS, não poderia ter sido alterado por mera lei ordinária, como fez o art. 56 da Lei nº 9.430/96, por ostentar aquela isenção, tanto ao ângulo material, quanto formal, a natureza de lei complementar. sustenta, também, a violação ao art. 150, §6º, da Constituição, o qual exigiria ‘lei específica’ tanto para a concessão, quanto para a revogação de isenções, requisito que não foi observado pela Lei nº 9.430/96.

Passa, em seguida, o requerente a discorrer sobre a possibilidade de concessão de efeitos prospectivos, com base no art. 27 da Lei nº 9.868/99, à declaração de constitucionalidade da norma (e não apenas à de inconstitucionalidade), pugnando que este supremo tribunal Federal, considerando, especialmente, a jurisprudência pacificada na Súmula nº 276 do superior tribunal de Justiça, module temporalmente a incidência da CoFins, de maneira que ela somente possa ser exigida das sociedades

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profissionais após o trânsito em julgado da decisão proferida nesta ação direta de inconstitucionalidade.

o Presidente da república encaminhou informações elaboradas pela advocacia-Geral da união, que defendeu a constitucionalidade da norma e a inaplicabilidade do art. 27 da Lei nº 9.868/99 ao caso.

Quanto ao primeiro aspecto, disse: ‘sem nexo a alegação de descuramento ao artigo 195, §4º, c/c o artigo 154, i, ambos da Constituição Federal de 1988, pois, evidentemente, o artigo 56 da Lei nº 9.430/1996, apenas, revoga isenção de contribuição para a seguridade social, prevista no artigo 195, inciso I, alínea `b’, da Constituição da República, anteriormente concedida por lei apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, não tratando, em absoluto, de instituição de nova fonte para o custeio de recursos da seguridade social não discriminada na mesma Carta Política’ (fl. 77).

No que toca à modulação de efeitos assentou o seguinte: ‘quanto ao pedido da concessão de efeito para o futuro das inúmeras decisões do supremo tribunal Federal e do superior tribunal de Justiça contrários à pretensão do requerente, este jamais poderá ser admitido, primeiro, porque esta medida do artigo 27 da Lei nº 9.868/1999 é de aplicação excepcionalíssima; segundo, seguindo tradicional jurisprudência sua, inclusive decorrente do julgamento da aDC-1 (em 1993), com efeito vinculante, já havia assentado o stF o entendimento de que a Lei Complementar 70/91 é formalmente complementar, mas materialmente ordinária podendo sim ser alterada por lei ordinária; terceiro, jamais existiu declaração de inconstitucionalidade em relação ao caput do

artigo 56 da Lei nº 9.430/1996, quer pelo STF, que pelo STJ; e, por fim, a concessão, no caso, desse pedido aniquilaria os princípios constitucionais da legalidade (CF, art, 150, I) e da vedação de tratamento fiscal discriminatório entre contribuintes, tendo em vista os contribuintes que, atendendo a lei, pagaram a contribuição especial normalmente (CF, art. 150, II)’ (fl. 78).

O Congresso Nacional prestou informações às fls. 103 a 110, argüindo, em preliminar, a inexistência de ofensa direta à Constituição, porque ‘a pretensão apresentada imporia a análise e cotejo hierárquico entre normas infraconstitucionais’ (fl. 107), o que seria vedado em sede de controle abstrato.

Quanto ao mérito o Congresso nacional aduz o seguinte:

‘não parece haver ofensa, data venia, ao art. 69 da Constituição, porque não ocorreu, no caso, um ato de aprovação de lei complementar sem maioria absoluta.

‘Não se estaria, outrossim, diante de ofensa aos arts. 146, III, `b’ ou 154, inc. i porque a isenção é matéria tratável por lei ordinária, consoante indicado pelo próprio art. 150, §6º da Constituição, e porque a Lei nº 9.430/1996 não criou novo tributo, apenas revogou uma isenção tributária.

