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Trilhando Sonhos

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No início do ano de 2007 decidi retirar da gaveta um sonho antigo: viajar todo o cone Sul de bicicleta. Até então eu não conhecia alguém que tivesse feito algo parecido, mas aos poucos comecei a estudar e aprender sobre o tema. Em agosto do mesmo ano retirei a poeira de minha velha bicicleta e iniciei meus treinamentos. Aos poucos fui condicionando meu corpo e me apaixonando cada vez mais pelo cicloturismo.Paralelamente busquei apoio para o projeto, adquiri os equipamentos necessários, uma nova bicicleta e fixei a data da minha partida para 7 de setembro de 2008.Tudo parecia me levar em direção ao meu grande sonho. O universo parecia conspirar a meu favor e quando dei por mim já estava na estrada, ainda meio sem entender o que estava se passando comigo. Havia deixado tudo que tinha para trás, o convívio de meus amigos, família e abandonado meu trabalho em busca de algo incerto, que até então somente existia em meu imaginário.O começo não foi tão simples e fácil como imaginava que fosse. Apenas no segundo dia de viagem sofri uma queda e fraturei meu braço. O mesmo universo que havia conspirado a meu favor quis, desta vez, me mostrar ou me alertar para os perigos do que eu propusera.Não desisti e apenas 56 dias depois da fratura eu estava na estrada novamente. Desta vez para viver o ano mais importante da minha vida até então.Pensava percorrer cerca de 13000 quilômetros em aproximadamente oito meses, mas me perdi no espaço e no tempo através dos quilômetros e dias. Cheguei ao meu destino somente depois de 365 dias de viagem, na mesma semana em que completaria meu trigésimo aniversário. Percorri quase 19900 quilômetros, destes, 15378 de bicicleta.As paisagens, as pessoas, as glórias e a luta destes dias estarão para sempre em meu coração. A América grandiosa agora faz parte do que sou, com tudo que me proporcionou.A viagem foi uma sequência contínua e alucinante de dias e acontecimentos surpreendentes e reveladores, onde e quando eu nunca consegui adivinhar como cada dia terminaria.Ainda vou precisar de muitos anos para entender tudo que me aconteceu nestes dias, se é que serei capaz de compreender totalmente.

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 ____________________________________________ Copyright © 2011 by Thiago Fantinatti

Capa, artes e diagramaçãoThiago Fantinatti

 Foto da capa

Thiago Fantinatti

 RevisãoBruno Fantinatti

Maria Renata Corrêa (primeiro capítulo)Luciane Fantinati Corrêa

www.trilhasulamericana.com.brwww.cicloviajante.com.br

Segunda edição (jan/2013)

 Primeira edição (ago/2011)

Impressão e publicação desta edição:CLUBE DE AUTORES – www.clubedeautores.com.br (Brasil)

 España, Italia, France, Deutschland, Nederland,United Kingdom, United States:

www.trilhasulamericana.com.br/international www.lulu.com

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 Para Valentina.

 Desejo-lhe um mundorepleto de buscas e descobertas.

“Yo ya no soy yo, por lo menos no soy el mismo yo interior. Este vagar sin rumbo por nuestra “Mayúscula

 América” me ha cambiado mas de lo que creí”

“Eu já não sou eu, pelo menos não sou o mesmo eu interior. Este vagar sem rumo por nossa “Maiúscula América” me mudou mais do que acreditei”

 Ernesto Guevara – “Notas de Viaje” 

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“Mais que descobrir a América, acabei descobrindo gente! Isso memarcou profundamente. O que me dava forças para seguir depois de umadespedida era justamente o fato de saber que a próxima pessoa impor-tante, o próximo personagem do meu livro, estaria esperando para ser descoberto nos próximos quilômetros. E sempre aparecia alguém, sem- pre. No meio de tantas variáveis desconhecidas, esta era uma constanteque eu entendia cada vez melhor. Ainda sinto muita saudade dessas pessoas especiais que cruzaram meu caminho. Quem seria e onde eu en-contraria o próximo personagem?”

Thiago Fantinatti 

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias,

imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, paraentender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores edar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arro- gância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não sim- plesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do quenão vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”

(Mar sem fim)

“Para o Thiago da terra um abraço do mar”

 Amyr Klink 

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 América, não invoco teu nome em vão.Quando sujeito ao coração a espada,quando aguento na alma a goteira,quando pelas janelas

um novo dia teu me penetra, sou e estou na luz que me produz,vivo na sombra que me determina,durmo e desperto em tua essencial aurora...

 Pablo Neruda

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Prefácio

Sul do Brasil

Uruguai

Província de Buenos Aires

 Norte da Patagônia e Valdes

A pampa patagônica e seus ventos

El fin del mundo

Sul chileno e argentino, aventura

Chiloé e a carretera austral

Região dos lagos andinos

Chile central

Pela panamericanaO deserto de Atacama

Altiplano boliviano

Sul do Peru

Amazônia

O sonho trilhado

Lista de dias e quilometragens

O viajante

Agradecimentos

Créditos das imagens e textos

Leitura sugerida

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 ÍNDICE 

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Em 2007, durante um momento de lucidez absoluta, decidi re-alizar meu sonho. O que segue é um relato detalhado do que aconteceudepois disso.

Criei um jeito de escrever, o de quem nunca escreveu um livroantes, e o faço descrevendo detalhadamente primeiro os fatos que maismarcaram. Colocando no papel, além do que vi também o que senti einicio minhas experiências ainda viajando, aqui nesta mágica e pequenacidade no meio dos Andes chilenos. Depois de 265 dias sinto maturidadesuficiente na viagem para isso. Uma viagem através do surpreendente,uma viagem através da surpreendente América do Sul; feita de sonho, desuperação, descobertas e principalmente de autoconhecimento.

Durante estes últimos meses vivi como um nômade, sempre se-

guindo de um lugar para outro, assim como meus pensamentos e sen-timentos. Do sonho um pouco lúdico e até infantil à realização que sesente na pele. Do extremo sul do mundo aos trópicos; do calor extremoao frio congelante da cordilheira dos Andes. Da gente cosmopolita dasgrandes capitais às pessoas simples do campo; de bairros nobres a lugaresque parecem esquecidos por todos nós; da solidão, do isolamento e dadistância entorpecente à hospitalidade sem explicação das pessoas de bom coração com histórias de vida fantásticas. Da despedida de todos os

dias à chegada de todos os dias. Das coisas que eu sonhava às que eu nemimaginava sonhar. Da dor física ao clímax de chegar onde se sonhouchegar.

Desta forma, encontrei força. Uma coisa que ainda não sei expli-car. Um poder de realização imenso e intenso movido por um sonhosimples. Descobri que não é e nem foi uma questão física e sim umacerteza de que quando se sonha e se busca o que se sonhou, ele também busca você. Te leva, te carrega nos braços e tudo que você tem a fazer é

deixar ser levado. Sem medo e sem questionar muito o que está fazendo.Hoje sou mais forte do que antes. Sinto que agora posso realizar tudo o que realmente queira.

Divido o prazer das passagens, paragens, muitas vezes escritasaleatoriamente, antes de ordená-las cronologicamente numa história quefizesse sentido em todas a linhas.

San Pedro de Atacama, Chile, 20 de agosto de 2009

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Enquanto escrevo vou relembrando, revivendo cada momento eenfrento o novo desafio: o de escrever. Talvez tão difícil quanto cruzar um continente numa bicicleta.

Escrevo. Revivo exatamente o medo do inicio; a solidão dequando tive que enfrentar a estrada por mim mesmo; o calor de 45º nonorte da Patagônia argentina e o vento forte que quase nunca para no Sul.Sinto novamente o vento frio no meu rosto, avisando que não seria fácil.Também a sensação da neve quando a toquei pela primeira vez e ocansaço extremo ao subir a cordilheira dos Andes – até quase 5000metros de altitude –, bem como o calor abafado da selva amazônica e suarefrescante chuva tropical.

Sinto de novo a dúvida sobre quando, como e qual caminho se-guir. Sinto meus pés frios enquanto acampava nas noites de temperaturas

negativas no deserto. A dor e o cansaço dos dias mais difíceis e as rea-lidades distintas da minha. Lembro que a solução mais simples sempreera a correta: seguir minha intuição. Cruzo de novo todos os rios quecruzei. Escuto o som da bicicleta enquanto pedalava. Visualizo a dis-tância e o horizonte das paisagens por onde passei. Um horizonte quenunca é alcançado. Reencontro a liberdade, no mais intenso e real sentidoda palavra. Reencontro todas as pessoas que cruzaram meu caminho eque se transformaram nas coisas mais preciosas da viagem. Reencontro

emoção e lágrima. Reencontro a saudade e o amor. E redescubro, no finalda viagem, o motivo pelo qual viajei tanto.Confesso que a viagem começou tímida, mas à medida que fui

despertando para a minha realização e me envolvendo de cabeça nesteimenso mar de descobertas, ela se transformou numa sequência contínuae alucinante de acontecimentos surpreendentes e reveladores. Não escre-ver seria um ato totalmente egoísta e pessoalmente frustrante.

Como me disse, por e-mail, o argentino Herman Zapp, autor do

livro “Atrapa tu Sueño” – em português “Agarre seu sonho” –: “Sí, por favor escriba tu libro que tenemos que demostrarles a los soñadores quese puede!” (Sim, por favor escreva seu livro porque temos que mostrar aos sonhadores que se pode!).

E para escrever, descrever, recordar e dividir, procurei não buscar referências em histórias similares, como livros de outros cicloturistas, pois não quero sofrer influência na minha escrita, aliás, para não dizer que fui totalmente autêntico, a única coisa que fiz foi assistir – enquantoainda viajava – o filme de Walter Salles “Diários de Motocicleta”, o qualconta a história do jovem argentino Ernesto Guevara e seu amigo AlbertoGranado em sua viagem pela América do Sul realizada há quase 60 anos.

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Do filme e do museu de Che, que visitei em San Martín de los Andes, naArgentina, apenas resgatei algumas poucas e pequenas passagens que in-variavelmente relacionam-se com fatos que vivi e lugares por onde pas-sei, embora sejam viagens bastante diferentes entre si.

Abril de 2010 – Cinco meses após a viagem

O plano simples

Percorrer a América do Sul de bicicleta numa viagem de no mi-nimo oito meses através de seis países: Brasil, Uruguai, Argentina, Chile,Bolívia e Peru. Queria conhecer de verdade, tocar e sentir, o que somentevia pela televisão. Queria também uma mudança na minha vida. Não que

não fosse boa, mas sabia que haveria possibilidades quase infinitas, sesaísse um pouco do meu mundinho. Além do mais eu já tinha construídouma página na internet e minha ideia era atualizá-la quase diariamente.Iria fazer o que a maioria dos viajantes não faz: entreter as pessoas com aviagem enquanto viajava. Acredito que tenha funcionado, já que tivemais de 20 mil acessos e mais de 50 mil  pageviews nos primeiros 15meses a partir de quando foi colocada no ar pouco antes da viagem.Minha página segue online – www.trilhasulamericana.com.br – e pre-

tendo mantê-la funcionando enquanto for possível.

A motivação

A mesma motivação que todo mundo que viaja tem, somada a umdesejo enorme de conhecer lugares e culturas distintas do meu cotidiano.Eu sempre soube, pela experiência de outros que já fizeram algo parecido, que o resultado seria positivo para mim, principalmente no que

diz respeito ao autoconhecimento. Também queria realizar algo me-morável, algo do qual me lembrasse pelo resto da minha vida, encaradocomo um desafio pessoal e que viveria intensamente mesmo tendo a cer-teza de que não seria fácil.

Este livro fazia parte dos planos desde o início. Por esse motivo,foi escrito lentamente, primeiramente apenas dentro de meus pensa-mentos, dia após dia na estrada e guardado, cultivado até que pudesse selibertar e pular para o papel. De fato, esta tarefa também foi uma deminhas principais motivações. Minha longa viagem só terminaria quando

estivesse publicada, como agora, em suas mãos.

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 Seis de setembro de 2008

Km zero

Ourinhos, São Paulo, Brasil

ronto! – disse, com expressão de espanto, quandoterminei de colocar o último item na bagagem da bicicleta, na noite an-terior à partida.

 Naquele momento percebi uma coisa: o tamanho do ato que es-tava me propondo. Também o quanto – até certo ponto – prepotente euera. E que havia colocado coisas demais na minha bagagem. Sentia umaperto no peito e isso não estava nos meus planos.

Mais tarde, minha namorada chorou mais um pouco e depois dor-

miu. Naquela noite quase não dormi. Não consegui pregar os olhos.Dentro de algumas horas iniciaria a viagem que havia sonhado por anos e planejado efetivamente por mais de um ano.

Havia treinado por mais de um ano com meu amigo MartinhoHerkrath pelas estradas da região de Ourinhos, interior de São Paulo,cidade onde vivia. Acordando cedo nos finais de semana para pedalar,enfrentando o calor e testando os limites do corpo toda semana. Não énecessário treinar um ano todo para fazer uma viagem assim, mas era a

melhor maneira de manter-me focado no objetivo.

O dia da partida

Domingo, 7 de setembro de 2008, 7 horas da manhã. Dia daindependência do Brasil, manhã fria. Não acordei bem. Sentia o destinome empurrando como um pai que leva seu filho à escola pela primeira

vez e o deixa lá. Era como se eu não tivesse escolha. Tinha que ir e pontofinal. Mas a sensação de impotência diante do que havia escolhido nãoestava me fazendo bem. Tive a sensação que este dia havia chegadorápido demais.

Cuidado com o que você deseja. Seu sonho pode se transformar em realidade.

 Na hora que sai de casa, vi como a bicicleta estava difícil demanejar e extremamente pesada. Já havia pedalado com bagagem, masnão com tudo aquilo. Senti seu peso e pesando ainda mais estava a minharesponsabilidade. Tinha muita gente acreditando em mim naquele mo-mento e isso me deixou um pouco preocupado.

 – P

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Combinamos - eu e Martinho - de sair de uma praça da minhacidade. Ele faria apenas os primeiros 15 dias da viagem comigo. Nossooutro amigo chamado Sandro, seguiria só os primeiros quilômetros.

Enquanto seguia de casa até a praça, milhares de coisas passaram pela minha cabeça. Alguns amigos e minha família foram até lá para adespedida. Ninguém está emocionalmente pronto para uma coisa assim.Deixar tudo. Amigos, trabalho, família, namorada, enfim, meu cotidianoem busca de algo incerto. Sabia que fisicamente estava preparado, mas a pressão da despedida foi forte demais. Senti medo como nunca haviasentido antes na vida. Na hora da partida não conseguia olhar no rosto deninguém. Se o fizesse, talvez não fosse capaz de seguir. Tinha vontade dechorar, mas respirei fundo, me despedi e subi na bicicleta. Precisavaacordar e entender minha nova realidade, afinal já vivia esta partida há

mais de um ano. Neste momento me lembrei de uma regra importanteque tinha aprendido durante o ano de treinos: sempre cruzar um qui-lômetro de cada vez. Isso mesmo: pensar pequeno, mas com um objetivogrande. O resto iria aprender na estrada. Eu tinha que aprender.

 No primeiro dia seguimos por caminhos que já havíamos passadoinúmeras vezes. Pedalar não era mais novidade há muito tempo. Sabía-mos nos comportar na estrada e conhecíamos bem os caminhos da região, pois no último ano havíamos cruzado quase 7000 quilômetros juntos.

Fizemos 120 quilômetros neste dia – sempre quando se inicia umdia bem cedo é comum fazer uma boa quilometragem – e chegamos àcidade de Ibaiti, no Paraná – a hospedagem foi num hotel.

Havíamos começado muito bem. Fizemos um longo trecho e mesenti mais confiante.

Martinho sempre foi um guerreiro. Nunca o vi descer da bicicletanuma subida. Eu sim já havia feito isso algumas vezes. Lembro-me deum dia que fomos até Iaras, uma cidade próxima, mais ou menos 100

quilômetros de Ourinhos. Fazia um calor insuportável. Já na volta, depoisde 162 quilômetros pedalados, eu não tinha mais forças. Estava total-mente desgastado. Derrubei minhas luvas no chão e exausto tentei vesti-las, mas desisti e sentei no chão. Às vezes o cansaço chega a níveis queafetam a capacidade intelectual, ainda que vestir luvas não seja umatarefa que demande tanto raciocínio assim. Sou magro, não tenho reser-vas energéticas e quando minha energia acaba, preciso me alimentar edescansar. Liguei para o meu pai e ele foi me buscar de carro. Martinhoconseguiu voltar e fez mais de 200 quilômetros – seu recorde de pedala-das num só dia.

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De agosto de 2007 a agosto de 2008 passou exatamente um anode treino e esta experiência serviu para sabermos até onde poderíamos ir.Aprender a reconhecer os limites do corpo foi fundamental. Inclusive,fizemos uma viagem de uma semana de Curitiba até Florianópolis (506quilômetros pelo caminho escolhido por nós). Precisávamos saber comoera viajar dias seguidos na estrada. Foi um ótimo teste para ambos. Háum link  no final do livro, um “capítulo especial”, um trecho do meudiário escrito sete meses antes da grande viagem, onde conto esta aven-tura de uma semana em fevereiro de 2008.

As pedras no caminho, deixe para trás

 No segundo dia saímos de Ibaiti e 40 quilômetros depois paramosnum restaurante à beira da estrada chamado “Favo de Mel”. Logo depoisdo almoço seguimos. Estava prestes a passar pelo primeiro grande testeda viagem. Poucos minutos depois, numa curva, em alta velocidade, eucaí. Caí de um jeito que nunca havia caído em mais de um ano andandode bicicleta. Neste momento tudo mudou. Levantei pulando num pé só esentei a beira da rodovia. Não pensava em nada. Apenas me sentei e logocompreendi o que havia acontecido. Minha bicicleta ficou sobre a pista e

os carros tinham que desviar um pouco para passar. Não conseguiaesticar minha perna esquerda e sentia fortes dores no braço do mesmolado, além do mais estava com todo o lado esquerdo do corpo ralado.Martinho estava mais à frente e logo voltou. Ficou apavorado. Foi avi-sado do acontecido por um caminhoneiro que passava no momento quecaí. Ele retirou a minha bicicleta da rodovia e perguntou:

 – O que aconteceu? – Caí cara, caí. Acho que estou machucado.

Uma ducha de água fria caiu sobre a minha cabeça naquele mo-mento. Eu não podia acreditar. Fui derrubado por uma distração e umaimperfeição no acostamento. Pensei: É isso? Só isso? Assim termina omeu grande sonho? Tudo me pareceu uma grande piada.

Logo em seguida, um motorista parou o carro e perguntou seestávamos precisando de ajuda. Martinho levou minha bicicleta até orestaurante onde havíamos almoçado e fui de carro. A todo o momentome lamentava e dizia:

 – Pelo menos oito meses de viagem e caio no segundo dia! Não pode ser! Tenho que voltar!

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Estava claro que tinha fraturado o braço. Nunca me quebrei atéentão, mas meu braço estava com uma aparência horrível. Sentia fortesdores na perna também e isso me deixava realmente preocupado. Umafratura na perna é um pesadelo para qualquer ciclista.

Enquanto estava no restaurante, Martinho tentou chamar umaambulância. Até conseguiu, mas foi em vão. A ambulância nunca che-gou. O lugar era um pouco isolado, não havia telefone e somente haviasinal de celular de cima de um morro. Em seguida apareceu um rapazchamado Maurício, que nos levou de volta a Ibaiti para que eu pudesseser atendido. Deixamos as bicicletas e quase toda a bagagem no restau-rante e seguimos com ele. Em Ibaiti fui atendido no pronto socorro. Fizradiografias e o médico que estava de plantão concluiu que não haviafraturas, tanto na perna, como no cotovelo e punho.

Voltamos para casa de ônibus. Totalmente frustrante para mim.Sair de casa para viajar pelo menos oito meses e voltar no segundo dia foidevastador.

 No meu pensamento tudo era transitório. Não tinha outro obje-tivo naquele momento. Eu voltaria. Apenas não sabia quando, mas tudoseria uma questão de tempo para mim.

Dois dias depois, já em casa, ainda sentia fortes dores no braçoesquerdo. Não entendia o que estava acontecendo. Não tinha posição boa

 para me acomodar. Estava inchado e dolorido. Foi então que resolvi ir ameu médico de confiança, o Dr. Antônio Tavares, que já havia cuidadodo meu joelho no passado. Ele me atendeu com atenção especial e assimque olhou a radiografia me disse:

 – Seu braço está doendo porque está quebrado! – Agora sim isso faz sentido! – brinquei.Agora sabia a causa da dor e podia ficar mais tranquilo. Sabia

que tudo era mesmo uma questão de tempo e o médico me tranquilizou

ainda mais, dizendo que não precisaria de cirurgia alguma. Apenas 28dias de imobilização. Fraturei o punho a poucos milímetros da articu-lação. Se tivesse fraturado a articulação, talvez fosse preciso abandonar o projeto da viagem, pelo menos neste ano. Escrevi em minha página nainternet o que tinha ocorrido comigo, deixando muito claro o meu retornoassim que possível:

Ontem, 8 de setembro, segundo dia dos 250 dias previstos da minhaviagem, sofri uma queda um pouco feia , às 14h, nas proximidades da cidade de

Ventania/PR, cerca de 160 quilômetros de Ourinhos. Após almoço e descansonuma lanchonete à beira da estrada saímos e cerca de um quilômetro adiante

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numa forte ladeira me distraí por um segundo e o degrau do acostamento mederrubou. Eu estava a uns 50 km/h e uma queda nesta velocidade com todaaquela bagagem pode ser comparada a uma queda com uma moto pequena.

Tive ferimentos nas costas, lateral do quadril e tornozelo. Torci otornozelo esquerdo e bati forte meu joelho esquerdo.

 Fui atendido no pronto socorro de Ibaiti/PR e fiz raios-X do braço esquerdo que parecia fraturado, mas por sorte não houve fratura, apenas luxação no punho ecotovelo. Fui medicado e estou tomando remédios. Hoje vou consultar meumédico pra ter uma segunda opinião. O braço não foi imobilizado.

Quando caí, Martinho, que estava à minha frente, não me viu e foiavisado por caminhoneiros um quilômetro depois. Fiquei sentado esperando socorro, pois estava com muitas dores. Logo em seguida parou um carro comduas pessoas e Martinho voltou. Levantaram a bike, que teve o aro traseiro bemdanificado e Martinho me ajudou a pôr de volta a bermuda e um dos tênis que

 foi arrancado. Nos levaram até a lanchonete e um rapaz chamado Maurício que pas- sava de carro nos levou até Ibaiti para atendimento médico cerca de 1h30mindepois, pois o resgate demorou.

 As bikes e a maior parte da bagagem ficaram na lanchonete e hoje, dia9, Martinho vai buscá-las de carro.

