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LUIZ CÉZAR DA SILVALUIZ CÉZAR DA SILVALUIZ CÉZAR DA SILVALUIZ CÉZAR DA SILVA 2011201120112011

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Copyright© by Luiz Cézar da Silva

Editora Clube de Autores

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“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”

Hamlet (William Shakespeare)

“O simples bater das asas de uma borboleta pode causar tempestades do outro lado do mundo”

Efeito borboleta (Teoria do Caos)

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SUMÁRIO Rumo ao solo. 7 Uma mulher de muita sorte. 12 A borboleta Rainha. 20 Sentinelas . 26 Dentro da caixa. 32 O Rapto noturno de Luessa Teixeira. 38 Alguns sonhos são mais do que reais. 50 Fogo magnético. 59 Reação desastrosa. 69 Que o fim justifique os meios. 81 Sob o manto da chuva. 90 Amigo Íntimo. 99 Morlock. 112 Minutos decidem uma vida. 119 O Arquivista. 128 Vozes atrás da porta. 137 As quatro bruxas. 144 Íncubo. 156 A meretriz. 164 Noctívagos. 173 Exército de zumbis. 181 Leal guardião. 188 Irmãos gêmeos. 193

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Rumo ao solo

O som do vento violento nas roupas, a luz do sol da manhã, o ar gelado do inverno e a gravidade fazendo seu trabalho, puxando tudo para o centro da terra. A sensação de liberdade era absoluta, o corpo solto no ar em alta velocidade numa descida frenética em pleno céu do deserto. Ele olhava até onde a visão alcançava, onde o horizonte unia a terra e o céu como se fosse um só ser; porém, pouca coisa podia ser vista àquela altura a não ser a grandiosa abobada azulada sobre sua cabeça. Abaixo dele estava uma grande coluna de nuvens, nada muito sério, havia chovido um pouco na noite anterior e aquelas nuvens nada mais eram do que um restante de chuva não precipitada. Ao longe um pequeno avião bimotor passava calmamente, ele sabia que alguns pára-quedistas estavam dentro da máquina preparando seu material de salto; finalmente ele entendia o que motivava aqueles homens a saltar. A sensação era simplesmente indescritível, mesmo para ele. Abriu os braços e por um instante pareceu que sua queda tinha diminuído a velocidade um pouco; o vento parecia soprar para cima com uma lufada violenta forçando os braços dele para trás; teve de fazer força para mantê-los abertos. Ato continuo, recolheu os braços junto ao peito e girou aumentando ainda mais a velocidade novamente; descia como uma ave num vôo agudo em direção ao solo, ao menos era o que ele pensava. Finalmente seu corpo foi envolvido pelas brumas matutinas, a coluna de nuvens; um cheiro peculiar que nunca tinha sentido entrou por suas narinas sensíveis, era o cheiro das nuvens de

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água, talvez outros não conseguissem identificar tal cheiro com a mesma precisão, mas era tão fácil para ele como o ato de respirar, mesmo o vento provocado pela decida não era o suficiente para ajudar a ludibriar os seus sentidos. Dentro das nuvens tudo era cinza como num acúmulo de fumaça e havia uma iluminação clara provocada pelo sol que brilhava intensamente do lado de fora e acima, o ar era pouco mais denso do que fora das brumas, mas nada que incomodasse. Ao sair daquela coluna quase etérea ele avistou claramente o solo vindo em sua direção rapidamente, olhou para direita e viu muito ao longe o que parecia ser uma cidade que se divisava com aquele deserto, depois olhou à esquerda e viu algumas colinas. Soube naquele momento que deveria rumar para a cidade e ali pensaria no que fazer. O salto era extremamente proibido nesses tempos, mas já tinha pensado a respeito e falado com outros que também saltaram antes dele. Por vezes a primeira queda era dolorida, era o que se dizia por aqueles que ainda lembravam de seus saltos. “Haverá alguém lá em baixo me esperando?” _ pensava ele. E mais_ “Como será daqui pra frente?” Ao sair da coluna de nuvens ele abriu os braços novamente, como que numa brincadeira para demonstrar toda a sua felicidade por sentir-se livre pela primeira vez; abriu as pernas também e girou como uma estrela durante alguns minutos. O chão se aproximava, ele não via ninguém lá, nenhum de seus irmãos; só havia terra, areia e nada mais, sabia que do alto a perspectiva era muito diferente daquela no solo, portanto, sabia que aquela cidade que vira minutos antes ao longe era ainda mais longe se tivesse de caminhar até ela com seus próprios

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pés, mas a decisão já tinha sido tomada e para casos como os dele jamais haveria volta ou qualquer tipo de retorno possível; suas escolhas tinha sido feitas com total consciência dos resultados e das retaliações que aquilo acarretaria sobre si, mas não ligava, ele achava que estava pronto para tal e também não era uma “pessoa” tão despreparada assim. O solo parecia crescer cada segundo mais, era diferente de quando estava voando e pousava em qualquer lugar, ou quando efetuava vôos rasantes sobre as cidades, pois desta vez não tinha freios nem meio algum de reduzir sua velocidade que, pelo contrário, parecia aumentar a cada minuto de queda. Olhou para o céu mais uma vez e avistou alguns pássaros voando em círculos logo abaixo das nuvens por onde acabara de passar; provavelmente fossem aves de rapina, já não podia identificá-los. Olhou para a terra. O clima também tinha modificado, acima das nuvens o ar era agradável e gelado, porém, quanto mais próximo da terra mais quente ficava o ar, afinal tratava-se de um deserto. E quanto mais ele descia mais a temperatura subia. Se fosse um pára-quedista, aquele seria o momento exato para acionar o dispositivo que desprendia o velame, porém, não era; e mesmo sendo naturalmente dotado de uma espetacular estrutura presa às costas capaz de fazê-lo levantar vôo, planar e pousar com segurança mesmo nos dias mais tempestuosos; abriu mão de tudo isso em troca de sua queda e suposta liberdade. O solo estava a poucos metros de distância e naquele momento ele percebeu que o choque contra o chão seria muito mais violento do que imaginava, por um minuto temeu por sua vida.

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Quem diria, que alguém como ele poderia temer por sua vida numa situação inusitada como aquela? Pensou em tentar suportar o peso da queda sobre seus pés, caindo de pé, já tinha feito isso outras vezes, mas logo desistiu dessa idéia. Este pouso não seria suave nem gracioso, de nenhuma forma, como os anteriores e nem ele nem ninguém poderia prever o que se seguiria. Quando tentou esboçar uma outra reação qualquer, um pensamento que fosse; já era tarde, chocou-se contra o chão com uma brutalidade tamanha que o solo do deserto reclamou retumbando o som surdo da queda; erguendo uma nuvem de poeira que cobriu o sol por alguns segundos e abrindo fendas ao redor da cratera que se formou onde o corpo jazia inerte. A primeira sensação que teve foi dor; que se irradiou por todo o corpo. _ Está feito. _ balbuciou consigo mesmo e gemeu em seguida sentindo que cada osso do corpo parecia estar partido. Ergueu-se olhando em redor, ficou abismado com a profundidade da abertura feita por sua queda. As costas doíam mais do que o restante do corpo. Olhou as mãos, estavam pálidas, tocou os braços, tórax, pernas, cabeça, ombros e por fim tentou segurar as asas, mas elas estavam quebradas, ambas, e a dor era quase insuportável. Caiu com os joelhos em terra e apoiou as mãos no solo; não teve coragem de olhar para o céu; as asas tombaram sobre ele como um manto esfarrapado, as penas outrora brancas caindo e desprendendo-se iam repousar no solo rachado e quente do deserto. Lembrou-se da cidade que tinha avistado de cima enquanto caia; teria de andar até lá, suportando as dores, arrastando as

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asas até que estas morressem por completo e se desligassem completamente de suas costas. Perderia a natureza celestial logo que as asas caíssem. Não sentia mais aquela sensação de liberdade, tampouco sentia coisa alguma que não fosse dor. Sobre ele pairavam as sombras dos pássaros ainda voando em círculos repetidas vezes. Nunca mais voaria. Seria como os outros que escolheram “liberdade” na terra ao invés de “servidão” nos céus, entretanto, talvez não estivesse pronto para tal. Estava arrependido e irremediavelmente condenado.

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Uma mulher de muita sorte Dione era uma cigana que ficava durante alguns dias da semana sentada em uma cadeira, com uma mesa pequena e redonda à sua frente, sempre no mesmo lugar; uma viela movimentada próximo ao calçadão da cidade de Nova Iguaçu. Ela chamava algumas das pessoas que passavam por ali a fim de oferecer seus serviços especiais de vidência. Sobre a mesa ficavam dois baralhos ciganos com as faces das cartas voltadas para baixo e uma mandala. Ultimamente eram pouquíssimas pessoas que aceitavam de bom grado uma consulta, sobretudo em se tratando de uma consulta de leitura de mãos. A maioria dos homens e mulheres declinavam do convite alegando falta de tempo, pressa, atraso para o trabalho ou para qualquer outro compromisso e coisas do tipo. Mas Dione resolveu partir para uma estratégia mais agressiva. Ela se levantou e segurou uma jovem mulher pelo braço numa atitude atrevida, não costumava fazer aquilo, mas por algum motivo creu que tal ato tinha mais chance de produzir algum fruto. Ela queria vencer aquela mulher com as palavras e pelo cansaço, insistiria até a outra concordar em ler a mão e pagar pela consulta, afinal, não era assim tão caro. E além do mais, em via de regra, as pessoas que relutavam para saber sua sorte, sempre ficavam satisfeitas após uma leitura de mãos; quase que a totalidade das pessoas se dizia incrédula para saber a sorte, mas na verdade gostavam de saber o que sobreviria em suas vidas. E mais, Dione costumava ser muito cuidadosa no que

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dizia e falava somente aquilo que as pessoas geralmente queriam ouvir. Uma coisa que ela aprendeu era que cada vez mais as pessoas estavam se tornando mais carentes de boas notícias. _ Deixe-me ler suas mãos_ disse Dione enquanto a outra olhava para ela. _ Não obrigado. _ respondeu a outra polidamente. _ É rápido e barato. _ Não, estou atrasada; não tenho tempo. Dione pensou consigo mesma: “É a clássica desculpa esfarrapada”. Mas não desistiria tão facilmente desta vez. _ Não vai demorar. _insistiu. _ Não. Por favor, solte meu braço._ Rebateu a outra mulher muito calmamente. _ Você não quer saber seu futuro? _ Não acredito nessas coisas. Dione insistiu mais um pouco; a mulher estava relutante, mas pouco a pouco foi se deixando envolver pela proposta de ficar sabendo o que o futuro reservava para ela. _ Sinto que há algo especial em você. A mulher que já estava na dúvida se ia embora ou não encarou a cigana. Dione emendou: _ Você é uma pessoa especial; o que você pode perder, além de alguns minutos de sua vida, se me deixar ler sua mão. Finalmente a outra concordou. “Curiosidade mórbida” _ pensou Dione sentando-se com a outra de pé a sua frente. _Dê-me sua mão direita.

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A mulher obedeceu ainda meio relutante e Dione começou a examinar as marcas e vincos na palma da mão da outra. Enquanto fazia isso, perguntou: _ Qual é o seu nome? _ Me chamo Dione Boaventura. A cigana se interrompeu e olhou para a outra de pé ali em frente. Com um sorriso no rosto ela disse: _ Mais que coincidência! Eu também me chamo Dione, mas meu sobrenome é Petúnia. De fato, Dione nunca tinha atendido uma cliente com o mesmo nome que o seu, mais aquilo também não era nada espantoso; afinal, em se tratando de uma cidade como Nova Iguaçu com seus quase um milhão de habitantes, mais cedo ou mais tarde aquilo ia acontecer. A cliente observou: _É um nome bonito o seu. O que é; uma flor? A cigana voltou a olhar a mão direita da outra enquanto respondia: _ Sim é uma fl... A cigana se interrompeu e passou o dedo sobre a palma da mão da outra mulher, em seguida fez uma careta, ergueu o cenho e olhou para a cliente. _ O que foi? _ Perguntou a Dione Boaventura. _ O que você está vendo aí? _ Dê-me a outra mão, por favor. Ao que a cliente obedeceu e ficou esperando para ver o que seria dito. _ Que coisa incrível!_ Disse aquela que lia as mãos. _ Nunca vi uma pessoa com traços como os seus. _ O que isso quer dizer?

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_ Você é uma pessoa de muita sorte, mais do que todas as que já vi; estou impressionada. _ Você está vendo isso nas minhas mãos? _ Sim. Mas não é só isso; tem mais. _ Mais o quê? _ Estou vendo aqui que você possui muita sorte mesmo, exceto por um momento relativamente próximo de seu nascimento, provavelmente alguns anos de sua infância quando não havia sorte alguma sobre você. A Dione cliente olhava fixamente para a outra enquanto ela falava. _ Vejo aqui também que sua vida amorosa é muito movimentada também por conta de sua sorte e que você não aparenta a idade que tem. Além do mais, me parece que você vai viver bastante. _ Até isso você consegue ver aí? _ Sim; e não é só isso. Vejo que você é uma pessoa dominadora, possessiva, controladora e até certo ponto agressiva, mas que apesar disso tem conseguido seus objetivos e me parece que vai continuar conseguindo. _ Você tem razão. _disse a cliente. _ E o que mais? _Você vai ter ainda muito sucesso, não está claro aqui, mais creio que é sucesso profissional; vejo muitas pessoas se oferecendo para você, procurando você, chamando seu nome. Mas tem algo nebuloso que eu não consigo identificar. _ Nebuloso como? A cigana olhou para a cliente visivelmente entusiasmada. _ Você quer que eu tente descobrir mais alguma coisa do seu futuro? _ Ora mais minhas mãos estão aí, continue lendo.

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_ Não nas mãos. _ Dione apontou para as cartas e para a mandala sobre a mesa. Antes que a cliente pudesse responder, a cigana estava pensando que aquela mulher devia ser realmente especial, talvez ela mesma não soubesse o quanto, mas nunca tinha visto tanta sorte nas mãos de uma única pessoa. A cliente olhava fixamente para a cigana e a encarava com olhos penetrantes e curiosos; ela umedeceu os lábios com a ponta da língua e finalmente disse: _Vamos ver o que mais você descobre sobre mim. Com rapidez e habilidade, a cigana passou a mão sobre um dos baralhos e o abriu em forma de leque sobre a mesa, ainda com a face das cartas voltadas para baixo. Dione, a cliente, perguntou: _O que são estas figuras dentro desse círculo? _ São a sorte, o azar, o acaso e o destino; são quatro forças caóticas da criação e regem a vida das pessoas como eu e você, nas civilizações da antiguidade em alguns lugares essas forças eram veneradas como deuses. Essa é a mandala que me permite trabalhar com essas forças. A mandala sobre a mesa tratava-se de um círculo com um quadrado dentro e em cada lado do quadrado havia desenhado uma figura com um nome escrito logo abaixo dela. A Dione cigana retirou uma carta do leque de baralho aberto sobre a mesa, mas ainda não virou. _ Esta carta vai me dizer algo sobre seu passado. _ Mais como você faz para descobri essas coisas? _ É um dom. Ela retirou outra carta do meio do baralho, ainda sem virar a face da mesma para cima.

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_ Essa carta vai dizer algo sobre o seu presente. _ Como você começou a fazer isso? _ Perguntou a cliente. _ Tradição; aprendi com meus antepassados. Finalmente retirou mais uma carta do meio do baralho, mas não sem antes escolher meticulosamente. Antes de puxar a carta Petúnia segurou uma, mas não puxou, depois passou para outra e por algum motivo também não a puxou e na terceira que ela examinou finalmente retirou e separou do baralho deixando-a junto com as outras duas que tinha retirado. Recolheu as demais cartas e as deixou empilhadas como estavam inicialmente; tudo isso sob o olhar atento da outra Dione. _ Vamos ver o que as cartas nos dizem; primeiro quanto ao passado. _ Ela virou a carta que retirou primeiro e ficou em silêncio. _ O que diz? _ Não compreendo. _ O que é? _ Não diz nada; absolutamente nada sobre seu passado, mas não consigo entender, vi claramente algumas coisas quando li suas mãos, eu deveria conseguir ver mais sobre sua vida aqui nas cartas. _ Tente as outras. Petúnia virou a segunda e aguardou um pouco mais, em seguida virou a terceira carta; aquela que diria sobre o futuro e novamente ficou em silêncio. Mas ainda não conseguia compreender o que aquilo poderia significar, geralmente ela conseguia vislumbrar alguma coisa, porém os três tempos da vida daquela mulher estavam fechados, não só fechados, mas impenetráveis. Dione petúnia teria de usar sua habilidade para

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falar algo genérico e assim não ser chamada de mentirosa; ela tinha certeza que havia visto coisas estranhas na vida daquela mulher, entretanto, de repente tudo se fechou. Pensando o mais rápido que pôde a cigana disse: _ Vejo que as coisas em sua vida vão... Foi interrompida pela outra que disse seriamente: _ Não minta para mim, não é isso o que você está vendo. Petúnia ficou sem graça mais resolver dizer a verdade, obviamente perderia a consulta, mas, de fato, estava intrigada com aquilo tudo. _ Não consigo ver mais nada, as cartas não estão dizendo coisa alguma, é como se... _... A minha sorte não pudesse ser lida._ completou a cliente. _ É Isso sim! Como você sabe? _ Olhe as minhas mãos._ disse a cliente com ambas as mãos espalmadas na direção de Dione. A cigana se afastou da mesa e encostou-se à parede atrás de si, algo errado estava acontecendo ali; as mãos da mulher, não possuíam mais vincos ou marca alguma; eram lisas, completamente lisas. Dione Boaventura disse: _ Eu faço minha própria sorte, desde o princípio. Estou impressionada com você; de verdade; interpretou todas as impressões que desenhei, poucas vezes vi alguém conseguir fazer tal coisa, infelizmente forjei tudo. Foi apenas uma brincadeirinha. A cigana não respondeu; ela se forçava contra a parede com um misto de confusão e medo; não conseguia imaginar o que poderia ser aquilo. A “cliente” falou:

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_ Você não desconfia com quem está falando? Não houve resposta. Ela continuou: _ Como você já deve imaginar, não me chamo Dione Boaventura, mas achei interessante usar o mesmo nome que o seu apenas para uma visitinha sem compromisso; o sobrenome eu inventei agora. Enquanto falava, ela levou a mão ao baralho empilhado e retirou uma carta; olhou a carta e colocou sobre a mesa com a face voltada para cima com uma figura a mostra. _ Você pode se considerar a partir de hoje, também uma mulher de muita sorte porque teve a honra de conversar comigo. E lembre-se, não é sempre que converso assim com pessoas. A cliente tocou a carta com o dedo e foi saindo, caminhando normalmente deixou a viela e partiu para a rua mais movimentada, onde a multidão de pessoas entrava e saia das lojas. Dione Petúnia ficou imóvel alguns segundos imaginando o que tinha se passado ali até que finalmente teve coragem de se inclinar sobre a mesa e ver a carta que a outra colocou lá. A carta mostrava uma figura de uma mulher e sobre ela a inscrição “Fortuna” completava o desenho. A cigana conhecia muito bem aquela figura, mas se recusava a acreditar. No fundo uma dúvida ficou pairando no coração da cigana. Teria ela conversado com a sorte em pessoa? Teria a própria sorte se passado por uma pessoa comum apenas para fingir e se divertir? Mas por quê?

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A borboleta Rainha Quando viu aquela borboleta sobrevoando o espelho d’água e fazendo evoluções no ar; Flávia ficou extremamente impressionada, não pelo fato de aquela borboleta estar subindo e descendo, girando e por vezes parecendo parar sobre a água. Mas sim pela própria borboleta em si. A começar pelo tamanho do inseto que mesmo estando relativamente longe do lugar onde Flávia se encontrava ainda parecia ser muito maior do que o tamanho normal. A borboleta devia medir de uma asa à outra, aproximadamente uns quarenta centímetros. Embora Flávia já tivesse visto algumas bem grandes, nunca tinha encontrado uma tão grande assim e nem tão bela também; de fato, as maiores que já tinha visto eram na verdade borboletas negras ou de tonalidade escura. O inseto com aquelas asas enormes e multicoloridas dançava flutuando nas suaves correntes do ar da manhã sobre o pequeno ribeiro que passava bem em frente de onde Flávia estava acampada com mais três amigos e amigas. Todos eles estavam ainda dormindo, haviam feito uma comemoração ao redor da fogueira com tudo que tinha direito na noite anterior; músicas de acampamento embaladas pelo violão de um deles, histórias de terror, e guloseimas espetadas em palitos de churrasco e tostadas no fogo. Essa comemoração particular entrou pela madrugada; mas a moça nunca conseguia dormir até tarde e se levantou bem cedo para lavar o rosto junto ao pequeno rio. Caminhou um pouco e se distanciou das barracas onde os colegas dormiam; ficou ali parada olhando o sol e a beleza do lugar. Um tapete florido se estendia desde a outra margem do rio até uma entrada mais ao longe repleta de mata atlântica

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preservada. Estavam no município de Mesquita, Rio de Janeiro, e Flávia jamais podia imaginar que existisse um lugar tal como aquele; não na baixada fluminense. Tratava-se de um vale entre duas montanhas, uma menor na frente dividindo o vale da cidade e outra maior atrás como uma grande muralha verde; onde a menor possui apenas vegetação rasteira e poucas árvores ao passo que a outra possui mata fechada até aonde a vista alcança. Porém entre elas fica localizado este vale criado pela natureza que de tão bem cuidado poderia até ser comparado com um imenso jardim. Muitas pessoas subiam à montanha menor chamada monte Guararapes; sobretudo religiosos, pelos mais diversos motivos; porém poucos passavam para o lado de trás do monte que eles mesmos apelidaram com o nome de Horebe. Mas aquele lugar tinha sido descoberto por alguns jovens em busca de um local para acampamento e desde então muitas pessoas de diversas partes do estado e até mesmo de outros estados iam sistematicamente ali acampar ou simplesmente ter um bom encontro com a natureza. Dizia-se que passando o ribeiro e atrás da primeira coluna de grandiosas e frondosas árvores centenárias, antes da subida para a segunda montanha existia uma grande caverna escondida em um maciço rochoso, mas todos preferiam ficar acampados naquele belíssimo vale-jardim. Alguns grupos de defesa ambiental também costumavam se reunir ali, mas a extensão do local era tamanha que Flávia não tinha avistado pessoa alguma desde o momento em que levantaram suas barracas no dia anterior até aquele horário. A borboleta dançou mais um pouco sobre a água, fazendo pequenos vôos desordenados; devia estar querendo beber um

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pouco da água límpida do pequeno rio assim como a moça tinha feito minutos antes. Flávia olhou ao redor e, pensativa, imaginou que todo aquele vale parecia ser na verdade um grande santuário natural; ela ouvia apenas os sons da natureza, o trilar e o gorjear dos pássaros ao longe, um ruído constante do que pareciam ser grilos escondidos no capim ou algum tipo de insetos semelhantes e o leve som do ribeiro a sua frente cujas águas desciam mansamente de algum lugar no topo da montanha, atravessavam o vale sem nenhuma fúria faziam uma curva ao longe, entravam na mata, e seguiam para um destino desconhecido. O resto era silêncio absoluto. Sua atenção se voltou novamente para a grande e vistosa borboleta que agora já havia atravessado o rio e sobrevoava o tapete florido na margem oposta, a imagem era magnífica; as asas batendo suavemente e com uma simetria impar, e a borboleta subindo e descendo sobre as flores mais próximas como se estivesse escolhendo a mais bela para pousar sobre ela. As cores das grandes asas eram um espetáculo extra, a luz do sol parecia literalmente reluzir sobre elas, como se fossem estruturas feitas de algum material laminado e colorido; aliás, as cores diversas pareciam mudar de tonalidade na medida em que as asas se mexiam. Flávia ficou inebriada com aquela cena e muito mais quando percebeu que em meio ao enorme jardim florido havia outras, muitas, borboletas menores; nenhuma delas era tão bela quanto a primeira, não que não o fossem, mas a borboleta maior ofuscava todas as demais. Elas se levantaram do meio das

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flores e começaram uma dança em pleno vôo ao redor da maior, pareciam saudá-la. A moça perdeu a conta quando contou e chegou no número de trina pequenas borboletas de todas as cores; brancas, azuis, laranja, negras, roxas, amarelas, verdes; nunca tinha visto na vida uma borboleta verde, mas estas ainda não eram as mais estranhas. Ela não tinha conseguido contar com precisão, até porque o sol da manhã refletido na água estava atrapalhando um pouco a visão assim como o balé dos insetos, mas Flávia viu claramente pelo menos duas borboletas de asas transparentes; ficou estupefata com aquilo, era simplesmente um milagre da natureza; a visão mais bela que ela já tinha presenciado na vida. Sentiu-se presenteada por estar podendo ver aquela demonstração de vida dada por aqueles pequenos animais flutuantes. Como se não bastasse a grandeza daquele momento até então, a borboleta maior e mais bela ergueu-se em um vôo reto em direção ao céu, não subiu muito, não mais do que dois metros do solo, mas fora acompanhada de perto pelas outras que num vôo espiral giravam ao redor da maior. Aonde a borboleta maior ia as outras também iam girando e se aglomerando como um mosaico vivo e multicolorido; quando a grande descia e tocava as flores, as demais também o faziam, quase que numa atitude de reverência. A moça parada agora na beira do ribeiro finalmente piscou, tinha sido quase que totalmente hipnotizada pelo magnífico teatro encenado pelas Borboletas; a cena era algo que ela tinha certeza que jamais ia esquecer, porém gostaria que mais alguém visse e compartilhasse do mesmo sentimento que a

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inundava ali. Pensou em correr até as barracas e acordar os outros, mas ficaria sob o risco de quando voltar já ter perdido todas as pequenas bailarinas de vista. Não tinha escolha. Uma de suas amigas ali era uma apaixonada por natureza, flores, animais, paisagens e tudo o mais que ela pudesse fotografar; Flávia sabia que a amiga tinha trazido a máquina, até porque no dia anterior tinham tirado muitas fotos tanto quando chegaram como na festa ao redor da fogueira. As borboletas começaram a rumar para o lado da mata fechada, o lado mais afastado do vale, sempre com movimentos graciosos que pareciam ser orquestrados pela maior voando constantemente na frente das outras. Flávia correu até a barraca, nem se deu conta de que o barulho que fez acordou os outros, mas ela não estava preocupada com isso, revirou as coisas o mais rápido que pôde até encontrar a câmera fotográfica da colega. Voltou correndo e acompanhando a margem do rio até a curva onde ao fundo ainda podia ver as borboletas dançando. Já estavam relativamente longe. Felizmente o zoom da máquina era dos melhores e Flávia começou a disparar sobre as borboletas, mesmo ao longe ela conseguia capturar muito bem as imagens das pequeninas, na medida do possível; nenhuma ficou tremida. A máquina era excelente e a moça fotografou com imensa felicidade as borboletas com asas translúcidas, verdadeiras obras de arte da natureza, mas o mais incrível de toda essa experiência ainda estava por se revelar. Aumentou a potência do zoom para finalmente poder fotografar a maior de todas, aquela que parecia ser a rainha das borboletas; ouviu uma das amigas chamar seu nome, mas estava tentando enquadrar o alvo de sua foto e não podia perder

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tempo, os insetos já estavam quase que totalmente fora do vale e dentro da floresta. Chamaram-na novamente no momento em que finalmente ela conseguiu enquadrar a maior borboleta de todas, ia imortalizar aquele momento e poderia mostrar para todos o quanto quisesse. O susto foi tão grande que a máquina caiu no chão antes que Flávia batesse a foto, pois no exato momento em que enquadrou a borboleta esta girou em pleno ar revelando-se por completo, e não só as grandes asas que até então eram as únicas parte bem visíveis. Se não fosse pela potência do equipamento que cobriu a distância entre Flavia e a borboleta certamente ela jamais teria visto o que viu. Aquilo podia ser tudo no mundo, mas borboleta não era. As asas eram grandes e em formato semelhante ao das pequenas bailarinas, mas aquilo tinha corpo e rosto humanos embora em tamanho muitíssimo reduzido para os padrões normais. E eram um corpo e um rosto de mulher.

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Sentinelas _ O que você está fazendo aí? _ Pensando. _ Pensando!? _ Meditando; chame como quiser. _ Eu pensei que anjos da sua classe não gastassem o tempo pensando. _Não diga tolices, você sabe tão bem quanto eu que alguns de nós pensamos até mais do que devíamos. Dois bons amigos de longa data estavam parados bem no meio de uma movimentada rua chamada Uruguaiana, no centro do Rio de Janeiro. Naquele lugar passam pessoas para todas as direções, mas ninguém ali repararia na presença de dois seres celestiais com aparências comuns que cotidianamente os observava. _ No que você está pensando? _ Neles, é claro. _ O que têm eles? _ Olhe os rostos das pessoas ao redor e me diga se estão felizes. Estão nervosas, ansiosas e deprimidas. _ Não me parecem deprimidas. _ Bem, nem todas estão, mas certamente ficarão em algum momento. _ Sei. _ Muitos estão a um passo da violência. _ Violência é? _ Contra si mesmos, contra o próximo e contra nós. _ Como assim contra nós?

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_ Ora, não é obvio? Estão deixando de crer; para eles nossa gente não passa de uma fantasia bem montada e antiga. _ Nem todos pensam isso. _ Eu sei, mas é que parece que eles estão desconfortáveis dentro de seus próprios corpos; estão respirando ganância, egoísmo e maldade. _ Dizem por aí que o deus do homem é o próprio homem. _ Eu já ouvi isso; estou relutante em acreditar, mas não posso evitar de pensar que pode ser verdade, embora esse jamais tenha sido o plano original. O Eterno, Todo-Poderoso faz tanto por eles; por que não enxergam isso? _ Talvez eles não possam. _ O amor está esfriando na mesma medida que a maldade está se proliferando. Dia a dia. _ Eles não têm culpa, quer dizer, você sabe; talvez tenham parte da culpa, mas estão se esforçando. São humanos. _ Acho que sim. _Você não devia ficar tanto tempo aqui. Quer trocar de posto comigo por uns dias? _ Não. Gosto daqui; além do mais, conheço muitas pessoas que passam nessa rua todos os dias. _ Você tem conversado com eles? _ Sim. Gosto de conversar, sempre gostei. _ Não percebem nada, não é? _ Não. Fique tranquilo, sei qual é meu dever, amo o que faço e faço já há tanto tempo quanto você. _ Então pare de se preocupar tanto. _ Não posso, se eu deixar de me preocupar, deixo de fazer bem o meu dever. _ Sei. E como as coisas estão?

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_ Nunca antes eu vi tanta fúria quanto nestes últimos anos; é como se eles estivessem evoluindo e se degradando cada vez mais ao mesmo tempo. _ Tenho ouvido muito isso de todas as sentinelas. Será que é... _ Provavelmente. _ Alguns mostram mais do que outros, mas em todos, em maior ou menor grau, eu consigo ver a marca. _ E quanto aos filhos do reino? _ Estão indo bem; digo, lutando bastante cada qual a sua maneira, mas você sabe como é, o mundo é um lugar hostil para eles. _ Muito tempo atrás eu ouvi dizer que a marca da queda aumentaria com o passar dos anos e tomaria todo o corpo das pessoas. _ Corpo e alma. _ O futuro reserva muitas batalhas para eles, e estão muito despreparados; são tão frágeis que nem conseguem perceber isso. _ Isso é uma profecia? _ Minha classe não faz profecias. Só estou fazendo uma projeção. _ Mas essa é a guerra deles, nós só ajudamos. Além do mais, nossa guerra começou bem antes. Temos muito trabalho por fazer. _ O que mais dizem as outras sentinelas? Ambos pararam de falar ao mesmo tempo. A multidão parecia um formigueiro humano e barulhento; as pessoas falavam ao telefone, conversavam entre si em grupos, algumas conversavam sozinhas, muitos pensamentos vazavam de suas

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mentes e chegavam aos ouvidos dos dois seres parados ali, mas não era esse o barulho que os estava chamando a atenção. Alguns carros com motores barulhentos, outros nem tanto, chegavam e saiam devagar; muito ruído de aparelhos eletrônicos das lojas nos arredores; porém ainda não era isso o que os tinha aguçado. _ Ouviu? _ Sim. Alguns murmúrios vinham trazidos pelo vento, mas não era possível precisar de onde e isso os estava intrigando, tinham a capacidade de distinguir qualquer som que já fora criado pelo homem e saber a exata direção de onde ele era produzido. Qualquer outro som inumano só podia significar uma coisa. _ São eles. _ São. A linguagem era conhecida embora não fosse utilizada pelas classes celestes; era o idioma dos perdidos, traidores, renegados, decaídos. Muito tempo atrás, todos falavam um só idioma, mas desde a grande batalha nos céus uma facção que se separou da luz passou a falar um idioma diferente, todos ainda sabiam o que cada um dizia, mas as falanges falavam de um jeito enquanto que as legiões decaídas falavam de outra forma. _ Eu tenho ouvido rumores de que um ou outro das primeiras legiões estão aqui. _ Procurei averiguar isso, e é verdade; príncipes antigos. _ Antigos quanto. _ Antigos da época de Samael. _ A serpente. Ficaram em Silêncio. Os murmúrios indistinguíveis não estavam mais presentes ali

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_Quais serão os generais que cá estão? De quem estamos falando exatamente? _ Ainda não sei, mas saberemos em breve; já ouvi o nome de Loki, o velhaco. _ Esse nome não é da mesma época. _ Não, mas ele é, o nome foi adotado mais tarde. _ Quantas legiões ele ainda comanda? _ Muitas. _ Todos os mais velhos comandam muitas legiões, mas será que a nossa falange é que vai ter que segurar esse embate. _ Provavelmente. A presença deles aqui pode explicar essas coisas estranhas que estão acontecendo. Esses sons esquisitos. _ Estão confabulando; tramando. É o que mais sabem fazer. _ Desde o princípio, foram arrogantes, orgulhosos, mentirosos, maldosos, desobedientes e renunciaram voluntariamente o nome dado a eles, não quiseram mais ser chamados de anjos. _ Sei; todos os traidores quiseram ser chamados de demôn... _ Espere um pouco!_ interrompeu. Se algum dos anciões, príncipes traidores está por aqui, então logo logo nossos príncipes também estarão. _ Quem? _ Sei lá. Miguel talvez. _ Será? _Claro. Jamais perdemos uma batalha sequer. Não vai ser agora que vamos começar com esse mal costume. _Você tem razão, mas não é por causa disso que eu estava pensando. _ Então o quê? _ Às vezes eu não os reconheço.