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‘o art. 150, §6º, por sua vez, também não resta ferido porque o art. 56 da Lei nº 9.430/1996 não concede uma isenção, mas sim a extingue, por isso não se aplicaria a exigência de lei específica.

‘Por fim, relativamente à discussão sobre a possibilidade de se considerar como tendo natureza ordinária uma norma formalmente inserida em lei complementar, tal encontra-se em desenvolvimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal, especificamente no julgamento dos Recursos extraordinários nºs 377.457 e 381.964, conforme observado pelo próprio Requerente’ (fls. 108 e 109).

A Advocacia-Geral da União, às fls. 121 a 132, defendeu a constitucionalidade da norma impugnada, na mesma linha das manifestações anteriores, tendo salientado, quanto à modulação de efeitos, que o próprio Superior Tribunal de Justiça, posteriormente à edição da súmula nº 276, reconheceu, no agrG no resp 728.754, da relatoria da Ministra eliana Calmon, que a questão em causa não poderia ser resolvida em âmbito infraconstitucional, tratando-se de matéria eminentemente constitucional, a ser resolvida por este supremo tribunal Federal. aduz, ainda, que o art. 27 da Lei nº 9.868/99 somente teria aplicação nos casos de declaração de inconstitucionalidade da norma e não quando declarada a sua constitucionalidade, e que, no caso concreto, a concessão de efeitos prospectivos afrontaria os princípios da legalidade tributária e da vedação à discriminação entre contribuintes.

também o Procurador-Geral da república opinou pela improcedência da ação direta, salientando, quanto à possibilidade de aplicação ao caso do art. 27 da Lei nº 9.868/99, o seguinte:

‘ao contrário do sustentado pelo requerente, a declaração de constitucionalidade do dispositivo questionado apenas ratifica sua aptidão para produzir efeitos válidos, reconhecendo ser legítima a presunção de legalidade/constitucionalidade que o acompanha desde o nascimento.

‘a supremacia da Constituição, assim como a preservação de princípios como a segurança jurídica e o interesse social, em tal situação, somente será assegurada com a atribuição de eficácia ex tunc à decisão, eis que em hipótese diversa, seriam os contribuintes beneficiados por decisões isoladas, proferidas em contrariedade ao texto constitucional, em especial aos princípios da legalidade e da isonomia tributárias’ (fl. 139).

Às fls. 141 a 142, o requerente postulou fosse a presente ação apreciada anteriormente aos recursos extraordinários nº 377.457 e 381.964, pedido este que ficou prejudicado com o julgamento de mencionados recursos.

Decido.

a questão objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade foi recentemente decidida pelo Plenário deste supremo tribunal Federal, em

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17/9/2008, no julgamento dos recursos extraordinários de nºs 377.457 e 381.964, ambos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Naquela oportunidade, firmou-se o entendimento de que o conflito aparente entre lei ordinária e lei complementar não deveria ser resolvido pelo critério hierárquico, mas pela natureza da matéria regrada, de acordo com o que dispõe a Constituição Federal. nesta linha, entendeu a Corte que a isenção prevista na Lei Complementar nº 70/91 configurava norma de natureza materialmente ordinária, razão pela qual, muito embora aprovada sob a forma de lei complementar, com quorum qualificado de votação no Congresso nacional, considerou válida a sua revogação por lei ordinária, determinada pelo art. 56 da Lei nº 9.430/96.

na mesma sessão de julgamento, o Plenário rejeitou a possibilidade de atribuição de efeitos prospectivos àquela decisão, mediante a aplicação analógica do art. 27 da Lei nº 9.868/99, por não vislumbrar razões de segurança jurídica suficientes para a pretendida modulação.

Anoto que fiquei vencido no que se refere à modulação, considerando que a matéria estava pacificada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, havendo, como salientou o eminente Ministro Celso de Mello, decisões da Suprema Corte na configuração da matéria como infraconstitucional. Todavia, o entendimento sobre a modulação ficou vencido diante da ausência do quorum necessário previsto no art. 27 da Lei nº 9.868/99.