 Minha perna “acordou” bem hoje e teoricamente já pode pedalar, maso braço pode demorar de três a cinco semanas. A partir da semana que vem vouiniciar um treino para as pernas numa academia para não perder o condi-

cionamento. Assim que estiver recuperado sairei, de Ourinhos novamente edesta vez pra fazer certo. Este foi o primeiro acidente sério causado por imperfeições no acosta-

mento em mais de um ano e quase 7000 quilômetros pedalados.Sempre tiro coisas boas dos

acon-tecimentos: não bati a cabeça e caí  perto de casa. E algumas lições: nãocorrer tanto nas descidas com bagagem etomar mais cuidado com as imperfeições

do acostamento. Lições aprendidas nahora certa. Pretendo reiniciar assim quetiver condições. Com mais cuidado e maisdevagar. Como diz o personagem principal do filme "À procura da felicidade": Esta parte da minha vidachama-se "aprendizado".

Obrigado a todos!

Thiago - 09/09/2008

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 Amigos,

 Fui ao meu ortopedista de confiança hoje e eleviu que realmente meu punho esquerdo está quebrado.Viu a fratura que o médico de Ibaiti não viu! O osso

rádio foi lascado na ponta. Ficarei com gesso 28 dias.Gostaria de dizer que o gesso vai ser deixado debicicleta no mesmo lugar que caí....Um obstáculo a maisou a menos não faz diferença.

Um abraço a todos!Thiago - 10/09/2008

Eu estava tenso e nervoso com a situação.Fui motivo de piada e sei que muita gente que nunca

sequer saiu da cidade me criticou duramente por ter retornado. Isso só medeixava com mais gana de continuar.

Minha maior preocupação era o tempo. Eu não tinha muito tem- po. Planejei a data da partida para que pudesse chegar ao extremo sul docontinente exatamente no verão. Se atrasasse demais iria ter grandes pro- blemas com frio e neve no sul. Iniciei treinos, pelo menos para as pernas,

numa academia. E assim se passaram os 28 dias de recuperação.

Renata

Durante as sete semanas que fiquei parado muita coisa passou pe-la minha cabeça. Acabei aceitando a situação e encarando somente comoum desafio a mais. Por outro lado sabia que teria que usar este tempo

 para decidir o que realmente queria fazer, ou seja, se seguiria adiante commeus planos. Durante este período pensei muito na minha namoradaRenata que sempre foi fundamental. Ficamos três anos juntos e durante oúltimo ano – antes da viagem – ela sempre apoiou minhas ideias malucas.Aventureira como eu, já havíamos viajado muito de carro.

Quando comecei a planejar efetivamente a viagem pela Américado Sul, ela estava do meu lado mesmo sabendo que a viagem significariaficarmos separados por muito tempo e claro que isso nos deixava muitotristes e preocupados. Sem titubear continuou me apoiando e acho que

apesar do apoio verdadeiro, tinha uma esperança que eu desistisse da“loucura” pouco antes de começar.

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Ter o apoio dela e dos meus pais era o que me sustentava. Noinicio da ideia chegamos a pensar em viajar juntos e iniciamos um trei-namento, mas infelizmente não foi possível. Com alguns problemas res- piratórios logo percebemos que seria muito difícil para ela.

Durante o treinamento deixava de passar os domingos com ela para sair de bicicleta pelas estradas. Não era fácil. E quando voltavatotalmente desgastado, dormia... Claro que isso, aos poucos foi deixandoa relação um pouco complicada. Mas o que eu podia fazer? Não tinhaoutra alternativa.

Uns dias antes da minha partida ela organizou uma festa surpresacom vários de nossos amigos. Fizeram cartazes me desejando boa sorte eestavam todos lá, foi realmente muito emocionante e especial. Nestemomento, mais uma vez, senti que minha ideia já havia saído do ima-

ginário e afetava diretamente as outras pessoas. Era praticamente um ponto sem retorno. E foi durante a minha recuperação que decidimos ter-minar nosso relacionamento, seria melhor para ambos. Não era justoficarmos assim como estávamos. Teria que deixá-la livre para poder ter minha liberdade também. Foi melhor assim.

A recuperação

Os 28 dias seguintes foram duros. Via a cada dia o condicio-namento físico adquirido durante o último ano todo ir embora como senão fosse nada. Assim que retirei o gesso, iniciei a fisioterapia. Banhoscom água quente, massagem, exercícios com a mão e muita paciência. Os braços são fundamentais para o ciclista, embora isso não seja óbvio.Precisava me recuperar para poder voltar a pedalar, ainda que minhas pernas já estivessem em perfeitas condições.

Estava muito mal, além da fratura, tinha a luxação do meu coto-velo e isso me incomodava mais que a própria fratura no pulso, maslentamente fui me recuperando. Entre a fisioterapia e o tempo ocioso atéminha nova partida, tratei de consertar a bicicleta. Tive que trocar o arotraseiro que ficou parcialmente destruído na queda e repensei muita coisa.Principalmente em relação à quantidade de bagagem que estava levando.Teria que reduzir e melhorar de alguma forma a estabilidade da bicicleta.Como estava, não poderia seguir.

Reduzi minha bagagem quase pela metade. Retirei tudo o quenão era extremamente necessário, isso incluía os alforjes dianteiros emuito do meu equipamento de fotografia e vídeo. Também fiz um reforço

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no bagageiro traseiro para que ficasse mais rígido e mudei a forma decolocar a bolsa de guidão para que ficasse mais baixa e balançassemenos. Todas estas mudanças deixaram a bicicleta muito mais estável.

Estava recuperado e apenas cinco semanas depois da fraturavoltei a pedalar, ainda com dores e uma proteção no pulso. Fui até a ci-dade de Jacarezinho/PR, cerca de 25 quilômetros – desde minha casa – deOurinhos. Fui e voltei com dores, muito calor, furo no pneu e chuva.

Estava pronto novamente. Pronto e feliz de estar vivendo estascoisas de novo. Em mais duas semanas eu estaria pronto para “cair” denovo na estrada. Em meu diário na web, falei um pouco sobre essa ex- periência:

Ontem, 8 de outubro, um mês após minha queda, retirei o gesso. Se eu

 fosse dar uma nota de zero a 10 para o estado do meu braço seria assim: nahora que caí, -1; com o gesso, zero; e agora eu daria nota 4 para ele. Não estáquebrado, mas não serve para quase nada! O médico disse que em dez diasestarei fazendo todos os movimentos. Quando eu conseguir me apoiar com obraço esticado será hora de pegar a estrada novamente. Devo sair do mesmolugar que caí. Após pensar um pouco achei essa uma boa ideia já que o trechode quase 160 quilômetros até lá já foi feito. Assim o Martinho ganha mais doisdias de pedalada e pode ir mais longe também.

 Devo iniciar com alguma proteção para o punho. Não tenho tempo pra

esperar estar 100% já que o verão está chegando e depois do Natal começa acorrida contra o sol, pois os dias vão se encurtando novamente.Quem já se quebrou, sabe como é. Levaria mais de 60 dias até ficar 

 perfeito. Pretendo sair com 45 dias contados a partir do dia do tombo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008, 16h31min

Conversando com alguns ciclistas experientes e descrevendo meu tom-

bo, cheguei à conclusão que, provavelmente, quebrei o braço esquerdo antesmesmo de cair no chão. Quando caí não haviam marcas de pancada e minhamão estava limpa, não tocou o chão, assim como o braço todo. Acho que que-brei o punho quando o guidão girou e voei por cima dele. Deve ter torcido meubraço. Isso explica também a luxação no cotovelo.

 Finalmente voltei a pedalar! Quarenta e três dias depois de bater de frente com a Lei de Murphy numa curva e fraturar meu braço no segundo dia daviagem, finalmente consegui pedalar... Queria ir até Santo Antônio da Platina,que daria uns 98 km ida e volta, mas meu pneu furou em Jacarezinho, em frente

a um borracheiro, então deixei ele remendar pra mim... resolvi voltar dali porque não daria tempo de chegar e voltar de dia. Foram 52km. Não é nada,

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mas pra quem quebrou o braço não ta tão ruim. Tá doendo muito, mas dá praaguentar.

Dois de novembro de 2008 – Um difícil recomeço

“Quando a hora chegar eles dirão coisas vazias, não ouça! Eles proclamarão os flagelosda vida, mas tudo isso se dissolverá no ar quando você começar a suar. O tempo seencarregará dos que ficaram a imaginar as possibilidades. Enquanto eles sonham, vocêdispara. Não pare! Ao partir, você descobre que tudo aquilo que sempre disseram sobreo mundo estava errado. Quando é você que está lá tudo ganha um olhar novo. Qualquer 

 sonho sem um passo é só um delírio, mas se você der o primeiro, já não precisa sonhar.”

 Renato Cabral, Adriano Fernandese Leonardo de Agostini (Cicloturistas)

Dia 3, 269 km pedalados

Castro, Paraná, Brasil

Considero este dia como a verdadeira data de início da viagem.Apesar de não estar tão bem fisicamente quanto estava da primeira vez, acabeça estava um pouco mais preparada. Cinquenta e seis dias haviam se

 passado desde meu acidente.Como sair no dia da independência do Brasil não funcionou,

desta vez sairíamos no dia de finados! Claro que a data foi meramenteuma coincidência. Decidimos recomeçar exatamente do ponto onde para-mos, ou seja, do restaurante “Favo de Mel”. Preciosismo ou não, nãoimporta. O fato é que eu não queria pedalar de novo o que já havia cru-zado. Meu pai e o Eduardo, pai de Renata, nos levaram até o lugar ondeme acidentei. Neste momento deixei um presente para a estrada que me

derrubou. O gesso ficou exatamente no lugar que cai. Não precisava maisdele e estava preparado para esquecer este acidente.Agora tínhamos a companhia de outro amigo chamado Armando,

que nos acompanharia por 600 quilômetros até a cidade de Florianópolis.Tinha vencido o primeiro grande desafio físico e mental da

viagem. Já esperava pelos próximos. As alterações que fiz na bagagem ena bicicleta deram resultado. Estava mais leve e muito mais fácil de lidar.

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Durante os treinos useiuma bicicleta antiga que tinha.Uma mountain bike convencional.

Dois meses antes daviagem e depois de algumas –  poucas, é verdade – tentativas de patrocínio junto a algunsfabricantes, resolvi comprar umanova. Optei por uma mountain bike Sundown de fabricação brasileira,

com quadro de alumínio, suspensão dianteira e componentes ShimanoDeore LX super resistentes. Não queria ter surpresas desagradáveis nocaminho. Uma bike intermediária é suficiente. Às vezes quando digo que

fui com uma Sundown as pessoas me dizem: “Nossa, uma Sundown!?”.Mas o fato é que comparada com bikes importadas da mesma faixa de preço, esta opção oferecia componentes – câmbio e outros acessórios – muito superiores. Escolhi o quadro de alumínio, pois queria uma bicicletaleve. Afinal de contas, a diferença de peso eu poderia levar a mais em bagagem. Sou leve, peso 60 kg e já saio em vantagem sobre a maioria dosciclistas, pois exerço menos estresse sobre a bicicleta. O alumínio seriaresistente o suficiente. Somente estaria em maus lençóis se o quadro

recebesse um impacto muito forte e se rompesse. Neste caso, soldar oalumínio em qualquer lugar seria impossível. Junto com a bicicletacomprei algumas ferramentas básicas, um pneu reserva dobrável dekevlar para ser meu estepe e uma corrente extra idêntica à da bike com aqual eu faria um rodízio a cada 1.500 ou 2.000 quilômetros, para ter sem- pre duas correntes em condições similares de uso.

 No terceiro dia corrido de viagem ainda tinha que lidar com asdores no pulso e o cotovelo que não esticava completamente. Além do

mais, a falta de condicionamento me deixava um pouco desconfortável,mesmo assim percorremos 109 quilômetros. A viagem estava me testan-do sem piedade. A retomada foi realmente dura. Ainda tinha milhares dedúvidas na minha cabeça.

Quando chegamos ao planalto paranaense estávamos pedalandoao redor de 1000 metros de altitude. O tempo virou e começou a chover.Choveu muito, esfriou bastante e ficamos molhados. Eu não estava com aroupa de proteção contra chuva, porque quando começou não fazia frio,mas depois, completamente ensopado senti muito a temperatura baixa e bastante frio.

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A chuva forte seguia, e num momento olhei ao lado da estrada evi um cachorro, sujo e doente, totalmente molhado e tremendo de frio. Não podia fazer nada para ajudá-lo, porque também estava numa situaçãodifícil. Não parei de pedalar. Seguia lentamente. Neste momento comeceia chorar e a pensar que talvez eu não tivesse forças para realizar o quequeria. Quanto mais chovia, mais eu chorava – acho que naquelemomento, eu estava precisando daquilo – e ainda estava no inicio daviagem, passando por tantos testes! Realmente, neste momento pensei emdesistir. Foi um dos poucos momentos que cheguei a cogitar esta possibilidade. Olhava a rodovia e pensava que ainda teria todo umcontinente para cruzar! Parecia pretensão demais!

Estava muito assustado, mas aos poucos fui percebendo que ostestes passam e tudo termina. No final tudo se tranquiliza e tudo que eu

tinha a fazer era simplesmente seguir e manter a calma.Fizemos uma parada num pequeno restaurante à beira da estrada

e quando paramos tivemos a constatação que realmente estávamos emmás condições. Faltou muito pouco para ficarmos hipotérmicos. Tremiacompulsivamente de uma maneira que quase me impedia de realizar coisas simples. Minhas mãos estavam geladas e as unhas e lábioscompletamente roxos. O Martinho não estava melhor. Nos secamos comofoi possível e tomamos um café bem quente. Logo sem seguida a chuva

diminuiu muito e foi possível seguir. Foi até um pouco irônico, pois foium dos dias em que senti mais frio em toda a viagem. Ainda perto decasa e cruzando o “cálido” Brasil subtropical. No final deste diachegamos à cidade de Castro. Novamente não quisemos perder muitotempo buscando um lugar para dormir e fomos direto a um hotel.

Armando já havia desaparecido. Viajando quase sem bagagem,ele não conseguiu permanecer no mesmo ritmo que eu e o Martinho.Assim que chegamos a Castro tentamos localizá-lo, mas foi em vão.

Fiquei preocupado, pois meu saco de dormir estava com ele. No dia seguinte tive meu primeiro furo no pneu. E foi um furoespetacular, com um prego enorme atravessando de um lado a outro.Trocar o pneu ainda sem muita experiência, com aquele calor e comMartinho falando o tempo todo não foi uma tarefa das mais simples. Essefoi o primeiro de muitos furos.

Mais um dia de pedalada se foi. Acampamos pela primeira vezatrás de uma base operacional dos funcionários da rodovia.

Minutos antes, havíamos feito uma parada no posto de combus-tíveis que ficava bem ao lado da base dos bombeiros e embora o planofosse seguir mais um pouco, Martinho percebeu que eu estava cansado.

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Foi um dia em que não me senti bem o tempo todo. Minhas pernas não estavam no seu melhor desempenho. Martinho respeitou to-talmente minha condição.

Jantamos no restaurante do posto e pudemos tomar uma duchatambém, mas mesmo havendo hospedagens ali, escolhemos acampar.

Compartilhar a barraca pequena com o Martinho, que nunca foimuito esbelto, não foi fácil. Mas, no fundo, eu estava tentando desfrutar cada minuto com ele, pois sabia que seguiria somente mais uns diascomigo. Martinho também estava muito envolvido com o sonho da

viagem e visivelmente triste em não poder seguir toda a viagem.

Acampar é sempre divertido,além do mais, o pessoal da base nos

convidou para tomar um cafezinho e jogar um pouco de conversa fora. Foimuito agradável.

Chegamos em Curitiba no fi-nal do quinto dia e fomos procurar acasa de uma amiga do Martinho, cha-

mada Andrea, que acabou nos hospedando por uma noite o que foi muito bom. Fomos muito bem recebidos.

Andar de bicicleta em Curitiba é uma aventura perigosa como emtoda cidade grande. Há muitas ciclovias nas ruas principais, mas sãoirregulares e cheias de obstáculos (pelo menos as que conheci). Aindasim, Curitiba é uma das cidades onde me senti mais seguro.

Visitamos alguns pontos turísticos como a Ópera de Arame e oJardim Botânico. No dia seguinte fomos até a cidade de Colombo, quefaz parte da grande Curitiba para passar uma noite na casa dos tios doMartinho, Saleme e Cármen, que nos receberam de braços abertos.

 No caminho a Colombo pudemos relembrar a viagem de sete diasque fizemos sete meses antes. Pedalamos novamente um pequeno trecho pela movimentada BR 116. Nesse trecho da viagem encontrei e converseicom várias pessoas sobre o projeto e quando detalhava o pretendido,sentia que na maioria das vezes não me davam muito crédito. De fato, àsvezes, nem eu mesmo acreditava muito.

A próxima grande aventura seria descer a serra do mar até acidade de Joinville, já encostada no mar.

Diferentemente da viagem de fevereiro, quando optamos descer  pela belíssima e tranquila estrada da Graciosa, desta vez escolhemos a perigosa e movimentadas BR 376 e BR 101, pois queríamos velocidade e

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um caminho mais curto para tentar chegar até Joinville ainda neste dia, pois não era muito perto. Deu tudo certo. Percorremos 150 quilômetros ea descida ajudou.

O caminho foi perigoso, pois é necessário dividir a rodovia comcaminhões enormes, às vezes com pouco ou quase nenhum acostamento.Em alguns momentos passamos apuros. Lembro-me de um momento quetive de ter muito sangue frio. Enquanto ultrapassava um caminhão nadescida veio outro enorme por trás de mim. Tive que manter a calma,encostar devagar no canteiro central e dar espaço para o “monstro”. Nadescida é quase impossível frear uma coisa tão grande, haja visto quemuitas vezes são caminhões carregados, neste caso a responsabilidade étoda do ciclista. É comum ultrapassar caminhões em situações assim, poiseles normalmente descem a serra lentamente. Mesmo assim, às vezes a

 bicicleta chega a velocidades muito perigosas muito rapidamente e temosque nos policiar o tempo todo quanto a isto.

Chegamos em Joinville são e salvos, apesar das altas doses deadrenalina – este dia foi um dos poucos que fiz 150 quilômetros numúnico dia na viagem. Quilometragens assim são um pouco demais para omeu tipo de ciclismo.

Ainda meio perdidos na chegada paramos para comer algumacoisa e logo conhecemos uma moça que nos passou seu telefone e disse

que poderíamos acampar no seu quintal, mas acabamos dormindo numhotel, pois estávamos precisando de um pouco de conforto. Confesso queainda me sentia um pouco preguiçoso em buscar lugares grátis paradormir.

Ficar no hotel em Joinville foi muito bom, pois conhecemosmuita gente bacana e recebemos a visita de um velho amigo do Martinhochamado Marquesani, que trabalha como professor de dança na cidade.

Quando estávamos num lugar assim, com bastante gente, até ten-

távamos não beber cerveja e dormir cedo, mas confesso que nunca con-segui ter muita disciplina durante toda a viagem.

Santa Catarina

Teríamos pela frente o magnífico litoral norte de Santa Catarina.Uma região linda que já havia visitado inúmeras vezes de carro e umavez de bicicleta, quando fizemos uma viagem “teste” por esse litoral esendo teste, seguimos por caminhos secundários, muitas vezes sem pavimento, mas desta vez seguiríamos pela BR 101, a principal rodovia

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do litoral sul. Obviamente, seguir pela BR não seria tão emocionantequanto foi o caminho alternativo que fizemos antes, pois na ocasião, passamos e visitamos praticamente todas as praias que haviam pelocaminho, porém a decisão de pedalar pela estrada principal agilizariamuito nossa viagem.

O verão nesta região é exuberante. Praias e mais praias limpas – exceto poucos lugares – e lindas... O litoral Catarinense sempre foi o meufavorito e ter a oportunidade de percorrê-lo novamente era espetacular.Estávamos muito animados.

Durante este trecho, em alguns momentos, cheguei a entrar emconflito com o Martinho. Apesar de nos conhecermos há muito tempo arealidade do dia-a-dia na estrada às vezes nos deixava muito suscetíveis adiscussões sem sentido. Muitas vezes Martinho tinha uma postura de pai

comigo e isso me irritava profundamente. Eu não estava aberto a seguir muitas regras. Nunca é muito fácil estar com alguém numa viagem assim.A personalidade aflora em situações de estresse e a paciência realmentese torna uma grande virtude – eu diria vital.

Durante o caminho pelo litoral catarinense comecei a sentir doresno joelho direito e pouco antes de chegarmos à linda e agitada cidade deCamboriú lutamos contra um vento persistente que vinha de encontro enesta hora senti muitas dores. Quando caí havia golpeado o outro joelho e

essa dor estava me deixando um pouco preocupado e confuso, pois nãosabia a causa.Chegamos a Camboriú e fomos direto à orla. Fizemos umas fotos

na praia e Martinho telefonou para nossa amiga Denise. Logo “desco-lamos” um lugar muito bacana para ficar. Ela nos emprestou seuapartamento para passarmos a noite.

Resolvi ficar duas noites na cidade para dar tempo de recu- peração ao meu joelho que doía um pouco e também por já ter visitado

inúmeras vezes este lugar maravilhoso, de onde tenho boas lembranças.Gosto muito do agito noturno e do ambiente multicultural. Movimentado,mas sem estresse.

 Num dia comum da temporada de verão o idioma que se fala nacidade muda para o espanhol, claro que não oficialmente, mas somente seouve espanhol pelas ruas. A quantidade de turistas argentinos é enorme.

Curtíssima estada desta vez e já pé na estrada, ou melhor, pé no pedal e para isso, antes de saírmos da cidade, fizemos uma parada numa bicicletaria. O dono, ao ver minha bolsa de guidão da marca Ararauna medisse: “Ah, eu conheço o Rodrigo e a Eliana – donos da empresa –, os

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encontrei faz pouco tempo, “tá” tendo um encontro de cicloturismo aquina região esta semana”. Pensei: “Poxa, que mundinho pequeno mesmo”.

Eliana e Rodrigo me ajudaram muitodurante os preparativos para a viagemvendendo seus equipamentos praticamente a preço de custo. Foi uma pena estarmos desaída. Seria interessante visitar um eventoassim, mas tudo que queríamos era seguir atéFloripa – nome carinhoso dado a Florianópolis.Acredito eu que conhecido por todo o Brasil,ou quase todo. Nosso próximo destino.

Dia 11, 834 km pedalados

Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

 No caminho a Floripa, visitamos muitas outras cidades litorâneas,sempre visitando belas praias.

Meu joelho seguia doendo demais! Estava se tornando uma situa-ção muito complicada de suportar e a chegada em Floripa não foi fácil.

Mesmo antes de chegar, ainda no caminho, senti dores terríveis. Em al-guns momentos simplesmente não era possível pedalar e tinha que parar alguns minutos para poder seguir mais alguns metros. Era como se algoestivesse machucando meu joelho por dentro. A sensação era de umaarticulação seca por dentro. Para piorar nossa situação estava chovendomuito. O desânimo da dor somado à chuva, estava se tornando um obs-táculo gigantesco, mas Martinho mostrou-se muito paciente e preocupadocomigo.

