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O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA, A CRISE ATUAL E OS DESAFIOS PELA FRENTE (Brasil: o caminho longo e sinuoso) Luís Roberto Barroso 1-2 I. INTRODUÇÃO 1. Abertura Eu tenho muito prazer e muita honra de estar aqui no Brazil Forum UK 2016 e de compartilhar algumas ideias e reflexões sobre o tema “O legado de trinta anos de democracia, a crise atual e os desafios pela frente”. O subtítulo que dei à minha palestra – Brazil: The Long and Winding Road – é extraído de uma famosa música dos Beatles. Para os muito jovens, vale o esclarecimento: os Beatles formavam uma banda que revolucionou o mundo da música, nos anos 60, com ideias simples, originais e ousadas. Uma boa metáfora do que andamos precisando. 2. Um pouco de contexto O escritor judeu austríaco Stefan Zweig refugiou-se no Brasil em 1940, onde escreveu um livro que se tornou célebre: Brasil, o País do Futuro. Com uma visão romântica e ufanista do país, em plena ditadura Vargas, o livro dividiu a crítica. Muitas das previsões de Zweig não se confirmaram. Ainda assim, o título de seu livro virou um slogan nacional. Brasileiros se sentiam bem com essa promessa otimista de se tornar um país desenvolvido e relevante, ainda que só mais à frente na história. O futuro parecia ter chegado, com atraso mas não tarde demais, no final da primeira década dos anos 2000. Em sua edição de 12 de novembro de 2009, a revista The Economist, uma das mais influentes do mundo, estampou na capa uma foto do Cristo 1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2 Texto-base de conferência proferida na Universidade de Oxford, no Forum Brazil UK 2016, em 18 de junho de 2016.

Trinta anos de democracia, a crise autal e os desafios ... · ... The Long and Winding Road – é extraído de uma famosa ... o Cristo Redentor dava um looping e descia em queda

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O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA, A CRISE ATUAL E OS

DESAFIOS PELA FRENTE

(Brasil: o caminho longo e sinuoso)

Luís Roberto Barroso1-2

I. INTRODUÇÃO

1. Abertura

Eu tenho muito prazer e muita honra de estar aqui no Brazil Forum UK

2016 e de compartilhar algumas ideias e reflexões sobre o tema “O legado de trinta anos de

democracia, a crise atual e os desafios pela frente”. O subtítulo que dei à minha palestra –

Brazil: The Long and Winding Road – é extraído de uma famosa música dos Beatles. Para os

muito jovens, vale o esclarecimento: os Beatles formavam uma banda que revolucionou o

mundo da música, nos anos 60, com ideias simples, originais e ousadas. Uma boa metáfora do

que andamos precisando.

2. Um pouco de contexto

O escritor judeu austríaco Stefan Zweig refugiou-se no Brasil em 1940,

onde escreveu um livro que se tornou célebre: Brasil, o País do Futuro. Com uma visão

romântica e ufanista do país, em plena ditadura Vargas, o livro dividiu a crítica. Muitas das

previsões de Zweig não se confirmaram. Ainda assim, o título de seu livro virou um slogan

nacional. Brasileiros se sentiam bem com essa promessa otimista de se tornar um país

desenvolvido e relevante, ainda que só mais à frente na história.

O futuro parecia ter chegado, com atraso mas não tarde demais, no final

da primeira década dos anos 2000. Em sua edição de 12 de novembro de 2009, a revista The

Economist, uma das mais influentes do mundo, estampou na capa uma foto do Cristo

1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2 Texto-base de conferência proferida na Universidade de Oxford, no Forum Brazil UK 2016, em 18 de junho de 2016.

2

Redentor elevando-se como um foguete, sob o título “Brazil takes off” (“O Brasil decola”).

Tendo escapado da crise de 2007 com poucas escoriações, o país voltara a crescer a taxas

anuais superiores a 5%. Exibindo prestígio internacional, havia sido escolhido para sediar a

Copa do Mundo de 2014, as Olimpíadas de 2016 e pleiteava uma vaga no Conselho de

Segurança da Nações Unidas. Investimentos internacionais abundavam e o preço das

commodities bombava.

O foguete, porém, aparentemente, não conseguiu sair da atmosfera e

libertar-se da gravidade das muitas forças do atraso. Quatro anos depois, a mesma The

Economist, em sua edição de 28 de setembro de 2013, foi portadora das más notícias. Na

nova capa, o Cristo Redentor dava um looping e descia em queda livre. A aterrisagem não

seria suave. O ciclo de prosperidade parecia ter chegado ao fim, com a queda nos preços das

commodities e do petróleo, a desaceleração da economia chinesa, a fuga dos investimentos, o

aumento da inflação e um intervencionismo estatal atabalhoado e ineficiente, que espantava

os empreendedores.

Os números desfavoráveis na economia alimentaram a perda de

popularidade e o comprometimento da sustentação política da Presidente no Congresso.

Impeachment viria a se tornar o tema do momento. Em uma terceira capa dedicada ao Brasil,

a The Economist de 26 de março de 2016 estampou a Presidente Dilma Rousseff sob a frase

título: “Time to go” (“Hora de partir”). Em texto editorial, reconheceu que o Brasil vive sua

pior recessão desde 1930. E sugeriu que a renúncia seria o melhor caminho para a Presidente,

embora incapaz de solucionar muitas das causas da crise brasileira: “Her departure would

offer Brazil the chance of a fresh start. But the president’s resignation would not, of itself,

solve Brazil’s many underlying problems” – opinou a revista.

Uma vez mais, fomos do ufanismo à depressão. Não foi pequeno o

tombo. Não é meu propósito fazer previsões para o desfecho da crise ou para o futuro

próximo. Até trago algumas reflexões procurando entender onde foi que nos perdemos. Mas

meu propósito aqui é o de procurar olhar para além da crise conjuntural, por cima das nuvens

escuras e da fumaça do momento presente. E devo dizer, por implausível que possa parecer

nessa hora, que avisto um horizonte promissor. Assim que começarmos a andar na direção

certa, a confiança voltará e as perspectivas continuam favoráveis. Há múltiplos lados para

onde crescer: estradas, aeroportos, portos, ferrovias, saneamento, habitação popular – não

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faltam demandas. Em outro front, precisamos investir em educação, pesquisa científica e

tecnológica, incentivar a inovação, fazer parcerias com grandes centros. E, ainda, na lista dos

problemas crônicos, precisamos de reforma política, reforma da previdência, reforma

tributária.