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_ Quem? _ As pessoas. _ Por quê? _ Porque estão cada vez mais arrogantes, orgulhosos, mentirosos, desobedientes. Já vi isso antes, e não foi bom. _ Como já falamos meu irmão, a marca da queda se espalha; ela está fazendo seu efeito e vai continuar mais e mais, é como um veneno que já nasceu correndo nas veias deles, mais sedo ou mais tarde ele produz seus frutos. As coisas acontecem assim na terra como nos céus, lembra. Os traidores estão sempre influenciando as pessoas assim como influenciaram anjos anteriormente. _ Ainda bem que estamos aqui. _ Mas lembre-se, eles ainda podem escolher não dar vida o mal que carregam. _ É o que tento lembrá-los. _ Pois, é. Então eu já me vou por hoje. _ Tenho outras sentinelas para visitar, em breve eu retorno com mais notícias. Um deles saiu caminhando no meio da multidão, tão pacifica e comumente que poderia ser facilmente confundido com uma pessoa normal, até se perder da vista do outro que não fez questão de acompanhá-lo visualmente. Este por sua vez, ficou parado em seu posto, olhando na face das pessoas que passavam, bem dentro dos olhos de cada uma delas. Atento a tudo e a todos; cada sombra, cada pássaro, cada movimento. Alerta como sempre ficava. Como era sua missão.

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Dentro da caixa. A pá bateu contra algo sólido escondido no solo, Diogo interrompeu a busca por um momento, não sabia ao certo o que pensar, podia ser apenas uma grande coincidência. Estava cavando já fazia quase três horas e havia feito um buraco considerável; respirou fundo, logo a noite cairia e ele queria ir embora antes que isso acontecesse. Estava há dias sem dormir direito, vinha tendo visões estranhas que o incomodavam, na verdade ele não sabia se eram visões de verdade; no começo pareciam apenas pedaços de algum filme dentro de sua cabeça, em seguida aquilo se tornou mais vívido, era como se as imagens de sua mente estivessem sendo projetadas para fora do cérebro e ele era envolvido por elas onde quer que estivesse. Diogo guardou segredo, primeiro por medo, não sabia o que as pessoas poderiam pensar se ele contasse para alguém, mas as coisas foram piorando mais e mais. Com o tempo as imagens passaram a invadir seu sono e seus sonhos também; Era como uma mensagem repetitiva sendo repassada em sua cabeça continuamente e por dias. Ele via uma caixa de ferro escura e bastante enferrujada sendo colocada por alguém dentro de um buraco e sendo enterrada em seguida; o lugar era inóspito, apenas um grande descampado até aonde a vista podia alcançar muito embora ele tivesse a vaga sensação de que conhecia o lugar, porém, não era aquele onde Diogo estava cavando. A pessoa que estava fazendo aquilo ele não via por completo, na verdade, a imagem era em primeira pessoa, como se fosse ele próprio quem tinha enterrado aquela caixa, mas tinha certeza de que em toda a sua

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vida nunca fizera algo semelhante; jamais havia enterrado uma caixa como aquela. A caixa, aliás, media não mais do que um metro, semelhante a um baú; era escura, possuía correntes que a envolviam de ponta a ponta e um grande cadeado parecido com aqueles usados em grandes jaulas de ferro. Com mais alguns golpes de pá para retirar a terra e o barro que estavam sobre o objeto enterrado ele pode constatar que verdadeiramente se tratava de um caixote o que estava ali, exatamente como o visto em suas visões ou mensagens ou o que quer que fosse aquilo. Abaixando-se ele retirou o objeto de dentro de sua cova, cavando o restante da terra com as próprias mãos nas laterais e puxando em seguida; a caixa tinha duas alças laterais e era parcialmente parecida com aquela vista em seus sonhos, exceto pelo fato de que esta não possuía correntes e a de suas visões não tinham alças, mas esta estava em um avançado estado de degradação do ferro, provavelmente pela umidade do solo durante sabe lá quanto tempo que aquilo ficou enterrado ali. A ferrugem tinha tomado quase que totalmente a caixa e as dobradiças da tampa pareciam não suportar o esforço caso fossem abertas. Diogo cuidadosamente passou a mão sobre o tampo da caixa tentando ver se havia algo escrito e aproveitou para tirar toda sujeira solta dela, mas não pode ver nada que não fosse ferrugem. Teve medo de abrir aquele objeto e perceber que o que estava guardado ali era na verdade algum artefato radioativo enterrado por algum irresponsável qualquer que julgou que ninguém o encontraria; ele não podia adivinhar, talvez fosse lixo hospitalar radioativo ou extremamente

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contagioso; infelizmente muitos hospitais pelo país tinham esse péssimo habito, mas se fosse esse o caso aquilo não explicaria as visões. Na verdade ele queria apenas caminhar em terreno conhecido, estava tentando fazer sua mente trabalhar com informações e sentimentos que ele pudesse dominar, mesmo que fossem informações como aquelas e que o sentimento fosse o medo, afinal de contas o medo é extremamente familiar para todos. No fundo ele sabia que não era nada daquilo. Diogo ainda não sabia, mas o que estava dentro da caixa era algo que ele jamais imaginaria encontrar e poderia ser muito pior do que seus pensamentos e especulações, dependendo de como fosse usado. Ele já se sentia um completo lunático só pelo fato de estar seguindo sensações e impressões que o levaram até aquele lugar; nunca antes na vida ele tinha experimentado qualquer tipo de experiência sobrenatural; absolutamente nada. Nunca tinha sentido nem um “Dèjá Vu” em toda a vida, ao menos não se lembrava disso, tampouco lembrava de ter sonhos premonitórios ou reveladores como muitas pessoas afirmam mundo afora. Não costumava consultar horóscopos, não era supersticioso e considerava-se relativamente racional com relação à praticamente todas as coisas da vida. Diogo pensava que as coisas inexplicáveis permaneciam assim apenas até que a razão humana evoluísse o suficiente para sanar tais dúvidas e ainda segundo seu raciocínio, no futuro todas as perguntas teriam uma resposta plausível e perfeitamente embasada, até mesmo as clássicas perguntas universais como: De onde viemos? Qual o sentido da vida? E, para aonde vamos?

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Mas ele não tinha respostas para um sonho repetido que o acometia diversas vezes durante tanto tempo e também quando estava acordado, e foi justamente por isso que havia resolvido descobrir o que estava por trás daquilo. Estava, antes de tudo, atrás de respostas. Mas como explicar uma visão que mostrava exatamente o local onde estava enterrado um baú? Diogo sentou-se e fez força na tampa, como a caixa que ele desenterrou não tinha correntes como a da visão talvez ele pudesse abrir facilmente, mas não foi o que ocorreu. A tampa não abriu, ou estava trancada de uma forma diferente visto que não tinha fechadura alguma ou as dobradiças estavam tão enferrujadas que já não se moviam nem se moveriam mais. Lançou mão da pá que usou para abrir aquele buraco e colocou a borda da parte de metal da mesma na fenda mínima entre a tampa e o corpo do baú; fez força algumas vezes como uma espécie de alavanca até que finalmente a tampa cedeu estourando as dobradiças enferrujadas. A tampa se soltou, mas Diogo não a tirou de imediato, só naquele momento ele percebeu o quanto estava nervoso; suas mãos suavam um pouco o que para um homem pragmático como ele era muito normal se considerasse a estranheza da situação na qual estava envolvido. O que poderia ter sido escondido que pudesse induzir um homem comum como Diogo Medeiros a quase perder o juízo e se lançar na procura daquela caixa para finalmente conseguir ter sua mente em paz novamente? Finalmente saberia. Cuidadosamente ele retirou a tampa. Jamais podia imaginar que na sua vida ia ver algo como aquilo. As dúvidas continuavam, tampouco sabia o motivo de aquele objeto ser

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capaz induzir imagens em sua mente. Que ligação ele poderia ter com aquilo? Olhou novamente para o apetrecho. O interior da caixa ao contrário do exterior estava bem cuidado, revestido com o que parecia ser um tecido, provavelmente veludo e bem no centro da caixa, perfeitamente acondicionado estava o objeto. Ao ver aquilo Diogo soube que muitas de suas teorias e hipóteses com relação a vida não se sustentariam por muito mais tempo, na verdade, muitas das teorias e hipóteses de todas as pessoas perderiam o valor logo que pusessem seus olhos sobre aquele magnífico objeto. Ficou sem reação por alguns segundos; os olhos vidrados sobre as formas do objeto sem acreditar. Quantos já tinham procurado aquilo? Tinha que mostrar para alguém. Por outro lado, como ele mostraria aquilo para outras pessoas? E como elas reagiriam? Não podia levar aquilo para casa, podia ser arriscado. E se alguém o visse com o objeto? O que pensariam? Não conhecia nenhum lugar seguro o bastante para esconder o baú. Tinha que pensar a respeito e rápido, decidir o que fazer primeiro antes de qualquer passo. A vida de Diogo tinha mudado dramaticamente no momento em que abriu o baú e as implicações futuras eram inconcebíveis; seria muito melhor se ele tivesse ignorado as visões e os sonhos; poderia ter tentado por mais algum tempo na esperança de que eles desaparecessem ou migrassem para outra pessoa. Talvez o objeto não tivesse uma ligação especifica com ele, mas sim fosse algo que ocorria com vários indivíduos até que um qualquer atendesse o chamado. Diogo

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não tinha condições e nem sabia como lhe dar com aquilo; foi então que a idéia lhe ocorreu. Enterraria novamente o baú e seu conteúdo extraordinário, ao menos até saber exatamente o que fazer e como proceder; porém a caixa estava com as dobradiças quebradas e isso poderia de alguma forma ser prejudicial ao objeto tão precioso e único como aquele, não queria expô-lo à ação do solo úmido, portanto não poderia enterrá-lo sem a proteção de um invólucro, afinal, não sabia como o solo podia afetá-lo e não queria correr esse risco. Instantaneamente Diogo lembrou da visão. Ele decidiu que conseguiria algumas correntes e um cadeado, talvez até um novo baú para acondicionar o objeto de uma forma mais adequada e logo que possível o enterraria ainda mais fundo no lugar mais longe possível das demais pessoas, a princípio aquilo era seu e só seu, ele o encontrou, tinha direito sobre ele. Recolocou a tampa no devido lugar de uma forma parcial tomando o cuidado para não deixar brechas por onde a terra pudesse entrar e depositou o baú novamente em sua cova; começou a cobri-lo com terra novamente. Marcaria o lugar e voltaria mais tarde, provavelmente durante a noite, com tudo o que precisava para manter o objeto a salvo.

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O Rapto noturno de Luessa Teixeira Regina continuava deitada dentro de um carro desconhecido, as mãos e pés muito bem amarrados; braços e pernas voltados para trás e os joelhos dobrados, a cabeça pendia encostada no assento e da maneira como ela estava deitada, não conseguia ver direito a pessoa que dirigia o veículo. O carro sacudia levemente enquanto fazia um trajeto que ela não conhecia, tampouco podia ver em quais ruas estavam passando; era prisioneira ali e estava desesperada. No banco da frente estava uma pessoa dirigindo o carro; era noite e tudo o que ela conseguia ver eram as luzes provavelmente de postes e letreiros luminosos passando como tochas pelos vidros molhados do lado de fora, mas era só. O interior carro cheirava mal, ela não sabia ao certo, havia uma mixórdia de mofo, cheiro de lixo, e aroma de desinfetante de pinho barato; certamente alguma coisa estragada tinha sido carregada ali e tinham tentado disfarçar o cheiro. Regina se surpreendeu com o fato de chegar àquela conclusão. Mesmo na escuridão do interior do veículo ela torceu o pescoço com esforço, moveu a cabeça e pode ver sua bolsa jogada no assoalho do automóvel, tentou novamente mover os braços, mas sem sucesso; estavam amarrados firmemente às costas dela, assim como suas pernas. Fez mais força e obteve o mesmo resultado. Sempre tinha ouvido falar de seqüestradores, mas ela não possuía assim tanto dinheiro ou bens que a credenciassem para ser uma vítima de seqüestro; o que eliminava essa motivação, restava apenas uma conclusão. Aquilo podia não ser um seqüestro por motivo financeiro, mas sim com uma motivação

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mais sórdida e depravada; Regina era uma mulher relativamente bonita, capaz de atrair para si alguns olhares por onde passava e sabia manipular o próprio corpo com esse fim. Vestia-se de modo insinuante, sobretudo no trabalho. Ao volante do carro uma figura alta, ombros largos e bem curvados para frente, seguia dirigindo como se não houvesse uma mulher amarrada e deitada no banco de trás, não era possível ver o rosto da pessoa; ela aguardou alguns minutos, mas o motorista não olhava para averiguar se sua vítima já tinha despertado ou não. Como se não bastasse tudo aquilo o motorista ainda usava um boné, o que dificultava ainda mais a visualização de qualquer traço peculiar da cabeça dele. A noite tinha iniciado normalmente; Regina tinha acabado de sair do trabalho. Trabalhava como vendedora numa loja de roupas femininas de um shopping em Nova Iguaçu no horário de 16:00 às 22:00 hs já fazia um ano. E todas as noites quando saía do shopping tinha de caminhar pela rua do estabelecimento até chegar em frente à Prefeitura do município; um trajeto curto, pouco mais de duzentos metros. Em Nova Iguaçu, por mais incrível que possa parecer, a prefeitura municipal fica exatamente ao lado do cemitério municipal, eles são separados apenas por uma rua estreita e diariamente Regina passava ali, geralmente o lugar era movimentado, a não ser, claro, em dias mais frios e chuvosos o que era exatamente o caso. Nesse dia também ela tinha se demorado mais do que o normal e só tinha saído do shopping por volta de 23:10, estava atolada de tarefas até o pescoço; eram as vendedoras, Regina e mais uma, quem arrumavam a loja para o dia seguinte todas as noites após o expediente, limpavam, separavam o lixo, arrumavam as vitrines trocando

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algumas peças do mostruário, limpavam os vidros e espelhos, fechavam o caixa e deixavam tudo devidamente em ordem para o próximo dia. Isso geralmente era feito pelas duas moças e desse modo terminavam tudo rapidamente, nunca passava de trinta minutos esse trabalho extra, mas por algum motivo, Karen, a outra vendedora, havia faltado e todo o trabalho teve de ser realizado por Regina. Havia mais uma menina que trabalhava na loja, mas ela pertencia ao horário da manhã, das 10:00 até as 16:00; fazia faculdade à noite e não pôde ficar para dobrar o dia de serviço e ajudar a amiga. Quando finalmente saiu do shopping Regina caminhou pelo mesmo trajeto de sempre, mas sem ver ninguém nos pontos de parada de ônibus até a prefeitura, o cemitério estava fechado e também não tinha pessoa alguma no lugar onde ela tomava o coletivo. Logo que chegou no ponto, uma fina garoa voltou a cair do céu noturno e intensamente nublado; Regina averiguou em sua bolsa para pegar o dinheiro da passagem e deixá-lo logo à mão; o ônibus que ela tomava todas as noites não costumava demorar e daquele lugar até o município de Queimados, onde ela morava, também não demorava muito com o trânsito liberado da noite. O carro onde ela estava parou de repente; ouviu-se um barulho que Regina não conseguiu distinguir; o motor foi desligado rapidamente e então ela pode escutar o tamborilar da chuva sobre o automóvel; aquele som estava sendo ocultado pelo alto ruído do carro em movimento que além de ter um motor extremamente barulhento ainda parecia estar com peças soltas em algum lugar.

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O motorista abriu a porta e saiu do veículo; o ar noturno entrou no carro renovando o oxigênio pesado do interior, Regina pensou em gritar por ajuda, mas sufocou o grito ao pensar que poderia chamar atenção desnecessária para si, não sabia onde estava e nem quem estava lá fora, tampouco imaginava o que ele ou eles estavam fazendo ou intentando fazer. Além do obvio é claro. A porta bateu com certa violência e por cerca de vinte minutos tudo foi silêncio. Ela estava com muito medo. Naquela noite o ônibus demorou a aparecer e Regina tirou o telefone da bolsa para ligar pra casa, mas não chegou a fazer isso. Sentiu um puxão no ombro e tombou para trás, porém o corpo não chegou a cair, foi amparado por alguém e uma mão apertou seu rosto na altura do nariz e da boca com força, tapando-os; não conseguiu gritar. Sentiu o cheiro forte que a deixou tonta e com vontade de vomitar, em seguida apagou. Quando a pessoa que dirigia o carro voltou, entrou e bateu a porta; ela ouviu o barulho de uma sacola de papel, provavelmente sendo depositada no banco ao lado, depois sentiu um cheiro conhecido e muito mais agradável do que o que estava sentindo até então. Um cheiro de hambúrguer. A música do rádio começou a tocar logo que o motor voltou a fazer seu barulho característico, mas era uma música que Regina não conhecia. O carro voltou a andar e junto ao som do motor e do rádio havia agora também um terceiro; o som resmungante do limpador de pára-brisas fazendo seu trabalho. O motorista murmurou alguma coisa ao volante, estava acompanhando a música debilmente, sem seguida o som do saco de papel novamente. A velocidade do carro tinha aumentado consideravelmente e ela tentou se mover sem ser

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notada, seus braços e pernas estavam com sensação de formigamento e o pescoço já doía de tanto forçar para manter a cabeça levantada. Nesse momento ela ouviu a voz do homem que dirigia; uma voz grossa, mas não era o que ela esperava; era calma, extremamente calma para um sujeito que estava seqüestrando uma pessoa. _ Está acordada._ disse. Não foi uma pergunta e sim uma constatação. Regina teve medo de dizer qualquer coisa e manteve o silêncio. _ Devo ter usado pouco sufocante; nunca consigo acertar a quantidade desse líquido. Detesto fazer isso. Ele falava como se estivesse com a boca cheia, estava comendo algo, e ela se lembrou do cheiro do hambúrguer que agora já não conseguia mais sentir. _ Não quer conversar comigo?_ Agora sim uma pergunta direta. Como não houve resposta ele disse: _ Ótimo. Faça como quiser. Muita coisa estava passando pela cabeça dela naquele exato momento e também estava sendo uma dificuldade tremenda manter os pensamentos ordenados e não entrar totalmente em pânico. Por fim ela perguntou: _ O que eu estou fazendo aqui? O motorista se inclinou levemente para o lado, Regina tinha a impressão de que ele a observava pelo espelho retrovisor interno embora ela não estivesse vendo claramente. _ É complicado. _ foi uma resposta curta e dúbia. _ Quem é você? Onde está me levando? Por que estou amarrada? Isso é um seqüestro?_ Regina despejou as perguntas

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que estavam presas na garganta tal como foram saindo, fez todas elas sem pensar que poderia não gostar das respostas. _ Sabe; você está muito calma para uma pessoa que tem tantas dúvidas. Outros já estariam se desfazendo em lágrimas e implorando por suas vidas._ disse o motorista sinceramente impressionado, mas com um toque de sarcasmo na voz. Regina piscou algumas vezes, o choro que ela mesma estava lutando para manter dentro do peito subiu com violência até a garganta também e por muito pouco não abriu caminho boca afora. O máximo que ela se permitiu fazer foi fungar. _ Onde você está me levando? _ repetiu. _ Para conhecer uma pessoa. _ O motorista respondeu friamente. _ Que pessoa? _ Uma pessoa especial; acredite, você vai gostar. Uma série de cenas medonhas envolvendo submissão física passaram pela mente de Regina; seu coração disparou e a respiração aumentou a velocidade. _ Me deixe ir. Não ouve resposta. O carro continuava em velocidade; pelo tempo que estavam viajando ela já sabia que deviam estar longe de Nova Iguaçu, isso sem contar os momentos em que esteve desmaiada. _ Você tem família? Digo, Filhos, marido? _ perguntou o motorista se virando momentaneamente para trás pela primeira vez. _ Não, mas tenho Pa... Foi interrompida pela voz dele: _ Geralmente procuro pessoas sem muitos conhecidos ou parentes que possam sentir suas faltas; sabe como é; fugitivos,

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andarilhos, moradores de rua, pivetes; às vezes um ou outro turista viajando sozinho e hospedado em albergues, quando dou sorte, esse tipo de pessoa. Mas nem sempre é possível manter o padrão. Essa gente não desperta tanto interesse nem chama tanta atenção e isso, para o meu dono, é o ideal. _ Por favor, o que você vai fazer comigo? _ Eu não farei nada, não gosto de sangue humano, mas... Agora foi ele que se interrompeu obviamente percebendo que estava revelando mais do que devia. A última coisa que queria ali era uma mulher histérica dentro do carro; já tinha acontecido algumas vezes. E era uma situação difícil de contornar; teria que parar o veículo e usar mais solução sufocante; ou como também já aconteceu quando ele ainda não se utilizava aquele líquido, teria de fazê-la parar o escândalo à moda antiga, porém isso fazia muita sujeira. Por vezes acabou perdendo a vítima e seu dono-mestre-e-senhor gostava do alimento ainda vivo para poder saborear todo o pavor que provocava. Da última vez que a vítima se perdeu pelo caminho e não chegou viva até o destino ele recebeu uma punição tão violenta que nem gostava de recordar; seu mestre não costumava perdoar erros por menores que fossem e aquele motorista já fazia esse tipo de serviço por tanto tempo que tinha medo até de cogitar o que poderia acontecer se essa sua nova vítima não chegasse com vida. _ Procure relaxar_ disse finalmente, tentando desconversar. Parte do que Regina ouvia estava se perdendo, ela não conseguia manter a concentração na conversa; sua mente estava totalmente voltada para buscar uma forma de sair daquele carro. Forçou novamente os pulsos e braços na esperança de afrouxar as amarras que a mantinham presas e ao

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mesmo tempo virou o pescoço em busca de algo dentro do carro que pudesse ser usado como arma. Não achou nada. A sensação de formigamento nos membros estava se tornando em dormência e ela sentia dores nos ombros, joelhos, pulsos e pescoço por causa do esforço brutal que vinha fazendo. _ Você vai conhecer uma pessoa incrível._ Recomeçou o motorista_ Não se preocupe, depois de alguns minutos juntos você vai implorar para nunca mais deixá-lo. Regina não compreendia o que aquele homem estava dizendo e não conseguia pensar em outra coisa que não fosse ser submetida a perversões; afinal, não havia motivo para um homem atacar e seqüestrar uma mulher no meio da noite, lançá-la num carro fedorento, rodar durante horas visando desnortear sua vítima se não fosse com aquela finalidade. Lembrou-se rapidamente da história que pessoas contavam vez por outra nos bairros da periferia do município, quase uma lenda urbana; falando sobre um tarado num carro escuro que atacava mulheres desavisadas; ouvira aquilo muitas vezes desde a infância e estava começando a achar que seria mais uma à fazer parte das estatísticas. A duvida que restava era se após aquilo era seria libertada em algum lugar com vida ou não. _ Por favor, moço me deixe ir, juro que não conto nada à ninguém. _Ela estava decaindo de sua aparente tranqüilidade para um patamar mais normal de pânico inicial. Ele já tinha visto aquilo muitas vezes e sabia que ainda estava dentro do tolerável, essa mulher parecia ter uma cabeça forte e por incrível que parecesse geralmente as mulheres tinham muito mais domínio em situações como aquela do que os homens; os homens desmoronavam em prantos logo que

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percebiam que não sairiam vivos ou que o grau de sofrimento pelo qual passariam seria enorme, choravam como crianças, apenas alguns destoavam desse padrão. Já as mulheres que ele havia raptado ao longo dos últimos anos tinham se portado relativamente bem, exceto uma ou outra que reagiram muitíssimo mais violentamente do que todas as demais, mas suas estatísticas particulares mostravam que era muito melhor uma vítima do sexo feminino, geralmente mais fácil de se conseguir, não lutavam tanto quanto os homens e muito melhores de se transportar. Por isso, quando ele viu aquela jovem mulher parada sozinha num ponto de ônibus próximo ao cemitério municipal de Nova Iguaçu, não teve dúvidas; aproximou-se sorrateiramente e a atacou com a rapidez e a destreza de um assassino serial. As dores aumentavam pelo corpo, Regina não conseguia mudar de posição para melhorar a dormência. _ Qual é o seu nome? _ perguntou o motorista. Regina não respondeu, estava ocupada gemendo baixo enquanto tentava girar sobre o seu próprio corpo. _ Colabore, querida. Ela respondeu com a voz já meio embargada. _ Regina Luessa Texeira. _ Sabe Regina._ Emendou _ Estamos chegando, espero que ele goste de você. _Quem é ele? E o que quer comigo? _ Ela perguntou meio sem acreditar que haveria outra pessoa a espera deles em algum lugar; Regina pensava que o motorista estava apenas ganhando tempo enquanto buscava um lugar propício para efetuar seus intentos.

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No meio das coisas que ele tinha dito até aquele momento ela tinha conseguido identificar palavras tais como sangue, e isso era um mau sinal. _ Ele é Magnífico!_ exclamou o outro _ E tudo o que ele quer é seu sangue, não é nada pessoal, você estava no lugar errado na hora errada. Assim é que é a vida; mas acho até que ele pode gostar de você e talvez não matá-la hoje. É bem raro quando isso acontece, mas depois de conseguir pessoas para ele se alimentar durante tanto tempo eu acabei descobrindo as preferências dele, sabe; é isso que um servo tem de fazer, descobrir as preferências de seu senhor-e-mestre e fazer o possível para agradá-lo. Regina estava chorando nesse momento; ao que tudo demonstrava não se tratava de um seqüestro de cunho sexual e sim uma ação para aplacar a sede de sangue de um assassino desequilibrado mental. _ Por favor. Não faça isso... Não... As palavras da mulher se reduziram a um murmúrio baixo e repetitivo. Como se estivesse agora se agarrando às rezas que certamente não poderiam livrá-la do que viria a seguir. _Chegamos._ Disse o motorista secamente. A palavra caiu como uma bomba sobre Regina e finalmente o choro ganhou força, abrindo caminho desde o interior da alma dela. O motor do carro parou de funcionar e produzir aquele barulho característico, a chuva também parecia não cair mais do céu, o tamborilar sobre a lataria do carro não era mais ouvida. O rádio baixo que ela tinha ignorado durante quase todo o trajeto desde que o motorista o ligara agora fora silenciado. A porta se abriu e o motorista saiu.

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Do lado de fora uma voz desconhecida perguntou: _ Você está atrasado._ Era uma voz firme. Regina chorava bastante dentro do carro, o rosto já completamente molhado com as lágrimas e os soluços já quase a engasgavam; ela se contorcia tentando se desvencilhar das amarras. O motorista respondeu: _ Demorei para conseguir uma pessoa do seu gosto._ A voz do motorista soava submissa. _ Homem ou mulher? _ Mulher. _ Ela está muito nervosa, posso sentir; _ Procurei mantê-la calma mestre. _ Excelente. _ Creio que o senhor vai poder bebê-la durante várias noites. _ Deixe-me vê-la. Regina continuava chorando copiosamente; revolvera-se tanto que caiu do assento e parte do seu corpo estava de ponta a cabeça. Ela pensava em todas as pessoas que conhecia; familiares, colegas de trabalho, antigos colegas de escola. Pensou em como eles ficariam quando ela não voltasse para casa naquela noite, nem para o trabalho no dia seguinte e jamais desse notícias. O porta-malas se abriu com um ruído grotesco e o motorista a puxou de forma bruta praticamente ignorando o peso dela. Regina bateu a cabeça em alguma coisa e finalmente avistou a face do homem que a raptara, um rosto comum, mas o outro; o mestre, não era nada comum, aliás, era completamente medonho.

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Sem poder mais se controlar, Regina, ao ver aquele semblante inumano; aquela face monstruosa; irrompeu num grito terrivelmente alto que ecoou pela noite.

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Alguns sonhos são mais do que reais Noite passada tive um sonho muito estranho, não consegui entender direito o significado até que uma cosia terrível aconteceu e não posso deixar de pensar que a culpa é toda minha. Por outro lado, o fato que vou narrar é tão absurdo que ninguém jamais vai acreditar que tenha algum fundo de verdade nisso, e se chegarem a considerar ainda que por um instante que seja verdade o sonho, certamente vão me inocentar do fato, mas por algum motivo eu mesmo não consigo me inocentar do que fiz. Sonhos são fáceis de se identificar, todos nós sabemos quando estamos sonhando, mesmo em pesadelos. Comigo não é diferente, mas na última noite me vi num lugar escuro; algo como um descampado em pleno céu aberto; era noite, uma lua enorme pairava na escuridão do infinito; nunca vi uma lua como aquela, não era branca e sim amarelada; certa vez li em algum livro, não sei se de Alam Poe, Lovecraft ou outro qualquer destes escritores famosos o seguinte termo: “Lua doente”. Entendi naquele minuto o que significava esse termo. Ela mantinha uma aura misteriosa, um tom muito fraco, mas era tão redonda e brilhante que mais parecia um enorme buraco no céu; buraco esse que deixava vazar por ele toda a luz pálida que parecia vir de outro lugar, muito mais celestial. Olhei ao redor e vi brumas ao longe formando o que parecia ser uma barreira contra minha visão; elas eram muito densas e não pude ver nada além daquele ponto, estavam circundando uma enorme área em meu redor, eu ainda não sabia mais não estava sozinho ali.

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Andei um pouco; o lugar era como uma gigantesca clareira aberta em alguma floresta, mas eu não conseguia ver floresta alguma; nem uma árvore sequer; provavelmente o paredão formado pelas brumas a estivesse encobrindo de mim, mas na verdade o som que vinha do outro lado era fraco, porém audível de água. A lua estava exatamente sobre minha cabeça; no ponto mais alto do céu. De repente percebi uma coisa que não estava ali minutos antes; pouco mais à frente, havia uma espécie de caldeirão negro colocado sobre uma estrutura composta por blocos de pedra empilhados cuidadosamente e de dentro do caldeirão saia o que parecia ser uma grande pá de madeira provavelmente usada para mexer o que fosse que estivesse dentro dele. Olhei para baixo, para os meus pés, percebi que o chão também estava coberto por uma névoa que dançava até a altura de meus calcanhares. Abaixo do caldeirão, nos blocos de pedra empilhados um fogo surgiu e me assustou; não era fogo como estamos acostumados a ver e sim algo diferente, pálido, tão pálido que era quase translúcido. Uma coisa magnificamente bela se não fosse tão poderosamente estranha; e mais, o fogo era frio; me aproximei do caldeirão esperando me esquentar, mas não aconteceu; as névoas dançando pareciam zombar de mim. Toquei a borda do caldeirão, estava tão frio como se não houvesse fogo sob ele e era feito de ferro puro; olhei para dentro, algo estava lá mergulhado num líquido imóvel que refletia a luz amarelada da lua sobre mim. Eu não pude ver, mas tinha a sensação de que algo ali de dentro olhava para mim. Me afastei andando de costas para não tirar os olhos do

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caldeirão, tive medo de que algo se arrastasse para fora e viesse atrás de mim, foi inquietante. Andando de costas esbarrei em algo que obviamente não estava ali também um instante atrás. Foi quando percebi que se tratava de um sonho, afinal, coisas não se materializam assim do nada na vida real, consegui me acalmar um pouco, girei para ver do que se tratava e era uma mesa. Sobre a mesa uma tesoura um pouco diferenciada; grande, opaca e retorcida num formato tão grotesco que fariam qualquer design gótico parecer uma linha conservadora; somente as lâminas eram retas e pareciam extremamente bem afiadas. A tesoura parecia antiga, de fato, parecia muito antiga assim como a própria mesa onde ela estava. Me aproximei, já ia pegá-la quando ouvi a voz surgida do nada. _ Ainda não!_ disse seguida de uma risada velha. Uma mulher bastante idosa manquejava em minha direção vinda da parede de brumas ao longe; trajava roupas negras e muitíssimo esfarrapadas. Outra risada às minhas costas, ao virar com o susto, vi mais uma velha parada junto ao caldeirão segurando a grande colher de madeira que parecia uma pá. Se eu não soubesse que tudo aquilo não passava de um sonho provavelmente só a visão delas teria me feito muito mal. _Um sonho; só um sonho._ Pensei em voz alta. Outra risada velha e nefasta em uníssono. _ Não é um sonho. _ afirmou aquela que estava junto ao caldeirão. _ É real. Minha respiração estava ofegante, fiz força para acordar, mas não deu certo.

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_Então é um pesadelo._ Falei baixo. Outras risadas. _Pesadelos não são assim._ Disse a primeira que apareceu. Ela se aproximou de mim, mas recuei para longe dela quando pude vê-la melhor; uma mulher tão velha que suas feições pareciam já não possuir mais carne alguma na face, como se a pele enrugada e marcada pela senilidade estivesse cobrindo apenas os ossos do rosto, poucos dentes na boca e o nariz torto para a direita. Sua cabeça não possuía muitos cabelos e os poucos que ainda restavam eram desgrenhados e brancos; os olhos eram também tão opacos quanto a própria névoa que nos rodeava ao longe, marcados provavelmente pela idade avançada. Ela era corcunda e talvez isso a estivesse fazendo mancar tão pesadamente, como se andar fosse um esforço muito grande; os pés arrastavam sobre o chão e erguiam um pouco da névoa dançante que pairava sobre nossos pés. Suas mãos possuíam dedos muito mais longos do que o normal; terminados em unhas também longas e amareladas. _ O que estou fazendo aq... Tentei falar mais fui interrompido. _ O que estou fazendo aqui_ disse a que segurava a colher, agora mexendo lentamente o que quer que tivesse dentro do caldeirão. _ É isso que você está se perguntando não é? Riu novamente e tossiu em seguida. Pareciam irmãs gêmeas, vestidas do mesmo modo e com rostos semelhantes exceto por alguns detalhes. Essa que estava junto ao caldeirão era aparentemente cega de um dos olhos mantinha-o fechado enquanto o outro dançava freneticamente na órbita enquanto ela falava e ria como uma hiena infernal.

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_Ora, ora._ falou a outra _ Isso é um mistério para todas nós. É muito raro pessoas penetrarem esse lugar, mas uma coisa é certa. Só há uma forma de sair. Quando eu ia perguntar como; uma terceira voz apareceu respondendo minha pergunta. Era uma outra bruxa igual às duas anteriores, porém esta tinha os dentes pontiagudos e os olhos vivos e negros; era gorda, baixa, com a pele flácida e as vestes também rasgadas. Ela foi até a mesa e tomou a tesoura em seguida apontou com um daqueles dedos longos e enrugados. Ela disse: _ É muito simples; vê ali, faça-nos um favor e poderá ir. _ela apontava com uma mão trêmula para um lugar ao longe, próximo da parede nebulosa de brumas que cercava tudo ali. Tudo o que eu queria era sair daquele sonho louco e obviamente estava disposto a fazer qualquer coisa para ficar o mínimo de tempo possível lá. Ela continuou: _ Pegue essa lâmina, vá até lá e logo diremos o que você deve fazer. As três sorriram violentamente. Peguei a tesoura da mão trêmula dela sem deixar que nos encostássemos, caminhei para o ponto indicado ora olhando para as três bruxas, ora olhando para o lugar apontado. Fui me afastando do centro daquele local, deixando as bruxas do chão, o caldeirão e a mesa para trás e quanto mais eu me aproximava da parede de névoa, mais podia enxergar outra coisa esquisita; não me surpreendi afinal sonhos geralmente não possuem nenhum sentido.