Claro, portanto, que a matéria objeto desta ação direta de inconstitucionalidade já foi inteiramente julgada pelo Plenário, contrariamente à pretensão do requerente, o que revela a manifesta improcedência da demanda.

Ante o exposto, com fulcro no art. 4º da Lei nº 9.868/99, indefiro a petição inicial.

10. essa decisão foi mantida pelo Plenário da Corte na apreciação de agravo regimental desafiador do citado édito, conforme se vê da ementa de respectivo acórdão:

eMenta agravo regimental. ação direta de inconstitucionalidade manifestamente improcedente. indeferimento da petição inicial pelo relator. art. 4º da Lei nº 9.868/99. 1. É manifestamente improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma (art. 56 da Lei nº 9.430/96) cuja constitucionalidade foi expressamente declarada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, mesmo que em recurso extraordinário. 2. Aplicação do art. 4º da Lei nº 9.868/99, segundo o qual “a petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator”. 3. A alteração da jurisprudência pressupõe a ocorrência de significativas modificações de ordem jurídica, social ou econômica, ou, quando muito, a superveniência de argumentos nitidamente mais relevantes do que aqueles antes prevalecentes, o que não se verifica no caso. 4. o amicus curiae somente pode demandar a sua

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intervenção até a data em que o relator liberar o processo para pauta. 5. agravo regimental a que se nega provimento.

(aDi 4.071 agr. Julgamento 22.4.2009. Publicação 15.10.2009)

11. A presente ADI proposta pela OAB desafia aturada jurisprudência da Corte confirmada em recente precedente: RE 388.312.

12. Logo, com a devida vênia, deve ser indeferida a petição inicial ou julgado improcedente o pedido contido na aDi 5.096, no rastro do que decidido na aDi 4.071.

13. na eventual superação desse óbice processual, no mérito melhor sorte não colhe a postulação da oaB.

14. Pretende a OAB que o Tribunal faça às vezes de legislador fiscal positivo.

15. Com efeito, o stF já repeliu todas tentativas de torná-lo legislador fiscal ou tributário positivo. essa linha jurisprudencial presta reverência aos postulados da separação dos Poderes e ao da legitimidade democrática.

16. À separação dos Poderes porque a Constituição não autoriza ao Poder Judiciário, em particular ao stF, que inove positivamente o ordenamento jurídico, salvo nas excepcionalíssimas hipóteses de omissão inconstitucional. Mas, tanto em matéria tributária, quanto em matéria penal, vigora o postulado da legalidade estrita: somente a lei aprovada pelo Parlamento pode inovar positivamente o ordenamento tributário ou penal.

17. nessa toada, presta-se reverência ao postulado da legitimidade democrática. o stF, assim como as demais instâncias judiciais brasileiras e os seus ilustres magistrados, são possuidores de legitimidade republicana e de licitude constitucional, mas não são representantes eleitos pelo povo. Logo, com a devida vênia, os ministros do stF não têm legitimidade democrática, conquanto, reitera-se, sejam representantes republicanos.

18. Isso significa que a escolha das alternativas políticas inovadoras do ordenamento jurídico pertence aos representantes eleitos pelo povo, em homenagem ao postulado da soberania popular (parágrafo único, art. 1º, CF). se acaso os representantes eleitos pelo povo venham a desobedecer o texto da Constituição, competirá ao stF a decretação de inconstitucionalidade dessa desobediência. essa é chave do equilíbrio constitucional da “democracia republicana” brasileira.

19. se o stF avançar nas atribuições democráticas dos legítimos - porque eleitos - representantes do povo, ocorrerá a desestabilização do sistema político-constitucional brasileiro.