Há muito por fazer e muitas razões para ser moderadamente otimista.

Por isso mesmo, começo esta exposição por algumas conquistas relevantes nestes trinta anos

de democracia.

Parte I

TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA: ALGUMAS CONQUISTAS

I. ESTABILIDADE INSTITUCIONAL

Desde o fim do regime militar e, sobretudo, tendo como marco

histórico a Constituição de 1988, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade

institucional de sua história. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, o país

conviveu com a persistência da hiperinflação – de 1985 a 1994 –, com sucessivos planos

econômicos que não deram certo – Cruzado I e II (1986), Bresser (1987), Collor I (1990) e

Collor II (1991) – e com a destituição, por impeachment, do primeiro presidente da República

eleito após a redemocratização. Sem mencionar os graves escândalos, como o dos “Anões do

Orçamento”, o chamado “Mensalão” ou o “Petrolão”, ora em curso, e sem prazo para acabar.

Todas essas crises foram – e estão sendo – enfrentadas dentro do quadro da legalidade

constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significa a superação de

muitos ciclos de atraso.

O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das

mudanças autoritárias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convocar

eleições presidenciais, ao suceder Deodoro da Fonseca, até a Emenda Constitucional nº

1/1969, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, o

golpismo foi uma maldição da República. Pois tudo isso é passado. Na crise atual, o Supremo

Tribunal Federal impediu as mudanças casuísticas das regras do jogo e as Forças Armadas

têm mantido o comportamento exemplar que adotaram desde a redemocratização do país.

Nessa matéria, só quem não soube a sombra não reconhece a luz.

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II. ESTABILIDADE MONETÁRIA

Todas as pessoas no Brasil que têm 40 anos ou mais viveram uma parte

de sua vida adulta dentro de um contexto econômico de hiperinflação. A memória da inflação

é um registro aterrador. Os preços oscilavam diariamente, quem tinha capital mantinha-o

aplicado no overnight e quem vivia de salário via-o desvalorizar-se a cada hora. Generalizou-

se o uso da correção monetária – reajuste periódico de preços, créditos e obrigações de

acordo com determinado índice –, que realimentava drasticamente o processo inflacionário.

Até hoje, um percentual relevante de ações que tramitam perante a Justiça brasileira está

relacionado a disputas acerca da correção monetária e de diferentes planos econômicos que

interferiram com sua aplicação. Pois bem: com o Plano Real, implantado a partir de 1º de

julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda, a inflação foi

finalmente domesticada, tendo início uma fase de estabilidade monetária, com desindexação

da economia e busca de equilíbrio fiscal.

Este é outro marco histórico cuja importância é impossível de se

exagerar. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, a inflação acumulada no ano

de 1994, até o início da circulação da nova moeda, o real, que se deu em 1º de julho, era de

763,12%. Nos 12 meses anteriores, fora de 5.153,50%. A inflação, como se sabe, é

particularmente perversa com os pobres, por não terem como se proteger da perda do poder

aquisitivo da moeda. Como consequência, ela agravava o abismo de desigualdade do país. Em

uma década de democracia e de poder civil, iniciado em 1985, o país consolidou a vitória

sobre a ditadura e sobre a inflação.

III. INCLUSÃO SOCIAL

A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação

social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços

obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a

2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão

mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30

milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população), das quais aproximadamente 10

milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população). O Programa Bolsa Família,

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implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, unificou e ampliou diversos

programas sociais existentes3. Conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década

de funcionamento, o Programa atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50

milhões de pessoas, quase um quarto da população brasileira.

Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH

do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o

que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Nessas três décadas, os

brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%.

Na educação, a expectativa de estudo para uma criança que entra para o ensino em idade

escolar cresceu 53,5% (5,3 anos). Segundo dados do IBGE/PNAD, 98,4% das crianças em

idade compatível com o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Os avanços,

portanto, são notáveis. Porém, alguns dados ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge

ainda 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e o analfabetismo

funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo) alcança 17,8% da população. Também no

tocante à desigualdade, houve avanços expressivos, mas este continua a ser um estigma para o

país, como atesta o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda. O Brasil ostenta uma

incômoda 79a posição em matéria de justa distribuição de riqueza.

Parte II

A CRISE ATUAL: UMA TENTATIVA DE DIAGNÓSTICO

O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao final do seu segundo

mandato, em dezembro de 2010, com índices de aprovação popular superiores a 80%.

Candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) à sucessão presidencial, Dilma Rousseff, ex-

chefe da Casa Civil de Lula, foi eleita em 2º turno com 56,1% dos votos, derrotando o

candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), José Serra. Dilma tomou posse

em 1º de janeiro de 2011 e, apesar do desempenho modesto da economia nos dois primeiros

anos de governo, desfrutou de elevada aprovação popular. Os primeiros sintomas de desgaste

começaram a aparecer no final do primeiro semestre de 2013. Ao longo do mês de junho, 3 Trata-se de um programa de transferência condicionada de renda, em que as condicionalidades são: crianças devem estar matriculadas nas escolas e terem frequência de no mínimo 85%; mulheres grávidas devem estar em dia com os exames pré-natal; crianças devem estar com as carteiras de vacinação igualmente atualizadas.

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manifestações populares levaram centenas de milhares de pessoas às ruas de diferentes

cidades brasileiras. Os protestos não tinham uma agenda clara e homogênea; e revelavam uma

insatisfação difusa em relação aos governantes em geral – no plano federal, estadual e

municipal –, com queixas que incluíam os preços das passagens do transporte público em

diversas localidades, as dificuldades de mobilidade urbana dos trabalhadores (que gastavam

horas no trânsito), os maus serviços de saúde nos hospitais públicos e os gastos vistos como

elevados e suspeitos na construção de estádios para a Copa do Mundo.

Durante a Copa do Mundo, além do impacto simbólico de uma derrota

devastadora da seleção nacional, outros sintomas da crise de confiança no país e no governo

podiam ser detectados na crescente agressividade das reações populares. A presença da

Presidente da República em alguns jogos do certame, por exemplo, deflagrava manifestações

de descontentamento e incivilidade. A despeito da crescente percepção negativa do

desempenho do governo, a Presidente veio a vencer as eleições presidenciais de outubro de

2014. Em segundo turno, logrou uma vitória apertada sobre o candidato da oposição, o

Senador pelo PSDB Aécio Neves: 51,64% contra 48,36%. Votaram 112 milhões de

brasileiros. Boa parte dos comentaristas políticos identificou uma inversão de tendência do

eleitorado, acreditando que se a votação fosse alguns dias mais à frente, Aécio Neves teria

ganho.