Dia ruim, tive a minha corrente arrebentada e o mais surpre-endente é que aconteceu numa situação normal de pedalada, quase semesforço algum. Por sorte foi bem ao lado de uma bicicletaria e neste casoeu não quis sujar as minhas mãos, além de não ter experiência na troca oumanutenção de correntes. Decidi deixar para aprender a prática quandoarrebentasse num lugar mais isolado. A teoria eu sabia bem e tinha aferramenta adequada.

Continuei muito preocupado com as dores e cheguei a comentar com Martinho que estava pensando em voltar para fazer algum trata-mento médico. Não entendia a dor e milhares de coisas passavam pela

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minha cabeça, inclusive se realmente eu era capaz de realizar a viagemcompleta. Cheguei literalmente me arrastando em Florianópolis.

Passamos no batalhão dos bombeiros, no centro da cidade, pois oArmando havia deixado meu saco de dormir por lá. Sua pressa semexplicação o impediu de aproveitar a viagem acompanhado de Martinho eeu.

A chuva seguia e decidimos ir logo à rodoviária, pois Martinho jáqueria pesquisar os horários de ônibus de volta a Ourinhos. Não faziamuito sentido para ele ficar mais tempo na cidade. Estava muito preo-cupado com seus filhos e sua empresa. Ficou muito claro para nós que aviagem seria mesmo inviável para ele.

Assim que Martinho comprou sua passagem de volta, nos des- pedimos e o deixei na rodoviária Eu tinha que procurar um amigo ainda

antes que ficasse muito tarde. Deste momento em diante eu teria queenfrentar o mundo sozinho.

Meu caminho agora seria desconhecido. Nunca tinha viajado ma-is para o sul além de Floripa. O desconhecimento me causava medo, mastambém excitação.

Telefonei para meu amigo e ex-aluno Eugênio, pedalei à noite atéo campus da Universidade Federal de Santa Catarina, onde ele estudava eestaria com seus amigos e até lá foram 105 quilômetros percorridos,

mesmo contra dores, chuva e problemas com a bike, eu estava fisica-mente muito bem e me sentia profundamente orgulhoso.Ficamos num barzinho próximo ao campus tomando cerveja com

seus amigos e apesar de estar cansado, com dores e sujo, não estava preocupado com estas coisas e aparentemente ninguém estava preocu- pado com isso também. Estava feliz de ter chegado a Floripa e estar rodeado de gente bacana. Todos fazendo muitas perguntas sobre aviagem. Diziam que era incrível que eu tivesse chegado até ali de

 bicicleta.Segui com Eugênio até a república onde morava com mais cincoamigos. Todos me receberam muito bem e logo me senti em casa. Haviaum rapaz gaúcho, que me ofereceu chimarrão e acabei tomando gosto. Eu já tinha uma cuia que comprei na passagem por Camboriú, mas destemomento em diante tomava quase todos os dias. O mate amargo e quenteera uma boa companhia nos momentos de solidão na estrada.

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Eugênio, de boné branco, e seus amigos

 Neste local fui roubado pela primeira e única vez na viagem.Deixei meus tênis secando no quintal e desapareceram rapidamente!

Durante minha estada em Floripa pude descansar muito e princi- palmente tomar antiinflamatório para o joelho. Minhas dores desapare-ceram completamente e nunca mais – durante a viagem – voltei a sofrer com dores nos joelhos. Apesar da automedicação, cheguei à conclusãoque se tratava apenas uma tendinite. Certamente meu corpo ainda estavanum processo de adaptação, pois o dia-a-dia da viagem é completamentediferente de apenas treinar duas ou três vezes por semana. O ritmo naestrada é forte e muitas vezes o corpo demora um pouco a se adaptar.

Os três dias que fiquei parado foram fundamentais. Pude respirar um pouco e relaxar. Até ao cinema fui. Ficar com o pessoal da repúblicafoi maravilhoso. Especialmente rever Eugênio foi bastante interessante.Sempre foi um de meus alunos favoritos – quando ministrava aulas de“desenvolvimento web” em uma escola particular de Ourinhos, há cincoanos – que acabou tornando-se um amigo.

Havia chegado muito desanimado por conta das dores e saí deespírito renovado. Minha aventura estava apenas começando e eu podia

sentir isso.Ainda na ilha tinha um desejo de percorrê-la toda de bicicleta. Éum lugar cheio de praias lindas, mas a persistência das chuvas me fezdesistir desta ideia. Me parecia mais fácil me afastar da chuva de bicicletado que esperar que o tempo melhorasse. Teria sido muito interessanteficar uns três ou quatro dias desbravando-a, mesmo já conhecendo muito bem este lugar.

De Florianópolis em diante tudo seria uma grande descoberta.Seguir para o sul através de território totalmente desconhecido. Minhameta podia ser resumida em uma única palavra: sul. Estar na estradasozinho foi uma coisa nova para mim. Um sentimento de liberdade

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extrema e para minha surpresa, nada de medo! Começava sentir as amar-ras que ainda existiam ficarem cada vez mais frouxas e quanto mais longe para o sul eu seguia, mas me sentia realizando um grande sonho,despertando. Agora eu não precisava me preocupar com a segurança deninguém além de mim mesmo e nem se quer ter que tomar decisões emgrupo. Era minha hora e eu era senhor de mim. Não vou negar que minhasaída de Floripa, foi ainda “pisando em ovos”, ou seja, seguia com umcuidado quase exagerado por causa do joelho. Devagar e sem forçar, masdepois de algumas dezenas de quilômetros, quando a “máquina” es-quentou, ficou claro que as dores e o desconforto na articulação haviamdesaparecido completamente.

Cerca de 70 quilômetros através da caótica BR 101 – em obras deduplicação – cheguei a uma pequena cidade chamada Paulo Lopes. Ali,

me hospedei num hotel de caminhoneiros que ficava às margens da rodo-via. Enfim, depois de um dia de pedaladas, meu joelho estava funcio-nando perfeitamente. Estava radiante de felicidade e agora tinha certezaque nada iria atrapalhar meus ambiciosos planos.

Segui depois de perder o primeiro pneu por causa de um rasgoenorme. A chuva deu trégua logo que cheguei à praia de Imbituba depoisde mais 40 quilômetros.

O dia seguinte amanheceu lindíssimo. Creio que tenha sido o

 primeiro dia de sol realmente forte até então. Não havia sinal que pudessevir a chover e então fui à praia. Depois de centenas de quilômetros pelolitoral catarinense, era a primeira vez que aproveitava uma praia num diaensolarado.

Acabei ficando um dia todo em Imbituba. A praia estava feno-menal, mas confesso que me senti um pouco solitário. Ainda não sabiacomo lidar com o fato de estar sozinho.

Depois que sai de Imbituba, uns quinze quilômetros à frente,

cruzei com um viajante ciclo-turista. Seu nome era Leonardo Esch – de Novo Hamburgo, nas proximidades de Porto Alegre – muito gentil etranquilo, o “louco” Leonardo estava levando pelo menos três vezes mais bagagem que eu, inclusive tinha uma espécie de carretinha atrelada à sua bicicleta. Disse-me que seguia até Balneário Camboriú para o encontro

de cicloturismo. Depois de trocarmos umas“figurinhas” para seguir adiante ele me passou ocontato de um alemão, de quem eu poderia comprar  pneus alemães muito resistentes, em Porto Alegre.

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Litoral sul de Santa Catarina

Cheguei à cidade de Laguna. Parei num posto de combustíveis para pedir informações e abastecer minha garrafa de um litro com álcool – nos primeiros seis meses de viagem usei um fogareiro a álcool –, poisestava pensando em acampar, já que se tratava de uma cidade litorânea ecertamente haveria um camping .

Surpresa! Assim que completaram minha garrafa com álcool e perguntei o preço, me disseram que seria por conta deles. A bicicletasempre sensibiliza as pessoas, é impressionante!

Em alguns momentos da viagem o que mais me impressionavaera a situação das pessoas e dos animais. Algumas vezes me provocava profunda tristeza. Aqui foi a vez de uma cachorrinha filhote sentada à

margem da avenida – que fazia ligação com a rodovia. Estava quietinha,olhando para o nada. Gosto muito de cachorros e principalmente depoisque desci da bike e fiz contato com ela, não consegui deixá-la sozinha,ainda mais sabendo que tinha uma chance enorme de ser atropelada.Fiquei sentado ao lado dela por mais de 20 minutos. Não sabia o que fa-zer. Não havia como levá-la e realmente fiquei preocupado.

 Não acredito em destino ou coisas do gênero, mas logo em segui-da apareceu um senhor com um carrinho de mão. Perguntei se ele sabia

quem era o dono, se tinha um dono ou se ele poderia levá-la dali. Entãoele a pegou e colocou dentro do carrinho de mão e me disse que a levaria para um lugar seguro. Deste modo pude seguir tranquilo.

Entrei na cidade e pedi informações para um casal muito simpá-tico sobre campings. A resposta não foi o que esperava ouvir. Por estar fora da temporada de verão ainda não havia começado o funcionamentode nenhum. Decidi então buscar uma hospedagem.

Depois de rodar um pouco pela cidade e fazer umas fotos do mar,

encontrei um lugar muito atrativo: uma pousada. Como a temporadaainda não tinha começado consegui um preço muito especial. Era umacasa enorme, com cozinha, lavanderia, TV e café da manhã por apenasR$ 18,00. Obviamente um bom negócio, muito melhor que acampar por aí, ficar sem banho e ter que cozinhar em qualquer lugar.

Pedalei somente 40 quilômetros neste dia, mas estava bem cansa-do. Todo o tempo havia vento contra e isso me incomodou muito. Mas oque me deixava muito feliz era o fato de não estar mais com dores no joelho. Isso sim era um alívio.

 No dia seguinte, segui viagem através da estrada em construção.Em alguns momentos era necessário tomar muito cuidado, pois devido às

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obras na pista, havia pouco espaço para viajar com segurança, além deuma quantidade enorme de desvios e longos trechos sem acostamento, – o que se transformava num perigo em potencial –, o fluxo de caminhões éenorme. Por outro lado, em muitos momentos, tive longos trechos deasfalto novinho só para mim, pois ainda não haviam sido liberados para otráfego pesado. Durante minha passagem por um destes trechos meu pneutraseiro estourou. Rasgou bem próximo do aro e era impossível reapro-veitá-lo. Neste caso usei pela primeira vez meu estepe.

A única coisa que me atrapalhava um pouco era a chuva. Quasetodos os dias choveu em Santa Catarina. Na verdade estas chuvas eramapenas o início de uma catástrofe climática que se desenrolava no litoraldo Estado todo. Até que tive sorte e passei ainda no início delas. O finalde 2008 foi duro para a população Catarinense, registrado na história e na

memória como um dos seus piores verões. No início da viagem eu ainda não me sentia tão à vontade para

acampar em qualquer lugar, fui bem receoso em relação a este assunto.Por muitas vezes acabei me hospedando em pequenas pousadas usadas por caminhoneiros. Em uma destas ocasiões, depois de pedalar 90 quilô-metros, parei num posto de combustíveis perto da cidade de Criciúma, nosul de Santa Catarina. Minha ideia inicial era seguir até a cidade, mas ficalocalizada um pouco distante da BR 101 – talvez uns 15 quilômetros – e

seria perda de tempo seguir até lá, embora quisesse conhecer o lugar. No posto fui logo me alimentar e comer numa churrascaria depo-is dos quilômetros percorridos é uma das melhores coisas e mais prazero-sas que alguém pode fazer. Estava celebrando também os mais de 1000 primeiros quilômetros pedalados. Até então, minha média geral – contando os dias parados – era de quase 60 quilômetros por dia, o que pode parecer pouco, mas na verdade não estava dando atenção para estasestatísticas e só pensava em seguir e desfrutar cada momento.

Enquanto comia pedi informações sobre a hospedagem que haviaali. Estas hospedagens feitas para caminhoneiros são uma boa pedida, pois são mais baratas que hotéis convencionais. Não são luxuosas, mas só precisava de uma cama e uma ducha.

Pouco antes de subir minha bagagem para o quarto, um ciclistame chamou atenção. Era um senhor com uma bicicleta embaixo de uma árvore. Aproximei-me para conversar e fiquei surpreso. Viajavacom sua “magrela” levando dois cachorros,que não eram muito pequenos! Os levavaenrolados num lençol, como uma pequena

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trouxa improvisada.Simples e muito simpático me disse que estava viajando pelo

Brasil e até ofereceu-me comida. Não tinha muitos recursos certamente,mas mesmo assim fazia questão de cuidar destes dois cães que encontrou pelo caminho. Convidou-me para acampar ali, mas eu não achei o lugar muito seguro, pois era muito movimentado. No mesmo lugar haviam doisgaúchos de Porto Alegre, que tinham chegado até ali a pé! Os dois“coitados” estavam com os pés horríveis, cheios de bolhas. Obviamentenão eram turistas. Isso sim é loucura! Despedi-me deles e subi para meuquarto.

Enquanto tomava meu chimarrão, olhava pela janela e via aquelesenhor debaixo da árvore com seus cães. Ele tratava os cães com todocarinho e cuidado. Isso me impressionou bastante.

Mais tarde começou a chover e passei boa parte da noite ima-ginando como estaria a noite daquele homem. Pela manhã a chuva játinha parado e o senhor e seus cães haviam desaparecido. Escrevi um pouco no blog :

 segunda-feira, 17 de novembro de 2008

 Hoje eu acordei mais cedo / Tomei sozinho o chimarrão / Procurei a

noite na memória / Procurei em vão / Hoje eu acordei mais leve / Nem li o jornal / Tudo deve estar suspenso / Nada deve pesar / Já vivi tanta coisa / Tenhotantas a viver / Tô no meio da ESTRADA / E nenhuma derrota vai me vencer /  Hoje eu acordei livre / Não devo nada a ninguém! / Não ha nada que me prenda AQUI / Ainda era noite / Esperei o dia amanhecer / Como quem aquece a água / Sem deixar ferver / Hoje eu acordei / Agora eu sei, viver no escuro / Até que achama se acenda / Verde quente erva dentro ventre entranhas / Mate amargo,noite a dentro / Estrada estranha

 Ilex paraguariensis (Engenheiros do Hawaii)Obs: Este é o nome científico da erva mate e escrevi a letra de cabeça...

Era hora de seguir. Meu destino agora era a divisa com o RioGrande do Sul. Só pensava nisso. Estava ansioso por visitar um estadoque ainda não conhecia.

O vento seguia contra, mas agora que não tinha mais dores, nem

me importava com o vento. Seguia determinado e sempre olhando a di-visa gaúcha se aproximando no mapa do GPS.

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 No caminho, parei numa gruta. Era um local cheio de imagens desantos e visitantes. Assim que desci da bicicleta uma senhora veio falar comigo. Vera. Perguntou o que eu estava fazendo e logo em seguidadisse: “Olha, gostei de você. Toma aqui o número da minha casa emPorto Alegre. Me liga quando chegar. Meu filho vai adorar ter um aven-tureiro hospedado em casa”. Nem soube como agradecer direito. “Isso émuito bom”, pensei.

Três jovens que estavam num carro próximo, ouviram a história etambém se aproximaram. Para variar fizeram um monte de perguntas e eucomeçava a encurtar as respostas. Aos poucos, responder sempre asmesmas questões estava começando a me cansar e, em vez de dizer queestava pretendendo dar praticamente uma volta na América do Sul, passeia dizer que estava indo até Porto Alegre! Mesmo assim, algumas pessoas

ficavam muito entusiasmadas com a viagem e às vezes pediam-me paratirar uma foto com elas. Claro que quando isso acontecia, eu era forçadoa contar a versão longa da história.

Pouco antes de chegar à cidade de Passo de Torres, já no extremosul do Estado, uma  pick-up parou na minha frente e o motorista meofereceu carona. Confesso que achei um pouco suspeita sua abordagem ealém do mais não queria. Mesmo sabendo que o dia estava terminando,uma carona não fazia parte dos meus planos. De qualquer forma, já

estava próximo e mesmo cansado, estava vivendo um dos melhores diasda viagem até então.Passo de Torres é o município mais ao sul no estado de Santa

Catarina e tem cerca de 6.000 habitantes. Faz fronteira com o estado doRio Grande do Sul, onde imediatamente após o rio Mampituba, já seencontra a cidade gaúcha de Torres. Assim que cheguei fui logo à divisade estados de onde se pode ver as duas cidades. Torres é uma cidadegrande e optei pela hospedagem em Passo de Torres, pois poderia

encontrar opções mais baratas. Segui o rio Mampituba até sua foz. Estelugar é muito especial, pois existem dois faróis sinalizando sua foz. O primeiro fica nos últimos metros de Santa Catarina e o outro nos primeiros metros do Rio Grande do Sul. Uns 100 metros dali encontreiuma pousada e um restaurante. O preço era bom e as instalações bemsimples, mas estava de bom tamanho, já que planejava seguir no diaseguinte. Nesta noite comi algo por ali mesmo e fui ao mercado repor alguns itens alimentícios na minha “despensa”. Também visitei – a pé – Torres e suas praias. Caminhei vários quilômetros por essa bonita cidade.As ruas ainda tranquilas, pois a temporada de verão ainda não haviacomeçado. O sol estava fortíssimo, mas não pude aproveitar muito bem a

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 praia por causa do vento.Durante a noite começou a chover e não parou mais. Chovia e

fazia muito frio, embora já fosse final de novembro. Pela manhã a chuvacontinuava e não tive coragem de enfrentá-la. Resolvi ficar abrigado eesperar passar.

Mas que nada de chuva parar e continuou chovendo forte e frio por dois dias. Acabei ficando preso dentro de um quarto minúsculo semdistração alguma. Não foi tão ruim assim. Pude descansar e aproveitei para lavar umas peças de roupa. O “hotel” tinha uma diária de R$ 12,00,então ficar mais não era um grande problema.

 Nesta estadia perdi duas cuecas. Deixei secando na janela e quan-do percebi o vento havia levado. Foi uma situação muito engraçada, emque acabei fazendo malabarismos no telhado do lugar para resgatar uma

 pelo menos. Para quem carrega uma quantidade mínima de peças de rou- pa, perder qualquer coisa se transforma numgrande problema.

Em Passo de Torres resolvi provar ofamoso “Xis” – escrito assim mesmo – que secome nesta região. É um sanduíche enorme,que de tão grande é servido no prato e não temnada em comum com os lanches que eu estou

habituado a comer.Comi no “Xis do Zeca” e acabei fa-zendo amizade com os donos do local. Zeca, Débora e sua filhinhaYasmin foram muito carinhosos comigo e adoraram ouvir minhas histó-rias da viagem.

O último dia em Passo de Torres, 21º da viagem foi em 20 denovembro – meu aniversário de 29 anos. Infelizmente passei meu ani-versário sozinho dentro do quarto do hotel enquanto chovia lá fora.

 Neste dia eu também resolvi parar de tomar o antiinflamatório para o joelho.

As terras gaúchas

Depois da chuva, a bonança: veio o sol e foi a deixa para seguir.Cruzei a ponte que liga Passo de Torres a Torres e entrei ao Estado doRio Grande do Sul. Abandonei a movimentada BR 101 e resolvi seguir  pela rota costeira, a tranquila RS-389.

 No caminho fiz uma parada num posto de combustíveis porque

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voltou a chover forte. Um casal de Porto Alegre parou o carro e veio falar comigo. Na mesma hora Ligia e Sandro passaram seus telefones e dis-seram que eu poderia ficar hospedado em sua casa sem problema algum.Lígia disse: “Olha, eu sou uma bruxa, de verdade! Se você não tiver medo de bruxa pode ficar lá em casa”. O pior é que ela era bruxa mesmoe até me deu seu cartão de visitas!

Tinha contatos de três pessoas em Porto Alegre. Isso me davauma segurança tremenda, pois se trata de uma cidade grande e movi-mentada. Estava propenso a ficar na casa de Lígia e Sandro se fosse aPorto Alegre. Gostei muito deles e como conversamos bastante, deu parasaber como são.

Mais 65 quilômetros cheguei à cidade costeira de Capão da Ca-noa e desta vez acampei na praia. Não havia ninguém, pois o tempo esta-

va fechado, então achei que pudesse ser bem seguro e realmente passeiuma noite bem tranquila. Na saída da cidade, parei numa loja qualquer  para pedir informação sobre a rodovia que seguia até a cidade de Osório,caminho de Porto Alegre, e logo uma roda de gente se formou ao meuredor. Neste momento pude provar um pouco da simpatia gaúcha.Enquanto garoava um pouco, ficamos jogando conversa fora por mais deuma hora. Diziam-me: “Tu vieste de São Paulo até aqui de bici? Tálouco!”.

E agora? Precisava tomar uma decisão importante: se seguisse atéPorto Alegre, iria me afastar mais de 100 quilômetros do litoral e gastariamais quatro dias no mínimo, para ir e voltar; se seguisse direto pela rotalitorânea ganharia tempo e em breve estaria saindo do país, porém nãoconheceria Porto Alegre. Pensei um pouco e tomei rumo a capital gaúcha, pois fazia parte dos meus planos há muito tempo. Outra coisa que pesou afavor foi o fato de ter vários contatos na cidade.

Depois de Capão da Canoa passei por Xangri-Lá e segui para

Osório. No caminho pude ver uma usina eólica. Esta região é conhecida por seus constantes fortes ventos. Realmente fiquei impressionado naentrada de Osório, quando o vento me empurrava fortemente. Na praçacentral da cidade havia um monumento onde estava escrito: “Osório,capital nacional dos ventos”. Eu não duvido nem um pouco depois do quevi. É até engraçado, pois em alguns momentos fica difícil andar na rua. Ovento é incrível.

Passei a noite numa pousada perto de um posto de combustíveis já na saída de Osório. No dia seguinte segui para o oeste, em direção aPorto Alegre através da BR 290, também conhecida como Freeway.

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Dia 24, 1.322 km pedalados

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Lígia e Sandro

Pela Freeway o vento a favor – e forte – me fez companhia todoo tempo. Por esse motivo, este trecho ficou marcado como recorde develocidade. Fiz os 108 quilômetros, saindo do posto nas proximidades deOsório até o centro de Porto Alegre em apenas 3 horas e 50 minutos.Tempo que me deu a mais alta velocidade média de toda a viagem, maisde 28 quilômetros por hora. Foi realmente incrível. Estou dizendo que avelocidade média foi de 28 quilômetros por hora! A máxima às vezes passava dos 45 e num caminho totalmente plano. A rodovia é perfeita.

Duplicada e com asfalto impecável em três pistas para cada lado.Quando passei por Gravataí, minha água acabou. Infelizmente

não existem muitos postos de combustíveis nesta rodovia e tive que sair uns quatro quilômetros até encontrar um posto, já na cidade.