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A cada passo que eu dava, ficava mais nítido na minha frente pequenos fios finos que saiam do chão e em diagonal entrava pela névoa se perdendo do outro lado, eram incontáveis fios da espessura de um barbante ou algo do tipo, porém o brilho deles era algo simplesmente incrível; não sei se por conta da luz doente da lua ou se por alguma magia das bruxas irmãs. Ouvi as risadas delas ao fundo, virei, olhei e não estavam mais lá. Nem elas, nem o caldeirão nem a mesa; o lugar estava vazio novamente e eu era a exceção. Tomei um pouco de coragem, segurei a tesoura, que até então estava segurando em minha mão pelas lâminas, pelos cabos tortuosos e toquei alguns fios com o dedo. Não eram simples fios de prata, eram rígidos pareciam mesmo feitos de metal. Um deles me atraiu, quando toquei nele senti algo dentro de mim pulsar, os demais fios desapareceram instantaneamente. Ficamos sós, eu e aquele filete prateado refletindo a luz do luar assim como as lâminas da tesoura também faziam. Ouvi alguns sussurros: _ ...O fio... _...Corte o fio... _ Corte e vá pra casa... Risinhos velhos e esganiçados. _O fio... _Corte... O... Fio. Tentei arrebentar o fino cordão de metal com os dedos, não consegui; tentei com a mão e o resultado foi o mesmo. Segurei com mais força e puxei do chão, mas ele não cedeu um milímetro sequer; estava tenso, não eu, o cordão. Parecia uma corda de violão. Tentei puxar a parte que estava do outro lado

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da nuvem nebulosa que agora estava a poucos metros de mim, mas ainda assim nada aconteceu, o fio não se moveu. Existem sensações que aparentemente não possuem explicação alguma e embora raras, costumamos ter algumas destas coisas também em nossos sonhos, não me lembro de alguma vez em que tive isso; as pessoas costumam chamar de premonições ou de revelações. Existem pessoas que costumam ter com tanta freqüência que ficam sendo consideradas como videntes, mas esse nunca foi o meu caso. Olhei a tesoura e testei-a abrindo e fechando as lâminas algumas vezes; sabia o que tinha de fazer, mas não tinha certeza se devia fazer. Não me parecia correto cortar aquele cordão mesmo no sonho. Tentei acordar; não consegui. Fiz força, fechei os olhos e quase pude sentir meu corpo deitado sobre a cama em casa, eu tinha certeza de que estava dormindo. De repente tive consciência de que meu corpo estava deitado, mas era como se minha mente estivesse em outro lugar e esse lugar eu estava parado de pé com uma tesoura na mão frente a um fio prateado que devia ser cortado, mas porquê? _ O que acontece!_ gritei._O que acontece se eu cortar o fio! Não ouve resposta, nem mesmo as risadas medonhas das bruxas decrépitas; absolutamente nada, só silêncio. A lua tinha mudado de posição, já não estava no centro do céu e nem sua luz doente estava agora tão amarelada e sim cada vez mais pálida, mas ainda assim era uma luz diferente de tudo que já vi. Mais uma vez fiz força para despertar daquele pesadelo, em vão novamente e percebi que realmente não tinha nenhuma chance de despertar a não ser fazendo aquilo que a bruxa tinha

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dito. Por mais incrível que pudesse parecer, eu no fundo sabia que de algum modo inexplicável eu tinha ido parar numa armadilha onírica, se é que era um sonho, mas ainda não consigo imaginar como isso aconteceu. Muitas coisas não possuem explicação e certamente existem forças ocultas e ou caóticas agindo fora do raio de conhecimento de todo ser humano, forças que são tão vivas quanto qualquer um de nós, porém, são tão diferentes que a nossos olhos não possuem lógica alguma. Não sei. Finalmente posicionei a tesoura com as lâminas abertas e o cordão prateado entre elas; não havia escolha; por algum motivo eu caí numa zona fronteiriça onde os sonhos tocam a realidade; talvez, de fato, o preço para ser pago a fim de deixar aquele lugar fosse cortar o cordão, talvez o cordão de prata estivesse mantendo-me cativo ali e talvez as bruxas estivessem dizendo a verdade, mas eram muitos talvez. Fechei a mão num único movimento rápido e a tesoura partiu o cordão como se ele fosse linha de costura ou algo do tipo, sem resistência alguma as lâminas se fecharam, o cordão partido foi parte puxado para as névoas e parte engolido pelo chão desaparecendo completamente. Acordei em meu quarto; chequei o relógio no telefone celular ao lado da cama, quatro horas e vinte e cinco minutos da manhã, eu não estava ofegante nem suado como é comum em pessoas despertando de um pesadelo, tampouco tinha dor de cabeça ou qualquer outra coisa que sinalizasse o mesmo. Tinha sido só um sonho; um sonho mau, mas só isso. Dentro da minha cabeça as imagens estavam sumindo rapidamente e isso o que acabo de contar foi apenas partes do que restaram; fragmentos do que de fato foi aquela experiência

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insólita, mas creio que não esqueci nada além de detalhes do ambiente, mas nada realmente importante. O telefone tocou. Atendi. A voz do outro lado era conhecida, mas estava desesperada; algo tinha acontecido e era grave. _ O que foi?_ perguntei. A notícia realmente era péssima, a pior notícia que uma pessoa pode receber; fiquei paralisado ao ouvi-la, não sabia o que fazer, estava atordoado demais e pior, a voz da bruxa voltou em minha mente dizendo: _ “Não é um sonho...É real.” Não consegui mais ouvir nada do que estava sendo dito do outro lado da linha; deixei o telefone cair e apenas consegui sussurrar: _ Foi minha culpa.

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Fogo magnético Quando se ergueu do chão sentiu a perna esquerda mais pesada que a direita. Olhou de um lado para outro e não via nada além de um quarteirão de casas desocupadas; os sistemas do traje falhavam e retornavam. Ele tentou entrar em contato com o comando “celestial”. _ Guardião 7000/02 pedindo auxílio._ disse ele tocando um pequeno dispositivo no capacete hermeticamente fechado. E continuou. _ Me desviei da rota, estou sem sistema de localização e navegação; todos os sistemas falhando, traje com pouca força para retorno. A comunicação espaço-temporal era muito complexa, mas seus equipamentos sempre foram muito confiáveis; nunca o tinham deixado na mão, porém, alguma coisa tinha saído errada no salto. Não sabia onde estava e precisava de todas as informações disponíveis para saber que estratégia traçar. Não havia comunicação sendo enviada de volta em resposta aos seus sinais; estava sem nenhuma comunicação com os outros. Tocou outro dispositivo no capacete e acionou a “M.R.L.D.T”, mensagem remota de localização em distância temporal. Com aquilo o traje começava a repetir as últimas mensagens trocadas entre o comando e ele, além de uma mensagem especial de localização atualizando a cada segundo todas as informações colhidas no ambiente ao redor. Temperatura, umidade, índice de carbono no ar mapa topográfico da área baseado em imagem sônicas, ou seja, estabelecidas por sonar e outras coisas desse tipo. De repente o traje recuperou parte de sua energia e a tela de controle da unidade retornou; era um visor de reprodução

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ocular colocado no elmo; um equipamento que projeta e mostrar todas as informações relativas ao traje de viajem espaço-temporal sob a superfície dos olhos. Informações tais como quantidade de energia, sistemas operantes e reservas, armamentos; algoritmos de viagem, ou seja, números relativos ao tempo desde a partida, previsão de chegada, tempo de desvio no caso de se perder no tempo, sinais vitais do guardião; nome dado ao traje, sinais vitais do ocupante do módulo guardião; coeficiente de arrasto do tempo, que é a velocidade necessária para acionar a viajem; distância do ponto de origem e uma infinidade de outras informações muito mais técnicas e específicas. Um retalho de comunicação foi restabelecido e ele ouviu a mensagem do comando que foi enviada através do tempo até alcançá-lo. _ Estamos rastreando sua posição guardião 7000/02, mas temos dificuldade de receber as informações do traje, telemetria quântica falhando, estamos tentando restabelecer remotamente os danos sofridos por você; seu projetor ocular está funcionando? _ Sim senhor._ respondeu enquanto se colocava de pé novamente. Geralmente naquelas missões o traje era capas de suportar toda a força feita quando do rompimento das barreiras temporais e o tele-transporte era feito de forma relativamente suave, mas não tinha sido aquilo o que aconteceu daquela vez. _ Nos passe o relatório. A projeção ocular estava mostrando dados totalmente diferentes do que era para ser mostrado, mas a primeira

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providência a tomar era relatar tudo e manter a calma, afinal, era um soldado treinado para situações extremas. O visor mostrava os seguintes dados: --Ano atual: 2011. Ano da partida: 7000. Ano da chegada: 6997 --Localização: continente sul-americano; país Brasil; estado Rio de Janeiro. --Distância do ponto de origem: 4989 anos. Aquelas informações foram passadas por ele ao comando e já sabia que tinha se metido numa grande encrenca; a missão consistia em viajar do seu ano atual que era o ano de 7000 d.C e voltar três anos no tempo até o ano de 6997 d.C para averiguar uma seqüência de eventos, mas no meio do processo ele perdeu o controle, foi atingido por algo, não sabia ao certo e acabou parando ali, 4989 anos no passado; no ano de 2011. Estava muito longe de casa e não sabia como voltar. _ Esses dados não podem estar corretos guardião._ afirmou a voz no comunicador. _ São os dados que disponho aqui senhor. _ Ninguém nunca voltou tantos anos assim. Está me dizendo que você voltou mais de quatro mil anos. _ Sim senhor. _ Informe sobre o ambiente. _ Local aparentemente desabitado; algumas casas parcialmente destruídas, muitas árvores ao redor, o lugar é cercado por montanhas. Meu rastreador está funcionando com dificuldades, não sei se estou sozinho ou se há mais pessoas aqui. A comunicação falhou e retornou em seguida: _ Estamos triangulando sua posição no tempo-espaço; vai levar alguns minutos. Siga o protocolo.

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O protocolo mandava que o ocupante do traje fizesse a checagem de todos os componentes de sua unidade. Ele acionou o sistema de checagem e aguardou; a voz no comunicador desapareceu por um momento e o vácuo que se fez deixou o guardião ansioso. A checagem foi concluída e o traje retornou a seguinte mensagem sendo projetada no visor ocular e anunciada nos fones do capacete: -- Todos os sistemas comprometidos, funcionando com um quarto da capacidade. Vinte e cinco por cento da força, não era o suficiente para fazer a viagem de volta nem se ele tivesse voltado apenas os três anos que eram o plano original, quanto mais cobrir toda aquela distância. O traje continuou o relatório: -- Falha na passagem... Um som conhecido apareceu e as luzes interiores de emergência se acionaram rapidamente. -- Alerta de proximidade! _ Anunciou o traje quando alguma coisa entrou na área de varredura. Ele olhou novamente ao redor; os computadores do traje estavam rastreando as imediações e acusando algo que não era comum ao ambiente. Um segundo sinal de alerta disparou, este muito mais emblemático que o primeiro. -- Alerta de proximidade!... --...Guardião detectado... A voz no comunicador retornou com outra mensagem: _ Você não está sozinho aí Ariel; há outro guardião indo em rota de interceptação a você. O traje informou:

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-- interceptação em...; Dez, nove, oito, sete... a contagem se interrompeu. Ariel estava sentindo um defeito na parte inferior do seu traje guardião, a perna não estava respondendo de modo funcional, mas aquilo não deveria representar problema algum, afinal, outro guardião era um colega de combate, exceto se. Ariel ordenou ao traje que se prepare-se para um confronto. _ Modo de guerra! --Detectada assinatura hostil; guardião 7000/01. A voz no comando através do comunicador disse: _ Não entre em batalha; repito, não entre em batalha. Sua quantidade de energia não é o suficiente para sustentar uma ação de combate e voltar ao nosso tempo. Você pode ficar preso no ano de 2011. O traje começou sua mutação. De todos os guardiões que faziam o salto no tempo, o 7000/01 foi considerado como o melhor; por isso recebeu a extensão numérica 01. Ariel vinha logo em seguida com a extensão 02, mas eles eram de épocas muito diferentes. Segundo se dizia, o guardião 7000/01 além de ser o melhor viajante espaço-temporal já criado; era também renegado. Alguns diziam que ele havia desaparecido anos antes de Ariel ingressar no projeto. As lendas rezavam que ele vagava pelo tempo, mas agora as mesmas lendas seriam colocadas à prova. _ Controle. Acabo de detectar a assinatura do guardião 01. _ Isso é impossível. Não existe guardião zero um. O traje reiniciou a contagem repentinamente: -- interceptação em cinco, quatro... _ Se ele não existe como sua assinatura está registrada em meu banco de dados?

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-- ...dois, um... Não ouve resposta do comando, a comunicação fora cortada. Por fim o traje anunciou: Modo e guerra. Ariel assumiu o controle mesmo com todos os defeitos e avarias. Um estrondo, uma luz ofuscante e... Edílson tinha um fusca bege e uma luneta; estava olhando para o céu em busca de estrelas cadentes, e obviamente também de objetos voadores não identificados; o carro estava estacionado na beira da estrada com a porta aberta, não passava nenhum outro veículo àquela hora, mas provavelmente outros aficionados por ufologia estivessem espalhados nas proximidades cada qual querendo descobrir algo diferente que lhes valesse uma entrada nos círculos mais conhecidos de seus estudos e pesquisas. Ele escolheu aquele lugar por dois motivos, primeiro porque tinha familiares em um município próximo e segundo, aquele local era perfeito para a observação dos corpos celestes e de outras coisas que no entendimento de Edílson só poderiam se enquadrar na categoria seres inteligentes e extraterrestres. Durante aquela noite ele não tinha catalogado absolutamente nada, nenhuma estrela cadente, nenhuma luz se movendo de forma estranha no céu, mas de repente ouviu um som pesado e uma luz espocou ao longe, próximo de uma antiga vila abandonada. O lugar onde Edílson estava ficava numa espécie de ribanceira e a vila era ladeira abaixo. Sua primeira reação foi olhar novamente na luneta; não tinha nada lá em cima; o céu continuava do mesmo jeito. Mas ele sabia que algo tinha acontecido lá em baixo perto das casas

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abandonadas; ele não pensava em outra coisa que não fosse ter uma experiência ufológica e não podia arriscar deixar outro dos caçadores de ufo em meio período, que provavelmente estavam espalhados nas imediações, verificar o que tinha sido aquilo antes dele. Desceu correndo a ladeira e até esqueceu que o seu carro estava com a porta aberta e sua luneta preciosa estava armada; se fosse roubado nunca ia se perdoar, mas o que estava em jogo ali era muito mais do que ele podia imaginar. Enquanto corria ele pode ver que na região lá em baixo alguma coisa estava de fato acontecendo. A grama rasteira tinha se aberto num grande círculo e estava queimada; no centro do círculo havia um homem, na verdade parecia uma máquina; na verdade parecia uma mistura entre um homem e máquina, uma espécie de humanóide. A criatura se ergueu e passou a mãos sobre uma das pernas, em seguida ficou de pé, olhou ao redor e aquilo foi o suficiente para Edílson se deter e ficar parado onde estava. Era claro que se tratava de um visitante extraterrestre, Edílson não tinha dúvidas; a criatura era esquia alta cinza e sem rosto, na verdade a cabeça parecia possuir um visor no lugar da face; era como um vidro espelhado e escuro, o que o fazia destoar da tonalidade cinza de todo o resto do corpo. O coração de Edílson disparou. O alienígena ficou parado, completamente imóvel por um tempo enquanto Edílson procurava um ângulo que lhe desse uma melhor visão da criatura. Odiou-se por não ter ali uma câmera de vídeo ou uma máquina fotográfica digital. Passou a mão no bolso da calça e retirou o telefone celular que embora fosse muito bom certamente não ia tirar boas fotos com

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tanta ausência de luz, mas não tinha escolha e tentaria assim mesmo, afinal, meia evidência é melhor do que evidência nenhuma. Edílson ficou em dúvida se filmava, embora a qualidade fosse baixa, ou se apenas fotografava. Finalmente o humanóide se mexeu, levou a mão à altura da orelha, que ele não tinha; o rapaz pensou ter visto um brilho tênue azulado na face da criatura, mas podia ser apenas uma sensação enganosa. Curioso, o jovem tentou dar a volta no lugar sem ser visto, correu por entre alguns arbustos que mal podiam escondê-lo, mas graças aos céus que podia se valer da falta de luz do ambiente. Parou e tirou uma foto com seu telefone, logo percebeu que sairia muito mais escura do que ele podia imaginar, mas não importava. Olhou ao redor procurando outros entusiastas da ufologia que podiam ter se dirigido para lá também, não viu ninguém. Tirou mais uma foto e começou a rodear o humanóide novamente; este ainda parado. De repente o homem máquina começou a fazer um barulho estranho, como se estivesse aquecendo turbinas de avião, nas costas da criatura, de fato, jatos prolongados de gás ou ar quente estavam sendo projetados em direção ao solo. Edílson tirou novas fotos, a felicidade era incontida, mas a ansiedade para saber do que se tratava aquilo e o temor por estar lidando com o que poderia ser algo sem precedentes na história estavam levando o rapaz a um estado de quase êxtase. O humanóide começou uma espécie de metamorfose; sem mais nem menos placas do que parecia ser metal surgiram de orifícios que Edílson nem tinha percebido que existiam.

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Um som como o de avião surgiu e aumentava gradativamente, mas não vinha daquele homem-máquina e sim de cima. Ao olhar para o alto, o rapaz viu o que parecia ser outro como aquele e vinha em uma velocidade alucinante. O humanóide havia se modificado quase que completamente, agora havia uma espécie de armadura metálica rebrilhante com pontos incandescentes em diversas partes dele. Edílson se deu conta de que o que quer que fosse acontecer ali já não era mais algo seguro e tentou correr, mas foi surpreendido por um som tão poderosamente brutal que o jogou no chão; a luz que veio em seguida era ofuscante e Edílson teve de proteger os olhos com as mãos. Quando a luminosidade diminuiu um pouco o jovem teve uma visão perturbadora. Aquela criatura estava se digladiando brutalmente com o outro humanóide, este ao invés de cinza era negro com pontos brilhantes em vermelho vivo como se magma corresse por dentro daquela fuselagem estranha e extraterrestre. O som de metal contra metal e as faíscas que eram produzidas pela batalha estavam lançando fogo em todo o entorno; ao mesmo tempo em que garranchos elétricos como relâmpagos chicoteavam o ar ao redor consumindo a vegetação rasteira. Os dois estavam envoltos numa grande bola de luz multicolorida, uma espécie de campo eletromagnético, como aquelas lâmpadas de plasma; que se expandia cada vez mais e em seguida simplesmente desapareceu. Silêncio completo. Edílson estava deitado no chão com as costas contra o solo frio, os olhos ardendo o coração a ponto de sair pela boca. Ele se pôs sentado, havia um círculo de fogo ainda maior onde

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segundos antes a briga entre aqueles dois tinha desaparecido; checou o celular que estava caído um metro longe dele, devia tê-lo lançado quando caiu. O telefone estava totalmente inutilizado queimado. Aquele jovem estava agora tentando digerir tudo o que tinha visto, não sabia ao certo se tinha acabado de presenciar um espécie de guerra entre seres extraterrestres ou se eles eram algum tipo de demônios. Estava inclinado a crer na primeira opção, afinal de contas demônios não usavam armaduras e segundo suas convicções até mesmo os demônios eram seres extra-planetares que em algum momento da história visitaram a terra e passaram a fazer parte da literatura humana por intermédio da igreja que na época era a única instituição suficientemente instruída para fazer um registro histórico dessa grandeza, porém com o avanço das ciências e as descobertas ufológicas através dos anos não havia mais, segundo Edílson, motivos para os homens dar crédito a todos os relatos antigos. Muitas perguntas ficaram sem resposta, como o fato de eles terem sido arrebatados bem diante de sua vista como se fossem tele-transportados de volta para seu lugar de origem ou para alguma outra zona perdida. Infelizmente Edílson ficou sem nenhuma prova dos fatos que tinha presenciado e se contasse aquilo para qualquer pessoa, não receberia o crédito como se pudesse provar com as fotos; logo desvirtuariam os fatos atribuindo as únicas evidências daquela batalha, as queimaduras circulares no chão, à farsa ou se tivesse sorte algum fenômeno espontâneo da natureza.

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Reação desastrosa O trânsito estava terrível naquela manhã cinza, nuvens escuras ainda pairavam sobre a cidade, já tinham derramado uma boa quantidade de água durante a madrugada e isso tinha contribuído para o volume grande de automóveis nas ruas; muitos carros andando e parando o tempo todo. Os semáforos pareciam estar constantemente no vermelho; muitas buzinas sendo disparadas em protesto àquela situação que não se resolveria facilmente. Cada vez mais o trânsito do Rio de Janeiro, tal como de seus maiores bairros e municípios está se tornando mais e mais entupido; as ruas não comportam mais a quantidade cada vez maior de veículos sendo despejados anualmente nelas e disputando lugar como se suas vidas dependessem disso. Carros particulares, coletivos, táxis, motos e lotações regulares ou não praticamente se digladiando por um ou dois palmos de rua, além de vários motociclistas cortando caminho pelas calçadas, canteiros ou nos corredores formados pelas filas de carros. Como se tudo isso não bastasse, ainda havia ocorrido um pequeno abalroamento entre dois carros bem em frente à estação ferroviária de Marechal Hermes, bairro na zona norte do Rio de Janeiro; os donos estavam discutindo fora de seus veículos e o trânsito já ruim tinha ficado muitas vezes pior. Os carros e ônibus que conseguiam passar pela rua parcialmente fechada ainda diminuíam a velocidade para ver o que tinha acontecido e se deliciarem com a curiosidade mórbida de ver as duas pessoas discutindo veementemente por uma coisa que nem valeria tanto.

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Cerca de vinte carros antes do lugar exato da pequena batida estava o advogado Agnaldo Nunes Santos Queiros ou simplesmente Dr.Queiros. Agnaldo tinha um escritório particular em Bento Ribeiro, Bairro vizinho e não muito longe do lugar onde estava preso por aquele nó do trânsito, mas novamente se atrasaria por causa de tudo aquilo. Não era a primeira vez e certamente não seria a última. Agnaldo estava dentro de seu carro novo, primeiro dia que ia trabalhar com ele, primeira semana que estava usufruindo daquele bem; era um “Honda New Civic” preto, não era zero quilometro, mas era do ano de 2009. Agnaldo tinha feito questão de compra o carro completo com bancos de couro e câmbio automático que na opinião do atual proprietário dava um ar mais sofisticado ao automóvel, além do que ele achava muito mais seguro aquele tipo de transmissão, sobretudo a da Honda. O carro era uma verdadeira maravilha, conjunto perfeito, rodava manso e despejava potência no momento certo; desfilava desempenho e sem contar o visual futurista agressivo que tinha chamado a atenção de Agnaldo desde a primeira vez que ele vira o carro na rua anos antes de comprar o seu. Infelizmente estava parado ali naquela via e tudo o que ele podia desfrutar era de um pouco de música, mas não quis ligar o rádio nem colocar CD algum no aparelho naquela hora, antes, tinha de fazer algumas ligações. Ao lado dele no banco estava sua pasta e dentro dela alguns processos que tinha levado para rever em casa no dia anterior. Ele aproveitou que todos os carros estavam parados e abriu a pasta; de um bolso reservado retirou seu telefone celular e

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ligou para o escritório, o aparelho chamou a primeira vez enquanto Agnaldo consultava a hora no relógio de pulso. Do outro lado da ligação uma voz feminina atendeu dizendo: _ Escritório do Dr. Queiros, bom dia. Era Marina, sua secretária. Já estava no escritório. _ Mari. _ disse Agnaldo _ Estou preso no congestionamento outra vez, aconteceu uma batida aqui em Marechal e vou me atrasar um pouco. _ Tudo bem. _ Respondeu a secretária Mariana que, além de ser a encarregada de manter parte da papelada e da agenda de Agnaldo em ordem, fazer parte dos contatos telefônicos com alguns clientes e passar algumas informações sobre a forma de trabalho do escritório, também era prima da esposa dele e morava a poucos metros do local de trabalho por isso não necessitava de condução para chegar cedo todas as manhãs. Mariana era uma jovem que trabalhava com Agnaldo fazia seis meses; ele a tinha contratado depois de um pedido da esposa. Marina estava cursando a graduação politécnica de gestão empresarial numa faculdade próxima e era sem dúvida uma mão na roda para o escritório. Uma jovem esforçada, desenvolta, e muito habilidosa no trato com as pessoas, certamente teria um futuro muito bom pela frente. Ele desligou o telefone e discou outro número; enquanto o aparelho completava a ligação ele olhou o trânsito, tudo continuava parado, mas alguns carros atrás do seu começavam a tentar forçar a passagem a qualquer custo, o que era fisicamente impossível, aquilo perturbou Agnaldo; as buzinas disparavam a todo o momento e o ronco dos motores aumentava, mas ninguém tinha coragem de tentar forçar muito ou provocaria certamente uma batida.

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O aparelho tocou duas vezes e uma outra voz feminina e inocente atendeu do outro lado, era Lili, a filha de Agnaldo. _ Alô?_ disse meio em dúvida. _ Filha, é o papai. _ Oi papai! Liliane era uma menina extremamente esperta para sua pouca idade; era precoce e desenvolta com as palavras, completaria cinco anos na próxima semana e já estava naquela faze de pedir um pônei de presente, mas a mãe estava convencida a dar um telefone celular e uma boneca daquelas que tomam mamadeira e falam. _ Querida_ disse ele_ já está acordada? _ Deixa eu falar com a mamãe. Todas as manhãs Agnaldo saia de casa antes de Liliane acordar, portanto só a via depois do dia de trabalho, mas compensava tudo nas poucas horas que passava com ela durante a semana, nos fins de semana e feriados. Sempre foi e continuaria sendo um pai muito participativo, gostava de ler para a pequenina desde que ela ainda era um bebê; tanto ele como a esposa eram leitores inveterados; haviam se conhecido numa livraria sete anos antes. Além disso ele sabia que o habito de ler quando semeado desde cedo faria uma grande diferença no futuro da filha; tinha comprado um monte de livros infantis tais como as histórias da pequena sereia, o gato de botas, chapeuzinho vermelho, branca de neve, a bela e a fera e tantas outras. Todas as noites ou ele ou a esposa liam algum trecho das histórias e deixavam a menina sedenta por saber o restante. Ele tinha feito um cursinho para pais cujo nome era “contando contos infantis”, o curso era justamente para isso e ensinava técnicas para os pais conseguirem criar uma atmosfera durante

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o conto que prendesse a atenção das crianças; na verdade o curso era destinado para pais com mais de dois filhos, mas não era vedada a participação de ninguém e além do mais ele e Alessandra, sua esposa, estavam conversando sobre a possibilidade de dar um irmãozinho para a pequena Lili muito em breve. Alessandra escolheu fazer um curso de fantoches e dedoches, gostava muito de usar as mãos para ajudar a contar as histórias e adorava ver o sorriso no rosto da filha quando esta percebia os personagens ganhando vida nas mãos da mãe. Agnaldo costumava ver a mulher fazendo suas pequenas apresentações enquanto lia para a menina na hora de dormir. _ A mamãe está se arrumando. Agnaldo olhou novamente o relógio. _Chama ela pra min coraçãozinho. Alessandra costumava sair um pouco mais tarde de casa, porque trabalhava muito mais perto de sua residência do que ele; a esposa tinha um consultório dentário no centro de Nilópolis e todos os dias ela ia levar a filha para a escolinha, de carro, e buscar também. Outra vantagem de trabalhar próximo de casa era que ela também almoçava em casa, mas às vezes eles marcavam de comer em um restaurante e se encontravam durante o dia. _Espera ai. _disse a filha; Agnaldo conseguiu ouvir através do telefone, os passos da menina correndo pela casa e ao longe seus gritinhos chamando a mãe. Pouco tempo depois Alessandra atendeu: _ Quase que você não me pega em casa, já estava de saída.

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_ Fiquei preso no trânsito de novo; esta tudo horrível aqui, mas não foi isso que eu queria falar. Vamos mudar o lugar do almoço hoje. _ Porque? _ Por nada. Vamos mudar a rotina; que tal uma massa. _ Massa não! Você sabe que estou tentando perder peso. Alessandra não precisava perder absolutamente nada, mas Agnaldo nunca conseguiu fazê-la entender isso, ela sempre costumava dizer que estava precisando perder alguma coisa, por isso ele já tinha desistido de falar. _ Puxa; então vamos comer uma saladinha ou pescados. O que você acha? _ Agente decide na hora. Você vem pra cá? _ Vou sim, se esse trânsito me deixar chegar primeiro no escritório. Ele ia falar mais alguma coisa quando uma buzina foi acionada a todo volume bem próximo do seu carro. Agnaldo tinha se distraído da rua e os carros da frente haviam se distanciado um pouco; coisa de cinco metros, não mais do que isso. Ele acelerou o carro e cobriu essa distância facilmente; voltou a falar no telefone. _ O que foi isso?_ Perguntou Alessandra. _ Nada; um cara buzinando no meu ouvido. Agnaldo olhou pelo retrovisor e percebeu que o motorista de carro atrás do seu estava esbravejando como um lunático. Tirou aquilo por menos e não vez caso; continuou falando no aparelho: _ Olha. Eu ia falar só quando chegasse em casa, mas creio que já podemos começar a pensar naquela viagem para Angra dos Reis no fim de semana. Vamos aproveitar o carro novo e

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pegamos a estrada logo cedo; podemos ficar hospedados naquela pousada que você tinha visto. _ Acho uma ótima idéia. De repente um barulho alto surgiu do lado de fora da janela do carro, um vulto negro tinha passado rápido e Agnaldo demorou alguns milésimos de segundo para perceber que havia sido um motoqueiro, e pior; o mesmo tinha acabado de quebrar o retrovisor do carro. Imediatamente Agnaldo baixou o vidro e o som do congestionamento entrou inundando toda a cabine do automóvel. _ Maluco!_ gritou. Num primeiro momento ele não conseguiu acreditar, o carro novo, não fazia nem duas semanas que estava com ele e agora o retrovisor estava completamente destruído. lembrou-se que a esposa estava no telefone e antes de retomar a conversa soltou um palavrão daqueles. Alessandra estava chamando por ele e perguntado o que tinha acontecido: _O que aconteceu aí? _ Um “motoqueiro de uma figa” passou aqui e quebrou o meu retrovisor._Ele respondeu e ela percebeu no tom de voz do marido que ele estava irritado._ Caramba! Não acredito nisso; nem bem peguei o carro e já vou perder num dinheiro que... Outra buzina soou violentamente atrás do carro de Agnaldo, era o mesmo homem que estava esbravejando anteriormente e estava visivelmente transtornado. Ele ameaçava avançar com o carro, mas obviamente não podia fazer isso sob pena de provocar uma colisão.

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Outra buzina disparou ininterrupta, e outra na seqüência, e mais outra em seguida até que vários motoristas em todas as partes da via estavam apertando suas mãos contra as buzinas ao mesmo tempo numa verdadeira bagunça sonora. Lá na frente, onde tinha acontecido aquela pequena batida que potencializou todo o engarrafamento algo estava acontecendo; uma viatura da polícia surgiu vinda do meio do congestionamento atrás do carro Honda de Agnaldo e abrindo espaço com a sirene ligada forçava a passagem; os motoristas tiveram de dar passagem à viatura, inclusive Agnaldo, e, quando o carro da polícia passou tinha deixado um rastro de outros veículos atravessados pela rua atrás de si. Parecia o cenário de uma colisão automobilística coletiva, o que felizmente não tinha acontecido; até aquele momento. Embora seja proibido dirigir e falar ao telefone ao mesmo tempo, Agnaldo não tinha desligado o seu aparelho e Alessandra estava do outro lado da linha ainda esperando maiores detalhes da quebra do retrovisor; o aparelho jazia no banco ao lado do motorista, junto de sua pasta, até que ele conseguiu colocar o carro novamente numa posição que não fosse tão transversal à rua. Pegou o telefone novamente. _ Amor_ disse ele tentando manter a calma, e completou._ Aqui está um inferno, mais tarde quando nós formos almoçar eu te conto tudo, espero conseguiu chegar no escritório, mas acho que alguma coisa aconteceu aqui, a polícia apareceu e... O som característico e muito conhecido chamou a atenção de Agnaldo, e juntamente com o solavanco ao qual seu carro foi submetido, temeu o pior, mas já era tarde. O carro de trás tinha acabado de abalroar o seu.

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Agnaldo olhou pelo retrovisor interno e viu o motorista do outro veículo saindo do carro falando aos montes. _ Depois eu te ligo amor; acabam de bater na traseira do meu carro. Dito isso, ele desligou o aparelho mesmo com Alessandra ainda falando algo que ele não fez questão de ouvir e colocou o telefone novamente no banco ao lado. O outro homem veio caminhando e bateu no vidro da janela que Agnaldo tinha tratado de subir logo que percebeu o indivíduo vindo em sua direção. O coração disparou quando o homem bateu com força contra o vidro mais de uma vez, estava dizendo que a culpa era de Agnaldo por não estar prestando atenção na rua. Ele abriu a porta lentamente, saiu do carro e inconscientemente tomou as medidas do outro homem; tratava-se de uma pessoa muito maior do que ele, gordo, pouco cabelo e completamente vermelho de raiva. _ Você tem que prestar atenção nas coisas!_ começou o outro com um tom de voz bem acima do que recomendaria uma conversa amistosa. _ Puxa, você bateu em mim e eu é que tenho que prestar atenção._ rebateu Agnaldo que se encaminhou logo para a traseira do seu carro. Chegando lá, viu que uma de suas lanternas estava também destruída e não pode deixar de pensar que era melhor ter ficado na cama aquela manhã. Dois prejuízos em menos de vinte minutos e o dia estava apenas no começo. _ Olha só o que você fez._ disse para o outro motorista. _Eu fiz. Olha o meu farol! _ A última frase veio num tom ainda maior, quase num prenuncio confusão.

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O farol do carro detrás, um gol que estava colado à traseira do Honda, também estava quebrada, uma pequena parte do capô estava levemente amassada e o pneu praticamente vazio, o que não devia ter nada a ver com a pequena colisão entre eles. Não parecia tão grave assim; ao fundo o outro motorista continuava falando alguma coisa e nos carros em redor seus motoristas, homens e mulheres observavam tudo atentamente. Agnaldo já estava ficando de saco cheio daquele outro querendo arrumar uma confusão e disse: _ Olha só, vou ligar para o seguro e arcar com o prejuízo de nós dois_ disse tirando um cartão do bolso e estendendo para o outro._ você faz um orçamento, me liga passa o valor e eu cubro. Assim cada um segue sua vida sem traumas. O outro bateu na mão de Agnaldo e o cartão foi ao chão imediatamente. _ Você está pensando que vai sair daqui sem pagar meu prejuízo, mas não vai. Agnaldo percebeu que não teria acerto ali e deixou o outro falando sozinho, voltou para o carro a fim de buscar o telefone e não percebeu que o outro homem também tinha voltado para o seu carro. Retirou o telefone do banco e quando saiu do veículo novamente viu que o outro vinha em sua direção com uma chave de rodas. Com o susto, ele deixou o aparelho cair no chão e por pouco a primeira pancada não acertou seu rosto; Agnaldo nem soube como o homem errou àquela distância, mas o fato é que a chave de rodas explodiu contra o teto do Honda; ele não sabia se a intenção era acertá-lo ou ao próprio carro, mas aquilo foi o que disparou um gatilho em Agnaldo que se atracou com o

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outro para separá-lo da chave de rodas, afinal não ia deixar aquele sujeito destruir seu carro ou atacar a ele próprio. O sujeito estava transtornado, mas surpreendentemente foi relativamente fácil tomar a chave de rodas das mãos dele. Agnaldo puxou a ferramenta pensando que seria o suficiente para fazer o outro desistir daquela ação, mas não foi. Mesmo sem a chave, o outro avançou sobre ele xingando e falando todo tipo de palavrões, ofendendo não só a Agnaldo como também a sua família. Gritando tão alto que estava chamando a atenção não só dos motoristas que estavam mais próximos como também dos mais distantes. Ele avançou furiosamente sobre o advogado que não conseguiu raciocinar a tempo de fazer algo sensato e frear o instinto que falou mais alto. Numa atitude de defesa que futuramente ele classificaria como desastrosa, Agnaldo, no calor do momento, acertou a chave uma única vez na cabeça do outro sujeito que já estava tão vermelho que parecia que o sangue lhe sairia pelas narinas; os olhos do homem estavam injetados e alucinados pela raiva, mas com a pancada recebida bem na testa tudo aquilo cessou no mesmo instante. O homem desmoronou como um grande saco de carne e ossos, a queda foi surda e de certo modo, repugnante. O corpo bateu contra o solo e lá ficou, sem se mover, sem reagir e sem respirar. Agnaldo deixou a ferramenta cair de suas mãos, olhou ao redor e percebeu que algumas pessoas estavam falando no telefone com uma expressão de horror na face; imaginou que estavam chamando a polícia.