De acordo com cientistas políticos, jornalistas das áreas de política e

economia, bem como observadores em geral, é possível identificar um conjunto de causas

que, conjugadamente, contribuíram para a grave crise política com que se debate o país. A

seguir, procuro sistematizar três delas. Esclareço que minha apresentação é descritiva de uma

visão que se tornou majoritária na sociedade, não consistindo em juízos de valor ou de crítica

política, que não me cabe fazer.

I. PERDA BRUSCA DE SUSTENTAÇÃO POLÍTICA DA PRESIDENTE ELEITA

A primeira causa apontada como responsável pelo esvaimento do

prestígio do governo que ainda ia se iniciar foi, como previsível, de natureza econômica. No

curto período que mediou a vitória nas eleições e a posse para o segundo mandato, a

deterioração das finanças públicas e das perspectivas de crescimento revelou-se de maneira

contundente. Tal constatação veio acompanhada da suspeita que se disseminou de que a real

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situação havia sido ardilosamente ocultada do eleitorado. Neste cenário, imprensa e oposição

passaram a apontar e a cobrar o que consideravam erros graves na condução da economia.

Três deles mereceram especial destaque:

(i) a inflação elevada – o eterno fantasma –, que seria fruto de gastos

públicos descontrolados, agravada por um política que mantivera

preços públicos reprimidos artificialmente. E mesmo preços privados,

como o da gasolina, foram congelados indevidamente, com

consequências nefastas para a Petrobras, que, apesar do controle estatal,

é uma empresa privada de capital aberto, com cotação em bolsa de

valores;

(ii) a contabilidade pública passou a sofrer mudanças de metodologia e

retoques que colocavam em dúvida sua correção e credibilidade. Além

disso, imputou-se ao governo – com decisão nesse sentido do próprio

Tribunal de Contas da União – a volta a um modelo antigo e

condenável em que os bancos públicos financiavam o Tesouro, o que é

vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal; e

(iii) a intervenção estatal arbitrária no setor privado, como aconteceu com

as empresas de energia elétrica, por exemplo. O desrespeito aos

contratos, no tocante aos prazos de concessão, e a redução unilateral de

preços, mediante decreto, desestruturou o setor elétrico e endividou as

empresas.

Repito que estou fazendo um relato da visão majoritária que se formou

na sociedade, sem endossá-la ou refutá-la. Eu estou narrando o contexto da crise, e não

emitindo qualquer opinião. Neste cenário, prosseguem os críticos, o PIB brasileiro

praticamente parou de crescer, tornou-se cada vez mais difícil cumprir o superávit primário (o

governo chegou a entregar ao Congresso Nacional orçamento de 2016 com déficit de mais de

R$ 30 bilhões), o país perdeu o grau de investimento e a taxa de câmbio do dólar americano

passou a operar em forte alta. Sem surpresa, os índices de desemprego foram subindo

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progressivamente, tendo chegado à média de 8,5% em 20154. As relações da Presidente com

o Congresso Nacional, especialmente a Câmara dos Deputados, se deterioraram

drasticamente. Como intuitivo, a perda de sustentação no Legislativo levou ao isolamento da

Presidente e à crise de governabilidade.

Com a crise econômica e sem apoio político, logo se revelou a

impossibilidade de cumprimento das promessas de campanha. Justamente ao contrário,

tornaram-se imperativos cortes drásticos no orçamento público, afetando áreas sensíveis como

saúde e educação. Faltaram recursos para programas sociais importantes, como o Minha Casa

Minha Vida, que financia a compra de casas para famílias de baixa renda; o Fundo de

Financiamento Estudantil (Fies), que financia a Faculdade para estudantes que não têm

recursos para pagar a mensalidade; e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e

Emprego (Pronatec), que tem por objetivo qualificar estudantes e trabalhadores com cursos

de aprimoramento técnico e profissional. O importante programa Ciência sem Fronteiras, que

enviava estudantes universitários para estudar no exterior, teve a oferta de novas vagas

suspensa. E mesmo o Bolsa Família enfrentava dificuldades e propostas de cortes. Ou seja: os

programas-símbolo do governo, que ilustravam emblematicamente as possibilidades de

ascensão social e conquistavam o apoio das classes excluídas, passaram a enfrentar sérios

revezes.

Ao lado dos cortes amargos, o governo ensaiou elaborar uma

indispensável Reforma da Previdência, com fixação de idade mínima para a aposentadoria e

cortes de benefícios, o que envolve elevados custos políticos e invariavelmente traz reações

exacerbadas. Basta lembrar que no início do governo Lula, uma importante Reforma da

Previdência do setor público – responsável por um rombo anual astronômico – trouxe como

consequência um “racha” no próprio Partido dos Trabalhadores. Além disso, o governo viu-se

na antipática situação de ter de propor a recriação de um antigo tributo, a Contribuição

Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Não é difícil intuir a reação que a

criação de um novo tributo provocou na sociedade e nas classes empresariais, dentro de um

4 Folha de São Paulo, 27 mar 2016, “Taxa de desemprego do Brasil cresce para 8,5% na média de 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/03/1750059-taxa-de-desemprego-do-brasil-cresce-para-85-na-media-de-2015.shtml.

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quadro de estagnação econômica e inflação, em um país com carga tributária de 35% do

Produto Interno Bruto, e serviços considerados muito ruins.

Nesse contexto, em fevereiro de 2015, segundo mês de governo da

Presidente reeleita, sua popularidade caíra para 23% de aprovação, a mais baixa de um

governo federal desde 19995. Um ano depois, em final de fevereiro de 2016, os números

continuavam semelhantes (25%), sendo que 64% dos entrevistados consideravam o governo

ruim ou péssimo6.

II. DESGASTE PELA LONGA PERMANÊNCIA DO MESMO PARTIDO NO PODER E A OPERAÇÃO LAVA-

JATO

Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores conquistaram o

poder nas eleições de outubro de 2002. Foram três as tentativas frustradas anteriores: em

1989, Lula perdeu no segundo turno para Fernando Collor; em 1994 e 1998, foi derrotado por

Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. Lula foi o trigésimo quinto Presidente da

República do Brasil e o terceiro eleito por voto direto após o restabelecimento da democracia

com o final do regime militar, tendo governado de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de

2011. Nas eleições de 2002, derrotou em segundo turno o candidato do PSDB, José Serra. Na

disputa pela reeleição em 2006, venceu o então Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin,

também do PSDB.