Sair da rodovia não foi uma boa ideia, pois acabou quebrandomeu ritmo e o calor estava fortíssimo. Nessas horas uma coca-cola geladacai muito bem e foi exatamente o que fiz. Sei que não é a melhor bebida para um ciclista, mas também não é a pior. Tem muita energia e se você

toma água depois, não tem problema algum.Conforme fui me aproximando da região metropolitana de PortoAlegre comecei a perceber o tamanho da cidade e também o tamanho deseus problemas. A periferia próxima à rodovia certamente não é um doslugares mais bonitos que conheci na viagem. Como não conhecia abso-lutamente nada, resolvi sempre seguir as placas que apontavam para ocentro.

 No momento que saí da  Freeway, passei um dos maiores per-

rengues de toda a viagem. As rodovias de acesso à entrada da cidade nãooferecem sequer meio metro de espaço para uma bicicleta. Nãorecomendo a ciclista algum entrar em Porto Alegre no horário de pico eatravés das vias principais de acesso. Isso pode ser fatal. Quase fuiatropelado. Foi certamente o maior risco que corri por causa do trânsitoem toda a viagem, superando até a entrada em Santiago do Chile, La Paze o trânsito caótico de Buenos Aires.

Como não conhecia nada, fui exatamente para onde não deveriair. O centro velho da cidade é uma região um pouco perigosa, mas isso sódescobri depois, quando um homem que passava por mim disse: “Ficaesperto aqui hein. Levam tudo e você junto!”. Bom, pelo menos me

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deram uma dica, mas na verdade eu já estava me enturmando com o pessoal que vivia por ali. A bike muda até mesmo a maneira como as pessoas te olham, é impressionante.

Liguei para Lígia, que conheci na estrada e ela perguntou onde euestava. Disse que estava bem no centro, e então escuto: “Ah meu Deus! Não fica aí que vão assaltar você. Me espera na frente do terminal deônibus que tem aí na sua frente”. Em 20minutos ela chegou e depois de alguma de-mora, conseguimos colocar a bicicleta dentrode seu carro. Lígia foi muito atenciosa comi-go desde o início. No caminho até sua casa foime mostrando um pouco da cidade. Passamos por alguns pontos turísticos e depois me mos-

trou o bairro boêmio.Em sua casa, encontrei seu marido

Sandro, que é cantor e compositor. Sandro me ofereceu um chimarrão eficamos conversando por horas. Os dois me deixaram muito à vontade.Foram realmente muito agradáveis os dois dias que passei com eles.

Ao mesmo tempo em que estava à vontade e começando a meacostumar com a ausência total de rotina, ainda era um pouco estranhoestar como hóspede na casa de pessoas que mal conhecia. A maneira

como me receberam e como houve confiança mútua me impressionou bastante. E desta boa acolhida pude relaxar um pouco, lavar roupas eatualizar meu website com novas fotos. A partir daqui comecei a receber depoimentos de muitas pessoas pela internet. Algumas eu nem conhecia.Tratava-se, muitas vezes, de gente que simplesmente encontrou minha página na internet e passou a acompanhar minha viagem semanalmente.

O legal eram as palavras de motivação e elogios vindas de várias partes do Brasil e também eram o que me mantinha em movimento

fazendo com que me dedicasse, sempre que possível, na atualização dowebsite. segunda-feira, 24 de novembro de 2008, 12h17min

 Aonde ir?

Uma coisa estranha mas muito interessante é o fato de eu estar meacostumando em não saber onde passarei a próxima noite. Acabei de almoçar aqui na casa dos meus novos amigos. Fica em Porto Alegre, perto da cidade de

 Alvorada. Daqui a pouco vou ligar para meu outro contato aqui, só então vou saber se volto pro centro de Porto Alegre ou se sigo pra Capivari do Sul, onde

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 pretendo passar a noite. O que antes era um dilema, não saber quando e praonde ir, agora me deixa bastante confortável. Não me importo se vou hoje ounão. O importante é sempre estar abrigado quando a noite chega.

A ideia de uma viagem longa de bicicleta mexia demais com a

maioria das pessoas. Era muito prazeroso ver o interesse que isso gerava.Desde as crianças até os mais idosos, todos demonstravam alguma formade curiosidade ou admiração pela bike. Cada vez mais eu sentia de fatoque estava realizando meu sonho e cada vez mais pensava na sequênciade eventos que propiciaram que tudo isto viesse a se tornar realidade.

Lembro-me do dia que contei sobre meu sonho aos meus pais – mais de um ano antes de iniciá-lo. Sem o apoio deles, acredito que nãoteria conseguido. Me apoiaram assim que contei sobre o projeto. Isso me

deu ainda mais força para realizá-lo. Quando abri o jogo a eles, dizendoque largaria tudo para viajar de bicicleta a resposta foi: “Filho, se é issomesmo que você quer, vai em frente”. Assim ficou fácil!

 Na hora de sair de Porto Alegre resolvi voltar mais pelo sul, pas-sando por Viamão e assim evitando voltar pela  Freeway. Não pegueinenhuma via principal e acabei cruzando alguns bairros. Foi bem inte-ressante, ver a reação das pessoas ao verem uma bicicleta, como a minha,

 passando em frente de suas casas. Quando cheguei em Viamão, ainda naregião metropolitana de Porto Alegre, sem querer, passei na frente doautódromo de Tarumã, onde havia ocorrido, um dia antes, a final docampeonato de Stock Car . Vi os portões abertos e entrei. Pude ver a pistae a movimentação das equipes retirando todos os carros e equipamentos.Em seguida um dos seguranças pediu educadamente que me retirasse.

Apesar de ter uma meta e saber que deveria sempre seguir meucaminho planejado, também estava começando a aprender a mudar decaminho. Aprendendo a mudar os planos e fazer o que me desse vontadede fazer. Acho que aos poucos passei a aproveitar mais minha liberdade.

Ao sair da região metropolitana logo percebi que aquele ventofortíssimo que havia me levado em tempo recorde a Porto Alegre agoraseria meu pior pesadelo. Não conseguia desenvolver boa velocidade. Neste dia, mesmo estando descansado, fiz somente 42 quilômetros eacabei pernoitando numa pousada a alguns quilômetros da pequena cida-de de Águas Claras.

 Nesta noite pude assistir um pouco de televisão e os noticiários

só falavam da tragédia provocada pelas chuvas no litoral de SantaCatarina. Se eu tivesse passado por lá apenas uma ou duas semanas

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depois, teria tido muitos problemas. A chuva que me acompanhou por lá já era o começo de toda a tragédia catarinense, como já dito antes.

 segunda-feira, 24 de novembro de 2008, 22h40min

Qual você acha que é o pior inimigo do cicloturista?

a) O calor / b) A ressaca de uma bebedeira / c) A má alimentação / d) As subidas / e) A preguiça / f) Os buracos / g) Os caminhões / h) O vento

 Acertou quem respondeu a letra “h”.

Otávio Bittencourt

O dia 25 de novembro de 2008 foi um tanto peculiar. Era o vigé-simo sexto dia da viagem, no qual as dificuldades físicas foram extremas.As piores da viagem até então. Por outro lado este dia teve boas surpresasque eu nem imaginava. Foi o dia mais intenso que vivi, ainda em ter-ritório brasileiro. Pude provar um pouco de tudo: cansaço, hospitalidade ever realidades muito diferentes da minha.

Saí das proximidades da cidade de Águas Claras em direção às

cidades de Capivari do Sul e Palmares do Sul. Imaginava que o vento pu-desse me causar problemas, mas não pensava que seria tanto. Seguialentamente contra o vento. Aos poucos percebi que o mesmo vento quetinha me levado em velocidade recorde pela  Freeway até Porto Alegre,agora seria meu pior pesadelo.

Iniciei o dia saindo de um hotel à beira da estrada – onde tinha passado a noite – e após pedalar apenas doze quilômetros, perto de umalocalidade chamada “Capão da Porteira”, ouvi alguém gritar:

 – Quer almoçar?Olhei para o lado, vi um homem na beira da estrada e disse: – O que tem aí? Lanchonete? – Não, eu moro aqui! Vamos almoçar!Esse foi o começo da primeira grande surpresa do dia. O ex-

sargento dos bombeiros e assistente de árbitro de futebol José OtávioBittencourt convidou-me a entrar e fui almoçar com sua família. Foiincrível sua hospitalidade. Vinha lutando contra o vento num dia muito

duro e de repente ganho um presente assim!Após o almoço com sua família (esposa e filha), e um bom e

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longo bate-papo, ele me presenteou com um calção oficial de árbitro,uma blusa, uma faca gaúcha e uma medalha dos bombeiros. Em seguidatirei umas fotos de sua família, inclusive uma de Bittencourt com bombachas – a roupa típica do gaúcho –, que fez questão de vesti-las.

 No fundo de sua casa havia um lugar espetacular. Um “cantinhogaúcho” ímpar. A decoração cheia de coisas de madeira, facas, espetos dechurrasco e fotos. Fotos dele como bandeirinha de jogos importantescomo Grêmio versus Internacional, clássico gaúcho e apesar de eu ter  perguntado, ele não me disse que time mais lhe agradava.

Passei umas duas horas na casa deles. Este tipo de hospitalidadeeu já havia provado em Porto Alegre, mas em circunstâncias um poucodiferentes. Desta vez eu apenas estava passando e simplesmente fuiconvidado. Foi impressionante e incrível estar com essas pessoas.

Despedimo-nos e segui. Tinha um longo caminho a seguir apesar do convite que me fizeram para passar a noite. Mas só havia percorridodoze quilômetros neste dia e essa quilometragem era muito baixa. Sei quese aceitasse ficar, talvez tivesse feito uma amizade muito especial, mastudo que eu queria naquele momento era seguir para o sul o mais rápido possível.

Segui meu caminho em direção a Capivari do Sul e o ventocontra foi piorando. Às vezes chegava a ser engraçado. Nunca havia

sentido ventos assim, nem mesmo em tempestades. Simplesmente não dá para pedalar a mais de 9km por hora.

Fiquei esgotado eainda bem que tinhaalimentos. Além disso,meu bagageiro frontal serompeu logo em seguida.

Tive que parar e repará-lo, colocando uma nova braçadeira de metal. O diatinha me presenteado comum belo almoço e boacompanhia, mas nem por isso deixou de me castigar. Hoje sei que estes dias de vento no RioGrande do Sul apenas estavam me preparando, me treinando, para coisasmais desafiadoras no futuro.

Mesmo com toda dificuldade, pedalei 40 quilômetros com estevento inacreditável contra e precisei até empurrar a bike por uns quatro

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quilômetros. Estava completamente desgas-tado. Até então a parte mais dura da viagem.

Depois da cidade de Capivari do Sul,enquanto seguia pela estrei-ta faixa de terraentre o mar e a Lagoa dos Patos, a estradavirou para o sul e passei a enfrentar o vento

de lado. Assim é melhor, porém é necessário cautela para não ser empurrado para fora da estrada.

Meu próximo destino: a cidade de Palmares do Sul, onde pensavaem passar a noite.

Anderson e Luana

Logo que cheguei à cidade pretendida fui procurar hotéis ou pou-sadas e depois de pesquisar um pouco os preços, fiquei frustrado, porqueque não estavam muito baratos. Antes de me instalar, fui ao mercadocomprar alguma coisa para cozinhar e de repente: a próxima grande sur- presa do dia. Um casal se virou pra mim e perguntou de onde eu era. Meapresentei. Disseram que eram de um circo que tinha acabado de chegar na cidade. Seus nomes: Anderson e Luana. Convidaram-me para acampar 

ao lado do seu trailer  onde o circo estava sendo montado. Não penseiduas vezes. Achei a ideia o máximo! E por sorte ou por estar livre semqualquer amarras, ou julgamentos, por estar aberto mesmo a viver, maisuma vez fui excepcionalmente bem recebido em seu modesto trailer  minúsculo de uns três metros quadrados, que na realidade era umacarroceria pequena tipo “furgão” onde viajam seguindo a trupe do CircoItaliano. Montei minha barraca ali ao lado. Fizeram um jantar delicioso eficamos assistindo alguns DVDs do “Cirque du Soleil”. Contaram-me

muito de suas vidas itinerantes e também algo sobre a realidade de setrabalhar num circo. Mais tarde nos banhamos num centro esportivo e fuivisitar o lugar onde estavam levantando a grande tenda do circo. Otrabalho desta gente não é fácil. Cada família que trabalha ali tem queacompanhar o circo com seus próprios meios, ou seja, há uma hierarquiacomo em qualquer outro trabalho, o dinheiro ganho nessa vida nômade, ésalário como numa empresa, em grau de responsabilidade, assim sendonum mesmo espaço existem realidades muito diferentes entre ostrabalhadores. Anderson é o responsável pela montagem do som do circoe Luana é sua esposa. Inclusive, na época ela estava grávida de doismeses e a grande preocupação deles era em comprar um novo trailer com

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mais espaço para a criança.Durante o período que estive com eles conheci outras pessoas que

também trabalhavam ali. Um senhor argentino, depois que ficou sabendoque eu iria visitar a Argentina, me perguntou se já falava alguma coisa deespanhol. Tive que dizer a verdade: não falava absolutamente nada.Visitar este lugar e conhecer essa gente foi muito interessante eenriquecedor.

Pela manhã ainda estava muito cansado e resolvi passar uma noi-te num hotel, pois os dias anteriores haviam sido muitíssimo duroscomigo. Ainda me rendia ao conforto eventual que o dinheiro pode pagar.Ainda tinha muito o que aprender.

De Palmares do Sul segui direto os 120 quilômetros até a cidadede Mostardas, cruzando uma região absurdamente plana. Mesmo estando

numa faixa relativamente estreita de terra, em momento algum durante o percurso pude ver o mar ou a Lagoa.

 No dia seguinte fui um pouco preguiçoso e fiz somente 30 quilô-metros até a cidade de Tavares. Foi uma das menores quilometragens que percorri num dia durante toda a viagem. Claro que não fiz somente por  preguiça também porque sabia que a próxima cidade depois de Tavaresestaria a muito mais de 100 quilômetros e não queria arriscar em ficar  pelo caminho num lugar desconhecido. Meu mapa era extremamente

simples e continha somente as principais cidades. No outro dia resolvi dar uma “esticada” novamente e fiz os 134quilômetros até a cidade de São José do Norte, que se localiza bem na pontinha da faixa de terra que existe ao longo da Lagoa dos Patos,formação natural que dá uma aparência peculiar ao mapa do Rio Grandedo Sul e ao sul do país.

Agora teria de cruzar os três quilômetros da foz do Rio Grandeaté a cidade de Rio Grande. Mas deixei a emoção para o dia seguinte. Os

134 quilômetros foram bem cansativos por causa do calor excessivo. Overão estava se aproximando.Já em Rio Grande, resolvi descansar e me hospedei num hotel

simples. Fiquei um dia todo descansando.Pé no pedal e bunda no selim. No dia seguinte saí para enfrentar 

definitivamente o extremo sul do Brasil. Infeliz-mente o vento começou a soprar forte de novo eo dia acabou se transformando num enormedesafio físico. Ficou claro que não conseguiriacobrir uma grande distancia neste dia e me voltei para o mapa à procura de uma cidade próxima.

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Antônio Xavier

 No meu mapa havia um lugar chamado Sarandi, quase no extre-mo sul do Brasil. Conforme fui me aproximando foi ficando evidente quenão se tratava de uma cidade e sim somente uma área rural cheia de pequenos sítios. Como tinha saído da rodovia principal para procurar olugar e o dia chegou ao final, fui obrigado a acampar – este dia não haviasido um dos melhores, fiz somente 34 quilômetros – num lugar gramadoao lado de uma cerca. Era um pasto e a uns 100 metros havia duas casas.Em uma delas uma placa: “Vendemos pães”. Resolvi comprar alguns, pois minha comida já estava no final. Assim que terminei de armar a

 barraca recebi a visita de um cachorro que sentou ao lado e ficou por ali pelo menos por uma hora. Era como se estivesse montando guarda e medando boas vindas. Passei uma noite tranquila acampado ali. Meu único problema é que não tinha mais comida para preparar e passei a noitecomendo pão somente.

O lugar não era muito confortável. O chão era muito irregular.Como Amyr Klink, eu tampouco tinha um travesseiro. Como ele diz emseu livro, um "protótipo de travesseiro" somente. Geralmente enrolava

minha blusa e pronto. Já tinha um descanso pra cabeça. Engraçado.Levava mais de 1,5 kg de equipamentos "desnecessários" como câmeras, baterias, carregadores, cabos e até um tripé, mas não tinha sequer umaalmofada inflável para usar como travesseiro.

 Na manhã do dia seguinte levantei acampamento para seguir via-gem. Esperava encontrar algum lugar para tomar um bom café pelocaminho, mas ao passar à frente de uma casa um senhor idoso se apro-ximou e disse: “Quer acampar aqui?”. Chamava-se Antônio Xavier – um

solitário morador daquela região rural. Na hora respondi que não, poisestava apenas começando meu dia, mas logo em seguida mudei de ideia eresolvi aceitar seu convite. Depois de seguir por só 100 metros eu apeavanovamente.

Antônio me disse que há alguns meses atrás havia acampado emseu quintal um casal de norte-americanos que também viajavam de bicicleta e que achava interessante abrigar viajantes, pois assim tinhacompanhia. Acho que fiquei porque fui comovido por este homem sim- ples e solitário.

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 Num casebre extremamente sim- ples, Antônio vivia há muitos anos.Disse que eu poderia dormir em um deseus quartos e que havia uma camadisponível. Estava cheia de excremen-to de cupim, mas estava disponível.Fiz companhia para aquele pacatohomem que me contou uma infinidadede histórias. Me mostrou seus animais.Uma quantidade enorme de patos detodas as cores e tamanhos que tinha noquintal e então uma forte chuva come-

çou. Senti-me afortunado por ter aceitado seu convite, pois se não fosse

assim teria pegado toda a chuva na estrada. Me disse que não tinha ocostume de jantar, mas mesmo assim fez questão de preparar algo paramim. Comi arroz com carne de porco frita. Neste momento percebi oquanto bom ela era. Como é saborosa a comida feita de coração! Provavaum tipo de hospitalidade sem explicação e voltava a me perguntar: Quan-tas pessoas são capazes de fazer o que ele havia acabado de fazer por mim? Eu mesmo penso que jamais levaria um estranho viajante paradentro da minha casa facilmente. Fatos como este, mudaram muito minha

maneira de olhar as pessoas. Cada dia uma página e uma lição aprendida.Depois de ficar um dia parado na casa de Antônio, precisava se-guir e foi isso que fiz no dia seguinte.

Todas as estradas vão para o sul

O tempo virou, começou a ventar frio e em seguida uma garoa

fina e fria me pegou. O dia havia sido muito cansativo. Não tinha muitovento contra, mas meu desempenho não esteve bom. Às vezes o rendi-mento cai simplesmente porque o corpo pede um pouco de descanso.

Já estava na BR-471, também conhecida como “Rota ExtremoSul”, vi uma placa escrita: “Reserva Ecológica do Taim” – esta reservatem quase 35.000 hectares e situa-se numa estreita faixa de terra entre ooceano Atlântico e a Lagoa Mirim, ao Sul da Lagoa dos Patos – ou seja,tinha menos de 200 quilômetros de estradas brasileiras pela frente.

E assim entrei pedalando na reserva. Uma região plana e parcialmente alagada. Cheguei a me deparar com um pequeno jacaré queandava próximo da rodovia. A essa altura, já estava louco por encontrar 

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um bom lugar para acampar, pois havia cruzado 58 quilômetros, massinceramente a ideia de acampar dentro da reserva cheia de animais nãome animava muito. Foi então que encontrei um pequeno quartel da bri-gada de incêndio da reserva. E como estava cansado me aproximeilentamente. Vi um bombeiro e perguntei se havia possibilidade deacampar ali. Tinha um gramado perfeito e além do mais estaria perto degente e isso, às vezes, é extremamente importante.

O pessoal do quartel permitiu que eu passasse a noite com eles.Geralmente os militares são muito receptivos com os viajantes,especialmente os bombeiros. Montei minha barraca enquanto meenchiam de perguntas sobre a viagem. Também me diziam para tomar cuidado durante a noite com as cobras do local. Depois, o Sargento meconvidou para um café. Acabei jantando com eles e depois ainda as-

sistimos uma partida de futebol na televisão. Disseram-me que apesar deestarem com camas vazias o regulamento interno não permitia queestranhos fossem hospedados ali. Foi muito divertido estar com eles.Todos, sem exceção, foram muito simpáticos comigo. A noite foi muitotranquila.

De manhã, tomei café com eles e segui viagem, mais uma vez,grato pela ajuda e apoio. Antes de seguir, deixei o endereço de meuwebsite com eles para que pudessem acompanhar minha aventura pela

internet. Na parede do quartel havia uma longa mensagem que me chamoua atenção, segue um pequeno trecho:

“Que eu tenha sempre certeza do retorno ao aconchego do meu lar. Mesmo que euande pelo vale das sombras da morte, não deixes que mal algum venha cair sobre mim”.

Eu ainda não sabia, mas o simples fato de passar essa noite noquartel dos bombeiros da reserva iniciaria uma cadeia de eventos que

moldaria totalmente o futuro de boa parte da viagem. Este dia foi deter-minante e a viagem teria sido totalmente diferente se não tivesse conhe-cido estas pessoas. 

Segui viagem. Parei para almoçar num restaurante de posto degasolina. Para relaxar um pouco, de barriga cheia,deitei-me embaixo de uma árvore que havia nafrente do lugar. Tinha uma boa, gostosa e

convidativa sombra para digerir a quantidadeenorme de carne que comi. Ali também conheci

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dois primos – José e Dário – que viajavam de carroaté Montevidéu, no Uruguai. Eram de Criciúma/SC,e disseram que estavam realizando um grandesonho indo até o Uruguai de carro. Após uma breveconversa eu segui. Meia hora e alguns quilômetros depois, os viajantes passaram por mim e pararam o carro no acostamento, desceram e pediram que eu tirasse uma foto com eles. Fiquei feliz com suas palavrassobre mim e dentre tantos elogios, um deles foi que eu era muito corajoso por estar fazendo uma viagem deste modo.

Quando nos despedimos, um deles estendeu a mão, me deu R$50,00 de presente e disse: “Olha, não é muito, mas eu quero te ajudar dealguma forma”. Foi a primeira vez que um desconhecido me deu dinheirona estrada.

Igor e Juliane

O caminho estava preparando uma nova surpresa. Depois de pedalar apenas 40 quilômetros comecei a me preocupar sobre onde passar a noite, aliás, era o que sempre me preocupava. Havia saído tarde doquartel dos bombeiros e por isso não pedalei muito. O lugar era

completamente deserto. Não havia muita gente vivendo por ali e aindame restavam mais de 100 quilômetros até a próxima cidade. E mais umavez: posto de gasolina, um oásis para mim. Óbvio que eu iria acampar  por ali. Como sempre – pelo menos até aqui – me aproximei do rapaz queestava trabalhando, contei minha história e pedi um lugar para montar minha barraca. Seu nome era Igor e enquanto eu olhava a quantidadeenorme de adesivos que muitos viajantes colocaram aos poucos na portado posto, conversava com ele. Aos poucos contei um pouco da viagem e

ganhei a confiança de Igor. Na verdade pude perceber sua expressãomudando aos poucos enquanto eu falava sobre o que estava disposto afazer. Ficou admirado e me confessou que seu grande sonho era viajar também, mas até então não havia encontrado tempo para poder sair dali.Perguntei se era possível acampar ao lado do posto e ele me sugeriu umaconstrução abandonada que há muitos anos foi um enorme restaurante.Coloquei a bar-raca dentro da construção. Apesar de o lugar estar um pouco sujo, havia teto e assim poderia usar somente a parte de dentro da

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 barraca - a barraca era constituída de duas partes principais: a parte dedentro, com o chão, mosquiteiro e estrutura de alumínio; e a parte de fora,que era basicamente uma proteção contra vento, chuva e sol - pois nãoteria problemas com vento ou chuva.