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Girou nos calcanhares e viu que de fato um policial vinha correndo entre os carros em sua direção, provavelmente um daqueles que estava na viatura policial que tinha passado por ali momentos atrás rumo a ocorrência que iniciou tudo aquilo. Agnaldo encostou-se ao Honda e aguardou, teve vontade de tentar reanimar o homem que derrubara, mas não sabia fazer nenhum tipo de ressucitação, nem sabia se era o caso ali, temeu prejudicar ainda mais o estado do outro. Ele ainda não sabia, mas o homem caído ali aos seus pés estava morto.

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Que o fim justifique os meios. Inácio Nêro caminhou calmamente em meio a um terreno que ele demorou muito tempo para encontrar, no chão havia uma coisa que comprovava todas as suas teorias; tinha pesquisado em livros durante anos até que finalmente saiu em campo e encontrou um lugar propício para seu experimento mais ousado. Um lugar sem nenhuma moradia por perto, exceto por uma pequena vila ao longe com casas simples em sua maioria, de apenas um andar, e cerca de trezentos moradores em sua maior parte idosos. Os jovens do pequeno vilarejo costumavam ir para a capital a fim de estudar ou para trabalhar e acabavam se estabelecendo por lá ou nos municípios mais próximas, afinal a distância da pequena vila para a capital do estado era de duzentos e dez quilômetros e a cidade mais próxima ficava a cerca de vinte e sete quilômetros. Inácio tinha passado os últimos dias hospedado na única pousada do lugar ocupando um dos quartos, mas sem manter muito contato com os donos do estabelecimento ou com qualquer outro hóspede do local, que eram poucos; pelo que ele pode averiguar tratavam-se de um escritor desconhecido em busca de inspiração, um casal estrangeiro que procurava paz e sossego e mais meia dúzia de pessoas que estavam ali apenas por um dia, de passagem. Sempre gostou de discrição, sobretudo, no que dizia respeito aos seus atos mais secretos; as pessoas não costumavam entender o tipo de estudos aos quais ele se dedicava e viam com maus olhos todo e qualquer experimento que ele pudesse realizar; aprendera isso com o tempo e com um grande número

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de confusões, desentendimentos e fracassos. Mas agora estava pronto para tentar se superar. Os dias em que passou enfurnado no quarto da pousada; ele ficou praticamente sem comer ou dormir, obcecado em concluir o que tinha proposto, somente analisando livros, fazendo cálculos e verificando coordenadas e condições de tempo, de clima e uma centena de outros tópicos e exigências muito específicas para a realização de sua experiência fora do comum. As únicas vezes em que ele deixou a pousada foram para caminhar pelo povoado e averiguar se o tipo de pessoas locais era o tipo que poderia ser usado como parte de sua trama sem sentido. Percebeu que a maioria dos moradores do lugar estava dentro do que ele imaginava para seu experimento; gente pacata com pouco potencial para combates ou defesas o que os tornaria presas fáceis depois que a experiência fosse colocada em curso. O vilarejo não apresentava nenhuma resistência natural, havia apenas uma única delegacia de polícia e uma única igreja também, poucos policiais, duas viaturas antigas o suficiente para não servirem como instrumento de fuga para ninguém, uma pequena unidade de saúde com poucos recursos que se parecia mais com um pronto-socorro ou posto precário que era o suficiente para atender qualquer eventualidade superficial da ordem de saúde das famílias das redondezas, mas certamente não estaria apto para o que se seguiria. Havia também um cemitério que ficava localizado atrás do terreno da igreja. Um cemitério, no imaginário popular, seria a primeira opção para a realização de seus estudos, mas Inácio já sabia que não era bem assim; nem sempre para não dizer quase nunca era

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possível quebrar as regras universalmente estabelecidas em solo de descanso, além do mais ele também sabia que cemitérios eram muito mais povoados do que as pessoas sequer podiam imaginar, é um solo visitado por todos os tipos de seres que existem debaixo dos céus ou acima dos infernos e Inácio não queria errar os cálculos e acabar fazendo qualquer outra coisa que não fosse o seu propósito. Não queria se deparar com qualquer outra criatura que não fosse fruto do que ele realizaria naquele vilarejo. Algumas pessoas que conhecem ou estudam os meandros das ciências bastardas com o mesmo grau de conhecimento que Inácio costumam dizer que cada cemitério possui um dono, e isso, não no plano físico, mas aquilo não vinha ao caso ali. Afinal aquele forasteiro já tinha descoberto o lugar perfeito para trazer o caos sobre a vila. A cidadezinha era do tipo em que as pessoas se conhecem pelos nomes e todos sabem exatamente o que cada indivíduo faz da vida ou com o que tinham trabalhado anteriormente; todos sabiam quem casava com quem e coisas desse tipo, conheciam os parentes uns dos outros e os parentes dos parentes também, mas o principal era o fato de a atmosfera não lembrar em nada o ar corrido da cidade grande, o tempo demorava a passar e quase não se tinha contato algum com a cidade a não ser pela televisão e principalmente em horários noturno por causa das novelas; fora isso, somente as visitas semanais do carro da agência de correios e telégrafos que vinha ao vilarejo uma vez por semana para trazer todo o tipo de correspondências, contas, boletos e coisas afins, lembrava que existia um mundo pulsante e cada vez mais estressado longe dos limites modestos daquelas terras.

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Inácio anotou todas essas informações durante os dias em que esteve observando as pessoas como quem observa pequenos camundongos que serão oferecidos às serpentes como comida. Conversou com alguns moradores locais na praça da cidade e documentou praticamente tudo o que ouviu, tinha muita dificuldade de conversar com pessoas, estava um pouco sem prática, mas não podia deixar de tomar nota dos causos sobrenaturais que envolviam o imaginário dos moradores; ele ficou feliz em saber que, de fato, havia relatos de atividade caóticas naquela região porque certamente aquilo contribuiria muito para o sucesso do seu teste. _ Tem coisa estranha aí por essas campinas._ disse um senhor na rua quando questionado por Inácio sob o pretexto de uma pesquisa qualquer. Outro disse: _ Todo mundo conhece a história; em algum lugar das redondezas tem um ossuário antigo. As histórias e causos eram diferentes, mas deixavam claro que havia algo insólito pairando no ar. Não que os moradores atuais se preocupassem com isso, fosse o que fosse, aquilo já tinha caído no imaginário local e as histórias serviam mais como uma espécie de pequenas lendas para assustar crianças ou passar de pais para filhos. Nenhum deles podia realmente conceber que por detrás daquilo existia algo tentando passar, algo primordial, feroz e que aguardava apenas uma pequena brecha para passar. Brecha essa que seria providenciada por Inácio. A outra vez em que ele deixou seu quarto da pousada foi para constatar se tinha, de fato, encontrado o lugar perfeito que atendesse as exigências antigas para ser a porta de passagem

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para uma força do caos que em apenas uma noite mudaria radicalmente a paisagem daquele bucólico lugar. Inácio caminhou por algumas pastagens e se afastou, a pé, cerca de dois quilômetros do centro da vila; o local era exatamente o que devia ser; descampado e inóspito. As pessoas locais não tinham idéia de que haviam construído suas casas sobre uma zona neutra; que é o nome dado a lugares onde as mais diversas forças existentes convergem e se anulam, deixando como resultado dessa nulidade apenas o que os estudiosos como Inácio chamam de caos. Aquilo possibilitava que fossem feitos sobre aquele terreno coisas extremamente fora do comum; permitia que as regras que regem a realidade fossem burladas, dobradas ou quebradas completamente. Muitos antigos estudiosos das ciências apócrifas tinham passado suas vidas procurando por lugares com aquelas características, mas poucos haviam obtido êxito completo na tarefa e agora Inácio também depois de um bom tempo de estudos, pesquisas e busca seria o homem a desempenhar tal papel. Ao constatar que finalmente tinha encontrado um lugar dos muitos espalhados pelo mundo onde ele poderia finalmente libertar uma centelha do caos durante uma noite especifica e por um tempo determinado; Inácio voltou para a pousada e preparou tudo o que precisava para documentar seu grande feito; apesar de ser adepto de uma linha de conhecimento ancestral e totalmente proibida ele se considerava um estudioso de uma ciência visionária, porém proscrita, condenada e por que não dizer profana, mas ainda assim uma ciência, e como todo cientista incompreendido visando um bem maior, mesmo que com uma visão distorcida, ele prosseguia sem se importar

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com o que tinha de fazer para alcançar o objetivo final, na verdade em sua linha de raciocínio já não existiam mais conceitos como ética, moral ou escrúpulo algum; na sua visão impulsos como aqueles serviam apenas para fazer com que os homens não alcançassem seu potencial máximo, na medida em que permaneciam se regulando com aquelas falsas virtudes. Mas com um olhar mais cuidadoso seria fácil notar que ele estava obcecado. Ele não via sua ciência como uma perturbação das leis divinas estabelecidas pelo criador como os religiosos insistiam em propagar por todas as partes, tampouco, considerava que estivesse destruindo o equilíbrio natural ou o ciclo vital do universo; vida e morte, como asseveravam os místicos e alguns filósofos adeptos dos mais diversos pensamentos modernos e pós-modernos. E o mais bizarro era que ele verdadeiramente não achava que sacrificar um pequeno grupo de pessoas inocentes em busca de algo que poderia salvar todo um planeta no futuro fosse errado. Pelo contrário; Inácio estava concentrado em tentar levar a humanidade a um degrau acima e para ele não existia ninguém inocente o suficiente para ser poupado de um sacrifício como aquele. O objetivo final de seus testes e experimentos visava tornar o homem um ser verdadeiramente dono de si, com o poder de controlar algo que a humanidade vinha tentando vencer desde o início dos tempos; a morte. Inácio havia se enveredado por um caminho que buscava conceder ao homem a fórmula para burlar a morte, ou seja, deixar de morrer, mas não somente isso, sua ciência sempre buscou fazer isso por meio do domínio das forças mais incontroláveis e desconhecidas que existem. Era ao mesmo

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tempo um caminho sombrio e solitário onde ele passava muito mais tempo estudando, pesquisando e realizando testes. Podia parecer cruel, desumano e terrivelmente maldoso, mas Inácio acreditava que no final das contas o fim justificaria os meios; assim como havia dito Nicolal Maquiavel. Ele desejava chegar ainda mais longe do que Nicolas Flamel, o alquimista que segundo a lenda teria descoberto a pedra filosofal, o elixir da longa vida, ou, como o rabino Judah Levi que teria criado uma criatura chamada golem para defender um gueto em Praga no século XVI. No entanto, o que Inácio desejava era algo um tanto diferente, era uma espécie de mistura do feito dessas duas personalidades, não seria fácil e o que ele estava prestes a fazer no pequeno vilarejo era apenas o começo dos trabalhos. Ele finalmente parou no ponto que julgou certo, abaixou-se e recolheu algo do chão; se alguma pessoa desavisada estivesse vendo a cena diria que era uma simples pedra, mas um olho treinado como o dele já sabia que se tratava de um pedaço de osso ressecado, quase totalmente destruído pelo tempo; e aquilo era o que revelava o porque de aquele local ser o ponto ideal para a experiência. Na verdade os moradores do vilarejo não tinham certeza da localização exata, mas corria entre eles a história de que em algum lugar das redondezas haveria um ponto onde muito tempo antes da instalação definitiva das casas e da modesta estrutura de cidadezinha, existia um ossuário que com a construção oficial da vila deixou de ser usado e acabou por ser esquecido. Para Inácio, aquele ossuário seria o ponto de partida; ele pretendia usar seus conhecimentos de forma a fazer com que caso houvesse alguma ossada ainda intacta enterrada ali, ela

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seria artificialmente reanimada. Ele não teve tempo hábil para fazer tudo como deveria, ou seja, cavar o lugar e averiguar se realmente ainda existia alguma ossada completa enterrada lá, ou se porventura existia ossos suficientes para ele montar manualmente um esqueleto mesmo que com partes de pessoas diferentes. Pelo tempo decorrido desde a desativação do ossuário todos os ossos depositados ali deveriam estar destruídos ou em vias de destruição absoluta, mas Inácio tinha de tentar fazer assim mesmo; esperava que ainda houvesse partes inteiras que pudessem ser reanimadas. Além do mais, caso fosse bem sucedido na reanimação, logo teria novos ossos para poder utilizar como bem entendesse. Olhou na direção da vila. Já tinha conseguido reanimar animais pequenos, ratos, camundongos, um gato, um pássaro e um cão, mas nunca um ser humano ou mais de um; o problema era que segundo os poucos relatos aos quais teve acesso, diziam que com seres humanos os procedimentos deviam ser totalmente diferentes dos demais animais e era nesse ponto onde a ciência parecia dar lugar a uma mentalidade mais baixa, algo mais subjetivo que remetia à essências do caos. Dizia-se que reanimando um ser humano, o que retornaria em seu lugar seria apenas um simulacro do mesmo, ou seja, teria a forma de um homem, ainda que de modo imperfeito, mas seria uma fagulha do caos encarnando-se no ser reanimado e muito provavelmente as consequências seriam imprevisíveis e sem controle. Por esse motivo era bom que somente o vilarejo estivesse próximo ao local, não que Inácio ligasse para aquelas pessoas, na verdade estava curioso e intrigado para saber como

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se daria a reanimação; se sairia uma criatura do chão e correria para a vila, assombraria toda a pequena população; ou se surgiria algum tipo de efeito que espalharia o terror atacando tudo e todos que encontrasse pela frente. Infelizmente, segundo a informação e experiência de que dispunha, ele já sabia que o tempo da reanimação era muito curto e em poucas horas o ser, fosse ele qual fosse, estaria reduzido novamente a um monte de matéria inanimada; ainda tinha que trabalhar numa forma de estender o tempo de duração da reanimação ou até mesmo de tornar duradoura, mas toda a dificuldade estava na impossibilidade de calcular todas as variáveis envolvidas, cuja grande maioria ele nem sequer conhecia. A vida real não é como o romance de Mary Shelley e incutir uma falsa “Anima” artificialmente em algo que já a tenha perdido é uma tarefa quase impossível a não ser pelos métodos certos que são muito mal vistos por todos sem falar que na quase totalidade são desconhecidos até para os maiores estudiosos desta ciência. Jogou o osso que tinha recolhido do chão novamente no solo, olhou ao redor e viu bem ao longe a única estrada que trazia e levava pessoas para a vila; nenhum carro passava ali por horas a fio e a vastidão da campina se prolongava por quilômetros e quilômetros em todas as direções. Estava intensamente ansioso e finalmente era hora de começar.

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Sob o manto da chuva O corredor escuro e sujo de uma espelunca qualquer; um prédio abandonado na zona portuária do Rio de Janeiro; sujeira pelo chão de ladrilho quebrado e tacos podres, restos de reboco da parede caídos, fios soltos nas paredes e no teto; algumas portas de madeira fechadas e outras abertas ou quebradas, por onde passavam os únicos laivos de claridade de um dia que parecia estar sendo punido pelos senhores da chuva. A roupa branca já estava completamente desfigurada, coberta de lama e teias de aranha que ele ia retirando da frente com as mãos; a água da chuva vazava pelo teto em diversos pontos como se fossem pequenas cascatas, inundava parcialmente o corredor e gotejava dos bocais de onde algumas lâmpadas quebradas pendiam, mas ele já esteve em lugares muito piores. Vez por outra o lugar todo parecia tremer e o som dos trovões surgiam sacudindo tudo dentro daquele casarão que estava caindo aos pedaços, um som violento e que deixaria os mortais apreensivos se houvesse algum ali. Aparentemente não era o caso. Uma risada surgiu vinda do final do corredor, despreocupada, medonha e maléfica. Ele parou um momento, já sabia onde os outros estavam e aguardou mais um pouco. Outra risada apareceu e as vozes continuaram no que parecia ser uma conversa a dois, vozes humanas com um tom ligeiramente inferior, mas por quê? Olhou para baixo e viu as pegadas bem definidas na podridão do lugar, mas não era duas e sim três. Uma terceira vós apareceu, não estava falando, mas sim chorando, soluçava e murmurava coisas sem sentido. Em

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seguida as risadas diabólicas que debochavam recomeçavam; estavam brincando com alguém, um mortal. Dois deles e uma pessoa comum; agora teria de ter muito mais prudência do que o que estava planejando, não podia simplesmente entrar na sala onde estavam e acabar com os outros, tinha de tomar todas as precauções para que aquela pessoa que estava ali certamente mantida como refém não fosse ferida; sob nenhuma hipótese um mortal poderia perder a vida na ação. Aproximou-se com cautela para não fazer barulho algum que pudesse ser interpretado pelos outros; ele se moveu sem produzir nenhum ruído, sua respiração estava agora numa freqüência abaixo da produzida pelas gargalhadas dos que estavam dentro da sala. De repente um grito; mortal, agonizante quebrou o silêncio quando os risos pararam e em seguida as gargalhadas voltaram. “Acho melhor você usar isso.”_ Disse a primeira voz e um som de ferro contra ferro foi ouvido. Um grunhido baixo implorou por algo: _ Não! Por favor. Não! Riram mais. Outro respondeu: _ Está bem afiado. _ Vira ele para a janela_ disse um dos dois. Aquele que andava pelo corredor estava agora bem debaixo de uma das pequenas cascatas provocadas pela chuva, mas não se importava com aquilo, estava em estado de alerta e a porta do cômodo de onde vinham as vozes estavam ao alcance de sua mão; a porta estava encostada com menos de um dedo de fresta, não era possível espiar para dentro e saber a posição exata dos adversários.

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O grito do mortal voltou acompanhado pelos risos em seguida. _ Olha como sangra! _ Disse, e continuou _ Adoro isso. _ Não! Por favor. _ Implorou o cativo. A chuva agora era tão pesada que o barulho dela sobre as telhas velhas fazia um ruído que subjugava os demais. Ele se aproximou da porta quase encostando nela e uma de suas mãos desceu até a altura da cintura; estava molhado, sujo; muitos dias sem falar com seus irmãos, mas finalmente estava prestes a concluir sua missão. Havia passado muitos dias rastreando até que por fim acabou descobrindo aquele lugar e a finalidade para a qual aquele casarão estava sendo usado. Os cabelos desgrenhados e cobertos de teias de aranha, poeira, pedaços pequenos de reboco e água formavam uma espécie de lama que escorria pela face com gotas negras. De dentro do cômodo um deles pareceu ouvir algo. _ Espere!_ irrompeu. O cativo chorava quase sem força para sustentar-se acordado; quanto tempo estaria sendo submetido às torturas insanas dos outros dois. _ Pensei ter ouvido algo. _ O quê? _ Shhhh! Um silêncio parcial teve início na medida do possível; entrecortado pelos soluços compulsivos do cativo dentro do cômodo e pelos sons da chuva e dos trovões. Do lado de fora da sala, no corredor, o outro permanecia na espreita quase totalmente encostado na porta. Com uma das mãos tocou a madeira verde parcialmente apodrecida com uma sutileza que jamais algum mortal poderia reproduzir, como um caçador que busca se acomodar para efetuar o ataque

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definitivo; a outra mão segurou o cabo de uma arma presa a uma bainha junto da cintura cuja lâmina por si só seria o suficiente para colocar um fim naquele seqüestro insólito. Eram dois torturadores dentro da sala e mais uma vítima, teria de ser cuidadoso, mas mortal, não podia errar sob pena de perder a pessoa que eles estavam mantendo cativa para fins profanos. Torturadores; forças menores do caos, soltos para vagar sob a forma humana, achar pessoas específicas e sacrificá-las, mas não sem antes torturar de forma inimaginável seus cativos com todo tipo de requinte de crueldade. Muitos diriam tratar-se de uma casta de demônios. As vozes dentro do cômodo retornaram e a tensão que estava se acumulando ali pareceu esvaziar-se um pouco. _ Pensei ter ouvido alguma coisa. _ disse um deles. _ Deve ter sido a chuva ou alguma telha solta_ respondeu o outro e em seguida fez um som estranho; inumando, como um ronco monstruoso._ Esse lugar está caindo aos pedaços, é excelente para devorar esses sacos de ossos. _ É. _ Fura ele e vamos embora. _ Ainda não! A chuva ainda está muito pesada lá fora; deve haver rastreadores por aí. Rastreadores; forças contrárias ao caos, Anjos. _ Estão por aí; quase posso sentir._ e roncou novamente. O cativo já não chorava, nem soluçava; não fazia mais nenhum movimento; havia perdido os sentidos por causa da intensa tortura a qual tinha sido submetido, mas ainda estava vivo; os três seres ali sabiam disso e essa era a deixa para aquele que estava no corredor fazer o que devia sem ser visto pelo mortal.

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Uma forte lufada de ar entrou pelas janelas, bateu portas, janelas e telhas soltas nos cômodos espalhados pelo casarão antigo trazendo consigo gotículas de água pelo ar e o som de vozes que pareciam entoar algum canto gregoriano etéreo, se o mortal estivesse acordado não poderia escutar, nenhum mortal escutaria, mas os outros, todos, ouviram claramente; a chuva pesou sua mão sobre o lugar. Era o sinal. A porta se abriu tão rápido que as dobradiças não resistiram; soltaram-se das presilhas e ela voou pela sala acertando um dos dois torturadores. A porta se destruiu com o impacto, embora estivesse muito apodrecida e não foi o suficiente para causar dano algum; um vulto branco entrou na sala. Em princípio os torturadores pensaram se tratar de um homem, mas logo viram que não era um homem e sim outra coisa. O cativo estava sentado numa cadeira velha completamente amarrado, mãos para trás e pés também; o sangue lhe escorria pela face e pelo tórax manchando todas as roupas, e, se misturava com a água que entrava pela janela e por uma grande abertura no teto. Provavelmente eles estivessem apenas no começo da tortura. Um chicote luminoso, relâmpago, estalou no céu seguido do trovão. Um deles tentou correr; o anjo retirou a lâmina da bainha e um “Uff...” foi ouvido por todos quando a mesma se incendiou; um fogo vivo, dançante, amarelo quase dourado que iluminou a sala por um segundo. Ao ver aquilo, o que desejava correr roncou novamente numa atitude de desafio e o outro avançou. A espada cortou o ar deixando um rastro incandescente atrás de si como se ela

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mesma fosse um chicote dourado e quando acertou o inimigo uma pequena explosão iluminou novamente o lugar. O outro torturador tapou a visão momentaneamente com as mãos na frente dos olhos para não ser ofuscado pelo brilho. A micro-explosão liberou vestígios, faíscas, que pareciam vaga-lumes que ficaram no ar úmido pairando por alguns segundos antes de caírem como uma chuva luminosa e se apagarem completamente; o som também ecoou, reverberou nas paredes repletas de infiltrações, mofo e rachaduras e se desfez no ar instantaneamente tal como os trovões estavam fazendo do lado de fora. Pela janela da sala onde estavam era possível ver parte do elevado da Perimetral obscurecendo a rua e alguns galpões do porto. Aquele que foi acertado pela espada caiu desacordado imediatamente; o componente surpresa havia surtido o efeito desejado, ele tinha eliminado um dos oponentes antes mesmo que eles soubessem o que estava acontecendo e com isso igualado as chances agora que eram apenas um contra um. Enquanto isso o outro rosnou violentamente armando-se com um artefato de ferro serrilhado, enferrujado e sujo de sangue; do sangue da vítima. Eles se olharam por um longo segundo, não se moveram, nem respiraram. Seres como aqueles jamais se falavam, nem uma palavra sequer; eram completamente diferentes; extremamente opostos entre si, luz e sombras; e quando se encontravam a única coisa que ocorria era uma batalha como a que estava se desenrolando, mas ambos nasceram para fazer aquilo e nenhum arriscaria uma primeira investida; qualquer um deles tinha

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possibilidade de acabar com a peleja com um único movimento caso o outro vacilasse. A chuva lá fora pareceu dobrar e o vento voltou a açoitar os dois, as roupas que outrora eram brancas sacudiram timidamente em contraste com as roupas negras, e tão sujas quanto as suas, do outro. Ambos pareciam pessoas completamente normais, homens acima de quaisquer suspeitas, que poderiam estar resolvendo uma pendenga sem importância, mas não era esse o caso; eles eram soldados envolvidos na mais antiga das guerras; uma guerra que atravessava todas as eras sem previsão de acabar, não para eles. A única coisa que destoava da imagem era a espada cujas labaredas tinham se tornado quase translúcidas, mas ainda assim estavam lá. Provavelmente em diversos pontos do Rio de Janeiro as pessoas estivessem tendo problemas sérios por conta da chuva mais pesada do ano, mas nenhuma delas poderia imaginar nem em seus sonhos mais delirantes que a chuva tivesse qualquer ligação com uma batalha como aquela. Como o bater das asas de uma borboleta que poderia criar uma tormenta em algum lugar, assim acontecia quando do encontro de duas forças contrárias como eles e a natureza respondia encobrindo o conflito. Era muito mais comum do que parecia. Os olhos dos dois miravam-se como se houvesse uma força que os atraísse, a tensão parecia ter deixado o ar úmido tão espesso que a sensação era que a qualquer momento ele poderia ser tocado como a água que caia do céu. O tempo pareceu estar se esticando e o que foi na verdade um único segundo, se desdobrou, desdobrou e desdobrou como um espelho que reflete outro.

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Havia vozes pairando fantasmagoricamente no ar, misturando-se ao som da chuva; pareciam brotar das paredes ou do próprio oxigênio que enchia a sala; eram lamúrias, sussurros, gritos grotescos, animalescos; vozes, roncos, urros, risos, gargalhadas e berros medonhos; porém, medonhos apenas para qualquer mortal que os ouvisse, embora assim como o canto gregoriano etéreo que ainda soava contrapondo-se a toda aquela algazarra bizarra, nenhum ouvido mortal podia ouvir, exceto em momentos muito específicos. Por fim, o torturador sorriu de um modo tão demente e furioso como só mesmo um ser maldito podia fazer; ombros encurvados, a face desfigurada, os olhos injetados e vitrificados pelo ódio que lhe transparecia violentamente. A saliva escorreu pela boca no mesmo momento em que ele bateu seu instrumento de tortura contra a parede mais próxima, isso produziu um ruído metálico acompanhado pela gargalhada furiosa. Já o outro permanecia impassível, com um semblante áspero e duro, um olhar sóbrio, ombros eretos e imponentes; faltavam-lhe as asas. A lâmina da espada ganhou vida novamente quando o fogo dançou e recuperou a cor amarelo-dourado e ele piscou como se estivesse acordando de um transe. Tão rápido quanto seus corpos aquentaram, um avançou sobre o outro. Mais uma língua de luz fendeu as nuvens se transformando por milésimos de segundo num gigantesco garrancho elétrico nos céus e o trovão abafou todos os sons da cidade. A única testemunha humana que poderia relatar como se deu o desfecho daquele encontro estava ferida e desacordada; e,

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quando este despertasse, se despertasse, não haveria mais vestígio algum do que tinha sucedido ali. Ninguém jamais poderia imaginar que algo de tamanha magnitude tinha ocorrido bem no centro da cidade, porque a chuva tratou de encobrir tudo com seu manto.

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Amigo Íntimo Vou contar-lhes a história de minha melhor e mais recente aquisição. Getúlio era um homem muito bom em tudo o que fazia; estudado, culto, inteligente, perspicaz, simpático e sedutor. Trabalhou durante muito tempo visando chegar a um cargo de chefia e confiança na firma onde estava empregado, conquistou uma boa condição financeira pelo esforço que fez nesse tempo e pela procura continua de novos e melhores contatos, os quais mantinha sob controle constante. Trabalhava numa grande firma de corretagem de seguros e pretendia se tornar um consultor independente; já tinha tudo planejado, mas não só para isso; ele estava prestes a alçar sua vida para um patamar mais acima do que jamais sonhou. Sempre foi um estrategista e estava fazendo com que todas as áreas de sua vida ficassem a contento, movendo as peças certas nos momentos exatos. Tinha negócios por fora, de todos os volumes; pequenos, médios e grandes; mas um deles em especial, o mais recente, seria o equivalente a acertar numa loteria. Tratava as pessoas com tranqüilidade na mesma medida em que pensava em como poderia se utilizar delas em curto, médio ou longo prazo e embora não admitisse gostava de manipular as pessoas; dizia-se um não praticante de religião alguma, achava que todas as pessoas deviam ter um objetivo para alcançar, ele sabia muito bem quais eram os seus e fazia todo o possível para chegar lá no menor espaço de tempo; de fato, poucas vezes encontrei um homem que tivesse tanto equilíbrio com relação a si mesmo e tanta habilidade de manipular os

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outros em seu próprio benefício. Mas o que fez com que eu me aproximasse dele não foram as coisas que ele mostrava para todos ao redor e sim o que ele escondia. Foram suas outras características e habilidades. Conheço muitos homens e mulheres que são manipuladores, mas todos são também arrogantes, o que não era o caso com Getúlio; a arrogância sempre foi um problema para mim, mesmo podendo usá-la, mas meus amigos que a tem não podem ser aproveitados por muito tempo, eles sempre acabam metendo os pés pelas mãos e terminavam suas vidas de forma não muito digna; o potencial de alcance deles não era tanto assim. O que certamente não aconteceria com Getúlio. A primeira vez que encontrei com ele, eu estava em um restaurante acompanhando um de meus outros amigos; numa mesa próxima a de três homens bem apanhados com seus ternos escuros e suas gravatas listradas; fui surpreendido, se é que posso dizer que isso é possível, com aquele homem fazendo um discurso para dois amigos à mesa, enquanto saboreavam o almoço. Getúlio dizia: _ Dentro de dois dias vou ter a resposta. Um dos amigos perguntou: _ Sobre o quê? _ Sobre o negócio de que falei para vocês. O outro disse: _ Você acha que vai dar certo? _Está tudo bem arrumado, tenho certeza de que vai dar certo; esse é o negócio da minha vida. Ele sorriu mostrando seus dentes brancos como teclas de marfim num piano e recostou-se na cadeira, tomou um gole de cerveja.

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Cheguei mais perto; mas nenhum deles me viu; continuaram conversando. Um dos amigos perguntou mais uma vez: _ De quanto dinheiro estamos falando aqui? _ ele estava curioso. Gosto de ver a curiosidade das pessoas. Getúlio terminou seu gole e inclinou-se sobre a mesa, falou relativamente baixo para que o som do ambiente e das demais pessoas presentes no local escondesse suas palavras: _ É o maior negócio do ano, não conheço nenhum relato de que uma pessoa física tenha feito algo com o mesmo volume de dinheiro, geralmente são as empresas que fecham transações tão grandes, mas eu consegui contatos no último ano que me levaram a conhecer pessoas e clientes privilegiadíssimos, alguns dos quais desejavam adquirir informações preciosas sobre um tipo de procedimento e sobre a situação financeira de algumas firmas que são clientes da seguradora onde trabalhamos. Ele parou por um momento e olhou ao redor, mas novamente não me viu ali tão perto. Continuou falando: _ Como eu tinha acesso as contas da seguradora, para conferencia de dados, verificação e consulta de informações se necessário fosse; uma das prerrogativas do cargo que ocupo; juntei “a” mais “b”. Forneci algumas informações importantes tomando o cuidado de não revelar muito sobre os clientes da seguradora e não expô-los demasiadamente antes do tempo. Foi o que desencadeou a curiosidade dos empresários que conheci, eles estavam em vias de iniciar um processo de fusão de suas empresas, e paralelamente a isso desejavam comprar empresas menores para agregarem ao seu patrimônio, mas não

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estavam conseguindo ter certeza de quais empresas do ramo deles estava em boas condições para serem adquiridas. Foi aí que eu entrei; revelei um pouco sobre duas firmas que eu tinha certeza de que cairiam como uma luva para as pretensões deles e me ofereci para prestar toda a consultoria no negócio caso eles aceitassem, por uma comissão justa, é claro. Olhei para um dos amigos dele e vi que estava em dúvida; perguntou: _ Mas você vai fazer um negócio por fora? E a seguradora? Logo vi que os dois outros também trabalhavam na seguradora. Getúlio respondeu. _ Não se preocupem, já pensei em tudo; a firma compradora vai abrir uma conta na seguradora e passar a ser cliente assim como as duas que serão compradas, isso vai ser um ganho monumental de ativos para a seguradora. Todo mundo ganha. Eu achei aquilo tudo muito esperto da parte de Getúlio, fazer uma manobra primeiro se aproveitando das informações da empresa onde trabalhava para uso próprio e em seguida usar o status alcançado com a manobra junto aos empresários compradores para favorecer a seguradora, assim se alguém da seguradora descobrisse que ele usou as informações em benefício próprio não poderia fazer nada com ele, pois que por causa daquele ato antiético a seguradora iria lucrar milhões. E ele, Getúlio, teria seu quinhão na jogada. Muito perspicaz. _ E quanto você vai receber?_ Perguntou um dos amigos que tinha acabado de tomar um gole da cerveja que estava no copo a sua frente. _ Só pela assessoria inicial junto com um bônus pelas informações extra-oficiais eles me pagaram quinhentos mil reais.

