4
RESUMO A trombose da veia jugular interna é uma causa rara de tu- mefação cervical inflamatória e é muitas vezes subdiagnosti- cada. A sua etiologia é diversificada e pode estar associada a graves complicações, colocando a vida do doente em risco. Este artigo visa relatar dois casos clínicos referentes a episódios de urgência, cujos sinais à observação inicial consistiam na pre- sença de tumefação cervical dolorosa com poucos dias de evo- lução, associados a sinais inflamatórios, locais e sistémicos. Após confirmada a suspeita clínica de trombose da veia jugu- lar interna, a investigação etiológica prosseguiu. No primeiro caso foi feito o diagnóstico de carcinoma gástrico metastizado (Síndrome de Trousseau) e no segundo caso de iatrogenia as- sociada a aparente mau controle dos níveis de hipocoagula- ção (com ponto de partida em fio de eletroestimulador cardíaco de cardioversor elétrico implantado seis meses antes). PALAVRAS-CHAVE: Trombose veia jugular interna, Síndrome de Trousseau, Tumefação cervical inflamatória ABSTRACT Deep jugular veins thrombosis is a rare cause of cervical in- flammatory swelling and is often under-diagnosed. Its etiology is diverse and may be associated with serious complications, placing the patient’s life at risk. This article aims to report two clinical cases regarding two episodes seen on the emergency room. In both, the present- ing clinical signs were a recent painful neck swelling, associ- ated with local and systemic inflammatory signs. After confirming the clinical suspicion of deep jugular veins throm- bosis, the etiological investigation continued. The first case was diagnosed as metastatic gastric cancer (Trousseau’s Syn- drome) and the second one as iatrogenic injury associated with poor anticoagulation levels control (with starting point in the wire of an implantable cardioverter-defibrillator im- planted six months before). KEY-WORDS: Deep jugular vein thrombosis, Trousseau’s Syn- drome, Cervical inflammatory swelling ESPECIALIDADE CONVIDADA TROMBOSE DA VEIA JUGULAR INTERNA: A PROPÓSITO DE DOIS CASOS CLÍNICOS DEEP JUGULAR VEIN THROMBOSIS: TWO CASE REPORTS Autores: Sandra Gerós 1 , Pedro Oliveira 2 , Teresa Bernardo 3 , Fernanda Castro 4 , Artur Condé 5 1 Interna do Internato Complementar de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho 2 Assistente Hospitalar do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho 3 Interna do Internato Complementar de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho 4 Assistente Hospitalar do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho 5 Diretor do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho 15 Maio de 2012 Correspondência: Sandra Isabel Gerós Pereira - Serviço de Otorrinolaringologia - Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho Rua Conceição Fernandes | 4434-502 Vila Nova de Gaia | Telefone: 227 865 100 | E-mail: [email protected]

TROMBOSEDAVEIAJUGULARINTERNA: …cadernosorl.com/artigos/2/6.pdf · plas etiologias, das quais a trombose da veia jugular interna, apesardepoucohabitual,deveestarsemprepresentenoracio

Embed Size (px)

Citation preview

RESUMO

A trombose da veia jugular interna é uma causa rara de tu-mefação cervical inflamatória e é muitas vezes subdiagnosti-cada. A sua etiologia é diversificada e pode estar associada agraves complicações, colocando a vida do doente em risco.

Este artigo visa relatar dois casos clínicos referentes a episódiosde urgência, cujos sinais à observação inicial consistiam na pre-sença de tumefação cervical dolorosa com poucos dias de evo-lução, associados a sinais inflamatórios, locais e sistémicos.Após confirmada a suspeita clínica de trombose da veia jugu-lar interna, a investigação etiológica prosseguiu. No primeirocaso foi feito o diagnóstico de carcinoma gástrico metastizado(Síndrome de Trousseau) e no segundo caso de iatrogenia as-sociada a aparente mau controle dos níveis de hipocoagula-ção (com ponto de partida em fio de eletroestimuladorcardíaco de cardioversor elétrico implantado seis meses antes).

PALAVRAS-CHAVE: Trombose veia jugular interna, Síndromede Trousseau, Tumefação cervical inflamatória

ABSTRACTDeep jugular veins thrombosis is a rare cause of cervical in-flammatory swelling and is often under-diagnosed. Its etiologyis diverse and may be associated with serious complications,placing the patient’s life at risk.