Como já referido, Lula deixou o cargo com índices de aprovação

superiores a 80%, tendo tido papel decisivo na eleição de sua sucessora, Dilma Rousseff, que

derrotou o candidato do PSDB, José Serra, em segundo turno, com 56,05% dos votos. A

Presidente veio a ser reeleita em 2014, como já noticiado, vencendo em segundo turno de

votação o candidato Aécio Neves. Caso conclua o seu mandato, em 2018, o Partido dos

5 Jornal Zero Hora, 7 fev. 2015, “Popularidade de Dilma cai de 42% para 23%, diz Datafolha”. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/02/popularidade-de-dilma-cai-de-42-para-23-diz-datafolha-4696262.html. 6 Sítio G1, 29 fev. 2016, “Datafolha pesquisa o governo Dilma e a participação de Lula na Lava-Jato”. Disponível em: http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/02/datafolha-pesquisa-o-governo-dilma-e-participacao-de-lula-na-lava-jato.html.

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Trabalhadores terá passado quatro períodos consecutivos no poder, totalizando 16 anos.

Parece fora de dúvida que a falta de alternância no poder, por período tão longo, é uma das

causas evidentes do desgaste inexorável do Partido, do ex-Presidente e da Presidente atual.

Um exemplo na história recente de chefe de governo que permaneceu por longo período no

poder foi o de Felipe González, na Espanha, por pouco mais de 13 anos, entre 1982 e 1996.

González também foi da consagração à queda amarga de seu prestígio, tendo saído sob

acusações generalizadas de corrupção.

A acusação difusa de corrupção no governo, sobretudo no governo dos

adversários, sempre fez parte da história política brasileira. Geralmente, porém, as

consequências deste discurso eram puramente eleitorais, jamais penais. As diversas denúncias

por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de verbas públicas envolvendo

ocupantes de cargos públicos em todas as esferas de governo alcançavam sempre o mesmo

resultado: a impunidade. A história começaria a mudar a partir de 2005, quando se divulgou o

escândalo que ficou conhecido como “Mensalão”. Tratava-se da distribuição periódica de

pagamentos a parlamentares da base de apoio do governo, com recursos arrecadados ou

desviados de fontes diversas, tanto privadas quanto públicas. Em abril de 2006, o Procurador-

Geral da República ofereceu denúncia criminal contra dezenas de pessoas, incluindo políticos

e empresários, por um conjunto amplo de crimes que incluíam corrupção ativa, corrupção

passiva, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, em meio a outros. Entre 2012 e

2103, o Supremo Tribunal Federal julgou e condenou 25 dos denunciados, aí incluídos um

ex-Ministro Chefe da Casa Civil, dirigentes do Partido dos Trabalhadores, parlamentares,

empresários e banqueiros. A decisão é considerada um marco do combate contra a corrupção

no Brasil.

Em 2014, um escândalo ainda mais abrangente de corrupção nas

entranhas do Poder Público foi desbaratado em uma operação conhecida como “Lava-jato”,

por ter tido sua origem em investigação sobre lavagem de dinheiro envolvendo lavanderias e

postos de combustíveis. O esquema, conforme apurado por força-tarefa do Ministério Público

e da Polícia Federal, tinha como participantes e beneficiários dirigentes da empresa estatal de

petróleo Petrobras, empreiteiras por ela contratadas, doleiros, lobistas, partidos políticos e

quadros partidários que se beneficiavam de propinas e desvios pagos, sobretudo, com recursos

de contratos superfaturados. O escândalo atingiu políticos dos mais variados partidos,

inclusive e notadamente os que davam sustentação ao governo (como PT, Partido do

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Movimento Democrático Brasileiro - PMDB e o Partido Progressista – PP). Há ação penal já

instaurada no Supremo Tribunal Federal contra o Presidente da Câmara dos Deputados e

investigações em curso contra o Presidente do Senado Federal, contra o ex-Presidente Lula,

contra o ex-Presidente Collor e inúmeros outros Deputados e Senadores. A extensão do

esquema, o volume dos recursos desviados e a proeminência dos acusados estarreceram o

país.

Embora não haja qualquer investigação até o momento contra a

Presidente da República, a percepção dos observadores é que não há como o governo não

sofrer o desgaste do envolvimento do seu próprio partido e dos partidos de sua base em um

escândalo dessa monta. Em meados de março de 2016, a imprensa divulgou a apreensão, em

uma das empreiteiras comprometidas no escândalo, de uma lista que identificaria pagamentos

feitos a mais de duas centenas de políticos7. A crise desarticulou a base de sustentação do

governo, comprometendo a capacidade de o Executivo aprovar projetos de seu interesse no

Congresso Nacional. Esse esfacelamento da coalizão que dava apoio político ao governo

aumentou as chances de impeachment da Presidente da República.

III. PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E AUSÊNCIA DE UMA SAÍDA INSTITUCIONAL SIMPLES

PARA AFASTAMENTO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

O sistema político brasileiro, marcado pela combinação do

presidencialismo com um quadro de extrema pulverização partidária (uma verdadeira sopa de

letrinhas), impõe uma condição indispensável à governabilidade: a construção, pelo

Presidente, de uma ampla coalizão no Congresso Nacional que lhe permita aprovar os

projetos e políticas necessários. Trata-se do propalado “presidencialismo de coalizão”. Porém,

ausente a necessária base de sustentação do Presidente, não há, no Brasil, mecanismo

institucional para afastá-lo, como o voto de desconfiança praticado no sistema

parlamentarista. Falta ao sistema um mecanismo que permita aferir a legitimidade corrente do

Presidente da República. Isto é, sua legitimidade somente é atestada no momento da

investidura, pela vitória no pleito eleitoral.

7 Sítio UOL, 23 mar. 2016, Fernando Rodrigues, “Documentos da Odebrecht listam mais de 200 políticos e valores recebidos”.