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A boca dos dois amigos quase bateu sobre a mesa, achei a cena bem engraçada; o dinheiro fascina as pessoas. _ Depositaram o dinheiro todo de uma vez ontem. Os outros dois piscaram antes de se recuperarem da notícia e finalmente um deles disse: _ É muita grana! Getúlio partiu para o golpe de misericórdia. _ E não é só isso, assim que o negócio for concluído, o que deve acontecer em dois dias no máximo, eu vou receber mais quinhentos mil reais a título de comissão no negócio. _ Um milhão de reais!_ exclamou um dos amigos se rendendo a genialidade de Getúlio. O outro perguntou: _ O que falta para a conclusão do negócio? _ Apenas algumas assinaturas e coisas do tipo; sabe como é; negócio de papelada, agora é a hora dos burocratas desempenharem seus papeis. O dinheiro já foi pago às empresas que serão compradas e a seguradora já tem a conta multimilionária que tudo isso rendeu. Como eu disse, todo mundo ganha. Eu fiquei ali ouvindo a conversa mais algum tempo e ele disse que o volume de dinheiro na negociação passava dos cem milhões de reais. _ Me parece que o valor total vai ser de trezentos e cinco milhões de reais, mas não posso confirmar esse valor._ disse Getúlio sorrindo. Não se precipitem em julgá-lo, eu disse que ele era uma pessoa muito boa no que fazia; além do mais, esqueci de mencionar que ele era uma pessoa ambiciosa também e fazia todo o possível para estar no lugar certo na hora certa. Foi o que

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aconteceu, e ele soube aproveitar a oportunidade quando esta se apresentou; como já disse, eu gostei muito desse rapaz, mas não podia me aproximar muito dele, não ali, porém algo me dizia que nós íamos ser muito íntimos em breve. Então continuei a segui-lo. Todos os dias antes de ir para casa após o trabalho Getúlio costumava visitar um lugar em especial, mas vou falar disso depois. Ele não era casado, mas era noivo há quase oito anos, não tinha filhos. Sua noiva era uma bela mulher que o amava, vi isso nela logo que a conheci, mas estava perdendo as esperanças em casar. Diana era seu nome e a vi pela primeira vez no mesmo dia em que conheci Getúlio no restaurante; fiquei esperando por ele na saída do prédio onde ele trabalhava, já imaginava que um homem como aquele tinha mais segredos e resolvi investir um pouco do meu tempo em desnudá-los, só por diversão. Getúlio se encontrou com Diana naquela noite e eu estava por perto; estávamos num shopping muito luxuoso, coisa de quem tinha dinheiro para gastar. A noiva caminhou o tempo todo ao lado dele enquanto entravam nas lojas para comprar coisas de muito bom gosto; um terno novo, calças e camisas esportivas, relógios de grifes, tênis e coisas assim. Finalmente pararam para um lanche e enquanto ele foi fazer os pedidos, me aproximei sorrateiramente para falar com a moça. Algumas vezes faço isso, mas é bem raro. _ Boa noite. _ disse eu _ Pode me informar que horas são, por favor?

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Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e em seguida olhou o relógio de pulso, bonito, mas não era nem caro nem original; e me respondeu: _ Nove e meia. _ Ela disse e se virou para o lado de onde Getúlio vinha com alguns lanches. _ Estava falando o que aí sozinha? _ perguntou ele. _ Uma mulher me perguntou as horas. Ele não fez caso com aquilo, nem percebeu que não havia mulher alguma perto deles, mas eu continuava lá ouvindo. Percebo coisas pela voz das pessoas e a voz da moça falou muito sobre ela, assim como seu jeito, não vem agora ao caso contar as impressões que tive, mas posso adiantar que ela não possuía muito o que ser usado por mim. Diana praticamente idolatrava o noivo, um pecado sem dúvida, mas quem liga para isso. Todos temos nossos pecadinhos. Ela não sabia nada sobre a grande quantidade de dinheiro que ele tinha acabado de receber em sua grande jogada na empresa e tampouco sabia que ele estava tentando decidir se largava ela ou não; já vou contar como descobri isso; antes, porém, devo dizer que Diana era uma mulher capaz de chamar bastante atenção pela beleza, era inteligente também, mas na cabeça de Getúlio havia uma dúvida; ele não sabia se ela era o tipo de mulher que um padrão de vida muito mais elevado, como o que ele pretendia ter, pedia. Diana não tinha muitas ambições, tirando o casamento, ela queria pouca coisa, ela era bem sucedida também, mas como já estava praticamente estabilizada na vida profissional e financeira; nada que se comparasse com os quinhentos mil reais do noivo, mas recebia bem. E tudo o que queria naquele momento era uma união matrimonial.

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As vezes fico me perguntando por que algumas mulheres tem essa idéia na cabeça, costumo observar as pessoas e ainda vejo muitas mulheres com esse desejo; algumas escondem muito bem, até de si mesmas, mas outras desejam o casamento mesmo que signifique não dar certo no futuro. A sociedade atual já não cobra tanto essa formalidade para reconhecer um casal. Mesmo assim Diana é dessas que deseja passar por essa etapa da vida como um ritual de afirmação social e pessoal. Certamente não seria com aquele noivo. Eles continuaram conversando, mas não houve mais nada de interessante na conversa com Diana; ele disfarçava muito bem e falaram de coisas sem a menor importância o tempo todo até que saíram do shopping e foram cada qual para sua casa. A moça tinha seu próprio carro o que me frustrou um pouco, pensei que ele a fosse levar em casa, pois isso talvez me permitisse conhecê-la um pouco mais e descobrir seus segredos. Resolvi deixá-la ir sem segui-la nem marcá-la; não era meu tipo de mulher e, afinal, eu tinha de continuar com ele; estava com a sensação de que Getúlio logo me notaria por perto. Quando ela, Diana, saiu com o carro pela rua, vi que estava frustrada e triste, cumprimentaram-se rapidamente com um beijo quase totalmente frio; talvez ela pensasse que era apenas uma fase ruim do noivado e que logo ia passar; certamente ela ia tentar fazer mais esforço para agradar ao noivo e ver se conseguia reascender o relacionamento que parecia estar ruindo. Talvez eu a poupasse de todo esse trabalho. A essa hora me pergunto o que vocês devem estar pensando de Getúlio, mas vejam, uma pessoa normal age desse modo e ele era uma pessoa normal. Aliás, a culpa é minha, esqueci de

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dizer que ele era um pouquinho velhaco, mas quem nunca enganou alguém na vida. Antes de se encontrar com Diana ele me levou, sem saber é claro, para conhecer a menina dos seus olhos; Tatiana, uma universitária que trabalhava como estagiária na seguradora. Era com ela que Getúlio sempre se encontrava após o trabalho já fazia alguns meses e sempre. Ela, ao contrário da noiva, estava sabendo de toda a jogada de Getúlio, ficara tão impressionada com ele quanto os outros dois amigos para os quais ele tinha revelado a estratégia no almoço. Tatiana caiu na teia dele tão facilmente que nem se preocupou quando ficou sabendo que ele era noivo, algumas colegas dela ficaram sabendo do relacionamento deles e alertaram dizendo duas coisas: Primeira; ele era noivo e segunda; ele já tinha se envolvido com muitas das mulheres que trabalhavam na seguradora antes da chegada da nova estagiária. Ao sair do prédio da firma onde eu o esperava, Getúlio foi caminhando até a esquina mais em frente, eu o acompanhei, lá estava Tatiana parada aguardando; ele a beijou, um beijo quente e longo. Caminharam até o estacionamento onde pegamos o carro dele e saímos; eles dois e eu. _ E então? _ Disse Tatiana_ Quando você vai acabar com a outra?_ Mais tarde percebi que se tratava de Diana que ela falava. Getúlio ao volante parecia estar eufórico ou excitado, não sei bem a diferença. Ele disse: _ Hoje vou me encontrar com ela, mas creio que só amanhã é que vou acabar nosso relacionamento; aí fico só com você.

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Incrivelmente, ele estava dizendo a verdade. Eu podia ver claramente a volúpia entre eles; aquilo estava melhorando a cada momento. _ E porque não acaba tudo de uma vez hoje? _ Ela era rápida no gatilho, decidida; gostei dela. Quem sabe eu não fizesse uma visita a ela no futuro; coloquei o nome dela na minha lista. Olhei para ele, não houve sentimento algum no que ele disse. _ Não é assim; são sete anos e uns quebrados de noivado, não posso terminar com ela dessa forma, seca, como você quer; vou levá-la para sair, vamos conversar e eu penso em alguma coisa, mas tenha a certeza que de amanhã não passa. Estão vendo; ele tinha virtudes também, aliás, muitas; mas o mundo sempre tira o pior das pessoas. Ele não queria que Diana sofresse mais do que o necessário num rompimento como aquele, já não sentia absolutamente nada pela noiva; como eu pude constatar visualmente no shopping. Tatiana atirou novamente, agora em outro alvo: _ E quanto ao negócio? Ele sorriu; era uma reação involuntária. Sempre que lembrava do dinheiro em sua conta bancária sorria. _ Depositaram ontem. _ Que ótimo!_ ela disse sorrindo também. _ Tudo está saindo como o planejado. Notei que ele escondeu algum detalhe, mas logo ficou claro. “Estou rico!”_ Getúlio pensou em dizer, mas não disse. Ele pensava também em tudo o que poderia fazer com todo aquele dinheiro, tudo o que ia conseguir, tudo o que ia realizar; afinal de contas era um total de um milhão de reais. Que pessoa não começaria a delirar se tivesse uma quantia como essa a sua disposição?

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Vi que ele ia se desligar da seguradora e trabalhar com sua própria consultoria; também pretendia fazer algumas viagens e pensava em levar Tatiana, só então traçaria o resto de seus novos objetivos. Eles chegaram a um apartamento que ele tinha alugado, momentaneamente, enquanto passava pelo processo de mudança; ia sair do seu velho apartamento para um melhor; sua noiva não fazia idéia disso, nem seus dois amigos sabiam também, só Tatiana. Esse era o lugar para o qual ele sempre ia após o trabalho. Lá eles permaneceram por algum tempo com um pouco mais de privacidade e muito mais intimidades; não preciso descrever o que houve, creio que todos já devem saber, afinal eu falei a pouco sobre volúpia. Entenderam? Havia um aquário no quarto onde eles estavam, digamos, se divertindo; muitos peixes coloridos numa água azulada com enfeites, bolhas por toda parte e uma luz fluorescente sobre o aquário. Fiquei ali vendo a vitalidade dos peixes, não me interesso pela necessidade que as pessoas tem de se envolver fisicamente. Resolvi dar meu cartão de visita; toquei a água e aguardei. Quando eles terminaram Tatiana se virou para ele e falou em tom de brincadeira: _ Os peixes do seu aquário estão mortos. Eu sorri; eles não me viram. Getúlio olhou o aquário, ele tinha certeza de que os peixes estavam vivos no dia anterior, e de fato estavam vivos até minutos antes. _ Estavam vivos ontem._ disse tentando se lembrar se estavam mesmo.

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_ Você tem que cuidar mais de suas coisas._ ela emendou. _ Depois compro outros. Dinheiro já não era mais problema. _ O que achou da arrumação nova do apartamento? _ ele mudava as coisas de lugar constantemente e vez por outra perguntava pra ela o que ela achava. _ Maravilhoso._ ela respondeu. _ Mas é uma pena que eu tenha que ir embora agora, talvez ainda consiga pegar as aulas de depois do intervalo na faculdade. Ela se arrumou enquanto Getúlio chamou um táxi pelo telefone. Quando Tatiana saiu foi ele quem se arrumou, afinal tinha um encontro no shopping com Diana. Vocês já sabem o que aconteceu lá. Quando voltamos não formos para o apartamento onde ele havia ficado com Tatiana, mas sim para o que ele morava até então o qual estava se mudando, ia entregar o imóvel no fim da semana, era o que estava planejando. Tudo no apartamento já estava previamente preparado e encaixotado, exceto algumas poucas coisas como roupas e alguns eletrodomésticos da sala e da cozinha que ele desejava embalar apenas no dia em que fosse sair do domicílio. Enquanto Getúlio telefonava para um dos amigos de firma; um daqueles que tinham almoçado com ele, e contava como foi seu envolvimento com a estagiária Tatiana, a fim de aumentar sua reputação com os amigos e até mesmo com as outras mulheres da empresa; eu fiquei por perto olhando tudo o que ele possuía. Para ser sincero, é bem difícil encontrar uma pessoa como Getúlio, uma pessoa com bastante potencial para ser explorado e as características certas para algo como eu usar em meu favor. Suas relações frívolas com os amigos, conhecidos e

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amantes podiam ser usadas para mim; assim como sua vontade desmedida de alcançar o sucesso. Percebi que usando aquele homem eu poderia alcançar e atingir um número considerável de pessoas das formas mais variadas; só aquele pensamento já era o suficiente para me impelir a permanecer na vida dele e assim o faria. Como eu disse no início da história, Getúlio era um homem muito bom em tudo o que fazia; assim como eu; ele não era um bandido, não era um monstro, nem era maligno como eu, mas seu potencial de alcance e destruição era infinitamente superior a todos esses outros, pois as pessoas não desconfiavam dele, e, eu usaria esse potencial explorando ao extremo todas as suas características mais notáveis, justamente as que me chamaram a atenção nele. Sou capaz de captar e identificar pensamentos, impressões e sentimentos ocultos que as pessoas mantém no seu íntimo ou mascaram e usá-los das formas mais terríveis; com o tempo eu saberia tudo sobre ele e sobre todas as pessoas que faziam parte de sua vida, poderia invadir a vida dessas pessoas através dele e transformá-las num completo caos. Há uma miríade de possibilidades. Homens geralmente procuram dinheiro, mulheres e poder; Getúlio já tinha dinheiro e mulheres, eu lhe daria poder. Ele ainda não havia me notado por perto, mas com o tempo isso ia acontecer. O fato era que resolvi conviver definitivamente com Getúlio e decidi que a partir daquele dia seriamos grandes amigos.

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Morlock A água fedia tanto que em outros tempos ele poderia até mesmo vomitar caso simplesmente chegasse perto de um esgoto como aquele. Os lixos flutuavam sobre a superfície escura, espessa e pegajosa das águas que vinham dos encanamentos de esgotos sanitários e caixas de gordura de muitos pontos da cidade trazendo todo o tipo de detritos; desde dejetos humanos, passando por lixo doméstico como cascas de frutas, legumes e verduras em todos os estados de apodrecimento; pacotes e caixas de comidas e guloseimas infantis, tais como biscoitos, e doces variados, até papéis, tecidos, garrafas pet, pilhas, baterias, cartazes destruídos de propaganda política e sacos de mercado vazios ou cheios de lixo, pedaços de móveis destruídos e como se não bastasse tudo aquilo, ainda tinha os retos decompostos ou semi-decompostos de animais. Muitas pessoas costumam jogar seus animais domésticos mortos, devidamente ensacados, como se o saco envolvendo o corpo do animal fosse algum tipo de substância capaz de dar sumiço ao cadáver. Jogavam seus bichos em valas ou esgotos; outros eram abandonados nas ruas e com as chuvas e as enchentes produzidas por elas eram trazidos para os encanamentos e galerias subterrâneas onde Ciro vivia já fazia dez anos. Ciro se ergueu do meio das águas fétidas como se fosse um morto retornando à vida, o que em parte era verdade. A galeria de esgoto estava completamente às escuras, não havia nenhuma réstia de luz que pudesse penetrar naquele lugar e era por esse motivo que Ciro preferia viver ali.

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A galeria era bem abaixo da rua, localizada num pondo longe dos bueiros e bocas-de-lobo ou de qualquer tipo de saída para a superfície, porém o local era constantemente inundado e recebia todos os restos de tudo que a humanidade poderia produzir na cidade acima. A escuridão não era um problema para Ciro, já estava tão acostumado com aquilo que enxergava tão perfeitamente como se o ambiente estivesse iluminado; seus olhos eram adaptados para as sombras e por isso ele quase não subia à superfície porque só podia fazer isso durante a noite e mesmo assim os letreiros luminosos, as luzes dos postes de iluminação, faróis dos carros e toda e qualquer fonte luminosa o incomodava muitíssimo. Seus olhos doíam tanto que quase não conseguia mantê-los abertos quando num ambiente claro por mais tênue que essa claridade fosse; e também por esse motivo, principalmente, ele ficava dias, semanas, às vezes meses sem sair de sua toca sombria e úmida. Preferia assim, mas havia somente uma coisa capaz de fazer com que ele abandonasse seu buraco lúgubre. A fome. A fome era algo tão violento que por si só já era o suficiente para lhe roubar a sanidade que ainda tinha restado desde que passara a viver como uma espécie de demônio, condenado àquele tipo de existência sem sentido e torturante. Quando Ciro era acometido por aquele sentimento profano, não tinha escolha a não ser deixar seu buraco apodrecido e subir à superfície a fim de conseguir aplacar a vontade de ingerir alimento. Fazia muito tempo que ele já não se considerava mais uma pessoa, sabia que não era humano e nem se parecia mais com um.

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A força da fome o transtornava e a única saída era solver uma vida por inteiro para que seu espírito e, por que não dizer, sua carne doente se aquietassem. Ele já estava acostumado, mas detestava ser dominado por tal animalismo, por isso preferia aguardar o máximo que pudesse antes de subir para consumir alguém, afinal, era extremamente complicado achar uma pessoa que estivesse em condição de ser atacada sem deixar vestígios. Desse modo ele saía apenas quando já começava a sentir os efeitos iniciais da devastadora fome, mas antes que ela tomasse o controle absoluto. Ciro nunca soube exatamente como sua vida tinha decaído até aquele patamar terrível; dez anos antes, quando ele acordou num bueiro não tinha certeza de como fora parar lá. A única lembrança que ainda tem de antes daquela noite foi um acidente com seu carro numa noite chuvosa. Ele lembrava-se de ter derrapado, perdido a traseira e a direção do veículo, e sem conseguir recuperar o controle do automóvel, bateu contra a proteção que se rompeu e foi parar dentro de um canal que estava cheio; lembra de ter quase se afogado, estava bêbado e drogado; mas foi retirado de dentro do automóvel por alguém que ele não viu; apenas sentiu ser puxado com muita violência. Nesse processo fraturou vários ossos, e a dor foi o suficiente para fazer com que perdesse os sentidos, provavelmente ele não sobrevivesse aos ferimentos se uma coisa não acontecesse. Uma coisa que ele ignora até hoje em dia, mas que já não faz assim tanta diferença; aparentemente Ciro morreu dias depois e o que restou foi uma espécie de simulacro malévolo no lugar. Era assim que ele se via desde então. Ele sentia como se ainda estivesse vivo, pensava como se ainda estivesse vivo, dormia como se ainda estivesse vivo e até

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sonhava como um vivo, mas sabia que já não estava totalmente vivo. Ciro não conseguia chorar, nem uma gota sequer, já tinha tentado, mas aparentemente era impossível e, além disso, aquela fome brutal e lancinante jamais seria igual a uma fome comum. Ao acordar algum tempo depois do acidente ele já não se sentia o mesmo; seu pescoço estava dilacerado, assim como seus pulsos; havia marcas e cortes por todo o corpo, mas não havia sangue algum sendo vertido ou nas proximidades; sentia um frio sepulcral no corpo inteiro; sua pele antes morena e rígida estava esbranquiçada e flácida ao extremo; seus cabelos negros e volumosos resumiam-se a pequenos tufos desgrenhados espalhados sobre uma cabeça com inúmeras feridas, tinha perdido quase toda a vasta cabeleira; e seus olhos castanhos estavam sem cílios e sem coloração alguma, mas aquilo não era tudo. O pior ainda estava por vir. Ele pensou que fosse morrer, mas ao invés disso o que ocorreu foi uma bizarra metamorfose que o tornou uma espécie de morto vivo. Certa vez ao subir à superfície para conseguir alimento Ciro vagou pelas ruas durante a madrugada em busca de um homem ou uma mulher que pudesse atacar e arrastar para seu mundo inferior, mas antes que isso acontecesse ele se viu refletido numa janela de um automóvel e a visão foi tão aterradora; o monstro no qual havia se transformado era tão infernal que a única reação foi uma explosão de ira que culminou com a destruição de todos os vidros e espelhos do carro. Naquele momento Ciro decidiu nunca mais se olhar novamente em qualquer vidro ou espelho que fosse, parte por medo de ver que a cada vez estava se transformando numa besta mais e mais hedionda e parte porque aquilo desencadeava

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nele uma fúria tão terrível quanto a fome que o tentava controlar. Ciro se tornou um ser tão horripilante que uma simples olhada para sua imagem seria o suficiente para inutilizar uma pessoa comum. Foi nesse momento que ele se lembrou de um livro que tinha lido quando ainda era uma pessoa comum em seus áureos anos de vida na superfície, antes dos vícios, antes das loucuras e orgias, antes do acidente na noite chuvosa que foi o crepúsculo de sua vida. O livro escrito pelo britânico Herbert George Wells chama-se “A máquina do tempo”; o único livro que já lera na vida. No livro, uma raça de seres monstruosos, repulsivos e canibais habitava os subterrâneos num futuro distante, se alimentando de pessoas, exatamente como Ciro estava condenado a fazer. Atualmente Ciro era apenas uma sombra, uma forma decadente do que antes fora um ser humano; uma prova de que o caos poderia reivindicar vidas alheias aleatoriamente para fazer o que bem entendesse; um lembrete de que um mal insano caminhava sobre a terra recrutando e ou arrebatando almas para suas fileiras ou para seus bestiários particulares. Seu corpo agora era coberto de feridas purulentas não curadas ou cicatrizadas, seus dentes agora eram presas enormes e pontudas em contraste com os lábios e gengivas ressequidas, o hálito era tão terrível quanto o fedor do esgoto no qual vivia, suas unhas eram prolongações afiadas de dedos alongados e esqueléticos, e, tudo aquilo ainda podia piorar. A metamorfose parecia não ter fim. Ele estava sentindo aquela pontada de dor que caso não fosse saciada rapidamente explodiria na fome compulsiva que era cada vez mais arrebatadora; não podia permitir que isso

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acontecesse, pois era muito difícil retomar o controle depois; da última vez tinha demorado uma noite inteira. Ergueu-se no meio do esgoto e caminhou pela escuridão por entre o emaranhado de galerias e túneis abaixo das ruas, como se fosse apenas um vulto errante; tomou o cuidado de evitar túneis abaixo de ruas muito movimentadas onde as tampas de bueiro pudessem ser facilmente abertas. Ele já sabia como se movimentar sob a cidade, evitava várias galerias e cortava caminho por outras; nos quase dez anos se movendo sob a as ruas e avenidas, atacando pessoas desavisadas ele tinha criado uma espécie de mapa mental de toda a cidade e conseguia se localizar tão bem como se tivesse uma bússola. Quando se aproximou da rua conseguiu ouvir os sons característicos do trânsito fraco lá encima, ele já não tinha mais a noção de horários, mas procurava caçar o mais tarde possível. Os túneis mais largos tinham ficado para trás, ele rastejava por manilhas apinhadas de sujeira e lama; sabia muito bem aonde aquele caminho ia levar. Sua respiração estava ofegante e por fim achou o lugar de saída. Uma tampa de ferro batido em forma arredondada, enferrujada por baixo e que tinha sobre ela a inscrição “águas pluviais” na parte frontal; ela era a única numa pequena rua sem saída e sem iluminação também; parte das luzes dos postes tinham sido destruídas por vândalos e a outra parte simplesmente não funcionava, descaso. Pouco importava, a única coisa certa era que aquele descaso custaria o sangue de alguém. Ciro levantou a tampa sem fazer esforço, ignorando o peso que necessitava de dois homens para removê-la, olhou ao redor, não havia ninguém. Se arrastou para fora do bueiro como uma anomalia que a terra estivesse regurgitando de suas entranhas,

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um fantasma que logo desapareceria e com ele uma vida inocente, se é que isso existia. Não demoraria muito para que alguém desavisado cruzasse o seu caminho e se arrependesse para sempre; Ciro saiu em busca da vítima daquela noite e ficou em estado de alerta e ataque. Ao longe vinha alguém; pobre pessoa, a vítima jamais poderia imaginar que naquela noite teria um encontro marcado com a pior criatura que podia existir.

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Minutos decidem uma vida Valdo saiu da estação do trem e caminhou o mais rápido que pôde para pegar o ônibus, estava atrasado e tinha de chegar ao emprego a tempo de participar de uma reunião com a gerência financeira. Era uma reunião de suma importância para todo o departamento e principalmente para ele. Valdo trabalhava como supervisor em uma empresa de assessoramento financeiro e era um bom profissional, entretanto, sua equipe estava deixando a desejar nos últimos meses e agora ele vinha recebendo pressão dos superiores; a equipe estava com um rendimento muito inferior às demais equipes da firma e esse desempenho vinha piorando a cada mês. Ele tinha tentado de tudo para melhorar o nível de motivação do grupo, mas tudo parecia não fazer efeito algum mesmo com seus colaboradores aparentemente dando o máximo de si. Na última reunião da gerência do departamento financeiro ele havia recebido um ultimato. _ Você tem três meses para melhorar o desempenho da sua equipe Valdo._ Foi o que disse Antônio, o gerente assistente, responsável por ele, em um tom velado de ameaça._ Seu gráfico pessoal de desempenho está péssimo. O supervisor Valdo entendeu prontamente o que seu superior estava dizendo, tratava-se de uma mensagem terminal. Ou Valdo melhorava a performance de seu grupo ou perdia o emprego. Simples assim. Porém os três meses de prazo tinham acabado sem que a coisa mudasse de figura, e não era por falta de tentativa do supervisor, ele havia feito praticamente tudo em seu poder para

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mudar a forma e o rendimento do seu time, mas não adiantou mais uma vez. Por um momento ele pensou estar sendo vítima de uma espécie de complô, mas logo abandonou essa idéia porque não tinha cabimento uma coisa daquela. Ele procurava ser um supervisor com mente aberta e sempre dava abertura para todos de sua equipe falarem tudo aquilo que pensavam, dava espaço para as pessoas interagirem bastante e respeitava-os; por vezes Valdo era confrontado por outros supervisores pela forma quase paternalista como agia e com a qual conduzia sua equipe. No começo os resultados vieram e o grupo dele se destacou, mas de repente a coisa começou a sair do rumo. Ele organizou pequenas reuniões para saber o que estava acontecendo, mas seus colaboradores diziam estar fazendo todo o possível para alcançar as metas Valdo conferiu os indicadores de rendimento aos quais ele tinha acesso e tudo parecia ir razoavelmente bem; o que não vinha acontecendo de fato. Não havia outra coisa a fazer que não fosse bancar o prejuízo diante de seus superiores e principalmente com Antônio seu atual gerente financeiro e que queria sua cabeça já fazia alguns meses. Valdo e Antônio foram promovidos a supervisores praticamente juntos e trabalharam assim até um ano atrás quando o processo seletivo para gerente assistente do setor financeiro abriu. As equipes de ambos eram extremamente competitivas, funcionavam em igualdade de condições e eles dois também possuíam características bem similares exceto pelo estilo de trabalho com relação aos colaboradores. Enquanto Valdo era um pouco mais brando, Antônio era bem mais rígido, não chegava a ser um tirano, mas cobrava de uma

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forma bastante veemente; deixava claro o seu ponto de vista e exigia que as coisas acontecessem a seu modo. Mas certamente era um excelente profissional também. Valdo perdeu a vaga para Antônio que passou a ser o gerente assistente responsável por organizar um grupo de supervisores dentre os quais Valdo que continuou trabalhando com sua equipe e alcançando as metas estabelecidas e os resultados esperados. A relação competitiva, porém respeitosa que eles, Valdo e Antônio, tinham quando eram ambos supervisores passou a ser muito turbulenta quando um novo processo seletivo interno foi aberto e o nome mais cogitado para assumir o novo posto de gerente assistente foi o do supervisor Valdo. A empresa trabalhava com o conceito da meritocracia. Isso por si só não seria o suficiente para inquietar Antônio até que este descobriu que Valdo assumiria o comando e a organização de um grupo pouco maior de supervisores, o que na mente de Antônio poderia dar ao seu rival uma visibilidade maior caso ele fosse bem sucedido. Antônio sabia da capacidade de Valdo; tinha certeza de que ele daria conta do recado e corria um boato de que ao final daquele ano uma nova oportunidade poderia surgir para um cargo mais acima na pirâmide da empresa. O gerente assistente não pensou duas vezes, estava trabalhando já há muito tempo ali para chegar àquele posto e não poderia permitir que Valdo fosse o escolhido. Resolveu eliminar a concorrência. A partir daquele momento passou a acompanhar a equipe de Valdo com muito mais interesse e começou a dar um “jeitinho” para que os indicadores deles não fossem tão bons quanto vinham sendo até então. Antônio manipulou alguns números,

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sabia que Valdo não os contestaria por ser uma pessoa que acreditava nas medições trimestrais da empresa, o supervisor não tinha motivos para desconfiar, mesmo de Antônio, e não imaginaria que este chegaria tão baixo por uma disputa profissional. Não era nada pessoal, só negócios. Havia uma fila grande no ponto para embarque no ônibus e Valdo estava se aproximando dela quando foi parado por um mendigo; um morador de rua se preferir. _ Você pode me dar um trocado?_ perguntou o homem negro que estava logicamente muito sujo, com as roupas rasgadas, cabelos ensebados e desgrenhados. Valdo enfiou a mão em um dos bolsos do paletó, pensou ter colocado algumas moedas ali, mas não tinha nada. Ele lembrou que tinha devolvido as moedas para a carteira logo que pagara a passagem do trem que tinha tomado antes. _ Não tenho._ respondeu. O Mendigo estava a sua frente e não pareceu se dignar a sair daquela posição. _ Um real._ Disse o homem. Valdo tentou evitá-lo, a fila de embarque no ônibus começou a se mover. Não era do feitio dele ignorar pessoas, mas tinha de fazer isso, não podia chegar atrasado à reunião ou Antônio ia ter tudo o que desejava. _ Não tenho._ disse e foi saindo em direção a fila. As pessoas estavam entrando no ônibus e ele estava a uma rua de distância. Tinha que atravessar a rua para chegar ao ponto de ônibus. O mendigo não se deu por vencido. _ Então me dê cinqüenta centavos. Só cinqüenta centavos! A paciência de Valdo estava por um fio; já podia ver o sorriso na face do gerente assistente quando ele dissesse para os outros

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supervisores que Valdo estava sendo desligado da empresa por não ter alcançado suas metas e por também não ter aparecido na reunião de ajuste trimestral. _ Eu não tenho!_ Valdo disse a frase com um tom de voz já alterado._ Preciso ir. As pessoas estavam quase terminando de embarcar. Não havia outro ônibus no ponto; caso perdesse aquele teria de esperar vinte minutos que somados aos outros vinte minutos de trajeto seriam quarenta minutos desastrosos. Mais o tempo que teria de aguardar o elevador quando chegasse ao prédio da firma. Não queria nem pensar; tinha de pegar aquele ônibus de qualquer jeito. Tentou correr ignorando completamente o pedinte e de olho nas pessoas que subiam pela porta frontal do veículo do outro lado da rua; faltavam três pessoas apenas, o coletivo já estava lotado, não havia mais lugar para ninguém seguir viagem sentado, e quase já não tinha para os que iam de pé. O Homem segurou Valdo pelo braço numa atitude audaciosa, não o deixando prosseguir. _Por favor, me dê uma ajuda._Suplicou._ qualquer ajuda serve. O homem segurava forte e com as duas mãos na manga do paletó de Valdo que notou os dentes amarelados do mendigo quando este falava. Todos já tinham embarcado no ônibus e agora era o motorista quem tomava assento atrás do volante. Valdo teria de correr como um lunático se quisesse ainda pegar aquele coletivo, mas não podia se dar ao luxo de perdê-lo. Gostava do que fazia da vida, trabalhava numa boa empresa e tinha certeza de que se chegasse a tempo de participar da reunião poderia argumentar com Antônio e tentar prolongar um pouco mais seu período na

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firma, sua carreira permitia um voto de confiança e todos lá diriam o mesmo a seu respeito, até mesmo Antônio tinha que admitir, além do mais, Valdo sabia que seu nome estava sendo cogitado para ocupar o cargo de gerente assistente logo que o processo seletivo interno fosse reaberto, e aquela informação tinha sido confidenciada por uma fonte de dentro do departamento. Tinha de chegar lá, sua vida dependia disso. O mendigo não largava sua manga, Valdo fez força e notou algumas pessoas olhando ao redor; o homem continuava pedindo e pedindo, como se não houvesse mais ninguém ali que pudesse ajudá-lo. _ Me deixa!_Valdo disse. _ Preciso de uns trocados._rebatia o outro. Talvez aquele mendigo fosse algum viciado, alguém que já não conseguia mais viver sem ter de se drogar; havia uma epidemia de crack sendo disseminada nas ruas das grandes cidades, o Rio de janeiro não era diferente das outras, muito pelo contrário. E mesmo que lhe doesse pensar aquilo de uma pessoa, não podia ignorar o fato. Temeu por sua vida durante um momento, não sabia o que aquele homem estava disposto a fazer para conseguir o dinheiro do qual falava. A porta do ônibus estava fechada e o motor ligado. _ Você quer viver então me dê um trocado._ O mendigo estava com os olhos vidrados nos de Valdo, não pareciam olhos de uma pessoa sob o efeito de qualquer droga, ao contrário, pareciam olhos perfeitamente lúcidos e limpos, eles contrastavam com a aparência do pedinte. Valdo lutou o quanto pôde para se desvencilhar do homem, entendendo aquelas últimas palavras como uma ameaça, mas não foi possível, ele era forte demais, mesmo com a aparência

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frágil e magricela, não largou a manga do paletó até que quando Valdo já estava desistindo foi surpreendido. _ Pode ir então._ Disse o mendigo numa voz impassível. Valdo não pensou duas vezes, correu atravessando a rua gritando para o motorista do ônibus que já tinha dado a partida. _ Espere! _dizia. _ Espere um pouco! Ele passou correndo em meio aos carros, mas o ônibus já tinha saído e certamente o motorista não ouviria seus gritos no meio da rua. Quando finalmente chegou no lugar do ponto o coletivo já ia numa distância considerável; não tinha mais jeito, estava tudo acabado. Antônio ia fazer seu showzinho na reunião e arruinaria toda e qualquer esperança de Valdo ser promovido ou continuar na firma. Só um milagre poderia salvar seu emprego agora. Valdo desandou a desferir todo tipo de xingamentos que conhecia, olhou para o outro lado da rua procurando o miserável que o tinha impedido de tomar o ônibus, não o viu, certamente ele tinha pedido o tal dinheiro a outra pessoa e ido comprar seus bagulhos onde quer que fosse. Estava furioso. As pessoas correram de um lado para o outro como se tivessem ficado tontas de repente. Do outro lado da rua, na calçada onde Valdo e o mendigo se confrontaram as pessoas apontaram para um ponto na esquina com a face horrorizada. Valdo se voltou instantaneamente, mas antes de concluir o movimento ouviu o som mais bizarro que já tinha escutado até então. Uma colisão brutal, seca e metálica. Ao se virar para a esquina ele viu que bem no cruzamento por onde o ônibus que ele

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deveria ter tomado estava passando, outro ônibus avançou o sinal vermelho e se chocou contra o primeiro com tanta violência que o arrastou até a calçada, mas não sem antes acertar mais dois ou três carros que também estavam na via. O ônibus atingido tombou se retorcendo como se feito de papelão e parte dele ficou amassada contra o solo. Algumas pessoas gritavam, outras não se deram tão bem. O acidente tenebroso chamou a atenção de todos que estavam nas proximidades, pessoas correram na direção da colisão no afã de prestar alguma ajuda, qualquer que fosse, mas Valdo não conseguiu se mexer. Todo o seu corpo tremeu, ele piscou várias vezes, não estava acreditando; era pra ele estar dentro do ônibus também. Havia gritos e pessoas ligando para o corpo de bombeiros em todas as partes; a simples visão do acidente era terrível. A mente dele quase entrou em surto. Valdo voltou a procurar o mendigo do outro lado da rua, olhou de um lado a outro, mas não o avistou em lugar algum; não conseguia se mover e por um momento imaginou a foice da morte passando a centímetros de distância de sua cabeça. Ele estava tão preocupado em não perder o emprego que não imaginava que por muito pouco não tinha perdido a vida. O telefone tocou uma, duas, três e quatro vezes, ele demorou a atender, estava sem força nos braços de tão atordoado que ficou. Quando finalmente conseguiu alcançar o aparelho no bolso da calça e atender, ouviu a voz de Antônio do outro lado; provavelmente ele quisesse dar o golpe de misericórdia, mas Valdo não estava mais preocupado com o emprego, tinha sido poupado de uma grande tragédia. _ Alô._ disse Valdo meio fora da realidade.