This article aims to report two clinical cases regarding twoepisodes seen on the emergency room. In both, the present-ing clinical signs were a recent painful neck swelling, associ-ated with local and systemic inflammatory signs. Afterconfirming the clinical suspicion of deep jugular veins throm-bosis, the etiological investigation continued. The first casewas diagnosed as metastatic gastric cancer (Trousseau’s Syn-drome) and the second one as iatrogenic injury associatedwith poor anticoagulation levels control (with starting pointin the wire of an implantable cardioverter-defibrillator im-planted six months before).

KEY-WORDS: Deep jugular vein thrombosis, Trousseau’s Syn-drome, Cervical inflammatory swelling

ESPECIALIDADE CONVIDADA

TROMBOSE DA VEIA JUGULAR INTERNA:A PROPÓSITO DE DOIS CASOS CLÍNICOS

DEEP JUGULAR VEIN THROMBOSIS: TWO CASE REPORTSAutores: Sandra Gerós1, Pedro Oliveira2, Teresa Bernardo3, Fernanda Castro4, Artur Condé5

1 Interna do Internato Complementar de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho2Assistente Hospitalar do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho3 Interna do Internato Complementar de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho4Assistente Hospitalar do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho5Diretor do Serviço de ORL do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho

15 Maio de 2012

Correspondência: Sandra Isabel Gerós Pereira - Serviço de Otorrinolaringologia - Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho

Rua Conceição Fernandes | 4434-502 Vila Nova de Gaia | Telefone: 227 865 100 | E-mail: [email protected]

2 Cadernos Otorrinolaringologia . CLÍNICA, INVESTIGAÇÃO E INOVAÇÃO

: :INTRODUÇÃOA trombose da veia jugular interna (TVJI) foi descrita pela pri-meira vez em 1912 por Long1, associada a complicação de umabcesso periamigdalino. Apesar de ser uma causa incomumde tumefação cervical inflamatória nos dias que correm, podeestar associada a graves complicações (tais como tromboem-bolismo pulmonar, sépsis, quilotórax, entre outros), colocandoa vida do doente em risco e sendo fatal em alguns casos. Se-gundo Espritus e Media2, os fatores etiológicos mais comunsna prática clínica atual são o uso de catéter venoso central eo abuso de drogas endovenosas, enquanto que as policite-mias, neoplasias e distúrbios da coagulação ocupam um lugarde menor destaque. O diagnóstico de TVJI é desafiante, sendopor vezes uma entidade subdiagnosticada, que requer pri-mordialmente um elevado grau de suspeição clínica.

CASO CLÍNICO 1Doente do sexo masculino, de 65 anos de idade, que recorreao Serviço de Urgência por odinofagia, tumefação cervical es-querda dolorosa com sinais inflamatórios locais e sistémicos,com três dias de evolução. Apresentava também um quadro defebrícula, rinorreia e sintomas constitucionais com um mês deevolução, sem resolução após a toma de cefalosporina e corti-coide sistémico. Posteriormente desenvolveu dor abdominal equeixas dispépticas, que foram correlacionadas com a toma dosfármacos referidos. Negava disfagia ou sialorreia, embora refe-risse perda ponderal e anorexia progressivas nos últimos meses.Dos antecedentes patológicos, de destacar hipertensão arteriale ser portador de pacemaker. Ao exame objetivo, apresentavasinais inflamatórios difusos ao nível das áreas cervicais IV e V es-querdas, com ausência de flutuação ou de adenopatias palpá-veis. À palpação abdominal, com dor referida à região doepigastro. Na ecografia cervical, imagem sugestiva de forma-ção abcedada à esquerda com efeito de massa às estruturas cir-cundantes. No estudo analítico, apresentava uma proteína Creativa de 13,99 mg/dL, sem leucocitose. Realizou TC cervicalque confirmou a suspeita ecográfica (Figura 1), sem referênciaa patologia vascular. No entanto, dada a localização ao longo dotrajeto da VJI, o otorrinolaringologista suspeitou de tromboseda veia jugular interna pelo que solicitou reavaliação imagioló-gica recorrendo a Eco-doppler e a Angio-TC, os quais confir-maram o diagnóstico de TVJI esquerda (Figura 2). Foi levada acabo investigação etiológica para esclarecimento do quadro dehipercoagulabilidade, dado não existirem aparentes fatores derisco conhecidos, e o doente referir queixas dispépticas inespe-cíficas. O estudo da coagulação revelou diminuição dos níveis deproteína S. Realizou endoscopia digestiva alta com observaçãode úlcera gástrica na pequena curvatura, entretanto biopsada. Oestudo anatomopatológico revelou carcinoma não diferenciadocom células em anel de sinete. Na laparotomia exploradora pararessecção tumoral, observou-se extensa carcinomatose perito-neal com numerosas adenopatias retroperitoneais, tendo otumor sido classificado como irressecável. Foi proposto para qui-mioterapia paliativa, mantendo-se atualmente em vigilância pe-riódica, cerca de um ano e meio após o diagnóstico inicial.