Voltei para a loja do posto e então a esposa de Igor, Juliane,apareceu e começamos conversar. Mais tarde, uma surpresa. Me convi-daram para acampar em sua garagem. Viviam numa casa ao lado do posto. Igor, bem espontâneo falou: “Coloca sua barraca na minhagaragem vai! A gente janta e assiste a novela juntos”. Incrível, pensei.Transferi na mesma hora e sentei à sua mesa para jantarmos. Depoisconversamos por horas e horas. O mais surpreendente foi que confiaramtanto em mim que em momento algum trancaram a porta que dava acessoà cozinha, pelo contrário, disseram que poderia entrar se sentisse sede. A

hospitalidade de Igor e Juliane me deixou até um pouco sem jeito. Ser acolhido por gente assim me fazia sentir muito especial. Gente simples,mas com corações enormes. Como aprendia em momentos assim!

 No dia seguinte, estava pedalando num ritmo muito forte e passeiao lado de um casco de tartaruga bem na faixa central da rodovia. Nomomento não dei muita atenção, mas depois de uns trinta metros parei eresolvi voltar para ver se ela ainda estava viva. Vi que se tratava de umanimal apavorado. Quando os carros passavam por cima, ela se encolhia

toda e obviamente estava correndo risco de morte. Peguei o bichoindefeso e coloquei gentilmente no mato ao lado da rodovia. Emboraestivesse viva, estava morrendo de medo e deve ter demorado um pouco para colocar suas patinhas para fora novamente. Amo as estradas, mas sósão boas para os seres humanos. Todo o resto sofre muito com elas.Geralmente levam lixo, barulho, poluição, causam atropelamentos deanimais e servem de escoamento dos recursos naturais. Bom, pelo menosna reserva este último item não existe.

Segui minha viagem para o sul. O sol estava muito forte e haviaum pouco de vento contra. Fiz uma pequena parada num ponto de ônibus para comer alguma coisa e então vi um ciclista se aproximando. Logo percebi que se tratava de um tipo de ciclista totalmente diferente do meu.Obviamente era um viajante, mas não estava fazendo turismo e simseguia com sua bicicleta extremamente simples, sendo este seu únicomeio de transporte. Tinha uma “montanha” de coisas amarradas dentro deum saco enorme na garupa e vinha de longe. Parou e começamos aconversar. O senhor de mais de sessenta anos não me pareceu hostil eentão acabamos seguindo juntos durante umas duas horas até a entrada dacidade de Santa Vitória do Palmar, a apenas 30 quilômetros do Chuí.

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Durante o caminho ele fumou vários cigarros fortíssimos e me assusteiainda mais, quando de repente, retirou de sua bagagem uma garrafa decachaça tomando um belo gole. Gentilmente a chamava de “metanol”.Também tinha um corte realmente grande na panturrilha. Incrivelmentetinha um ritmo tão forte quanto a quantidade de cigarros que fumava eme dizia que a melhor forma de pedalar contra o vento era forçar aindamais a pedalada. Chegamos à entrada da cidade e precisei despistá-lo.Inventei uma história e assim nos separamos. É sempre interessanteconhecer este tipo de personagem. Assim como o senhor que encontrei perto de Criciúma, ainda em Santa Catarina, este homem não estavaviajando por diversão.

Quando entrei em Santa Vitória ainda não sabia se seguiria diretoao Chuí ou se ficaria por ali mesmo. Queria descansar e logo relaxei e

quando isso acontece, geralmente tenho que parar.Passei pelo escritório de informações turísticas. Buscava infor-

mações sobre hospedagens e assim que consegui, segui pela avenida principal desta cidade de menos de 35 mil habitantes. E mais uma vez oacaso deixaria sua marca: no meio da rua encontrei um dos bombeiros daReserva Ecológica do Taim, que estava em seu dia de folga. Novamenteo agradeci pela ajuda e ele ficou surpreso que eu já estivesse ali.

 Nesta pacata cidade, tive um daqueles dias de preguiça e acabei

ficando duas noites. Talvez precisasse de um tempo pra mim, sozinhodentro de um quarto de hotel, para refletir um pouco sobre a viagem e principalmente sobre o fato de eu estar praticamente na fronteira com oUruguai. Dali para frente estaria em território ainda mais desconhecido eme sentia um pouco apreensivo.

Os últimos 30 quilômetros até o Chuí foram muito especiais. Acada quilômetro eu me aproximava do ponto mais meridional do Brasil.

Cheguei à aduana brasileira. Era a primeira vez que entrava numaaduana. O processo foi simples e por recomendação dos funcionários,somente fiz uma declaração de alguns itens que levava como câmerafotográfica e filmadora, para não ter problemas quando voltasse ao pais.Mais alguns quilômetros e já estava entrando na cidade do Chuí. O quemais me chamou atenção foi o fato da fronteira ser demarcada apenas por uma avenida no meio da cidade, sendo o lado brasileiro, tudo em português e o lado uruguaio, tudo escrito em espanhol, inclusive o nomeda cidade; do lado brasileiro, Chuí e do lado uruguaio a cidade se chamaChuy – um pequeno contraste. Outra observação foi que logo na primeiraesquina uruguaia já havia um cassino – proibidos no Brasil.

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Com a ajuda de um uruguaio fiz uma foto minha bem no canteirocentral da avenida, exatamente na fronteira e em seguida fui almoçar pelaúltima vez do lado brasileiro, a apenas alguns metros da fronteira.

Dia 38, 1965 km pedalados

Chuí, Rio Grande do Sul, Brasil

Barra do Chuí 

Depois do almoço, segui em direção à Barra do Chuí, que, defato, é o ponto mais ao sul do Brasil. Queria caminhar pelos últimosmetros das praias brasileiras e passar a noite nesta cidade. Pedalei uns 10quilômetros e logo cheguei na entrada do povoado costeiro. Parei para

relaxar um pouco e tomar um sorvete. Estava feliz de ter chegado até ali eadorei a atmosfera tranquila deste lugar. Segui à praia. Precisava sentir e pisar os últimos metros de litoral brasileiro de qualquer forma. Fui com bicicleta e tudo. Uma linda e tranquila praia de areias brancas. O calor estava forte e não resisti a um banho de mar, que não estava neces-sariamente quente. A sensação foi indescritível. Olhava a praia para o sule podia ver os primeiros metros do litoral uruguaio. Olhava para o norte eficava imaginando os mais de 7000 quilômetros de praias brasileiras que

havia a partir daquele ponto. Foi realmente um momento muito especial.Caminhei até o ultimo metro brasileiro e fiz uma foto dos meus pés, ali, pisando a areia, com as marcas evidentes de sol de meus chinelos.

Sempre vi e busquei muito simbolismo durante a viagem e estar neste lugar tinha toda simbologia possível para mim. As fronteiras são te-ma interessante, um tipo de coisa paradoxal. Ao mesmo tempo existemde fato e causam, às vezes, um contraste tremendo entre os lados, mas por outro lado não existem de maneira alguma e são apenas convenções que

todos, ou a maioria, aceitam.Sentia-me muito distante de casa e de fato estava, mas tambémsentia que aquilo era só o começo. Estava me preparando para cortar asúltimas amarras que me restavam. Depois de conversar com alguns brasi-leiros e uruguaios, decidi voltar à cidade para procurar um lugar e passar a noite.

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Norman Yelland

Conheci o próximo personagem assim que voltei à entrada deBarra do Chuí. Parei à frente da placa de boas vindas da cidade para tirar uma foto, e neste momento apareceu um senhor bigodudo bonachãoaparentando uns 60 anos, com pinta de “gringo”, seguido de um menino.Falando um bom português, o canadense Norman me perguntou o que euestava fazendo e me ofereceu uma de suas casas, que alugava para turis-tas. Fez um preço muito especial, apenas R$ 20,00.

A casa era espetacular, impecavelmente limpa, com uma varandaenorme e aconchegante. Uma casa completa só pra mim. Afinal, às vezesum pouco de conforto não faz mal a ninguém.

Mais tarde, Norman voltou e bateu à minha porta. Estava com

livros e uma quantidade enorme de mapas nas mãos. Começou falandoque já havia viajado todo o continente americano várias vezes em seutrailer e no momento estava vivendo em Barra do Chuí. Pegou meu mapada Patagônia e fez inúmeras anotações sobre lugares interessantes paravisitar e também me deu uma lista grande de campings grátis e parquesnacionais, especialmente em território argentino. Passou também, muitasinformações sobre a Patagônia e fez uma recomendação de um ótimocamping  municipal na cidade de Santa Lucia, no sul do Uruguai. Me

emprestou, por uma noite, um guia de viagem sobre a América do Sul.Empolgado a me ajudar e compartilhar sua experiência de vidacomigo, disse que seu lugar preferido das Américas era o Brasil e que iria permanecer por muito tempo ali, segundo ele, “até cansar do lugar”. Jáhavia percorrido todo o litoral brasileiro e acabou se apaixonando pelas praias brasileiras. Ficou em Barra do Chuí porque encontrou bons negó-cios e principalmente tranquilidade.

Fiquei muito grato por todas as informações compartilhadas,

afinal eu sabia muito pouco sobre os caminhos vindouros – . Acho queeste lugar foi um dos mais tranquilos que visitei durante toda a viagem.Tive vontade de ficar mais tempo, mas no fundo estava louco para entrar definitivamente no Uruguai.

 No dia seguinte, tomei café-da-manhã com Norman e segui meucaminho rumo a fronteira. Voltei ao Chuí, fui até a última – ou primeira – agência do Bradesco e assim que cruzei a fronteira, além de ir a uma casade câmbio, onde troquei R$ 600,00 em pesos Uruguaios, quantia com aqual eu havia planejado cruzar todo o país, o que é mais que suficiente, pois o Uruguai é um país bem pequeno. O câmbio estava mais ou menosdez para um, ou seja, cada real me renderia cerca de 10 pesos Uruguaios.

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Poucos minutos depois, cheguei à aduana Uruguaia. Como meu passaporte estava bem no fundo da bagagem, resolvi usar apenas minhaidentidade – um acordo entre os países membros e parceiros do MER-COSUL garante o direito de ingresso aos países somente com a carteirade identidade, o que garante, na maior parte dos casos, 90 dias de permanência. Não há burocracia alguma e poucos minutos depois eu jáestava portando um documento que me dava o direito de permanecer noUruguai.

Esta foi a primeira vez que saí do meu país. Por ironia do destino,o fazia de bicicleta! Até então isso era a coisa mais demente e insensataque havia feito na vida. Mas era tudo que queria e meu coração me diziaque este era o caminho certo a seguir.

Fotos do capítulo 1: www.trilhasulamericana.com.br/1 

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  pesar do calor eu estava muito animado. Finalmenteestava seguindo por estradas de fora do país. Não posso dizer que houve uma mudança drástica. A

impressão que eu tinha era de uma transição suave de um país para ooutro. A mesma pampa e o mesmo povo do sul do Brasil. A única coisaque me fazia lembrar onde estava era a língua. Naturalmente, no norte eleste do Uruguai, tão acostumados a receber visitas de brasileiros, todomundo acaba entendendo um pouco de português. Bom para mim, poisnão falava quase nada de espanhol até o momento.

Hugo

Ao passar pela rodovia vi uma placa que dizia: “Fortaleza deSanta Tereza”. Não sabia nada sobre esta região e meu mapa era extre-mamente simples, contendo somente as principais cidades uruguaias.Então, resolvi explorar o lugar apesar do calor terrível que fazia. Ao sair da rodovia principal e ingressar ao caminho à tal fortaleza, pude ver doque se tratava. Poucos quilômetros à frente havia um enorme e lindoforte. Era realmente uma visão intimidadora no horizonte.

Quando me aproximei um pouco mais da fortaleza me depareicom uma moto muito bonita estacionada à frente da entrada. Era umavelha moto  BMW enorme e tinha placas do estado do Colorado, EstadosUnidos.

Paguei o barato ingresso e entrei na fortificação. Assim que entreime deparei com um personagem totalmente incomum. Com um chapéude couro, cabelos compridos, barba, cheio de colares e vestindo umaroupa surrada. Tinha uma enorme câmera de vídeo e uma câmera foto-

gráfica. Eu disse que vinha do Brasil e perguntei se ele era o dono damoto e se vinha dos Estados Unidos. Então ele me disse:

- Ah, então podemos falar português! Sou argentino, mas vivi trêsanos com uma tribo no interior da Amazônia.

- Você mora na Argentina?- Mais ou menos. Não tenho residência fixa. Eu trabalho para o

 Discovery Channel ! –me disse orgulhoso.- Você esta indo para onde?- Punta del Diablo e você? –respondeu.- Eu também.

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- Bom, podemos marcar de nos encontrar lá e conversar mais. Oque você acha?

- Ótimo, mas vou chegar muito depois de você, com certeza.- Lá tem um restaurante muito bom e barato chamado “Capitán

Gancho”. Estarei lá às 9h da noite.- Ok, até lá então! –eu disse e ele se foi.Continuei minha visita ao forte. Foi realmente impressionante.

Havia canhões por todo lado, uma capela, um museu com armas e ar-maduras, alguns objetos de uso da época, roupas religiosas e até uma pequena sala de tortura que continha alguns mecanismos bem sinistros.

Depois de 58 quilômetros cheguei à primeira cidade uruguaia.Um lugar totalmente “zen”. Punta del Diablo não tinha nada de “diablo”e era um lugar extremamente tranquilo. Talvez porque a temporada de

verão ainda não tivesse começado. Parei num bar para tomar um refri-gerante e descansar um pouco. Em seguida fui em direção à praia.

 Na praia acabei conhecendo dois fotógrafos de Nova York, queficaram muito interessados em minha história. Tiraram várias fotos mi-nhas. Em seguida me sentei num tablado que havia na praia. Quatro jovens uruguaios se aproximaram e então perguntei se podia me juntar aeles. Eram dois rapazes e duas garotas, todos muito simpáticos. Com- partilhamos um autêntico mate uruguaio durante quase uma hora

sentados na areia. Faziam todo tipo de perguntas sobre o Brasil. Asmeninas falavam até bem alguma coisa de português. Disseram-me queassistem as novelas brasileiras e quando o fazem pela parabólica, podemassistir em português. Também cantaram muitas músicas brasileiras.

Tentava me comunicar como dava com meu pobre portunhol,mas isso não é uma barreira tão grande assim em países de língua espa-nhola para um brasileiro.

Marcos

Ainda não fazia ideia de onde iria me hospedar. No momentominha única preocupação era curtir um pouco a belíssima praia de Puntadel Diablo.

O pessoal acabou indo embora e fui caminhar nas pedras pró-ximas à praia. Neste momento, enquanto fazia umas fotos um casal puxou papo comigo. Era o uruguaio Marcos e sua esposa. Na mesma ho-ra ele me disse que, se eu quisesse, poderia me hospedar em sua casa.Disse que tinha um lugar simples, mas muito confortável para pernoitar.

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Falavam um pouco de português também, como quase todas as pessoas que encontrei por ali. Anotei seu endereço e disse que prova-velmente ficaria em sua casa. Segui a procurar um restaurante e acabeicomendo uma pizza num lugar próximo à praia.

A cidade parecia um lugar totalmente alternativo, meio hippie,algo assim... Ruas de areia e um pouco desorganizado, mas limpo e tran-quilo... Alguns turistas iam e vinham a todo o momento. Havia muitosnorte-americanos, brasileiros e franceses ali.

Denis

Foi então que olhei para a rua e vi alguém caminhando enquanto

empurrava uma bicicleta cheia de bagagem. Na hora não dei muitaatenção, mas logo em seguida ele me viu e veio conversar. Seu nome eraDenis, brasileiro, e me disse que estava viajando pelo mundo há oitoanos! Disse-me que visitou todos os países europeus e que viveu por lámuitos anos. Viajando de “polo a polo” ele dizia: “De Ushuaia à No-ruega”. Agora vinha da Patagônia argentina e tentava chegar ao Brasil.

Denis não viajava com muitos recursos financeiros. Disse-me queeventualmente buscava trabalho para continuar sua viagem. Olhando sua

 bicicleta ficou claro que ele deveria mesclar carona com pedalada. Erauma bicicleta extremamente carregada!Embora eu estivesse seguindo para o sul e ele para o norte, acha-

mos conveniente ficarmos juntos ali em Punta, desta forma poderíamosacampar com mais segurança.

Às 9h da noite, fui ao encontro de Hugo no restaurante “CapitánGancho”, onde havíamos combinado. Denis me acompanhou. Quandocheguei ele já estava lá com toda sua parafernália de foto e vídeo. Ele

 parecia mais um personagem do tipo Indiana Jones, com sua roupasurrada, chapéu, pele queimada de sol e um ar de tranquilidade. Fez umvídeo meu e de Denis. Fazia questão de colocar sua enorme câmera devídeo com um adesivo com “ Discovery Channel ” à vista de todos – atéhoje eu não sei se realmente ele era um repórter do Discovery.

Sentamo-nos e começamos a conversar. Hugo ficou bastante im- pressionado com as histórias de Denis também. Depois nos mostrou uma pasta cheia de fotos. Havia fotos de Hugo no topo do Aconcágua – montanha mais alta das Américas – e também em lugares como Zim- bábue e Amazônia, onde viveu com os índios. Realmente se travava deum aventureiro. Na mesa atrás de nós havia uma família de canadenses,

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de Quebec, e logo Denis soltou um pouco de seu impecável francês comeles. Um dos principais pontos positivos de viajar é, sem dúvida ne-nhuma, poder aprender outra língua.

Despedimo-nos de Hugo e seguimos rumo a casa de Marcos. Euestava preocupado. Marcos havia convidado a mim e não a duas pessoas.Então abri o jogo com Denis e disse: “Cara, não sei se “rola” ficar comvocê lá. Sabe como é, ele não sabe de você.”

Ele ficou tranquilo e disse que tudo bem se não fosse possível.Decidimos ver a reação de Marcos primeiro. Minha preocupação foi emvão. Ambos fomos muito bem recebidos. Fomos convidados a entrar nu-ma espécie de garagem onde havia dois beliches.

Passamos uma noite muito tranquila ali. Denis me mostrou um pouco de suas fotos de vários anos de viagem. Tinha uma coleção im-

 pressionante de emblemas e fotos de mais de cem batalhões de corpo de bombeiros por onde havia passado em sua estada na Europa.

Foi interessante passar essa noite com ele. Apesar de ele ser um pouco louco demais, pôde me passar um pouco da vivência na estrada. Euainda era um mero amador inexperiente.

Denis, Marcos e eu

 No dia seguinte resolvemos fi-car mais um dia. O ambiente de Puntadel Diablo era convidativo demais parasair com pressa. Aproveitei um dia na praia e à noite resolvemos acampar navaranda de uma casa à beira mar – a poucos metros do mar – que aparen-temente estava desocupada há um certo

tempo. Fizemos um churrasco, pois também havia uma churrasqueira ali.Acampar com Denis foi divertido. Ele me contou um pouco mais

das suas “trapalhadas” pela Europa e falava com orgulho que era pau-listano e torcedor do São Paulo Futebol Clube. Com seu boné do SãoPaulo ele dizia: “Ninguém, nem o Boca Juniors com toda sua pompa,chega perto da história deste clube!

A hora de sair deste paraíso da tranquilidade estava chegando. Namanhã do dia seguinte eu e Denis fizemos umas trocas de algumas peçasde roupa. Eu tinha uma calça que ele havia gostado e ele tinha uma

camiseta de ciclismo muito bonita. Trocamos e acabei usando estacamiseta praticamente por toda a viagem.

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Saímos de Punta e seguimos juntos até a estrada. No trevo daentrada da cidade nos despedimos. Denis seguiu para o norte, rumo aoBrasil e eu segui para o sul, rumo ao desconhecido.

Pedalar pelo Uruguai é muito fácil. O terreno é sempre plano enão há, pelo menos não havia, ventos fortes.

Apenas 41 quilômetros depois eu chegava à cidade de Castillos.Uma cidade tranquila a alguns quilômetros do litoral. Era a primeira ci-dade “comum” que eu visitava, ou seja, não se tratava de uma cidadeturística típica. Aos poucos eu construía a imagem que passei a ter do país: um lugar extremamente tranquilo onde o tempo parece passar numoutro ritmo.

Assim que entrei em Castillos fui procurar algo para comer. Fizuma parada numa padaria. Ainda era um pouco estranho me comunicar e

como não dominava a língua tinha que abusar do famigerado “portunhol”que é amplamente usado pela imensa maioria dos turistas brasileiros. Nomeu caso era muito mais português que espanhol, mas a simpatia e areceptividade do povo uruguaio facilitavam demais minha vida.

Esta noite passei num pequeno hotel no centro da cidade e pela primeira vez pude assistir um pouco da TV uruguaia e as novelas bra-sileiras dubladas em espanhol.

 No dia seguinte segui meu caminho pela estrada costeira até a

importante cidade de Rocha. Cidade um pouco maior que Castillos, masainda assim é um lugar muito tranquilo e minha passagem por ali foiigualmente calma. Passeei um pouco e fui a um restaurante, onde proveiuma cerveja uruguaia.

Uma coisa que me impressionou bastante foi a arquitetura. A parte central da cidade é cheia de construções antigas e muitíssimo bemconservadas. Na praça central da cidade encontrei um casal colombiano.Ficaram muito excitados com minha bicicleta e pediram para tirar uma

foto comigo. Nesta parte da viagem, acho que comecei a me acostumar com ofato de estar sozinho. Às vezes me sentia realmente sozinho e aos poucostive que me adaptar. Foi um grande aprendizado, principalmente quandoficava sozinho num quarto de hotel. Acho que o que me mantinha de péera realmente a meta que tinha pela frente.

Mariana, Teresa e Pablo

Agora, à minha frente eu tinha a famosa Punta del Este. Tudo que

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sabia sobre este lugar era que se tratava de um dos destinos mais visi-tados por turistas no litoral sul da América do Sul.

O calor deu uma trégua e segui num ritmo forte para o sul. Logocheguei a grande cidade de Maldonado. Aos poucos fui entrando na partemais movimentada do Uruguai: o litoral sul.

Maldonado é uma cidade agitada e a cruzei através de uma viaexpressa. O trânsito estava bem caótico, mas ainda assim fluía facil-mente. Umas das coisas que mais me chamou a atenção foi o fato de boa parte dos motociclistas não usarem capacete.