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Nos sistemas presidencialistas como o brasileiro, o Presidente da

República somente pode ser afastado do cargo legitimamente pelo cometimento de um crime

– seja comum ou de responsabilidade. A hipótese que nos interessa aqui é a do crime de

responsabilidade, expressão que designa um conjunto de infrações político-administrativas

previstas na Constituição8. São condutas graves, de caracterização nem sempre singela, além

de imbuídas de grau elevado de subjetividade. A Constituição prevê, ademais, um

procedimento complexo para a destituição do Presidente da República por esta via, apelidada

de impeachment, embora tal nomenclatura não conste do texto constitucional. Exige-se,

assim, um procedimento prévio perante a Câmara dos Deputados, que precisará autorizar, por

2/3 (dois terços) de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente. Uma vez

concedida tal autorização, cabe ao Senado Federal a efetiva instauração do processo, ocasião

em que o Presidente será afastado do cargo. Na sequência, o Senado instruirá o processo e

julgará o Presidente, podendo afastá-lo definitivamente do cargo por votação de 2/3 (dois

terços) dos seus membros.

Em qualquer democracia, madura ou jovem, trata-se de um

procedimento inevitavelmente traumático. No caso do Brasil, neste momento, muitas pessoas

que entendem não haver mais condições políticas para a permanência da Presidente no cargo

reconhecem, no entanto, a dificuldade de se imputar a ela, de maneira objetiva e inequívoca, a

prática de crime de responsabilidade. Essa é uma das grandes dificuldades do contexto atual.

A ela se somam a falta de consenso sobre qual seja a melhor alternativa de poder –

substituição da Presidente pelo Vice ou realização de novas eleições – e o temor quanto à

reação e mobilização das forças que apoiam a permanência da Presidente.

Parte III

UM OLHAR PARA O FUTURO

8 Constituição Federal: “Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.

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Ninguém é capaz de prever com segurança o desfecho da crise e as

agruras do futuro próximo. Com ou sem impeachment. Minha própria bola de cristal está

bastante embaçada. É mais fácil, porém, elaborar uma agenda com ideias e propostas que

precisarão ser implementadas para que o futuro não esteja sendo sempre adiado. Uma agenda

construída com senso de realidade, imaginação institucional e coragem para se desprender de

concepções e modelos que já não funcionam mais. Na frase feliz de Einstein, “não podemos

resolver nossos problemas pensando do mesmo modo que pensávamos quando os criamos”.

Selecionei, com uma dose inevitável de subjetividade, dez itens que

considero essenciais. Em relação às mudanças nas instituições, precisamos de (i) reforma

política, (ii) combate à corrupção e à impunidade e (iii) maior eficiência na gestão pública.

Em termos de serviços básicos e recursos naturais, é necessário investir em (iv) melhoria da

educação, (v) saneamento básico e (vi) proteção ambiental. Quanto ao desenvolvimento da

economia, é preciso também (vii) superar o preconceito contra a iniciativa privada, bem

como promover o necessário ajuste fiscal, a começar pela (viii) reforma previdenciária e pela

(ix) transparência orçamentária. E, last but not least, todas essas reformas devem estar

acompanhadas de medidas eficazes para alcançar (x) maior igualdade em todas as suas

dimensões, na distribuição de renda, de gênero, racial e de orientação sexual.

A seguir, teço comentários mais analíticos acerca de cinco desses itens,

e faço observações sumárias sobre os remanescentes. Não há uma hierarquização de tais

demandas, mas apenas uma opção pragmática em razão do tempo e do espaço.

I. REFORMA POLÍTICA: SE NADA MUDAR, TODOS PERDEM

Todos perdem com a persistência de um modelo que produziu um

perigoso descolamento entre a classe política e a sociedade civil. A reforma política de que o

Brasil precisa deverá ser capaz de atender três objetivos: (i) baratear o custo das eleições; (ii)

incrementar a legitimidade democrática; e (iii) facilitar a formação de maiorias e,

consequentemente, a governabilidade. O problema mais grave está no modelo atual de eleição

para a Câmara dos Deputados, que adota o sistema proporcional com lista aberta. Além de ser

caríssimo, pois todos os candidatos fazem campanha no Estado inteiro, ele apresenta um

gravíssimo problema de legitimidade democrática. É que, na prática, só 10% dos Deputados

são eleitos com votação própria; 90% são eleitos pela transferência de votos feita pelo partido.

14

Tem-se, assim, uma fórmula em que o eleitor não sabe exatamente quem elegeu e o candidato

não sabe exatamente a quem prestar contas. Não tem como funcionar. Além disso, as regras

sobre o sistema partidário fomentam a multiplicação de partidos e a criação de legendas de

aluguel. A política deixa de ser a disputa pela melhor forma de realizar o interesse público e o

bem comum, e passa a ser um negócio privado, voltada para o acesso ao fundo partidário, ao

tempo de televisão e à venda de apoio.

A reforma precisa conciliar muitos interesses legítimos e encontrar um

caminho do meio, com concessões recíprocas e consensos possíveis. Uma ideia que tem

amplo curso é a adoção de um sistema distrital misto, inspirado no alemão, em que metade

das cadeiras da Câmara seria preenchida por voto distrital. Cada partido lançaria um

candidato por distrito, sendo os distritos demarcados em função de quantitativos

populacionais. A outra metade seria eleita por voto no partido. O voto seria em lista, mas o

eleitor teria a faculdade de mudar a ordem de preferência dos candidatos. Esta proposta

concilia posições do PSDB e do PT. No tocante ao sistema partidário, há consenso entre os

três maiores partidos – PMDB, PT e PSDB – de que se devem proibir coligações em eleições

proporcionais. É esta possibilidade que mantém vivas legendas vazias de representatividade e

conteúdo programático. Por evidente, não há garantia prévia de sucesso em nenhuma fórmula.

Mas a permanência do modelo atual é garantia de fracasso.

II. CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE: O INCENTIVO AOS PIORES

Uma parte relevante da corrupção no Brasil está associada ao custo das

eleições e ao financiamento eleitoral. Portanto, uma reforma política capaz de baratear as

disputas eleitorais poderá ter impacto significativo sobre esta disfunção crônica da vida

brasileira. Outro elemento de fomento à corrupção é a impunidade. As pessoas na vida tomam

decisões levando em conta incentivos e riscos. O baixíssimo risco de punição – na verdade, a

certeza da impunidade – funcionava como um incentivo imenso à conduta criminosa de

agentes públicos e privados. Superar este quadro envolve mudança de atitude, da

jurisprudência e da legislação.