CASO CLÍNICO 2Doente do sexo masculino, 75 anos de idade, hipocoagulado.Antecedentes de cardiopatia isquémica e insuficiência cardíacaclasse III/IV (submetido a bypass e implante de cardioversorelétrico em agosto de 2011), AVC isquémico em 2007, sub-metido a endarterectomia carotídea esquerda nesse ano. Comfatores de risco cardiovascular previamente conhecidos e me-dicados (hábitos tabágicos pesados prévios, obesidade, dia-betes mellitus tipo 2, hipertensão arterial e dislipidemia), assimcomo um síndrome restritivo pulmonar grave.

Recorreu ao serviço de urgência por cefaleias e cervicalgia es-querda com dois dias de evolução progressiva, associado a si-nais inflamatórios locais. Concomitantemente apresentavafebre desde há três dias, tendo sido por isso medicado empi-

TC cervical com contraste (corte axial).

FIG

1

Angio-TC (corte coronal) demonstrando TVJI.

FIG

2

Cadernos Otorrinolaringologia . CLÍNICA, INVESTIGAÇÃO E INOVAÇÃO 3

ricamente com um macrólido e beta-lactâmico, por suspeitade infeção respiratória. À observação apresentava edema,rubor e calor na região cevical esquerda, áreas III e IV, com dorà palpação. Sem sinais de flutuação. O restante exame otor-rinolaringológico não apresentava alterações, excetuando li-geiro edema da prega faringoepiglótica. Analiticamente,leucocitose de 14 340 / µL com predomínio neutrofílico e pro-teína C reativa de 24,47 mg/dL. Estudo da coagulação comINR de 2,26, tempo de tromboplastina parcial ativada de 70,2segundos, taxa de protrombina de 35% e doseamento do fi-brinogénio de 817 mg/dL. No TC cervical realizado, confir-mada a existência de trombo recente da VJI esquerda, comextensão da base do crânio ao tronco braquiocefálico, onde seidentificava o fio do eletroestimulador cardíaco (Figuras 3 -5). Foi realizada investigação etiológica durante o período deinternamento, com rastreio negativo para lesões neoplásicas(quer imagiologicamente quer na negatividade dos marcado-res tumorais), assim como para fenómenos de autoimunidade.Apresentou uma evolução clínica e objetiva favorável duranteesse período, tendo sido concluído que a etiologia do quadroseria muito provavelmente secundária à diminuição dos níveisde hipocoagulação oral associada à presença do fio eletroes-timulador elétrico cardíaco.

: :DISCUSSÃOA trombose venosa afeta maioritariamente os membros inferio-res. As veias da cabeça e pescoço são menos suscetíveis a estesfenómenos dado serem desprovidas de válvulas, e a sua drena-gem ser auxiliada pela ação da gravidade aquando do ortosta-tismo3.

As possíveis causas de trombose venosa jugular podem ser locaise sistémicas. Fatores locais como infeção (dos seios perinasais,otológicas, faciais, odontogénicas, cavidade oral ou faríngeas)tiveram um decréscimo significativo dado o uso generalizado deantibióticos. Na prática clínica atual, as causas mais comuns in-cluem o uso de catéter venoso central, a hemodiálise e o uso depacemakers, sendo o primeiro o mais frequentemente obser-vado. Fatores sistémicos incluem comorbilidades que predis-põem a um estado de hipercoagulabilidade, e que incluemdistúrbios trombogénicos, doenças mieloproliferativas, o uso deestrogénios, a gravidez e o período pós-parto, assim como asdoenças oncológicas4. A prevalência de malignidade como fatorde risco para TVJI, foi estimada em cerca de 29,7%5. Valor ele-vado, dada a conjugação de vários fatores de risco: estado de hi-percoagulabilidade, tratamentos quimioterápicos (por vezesatravés de catéter venoso central) e imobilização do doente. Aassociação entre malignidade e fenómenos tromboflebíticos foiinicialmente descrita por Armond Trousseau, relacionando atromboflebite migratória com a presença de carcinoma gástrico6.As células tumorais ativam a cascata de coagulação não só porestimulação direta da formação de trombina, mas também atra-vés da indução das células mononucleares na síntese de fatorespró-coagulantes tais como os fatores teciduais, ativadores daprotrombina e do fator 5. As células cancerígenas podem tam-bém mediar a agregação plaquetária ou participar na ativaçãodas células endoteliais através das citoquinas TNF e IL-1, que for-