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Quando Antônio deu o recado foi ainda pior. _ A reunião foi cancelada Valdo, a diretoria me mandou dar uma palestra para alguns novatos. Ainda não foi dessa vez que eu peguei você. A nova data é na próxima semana, vou marcar o dia e te aviso._ disse brincando sem saber que Valdo não ouviu nada depois que Antônio avisou sobre o cancelamento da reunião.

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O Arquivista Quando Augusto se levantou naquela manhã não sabia se receberia outro serviço. Seu quarto estava perfeitamente arrumado, porém escuro, mas sua cama de casal ainda estava com os lençóis desforrados por causa dele que dormira até tarde. Era domingo. Lígia devia estar tomando café no andar de baixo com as crianças; Helena e Nicole, seus dois tesouros que juntamente com a esposa eram os bens mais preciosos que tinha na vida. Ele levantou e foi até a janela que estava coberta pelas cortinas escuras que impediam a claridade do dia de entrar; abriu as cortinas e o sol inundou todo o ambiente espaçoso do quarto; Augusto se espreguiçou sentindo como se a luz estivesse inundando não somente o cômodo, mas seu corpo todo também. Ele olhou pelo vidro da grande janela e avistou o jardim frontal de sua casa, pôde ver o gramado verde, o caminho feito de pedras ligando a porta de entrada ao portão; a garagem e Júpiter, o cachorro da família, um pastor alemão correndo de um lado para outro e latindo toda vez que um carro passava na rua. Passou a mão sobre o rosto e percebeu que devia fazer a barba antes de descer para tomar o café da manhã com Lígia e as meninas. Saiu da janela e caminhou até o banheiro onde cuidou de tudo o que devia fazer. Enquanto passava a espuma de barbear na face ele repassou mentalmente algumas coisas que pretendia fazer durante o dia, como levar as filhas ao cinema e comprar um bom presente para sua esposa. Ele estava de férias, mas antes de conseguir, depois de muita luta, esse um mês merecido de descanso

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Augusto tinha passado por maus bocados no emprego, não era algo fácil de se fazer, porém no Brasil ainda havia um grupo de pessoas trabalhando no mesmo ramo que o dele. Tinha enfrentado uma pequena crise de consciência talvez causada pelo estresse ao qual era submetido em cada um de seus casos e se não fosse pelo apoio da mulher com quem tinha se casado, certamente teria perdido o emprego. Tinha lido em algum lugar que as pessoas no Brasil estavam em segundo lugar na lista das mais estressadas do mundo, mas nunca podia imaginar que ele fosse passar por algo como aquilo. Perdeu o controle ao perceber que praticamente tudo ao seu redor parecia estar fora do lugar, era como se a sociedade não ligasse para si mesmo mais afirmasse aos quatro ventos que estava disposta a fazer qualquer sacrifício para melhorar suas mazelas. Augusto lidava todos os dias com mentiras, dissimulações, hipocrisia, desonra, vidas, famílias e pessoas nos seus dias mais sombrios. Ele enfrentava a face das pessoas em seus dias mais doentios e tudo aquilo estava mexendo com suas convicções; estava precisando de um tempo para repor as energias, pensar se valia mesmo a pena se dedicar ao tipo de trabalho que ele desempenhava. Financeiramente ele era muito bem remunerado, mas moralmente começava a ter sérias dúvidas de se estava fazendo a coisa certa e isso poderia ser mortal no seu ramo de atuação. Um belo dia ele acordou e teve a sensação de que ninguém ligava para o que estava acontecendo, contanto que os prejudicados fossem sempre os outros; a televisão mostrava incessantemente diversos casos de violência regada à impunidade, abuso de poder praticado até por pessoas que não

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possuíam poder algum para usar, corruptos ocupando os maiores cargos em todas as áreas sociais, vitimando o cidadão comum com seus “negócios e negociatas”; e, pessoas comuns tão corruptas quanto àqueles a quem condenavam com seus xingamentos, acusações e julgamentos. De repente o mundo pareceu sair do eixo bem diante dos olhos de Augusto e ele não conseguiu manipular tudo aquilo. Nações condenavam pessoas à morte por apedrejamento, enforcamento ou até fuzilamento e eram taxadas de bárbaras e desumanas por outras nações que apoiavam a morte por injeção letal, câmara de gás ou cadeira elétrica, como se matar pessoas fosse um privilégio permitido apenas para alguns poucos países, donos da vida e da morte. Combates armados eram constantemente produzidos pelos motivos mais torpes possíveis e estavam ceifando milhões ao redor da terra enquanto os governantes, aqueles que decidiam criar as guerras, permaneciam bem protegidos por detrás de suas mesas confortáveis, bebendo o sangue dos seus próprios soldados sem a menor cerimônia. O mundo rico fingia estar ajudando os menos afortunados do continente africano com seus pobres, doentes e famintos já há mais de um século e este mesmo continente com seus povos parecia mergulhar a cada dia mais num abismo sem fundo de miséria, doenças e fome; entregues a própria sorte. Não bastasse aquele cenário fora do país; as coisas estavam desandando dentro do Brasil também. O descaso com as pessoas está no nível mais desumano de todos os tempos. Homens e mulheres, jovens ou idosos e até crianças morrendo em corredores e filas dos hospitais enquanto os responsáveis por prover a ajuda de que necessitam ficam num confortável

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jogo de empurra passando a responsabilidade de todas as mazelas do sistema estrategicamente de um para o outro e contando os corpos diariamente, sem o menor remorso por estarem condenando pessoas a morte em seus corredores. Médicos literalmente brigado uns com os outros pela sua cota de dinheiro relativa a cada atendimento enquanto pacientes necessitados morriam diante deles. Organizando-se em máfias cada vez mais elaboradas, algumas até, sob a tutela das leis e das instituições democráticas governamentais, e outras tão clandestinas quanto cabalas da idade média. Políticos que falavam horas e horas gritando em defesa de uma constituição e de uma democracia que eles próprio jamais pensaram em respeitar, vendendo e comprando tudo e todos em que podiam pôr as mãos. Homens capazes de negociar com a única moeda ainda imaculada do país, a fé de pessoas inocentes; colocando-a como moeda de troca em processos eleitorais e outros de cunho pessoal em benefício próprio. Augusto passou muito tempo pensando a respeito. Tudo aquilo e muitas outras coisas que surgiram ao mesmo tempo na mente de Augusto tinham feito com que ele perdesse o controle por algum tempo. _ Não é problema seu._ disse para si mesmo olhando seu reflexo no espelho do banheiro. Lígia tinha ajudado muito para que ele pudesse manter a calma no momento de maior crise, suportando mais um ano de trabalho até que finalmente conseguiu sair de férias que por sinal já estavam muito atrasadas. Agora o período de descanso já tinha terminado e ele imaginava quando seria chamado novamente.

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_ Continue com sua vida._ disse novamente para si mesmo. A frase tinha sido dita por um major do exército anos antes; o homem que havia encaixado Augusto no departamento do governo onde ele ainda trabalhava. Era isso que Augusto pretendia fazer, continuar vivendo, ele sabia que logo aquela crise de consciência ia passar e assim que o próximo serviço aparecesse tudo voltaria ao lugar, enquanto isso não ocorria, ele se dedicaria a família como um bom pai devia fazer. Pensou em que presente poderia dar à Lígia, imaginou que uma jóia seria o ideal, mas também podia ser um conjunto completo com roupa, sapato, bolsa e qualquer outro acessório que ela desejasse. Não tinha tão bom gosto quanto ela e seria melhor que ela mesma decidisse o que comprar, ele apenas pagaria não importava o quanto custasse; tinha que demonstrar sua gratidão pelo apoio dela nos momentos mais extremos. Fez a barba, a lâmina estava cega; Augusto não encontrou outra no armário apropriado. Escovou os dentes, penteou os cabelos, lavou o rosto e voltou para o quarto a fim de vestir uma roupa confortável para aproveitar o domingo, mas aquela pontada de ansiedade continuava latente nele imaginando quando seria convocado novamente. Procurou algo especial, uma de suas ferramentas de trabalho que costumava deixar na gaveta inferior dentro do armário, mas não encontrou, a esposa devia ter guardado em outro lugar. Já de roupas trocadas ele já ia descer quando ouviu a voz da esposa: _ Amor! O café já está na mesa._ ela disse lá de baixo.

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Era incrível, mas Lígia parecia ter um sexto sentido; ela sempre sabia quando ele tinha acordado e sempre o chamava para o café antes que ele pudesse fazer uma surpresa. Na cozinha as meninas correram para abraçá-lo, Helena tinha dez anos e Nicole tinha seis. _ Vamos ao cinema pai?_ Indagaram ambas ao mesmo tempo saltando sobre ele com toda força. Lígia terminava de cortar os pães colocando-os cuidadosamente nos pratos de cada um e disse: _ Sentem meninas, deixem o papai respirar. Ele fez um pouco de força para erguer as duas filhas numa espécie de abraço triplo e em seguida as deixou ir, mas não sem antes beijar cada uma na face. _ Bom dia amor. _ falou. Lígia piscou para ele e retribuiu a saudação. _ Bom dia. E continuou: _ As meninas estão elétricas com essa história de ir ao cinema hoje. Quer leite no café? Ele sorriu, tinha prometido na noite anterior e elas jamais esqueciam uma promessa. _ Vamos ao cinema sim._ disse ele vendo a felicidade nos rostos das filhas_ eu quero leite sim amor. Antes que mais alguém dissesse algo Augusto falou o que tinha planejado para o domingo. _ Depois do cinema vamos comprar um presente para a mamãe; o que vocês acham? As meninas nunca recusavam qualquer que fosse o passeio e a felicidade delas que já era enorme pareceu se multiplicar muitas vezes.

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Lígia olhou para o marido, surpresa, ele não tinha dito nada sobre compara qualquer presente. _ Do que você está falando?_ perguntou. _Ora; não posso presentear a mulher da minha vida quando bem entender?_ Disse jovialmente. Agora foi ela quem sorriu. Durante o café as meninas falaram tudo o que estavam aprendendo na escola, falavam numa velocidade tal que os pais quase não conseguiam compreender. Coisas que só a ansiedade da infância é capaz de produzir. _ Você pegou minha maleta de ferramentas?_ perguntou para a esposa._ procurei por ela no armário e não encontrei. O jornal estava sobre o balcão da cozinha e Augusto pegou antes de se sentar para comer. _Sim_ disse Lígia._ Tirei de lá e coloquei dentro do seu carro, sabe que não gosto daquelas coisas no quarto. Quando terminaram de tomar o desjejum as meninas correra para brincar, gostavam de ver desenhos e nos dias de domingo havia uma infinidade deles para elas escolherem; Lígia ligou para a mãe para conversar um pouco e Augusto foi até a garagem. Lá, estavam os dois carros da família; o seu era um Chevrolet Vectra 2008 prata grande e possante com câmbio automático, ele adorava carros com câmbio automático. O carro de Lígia era um Kia Sportage 2011 preto novo em folha; ele ainda lembrava do sorriso dela quando foram comprar o carro. Ao abrir seu carro augusto viu no banco do motorista a maleta prateada contendo seus apetrechos de trabalho, abriu a mala, deu uma boa olhada em tudo; não faltava nada, e fechou novamente.

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Helena entrou correndo na garagem com Júpiter atrás dela, trazia o telefone celular do pai e o aparelho estava tocando. _ Mamãe mandou trazer aqui_ disse a menina estendendo a mão com o aparelho. _ Obrigado querida, agora volte à brincar. Ela saiu da garagem e o cachorro acompanhou como se fosse o guardião da menina. Augusto atendeu. _ Pronto. A voz do outro lado falou: _ Procuro pelo oficial Augusto Quintas Vale. _ Sou eu. _ Major, o comando tem um serviço para o senhor. _Estou de férias. _ O Ministério precisa saber se o senhor está em condições de continuar na operação. Augusto refletiu por um momento em tudo o que tinha pensado até então; em todo aquele dilema moral pelo qual havia passado nos últimos meses. _ Estou. Que tipo de serviço. _ Só o contatamos porque se trata de uma urgência e o alvo se encontra a cerca de dez quilômetros de sua residência. Fizemos uma vigilância e agora e a hora de agirmos, mas não temos ninguém nas proximidades além do senhor. Augusto entrou novamente em casa e viu Lígia falando algo com as meninas. Ele subiu para o quarto e pegou um casaco, o dia estava claro e quente, mas ele ia precisar daquilo. Além do casaco ele pegou também um boné. O homem no telefone continuava falando:

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_ Enviarei mais informações via mensagem de texto. O senhor aceita? _ Sim. Ele desligou. Desceu e procurou por Lígia: _ Tenho que dar uma saída, mas volto a tempo de irmos ao cinema. _ Aonde você vai?_ a esposa ficou curiosa._ Hoje é domingo. _Fui convocado para um serviço, mas não deve ser nada sério. _Tome muito cuidado, sabe como eu fico preocupada quando você vai fazer essas coisas. Você ainda não está totalmente recuperado. Lígia era muito cuidadosa, mas Augusto já se sentia bem para fazer seu trabalho. Ela o beijou. _ Volto logo. _disse. Voltou para a garagem, entrou no carro, abriu a maleta e retirou dela uma pistola de uso das forças armadas. O telefone recebeu uma mensagem de texto com o endereço de um hotel de beira de estrada e o número do quatro; Augusto conhecia o lugar. O texto também trazia um nome e o código do serviço a ser executado no final. A última linha de texto da mensagem SMS possuía apenas uma única palavra. Dizia: “Arquivar”. Augusto abriu a porta da garagem através do controle e saiu com o carro, aquela era a hora de saber se realmente ele poderia continuar fazendo seu trabalho ou se teria de ser enviado para a reserva por incapacidade. Aquele era o seu trabalho, era hora de descobrir.

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Vozes atrás da porta Suzana estava sem sono e foi até a cozinha para tomar um leite quente durante a madrugada. Ela encostou na pia enquanto o leite esquentava e dali ficou olhando para o quintal por uma grande janela de vidro com armação de alumínio. O Marido estava dormindo como uma rocha no quarto. O leite ferveu e a espuma quase transbordou pelas bordas da leiteira, felizmente Suzana ainda não estava totalmente imersa nos pensamentos que levemente a estavam envolvendo. De uns tempos para cá ela vinha sendo acometida por noites de insônia, mesmo não sendo noites em seqüência, aquilo estava incomodando bastante. Derramou um pouco do leite devagar e cuidadosamente num copo, viu a fumaça dançante deixar o copo como se fosse uma miniatura de fantasma que logo desapareceu. Ela foi até o armário e pegou um pequeno frasco de canela em pó; polvilhou sobre o leite e em seguida acrescentou meia colher de açúcar. Ela tinha aprendido aquele ritual com a mãe e sempre que perdia o sono recorria ao bom e velho leite com canela seguido de um banho, aquilo geralmente era o suficiente para fazê-la dormir. Sentou por um momento enquanto saboreava sua bebida, era a única pessoa acordada na casa; seu filho, Luciano, de cinco anos de idade também passou por noites sem dormir nas últimas semanas, o que certamente era terrível para uma criança tão nova. O problema é que ele tem uma imaginação extremamente fértil e costumava criar uma série de monstrinhos imaginários que o assustavam durante as noites.

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Demorou um pouco até que Suzana conseguiu mostrar para o pequenino que não havia monstro algum em seu quarto; infelizmente, Luciano pediu para dormir com a pequena luz de um abajur âmbar acesa durante toda a noite e somente assim ele parou de se queixar das supostas assombrações que via durante as noites. Coisa de criança. Mas nas últimas noites Suzana pensou ter escutado vozes dentro do quarto do filho, foi averiguar já imaginando que ele estava novamente brincando durante a madrugada, mas ao chegar lá, Luciano dormia como um anjo em sua caminha repleta de bonecos e desenhos animados colocados em forma de adesivo nas laterais. Ao sair do quarto Suzana ouviu novamente as vozes infantis sorrindo baixinho dentro do quarto; voltou a abrir a porta, acendeu a luz; Luciano ressonava tranquilamente e o único barulho que ela ouvia era o som quase inaudível do ventilador de teto que sempre mantinha ligado numa velocidade reduzida. Ela tinha certeza de que havia escutado outras vozes e nenhuma delas era a voz de Luciano. Foi a partir daquele momento que Suzana passou a ter noites sem dormir exatamente como seu filho tivera antes dela. Vez por outra ela ouvia alguma coisa vindo do quarto; algum ruído baixo ou algum som infantil, passos, sorrisinhos, coisas sendo arrastadas, como um banquinho que Luciano colocava sempre ao lado da cama para auxiliar a subir e descer, muito embora a cama não fosse assim tão alta. Deu mais uma golada no leite quente enquanto refletia no que poderia estar acontecendo; nessa noite Suzana havia levantado da cama com a mesma sensação de ter ouvido algo no quarto do filho e como de costume foi até lá para dar uma olhada, mas

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novamente vasculhou o quarto sem encontrar nada. Ao apagar as luzes outra vez e fechar a porta atrás de si, ela ouviu uma voz muito diferente das que até então ela supunha ter ouvido; era uma voz grossa e encorpada como a voz de um homem. Pareceu chamar seu nome, mas Suzana não teve certeza disso. Num sobressalto ela abriu a porta novamente, não havia nada, não conseguiu entender o que pensou ter ouvido, a voz pareceu bem clara, mas não compreendeu. Pensou estar imaginando tudo aquilo e decidiu recorrer a receita de sua mãe para relaxar um pouco. O ruído daquela noite ainda estava vivo dentro da mente dela, pensou em chamar o marido, mas o que ia dizer? Que estava ouvindo vozes no quarto do filho? Desistiu logo dessa idéia. Porém, a voz grossa ficou assombrando seus pensamentos enquanto ela bebia o leite com canela; tanto que Suzana nem percebeu quando o pequeno Luciano entrou na cozinha esfregando os olhos. _ Mãe?_ Ele disse. Suzana quase saltou da cadeira; o leite girou dentro do copo que ela por muito pouco não deixou cair, mas fez uma tremenda força para não transparecer o susto que tinha levado. _ O que foi meu bem? _ falou meio sem graça. _Estou sem sono outra vez. _ Mas você estava dormido ainda agora querido. _ Acordei. Ela percebeu que tinha qualquer coisa de errado com a criança, ele também estava fazendo força para não deixar transparecer algo. _Senta aqui. O que foi que houve?

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O menino caminhou cambaleante pela cozinha e foi sentar-se na cadeira ao lado da mãe. Estava com medo. Ela perguntou novamente: _ O que aconteceu? Luciano olhava para o chão e segurava as mãos uma na outra como se estivesse tenso. _ Eles estão lá no quarto. Suzana sentiu o peito apertar. _ Quem? _ Todos eles. Por um momento Suzana tentou raciocinar mais calmamente, estava sendo invadida por um sentimento pulsante de medo, mas medo do quê? Tinha de ser sensata; não havia nada para temer, ela não tinha visto nada e apenas tinha pensado ouvir vozes. Nada mais. _ Eles quem filho? O menino bocejou longamente. Não estava sem sono e sim forçando-se a permanecer acordado. _ Posso dormir com você? O marido de Suzana, Lucas, costumava dizer que ela mimava o garoto demais e não gostou quando o filho pediu para dormir com eles em outras ocasiões, mas ela não queria saber; Luciano estava com medo de alguma coisa, provavelmente fosse apenas aquele medo infantil comum aos meninos. Mas se era esse o caso então por que ela também estava com medo? _ Claro que pode. Ele finalmente olhou para a mãe. _ Eles fazem muito barulho._Estava apavorado, mas já tinha ouvido o pai dizer várias vezes que não havia nada em seu quarto e não queria parecer um medroso.

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Suzana repetiu a pergunta: _Eles quem filho? _ São só Eles; não disseram os nomes. _ Você perguntou? _Perguntei. Ainda tentando ser sensata, Suzana bebeu mais um gole do leite deixando apenas mais um pouco no copo. A lembrança da voz grossa atrás da porta ainda retumbava na memória dela; não podia acreditar que seu filho de fato estivesse conversando sabe-se lá com o que ou quem durante as madrugadas no quarto, mas também não podia ignorar o fato de que tinha escutado claramente, não uma nem duas vezes, vozes e muitos ruídos sem explicação também. Naquele momento ela estava no ponto exato onde seu pensamento racional se encontrava com o medo irracional, Suzana estava fazendo força para não tombar para o lado mais primitivo. Teve uma idéia, tentou desconversar. _ Você quer um pouco de leite?_ perguntou. Luciano balançou a cabeça afirmativamente. Ela levantou e foi até o fogão, em seguida pegou outro copo e repetiu a receita que tinha feito para si; adicionou ao leite um pouco de canela e um pouquinho de açúcar. Mas antes que ela terminasse de preparar o filho falou: _ Eles trouxeram mais um hoje. Suzana parou de mexer o leite com a colher e se virou para o filho. Ele continuou: _Esse é diferente, ele diz que escutou todas as vezes que falei com papai do céu. A mãe não soube o que dizer e quando percebeu já tinha perguntado:

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_Como é a voz dele? _É escura. Suzana não entendeu bem o que ele quis dizer, mas lembrou com muito mais intensidade da voz atrás da porta. _Tome o seu leite e vamos dormir._ Entregou o copo com leite para o filho e esperou. Luciano bebeu e parou. _ Ele disse que ouve você também, todos os dias. E perguntou o seu nome._ bebeu mais um pouco do leite. Quando finalmente o menino terminou de beber o leite, Suzana colocou todas as coisas novamente na pia e pegou o filho pela mão. Juntos caminharam em direção ao quarto dela. Entre a cozinha e o quarto de Suzana havia o corredor e nesse corredor outras duas portas, uma delas era o banheiro e a outra era o quarto do pequeno Luciano. Quanto mais eles se aproximavam do quarto da criança mais tinham uma sensação estranha que ela não conseguia identificar. A única coisa da qual tinha certeza era que o medo dentro dela estava crescendo mais e mais. Quando passaram exatamente em frente ao quarto do menino, a porta que estava quase totalmente aberta começou a se fechar lentamente, sem fazer ruído algum; como se alguém atrás da porta a estivesse fechando vagarosamente para não ser visto. O coração de Suzana disparou mais uma vez e ela puxou o filho para mais junto de si; Luciano estava com os olhos fechados e uma das mãos na frente do rosto. Dentro do quarto a escuridão era intermitentemente cortada pela lâmpada âmbar que piscava freneticamente, mas não se escutavam mais as vozes.

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Ela ficou atenta, mas não ouviu vozes, nem risos, nem passos, nem ruído algum; porém ainda tinha a lembrança de tudo aquilo fustigando sua memória; não tinha explicação plausível que pudesse dar a si mesma e nunca fora dada a acreditar em coisas de cunho sobrenatural. A porta moveu-se lentamente, mas não se fechou, ficou a um palmo de fechar completamente. _ Vamos mãe!_ Luciano puxou Suzana pelo braço em direção ao quarto dos adultos. Como uma mulher de pensamento racional acurado Suzana jamais reconheceria que qualquer coisa fora das leis físicas estivessem agindo ali. De fato, ouvira muitos relatos de pessoas sobre casas assombradas, mas certamente não era aquele o caso, ela e o marido moravam no imóvel fazia quase dez anos e nunca tinham presenciado absolutamente nada que pudesse ser caracterizado como assombração; a casa era ótima, exceto nas últimas semanas quando os ruídos tinham começado. _Mãe!_ Luciano tentava puxá-la; queria sair dali rápido. Suzana pensou em entrar no quarto para averiguar, mas desistiu ao sentir as mãos do filho puxando seu braço. Pensou melhor e decidiu fazer aquilo no dia seguinte com a ajuda da claridade e do sol. Só uma certeza estava profundamente gravada na mente dela. Jamais esqueceria aquela voz.

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As quatro bruxas Quando a dona da casa abriu a porta de seu apartamento, recebeu as três melhores amigas com um sorriso enorme na face. Elas entraram, mas não sem antes se cumprimentarem com beijos na face e abraços calorosamente fraternos. Dentro da casa elas permaneceram reunidas na sala, reuniam-se com relativa freqüência e principalmente nos últimos meses, pois estavam planejando uma nova viagem juntas que, esperavam, fosse um divisor de águas em suas vidas. Elas planejavam, felizes, as coisas que estavam intentando fazer logo que concretizassem a viajem enquanto a dona da casa servia vinho em taças de cristal. O vinho era apenas mais uma das paixões que compartilhavam, tal como a leitura e as viagens entre outras. Uma delas se ergueu solenemente com uma das taças de vinho na mão, levantando-a, disse: _Um brinde, ao Coven das Quatro Faces. As outras se levantaram também e repetindo o gesto responderam ao brinde em uníssono: _Brindemos! Aisla Bruh, Briana lima, Juliana Lopes e Bárbara Almeida; quatro amigas que há dez anos atrás decidiram mudar suas vidas, juntas, de uma forma totalmente diferente. Uniram-se numa sociedade para fins de estudos e práticas do que chamaram de conhecimento de si mesmas e da natureza. Aisla e Juliana sempre foram amigas, mais até do que amigas, elas sempre agiram como se fossem irmãs. Suas famílias, pais e mães, sempre foram muito próximas, seus pais também foram

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amigos desde a infância e as duas cresceram juntas desde sempre. Quando estavam na faculdade, elas passaram por sérios problemas em ramos diversos da vida. Aisla tinha terminado um relacionamento, um noivado, que havia consumido quase cinco anos de muita doação e entrega ao descobrir que estava sendo sistematicamente traída durante todo o tempo de relacionamento. Juliana era o contrário da amiga, relacionava-se fugazmente com todos os rapazes que desejava, embora fosse muito criteriosa nas escolhas de seus parceiros, porém, percebeu que estava sendo usada como uma espécie de troféu que os homens ostentavam uns para os outros apenas para mostrar e engrandecer sua capacidade de conquista, aumentar sua fama para com outras mulheres e massagear seus egos inflados. Juliana é o tipo de mulher com o qual todo homem fantasia, sempre fora assim, mas por causa de sua frivolidade seus relacionamentos não duravam quase nada e sempre eram superficiais. Ela decidiu mudar aquilo. Nessa época as duas amigas conheceram Bárbara Almeida, uma não menos bela estudante de direito que dividia seu tempo entre os estudos e os estágios. Foi afinidade instantânea, Bárbara compartilhava das mesmas preferências; lugares, livros, filmes, peças de teatro e uma série de outras coisas. Além disso, ela era adepta, de forma amadora, da Logosofia; uma doutrina que oferece ferramentas para o autoaperfeiçoamento com vistas a alcançar o conhecimento de si mesmo. Bárbara era uma exímia conhecedora e praticante do método e do conjunto de disciplinas propostos e estabelecidos na doutrina logosófica embora fosse muito jovem também, e,

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tanto Aisla quanto Juliana se interessaram imediatamente por aquela ciência totalmente desconhecida para elas até então; era uma coisa interessante e de muita erudição. Foi naquele momento que Bárbara apresentou para as duas amigas o método e os objetivos da Logosofia. Certa vez Bárbara enumerou tais objetivos, os principais, de uma forma rápida e clara. Ela disse: _ A Logosofia visa o desenvolvimento e o domínio profundo das funções de estudar, aprender, ensinar, pensar e realizar; visa também a edificação de uma nova vida e de um destino melhor; o conhecimento do mundo mental, transcendente ou metafísico; o conhecimento das leis universais, a integração do espírito; o conhecimento de si mesmo e, por fim, a evolução consciente do ser humano. Aquele foi o momento em que as três jovens passaram a se dedicar juntas àquela doutrina de pensamento, e resolveram fundar o que chamaram de Sociedade Logosófica das Três; uma espécie de grupo restrito, composto apenas por elas para se aprofundarem cada vez mais aos estudos. E assim fizeram, entretanto, todas as três concordavam que ainda faltava algo, mas sabiam que sem dúvida estavam finalmente trilhando o caminho certo. Segundo elas, tinham encontrado um propósito maior. Algum tempo depois, Juliana participou de um programa de intercâmbio com duração de seis meses em Cork, no sul da República da Irlanda com o objetivo de obter fluência no idioma Inglês e também porque era mais barato do que um programa de intercambio na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Cork é a capital do condado de mesmo nome e segunda maior cidade da República da Irlanda, perdendo apenas para Dublin.

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Uma cidade com muita cultura, dedicada à educação, as artes, história, ciência e tecnologia, mas sem perder o contato com suas tradições e, além disso, mantendo também uma pujança industrial, comercial e financeira impressionante. Durante os seis meses em que passou no país estrangeiro estudando e trabalhando, Juliana praticou e aprimorou grandemente o idioma inglês, mesmo desenvolvendo-o com um leve sotaque regional irlandês, o que era um charme a mais; ela ficou absolutamente apaixonada pela cidade e muito surpresa com a quantidade de intercambistas de várias nacionalidades que como ela foram para lá a fim de melhorar seu desempenho no idioma, tal e qual muitos outros estudantes de vários países que se fixavam na cidade para cursar graduação completas nos grandes e conceituados institutos de educação locais, a maioria desses estudantes vinha de países como Polônia, Índia, França, Alemanha e principalmente China, mais particularmente de Xangai. Cork era um borbulhante caldeirão multicultural, mas sem perder sua austeridade e nobreza características. Juliana não perdeu o contato com suas duas amigas no Brasil, mantinha sempre a troca de mensagens e emails, se falavam permanentemente por telefone também e nenhuma das três perdeu o ímpeto pelo estudo de sua evolução espiritual e conhecimento próprio; elas tinham feito um pacto entre amigas e cumpririam com ele mesmo estando separadas momentaneamente. A sociedade Logosófica das três permanecia de pé e com determinação todas avançavam ajudando-se mutuamente. Em Cork Juliana conheceu muitos brasileiros, mais até do que esperava encontrar, e entre esses novos colegas uma estudante

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de longo prazo, também carioca; Briana Lima Aiden, filha de mãe Irlandesa e pai Brasileiro, que já morava na Irlanda há quatro anos e estudava na “University College Cork” ou Universidade de Cork. Briana, cujos pais moravam no Brasil, tornou-se grande amiga de Juliana, chegaram a morar no mesmo apartamento e ela foi a cicerone que apresentou tudo sobre a cidade para a brasileira recém chegada nos primeiros dois meses. Através de Briana, Juliana conheceu os lugares mais visitados da localidade e tomou contato mais profundamente com a cultura Irlandesa. Visitaram locais como as catedrais de Santa Maria e São Finbarr, fundador da cidade no século VI; o mercado inglês, o Rio Lee, o magnífico Castelo Blarney, a Ópera, a Lewis Glucksman Gallery; teatros como o Palace Everyman Theatre e o Tulha; dois prédios de grande beleza arquitetônica o Tribunal e a Câmara municipal que foi destruída em 1920 pelo exército britânico durante a guerra da independência e reconstruído em1930; as ruas São Patrick Street, Oliver Plunkett e Grand Parade, centros fervilhantes de comércio da cidade; o Fitzgerald Park e o prédio mais famoso de Cork, o Liar das quatro Faces, uma grande torre de uma igreja no lado norte da cidade com quatro relógios que parecem mostrar horas diferentes dependendo de onde o visitante olhe. A igreja é aberta ao público e aos visitantes que até podem tocar os sinos do lugar. Quando Juliana conheceu o “Liar das quatro faces”, uma idéia surgiu em sua mente, uma idéia que ela teria de apresentar para as amigas no Brasil antes de decidir por em prática, mas foi algo que só se confirmou algum tempo depois.

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Briana levou a amiga para conhecer também os grandes centros acadêmicos locais, como a Universidade de Cork, onde ela mesma estudava; o Instituto Tecnológico de Cork, A Universidade Nacional Marítima da Irlanda; O Instituto de Artes e Design de Crawford e o Instituto do Comércio. Os meses na Irlanda passaram com uma velocidade incrível e o grau de aprendizado obtido por Juliana foi algo intenso e inexplicável. Durante as cerca de trinta semanas que passou lá, ela fez questão de conhecer também parte da literatura Irlandesa. Quando ainda estava no Brasil já tinha ouvido falar e era uma leitora voraz dos livros de C.S Lewis, principalmente a saga fantástica das Crônicas de Nárnia, também já tinha lido o livro O retrato de Dorian Gray, único romance do escritor Irlandês nascido em Dublin, Oscar Wide e conhecia muito bem o escritor Bram Stoker, autor do celebre romance epistolar Drácula. Mas morando lá ela conheceu o trabalho de outros escritores como Jonathan Swift cujo trabalho mais conhecido dos brasileiros é o clássico As viagens de Gulliver; aprendeu também um pouco sobre a obra de quatro escritores irlandeses que ganharam o prêmio Nobel de literatura; George Bernard Shaw, B.W Yeats, Samuel Beckett e Seamus Heaney. A literatura irlandesa passou a ser uma das paixões que Juliana cultivaria mesmo quando retornasse ao Brasil e foi essa paixão que contribuiu e muito para a nova organização que ela intentava dar ao círculo de estudos logosóficos que mantinha com as duas amigas, a Sociedade Logosófica das Três. Ao se debruçar sobre a literatura em busca de conhecimento histórico, o que ela fazia sempre que sobrava algum tempo entre os estudos, trabalho e os passeios culturais, Juliana tomou

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contato com a cultura Celta, principalmente o druidismo e seus rituais. Antes de deixar a Irlanda Juliana voltou mais uma vez ao castelo Blarney na companhia de Briana a fim de fazer algo que era recorrente entre os visitantes do lugar, algo que ela tinha colocado para si mesma como um primeiro rito de iniciação. Há no castelo uma tradição chamada de “A Pedra da Eloqüência” que reza que uma pedra específica localizada no topo de uma parede sob uma ameia teria a capacidade de transferir eloqüência para todos quantos a beijassem. Logicamente muitos turistas e intercambistas que visitam o lugar respeitam tal tradição na esperança de serem realmente contemplados com o dom da eloqüência dita na lenda. E tanto Briana como Juliana também beijaram a pedra; verdade ou lenda, não custava tentar. Finalmente, ao termino do período de intercâmbio quando retornou ao Brasil, Juliana trouxe consigo muito mais do que uns poucos euros que conseguiu economizar e uma tatuagem no ombro esquerdo com o desenho de um trevo de três folhas chamado de Shamrock; uma planta símbolo dentro da tradição celta. Juliana trouxe também na bagagem alguns tesouros de valor incalculável, como um conhecimento cultural bastante vasto sobre a Republica da Irlanda, e principalmente sobre Cork, além de uma nova capacidade de fluência no idioma inglês e incrivelmente um pouco de idioma irlandês. Então, depois dos seis meses a sociedade logosófica voltou a se reunir com toda a sua formação; Aisla e Bárbara haviam evoluído bastante no estudo e aprimoramento do método e das disciplinas; as três passaram o ano seguinte unificando o

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conhecimento acadêmico da logosofia com a nova literatura folclórica celta trazida por Juliana e adotada imediatamente pelas amigas, ficaram fascinadas principalmente com a parte das sociedades druidicas e com o próprio personagem Druida, ou no caso delas druidesa, que eram pessoas encarregadas do conhecimento jurídico e filosófico daquela sociedade além de possuírem uma raiz mística muito forte e uma certa vocação religiosa dentro de um contesto de co-existência com a natureza. Todo aquele conhecimento veio se unir ao que elas já tinham proposto fazer, que era buscar evolução por meio das práticas logosoficas e foi nesse momento que as três resolveram evoluir a sociedade que tinham montado. A partir dali a sociedade das três se tornaria uma irmandade de busca pelo conhecimento mediante ao uso de um conjunto de práticas que elas desenvolveram tendo como base várias outras liturgias. Permaneceram buscando toda a informação que conseguiram obter sobre o Druidismo e o neo-druidismo. Elas passaram a desenvolver seus próprios métodos, disciplinas e exercícios de evolução mental e espiritual sempre dentro de um contexto pedagógico e Juliana expos uma idéia que teve quando ainda estava em Cork. Quando ela viu pela primeira vez a igreja o Liar das quatro faces, os quatro relógios da torre; teve a idéia de que a então sociedade que estavam criando deveria ser uma irmandade de quatro pessoas e não de três como era o caso na época. E essa idéia ganhou força à medida que perceberam pelos seus novos exercícios disciplinares que o número quatro é um número muito presente na natureza e representa plenitude, um círculo perfeito de poder e unidade enquanto que o número três era incompleto.