Mais alguns quilômetros à frente cheguei à belíssima Punta delEste. Fui direto à praia e pensei que não seria um lugar fácil. Extre-mamente turística, a cidade me assustou um pouco, apesar de ser linda.Era a primeira vez que visitava uma cidade deste porte fora do país.

Pensava que seria uma daquelas passagens sem brilho, pois minha preo-cupação era principalmente os custos de hospedagem ali. Infelizmente,neste lugar eu não fazia ideia de onde iria me hospedar, não tinha umcontato sequer nesta região e para piorar, meu espanhol ainda estavaengatinhando. Foi então que deixei a preocupação de lado. Peguei mi-nha câmera fotográfica. Tirei os tênis e fui à praia. Relaxei e deixei ascoisas acontecerem.

Por acaso havia chegado ao mais famoso ponto turístico de Punta

del Este: Tratava-se de uma mão gigantesca, enterrada na areia da praia,de onde se vê apenas as pontas dos dedos para fora.Fiz umas fotos daquele dia de muito vento e ao voltar para a bici-

cleta, me deparei com três turistas que estavam ainda na areia da praia.Um deles me pediu que tirasse uma foto deles.

Percebi que falavam francês. Eu ainda não falava sequer oespanhol, muito menos francês, mas um deles viu a bandeira do Brasil nabike e me perguntou em “portunhol” se eu era do Brasil. Este viria a ser 

um personagem importantíssimo e responsável direto pelo desenrolar demuitas situações durante a viagem, seu nome era Pablo Sanches e eraequatoriano. Logo Pablo me apresentou seus dois amigos franceses,Amelie e Ian.

Pablo falava bem o francês porque já havia estudado na França e“arranhava” no português porque havia iniciado sua viagem no Brasil.

Tiramos uma foto de todos juntos sentados na areia da praia elogo nos despedimos. No momento que Pablo se despediu e seguiu cami-nhando. Pensei: “Poxa, já estou sozinho de novo. Preciso decidir o quevou fazer nesta cidade”. Mas então, sem aviso, Pablo se vira e grita: “Eicara, quer vir com a gente?”.

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Bom, deste momento em diante minha viagem tomaria um rumototalmente influenciado por este convite. É incrível como fatos pequenoscomo este podem transformar completamente o rumo de uma história. Não consigo imaginar como teria sido a história da viagem se Pablo nãotivesse dito esta frase. Alguns minutos depois e Pablo estaria me apresen-tando o primeiro hostel da viagem! Essa foi sua principal contribuição emrelação à minha viagem. Uma contribuição importantíssima.

 Hostels ou “Albergues da Juventude”, como são conhecidos noBrasil, são lugares muito especiais. Você paga muito menos que em umhotel e compartilha seu quarto com outras pessoas. Há cozinha egeralmente internet. E o melhor de tudo, são lugares perfeitos para se co-nhecer gente.

 Nem sequer imaginava um lugar assim. Não fazia ideia que exis-

tiam. Como todo bom brasileiro que nunca havia viajado, pensava que“albergue” era coisa para mendigos.

Apaixonei-me pelo lugar assim que entrei. Todos diziam que parecia “casa de avó”. Um lugar tranquilo onde ninguém fica dizendo oque você tem que fazer. Os quartos eram mistos e cheios de turistas detodo o mundo.

Era a primeira vez que visitava um lugar assim e também a primeira vez que tinha contato com estrangeiros nessa quantidade. Tive

então que tirar da gaveta aquele inglês que às vezes a gente acha que nãotem, mas que serve para muita coisa. O inglês “internacional” é inevitávele é comum ver espanhóis falando com franceses em inglês, por exemplo,embora isso me pareça um pouco estranho.

O mais interessante de lugares assim é que a grande maioria das pessoas está totalmente aberta a conhecer outras pessoas. Não estão alisomente por conta dos preços atrativos, mas também por causa da pos-sibilidade de intercâmbio com diferentes culturas e idiomas.

Depois de instalado eu já estava adorando a cidade. Dei umavolta a pé pelos arredores e fiquei realmente impressionado com a belezada cidade. Um lugar tranquilo e organizado, mas ao mesmo tempoextremamente turístico. Pensei: “Acho que isso aqui vai ser bem diver-tido”. Agora já tinha amigos. Com Pablo, principalmente, tive umaempatia muito forte desde o início.

Mais tarde fui tomar um banho, e pelo caminho do corredor cru-zei com uma garota muito bonita, enrolada numa toalha e com umatatuagem no alto das costas. Não sei se fui eu ou ela primeiro, masacabamos nos saudando em inglês. Ela me parecia “gringa” e pelo que parece ela deve ter pensado que eu era europeu, já que a maioria das

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 pessoas que eu tinha visto até então não era de países próximos. Tivemosuma conversa rápida:

- The shower is hot? (O chuveiro é quente?) - perguntei- Ah, Yeah, hot enough. (É quente o bastante)- I really need take a shower! (Eu preciso muito de um banho!)

Já estava há uns dois dias sem banho. E o calor não estava dando mole.Depois ela me perguntou:

- Do you know how I can turn off that light? (Você sabe onde posso apagar essa luz aqui?)

- I’m sorry, I just arrived! (Desculpe, acabei de chegar!)Somente depois de alguns minutos resolvi perguntar de onde ela

era: - Excuse me. Where are you from? (Com licença. De onde vocêé?) - Brazil! –me disse.

Era brasileira! Eu ainda disse: “Me too” (Eu também), mas antesque conseguisse dizer qualquer outra coisa caímos na gargalhada. Foiassim que conheci a simpática e bonita carioca Mariana Oliveira. Come-çamos de uma forma muito divertida e incomum. Logo no meu primeirodia já havia “descolado” mais uma nova amiga.

Mais tarde a convidei para comer. Ela já tinha comido algo, masresolveu me acompanhar até um restaurante. Sua companhia estava muitoagradável e foi a primeira vez que falei de como estava me sentindo

emocionalmente em relação à viagem. Tivemos uma longa conversa so- bre viagens e de como era estar viajando sozinho.Mariana havia chegado de Buenos Aires e estava de férias. Era

sua primeira viagem sozinha – no autêntico estilo “mochilão” –, e comoera de se esperar e é comum entre viajantes solitários, ela estava gostandomuito da nova experiência. Também ficou muito entusiasmada ao ouvir minhas histórias. Afinal já estava na estrada há mais de 40 dias e já tinhaalgo para contar.

 Nosso encontro foi totalmente às avessas! Ele, paulista, encontra umacarioca - eu! - e tenta arriscar um inglês para saber se há água quente nochuveiro! Apesar de toda essa confusão, a mistura deu certo. Punta del Este eraa última parada da minha viagem, mas apenas o início da dele. Divertimo-nosmuito, nos identificamos e criamos uma amizade que pretendo levar para o restoda minha vida.

Conhecer suas histórias, só me incentivou a querer aproveitar a vida, aconhecer o mundo e, principalmente, outras pessoas. Nosso encontro me ajudoua me libertar do sentimento de dependência dos outros. Mesmo tendo viajadodesacompanhada, não me senti sozinha em nenhum momento. O que comprovaque a amizade, literalmente, não tem fronteiras.

 Mariana Oliveira

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De volta ao hostel conheci a figurativa baiana Teresa. Uma moçaque me cativou pela sua extrema autenticidade e por seu sorriso. Era umamaravilha escutar aquele sotaque baiano depois de cruzar o sul do Brasile metade do Uruguai.

 Nossa turma estava crescendo e logo conhecemos um argentino aquem chamávamos carinhosamente de “Maradona”, dois paulistas queestavam no meu quarto e duas garotas inglesas, das quais eu não entendiasequer uma palavra que diziam por conta de seu forte sotaque.

Uma das coisas que mais gostei em Punta del Este foi a noite.Bares e discotecas com entrada franca, boa música e gente animada e bonita. Estava viajando de bicicleta, mas nem por isso deixava de ter umavida social às vezes e curtir a noite quando tinha uma oportunidade.

 Numa dessas noites saímos todos juntos e depois de uma “balada” ótima,e em plena madrugada, tomamos um ônibus até a cidade vizinha deMaldonado. Estávamos procurando algo diferente.

 Não conhecíamos absolutamente nada e nem mesmo sabíamos seera um lugar seguro. Ninguém estava preocupado. Descemos em Maldo-nado e ficamos perambulando pelas ruas durante a madrugada até entrar num bar qualquer para beber e jogar sinuca.

Éramos um bando de turistas perdidos no meio de uma cidade

comum uruguaia, pudemos provar e conhecer um pouco do povouruguaio fora dos eixos mais turísticos.Para mim, e creio que para os outros também, estar ali, cercado

de autênticos jovens uruguaios era incrível. Este tipo de experiência nãose compra em “tours” ou pacotes de viagem. A partir deste momento passei a buscar cada vez mais lugares como este.

Todos sempre ficavam muito excitados ao saber que havia cinco brasileiros no grupo e nos enchiam de perguntas sobre o Brasil. Estava

interessantíssimo estar com os “brazucas” e também com Pablo e suashistórias.Pablo e eu já éramos praticamente amigos, mas havia um tema no

qual não entrávamos num acordo: Mariana. Ele gostou muito dela e con-fesso que eu também! Seu sotaque carioca, nem tão neutro e nem tãomarrento, e seu sorriso nos deixavam literalmente de boca aberta.

 No dia seguinte eu queria seguir viagem. Arrumei toda a baga-gem, fiz uma pequena manutenção na bike e o checkout no hostel . Tomeio café da manhã e coloquei a bicicleta para o lado de fora. Sentia umasensação de estar saindo sem vontade. Parecia que ainda não era hora deir embora e então Pablo, Mariana e Teresa decidiram ir à praia e me

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convidaram. Que obrigação em partir eu tinha? Decidi cancelar minhasaída e ficar mais um dia, foi bem engraçado.

Fomos à praia. Ficamos num lugar chamado “La Boca”, que nãoera bem uma praia, mas sim um lugar com água calma e rasa, onde pudemos nos banhar. Dizer que a água da costa uruguaia estava quente éuma grande mentira. Sempre muito fria, mas tudo era motivo de festa etodos se renderam ao mar.

Fizemos um castelo de areia enorme. Foi um dia inesquecível nacompanhia de meus novos amigos. À noite visitamos um cassino enorme.Era a primeira vez que eu entrava num cassino. Não joguei, mas compreiuma moeda por um dólar para guardar de recordação.

Foto: Eu, Mariana, Teresa e Pablo

Mais tarde, em meu site, escrevi:

“Nossa amizade de três dias é como ocastelo de areia que fizemos em La Boca. Ficou muito bonito e talvez du-re somente até a próxima maré... outalvez dure pra sempre! Quem sabe?”

Punta del Este faz parte de uma pequena lista de lugares para osquais tenho que voltar um dia. É uma daquelas lembranças que se des-tacam e que deram brilho à minha viagem. Obrigado Punta!

 No dia da minha partida, Teresa me presenteou com um guia deviagens da América do Sul e escreveu uma mensagem na capa do guia,que dizia:

“Thiago, este guia te acompanhará levando contigo meu desejo de

aventura. Divirta-se e aprenda!” Teresa Bahia - 13 de dezembro de 2008

Ainda pela manhã me despedi de Pablo, que seguiu caminhandocom seus amigos franceses. Mariana, Teresa e eu acompanhamos Pablocom os olhos até que virou a esquina.

Depois foi a minha vez. Depois de dias maravilhosos ali, tive queorganizar minha bagagem novamente. Sempre foi muito estranha a horada partida. Dei um abraço forte em Mariana e Teresa e segui. Podia sentir o olhar forte de Teresa, me desejando sorte, enquanto me afastava.

O sentimento que tinha em momentos assim é extremamente

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difícil de descrever. Ao pisar na rua de novo, ao sair da cidade e entrar narodovia, sentia uma mescla de coisas que faziam um barulho tremendodentro da minha cabeça. Era medo, confusão, excitação, preguiça, espí-rito de aventura, enfim, uma mescla louca de sentimentos. Acho que estesmomentos eram o que realmente me mantinham na estrada. Faziam-mesentir vivo como nunca antes havia sentido. O sangue borbulhava.

 No quadragésimo sexto dia, Punta del Este ficou para trás e tal-vez este tenha sido o ponto em que definitivamente “despertei” para oque estava fazendo. Ansiava por mais momentos agradáveis como os quehavia vivido em Punta. Estava começando a abrir a caixinha surpresa – aviagem – que tinha nas mãos e dando uma espiada dentro em busca de...mais surpresas, mas eu iria ter que ser paciente. Só descobriria uma decada vez!

Texto escrito por Teresa, especialmente para o livro:

 Assim o vi partir: franzino e com a bicicleta pesada. As lágrimas to-maram conta dos meus olhos. Como gostaria de acompanhá-lo!

Teresa Bahia

Onde a vida ainda é vida

Seguia pedalando através daquele dia de sol escaldante do sul doUruguai através da “Ruta interbalnearia”. Pelo litoral podia ver o mar e passei por várias entradas de balneários lindos da região. Creio que tenhame precipitado um pouco com minha pressa neste trecho e hoje pensoque talvez tivesse sido muito proveitoso se tivesse visitado mais praiasdesta parte. Às vezes fico pensando em tudo que poderia ter acontecidonum determinado lugar se o tivesse visitado.

 Num determinado momento encostou um carro, um homem des-ceu e fez um “T” com as mãos, como um pedido de tempo, para que eu parasse. O brasileiro Pietro ficou muito entusiasmado ao saber que eutambém era brasileiro. Disse-me que vivia no Uruguai há muitos anos eera dono de uma pousada chamada Kururú numa das praias próximas.

Após alguns minutos de conversa ele me presenteou com 1000 pesos uruguaios, o equivalente a cerca de R$ 100,00 e disse: “Hoje seualmoço é por minha conta!”. Agradeci e disse que me sentia encantadocom a tranquilidade e com as belezas naturais do seu litoral. Então ele

definiu o Uruguai em uma frase: “O Uruguai é um desses cantinhos domundo onde a vida ainda é vida. Aquele tipo de lugar de que ninguém

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fala, mas que não precisa de publicidade”. Era a frase que eu vinha buscando nos últimos dias. Para mim foi a melhor definição que podiaouvir e concordei totalmente.

Senti exatamente isso nos poucos dias que estive neste país.Realmente este país havia me mostrado uma tranquilidade impres-sionante e apesar de muito pequeno, era encantador. Parece que o tempotem realmente outro ritmo neste lugar. Isso, de certa forma se refletia emmeu estado de espírito. Ao mesmo tempo que ficava mais longe de casa eme sentia mais livre, também me sentia extremamente tranquilo. Este pais é muito mais que um paraíso fiscal!

Uns 20 quilômetros antes de chegar à capital Montevidéu pareinum posto de combustíveis para comer algo e então encontrei um senhor  paulista que estava viajando pelo Uruguai de moto sozinho. Fiz uma foto

dele e aproveitei para perguntar algumas coisas sobre a cidade.

Dia 46, 2356 km pedalados

Montevidéu, Uruguai

Conforme fui me aproximando ficou claro que era uma cidadegrande, principalmente para os padrões uruguaios. A zona metropolitana

de Montevidéu tem aproximadamente 1,7 milhão de habitantes, o querepresenta aproximadamente a metade da população uruguaia.Seguindo pela via expressa o que mais me assustou foi uma

quantidade enorme de fumaça no ar. Boa parte da frota de automóveis é adiesel e isso aumenta consideravelmente a poluição local, mas como acidade está perto da costa a fumaça é facilmente dissipada e desaparecelonge das vias expressas.

Cheguei ao centro da cidade num ritmo forte. Estava feliz de

haver chegado à capital uruguaia pela primeira vez. Até ali percorri 140quilômetros, mas apesar disso me sentia bem, estava muito bem física-mente.

A cidade é movimentada, totalmente distinta das outras capitaisque visitei. Extremamente peculiar. Fica difícil fazer qualquer tipo decomparação pois o lugar me pareceu único. Obviamente, se tratando deuma capital sulamericana deve haver criminalidade, mas acho que foi acapital que mais me passou segurança em toda a viagem. Não podiaacreditar que aquela atmosfera calma daria lugar a qualquer tipo deviolência.

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Logo chegava à praça da independência, bem no centro da cida-de. Neste momento percebi como meu espanhol não me servia para quasenada. Falava só o básico e quando precisei de informação, ninguém meentendia muito bem. Como alguém pode perguntar o endereço de algumlugar ou o nome de uma rua sem saber que rua é calle e endereçoé direccíon? Nem os deuses do portunhol poderiam me salvar! Apesar detudo, as pessoas tentavam me ajudar e foram muito educadas quandofazia minhas perguntas enigmáticas. Tudo que queria era saber ondeficava o Hostel   International de Montevidéu. Por conta de meu espanholextremamente básico demorei meia hora para encontrar o lugar.Inclusive, enquanto buscava, cheguei a passar inúmeras vezes à frente dolocal.

Acabei me hospedando num hostel chamado Che Lagarto e não

no  International, mas o lugar era incrível. No meu quarto havia umamoça alemã e uma outra, creio que americana, que somente aparecia demanhã para dormir e passava toda a noite fora.

Havia um grupo de brasileiros que estava viajando de carro desdeCuritiba e como todos, eles ficaram muito espantados em saber que euestava viajando de bicicleta. Um deles era estudante de medicina e iria seespecializar em ortopedia. Quando contei a ele sobre as dores que haviasentido no joelho no início da viagem ele confirmou que havia uma

grande possibilidade de ser somente uma tendinite, como eu pensava.Fiquei somente duas noites em Montevidéu e apesar de ser umacidade muito agradável, minha passagem por ali não teve muito brilho. Na hora da saída da cidade resolvi seguir rumo ao norte, rumo a cidadede Canelones. Assim, por um breve momento abandonaria a rota lito-rânea. A saída da cidade foi fácil e poucos minutos depois de começar a pedalar já estava fora da cidade.

Meu plano era visitar a cidade de Santa Lucia só para conhecer o

camping  municipal que o canadense Norman havia me recomendadoainda na Barra do Chuí. Passei direto por Canelones e segui rumo a SantaLucia. Realmente o camping  era fabuloso, exatamente como Normanhavia descrito. Talvez um dos melhores campings que estive em toda aviagem.

O Caminho até Colonia del Sacramento

Saí de Santa Lucia e não sabia exatamente a distância que teriaaté Colônia del Sacramento, que seria a última cidade uruguaia quevisitaria e que seria meu ponto de partida à Argentina. A única coisa que

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sabia era que seria possível tomar um barco até Buenos Aires, cruzando afoz do Rio da Prata.

Meus R$ 600,00, ou melhor, meus 6000 pesos uruguaios, já esta-vam quase acabando. Tinha gastado bastante em Punta e Montevidéu.Tinha somente uns trocados para almoçar e percebi que não teria outraescolha além de ir direto à Colônia. No caminho não encontraria cidadesgrandes e consequentemente casas de câmbio, o que deixava irrelevantesos 1000 dólares em notas de 100 que levava na bagagem. Obviamentenenhum restaurante de beira de estrada trocaria uma nota de 100 dólares. No Uruguai não existem grandes churrascarias na estrada como no Brasil.Existem somente pequenos e extremamente simples restaurantes fami-liares, ou seja, nem mesmo meu cartão de crédito seria útil.

Depois de Santa Lucia fiz uma parada num modesto restaurante

nas proximidades da cidade San José de Mayo para comer algo e en-quanto comia um senhor gritou:

- Ah mira! Hay otro ciclista!Havia outro viajante ciclista passando a frente do restaurante e

 pude vê-lo de relance. Estava tão cansado por causa do calor que nem meapressei em tentar falar com ele. Quando saí do restaurante, em meio aosol escaldante, ele já havia desaparecido.

Meu dia de luta estava só começando. Depois do almoço o calor 

aumentou e deveria estar fazendo algo próximo dos 40º, e quando passei por um pedágio, já com 70 quilômetros pedalados, fiquei sabendo queteria mais exatos 70 quilômetros quando vi uma placa. Neste momentotive que estabelecer a meta na cabeça. Somente desta forma conseguiria percorrer 140 quilômetros naquele calor insuportável. Coloquei meusfones de ouvido e, ao som de Infinita Highway, dos Engenheiros, seguisem questionar a situação. Não estava tão ruim assim. De fato estavadesfrutando a paisagem e o fato de pedalar por estradas tranquilas não me

causava qualquer tipo de preocupação. Somente depois o caminho ficouum pouco complicado, com um longo trecho sem acostamento. Nestahora optei por seguir pela contramão, às vezes até atrapalhando um poucoo tráfego. Estava tão concentrado no fato de ter um longo caminho a percorrer que acho que me arrisquei um pouco. Queria chegar, mealimentar e descansar. No final, até a entrada de Colonia del Sacramento, percorri exatamente 150 quilômetros. Novamente quase cheguei ao limitefísico.

Quando cheguei à parte central da cidade fui logo gastar meusúltimos trocados para comer um lanche enorme. Depois segui para umhostel . Estava precisando de um bom banho e uma cama. Novamente o

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ambiente do lugar era incrível, mas creio que já estava me acostumando e já não dava tanta atenção ao fato de estar cercado de turistas o tempotodo. Ali conheci outro grupo de brasileiros. Até chegamos a fazer um pequeno churrasco juntos e depois eles me passaram o endereço de umhostel em Buenos Aires chamado Rancho Urbano. Este passaria a ser oúnico endereço que teria na capital argentina.

O dia seguinte todo passei em Colonia. A cidade é da época dacolônia e sua arquitetura é fantástica. Caminhei vários quilômetros visi-tando alguns pontos turísticos.

Um fato curioso é que esta região já pertenceu à colônia portu-guesa e espanhola, então é possível notar muito a influência de ambas asculturas, embora não sejam muito diferentes. Um bom exemplo é o calça-mento das ruas. Disseram-me que as ruas planas são espanholas e as ruas

arredondadas são de origem portuguesa, mais eficientes para escoar aágua da chuva. Outra coisa muito visível são os azulejos, que existem por todos os cantos nas fachadas.

 Nesta cidade, minha passagem pelo Uruguai chegou a seu fim.Foi rápida e tranquila. O que mais me impressionou neste trecho foi jus-tamente a atmosfera deste país. Foram somente 12 dias, mas certamente éum lugar que jamais esquecerei. Tampouco me esquecerei do calor dosdias que antecediam o verão. Pude visitar desde os pontos mais turísticos

até lugares que não fazem parte dos pacotes de viagem.Do alto de um farol turístico em Colonia já podia observar, deforma tênue, os edifícios de Buenos Aires, do outro lado da foz do Rio daPrata, a mais de 40 quilômetros de distância.

Minha ideia era fazer o caminho que a imensa maioria das pes-soas faz para seguir do Uruguai para a Argentina. Cruzando a foz do Rioda Prata evitaria uma enorme volta por terra.