Cardioversor elétrico implantado (com fio do eletroestimuladorcardíaco) no Rx de controlo. FI

G3

TVJI esquerda evidenciada em TC com contraste (corte sagital).

FIG

4

TVJI esquerda em TC com contraste (corte axial).

FIG

5

mam substâncias que por sua vez estimulam a produção de fa-tores de coagulação teciduais7.

O primeiro caso clínico descrito é um exemplo desta associação(designado Síndrome de Trousseau), e revela por si só a neces-sidade de ser levada a cabo uma investigação sistemática e ri-gorosa para o estabelecimento de um correto diagnóstico porvezes oculto face a outros aparentemente mais óbvios.

A tríade clássica descrita por Virchow e que predispõe à trom-bose intravascular inclui: trauma no vaso sanguíneo, estase dofluxo e estado de hipercoagulabilidade8. O segundo caso clínicoé um perfeito exemplo desta interação: o trauma provocadopela presença do fio de eletroestimulador cardíaco, a estaseagravada pela insuficiência cardíaca congestiva concomitante epor último um estado de “pró-coagulabilidade” resultante deum ineficaz controlo dos níveis de hipocoagulação.

O tratamento da TVJI inclui hipocoagulação com heparina debaixo peso molecular, seguida de hipocoagulação oral com var-farina para prevenção de fenómenos tromboembólicos. Os fil-tros inseridos na veia cava superior raramente são utilizados naTVJI isolada, embora possam ser usados em doentes cuja hipo-coagulação esteja contraindicada3. Outras modalidades tera-pêuticas dependem individualmente de cada caso e incluem ouso de antibióticos quando a etiologia é infeciosa, remoção decatéter venoso central, ou em caso de doença oncológica, o tra-tamento cirúrgico, quimio e/ou radioterápico necessários.

Concluindo, a tumefação cervical inflamatória pode ter múlti-plas etiologias, das quais a trombose da veia jugular interna,apesar de pouco habitual, deve estar sempre presente no racio-cínio clínico do otorrinolaringologista. Trata-se de um diagnós-tico desafiante e que requer, acima de tudo, um elevado grau desuspeição clínica. Após o diagnóstico, a investigação etiológicadeve ser exaustiva e sistematizada dada não só a gravidade dascomplicações inerentes, como a premência da descoberta dacausa que a despoletou.

BIBLIOGRAFIA1. Ball E, Morris-Stiff G, Coxon M, Lewis MH. Internal jugular vein thrombosis

in a warfarinised patient: a case report. Journal of Medical Case Reports.2007 December; 1:184.

2. R. Zuha, T. Price, R. Powles, et al. Paradoxical emboli after central venouscatheter removal. Annals of Oncology. 2000; vol. 11, 7:885-6.

3. Modayil PC, Panthakalam S, Howlett DC. Metastatic carcinoma ofunknown primary presenting as jugular venous thrombosis. Case reports inmedicine. 2009 October.

4. P. P. Cheang, J. Fryer, V. Singh. Spontaneous bilateral internal jugular veinthrombosis: a sign of metastasis. Journal of Laryngology & Otology 2004;vol. 118, 7:570-2.

5. M. A. Sheikh, A. P. Topoulos, S. R. Deitcher. Isolated internal jugular veinthrombosis: risk factors and natural history. Vascular Medicine. 2002; vol 7,3:177-9.

6. G. H. Sack Jr., J. Levin, W. Bell. Trousseau’s syndrome and othermanifestations of clinical disseminated coagulopathy in patients withneoplasm: clinical, pathologic and therapeutic features. Medicine.1997;56:1-37.

7. R. L. Edwards and F. R. Rickles. Macrophage procoagulants. Progress inHemostasis and Thrombosis. 1984;7:183-209.

8. http://emedicine.medscape.com/article/461577-overview.

4 Cadernos Otorrinolaringologia . CLÍNICA, INVESTIGAÇÃO E INOVAÇÃO