A Ação Penal 470 (Mensalão) foi um marco dessa mudança de atitude:

a sociedade demonstrou clara rejeição a práticas promíscuas entre iniciativa privada e Poder

Público, historicamente presentes na vida nacional; e o STF foi capaz de interpretar esse

15

sentimento e quebrar o longo ciclo de aceitação social do inaceitável. A condenação efetiva

de mais de duas dezenas de pessoas, entre empresários, políticos e servidores públicos, foi

decisiva para que, no escândalo seguinte, as pessoas investigadas se dispusessem a colaborar

com a Justiça, na expectativa de punição menos severa. A chamada Operação Lava-jato, ainda

em curso, revelou um esquema de superfaturamentos, propinas e ilícitos diversos que

estarreceram a sociedade brasileira. Dezenas de condenações e prisões já foram decretadas,

quase todas mantidas pelas instâncias superiores.

Além de uma mudança geral de atitude, por parte da sociedade e do

Judiciário, o próprio Supremo Tribunal Federal mudou a jurisprudência em relação a diversas

matérias. Durante a execução das penas do Mensalão, o Tribunal passou a considerar que o

pagamento da multa e a restituição do dinheiro desviado eram condições para a progressão de

regime prisional. E, mais recentemente, o Tribunal passou a permitir a execução das decisões

condenatórias após o julgamento em segundo grau de jurisdição, fechando uma porta pela

qual os condenados escapavam ou retardavam indefinidamente o cumprimento da pena,

mediante recursos procrastinatórios. Uma mudança legislativa (na verdade, constitucional)

ainda precisará vir: a drástica redução do foro por prerrogativa de função, resquício não-

republicano e falho que ainda subsiste na Constituição de 1988 e que contribui para a

impunidade de agentes públicos.

O enfrentamento da corrupção e da impunidade produzirá uma

transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos.

Quem tiver talento para produzir uma inovação relevante capaz de baixar custos vai ser mais

importante do que quem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde

que receba vantagem9. Esta talvez seja uma das maiores conquistas que virá de um novo

paradigma de decência e seriedade.

III. SUPERAÇÃO DO PRECONCEITO CONTRA A INICIATIVA PRIVADA E O EMPREENDEDORISMO:

DERROTANDO O PASSADO

9 Sobre este ponto, denunciando o círculo vicioso que premia os piores, v. Míriam Leitão, História do Futuro, 2015, p. 177-78.

16

Precisamos superar o preconceito e a desconfiança que ainda existem

no Brasil em relação à iniciativa privada e ao empreendedorismo. Temos uma cultura

excessivamente dependente do Estado para tudo. A história demonstrou, no entanto, que ao

menos no atual estágio da condição humana, a iniciativa privada é melhor geradora de

riquezas do que a atuação estatal. É importante aceitar esta realidade e pensar a vida a partir

dela. A origem desse preconceito e dessa desconfiança está no modo como o capitalismo

evoluiu no Brasil. Nos países de industrialização tardia e de iniciativa privada frágil, o

capitalismo de Estado foi a forma de contornar a concessão de setores estratégicos da

economia nacional a empresas estrangeiras.

E, assim, criaram-se no país as empresas estatais, como a Companhia

Siderúrgica Nacional (CSN), a Fábrica Nacional de Motores, a Companhia Vale do Rio Doce

e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), ao longo da década de 40. Nos anos

50, foram criados o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico – BNDE (depois

BNDES) e a Petróleo Brasileiro – Petrobras. Curiosa e paradoxalmente, foi sob o regime

militar, a partir dos anos 60, que se deu o boom na constituição de empresas estatais, que

chegaram a cerca de 300 no início dos anos 80. A Constituição de 1988, embora tenha sido

uma reação vigorosa ao modelo político do período militar, não confrontou – antes

aprofundou – o modelo de atuação direta do Estado no domínio econômico. Foi somente na

década de 90, já sob o impacto da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, que se

fizeram no Brasil as reformas econômicas que levaram à flexibilização de monopólios

estatais, à supressão de restrições ao capital estrangeiro e à desestatização. Ainda assim, o

preconceito e a desconfiança contra a livre iniciativa persistiram, como uma consequência

renitente das distorções resultantes do capitalismo de Estado, do paternalismo governamental

e da distribuição discricionária de benesses.

Essa trajetória do capitalismo brasileiro gerou duas consequências

negativas. De um lado, o imaginário social ainda associa o capitalismo doméstico a (i)

concessões com favorecimentos; (ii) obra pública com licitações duvidosas; (iii) golpes no

mercado financeiro; (iv) latifúndios improdutivos. De outro lado, muitos grandes empresários

brasileiros são avessos ao risco e à concorrência, conceitos-chave do capitalismo. Preferem

financiamento público e reserva de mercado. Capitalismo sem risco ou concorrência, isto é,

com dinheiro público e protecionismo, não é capitalismo, mas socialismo com o sinal trocado.

Para tornar tudo mais difícil, muitos dos fatos desvendados em investigações recentes

17

confirmaram algumas das piores suspeitas: licitações cartelizadas, financiamento público a

empresas com base em critérios não transparentes, medidas provisórias com benesses

contrabandeadas a peso de ouro. Ainda assim, é preciso enfrentar a mentalidade,

historicamente superada, de que o Estado deve ser protagonista. Precisamos, mesmo, é de

mais sociedade civil e de capitalismo verdadeiro, com risco privado, concorrência,

empresários honestos e regras claras, estáveis e propiciadoras de um bom ambiente de

negócios.

IV. MELHORIA DA GESTÃO PÚBLICA: O ESTADO A QUE CHEGAMOS

O Estado no Brasil ficou grande demais e a sociedade já não consegue

sustentá-lo. Trata-se de uma estrutura cara, inchada e que presta serviços deficientes.

Começando pelos custos: em 2015, aproximadamente 4% do PIB foi gasto com folha de

pagamentos do funcionalismo público. Some-se a este valor as necessidades de custeio

(equipamentos para saúde, educação, segurança pública, equipamentos urbanos, presídios,

asfalto) e a constatação é evidente: não sobra um vintém para investimento. Como os

servidores, como regra geral, têm estabilidade, não há como reduzir quadros. Não bastasse, a

folha de pagamentos tem um aumento vegetativo decorrente de adicionais de tempo de

serviço, promoções e reposição de aposentados. No momento atual, diversos Estados da

Federação já estão atrasando salários. Nessa matéria, há uma bomba-relógio armada.