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Colocaram seu novo entendimento à prova e verificaram que havia muitos sinais que demonstravam a superioridade do número quatro; As quatro fazes da Lua, Nova, Crescente, Cheia e Minguante; os quatro elementos básicos da natureza, Terra, Ar, Fogo e Água; os quatro pontos cardeais, Norte, Sul, Leste e Oeste; as quatro estações do ano, Primavera, Verão, Outono e Inverno; e...: _ Os quatro evangelhos!_ disse Aisla na época. _ Mateus, Marcos, Lucas e João._ Completou Bárbara. Elas entenderam que aquilo fazia parte da evolução e concordaram que deviam recrutar mais uma mulher que compactuasse com a filosofia espiritualista que elas haviam desenvolvido, um nome brotou automaticamente. _ Briana!_ Juliana propôs com grande satisfação. Briana era uma mulher bastante inteligente e desenvolta que traria uma grande contribuição para a nova irmandade. O nome foi aprovado; Aisla e Bárbara já sabiam quem ela era e tudo o que tinha feito na época em que morou com Juliana na Europa. Briana não perdeu o contato desde que a amiga tinha voltado para o Brasil e pouco a pouco ela ia sendo informada sobre tudo o que as outras estavam fazendo no campo do autoconhecimento e auto-evolução. Briana se formou na Universidade de Cork e voltou ao Brasil um ano após Juliana, logo todas se encontraram e trataram de desenvolver uma iniciação para a recém chegada, a nova participante da irmandade estava sendo colocada a par de tudo o que deveria saber e como era uma mulher extremamente culta o percentual de contribuição dela foi espetacular. O casamento entre elas foi perfeito; verdadeiramente, o fato de serem agora quatro mulheres ao invés de três tinha trazido

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realmente mais equilíbrio e um novo grau de plenitude. Elas haviam se fechado num círculo muito bem ajustado. Enquanto estudavam termos do druidismo e do neodruidismo, difundidos principalmente na Europa central e ocidental, elas esbarraram num específico que caía como uma luva para dar um nome definitivo à irmandade das quatro mulheres. O termo Coven que significa reunião era usado para determinar grupos singulares de praticantes daquela religião. As quatro passaram a chamar a irmandade por esse nome, mas faltava apenas um detalhe e novamente a lembrança do Liar das quatro faces foi o que trouxe aquilo que elas necessitavam batizando de uma vez por todas o grupo delas. Finalmente tinham encontrado o nome definitivo para sua organização. Passaram a chamar seu coven de “Quatro faces”, Aisla, Bárbara, Juliana e Briana. Dois anos após, Bárbara se formou e passou no exame da ordem dos advogados do Brasil; Juliana concluiu a faculdade de Relações Internacionais, Aisla formou-se em jornalismo e Briana que já havia terminado o curso de literatura inglesa teve a idéia que revolucionaria a vida delas. As quatro mulheres escreveram em parceria um romance e Briana usou seus conhecimentos adquiridos no tempo em que estudou na Irlanda para que o original fosse enviado e avaliado por uma casa editorial de lá; o livro foi escrito em português mais Briana e Juliana traduziram para inglês. A editora lançou o romance de uma forma modesta, mas com uma vendagem razoavelmente boa lá em Dublin. Usando-se dessa propaganda as quatro mulheres conseguiram que uma editora brasileira trouxesse e publicasse o livro aqui no Brasil um ano depois; o livro foi bem recebido pela crítica e pelos leitores; principalmente pelas leitoras.

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Àquela altura outras amigas delas já estavam curiosas para saber o que exatamente as quatro tanto estudavam e debatiam em suas reuniões particulares, mas o grupo estava fechado e nenhuma outra mulher entraria nele. Foram apelidadas de bruxas pelas colegas, pelo fato de estarem sempre pesquisando sobre o folclore celta, mas o apelido não as incomodava, elas até gostaram, conferia um ar de mistério. O livro tornou-se conhecido na Irlanda, e foi levado por um editor para ser publicado na Inglaterra e depois em todo Reino unido, incluindo, Escócia e País de Gales. A fama delas aumentou um pouco mais e ao mesmo tempo a editora brasileira que as tinha publicado, que fazia parte de um grupo ibérico, levou o livro para ser lançado em Portugal e na Espanha. Um ano depois foi da vez da França. Elas viajaram para a Irlanda novamente, as quatro juntas num pacote turístico completo, passaram alguns dias maravilhosos em Dublin e outros em Cork onde tudo começou. Sentiram-se em casa. Aisla se viu deslumbrada e decidiu fazer uma pequena tatuagem no pulso esquerdo; uma cruz celta extremamente elaborada no mesmo ateliê em que sua amiga tinha feito o trevo de três folhas. Escolheu a cruz porque achou incríveis os detalhes do desenho. As quatro finalmente foram visitar a igreja com o monumento que dava nome ao seu coven, o Liar das quatro faces, aquela magnífica torre impressionou as duas que não conheciam o local. Dessa vez Briana e Juliana guiaram as demais por todos os pontos turísticos de Cork e foram novamente ao castelo Blarney onde Bárbara e Aisla realizaram a tradição da pedra da eloqüência. A viajem de retorno à Irlanda foi um sonho para

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todas, ficaram hospedadas num ótimo hotel, visitaram excelentes restaurantes como o Fenns Quay, provaram comidas típicas, visitaram os bares noturnos na Rua Oliver Plunkett, fizeram compras e aproveitaram de todas as formas que conseguiram àquela apaixonante cidade com suas paisagens exuberantes e clima agradabilíssimo. Quando voltaram ao Brasil trouxeram muitas fotos, muitos livros, muitos presente e muitas novas experiências; aprofundaram-se mais na apreciação pela música Irlandesa, ouvindo artistas como Enya, Celtic Woman e Riverdance; além disso, começaram a planejar a próxima viajem. Agora estavam diante do maior passo que poderiam dar em suas vidas. Depois do brinde que ofereceram ao coven das quatro faces, cada uma delas se sentou novamente, estavam eufóricas com tudo o que estava acontecendo; o livro delas seria introduzido no mercado editorial norte americano, o mais forte mercado consumidor do mundo até então; tinham recebido convites para visitar cidades como Lisboa, Barcelona, Nova York, Paris, Roma e algumas outras, mas decidiram não ir a lugar algum até visitarem o que para elas era a Meca dos pensadores transcendentais; um lugar repleto de tradição, significado e misticismo. Viajariam primeiro para o sul da Inglaterra, ao condado de Wiltshire e lá visitariam Stonehenge.

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Íncubo A sombra escorregou sorrateiramente para dentro do quarto do casal, a janela era deixada apenas encostada durante toda a noite e havia uma fresta considerável na junção das armações de alumínio. Eles moravam num apartamento no décimo andar do prédio e todos os sons da rua e da madrugada ficavam muito abaixo, não se preocupavam em fechar a janela totalmente; o bairro era muito tranquilo, portanto também não havia nenhum cuidado com relação a invasões domesticas, sobretudo naquele andar. O prédio não possuía nenhum modo de ser escalado pelo lado de fora e as janelas eram muito espaçadas entre si não dando a possibilidade de alguém alcançar qualquer janela a partir de outra, mais baixa, e assim subir gradativamente pelos andares. Além disso, possuíam proteção de metal em forma de grades do lado externo, o que praticamente eliminava a possibilidade tanto de quedas e acidentes com crianças quanto de invasão de qualquer pessoa. Ao menos de humanos. O quarto estava às escuras e sobre a cama de casal dormiam marido e esposa de forma desleixada sob os lençóis. A sombra tomou forma num canto e ficou ali parada olhando ao redor como um pesadelo que escapou de algum sono violentamente atormentado. Ele averiguou todo o lugar, a escuridão não era problema para ele, via perfeitamente tudo nos mínimos detalhes, muito embora qualquer pessoa que se deparasse com aquilo parado no canto do quarto diria que a criatura não tinha olhos na face. Possuía a forma humana, mas apenas os contornos; era um simulacro sem olhos, sem boca, sem cabelos, sem rosto e sem qualquer característica humana mais

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específica; mas ainda assim com a forma de uma pessoa; cabeça, tronco e membros. A criatura preferia aquela forma porque no passado era assim que ele vivia antes de se recolher completamente e se isolar em regiões inferiores. Por muito tempo ele viveu no meio das pessoas, dos humanos, dos mortais, mas depois de muitas décadas, o sangue parecia já não ter mais o mesmo gosto e também não transmitia mais a capacidade de sustentá-lo. O marido se virou na cama e fez um barulho enquanto dormia, em seguida tossiu como se estivesse engasgado, depois voltou ao estado de antes, dormindo tranquilamente. Ele estava usando um short, sem camisa e usava meias também. A criatura olhou rapidamente para o homem sobre a cama tentando adivinhar o que ele estaria sonhando, mas rapidamente se concentrou no motivo de sua visita ali. A mulher. Ela havia se desvencilhado dos lençóis e usava uma camisola branca e leve que deixava as longas e belas pernas descobertas; devia estar calor, a criatura jamais sentiu a temperatura do ambiente. Aquilo parado ali num canto do quarto via claramente as formas suaves e sinuosas do corpo da mulher sobre a cama e já quase podia sentir todas as vibrações que aquele corpo quente emanava; a respiração dela estava tão calma quanto a de uma criança, o corpo corado, o sangue correndo nas veias e artérias era algo que em outros tempos seria o suficiente para fazê-lo procurar rapidamente pela jugular dela, mas não agora. Provavelmente os sonhos nos quais a mulher estava mergulhada fossem algo muito pacífico, mas aquilo estava prestes a mudar.

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Vagarosamente a sombra abandonou seu canto e caminhou pelo cômodo, não fazia o menor barulho, parecia flutuar, seus pés quase etéreos tocavam o chão, mas não exerciam pressão alguma sobre o piso acarpetado do quarto. Ao lado da cama havia um pequeno móvel sobre o qual estavam um copo d’água, um livro e uns óculos. O monstro obscuros olhou rapidamente para tudo aquilo e voltou novamente o foco para a mulher. Ela se moveu tênuemente, estremecida, como que percorrida por um calafrio. O vulto se aproximou com todo o cuidado, inclinou-se e observou o rosto da mulher bem de perto, sentiu a respiração pausada saindo pelas narinas da vítima adormecida. Ela tinha cabelos longos, negros e bem escovados, talvez tivesse perdido tempo antes de dormir escovando os longos cabelos, e estavam soltos, o que era um pouco diferente do comum. O rosto fino e de feições quase bem definidas, nariz afilado e lábios delicados e rosados. Um corpo esbelto, longo e belo, com curvas harmoniosas, parcialmente escondidas por baixo das poucas roupas. Se ela abrisse os olhos naquele momento ia se deparar com uma enorme mancha sombria sem face inclinada sobre si, mas ela não abriu os olhos, continuava entregue ao merecido sono, mas breve teria uma experiência deliciosamente tenebrosa. A criatura sentou-se sobre a cama bem ao lado da mulher adormecida; a cama não se incomodou e nem apresentou ruído algum, afinal, o espectro parecia não ter massa corporal ou peso algum, embora mantivesse um formato humanóide todo o tempo. Era apenas como um fantasma escuro. No teto do quarto girava um ventilador de três pás e o vento produzido por ele, embora fraco, soprava devagar todos os

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tecidos finos sobre a cama, desde os lençóis até partes da camisola dela. A criatura fixou o olhar novamente na vestimenta da mulher, mas não era a camisola que ele olhava e sim o que estava além dela, a roupa branca praticamente deixava visível o tecido que a mulher usava por baixo. O vulto estendeu a mão que deixou um rastro de nevoa escura no ar e tocou a testa da vítima devagar, em seguida apoiou toda a palma da mão e sentiu. O corpo estava maravilhosamente quente. O espectro deixou a mão correr pela cabeça dela, deslizando e alisando calmamente os cabelos da mulher que não respondeu. Permaneceu dormindo com a face voltada para o lado do marido, assim era melhor por enquanto. A mão escorregou para o rosto belo e fino, sem maquiagem, depois de alguns minutos; tocou os olhos fechados, o nariz, as bochechas, os lábios, o queixo e um ponto atrás da orelha. Ela respondeu pela primeira vez; ressonou, seus lábios se abriram e deixaram escapar a respiração, mas era uma respiração um pouco mais intensa. O fantasma desceu a mão para o pescoço longo e frágil que ostentava um pequeno cordão de prata fino com diminuto pendente praticamente repousando para o lado. Continuava vidrado na beleza dela e percebeu quase que instantaneamente quando a viu que aquele corpo era repleto de energia, libido e volúpia. Ela era perfeita e ele acariciava a pele aveludada com uma delicadeza quase sobrenatural a fim de provocar nela a excitação de que necessitava. Tempos atrás ele faria tudo ao seu alcance para colocar suas presas num pescoço como aquele; tão frágil e ao mesmo tempo tão cheio de vida, mas agora tudo era diferente e havia descoberto algo muito melhor do que o sangue, algo que o

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libertou do vício e revelou o que realmente importava; a criatura agora buscava e se alimentava de uma coisa muito mais poderosa, muito mais pujante; ele se alimentava de prazer puro, e, para isso tinha que incitar suas vítimas a um grau de excitação capaz de provocar violentas sensações venéreas. Era fácil perceber que aquela mulher possuía um grande potencial de sensualidade. Preferia invariavelmente mulheres e sempre enquanto dormiam; nunca acordadas, porque assim as defesas delas estavam tão baixas que era extremamente fácil ludibriá-las e fazer com que se entregassem por vontade própria o que tornava o ato mais natural e muito mais vigoroso, gerando muito mais prazer e alimentando-o muito mais. Dessa forma não precisava visitar várias mulheres numa noite, uma bastava. O desejo também era de uma importância vital, portanto a sombra violava primeiro a mente da vítima, infiltrava-se nas regiões oníricas e lá seduzia antes de atacar; criava uma fantasia de acordo com o que a vítima desejava de modo que a induzia a se entregar completamente em sonho, sem pudor ou barreira alguma. A vítima nunca sabia que estaria também se entregando fisicamente. O fantasma percebia e assumia a forma que mais fosse atraente para as vítimas, a forma que mais provocasse desejo ardente nelas; desejos lascivos. Era muito simples, o sono entorpece a razão das pessoas e todas se abrem, revelam tudo nos sonhos; suas vontades, preferências, desejos, frustrações e absolutamente tudo o que a razão por um motivo de segurança mantém escondido ou controlado. Nos sonhos as pessoas podiam fazer tudo o que não deviam fazer fora dele. Até se entregar à desejos ardentes ou proibidos nos braços de um homem viril e atraente, no caso das

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mulheres, sem ter que conviver com qualquer culpa por tais atos. Em sonho elas podiam usufruir do prazer da relação repetidas vezes de uma forma tão intensa quanto a real, e era isso o que o espectro usaria para exaurir a vítima quase absolutamente. A criatura tocou os ombros da mulher e acariciou por alguns segundos enquanto via claramente o que ela desejava; que tipo de homem a atraía e em que tipo de situação seria mais fácil se entregar a um estranho. Depois, passou a induzir o sonho da vítima com aquilo que tinha percebido. Se naquele momento a mulher tentasse acordar, não seria mais capaz, estaria presa como num pesadelo, mas raramente alguma vítima desejava acordar depois de sentir os primeiros toques do vulto; além do mais, as sensações produzidas por ele eram tão reais, tão gostosas e tão profundas que quando terminava, caso a vítima não tivesse sido completamente exaurida, elas costumavam desejar que acontecesse novamente, e aquele desejo trazia a assombração de volta noites seguidas até que a mulher começasse a enfraquecer e sucumbir. O Monstro começou a sentir o desejo aumentando dentro da mulher deitada; ela virou-se e arqueou o corpo momentaneamente, o rosto outrora voltado para o marido agora estava virado na direção da criatura. A respiração dela estava mais rápida acompanhando o que estava acontecendo em seus sonhos. Estava chegando a hora. Ela ofegou, umedeceu os lábios com uma língua vagarosa e silenciosa, em seguida mordeu levemente o lábio inferior, passou a mão pelo rosto sem abrir os olhos; já estava completamente seduzida pela fantasia lúbrica da sombra.

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A criatura já sentia todo aquele desejo luxurioso sendo produzido pelo corpo da mulher, os sintomas físicos estavam surgindo; as mãos nebulosas da criatura desceram rapidamente dos ombros para o ventre dela novamente deixando um rastro tênue de névoa obscura no trajeto. A mulher respondeu com um gemido baixo; a vítima abriu a boca num grito mudo, a respiração se alterou ainda mais, ficou ainda mais rápida. Mentalmente eles já estavam ligados; naquele momento a mulher estava se entregando à outra face da criatura, a face onírica do monstro devorador de libido, como se o fantasma sombrio usasse parte de sua consciência para violar o sonho da vítima enquanto sua forma espectral fazia o mesmo com o corpo dela. O ato já havia começado. As longas e belas pernas se moviam e esfregavam os pés um no outro, a cabeça também virava de um lado para outro, lentamente; os cabelos longos estavam espalhados pelo travesseiro. A sombra levantou-se no quarto escuro; a indefesa adormecida segurava os lençóis inconscientemente sem saber que aquilo que estava acontecendo no seu sonho era produzido por uma criatura ominosa presente no quarto de sua casa; tampouco sabia que quanto mais prazerosas as sensações fossem, mais drenariam de sua própria vitalidade, o demônio sugaria tanto a libido quanto tudo o que pudesse da vítima e ela ficaria cada vez mais fragilizada; não sentiria nada de imediato porque a luxúria esconderia os sinais, mas quando acordasse seria vitimada por uma fadiga quase incurável. Muitas mulheres não resistiam e com uma única noite de relacionamento com a criatura desfaleciam sem nem saber o que aconteceu.

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Aquela, entretanto, era tão poderosamente cheia de vida, de desejo, de lascívia e de prazer que certamente a sombra retornaria outras noites para ter novas fantasias e relações com ela. E, Assim drenar toda a sua vida dia após dia. Pouco a pouco aquela mulher perderia seu brilho, murcharia como uma flor perdendo a vida e era hora de fazer com o corpo dela o que no sonho já estava ocorrendo. Finalmente o espectro que estava parado ao lado da cama, a sombra funesta, se deitou cuidadosamente sobre a vítima que o recebeu calidamente, transbordando de desejo, sem saber que ao ser violada estaria entregando muito mais do que apenas o corpo.

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A meretriz Ele checou o relógio. Marcelo aguardava no quarto do motel, estava ansioso e caminhava de um lado para o outro; não tinha certeza de que era aquilo o que deveria fazer, mas era a única coisa que vinha em sua cabeça. Rebeca, sua futura ex-namorada, merecia o troco; ele não sairia do relacionamento levando um prejuízo daquele tamanho; ela ia pagar pela vergonha que o tinha feito passar. Sentia um frio e uma espécie de vazio no estômago. Foi até a janela, afastou cuidadosamente parte das cortinas e olhou para fora, não conseguiu enxergar muita coisa porque era noite. Seu carro estava estacionado na vaga abaixo do quarto, outros carros também estavam devidamente guardados nas vagas em outros quartos cujas portas como de garagem permaneciam fechadas, não havia movimentação alguma no passeio entre a fileira de quartos onde ele se encontrava e a da frente. Consultou o relógio; vinte horas em ponto. Fazia apenas cinco minutos que tinha dado o último telefonema e já parecia ter passado vinte minutos. _ Caramba! E esse tempo que não passa!_ Resmungou. O motel não era dos melhores, o quarto era pequeno e parecia com a sala dos espelhos de um parque que ele visitava quando criança, havia um espelho grande em frente à cama, outro na parede atrás da cama e um no teto; só faltava um no chão, mas isso seria bizarro demais. Marcelo sorriu sozinho, conseguiu descontrair um pouco com aquele pensamento. Consultou o relógio novamente.

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Caminhou outra vez da janela até a cama, mas não sem antes fechar cuidadosamente as cortinas que nem fizeram barulho correndo no trilho ao serem puxadas. Ao lado da cama redonda sob uma banca de mármore escuro estava o jornal no qual ele tinha escolhido cuidadosamente um dos anúncios em que algumas mulheres ofereciam seus corpos para serviços íntimos. Tomou o jornal e passou os olhos pela página dos classificados, havia vários anúncios por toda a parte, mostravam e ou descreviam mulheres para todos os gostos e bolsos; morenas, loiras, mulatas, negras, asiáticas; novatas ou experientes, com preços módicos ou classe A; mas um o tinha chamado a atenção não havia foto, apenas a descrição; ele releu. Dizia: “Eva. Ruiva perfeita; pele aveludada, cabelos longos, olhos claros, rosto de anjo, corpo esculpido. Impetuosa, voraz e viciante. Para ocasiões especiais. Atendimento somente às noites. Cem reais”. Minutos antes de telefonar, aquele anúncio tinha despertado nele desejo e curiosidade, sempre gostou de mulheres ruivas; pensou em Rebeca e decidiu que se ela podia ter traído ele, então, ele também podia traí-la era uma questão de justiça, ao menos em sua cabeça distorcida. Saiu com seu carro da casa da namorada e foi para o primeiro motel que encontrou na estrada já com o intuito de contratar os serviços de uma profissional; tinha brigado com Rebeca horas antes, discutiram bastante quando ela revelou sua traição; ela disse que preferia que ele soubesse por ela mesma e não por outra pessoa, aquilo claramente significava que outros já sabiam do fato, amigos dele e dela, mas ele tinha sido o último a saber. Pensou num cem número de coisas que podia fazer,

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pensou e agredi-la, mas não tinha coragem nem era correto, violência não fazia parte de sua índole, pensou em sumir e não procurá-la mais, mas isso não aplacaria a ira que estava sentindo; Marcelo queria que Rebeca sentisse exatamente o mesmo que ele, portanto resolveu dar o troco na mesma moeda. Antes, porém, resolveu contratar uma profissional para aquela noite. Checou o relógio pela décima vez. Quando telefonou para a tal Eva, logo que entrou no quarto, demorou apenas dois toques para ela atender. A voz surgiu do outro lado com um timbre insinuante. _ Olá! _ disse a mulher do outro lado da linha. E respirou ao terminar de pronunciar a palavra; ele ouviu a respiração sensual que a mulher despejou sobre o fone e sentiu uma sensação prazerosa se irradiando pelo corpo. Marcelo estava tão atordoado que não conseguiu pensar em nada que não fosse repetir a saudação. _ Olá!?_ disse meio desconfiado, sem muita certeza. _ Em que posso ajudar. _ Eu gostaria de falar com Eva. _ Pronunciou quase murmurando. _ É ela. Amor. Ele perguntou as coisas que achou que deveria e acertou o encontro naquele local onde já estava. _Quanto tempo até você chegar aqui? _perguntou ele. _Cerca de vinte minutos. “Vinte minutos”_pensou. _ Estou esperando._ disse. Ela desligou e a partir daquele momento ele passou a olhar para o relógio, mais ou menos, a cada minuto.

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Colocou o jornal novamente sobre a bancada de mármore, a televisão estava desligada e ele não queria ligar. Levantou-se da cama, foi até o banheiro contíguo e olhou o cômodo, era pequeno e de muito mau gosto; havia apenas um vaso sanitário, um Box com chuveiro e uma pia pequena com um espelho redondo sobre ela. Na verdade todo aquele quarto de motel parecia bizarro demais, parecia um lugar saído de um conto policial antigo ou um cenário de um filme B; o ar parecia viciado e um cheiro diferente pairava. A noite lá fora também estava estranha, pacata e letárgica; ele parou por um instante e tentou ouvir qualquer ruído vindo de fora daquelas paredes, não conseguiu, mas no fundo Marcelo sabia que era ele quem estava mal; sua cabeça havia se transformado num verdadeiro temporal. Rebeca ia pagar. Deixou aquele cubículo que servia como banheiro e voltou para o quarto, olhou a cama, o relógio e em seguida as paredes, e, finalmente percebeu que havia um aparelho de refrigeração no cômodo, estava sentindo calor, talvez por conta da ansiedade, e ligou a máquina; teve de subir na bancada de mármore para alcançar os controles do aparelho. Sentiu o vento começar a sair pelas grades de plástico do ar-condicionado acompanhado pelo som característico. Sentou na cama e tronou a levantar, foi até a televisão, ligou o aparelho também e tomou o cuidado de aumentar o volume; estava passando um filme com carros explodindo, o ator era conhecido, mas ele não recordava o nome. Mudou os canais com uma velocidade incrível, várias vezes, tentando disfarçar para si mesmo a ansiedade crescente dentro do peito. Nas outras emissoras ele passou os olhos por um programa de entrevista, uma novela, um jornal. Nos canais a cabo; passou

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por músicas, boletins esportivos, documentários sobre o mundo animal, um filme adulto e programas de comédia e variedades. De repente bateram à porta do quarto, Marcelo quase deu um pulo, o coração disparou e ele desligou o aparelho tão rápido que nem percebeu que o tinha feito. Caminhou devagar na direção da porta. _ Quem é?_ perguntou; estava se achando um perfeito pateta. O coração trovejava preso dentro do peito e era como se algo estivesse obstruindo parcialmente sua garganta. A ansiedade tinha irradiado um sentimento diferente em todo o corpo. “Adrenalina”_ Pensou. A voz do outro lado surgiu: _ Eva._respondeu. Era ela. Marcelo finalmente se apressou e alcançou a porta, girou a chave na fechadura com certa dificuldade por causa da pressa e então conseguiu. Quando a porta se abriu, a visão revelada do outro lado tirou o fôlego do homem de tal modo que a adrenalina disparou; a mente dele se esqueceu de Rebeca, da briga, da traição e do troco que pretendia dar, que era o motivo de ele estar ali. Naquele momento tudo perdeu um pouco do sentido. _ Olá! _ Disse a mulher olhando fixamente para ele com os olhos mais azuis que Marcelo jamais viu, certamente eram lentes de contato. Eva inclinou um pouco a cabeça com um sorriso irresistível nos lábios; como que o saldando. “Rosto de anjo.”_ pensou com a mente ainda meio embaralhada, lembrando do anúncio no jornal. A ruiva estonteante parada ali no limiar da porta não entraria até ser convidada, mas Marcelo estava boquiaberto com todos

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os atributos da mulher. A pele branca e delicada, o cabelo ruivo vivo mesmo na pouca luz do lado de fora do quarto, os olhos grandes e tão azuis que pareciam estar acesos e os lábios volumosos cobertos por um batom vermelho molhado. Ela se adiantou um passo, não entrou. Disse: _ Tudo bem? Marcelo despertou do transe e sorriu para ela. _ Entra aí._ Falou finalmente. O rosto de Eva se iluminou com o convite e ela caminhou calmamente para o interior do quarto; se aproximou perigosamente de Marcelo e beijou o rosto dele; numa face e depois na outra. Ele retribuiu o beijo, sentiu o aroma doce do perfume que ela usava. _ Tudo bem._ A voz saiu quase como um sussurro. Eva tinha cerca de um metro e setenta, foi o que ele calculou ao vê-la, e um corpo esculpido provavelmente em horas e horas de academia, ao menos ele pensou isso. Os cabelos apareceram balançando nas costas dela quando caminhou para entrar; chegavam até a cintura e era um complemento perfeito para um corpo como o dela que possuía curvas sinuosas e provocantes. Estava trajada com um vestido de tubo negro muito justo que ia dos ombros até a coxa da mulher, com somente uma alça segurando-o no ombro esquerdo. Ela passou por ele que levou mais um segundo para fechar e trancar a porta. Eva usava um sapato de salto, não era alto, mas era muito fino. Marcelo a olhou por trás a partir dos sapatos e subiu a visão passando pelas pernas até a cintura com as madeixas balançando sedutoramente.

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Se naquele momento ele tivesse percebido um detalhe, talvez o desfecho da noite fosse outro, mas estava tão atraído por ela que não se deu conta. Seguiu a mulher pelo quarto que parecia uma sala de espelhos. Ela olhou ao redor reparando no ambiente e falou: _ Lugar interessante._ o tom do comentário era de brincadeira. Marcelo percebeu e pensou que ela devia estar acostumada com lugares mais sofisticados, talvez fosse uma daquelas mulheres que costumam atender pessoas com muito dinheiro. Sorriu sem saber o que fazer. _ Não liga, amor, estou só brincando com você. Ele relaxou um pouco. Mas seus olhos não conseguiam mais se desviar do rosto e do corpo de Eva. Ela era extremamente atraente e sorria com uma doçura e uma pureza difíceis de serem atribuídas a uma profissional daquele tipo. Aliás, ele jamais tinha visto em qualquer rosto um sorriso tão cativante quanto o dela. _Estou com um pouco de sede._ Ela falou umedecendo os lábios. _ Podemos pedir algo para beber. _ Não, amor, depois. Ele concordou. _ E então? Vamos começar?_ Ela falou com um sorriso malicioso. _ É claro. _ Teve de forçar para dizer as palavras. Eva se aproximou da cama e retirou os sapatos deixando-os encostados num canto, em seguida prendeu os longos cabelos num rabo-de-cavalo com um movimento hábil e rápido. _Se importa se eu me lavar primeiro? _ Não. É claro que não.

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Ela tirou calmamente o vestido como num show sensual, ficou apenas com a lingerie preta e fina que estava por baixo. Sem o vestido o corpo dela revelou um piercing dourado no umbigo. _Seu piercing é de ouro? _ É sim. _Ouvi dizer que piercings de ouro costumam causar alergia em algumas pessoas. _ se achou mais demente do que nunca por fazer um comentário como aquele numa hora que não era para palavras, mas sim para ações. _ Não em mim._ Ela respondeu e foi em direção ao banheiro praticamente desfilando o corpo como uma ninfa. Quando Eva virou de costas para Marcelo, ele sentiu um aperto no peito; ficou se perguntando o quão desejada ela era. A mulher também revelou uma tatuagem de uma maçã um pouco abaixo da cintura, a tatuagem estava sendo parcialmente encoberta pela lingerie. _ Você não vem?_ perguntou ela já de dentro do banheiro com aquela voz insinuante novamente. _ Vou. Antes de se dirigir para o banheiro, Marcelo se pegou olhando para o espelho em sua frente, o que estava errado com ele? Um detalhe tinha passado despercebido. Mas a presença de Eva no mesmo ambiente era o suficiente para atrair toda a atenção para si; talvez aquela sensação não fosse nada além de ansiedade. Tirou a camisa logo que ouviu o barulho do chuveiro sendo ligado e da água caindo; foi até lá. Ela aguardava pacientemente olhando a água que caia no box ainda vestida com as duas peças mínimas da lingerie. Experimentou a ducha d’água com a mão. _ Está fria._ falou.

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Ele já ia tirar a calça quando percebeu algo; percebeu o que devia ter notado no momento em que a mulher cruzou a porta e entrou no quarto. Ao lado do box do chuveiro ficava a pia com o espelho preso à parede; de onde Marcelo estava ele conseguia ver o reflexo de todo o pequenino banheiro através do espelho, Olhou para Eva parada em frente a ducha e olhou novamente para o espelho; para ela, e para o espelho mais uma vez. Algo estava terrivelmente errado. Foi com uma estranheza brutal que ele finalmente se deu conta de que, através do espelho, na frente do chuveiro, ele não via o reflexo de Eva.

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Noctívagos Quando o passageiro entrou no taxi, Doni não percebeu nada de anormal. Estava conversando com um colega ao telefone, sentado dentro do carro, com os vidros abaixados e a porta do motorista aberta. _Boa noite._ Cumprimentou o taxista assim que o passageiro entrou. O homem sentou rapidamente e fechando a porta disse: _ Boa noite._ Tinha uma voz grossa e um tanto rouca com o sotaque hispânico carregado. Donizete Martins, quarenta e cinco anos, treze de praça, dirigindo taxi. Passou a trabalhar à noite porque o trânsito era menos enlouquecedor do que durante o dia e também porque depois de certa hora podia cobrar um pouco mais caro, além disso, sempre conseguia boas gorjetas; nas noites as pessoas eram mais mão aberta. O passageiro trajava roupas escuras, provavelmente azul marinho ou preto; camisa social e paletó sem gravata; Donizete não conseguiu ver se usava calças jeans ou social. Porém, o mais estranho era que o passageiro usava óculos escuros, mesmo durante a noite. _ Rua Jean-Babtiste Debret, por favor._ disse o passageiro enquanto retirava os óculos de sol. Donizete se endireitou no banco do motorista e pôs o sinto de segurança; bateu a porta e acionou o taxímetro. _ É pra já. Ligou o carro, o ar-condicionado, fechou os vidros e comunicou pelo rádio que havia pego um passageiro e estava saindo para uma corrida.