20. Ciente dessa indesejável missão, consciente das consequências, e experiente pela certeza que o exercício do poder implica responsabilidades, o tribunal, em diversas ocasiões, afastou essas pretensões, que são anômalas. a saber:

ementa: aGravo reGiMentaL no reCurso extraorDinário CoM aGravo. triButário. ParCeLaMento De DéBito FisCaL. extensão a ContriBuintes não aLCançaDos PeLa norMa Que PrevÊ a ConCessão Do BeneFíCio. oFensa ao PrinCíPio Da seParação Dos PoDeres. aGravo reGiMentaL a Que se neGa ProviMento. I – É vedado ao Judiciário atuar como legislador positivo para estender parcelamento de débitos

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fiscais a contribuintes não abrangidos pela norma que concede o benefício, sob pena de ofender o princípio da separação dos poderes. Precedentes. ii – agravo regimental a que se nega provimento.

(are 723.248, 2ª turma, rel. Min. ricardo Lewandowski)

eMenta Direito triButário. iMPosto De renDa. Pessoa FísiCa. aMPLiação De isenções Por eQuiParação. iMPossiBiLiDaDe De o PoDer JuDiCiário atuar CoMo LeGisLaDor Positivo. PreCeDentes. aCÓrDão reCorriDo PuBLiCaDo eM 30.8.2010. Esta Suprema Corte entende ser vedado ao Poder Judiciário, sob pretexto de atenção ao princípio da igualdade, atuar como legislador positivo estabelecendo isenções tributárias não previstas em lei. tal interpretação se amolda ao presente caso, em que se almeja ampliar isenções de determinadas verbas para efeito de incidência do imposto de renda, a despeito de inexistir lei outorgando essa benesse. agravo regimental conhecido e não provido.

(are 691.852, 1ª turma, rela. Mina. rosa Weber)

21. Essas duas ementas são representações da linha mansa e pacífica da Corte: a rejeição em inovar positivamente o ordenamento jurídico como legislador fiscal. a oaB pede ao stF que despreze a sua prática jurisprudencial, na medida em que postula ao tribunal a inovação positiva do ordenamento jurídico em matéria tributária.

22. nada obstante a manifesta improcedência da pretensão da oaB, pelas razões já delineadas, a Fazenda Nacional rebaterá e infirmará todos os argumentos e fundamentos contidos na petição inicial, e demolirá os seus frágeis alicerces jurídicos, malgrado o indiscutível brilhantismo dos causídicos patrocinadores.

23. Consta na petição inicial (p. 6):

o fundamento desta ação Direta, portanto, é demonstrar que a correção da tabela do irPF em percentual discrepante, porque muito inferior à inflação ofende, conforme se demonstrará, diversos comandos constitucionais, como o conceito de renda (art. 153, iii), a capacidade contributiva (art. 145, § 1º), o não-confisco tributário (art. 150, IV) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, iii), em face da tributação do mínimo existencial.

24. Portanto seriam quatro mandamentos constitucionais que estariam sendo violados pela legislação fiscal combatida, segundo a OAB.

25. a Fazenda nacional pede licença para começar a demolir o principal alicerce da construção jurídica da oaB: a violação à dignidade da pessoa humana com a tributação do mínimo existencial.

26. Com a devida vênia, a dignidade da pessoa humana é preceito normativo demasiadamente caro para ser banalizado. a dignidade da pessoa humana está ancorada na ideia de respeito e consideração que todo e qualquer ser humano merece. o simples fato de pertencer ao gênero humano qualifica o ser como pessoa, como sujeito de direitos, e como destinatário de tratamento digno, porque há respeito e consideração.

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27. as raízes do preceito normativo da dignidade da pessoa humana são kantianas. Mas sobretudo após os horrores da segunda Guerra Mundial, triste e lamentável página da história da humanidade, viu-se a dramaticidade de regimes políticos totalitários e opressivos, aniquiladores da essência humana, de sua subalternização odiosa.

28. A proteção normativa, constitucionalmente qualificada, da dignidade da pessoa humana visa proteger o indivíduo contra o seu amesquinhamento, contra a usurpação de sua essencial personalidade, contra a sua eventual desumanização.

29. Com a devida vênia, a eventual não correção da tabela do irPF não agride, não menoscaba a dignidade do ser humano, não revela tratamento desprezível do estado em relação ao contribuinte. Há um exagero retórico por parte da oaB. a oaB vulgariza esse honrado preceito normativo. Nem toda contrariedade a interesses é violação à dignidade da pessoa humana. a oaB sabe disso.