O inchaço do Estado tem causas diversas, uma delas sendo o número

excessivo de cargos em comissão, sem mencionar a frequente falta de republicanismo nos

critérios de escolha. Dados recentes do IPEA apontaram a existência de cerca de 23,5 mil

cargos em comissão apenas no governo federal, em manifesto contraste com as práticas

administrativas de outros países (Estados Unidos: 9 mil; Alemanha: 500; França: 550). Esses

cargos são muitas vezes utilizados como moeda de troca política, sendo ocupados por agentes

sem qualificação adequada.

Por fim, a má qualidade dos serviços públicos em geral tornou-se fonte

permanente de tensão e de manifestações populares. Faltam recursos, gestão de qualidade e

profissionais qualificados e comprometidos com a eficiência e com o interesse público. Em

síntese: as perspectivas do Estado como Administração Pública são cinzentas. E não há

solução juridicamente simples nem politicamente barata. O equacionamento deste problema

18

terá de incluir, em futuro próximo, redução significativa de quadros de funcionários,

eliminação de milhares de cargos em comissão e capacitação dos servidores públicos, com

incentivos e sanções para melhorar a produtividade. E, naturalmente, uma gestão justa e

adequada da transição para o novo regime.

V. EDUCAÇÃO: NO FINAL DA FILA

Em matéria de educação, a despeito dos progressos dos últimos anos,

ainda estamos defasados mesmo em termos de América Latina. Um projeto educacional

ambicioso deve ter em conta dois grandes objetivos: (i) a capacitação de todos para uma vida

melhor, com acesso a conhecimentos essenciais, a uma profissão, à informação e ao exercício

esclarecido da cidadania; e (ii) a identificação dos grandes talentos, dos virtuoses, daqueles

que devem receber incentivos e investimentos diferenciados, porque serão os líderes da

inovação e do avanço social. Precisamos de projetos ambiciosos em relação ao ensino

fundamental e ao ensino médio, que compõem hoje o denominado ensino básico; e

precisamos de projetos mais ousados ainda para a universidade.

No tocante ao ensino fundamental, alcançada a universalização, é

preciso investir em qualidade efetiva. O ensino médio, por sua vez, deverá ter a sua

universalização elevada à condição de prioridade máxima. De acordo com o ranking do PISA,

exame que avalia o desempenho de estudantes de 65 países após o término da escolaridade

básica10, o Brasil ocupa as desalentadoras posições 55 em leitura, 58 em matemática e 59 em

ciências. Somos o final da fila. Praticamente metade dos alunos (49,2%) sequer é capaz de

compreender adequadamente os textos que leem11. Com uma observação: o inglês deixou de

ser uma segunda língua para se tornar a língua universal do conhecimento e da inovação no

mundo globalizado. Deve ser ensinado com afinco.

Algumas ideias neste tema do aprimoramento da educação incluem: (i)

substituir a preocupação em fornecer aos estudantes ensino enciclopédico pela meta de dotá-

10 Programme for International Student Assessment (em português, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). 11 http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/12/03/pisa-desempenho-do-brasil-piora-em-leitura-e-empaca-em-ciencias.htm

19

los de competência de leitura, escrita, interpretação de textos e raciocínio lógico; (ii)

desenvolver programas nacionais de capacitação de professores; e (iii) ampliar o uso da

tecnologia em favor do aprendizado. Um bom exemplo seria complementar o ensino

presencial em sala de aula em todos os recantos do país por meio de vídeo-aulas ministradas

por professores de altíssimo nível e de softwares interativos que permitam testar o

conhecimento adquirido.

No tocante ao ensino superior, também estamos atrasados. As

instituições públicas custam muito caro em função do retorno que dão para a sociedade.

Circunstâncias diversas têm dificultado a capacidade da universidade brasileira de gerar

centros de excelência e inovação, movidos pelo mérito individual e pelo esforço coletivo. A

universidade pública precisa ser capaz de se autofinanciar, ao menos em parte, arrecadando

recursos com projetos e serviços à sociedade. E, aos poucos, precisamos desenvolver um

modelo alternativo de instituição superior, pública nos seus propósitos e privada no seu

financiamento, mediante dotações particulares e filantropia. Com bolsas de estudo para

recrutar os melhores alunos, professores contratados em seleções domésticas e internacionais

e aulas em português, inglês e espanhol. Não é possível detalhar este projeto aqui, no qual eu

trabalhava quando fui indicado para o Supremo Tribunal Federal, mas considero-o importante

para o país.

VI. DEMAIS ITENS DA AGENDA

1. Saneamento básico: A saúde pelo ralo

O saneamento básico é a principal política pública de saúde preventiva,

conforme parâmetro mundialmente aceito, além de ser vital para impedir o comprometimento

do solo, dos mananciais (fontes de água para abastecimento), rios e praias. O saneamento

básico consiste em ações de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, bem como

manejo das águas pluviais e dos resíduos sólidos. Nossos indicadores nessa área são muito

ruins. Mais da metade dos domicílios brasileiros não tem acesso a uma rede de coleta de

esgoto. Além disso, mais de 70% dos Municípios brasileiros não têm qualquer sistema de

tratamento de esgoto instalado, despejando-o diretamente no meio ambiente. No tocante aos

resíduos sólidos, mais de 50% dos Municípios os destinam a vazadouros a céu aberto,

conhecidos como lixões. Epidemias associadas ao mosquito aedes aegypti, como dengue, zika

e outras, têm como uma de suas causas principais disfunções associadas ao saneamento

20

básico. Por combinar política de saúde pública, proteção ambiental e condições mais dignas

de vida, uma abrangente e ambiciosa política pública de saneamento básico deve ser uma

opção prioritária para o país.

2. Proteção ambiental: Quanto vale uma floresta?

O Brasil tem diferentes conjuntos de ecossistemas ou biomas que

merecem proteção especial. Dentre eles se inclui o que restou da Mata Atlântica, o Pantanal, o

Cerrado e a Caatinga. A grande preocupação do momento, todavia, se volta para a

preservação da Amazônia e sua floresta tropical, uma das maiores riquezas em biodiversidade

do mundo. Entre 1970 e 2013, foi desmatada uma área da Amazônia equivalente ao território

de duas Alemanhas12-13. Houve uma significativa redução do desmatamento ao longo dos

anos, mas ainda assim a destruição da floresta atingiu, em 2014, cerca de 5.000 km2, o que

equivale a uma extensão próxima ao tamanho de Brasília14. A meta deve ser o desmatamento

líquido zero15, com uma política de reflorestamento em níveis correspondentes à derrubada

inevitável da floresta. Cabe destacar que a demarcação constitucionalmente prevista das terras

indígenas tem relevante impacto sobre a proteção ambiental das áreas respectivas16. É boa

hora, no Brasil, de se passar a ver a preservação da floresta como um ativo, um investimento,

e não um passivo a ser eliminado. Coerente com essa ideia, devem-se pensar formas criativas

e legítimas pelas quais o mundo e o país recompensem a Amazônia pela preservação da

floresta, criando incentivos que funcionem como alternativa a ocupações ambientais danosas

com grilagens, queimadas, plantio de soja ou criação de gado.