Cruzar a foz do imenso rio foi tranquilo. O processo foi simples e

sem burocracia. O mais difícil foi conseguir colocar a bicicleta com todaa bagagem dentro do enorme Ferry Boat .A cada minuto podia ver Buenos Aires ficando maior na janela.

Uma visão impressionante!

Fotos do capítulo 2: www.trilhasulamericana.com.br/2 

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Dia 51, 2587 km pedalados

Buenos Aires, Argentina

 Mi Buenos Aires querido!

uando desci do Ferry, já do lado argentino, me senti deslo-cado e sozinho. Mil coisas passaram pela minha cabeçaassim que toquei o asfalto da rua em frente ao porto.

Era a primeira vez que pisava na Argentina e já tinha a pretensãode cruzá-la quase inteira! Por alguns segundos, antes de iniciar a peda-lada “sem destino definido”, parei e olhei ao meu redor. Pensei: “Estouem Buenos Aires e cheguei aqui de bicicleta”. Então um breve e tímidosorriso de satisfação surgiu em meu rosto.

Está certo que não havia cruzado um quilômetro sequer em soloargentino, mas achei interessante ter a capital federal como ponto de partida. Ao mesmo tempo era um êxtase e um grande desafio. Para ondedeveria seguir? Tinha o endereço do hostel numa avenida chamada Cor-rientes, a qual já sabia que se tratava de uma das principais da cidade,mas antes de procurar, decidi visitar um dos principais símbolos dacidade e do país: a Casa Rosada. Depois perambulei um pouco pelo cen-tro até chegar à avenida que procurava cerca de uma hora mais tarde. No

caminho cruzei com um japonês que tinha uma bicicleta típica de longasviagens. Não estava com bagagem, mas a bike estava preparada para issoe sua aparência deixava claro que não era dali. Por mais incrível que pareça, nós não conversamos. Passamos um ao lado do outro e apenasacenamos. Foi engraçado, mas estava louco para chegar a um lugar maiscalmo. Quando enfim encontrei o endereço foi um alívio. Queria sair o

Q

mais ráp

 

ido possível daquelecaos urbano, seu barulho e

fumaça. 

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Como sempre, conheci muitos turistas no hostel  e inclusive meconvidaram para uma festa, mas estava querendo descansar. Havia uminglês totalmente louco hospedado lá. Toda hora ele me perguntava se euestava louco e se achava normal alguém vir a Buenos Aires de bicicletadesde o Brasil. Perguntava: “E as suas bolas, cara?!” Uma figura muitoengraçada.

O encontro com Vincent Degove

 No segundo dia em Buenos Aires eu já estava instalado. Aindanão sabia quantos dias permaneceria na cidade. Ficar sozinho numacidade grande assim não é fácil. Posso ficar sozinho no campo ou num

lugar deserto durante dias, mas ficar sozinho numa cidade grande aindaera um sacrifício tremendo para mim. Ficava deprimido rapidamente.Além do mais, aquele calor de inicio de verão numa cidade daqueletamanho já estava me estressando.

Foi então que fui acessar meus e-mails e havia uma mensagem deum tal de Vincent Degove. Me dizia num português razoável que haviainiciado sua viagem de bicicleta no Rio de Janeiro e ao passar pelaReserva Ecológica do Taim, no extremo sul do Brasil, havia conhecido

uns bombeiros da reserva que o passaram o endereço do meu website. Amensagem que segue está escrita exatamente como Vincent me escreveu:

 sábado, 20 de dezembro de 2008, 11h56min

Olá, Muito prazer de conocer seu viagem e seu site! Sou francês e estou fazendo exactamente o mesmo viagem de bicicleta em America do Sul. Comenzeem Rio de Janeiro e viaje ao largo da costa, passando pelo Uruguay. Estouagora em Buenos Aires, Argentina. Gente me falou de você durante minha

viagem, por ejemplo na reserva ecologica do Tain, cerca da frontera Brazil-Uruguay... Seria possivel de vernos em Buenos Aires, para falar, e quizas fazer uma parte do viagem juntos? (tambem vou até Patagônia).

Chao, Vincent Degove Buenos Aires: Hostel Inn, Humberto Primo 820, San Telmo

Ele queria me encontrar. Achei realmente uma coincidência incrí-vel, mas no momento não dei muita atenção. Queria dar uma volta e

caminhar um pouco pelas ruas de Buenos Aires. Gosto de caminhar semrumo por um lugar desconhecido. Geralmente faço isso até me perder!

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 Na rua descobri que cartão é tarjeta e fui comprar um. O dono da banca foi legal comigo e disse: “Cuidado com essa bolsa aqui em BuenosAires, hein!” Não consegui fazer o cartão funcionar. Depois de perder um bom tempo no orelhão - que estava lotado de anúncios de prostitutase afins - desisti. Voltei ao hostel e então consegui usar o cartão pra ligar  pra casa. Queria dar um alô porteño. Queria falar com meus pais e comRenata. Era aniversário dela.

Respondi o e-mail de Vincent, passei o endereço de onde estavahospedado e perguntei se havia problema se seguíssemos falando em português. Num segundo e-mail, me disse que viria me visitar. Dissetambém que em seu hostel ele conheceu uma francesa e um equatorianoque eu havia encontrado em Punta del Este, no Uruguai. Às vezes éincrível como este mundo é pequeno. Minha viagem está cheia de

encontros, desencontros e coincidências absurdas. Deixei o texto comofoi escrito por Vincent:

Olá Thiago,

 Nenhum problema pra entender o português, mas muito mais dificulta-des para escreverlo bêm!

Vou ir a seu hostel numa hora o dois mais o menos, esperando que vocêesta lá. Não se cuando vou partir, quizas vou ficar em Buenos Aires para o Natal para pasarlo com unos amigos, quizas vou pegar a ruta [estrada] antes...

 Em meu hostel tem uma francesa e um ecuatoriano que me falaramtambém de você, que encontraram em Punta del Este! Você é conocido[conhecido] ;-)

 Até mais, abrazoVincent 

Dei uma saída e então, ao voltar, um cara magro, de cabelos ar-

repiados e um jeito desengonçado veio falar comigo. Esticou a mão edisse em português “Oi Thiago, eu sou Vincent!”.Fiquei bastante surpreso, mas é claro que ele já me conhecia atra-

vés das fotos do meu site. Neste momento acabara de conhecer meu com- panheiro de viagem pelos próximos 45 dias.

Mudei-me para o hostel onde estava hospedado Vincent, a quatroquilômetros de onde eu estava. Minha passagem solitária por BuenosAires estava terminada e muitos bons acontecimentos estavam prestes aacontecer. Cruzar quatro quilômetros em pleno centro de Buenos Aires

correndo como um louco de bicicleta atrás daquele francês foi talvez amaior aventura da viagem até então.

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Ao chegar ao hostel  de Vincent encontrei o equatoriano Pablo,com quem havia feito uma amizade muito grande no Uruguai. Quandome viu disse: "Ah cara! É você mesmo!". Ainda estava no inicio da via-gem, mas aos poucos estava descobrindo que encontros como esse fica-riam pra sempre na memória.

A noite de Buenos Aires é agitada. Todas as noites saíamos para pelo menos tomar uma cervejinha. Nestes momentos todo o esforço emeconomizar dinheiro vai por terra. Não queríamos nem saber se as ruaseram perigosas no meio da madrugada. Nós estávamos sempre ali,descobrindo os lugares mais inusitados de Buenos Aires.

Estar conhecendo Vincent e ter reencontrado Pablo foram coisasmarcantes na minha passagem pela capital argentina.

Cintia e Priscila

 No dia seguinte duas garotas muito assustadas chegaram ao hos-tel . Eu estava na recepção e percebi que algo errado havia acontecido. Amoça loira me parecia “gringa”, mas a morena tinha algo de brasileira.Então deixei as "antenas" ligadas esperando escutar algo claro de por-tuguês. Logo saiu um pouco de português e aí entrei na conversa. Quem é

que não quer ajudar duas garotas bonitas?!As gaúchas Cintia e Priscila tinham acabado de serem roubadas.Estavam fazendo umas fotos num ponto turístico da cidade e um rapazarmado acabou levando um pouco de dinheiro, sua câmera fotográfica etodas as fotos que tinham de Buenos Aires.Elas ainda tremiam de susto, então eu disse:

- Vamos sair pra fazer de novo as fotos que vocês perderam, ok?Elas adoraram a ideia e então, no dia seguinte, visitamos alguns

lugares como a Casa Rosada, o Obelisco, o Café Tortoni e fizemos algu-mas fotos pelas ruas da cidade que estava muito tranquila no domingo. Não havia tráfego e estavam ocorrendo alguns eventos no centro

da cidade. Mais tarde saímos pela noite de Buenos Aires. Agora éramosseis, pois havíamos conhecido outro brasileiro chamado André. Eu,Vincent, Pablo, Cintia, Priscila e André nos divertimos muito nestaúltima noite. Visitamos a bonita região do Porto Madero e acabamos anoite num outro hostel jogando sinuca até altas horas da madrugada.

 Na minha cabeça havia todo um continente para cruzar e sabiaque teríamos que seguir, mas aproveitava cada segundo com essas pes-soas. Não sabia quando teria momentos assim novamente.

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Agora teria meu segundo companheiro de viagem. Sentia queestávamos ansiosos para conhecer a Argentina de verdade. A Argentinaque existe fora de Buenos Aires e principalmente o povo que existefora de Buenos Aires. Embora ti-vesse gostado muito da cidade,ainda tinha todo um país a cruzar.

Cintia, Priscila, Pablo e Vincent,na noite de Buenos Aires

Como sempre, as despe-didas não foram fáceis. Deixar 

 para trás pessoas conhecidas emmomentos tão especiais nunca foi fácil para mim.Havia chegado a Buenos Aires de barco, mas tinha que sair de

 bicicleta. "Obrigado Buenos Aires", eu dizia. Estava feliz de haver tidouma passagem tão tranquila, feliz e, sobretudo sem problemas, por estacidade maluca.

 No primeiro dia com Vincent já estávamos começando de ressa-ca. Essa não foi a única vez que isso aconteceu com a gente. Difícil saber se éramos dois boêmios ciclistas ou dois ciclistas boêmios!

 Nosso próximo caminho seria pela costa argentina. Nossas ca- beças estavam focadas em dois lugares: Mar del Plata e a grande aven-tura através da Patagônia que nos aguardava. Mas muitas surpresas nosesperavam pelo caminho.

Palavras de Pablo – traduzidas do espanhol –, escritas para o livro:

 Pode ter sido o destino ou simplesmente as coisas da vida que nos

 fizeram encontrar. O importante é que vê-lo montado em sua bicicleta me surpreendeu, mas ainda não conhecia o verdadeiro propósito da sua viagem, atéo momento em que começamos a interagir, e cheguei a entender o quantoimpressionante era seu projeto.

O admirável desta história é que quando nos encontramos, cada um denós estava buscando seu próprio destino. O que mais admiro no Thiago são suasambições e sua força para lutar pelo que realmente quer. Esta força que cada pessoa deveria ter para cumprir seus objetivos.

 A principio pensei que, para mim, seria impossível realizar algo assim.

 Ao analisar melhor a situação me dei conta que sim, poderia realizar se fosseuma de minhas aspirações.

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 Penso que esta é a essência da vida, aprender a nos conhecer e aconhecer o lugar onde vivemos. Romper essas barreiras culturais e alguns tabusque ainda estão presentes. Saber que se pode contar com as pessoas, inde- pendente de sua raça, cultura ou religião.

 Pablo Sánchez

Saímos de Buenos Airesem meio ao trânsito caótico. Logoseguíamos por uma das principais

saídas da cidade rumo a La Plata. Ao passar pela belíssima cidade,decidimos seguir mais um pouco. Estávamos descansados e vivendo osdias mais longos do ano, pois nestas latitudes e próximo ao solstício de

verão os dias ganham muitas horas de sol.O que mais nos impressionou foi o fato de estarmos muito pertoda capital argentina e numa região mais povoada que a maior parte do país e ainda sim estávamos cruzando uma região quase totalmente rural.Havia campos e mais campos a nosso redor.

Vincent estava radiante. Estudante de Agronomia ele é um afi-cionado por agricultura e estava aproveitando sua viagem para aprender um pouco sobre este tema nas localidades por onde passava.

Depois de 85 quilômetros, o fim de tarde chegou e então come-çamos a procurar um lugar para acampar. A melhor parte de estar acompanhado é o fato de poder acampar praticamente em qualquer lugar. Não estar sozinho possibilita muito mais segurança.

 Buenos Aires ficou para trás [...]. À nossa frente estende-se toda a América Latina. [...]. Parecemos aventureiros... Inspiramos admiração e inveja por toda parte”. Estou contente por deixar para trás o que chamam decivilização, e estar um pouco mais perto da terra.

 Diários de Motocicleta (Film Four, baseado em “Notas de viaje”, de Ernesto Guevava)

Encontramos um restaurante, mas estava fechado. Mesmo assimchamamos os donos. Ao lado havia umas árvores e um belíssimo grã-mado, perfeito para acampar.

Perguntamos aos donos se era possível acampar por ali e se era possível que nos vendessem algo simples para comer, mesmo o res-taurante estando fechado. Foram extremamente simpáticos conosco. Na

mesma hora nos disseram que iriam abrir o restaurante e preparar algo para comermos.

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Olhava para a cara de Vincent e sua expressão era de surpresaextrema. Não podíamos crer em tamanha hospitalidade. Aqueceram uma“parrilla” – o churrasco argentino – e até trouxeram uma Quilmes. Entãoficamos de papo um pouco.

Durante a conversa, não me lembro de onde, mas surgiu o tema“Chile” e os argentinos aproveitaram para falar um pouco sobre seus“queridos” vizinhos. Certamente Vincent não gostou muito de escutar algumas coisas e disse: “Sou metade chileno, minha mãe é chilena!”. Eentão, por alguns segundos, fez-se o silêncio. Logo em seguida disseram:“Ah, mas é claro que não estamos falando mal de todos. Só de alguns!”.Foi bem engraçado.

Colocamos as barracas no gramado. Estávamos muito bem ali-mentados e tranquilos, afinal novamente gente de bom coração havia nos

ajudado sem pedir nada em troca, bom, pelo menos até perguntarmos ovalor da conta.

Assim que perguntamos sobre o preço do que havíamos consu-mido ficou claro o que estava ocorrendo. Disseram-nos que a “conta”seria de 120 pesos, o equivalente a um jantar completo para duas pessoasnum bom restaurante. Nossa cara caiu! Toda aquela agilidade e paciênciaem nos ajudar vinham exclusivamente do fato de quererem o dinheiro dedois turistas.

Foi decepcionante, mas como já estávamos com as barracas mon-tadas, resolvemos ficar. Já estava escuro e sair não resolveria nosso pro- blema. Pagamos o que pediram e nos deitamos.

Para mim, pessoalmente, faltou comunicação. Ainda não tinhaargumentos em espanhol para demonstrar minha insatisfação, então mi-nha postura foi ficar calado.

Vincent estava mais irritado e foi reclamar. Perguntou ao dono dolugar se este era o preço habitual cobrado por ele. Então a pessoa

respondeu: “Si quieres, devolvo la plata”... Óbvio que estava se apro-veitando de nós.Vincent é como eu. Faz questão de pagar, mas quer pagar o preço

 justo. Sair sem pagar não cabia em nossa postura. Não cogitávamos estaideia. Achamos melhor deixar como estava para evitar maiores pro- blemas. Afinal estaríamos dormindo em seu quintal.

De manhã nos ofereceram um café da manhã. Imaginamos que játivéssemos pagado, que o café já havia sido incluído na conta pagaanteriormente, mas não! Tiveram a cara-de-pau de cobrar mais 25 pesos.

Foi a primeira vez que alguém tentou me passar para trás naviagem. Sentia-me pessoalmente magoado com a situação. Eles foram tão

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absurdamente amáveis com a gente! No final acabamos aceitando aquilo como aprendizado e deste

dia em diante passamos a perguntar o valor das coisas sempre comantecedência.

Este fato apenas nos serviu para ficarmos mais atentos, mas emnada mudou em nossa postura com o querido povo argentino. Sabíamosque se tratava de um caso isolado, uma peça pregada pelo acaso que poderia acontecer em qualquer lugar, nada além disso. Para ser sincero,lições aprendidas, fizemos questão de esquecer completamente o ocor-rido.

Laura de Verónica

Seguimos nosso caminho. Ainda estávamos aprendendo sobre oritmo de cada um. Pelo que percebi teríamos grandes possibilidades deconseguirmos ficar bastante tempo juntos. A companhia de Vincent era bastante agradável e sempre tínhamos muito assunto para conversar.

Quando entramos na pequena cidade de Verónica fizemos uma parada num posto de combustíveis para comer. Ali tiramos nossa pri-meira foto com as bicicletas. Em seguida, uma moça parou seu carro e

disse a Vincent que havia parado porque achou que ele era um antigoamigo, seu que não via há muito tempo.Conversamos um pouco com a simpática Laura e então ela nos

 perguntou se já tínhamos onde nos hospedar por ali. Dissemos que aindanão sabíamos onde dormiríamos e então ela nos convidou a acampar nosfundos de um terreno de seu pai. Topamos e a seguimos até o lugar.Havia uma construção, como um depósito e ao fundo um gramado comuma mesa de madeira. Colocamos nossas barracas ali e Laura se foi.

Disse-nos que voltaria mais tarde.terça-feira, 23 de dezembro de 2008, 23h43min

 Estou escrevendo da minha barraca aqui na cidade de Verónica, na Argentina. Não sei se o Boca Juniors foi campeão, mas acho que sim. Há muita festa nas ruas.

Em nosso acampamento resolvi gravar uma entrevista com Vin-cent. Respondeu tudo em português e até usou uma gíria:

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- Quero que você fale algo de improviso. Algo sobre você e sua viagem.- Ok... Bom, bom dia! Me chamo Vincent, sou meio chileno e meio

 francês, mas nasci e cresci na França, em Paris. Sempre quis fazer uma viagemde bicicleta pela América Latina e penso nisso desde os dezessete anos, agoratenho 22. Queria fazer com um amigo, mas ele não pôde.

 Estou na estrada há dois meses. Comecei a viagem no Rio de Janeiro eagora estamos aqui na Província de Buenos Aires... Que mais?... Até o momentoa viagem foi boa. Parei muito no Brasil, que foi um lugar que gostei demais!Também viajar sozinho é uma coisa muito boa. Facilita muito, principalmente para conhecer gente. Às vezes também é como: "O que estou fazendo aqui nestabicicleta?", mas de maneira geral é uma experiência realmente muito boa.  Estoumuito contente de ter encontrado alguém para fazer alguns quilômetros juntos. Penso que vai dar certo, já estamos juntos há dois dias... e... é isso! (risos)“Fechou!”

- Gracias Vincent! Muito bom!

À noite fizemos uma fogueira e Laura voltou. Tomamos um vi-nho ao lado do fogo e depois ela nos convidou a sair para tomar umacerveja com seus amigos. Saímos os três de bicicleta e alguns minutosdepois chegamos à casa de seus amigos. Ali ficamos algumas horas jogando conversa fora ao redor de uma mesa. Foi muito interessante. Foia primeira vez que tivemos a oportunidade de estar rodeados de jovensargentinos.

 Na manhã da véspera de Natal compartilhamos um autêntico ma-te com Laura e seguimos viagem. Ela chegou a nos convidar a ficar maistempo, mas queríamos mesmo seguir. Como bons viajantes, tínhamos queseguir nosso caminho.

Setenta e sete quilômetros depois já estávamos bem cansados echegamos a um pequeno povoado chamado Cerro de la Glória. Passa-ríamos o natal acampados sozinhos. Passamos numa despensa paracomprar pelo menos um vinho, já que se tratava de uma ocasião especial

e então, em seguida, pedimos informação a um morador sobre a possibilidade de acamparmos num campo de futebol que havia à frente.Queríamos saber se era suficientemente seguro ficar por ali. O morador nos disse que não havia problema algum, pois se tratava de um lugar muito tranquilo e acabou nos presenteando com um rocambole doce!Disse-nos que era “un regalo de Navidad” (um presente de Natal).

Montamos nossas barracas atrás das traves do gol onde haviauma árvore e uns carros velhos abandonados. Estávamos felizes, afinal

era Natal. Creio que tenha sido a primeira vez que passei a noite de Natallonge de meus amigos ou família.

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À noite, enquanto eu cozinhava um pouco de macarrão, Vincentfez uma fogueira. Nossa ceia foi extremamente simples, mas foi uma dasmelhores noites da viagem. Tomamos no gargalo toda uma garrafa de um bom vinho argentino e ficamos conversando ao lado da fogueira, que nosmantinha aquecidos, durante horas. Neste momento passei a conhecer muito da personalidade de Vincent. Descobrimos que tínhamos cabeças parecidas sobre a maioria dos temas. Encontrei uma pessoa muito inte-ligente e “antenada”. O fato de ambos estarmos realizando uma “loucura” parecida era apenas uma coincidência a mais. Esta noite foi uma pas-sagem especial e reforçou nossa amizade. Éramos humanos em suaessência máxima, dividindo o calor do fogo, a comida e a bebida aorelento. Sem carro, sem estatus, sem uma reputação ou “imagem” a zelar.

“Lo que teníamos en comum: nuestra inquietud, nuestro espíritu sueñador y unincasable amor por la ruta...”

“O que tínhamos em comum: nossa inquietude, nosso espírito sonhador e um incansável amor pela estrada...”

 Diários de Motocicleta (Film Four - 2004, baseado em “Notas de viaje”, de ErnestoGuevava)

Dona Joana e a Guerra das Malvinas

O dia de natal não estava fácil. O calor estava implacável, masdecidimos tentar pedalar o mais longe possível. Ao passar em frente a umsítio, havia uma plaqueta onde estava escrito “Hay huevos” (Há ovos).Pensei que seria uma boa oportunidade de comer algo bom, afinal está-vamos cansados e com fome. O calor tinha nos castigado bastante e Vin-cent gostou da ideia. Paramos para comprar.

Minutos depois uma senhora muito simpática nos atendeu. Dis-semos que queríamos alguns ovos e, ao ver que estávamos viajando de bicicleta, sugeriu cozinhar os ovos, assim poderíamos levar mais facil-mente, sem ter risco de quebrá-los.

Assim que foi em direção à sua modesta casa, se virou e nos perguntou se precisávamos de mais alguma coisa. Olhei para Vincent eme deu um sorriso. Neste ponto da viagem já o conhecia razoavelmente bem e sabia que ele estava pensando o mesmo que eu: uma oportunidade para acampar com segurança.

Dissemos à simpática dona Joana que estávamos buscando umlugar para acampar e perguntamos se era possível acampar em seu gra-

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mado. Nos disse que estávamos a apenas três quilômetros de uma pe-

quena cidade chamada General Conesa, mas que se quiséssemos ficar acampados em seu sitio não seria problema e ficaria feliz em poder nosajudar. Joana tinha um jeito de “tia”, daquelas que sempre querem agra-dar os sobrinhos. Acolheu-nos com um sorriso enorme no rosto.