30. a oaB alega a tributação do mínimo existencial. Mas qual é o limite normativo do mínimo existencial? o que vem a ser esse mínimo existencial? Qual a concretude desse mínimo existencial? A OAB fica na metafísica argumentativa, na abstração de suas considerações. não há nada de substancial na peça da oaB.

31. Com efeito, à luz da Constituição, um parâmetro normativo aceitável para alcançar o mínimo existencial seria o valor do salário-mínimo. isso quer dizer que se acaso o irPF incidisse sobre o contribuinte que tivesse como renda o salário-mínimo, poder-se-ia dizer que talvez se estivesse tributando o mínimo existencial. Mas não é o que acontece no presente caso.

32. somente quem tem renda mensal a partir de r$1.787,78 passa a sofrer a incidência do irPF, e mesmo assim a uma alíquota de 7,5%. ora, que violação ao mínimo existencial seria essa? não se está tributando o salário-mínimo, reitera-se. ou seja, para se ter agressão ao mínimo existencial, seria necessário incidir o irPF sobre o salário-mínimo.

33.Na petição inicial da OAB (pp. 18 e 19) está aduzida que a intenção do legislador fiscal de 1996 seria a de que somente quem recebesse acima de 8 salários mínimos mensais deveria sofrer a incidência do irPF. nada mais bizantino.

34. De 1996 para cá, graças ao crescimento de produtividade e ao fortalecimento econômico, tem havido um aumento do valor do salário mínimo. não há nem houve qualquer indexação ou vinculação tributária ao salário mínimo. não seria desejável que houvesse.

35. O Brasil há vinte anos tem vencido a guerra contra a inflação, o mais insidioso flagelo econômico contra o trabalhador/contribuinte, graças a um processo de desindexação econômica, de aumento de produtividade, de equilíbrio fiscal e de uma série de outras medidas saneadoras que visam reduzir o processo inflacionário.

36. A OAB pretende o retorno daquela situação inflacionária? A resposta só pode ser desenganadamente negativa. Mas com a sua pretensão, há esse risco. ante esse risco social, entende a Fazenda nacional que o stF deveria realizar audiências públicas para debater esse tema com outros atores da sociedade, ante a gravidade e a relevância das consequências. não se trata de uma mera questão de conflito normativo, mas de uma controvérsia que vai muito além, pois implicam sérios riscos para a estabilidade financeira e econômica do Brasil.

37. Nessa perspectiva, com a devida vênia, não há que se falar em violação à dignidade da pessoa humana com a tributação do mínimo existencial. a dignidade humana vai além da mera correção da tabela do irPF. ela – dignidade humana – vale muito mais do que isso.

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A invocação da dignidade humana deve ocorrer nas situações de graves violações à essencial personalidade que diferencia e humaniza o ser vivo: pessoa humana.

38. A alegada violação ao não-confisco tributário também não se sustenta. Com efeito, somente seria confiscatório o tributo que amesquinhasse ou inviabilizasse a sobrevivência da pessoa. não se trata disso na presente controvérsia, pois não se extrapolaram os limites da razoabilidade e da proporcionalidade (compatibilidade, adequação, necessidade e aceitabilidade) na “invasão” patrimonial.

39. Ademais, como prescrito na jurisprudência da Corte, a eventual confiscatoriedade tributária não pode ser aferida de modo abstrato, mas somente nas situações concretas (re 388.312).

40. essa aludida orientação jurisprudencial também foi seguida na questão da capacidade contributiva. nada obstante, segundo a oaB, a não correção da tabela do irPF violaria esse mandamento constitucional da capacidade contributiva.

41. vez mais a pretensão da oaB não se sustenta. Com efeito, a capacidade contributiva deve ser aferida caso a caso, como proclamado na jurisprudência do stF. não deve a capacidade contributiva ser evocada abstratamente, mas deve ser aferida nas situações concretas.