3. Previdência social: uma conta para nossos filhos

12 Antonio Donato Nobre. O futuro climático da Amazônia: relatório de avaliação científica. São José dos Campos, ARA: CCST-INPE: INPA, 2014. 13 RAISG Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada. 2015. Deforestación en la Amazonía (1970-2013) (p. 47). São Paulo: Instituto Socioambiental. 14 Brasília tem área de 5802 km2. 15 Beto Veríssimo, “Vamos reduzir o desmatamento a zero. Saiba como”, in Americas Quarterly. Acesso em 3 abr. 2016. Disponível em: http://www.americasquarterly.org/content/vamos-reduzir-o-desmatamento-zero-saiba-como. 16 V. Daniel Santini, “Terras indígenas demarcadas ajudam a frear o desmatamento”, in Demografia Unicamp, 8 out. 2013. Disponível em: https://demografiaunicamp.wordpress.com/2013/10/08/terras-indigenas-demarcadas-ajudam-a-frear-desmatamento/.

21

Um dos maiores desafios do país para o equilíbrio de suas contas é o

custo da Previdência Social. Duas Reformas da Previdência, uma no governo Fernando

Henrique (EC n. 20/1998) e outra no governo Lula (EC n. 41/2013) foram insuficientes para

superar o problema. Em 2104, o déficit da previdência atingiu 56,7 bilhões no chamado

regime geral, pago pelo INSS aos que foram empregados na iniciativa privada; e 66,6 bilhões

no chamado regime próprio, que paga os benefícios dos servidores públicos. Esta é outra

bomba-relógio armada, com forte impacto sobre a justiça intergeracional, pois caberá às

gerações vindouras pagar esta conta. Com uma agravante: o perfil demográfico do país vem

se invertendo e em alguns anos haverá mais idosos do que jovens, isto é, mais aposentados do

que trabalhadores em atividade. Quase todos os países do mundo estabelecem uma idade

mínima para a aposentadoria. No Brasil, já a fixamos no setor público. É imperativo fazer o

mesmo em relação aos trabalhadores da iniciativa privada. O mundo pratica uma idade

mínima média em torno de 65 anos. Também precisamos enfrentar problemas como os das

aposentadorias especiais precoces e o das pensões, domínio em que há situações absurdas

como os benefícios perenes das filhas solteiras de certos servidores.

4. Transparência orçamentária: cadê o dinheiro que estava aqui?

O orçamento é uma lei editada anualmente, contendo a estimativa de

receita e a autorização para realização dos gastos públicos. É no orçamento que se tomam as

decisões fundamentais – acerca de investimentos, obras públicas, projetos sociais – e se fazem

escolhas trágicas acerca da alocação de recursos escassos. É nele que se materializam as

escolhas éticas e políticas de uma sociedade. Quanto vai ser gasto com educação, saúde,

pesquisa científica, infraestrutura, publicidade institucional. Estranhamente, o orçamento

público no Brasil é tratado com grande indiferença pela sociedade e pelos formadores de

opinião. É ruim que seja assim. A transparência na elaboração e na execução do orçamento

são instrumentos fundamentais para que uma democracia possa funcionar adequadamente.

Nos últimos anos, foi vitoriosa no Brasil a cultura de que o equilíbrio fiscal não tem

ideologia. Adquirida esta consciência, resta agora dar o passo seguinte: fazer do orçamento

uma instância política decisiva. Isso significa dar visibilidade à sua elaboração – com o debate

público adequado acerca das prioridades adotadas na alocação de recursos – e à sua execução,

que deverá ser acompanhada por controles jurídicos e sociais adequados.

5. A luta pela igualdade em suas três dimensões: sabe com quem está falando?

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O grande papel de uma sociedade democrática é assegurar que seus

cidadãos sejam pessoas livres e iguais. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa

particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a

existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que

corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a

igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e

sua diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras. É inegável, porém, que a

desigualdade extrema segue sendo uma marca da nossa formação social. No Brasil, ainda é

mais fácil punir um jovem com 100 gramas de maconha do que um empresário que tenha

cometido uma fraude de 10 milhões. Mas temos feito progresso. É inegável que mulheres,

negros e homossexuais vivem uma escalada positiva no reconhecimento de seus direitos. E já

há uma consciência social muito maior em relação à luta contra a pobreza. O país, no entanto,

em muitas circunstâncias, ainda valoriza mais a origem social do que o mérito e a virtude.

Temos, portanto, uma agenda ainda inacabada nessa matéria.

CONCLUSÃO

Na minha apresentação, procurei relembrar algumas conquistas

relevantes do Brasil nestes trinta anos de democracia, realizar uma tentativa de diagnóstico da

crise atual, e, ainda, propor uma agenda mínima de reformas indispensáveis para o país, que

vão muito além da presente crise conjuntural. Três conclusões resumem as ideias que

compartilhei:

1. A intensidade e a gravidade da crise atual não devem encobrir as inestimáveis

conquistas que obtivemos nesses trinta anos de democracia e poder civil no

Brasil, que incluem estabilidade institucional, estabilidade monetária e

inclusão social.

2. O país vive uma crise política, uma crise econômica e uma crise moral. Mas

não há uma crise institucional. Ninguém considera, com chance de êxito,

qualquer solução fora da Constituição. Mais cedo ou mais tarde, de uma forma

ou de outra, a tempestade vai passar e vamos retomar o rumo. E aí, se

conseguirmos nos libertar de uma cultura de corrupção e esperteza, seremos

melhores e maiores.

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3. Uma agenda de superação da crise e de encontro do país com o futuro adiado

deverá incluir, em meio a outros compromissos, reforma política, revalorização

da iniciativa privada, enxugamento do Estado, prioridade para a educação e

renovado comprometimento com a inclusão social e o combate a todo tipo de

desigualdade e à discriminação.