Antes de acampar, resolvemos seguir até a cidade para comprar alimentos e conhecer o lugar. Ao chegar à praça central, nos deparamoscom um grupo de jovens argentinos. Logo nos enturmamos e acabamoscompartilhando um mate. Na turma havia uma única menina, chamadaMariana. Também me recordo do nome de um dos rapazes: “Sebas”,Sebastian. Foi muito divertido estar ali. Todos estavam muito excitadosem receber em sua pacata cidade um brasileiro e um francês errantes.

Combinamos de nos encontrar mais à noite para jogar sinuca num bar evoltamos à casa de dona Joana.

Vincent e eu com os jovens argentinos na praça central de GeneralConesa 

Acampamos em seugramado, ao lado de

sua Casa. Emseguida seu maridochegou do trabalho eveio falar conosco.Também muito

simpático, nos convidou a tomar ca-fé e comer à mesa com eles. Novamente encontrávamos apoio de gente desconhecida.

Antes de comer, nos banhamos. A casa de Joana era extrema-

mente simples e não havia luz elétrica. Toda a iluminação era feita comvelas e luminárias a gás. A água do banho era aquecida com a queima delenha e usamos latas e uma pequena bacia.

Durante nossa conversa, a luz de velas, descobrimos que mesmoa poucos metros da rodovia e da rede elétrica, haviam cobrado umaquantia absurda de dinheiro para a instalação e eles não tinham condiçõesde pagar. Não me recordo exatamente da quantia, mas lembro muito bemque naquele momento havia me parecido totalmente abusiva.

Conversamos por horas com esta gente simples e acolhedora. Eraum prazer tremendo para mim e Vincent estarmos conversando com

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gente simples. Mais uma vez tendo a oportunidade única de conhecer o povo argentino de verdade, como poucos viajantes têm a chance de ex- perimentar. Vincent parecia estar em total estado de êxtase. Eu sabia queeste tipo de experiência era justamente o que ele estava buscando em suaviagem.

Durante nossas conversas surgiu o tema “política” e obviamentefalamos sobre política argentina. Todos, sem exceção parecem discordar totalmente do governo de Cristina Kirchner e a maioria das pessoas temuma imagem positiva do Brasil e principalmente relativa ao presidenteLula. E seguindo o rumo, Joana acabou entrando no famoso tema sobre aGuerra das Malvinas.

A Guerra das Malvinas foi um conflito entre Argentina e o ReinoUnido que durou doze dias durante o mês de junho de 1982. As ilhas, que

ficam próximas à costa sul da Argentina, haviam sido “conquistadas” pelo Reino Unido no inicio do século XIX, foram reclamadas pelaArgentina, com o argumento que haviam sido invadidas. Este assunto écontroverso e complicado. O fato é que somente em doze dias 649 sol-dados argentinos e 255 ingleses morreram no conflito que foi vencido pelo Reino Unido.

Durante nosso papo ficou evidente o que a maioria dos argen-tinos pensa sobre este tema. Sentíamos um fervor nas palavras de Joana

quando falava sobre isso. O que mais nos chamou a atenção foi o fato deJoana culpar totalmente os chilenos pela perda da guerra. Ela dizia: “LasMalvinas son argentinas!” e dizia que os chilenos eram todos traidores.Dizia que perderam a guerra somente porque os chilenos ajudaram osingleses.

Vincent, desta vez, ficou quieto e omitiu o fato de ser metade chi-leno. Parece-me que houve participação dos chilenos, mas não sei se issofoi decisivo. Além do mais, como um brasileiro, não sou a pessoa mais

indicada para falar sobre este assunto, mas acho que as ilhas devem pertencer à Argentina e não a um país que está a mais de 14.000 qui-lômetros de distância.

O francês também respeitou a opinião de Joana e ficamos apenasouvindo suas lamentações.

Percebemos o quanto este tema mexe com os argentinos. Princi- palmente os mais velhos, que têm este momento bem fresco em suasmemórias.

O fato é que chilenos e argentinos sempre tiveram conflitos no passado e estávamos apenas começando a descobrir parte disso. Dois países vizinhos, que falam a mesma língua, mas que parecem muito dis-

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tantes na verdade.Mais tarde, já completamente escuro, saímos em direção à cida-

de. Esperávamos encontrar o grupo de argentinos que tínhamos conhe-cido à tarde. O caminho de três quilômetros através de uma estrada deterra e da escuridão foi extraordinário. Estava fazendo muito frio e o céuestrelado era a única coisa que podíamos ver. Após rodar pelas ruasescuras acabamos encontrando o bar onde eles estavam.

Ficamos jogando sinuca e tomando cerveja até tarde. Todos es-tavam muito entusiasmados em ter dois viajantes estrangeiros ali. Cer-tamente não era um fato comum naquele pequeno lugar.

Durante a noite olhava para o Vincent e dizia: “Cara, temos que parar de beber e ir dormir. Amanhã não vamos conseguir seguir via-gem!”.

Eu sempre era o mais preocupado e Vincent o mais relaxado emrelação a esse tipo de situação. Ele sempre ficava com uma expressãotípica de tranquilidade e prazer, e sempre acabava me convencendo.

O modo como aquele grupo de jovens nos aceitou nos deixavamuito felizes. Era como se estivéssemos cercados de velhos amigos. Co-mo se estivéssemos cercados de brasileiros. A todo o momento pensava:“Nossa, como somos parecidos!”. Realmente somos muito parecidos, brasileiros e argentinos. É uma pena, mesmo tão próximos, sejamos tão

ignorantes uns em relação aos outros, desconhecemos praticamente tudouns dos outros.A única diferença clara é o fato dos amigos homens também se

cumprimentarem com um beijo no rosto. Para mim não era assim tãoestranho pois venho de uma família de origem italiana e temos essecostume entre os parentes mais próximos.

Mariana se aproximou muito de mim e foi uma pena não po-dermos ficar mais tempo juntos. Gostei muito de conhecê-la. Num

determinado momento me disse que tinha que ir embora. Sentou-se domeu lado e colocou no meu pescoço um pequeno colar. Disse que era para me proteger durante a viagem.

Às vezes sentia que algumas pessoas passavam muito rapida-mente por mim. Ou será que era eu que seguia rápido demais? Naverdade, na maior parte do tempo sentia isso. Tudo era incrível e aomesmo tempo um grande paradoxo. Era como se tivesse provando as pessoas apenas por um lapso de tempo, vivendo de forma intensa, masem contrapartida, tudo acontecia muito rápido.

Se não tivesse iniciado minha viagem, nada disso teria acon-tecido. E quando chegava a um lugar assim, e cercado de gente como

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esta, sentia vontade de ficar mais tempo, mas por outro lado, sabia quetinha que seguir. Sabia que mais pessoas extraordinárias estavam meesperando pelo caminho. Nunca foi fácil dizer “oi” num dia e no diaseguinte dizer “adeus”. Acho que nunca consegui me acostumar muito bem com isso.

Mais tarde tiramos uma foto à frente do bar com todos aqueles jovens argentinos. Todos nos deram abraços fortes, nos desejando sorte, eentão seguimos madrugada adentro rumo a casa de Joana.

Pela manhã conhecemos os dos dois filhos de Joana. Presen-tearam-nos com algumas peças de artesanato e nos convidaram a andar acavalo. Foi quando me dei conta que me sentia muito mais a vontademontado em minha bicicleta que em cima daquele cavalo!

Seguimos nosso caminho com o espírito renovado e um pouco de

ressaca, que invariavelmente seria curada durante a pedalada. Quandofalo sobre este assunto estou sendo sincero. Pode parecer um absurdo para alguém que está viajando de bicicleta, mas o que podia fazer? Estavavivendo cada dia sem pensar muito no dia seguinte. E não era assim tãoextremo, só uns copos de cerveja.

O dia estava muito divertido. Pedalar pelas estradas argentinasera uma curtição tremenda. Enquanto pedalávamos tivemos a ideiaconectar um pequeno painel solar que eu tinha ao ipod  e a pequenas

caixas de som que tínhamos. Assim poderíamos curtir um som sem gastar  pilhas ou baterias. A experiência deu resultado e a pedalada ficou aindamais divertida. Éramos dois loucos cantando e balançando os corpos emcima das bicicletas.

Estávamos pedalando num ritmo forte e num momento fomossurpreendidos por um senhor argentino que começou a gritar à beira darodovia. Ele viu minha bandeira e disse:

- Vamos brasileño, vamos! Fuerza, Fuerza! –enquanto aplaudia

incessantemente.Depois que passamos ele ainda gritava e dizia:- Vamos, vamos! Vamos... Lula!É sempre bom ver este tipo de reação. O dia já estava bom e os

aplausos nos deram ainda mais energia para pedalar.Depois de um longo dia de pedalada sob forte calor chegávamos

à cidade costeira de Pinamar.

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Jorge de Pinamar

Quando estávamos entrando na cidade cruzamoscom um ciclista que vinha no sentido contrário. Ele fezuma volta, cruzou o canteiro central da rodovia e gritou para que o esperássemos. Seu nome era Jorge e assimque ficou sabendo de nossa história nos convidou a ficar em sua casa. Quase não podíamos acreditar. O seguimosaté sua casa e ele logo começou a preparar um churrasco.

À noite comemos junto com sua esposa e filho eassistimos um pouco da TV argentina: os mesmos pro-gramas estúpidos que entopem a TV aberta brasileira.

Dormimos na sala de sua casa, em colchões no chão e ficamos

muito bem abrigados. Passamos uma noite bem tranquila. Mais uma vezestávamos colecionando gente simples de bom coração.

Sua casa era simples e ficava um pouco longe da melhor parte dacidade, mas para nós era um verdadeiro palácio.

De manhã prepararam um delicioso café e nos despedimos. Nos-so próximo destino seria o mais famoso balneário argentino. Estávamosansiosos, pois sabíamos que a cidade deveria estar cheia de turistas, afinalera fim de ano e início do verão.

Depois que saímos de Pinamar passamos rapidamente pela be-líssima praia de Mar Azul, onde almoçamos.

Mar del Plata

A chegada à Mar del Plata foi alucinante! Depois de 140 quilô-metros estava me sentindo muito bem. Minha velocidade estava alta e por 

alguns momentos Vincent ficou para trás.Geralmente no fim da tarde, quando o calor diminui meu ritmoaumenta muito e neste caso o terreno plano e o visual do mar ajudavammuito. Outra coisa que nos animava é que no mesmo momento em quechegávamos à cidade uma quantidade enorme de carros cheios de turistasargentinos também chegava. Todos dando muita força e acenando paraestes dois intrépidos viajantes. Realmente foi inesquecível!

Chegamos a um hostel , a umas duas quadras das praias. Fomosmuito bem recebidos e o lugar estava cheio de turistas, inclusive muitos brasileiros. Só queríamos descansar. No dia seguinte eu precisaria subs-tituir um raio da roda traseira que tinha se rompido em Buenos Aires.

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Este foi o primeiro problema deste tipo na viagem.Fomos a uma bicicletaria e fomos atendidos por um senhor cha-

mado Juan Merlos, que para nossa surpresa era ex-campeão mundial deciclismo e já havia defendido a Argentina em Olimpíadas por duas oca-siões.

Ao voltar ao hostel  pensávamos que iríamos embora no dia se-guinte, mas acabamos conhecendo vários brasileiros e um grupo de aus-tralianas. Tinha tantos brasileiros ali que, num momento, contei 28 so-mente na cozinha do hostel . Às 5 horas da manhã ficou claro que nãoiríamos embora de jeito nenhum.

Mais um dia, e resolvemos passear um pouco pela cidade, masnão nos arriscamos ir à praia. O vento e a água fria não nos animava.Uma coisa que nos causava certo estranhamento era justamente a praia.

Havia uma quantidade enorme de barracas e boa parte da areia é divididaem pequenas partes onde é necessário pagar para ficar. Como se a praiafosse privada, realmente incomum.

Encontramos dois periodistas de um jornal de Buenos Aires cha-mado “Crítica de la Argentina” e fomos convidados a participar de umareportagem sobre o turismo na cidade. Junto com as moças australianas,aparecemos no jornal que saía em todo o território argentino. Segue um

trecho da reportagem com algumas pa-

lavras traduzidas:

“Mar del Plata es linda, aunque el mar estábastante frío. Lamento decirlo, pero mequedo [Lamento dizer, mas fico] con Pelé ylas playas de Río. Ustedes quedense [Vocêsficam] con Maradona en sus costas” bromea[brinca] Thiago Fantinatti, un fotógrafo de 29años que llegó de “Ouriños”, Brasil. A dife-

rencia de otros turistas, Thiago se proponecumplir un desafío: conocer Sudamérica en bicicleta. No está solo, lo acompaña su amigo Vincent Degove, um parisino [parisiense] de 22 años: “Recorrimos[Percorremos] 3000 kilómetros. Nuestro desafío es demostrar que la mejor  forma de vida es la naturaleza y el deporte. Mar del Plata tiene playas y muchanoche. Hemos conocido [conhecemos] a chicas muy lindas”, afirmó Vincent. Los dos llegaron a Mar del Plata por un mapa que les regalaron [presentearam] en un hostel de San Telmo [em Buenos Aires].

Eles ainda tiraram uma foto nossa com as praias de Mar del Plataao fundo. Eu não disse exatamente isso sobre a praia e sobre Maradona.

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Apenas respondi suas perguntas. Somente disse que preferia Pelé aMaradona e que havia achado as águas um pouco frias. O resto, inclu-sive sobre o mapa, veio da imaginação dos periodistas!

De volta ao hostel , Vincent acessou o website do Rally Dakar  para saber o trajeto que fariam. Por coincidência o rally estava acon-tecendo pela primeira vez na América do Sul e havia possibilidade decruzar nossos caminhos. Seria interessante poder ver de perto um eventodesses, mas de acordo com nossa distância e o cronograma do eventoficou evidente que dificilmente conseguiríamos ver alguma coisa, amenos que apertássemos o passo.

Enfim, depois de quatro noites, saímos de Mar del Plata. Estavamuito bom, mas também era muito caro. Tudo fica muito mais caro natemporada de verão. Apesar dos convites para passarmos o ano novo por 

ali, resolvemos seguir. Realmente não estávamos a fim de festejar oréveillon de uma maneira convencional neste ano. A ideia de ter umavirada de ano totalmente diferente do convencional combinava mais como espírito de nossas viagens.

Réveillon em Mar del Sur

 No dia 31 de dezembro, enquanto pedalávamos, ainda não fazí-amos ideia de onde iríamos virar o ano. Não importava de verdade. Éra-mos dois viajantes totalmente despreocupados e não havia qualquer tipode obrigação. Palavras como “onde” ou “quando” não faziam muito sen-tido na maioria das vezes.

Depois de pedalar algumas dezenas de quilômetros encontramosum casal argentino. Eles estavam viajando numa van e tinham bicicletasdentro. Haviam parado para comer e descansar. Ficamos um tempo

debaixo de uma árvore com eles. Depois de um descanso eles nos pre-sentearam com algumas frutas frescas e seguimos.O litoral desta parte da argentina nos impressionou bastante. De-

 pois que passamos pela cidade de Miramar a costa se transformoutotalmente. O mar estava um pouco revolto e não havia praias, somenterochas e uma costa totalmente irregular e deserta. A paisagem im- pressionava, pois era totalmente distinta de qualquer outra que havia vistoaté então.

Poucos quilômetros depois chegamos à pequena cidade de Mar del Sur. Fomos direto à praia, mas apesar de estarmos no verão havia umvento frio irritante. Realmente comecei a perceber que não encontraria

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mais praias quentes pelo caminho.Ainda na praia, embora estivéssemos pensando em seguir mais

um pouco, nossa vontade de seguir se foi. Depois que nos alimentamos esentamos um pouco na areia da praia decidimos procurar um camping   para passar a noite ali mesmo em Mar del Sur.

Encontramos um camping  muito barato e montamos nossas barracas. Incrivelmente o lugar estava cheio. Havia muita gente dispostaa passar a virada do ano em suas barracas.

À noite começamos a preparar nossa modesta ceia. Enquanto eucozinhava Vincent começou a conversar com uns argentinos que estavamacampados ao lado. A conversa deu resultado e logo nos convidaram asentar com eles e tomar um pouco de vinho. Levamos nossa comida etodos acabaram compartilhando o que tinham.

Havia dois casais sendo que um deles tinha um pequeno filho.Todos eram de Mar del Plata e nos disseram que estavam ali para fugir doagito de fim de ano na cidade. Foi bem interessante esta passagem deano.

Comecei o ano de 2009 num camping numa pequena cidade dolitoral argentino com meu novo amigo francês e quatro argentinosdesconhecidos. Não poderia ser mais inusitado e incomum.

Vincent, como sempre, estava adorando estar ali, era possível

notar isso claramente em seu rosto. Depois ele me disse: “Cara, passamoso réveillon com autênticos jovens argentinos, gente simples, trabalha-dores. Isso é incrível!”.

Como eu já disse, ele desfrutava demais o contato com as pes-soas. Admirava muito isso em Vincent, sua capacidade de aprender muitoem praticamente qualquer tipo de situação. Costumo dizer que sinto queaprendi tanto que é como se tivesse feito o equivalente a uma faculdadede geografia e ciências humanas durante a viagem, tamanha a quantidade

de informação que recebi. Vincent provavelmente cursou duas faculdadesneste período.

Um ano novo! Um ano só meu!

O ano começava e sabia que passaria a maior parte dele na es-trada. Isso me fazia sentir muito feliz. Era uma sensação de liberdadeextrema. Sentia que este novo ano marcaria minha vida para sempre eainda me reservava muitas boas surpresas. Havia entrado no “mar” daminha viagem só até os tornozelos e a água estava muito convidativa.

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O primeiro dia de 2009 não foi fácil. De novo chegamos à marcade 140 quilômetros. Parecia um número mágico para nós dois e sentiaque havia chegado ao auge de minha forma física. No final deste dia demuito calor encontramos um posto de combustíveis a poucas centenas demetros de uma localidade chamada Energia. Conversamos com os donosdo local e armamos as barracas ao lado, numa espécie de oficina mecâ-nica que havia ali.

 No dia seguinte seguimos até a cidade de Três Arroyos, já um pouco longe da costa. Como sempre, na estrada, o calor era um desafio amais. Nossa ideia era seguir até a cidade, mas poucos quilômetros antesencontramos um clube balneário muito estruturado e bonito.

Entramos com nossas bikes carregadas e expressões de cansaço.Logo o responsável pelo local veio falar conosco. Disse-nos que pode-

ríamos acampar por ali sem problema algum e que não precisaríamos pagar. Somente pagaríamos cerca de 10 pesos se escolhêssemos usar a piscina! Foi muito bom ficar por ali. Comemos como reis e depois tomeiuma ducha. Estava precisando de um banho, meu último banho haviasido em Mar del Plata.

 Não usamos a piscina, mas ficamos sentados à sombra de umguarda-sol por horas. O longo dia de verão estava muito agradável e só pensávamos em aproveitar aquele momento.

Apesar dos desafios físicos, estávamos muito felizes. Tentávamosaproveitar ao máximo cada momento e registrar o que acontecia, sempreque possível. As melhores fotos que tenho de mim foram tiradas por Vincent. Especialmente no sul da província de Buenos Aires e depois, nonorte da Patagônia, o calor estava muito forte e praticamente chegava aosmeus limites físicos durante estes dias quentes. Vincent aproveitou eregistrou muito bem este trecho com ótimas fotografias, pois sempreestava à minha frente e assim tinha mais tempo para descansar e fo-

tografar. Na maioria das estradas do litoral argentino, inclusive a principalrodovia – Ruta Nacional 3 – praticamente não há acostamento, isso tornaa viagem muito mais complicada e insegura. Nossa postura era a se-

 

guinte: como tínhamos retrovisores podíamos acompanhar o movimentodos veículos que vinham por trás de nós. Assim podíamos saber se havianecessidade de sair da rodovia ou não, de acordo com a trajetóriados carros. O que fazíamos com mais frequência era ficar narodovia e deixar os veículos que vinhamde trás desviarem. Somente saíamos da 

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estrada caso viesse outro veículo em sentido contrário. Neste caso, se fi-cássemos na estrada, estaríamos colocando em risco, além de nossa própria vida, a dos motoristas também. Pode parecer loucura permanecer na pista mesmo quando há um carro vindo de trás, mas não é. A pista,apesar de não ter acostamento é uma reta quase interminável e totalmente plana. A visibilidade é total. Isso diminui muito os riscos. Sair da rodoviacada vez que um carro surgisse por trás seria inviável e tornaria a viagemextremamente lenta.

Os dias 65 e 66 foram talvez os mais quentes de toda a viagem.Para exemplificar nossa luta contra o calor vou citar alguns números: nodia 65 chegamos a um posto de combustíveis nas proximidades da cidadede Coronel Dorrego. Neste dia ficamos em movimento por 6 horas e 22minutos, sendo que, devido ao calor, ficamos parados 3 horas e 49

minutos. O tempo total na estrada neste dia foi de 10 horas e 11 minutoscom 111 quilômetros pedalados. Creio os números falam por si e mos-tram nossa luta contra o calor e a baixíssima média de velocidade.Obviamente chegamos ao posto totalmente exaustos.

Sempre gostei muito de estatísticas e esses dias duros era um prato cheio para mim. Tenho anotações de quilometragem e tempo detodos os dias da viagem.

Assim que chegamos resolvemos esbanjar um pouco. Pedimos

uma “parrilla” – churrasco – argentina completa e bebemos várias cer-vejas geladíssimas. Era nossa recompensa máxima. Foi muito bom!Acampamos ao lado do posto e despertamos pela manhã com um

vento fortíssimo que rapidamente encheu nossas barracas com muito pó eareia. Foi um começo de dia difícil e apenas anunciava o dia duro queteríamos pela frente.

 Neste dia, o dia 66, o calor e as estatísticas pioraram um pouco: 7horas e 10 minutos em movimento e 5 horas parados, num total de 12

horas e 12 minutos na ruta. Rodamos apenas 98 quilômetros. Foi semdúvida nenhuma o maior desafio físico que passei até este dia. Chegueiao limite, mas consegui.

 No início da noite chegávamos à grande e desenvolvida cidade deBahia Blanca. Ali, pela primeira vez, conversamos sobre o futuro. Vin-cent me mostrou seu grande mapa da América do Sul e falou de seus planos de ir ao Chile. Ele não queria ir muito para o sul pois queriaalcançar o Chile o mais rápido possível. Já havia visitado o extremo suldo continente e não queria cruzar essa inóspita região numa bicicleta.Chegou a me convidar a ir com ele, mas de maneira alguma abandonariameu grande sonho de chegar à Terra do Fogo numa bicicleta. Era a parte

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mais importante do meu projeto.Combinamos de seguir juntos até as proximidades da cidade de

Comodoro Rivadavia, quase 2000 quilômetros mais ao sul, então depoisdisso nos separaríamos.

Fotos do capítulo 3: www.trilhasulamericana.com.br/3 

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como um tumulto, como um vapor pesado