42. Com a devida vênia, não é possível dessumir que a não correção da tabela do irPF nos índices requestados pela OAB implique agressão à capacidade contributiva. É invocação de metafísica tributária, que não pode justificar decisão judicial relevante.

43. Por fim, a suposta violação ao conceito constitucional de renda também não encontra eco no ordenamento nem na jurisprudência da Corte.

44. Com efeito, o tribunal, nos autos dos rree 582.525 e 201.465, estabeleceu que não há um conceito ontológico de renda, de dimensões absolutas e de caráter imutável, pois a Constituição não estipula conceitualmente o que seja renda ou provento, mas determina que sejam hipóteses de incidência tributária.

45. a incidência do irPF se dá sobre rendas e proventos da pessoa física. a eventual não correção da tabela do irPF não desnatura o caráter de renda ou de proventos. Pode até vir a ser uma eventual inconveniência econômica, mas nunca será uma ilicitude jurídica, como postula a oaB.

46. reitera a Fazenda nacional: nem toda eventual contrariedade de interesse (por mais justo e legítimo que seja) implica lesão a direito. Não há direito “jurídico” à correção da tabela do irPF. Pode haver interesse político ou econômico, mas direito não há.

47. e se não há direito, não há campo para a atuação do stF.

48. todavia, se o tribunal entender que há direito lesado ou ameaçado, tendo em vista as graves consequências de sua decisão, é o caso de realizar audiências públicas.

49. Certamente, a oaB – que se autointitula a “voz constitucional do cidadão” – não objetará ouvir a sociedade. o que está em jogo não são apenas os legítimos interesses dos contribuintes do irPF, mas as aspirações de toda a sociedade brasileira, de quase 200 milhões de pessoas: o não retorno da inflação.

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50. esses são os fundamentos normativos invocados pela oaB na defesa de sua postulação. Como demonstrado, tais fundamentos são insuficientes para a decretação de inconstitucionalidade do preceito legislativo hostilizado.

51. a oaB também recordou recentes decisões do tribunal ocorridas nos autos das ADI’s 4.357 e 4.425, que cuidaram dos índices de correção dos precatórios judiciais. Com a devida vênia, esses aludidos precedentes não servem na presente causa.

52. Com efeito, a linha adotada pela Corte consistiu no fundamento de que seria inconstitucional corrigir os créditos públicos de modo distinto da correção das dívidas públicas.

53. Ademais, nessas referidas ADI’s não se inovou positivamente o ordenamento jurídico, como se pretende nessa aDi 5.096, pois o tribunal determinou que se utilizasse o mesmo índice (já existente) de correção dos créditos públicos para as dívidas públicas estampadas nos precatórios judiciais.

54. se acaso o tribunal vier a acolher o índice informado pela oaB para a correção da tabela do IRPF estará desprestigiando a sua aturada jurisprudência, confirmada no RE 388.312, e estará legislando positivamente em matéria tributária, em flagrante agressão aos postulados da separação dos Poderes e da legitimidade democrática (soberania popular).

55. Considerando a importância e a gravidade da controvérsia, a Fazenda nacional reitera a necessidade de convocação de audiência pública (art. 20, § 1º, Lei 9.868/99).

56. Se acaso o Tribunal entender que há direito à correção da tabela do IRPF, na linha do que postulado pela oaB, a Fazenda nacional entende que sejam modulados os efeitos dessa eventual decretação de inconstitucionalidade, tendo em vista os impactos danosos às finanças públicas e à economia da Nação.

57. Com efeito, não se trata de uma mera questão de normatividade jurídica, mas de um conflito que envolve aspectos que vão além legalidade constitucional, pois a decisão poderá repercutir no que foi feito, no que tem sido feito e no que poderá vir a ser feito para o fortalecimento da economia com a consequente melhoria social de todos.

58. ante essas brevíssimas considerações, a Fazenda nacional entende que a aludida aDi 5.096 deve ter o seu pedido julgado improcedente, não comportando a postulada “interpretação conforme à Constituição”.

59. esse é o parecer, sob a fé do nosso Grau.