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Como todo bom taxista, Doni era uma pessoa muito boa de conversa e sempre procurava puxar papo com seus passageiros para tornar a viagem um pouco mais descontraída. Gostava de conversar sobre praticamente tudo, política, economia, futebol, atualidades, religiões; qualquer coisa. E era muito comum que as pessoas falassem sobre todos esses temas nas viagens; o taxista sempre tinha uma opinião ou uma posição firme e bem definida sobre tudo. Ele começou: _ O senhor é estrangeiro?_ desconfiou que o homem não fosse Brasileiro pelo sotaque. O carro saiu pela rua, tranquilamente. O passageiro colocou os óculos escuros num bolso interno do paletó. Era um homem caucasiano, alto, magro, louro e com olhos escuros; parecia com um norueguês que certa vez havia feito uma corrida no taxi; ele tinha aquelas marcas escuras abaixo dos olhos e a face dura e levemente ossuda, com as marcas de expressão bem definidas e profundas tanto na testa quanto próximas do nariz e boca. Donizete olhou pelo retrovisor interno e percebeu que o passageiro estava olhando para fora do veículo pelo vidro obscurecido e fechado quando respondeu. _ Sim, sou. Donizete insistiu: _ Noruega? _ Perguntou mesmo sabendo que o homem não era norueguês; tinha certeza disso porque ouviu o sotaque carregado de um espanhol. Geralmente turistas só se utilizavam do idioma espanhol quando queriam passar a sensação de que sabiam falar português, do contrário, sempre usavam o inglês como forma

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de comunicação; salvo aqueles que tinham a língua hispânica como língua mãe. Donizete já tinha carregado em seu taxi vários turistas suecos, ingleses, americanos, franceses, noruegueses e muitos espanhóis e sul-americanos em geral; Argentinos, Uruguaios, Peruanos, Chilenos etc... O Rio de Janeiro estava cada dia mais parecido com uma enorme aldeia global; uma espécie de Babel cultural. _ Não._ Respondeu ainda olhando pelo vidro provavelmente para o movimento de pessoas e carros ao redor. O movimento noturno do Rio de Janeiro é atualmente um dos mais pulsantes de todo o mundo e com o intenso número de turistas chegando a cada dia a tendência é aumentar ainda mais. Obviamente o passageiro era uma pessoa reservada e de poucas palavras. _ Americano?_ insistiu Donizete. Apenas para obrigar o passageiro a falar um pouco. O motorista gostava de conversar principalmente porque conseguia conhecer as pessoas dessa forma. No caso do tal norueguês, o visitante havia conversado tanto que tinha espantado Donizete; o homem falava o tempo todo mesmo sem saber falar o idioma nacional, misturava o inglês, às vezes o espanhol e um pouquinho, apenas, de português. Donizete por outro lado também não dominava nenhuma daquelas línguas exceto a sua, é claro, mas arranhava um pouquinho de inglês e espanhol, apenas o suficiente para manter sua relação comercial. No caso, Donizete passou a concordar fazendo sinais de afirmativo com a cabeça em certa hora do trajeto até o ponto onde deixou o turista da Noruega; um hotel. _ Sou espanhol._ disse o passageiro.

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“Na mosca”_ Pensou Donizete com orgulho de si mesmo. Investiu mais uma vez. _ De que parte da Espanha? Tenho um cunhado que está morando em Madri; ele é irmão da minha esposa. O passageiro suspirou e deixou de olhar pela janela. _ Valhadolide. Mas faz um ano que moro aqui. Donizete balançou a cabeça; não tinha nenhuma informação sobre esse lugar; Valhadolide; da Espanha ele só conhecia Madri porque havia viajado com a esposa e filhos um ano antes para lá em férias programadas durante cinco anos de economia, mas valeu cada centavo. _ Não conheço._ disse o taxista. O passageiro não continuou a falar. Percebendo isso, Donizete perguntou: _ E está gostando do Rio? A resposta foi tão simples quanto as demais. _ Sim. Estavam se aproximando do destino e o passageiro se endireitou no banco. Donizete olhou novamente para ele pelo retrovisor interno e viu quando ele tirou do bolso os óculos que estava usando inicialmente, mas não colocou sobre os olhos. _Falta pouco. A rua Debret é logo no final daquela avenida, à esquerda. Donizete sabia exatamente que rua era aquela, quando trabalhava durante o dia costumava passar por lá para cortar caminho e evitar o trânsito, mas durante a noite não gostava muito de fazer esse trajeto. Tratava-se de uma rua repleta de casarões grandes, antigos, abandonados e também muito mal-cuidados, além do que, de uns tempos para cá havia se tornado

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um lugar ermo. Com muitos moradores de rua transitando pelas redondezas. Estava fazendo uma curva acentuada para à esquerda; buzinou rapidamente para um outro taxi parado no sinal vermelho que acabara de abrir. No final da via estaria no ponto de destino, o cruzamento da principal com a Jean-baptiste. Donizete pensou em alertar o visitante que se tratava de um lugar complicado, sobretudo, durante as noites, mas logo desistiu; afinal de contas, se o homem queria ir para lá é porque sabia como o lugar era. Donizete controlou a vontade de falar mais alguma coisa, mas permaneceu com a curiosidade; afinal, o que um residente estrangeiro ia fazer numa localidade tão esquisita como aquela; não existia nenhum bar, nenhuma casa noturna, nem mesmo casas de mulherio. O Rio de Janeiro tinha uma miríade de outros lugares maravilhosos para se visitar à noite. Nada justificava uma visita noturna àquela área. Ficou calado. _ Vou me encontrar com alguns amigos._ Revelou o passageiro. Ora! Donizete não tinha dito nada, será que tinha pensado em voz alta para que o passageiro ouvisse e respondesse; ficou confuso. Estava chegando à esquina da rua em questão, o trânsito um pouco mais movimentado havia ficado na avenida, e como a rua na qual se encontrava era uma via secundária, logo, estava muito menos movimentada. Na esquina estavam paradas duas pessoas, aparentemente um homem, uma mulher e mais ninguém em mais de cem metros para qualquer lado. Eles vestiam-se também com roupas escuras e ambos usavam óculos escuros, mas estavam num

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lugar onde até mesmo a iluminação dos postes não os alcançavam. _ São eles._ disse o passageiro. _ Pode me deixar aqui mesmo. Donizete encostou o taxi junto ao meio fio torcendo para o homem sair logo do veículo. _Pois não. O passageiro se inclinou para frente e chegou bem próximo do pescoço do motorista que já ia virar para trás a fim de receber o dinheiro da corrida quando de relance passou os olhos no retrovisor e cruzou o olhar com o do outro fixado nele pelo espelho. Seu sangue gelou na mesma hora. O homem no banco de trás tinha os olhos esbranquiçados, não estavam assim minutos atrás, mas aquilo não era o detalhe mais aterrorizante. _ Quanto lhe devo? _ perguntou com a voz ainda mais grossa do que antes e com aquele sotaque ainda mais visível. As duas pessoas paradas num ponto pouco iluminado da esquina saíram das sombras e caminharam na direção do carro assim que viram o veículo parar. Donizete pensou que estava tendo algum tipo de alucinação; a mulher era pálida como uma folha de cartolina, assim como o homem, e, o preto das roupas, dos óculos, dos cabelos de ambos e do batom dela se contrapunham a palidez mortal de ambos. _ Quanto devo ao você, Sr. Donizete._ perguntou novamente o passageiro. O motorista estava tão apavorado que nem se deu conta de que o homem o tinha chamado pelo nome, mesmo sem que ele tivesse revelado durante o trajeto. Só foi perceber aquilo na manhã seguinte. Donizete gaguejou para responder:

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_ Quin..ze re...re..ais. Quinze reais!_ disse finalmente. Quando o homem perguntou quanto tinha sido a corrida, Donizete viu os dentes grandes; caninos, como os de um animal. Pensou todos os tipos de teorias possíveis para explicar aquilo, mas o coração estava disparado. A confusão aumentava dentro dele. O passageiro se moveu lá atrás e recostou novamente no banco, em seguida, estendeu a mão para o motorista no banco da frente com uma nota de cinqüenta reais. _ Não tenho menor. Fique com o troco. Os outros dois fora do carro caminhavam olhando a todo momento para os lados. Donizete pegou a nota sem nem olhar para ela, se fosse uma nota de dois reais ele ficaria satisfeito; tudo o que queria era sair dali imediatamente. Os outros alcançaram o taxi. O passageiro recolocou os óculos, abriu a porta e antes de sair disse: _ Tenha uma boa vida. Ele saiu do automóvel e Donizete pensou que fosse sofrer um ataque do coração, o peito doía intensamente. Pensou na família, pensou na vida que tinha levado até aquele momento; tudo tão rápido que pareceu acontecer em um único pensamento. O passageiro se juntou aos outros dois a mulher o abraçou, em seguida olhou para dentro do carro pelo vidro fechado e sorriu deixando visíveis os mesmos dentes longos. Donizete tentou reunir forças para engatar a marcha e sair, mas não conseguiu. Os dois homens fora do carro apertaram as mãos como bons conhecidos e depois eles três caminharam rua adentro sem

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sequer olhar para trás; todos andaram até desaparecer encobertos pela escuridão do lugar. A dor no peito diminuiu devagar e Donizete arrancou com o carro tão rápido quanto conseguiu; suava frio e sentia os golpes pesados do coração contra o peito como marteladas internas. Ficou aliviado quando saiu daquele lugar e decidiu ainda ali que não trabalharia mais durante a noite. De repente, foi como se um véu tivesse sido tirado dos olhos dele, o mundo perdeu um pouco do sentido que tinha antes e uma nova realidade nasceu emergindo das sombras na mente do taxista. Pensou que fosse enlouquecer. Parou de trabalhar nas noites sem explicar os motivos reais para ninguém que conhecia, mas a última coisa que ele queria na vida era voltar a encontrar qualquer um daqueles noctívagos e passaria o resto da vida se perguntando quantos deles andariam livremente pelas noites da cidade.

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Exército de zumbis Francisco parou o carro, desligou o motor e ficou alguns segundos parado lá dentro, sem coragem de sair. Olhou para o relógio e averiguou o horário; duas da madrugada. Mais uma noite de procura, e ele queria estar em qualquer lugar menos ali; por outro lado, tinha algo a fazer. Saiu do carro hesitante, olhou em volta como sempre fazia, a rua larga estava completamente vazia, as lojas do comercio que durante o dia recebiam milhares de pessoas estavam completamente as escuras; protegidas por sombras dando a impressão de que todo aquele quarteirão era na verdade parte de uma cidade desabitada. Trancou o veículo e colocou-se a caminhar, pôs as mãos nos bolsos da calça jeans surrada para se proteger um pouco mais do frio que fazia naquela noite em particular. Francisco também usava um casaco velho de moletom. Caminhou por duas quadras completamente sozinho até encontrar as primeiras pessoas. Um grupo pequeno, seis a oito pessoas, estavam sentados no meio fio e ao longe Francisco via pequenos vagalumes faiscando nas mãos de alguns deles. Uma fumaça tênue também se erguia do grupo que parecia querer ficar o mais junto possível para afugentar o frio da madrugada. Francisco caminhou procurando não fazer nenhum movimento mais agressivo, em direção ao primeiro grupo. Não queria que eles o considerassem uma ameaça e também não queria afugentá-los. Se aproximando em uma distância que julgou segura ele olhou para cada uma das pessoas que ali estavam, sete homens;

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alguns altos, outros baixos, caucasianos e negros, e todos muito magros e malcuidados, estavam sujos, desgrenhados e no momento em que Francisco olhou, viu que quatro deles estavam fumando; isso explicava as pequenas faíscas luminosas que ele tinha visto ao longe e a fumaça que era lançada ao ar. Não achou quem procurava e passou por eles sem dizer nada. Continuou em frente. Este era o atual lema de sua vida; continuar sempre em frente. Francisco tinha quarenta e nove anos, e estava em busca da filha de vinte anos, Lucia, que há um mês não dormia em casa. Ele, juntamente com o filho, procurou alguns colegas de Lucia e conseguiu a informação de que ela estava dormindo pelas ruas sem querer mais manter contato com nenhum deles ou com qualquer pessoa conhecida. Caminhou mais um quarteirão e avistou mais um grupo de pessoas, não era pequeno como o primeiro, mas sim composto de muitas pessoas; tomava a rua larga de um lado a outro como um enxame de abelhas. Homens e mulheres caminhando de um lado para outro aparentemente sem destino. O coração de Francisco doeu naquele momento. Continuou andando até ser engolido pela multidão; ele prestava atenção em todas as mulheres que possuíam as características físicas da filha; alta e esbelta, cabelos na altura dos umbros. Ficou surpreso com a quantidade de mulheres vagando ali, algumas não eram mais do que adolescentes, muitas estavam grávidas, e todas estavam completamente alucinadas. Falavam coisas estranhamente desconectas. De igual modo os homens e alguns meninos com não mais do que dez ou doze anos também caminhavam cada qual

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carregando um copo de plástico nas mãos ou um cachimbo improvisado que usavam para compartilhar o vício que os unia todas as madrugadas, como numa estranha confraria, naquela região. O crack. Tudo o que ele queria era achar Lucia e ir para casa. A multidão parecia ser um só ser, ora estava caminhando para um lado e ora para o outro, como um cardume de sardinhas escuras sujas e maltrapilhas. De certa forma lembrava antigas procissões, nas quais homens e mulheres carregam velas, flores, terços e caminham silenciosamente de um ponto a outro da cidade, o que, absolutamente, não era o caso ali. Ao invés das velas eram isqueiros; no lugar das flores, os pequenos cachimbos ou copos plásticos e no lugar dos terços, as pequenas pedras de crack. Os olhos daquelas pessoas estavam vidrados, mas ao mesmo tempo não mostravam vitalidade alguma, eram olhos cansados; os ossos das faces de muitos deles eram salientes e outros tantos ostentavam um corpo magro, chegando a ser esqueléticos; com braços e pernas tão finos que pareciam um grave caso de desnutrição somado a um quadro agudo de anorexia. Francisco sabia que se tratava dos efeitos devastadores da droga e não entendia como o corpo humano podia suportar tamanha brutalidade. Teve vontade de chorar só em pensar na filha com aquela aparência terrível. Alguns homens não usavam camisa e ignoravam o frio noturno por completo, suas costelas aparentes eram recobertas apenas por uma fina camada de pele sem gordura protetora alguma. Tais imagens jamais se descolariam de sua retina. Ouviu alguns gritos mais à frente e logo percebeu que um pequeno grupo estava discutindo e batendo boca por alguma

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coisa que ele não sabia o que era; aparentemente uma mulher muito magra com uma criança pendurada nos braços como se fosse um boneco, arrancou um dos copos usados para a inalação da droga das mãos de outra e correu por alguns metros se embrenhando ainda mais no enxame humano; aquela que perdeu o objeto gritou alguma coisa e provavelmente não teve força para correr atrás da outra. Francisco teve o cuidado de olhar para uma das mulheres, não era sua filha; graças a Deus. A outra sumiu muito rapidamente, mas também não tinha o biótipo de Lucia. Continuou caminhando. Já fazia três semanas que Francisco passava por aquela rotina, todas as noites ele ia até aquele lugar e caminhava, olhava para as pessoas; às vezes conversava com algumas delas, perguntava se alguém conhecia a filha, descrevia Lucia, mostrava fotos e sempre voltava sem nenhuma informação a respeito dela que pudesse ajudar. Francisco era um homem desesperado apesar de seu ar aparentemente tranqüilo quando falava com as pessoas, mas sua vida agora estava de cabeça para baixo e se resumia a busca pela filha, nunca desistiria, ia continuar procurando por quantas noites fossem necessárias. Sempre suportando a dor terrivelmente excruciante que seu coração sofria cada vez que via um homem ou mulher naquela situação. A mãe de Lucia, esposa de Francisco, estava em piores condições do que ele, Jandira era uma mulher extremamente doce e forte, mas a notícia dada pela própria filha de que era viciada em crack foi um golpe duro demais, não só para ela como para ele e para toda a família. Já fazia semanas que Jandira se mantinha sob a influência de remédios. Mesmo

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assim durante os dias ela andava a cidade toda procurando em hospitais, delegacias, casas de recuperação para dependentes químicos, centros de grupos de apoio e lugares afins na companhia do filho e irmão de Lucia, Beto, pela filha que desaparecera. Lúcia não telefonou mais para casa e não atendeu nenhum dos telefonemas dados por seus familiares; provavelmente tivesse vendido o aparelho celular para usar o dinheiro no vício. Era triste, mas nem Francisco nem Jandira podiam se abater com aquilo, ainda tinham esperança de trazer a filha para casa e fariam o sacrifício que fosse necessário para ajudá-la. A epidemia de crack estava se espalhando mais rápido do que qualquer outra droga já comercializada antes nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que já haviam sido quase totalmente infectadas criando feridas como aquelas, feridas sociais chamadas de cracolândias; eram ruas, terrenos, prédios abandonados, viadutos e uma infinidade de lugares, tanto durante o dia quanto de noite. Outras cidades seguiam o mesmo caminho num ritmo assustadoramente veloz. Tudo acontecia à luz do dia, bem diante de todos; sociedade e autoridades fecharam os olhos por um período de tempo, talvez acreditando que as coisas se arrumariam por si mesmas e o resultado foi devastador. A multidão pela qual Francisco navegava naquela madrugada era a prova viva daquilo. Francisco se sentia culpado também; podia ter percebido, podia ter interferido de alguma forma, podia ter tentado alguma manobra que afastasse Lucia do dragão do vício; mas não o fez, e agora corria um sério risco de perdê-la para o que ele considerava a maior epidemia urbana dos últimos tempos.

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Pensou em quantos pais e mães estavam passando pela mesma agonia que ele; não desejava aquilo para ninguém. No fundo, havia pouco a fazer; mas não podia ficar mais em casa simplesmente esperando, não podia se abater e por esse motivo caminhava e procurava todas as noites. Pretendia continuar fazendo aquilo até encontrá-la. A certa altura ele começou a ver pessoas caídas pelo chão ou encostadas nas portas das lojas fechadas; muito lixo também estava espalhado pela rua e algumas meninas, jovens mulheres se aproximaram dele para se oferecerem em um programa, vendendo o próprio corpo em troca de dinheiro, uma quantia assustadoramente baixa, Francisco mal pôde crer; outras apenas pediam alguns trocados; duas delas já estavam grávidas. Meninas com olheiras enormes e arroxeadas e o físico muito debilitado. Alguns homens também se aproximaram dele tentando vender relógios e uma serie de pequenos objetos também na intenção de angariar algum trocado que pudesse ser gasto imediatamente. Francisco mostrava a falta de interesse no negócio da forma mais polida que conseguia. Cães corriam no meio das pessoas e latiam uns com os outros num comportamento que às vezes parecia o mesmo apresentado pelos próprio homens, se é que ainda podiam ser considerados assim; suas formas magras, seus rostos sem cor, suas roupas sujas, as vozes desencontradas e a total falta de sentido da multidão caminhando rumo a nenhum lugar dava a impressão de que Francisco estava acompanhando um exército de zumbis. Os cachimbos soltavam suas fumaças em cantos escuros da rua e as faíscas provocadas pelos isqueiros espocavam diversas

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vezes durante a caminhada. Francisco olhou para todas as mulheres que encontrou, mas nenhuma delas era a filha que tanto queria encontrar. A multidão começou a se dissipar de um modo meio impreciso e vagaroso, não havia alternativa a não ser fazer o caminho de volta. Enquanto voltava para o carro ele abordou algumas pessoas que pareciam estar em melhor estado e perguntou pela filha dando as características dela e mostrando as fotos, mas não houve resposta positiva. Parecia que Francisco estava procurando um fantasma; mas ele sabia, tinha certeza, que ela estava por ali e que mais cedo ou mais tarde a encontraria, só tinha medo do jeito como a encontraria. Todas as noites terminavam do mesmo jeito. Francisco voltava para o carro e chorava dentro dele por um longo período de tempo com o rosto encostado ao volante, em seguida ligava o veículo e voltava para casa já pensando na próxima madrugada.

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Leal guardião Vlad estava abaixado atrás de um arbusto alto, oculto nas sombras produzidas pela noite. Aguardava pacientemente olhando para a casa no centro do terreno; havia muitas luzes acesas lá dentro e ele captava sons diversos sendo emitidos do interior do lugar; muitas pessoas também se encontravam lá dentro, pessoas que ele conhecia; seus mestres estavam lá, junto com outras que ele jamais tinha visto. Todas conversavam e ele ouvia as vozes perfeitamente, mas não conseguia distinguir exatamente o que estavam falando. O terreno ao redor da casa, por outro lado, estava completamente entregue à escuridão. Era um lugar amplo com muros altos cobertos por plantas trepadeiras nos fundos e com muitos arbustos na parte frontal junto ao muro e ao portão de entrada onde ele estava escondido sorrateiramente. Havia dois carros na garagem aberta; pertenciam a seus mestres, mas eles não tinham aparecido desde que os outros chegaram. Estava preocupado. Os olhos vivos e penetrantes dele enxergavam perfeitamente na escuridão e Vlad sentia o cheiro forte de cada uma das pessoas dentro da casa. O chão estava parcialmente umedecido por uma leve chuva que havia caído poucas horas antes e ele olhou para o céu, duvidoso, sem saber se voltaria a cair água ainda naquela noite. A chuva costumava atrapalhar sua capacidade de sentir os odores ao redor, e embora não fosse nada sério, ainda preferia noites mais secas. Um vulto passou por uma das janelas frontais, se movendo dentro da casa; um dos estranhos, mas logo desapareceu. Havia

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cortinas cerradas nas janelas e isso não permitia a Vlad saber ao certo quem estava transitando naquele lugar da casa. Ele ouviu o som de um carro que passou pela rua e teve de se abaixar um pouco mais para não ser visto; não queria ser visto ali, não podia ser visto ali. Estava preparado para qualquer eventualidade e seu instinto dizia que devia ficar escondido sem chamar atenção caso seus mestres precisassem de alguma intervenção rápida para defendê-los. Vlad ouviu as risadas dentro do imóvel e enfiou a cabeça entre as frestas da folhagem dos arbustos para ver melhor outras partes do terreno. Fincou as garras no chão e rosnou baixo, quase de modo inaudível quando uma das pessoas, uma mulher, que ele não conhecia apareceu finalmente na janela, afastando as cortinas e olhando para o terreno do lado externo. Ela disse: _ Já parou._ Falou enquanto colocava a mão para fora pela janela. O cheiro dela pareceu inundar todo o terreno e Vlad teve de se controlar mais uma vez para não saltar de trás do arbusto como um verdadeiro monstro e separar o braço dela do restante do corpo; nunca tinha atacado alguém com tamanha ferocidade antes, mas não podia correr o risco de que seus mestres ficassem tanto tempo dentro da casa com aquela gente desconhecida e estranha. Pensou em Mia, onde ela estaria agora, por que não tinha aparecido para falar com ele? Mia tinha entrado na casa momentos antes da chuva começar, não tinha visto Vlad atrás dos arbustos, mas nem fez menção alguma de procurá-lo, o que não era muito comum nela. Mia sempre o procurava quando chegava em casa, mesmo que fosse apenas para dizer que tudo estava bem.

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A janela permaneceu aberta mesmo quando a mulher saiu de lá e por ali passavam os sons dos sorrisos e conversas num idioma que ele não conhecia; tentou compreender, mas não era possível. Vlad só conseguia entender a voz de seus mestres e de mais ninguém; era assim desde que ele se lembrava. Sempre foi. A voz de mia passou pela janela e chegou até o arbusto tão clara como se ele estivesse ao lado dela. _ Vou lá fora. _ disse ela. Vlad empertigou-se e se esgueirou para a moita ao lado; como uma sombra que troca de direção quando a luz que a projeta é mudada de lugar. Nesse novo esconderijo ele conseguia ver a porta frontal da casa. Se Mia fosse sair seria por aquele lugar. Ele ouviu: _ Antes de sair; traga a faca para mim._Era a voz de seu mestre, pai de Mia. Uma voz que ele conhecia muito bem. Ao ouvir aquilo Vald saiu detrás do arbusto e correu pelo quintal com o máximo de cuidado possível para não ser visto pelos visitantes. Passou pela porta e pela janela aberta correndo como um monstro negro; não foi visto. Nos fundos da casa ele colocou a cabeça na porta, espreitando; era uma porta de armação em ferro escovado e com vidros lisos que permitiam ver tudo dentro da cozinha; e retirou rapidamente quando viu Mia entrar no lugar. Ela recolheu uma faca sobre a mesa, olhou para a lâmina girando-a e em seguida voltou por onde tinha vindo. Vlad encostou a cabeça no vidro, ouviu os paços das pessoas dentro da casa. Correu novamente para o terreno na frente do quintal, passando pela garagem, mas procurando ser o mais sorrateiro possível.

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Se ele pudesse falar, chamaria por mia e perguntaria quem eram aquelas pessoas estranhas, e o que estava acontecendo dentro da casa. Mas a fala não era uma das muitas habilidades de Vlad, tudo o que ele conseguia era produzir um indistinguível conjunto de grunhidos. Voltando rapidamente para o arbusto ele se abaixou como um animal selvagem em posição de tocaia aguardando pacientemente até ser convocado para a caçada. De repente seus olhos foram atraídos para algo sobre a casa; criaturas voadoras giravam em plena noite ao redor do imóvel. Quando ia se levantar novamente para tentar um ataque mesmo sabendo que não seria eficaz, ouviu a voz de Mia novamente. _Vlad! Venha até aqui. Ela acabara de sair pela porta da frente. Vlad saltou de trás dos arbustos e correu rapidamente mostrando seus longos dentes caninos e com os olhos faiscando contra o reflexo da luz que vazava também pela porta. _ Venha garoto. Isso mesmo._ Mia sorria tranquilamente enquanto pronunciava as palavras. Vlad se aproximou dela com o rabo balançando freneticamente e com uma longa língua úmida pendendo para fora da boca. Mia passou a mão sobre a cabeça dele que tinha uma orelha em pé e outra caída. _ Que cachorro mais bonito é você._ disse a jovem coçando a cabeça do cão que não recusou o afago. Vlad era um belo cachorro grande e de pêlos escuros como a escuridão da noite, feroz para com pessoas estranhas, mas muito dócil para com seus donos, adorava receber carinho, principalmente de Mia. Ela sorriu ao coçá-lo.

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O cachorro se virou, estendeu a cabeça para trás e para cima, em seguida passou a lamber a mão daquela que o afagava como uma forma de retribuição pelo carinho.

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Irmãos gêmeos Everton chegou à emergência do hospital sem saber exatamente o que queriam com sua família; ele foi acompanhando a mãe que recebera um telefonema naquela mesma manhã onde uma assistente social solicitava que Délia Pereira, mãe de Everton, comparecesse o mais rápido possível na unidade de saúde. _ Alô! _disse a funcionária do hospital quando a chamada foi atendida. _ Sim. _respondeu Délia Pereira. _ Gostaria de falar com Délia Pereira. _ É ela. _ Me chamo Suzana e estou fazendo essa chamada do Hospital Geral de Mesquita. Preciso que a senhora compareça aqui o quanto antes. É urgente. Délia pensou um pouco; não tinha nenhum negócio com o hospital, sua saúde estava perfeita; a única ligação que teve com aquele hospital foi uma bateria de exames de rotina, feita seis meses antes, pedida pelos médicos que confirmaram que ela tinha a saúde impecável. _Do que se trata._ perguntou _ É sobre seu filho. Délia morava com o filho; Everton, de trinta anos e também com a noiva dele Diana. Todos dividiam a casa de dois quartos, sala, banheiro e cozinha. A funcionária do hospital desligou o telefone e deixou Délia pensando o que poderia ter acontecido. Everton não usava os serviços do hospital geral, a firam onde ele trabalhava disponibilizou um plano de saúde que dava direito as

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dependências de uma outra unidade muito mais bem preparada do que aquela. Everton estava se preparando para sair para o trabalho, quando a mãe apareceu na porta do quarto e disse que teria de ir até o hospital; pediu que ele fosse também porque queria falar sobre ele. _ Deve ser algum engano._ disse à mãe._ Faz meses que não vou lá; a última vez, se não me engano, foi aquela em que fui visitar a tia da Diana quando ela operou; não lembra? Délia lembrava perfeitamente, mas agora estava intrigada; poderia não ser absolutamente nada, mas seu coração estava apertado e agora só descansaria quando soubesse exatamente do que se tratava aquele chamado. Quando entrou no saguão da emergência, Everton foi falar com uma atendente que conversava ao telefone e anotava algo numa folha de papel; a mulher estava atrás de um balcão encimado por um acrílico transparente que servia de divisória. O saguão possuía muitas cadeiras, a maioria ocupada por pessoas que desejavam ser atendidas ou por parentes que as estavam acompanhando. A atendente fez um sinal para ele, pedindo que aguardasse um segundo e terminando de escrever, desligou o telefone. _ Retire uma senha ali no canto_ disse ela apontando para um totem pequeno com um rolo de pequenos tickets numéricos. Everton se aproximou da única abertura redonda e pequena que existia no acrílico e disse o motivo de estar ali. _Bon dia; não vim ser atendido. Fomos chamados a comparecer no hospital por uma assistente social chamada Suzana. Ela disse que era assunto muito sério.

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A mãe de Everton tinha se aproximado de um daqueles bebedouros com um galão de água, retirou um copo descartável do suporte na parede e coletou um pouco d’água. A moça na recepção nem olhou para Everton; abriu uma gaveta e tirou um livro, abriu numa página previamente marcada; percorreu os nomes os nomes que estavam escritos na página com a caneta bic preta que tinha em mãos e deu um visto em um deles. _ A senhora Délia Pereira, não é?_ falou a recepcionista. _ Exato. Ouviu-se o som de uma campainha e os números vermelhos que estavam sendo mostrados numa pequena tela sobre o balcão de atendimento da recepção mudaram do noventa e um para noventa e dois. Um senhor se levantou vagarosamente de uma das cadeiras e se encaminhou para uma porta lateral. _ Você está com ela?_ perguntou a moça atrás do acrílico. _Sim estou. _ Ótimo. O médico já vem falar com vocês. Aquilo era muito estranho. _ O que ele quer com ela?_ perguntou. A moça balançou a cabeça negativamente. Ela disse: _ Aguarde um pouco que ele já vem falar com vocês. Everton foi se sentar junto da mãe que tinha conseguido uma cadeira vazia perto da porta da entrada. Ficaram ali olhando as pessoas que entravam e saiam; algumas buscavam atendimento, mas desistiam ao ver a quantidade de pessoas que já estavam esperando ali, muitas delas desde as primeiras horas do dia. Outras não tinham escolha e acabavam por retirar uma senha e sentar. Muitos dormiam sentados.

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A certa hora uma porta de vai-vem que existia praticamente ao lado do balcão de informações se abriu e um homem baixo e gordo, usando óculos de armação fina surgiu; ele trazia o estetoscópio em repouso ao redor do pescoço e caído sobre a frente do jaleco branco. Ele chamou um nome, ma mulher se levantou e foi até ele acompanhada por mais duas pessoas. O médico a conduziu até um canto e conversou algo em poucos minutos. A mulher começou a chorar e abraçou a outra pessoa que com ela estava, todos ficaram aparentemente muito ressentidos da notícia que acabavam de receber; a mulher continuava chorando de forma que chamou a atenção de grande parte das pessoas que estavam sentadas aguardando. Finalmente o médico levou todos para dentro passando pela mesma porta por onde ele mesmo havia surgido. Everton se levantou depois de quase uma hora de espera e foi até uma máquina de café no canto mais afastado do lugar; olhou o os preços de cada modalidade de café e escolheu o clássico café com leite. Apertou o botão logo depois de colocar algumas moedas e aguardou. Assim que retirou o pequeno copo de plástico da máquina ouviu o nome de sua mãe sendo chamado por alguém. Virou-se e viu outro médico; Alto, negro, careca e sem óculos, mas com os mesmos trajes brancos e estetoscópio no pescoço. Ao se aproximar dele aguardou que ela fizesse o mesmo. _ Dona Délia Pereira?_ perguntou o médico só para constar. _ Sim sou eu._ ela respondeu. _ O senhor é parente?_ disse apontando com uma caneta bic azul na direção de Everton. _ Exato.

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_ Sinto muito trazer essa notícia, mas seu filho veio a óbito nessa madrugada. Ela piscou e Everton pensou ter ouvido errado. _ Desculpe?! Acho que não compreendi._ Rebateu ele. O médico repetiu com toda a paciência do mundo, como se não estivesse atolado até o pescoço em trabalho; como se uma emergência fosse o local mais tranqüilo de todos. _ Seu filho faleceu nessa madrugada. _Deve haver algum engano_ disse Délia. _Não senhora; checamos a identificação dele com os registros do hospital. Délia levou a mão à boca e encostou na parede sem saber o que dizer. Everton tomou as rédeas da conversa. _ Nos fomos chamados aqui para quê? _ Precisamos de uma identificação positiva para liberarmos o corpo. É procedimento apenas para constar e, é claro, a Sra. Será encaminhada para a assistente social da unidade que vai lhe dizer como proceder. Aquela família que havia entrado pouco tempo antes dele acabava de sair pela porta; a mulher ainda chorava bastante e era consolada pelos que a acompanhavam. Everton já ia protestar, mas o médico entrou pela mesma porta pela qual havia surgido. _ Me acompanhem._ disse ele. Délia e o filho seguiram o médico que andada apressado por um emaranhado de corredores, passando por pessoas acamadas por todas as partes e enfermarias lotadas de pacientes e acompanhantes sentados deitados e até mesmo de pé. Homens e mulheres presos a agulhas endovenosas por onde era ministrado soro por horas e horas.

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O médico abriu uma porta e fez sinal com a mão para que seus “convidados” passassem rápido. Após a porta havia uma escada com três lances para baixo que dava acesso a um lugar frio e com uma luminosidade fluorescente. Havia algumas mesas e sobre elas várias pessoas cobertas com panos brancos. Everton não gostou de ver aquilo e a mãe dele ficou visivelmente abalada. Um funcionário estava parado encostado no que parecia ser uma grande geladeira de alumínio com dez gavetas grandes e quadradas; cinco em uma fileira superior e outras cinco em baixo. O homem fez um sinal com a cabeça e o médico olhando á papelada que trazia na mão disse: _ Número seis. _Ok._Rebateu o outro homem. O funcionário foi até uma das mesas e descobriu o corpo, retirando o lençol de sobre ele. Dona Délia olhou incrédula para o pobre coitado sobre a mesa e desabou em um choro compulsivo imediatamente. Everton ficou paralisado. O médico moveu a cabeça olhando para Everton e depois para o homem sem vida; era visível a semelhança entre eles; na verdade, era espantosa a semelhança tanto facial quanto física. Certamente se tratava de gêmeos idênticos. Everton andou absorto ao redor da mesa, visualizando cada detalhe do outro sobre ela; não podia crer naquilo, era como olhar num espelho. O funcionário que estava lá antes deles chegarem tratou de puxar uma cadeira de algum lugar para que dona Délia pudesse sentar a te se recompor foi buscar um copo com água. O homem sobre a mesa era exatamente igual a Everton; em tudo, tamanho, tom de pele, cabelos, sinais de nascença, que

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Everton tinha ao lado da boca e no pescoço; até mesmo uma cicatriz adquirida na infância por causa de uma queimadura no abdômen provocada por brincar com um ferro de passar roupas ainda quente sem que a mãe soubesse. Só uma coisa diferenciava um do outro; o homem sobre a mesa possuía uma tatuagem. A tatuagem era na verdade uma inscrição de poucas palavras; Everton se aproximou e leu; dizia: “ Tente voltar”. Ele não entendeu o que significava aquilo. _ Qual é o seu nome?_ perguntou o médico. _ Everton Pereira. _ Obviamente cometemos um engano_ disse o médico_ Não sabíamos que você tinha um irmão gêmeo idêntico. Sinto muito. Dona Délia reagiu a palavra “gêmeo” quando foi dita e chorou ainda mais sem entender como duas pessoas poderiam ser tão perfeitamente parecidas até mesmo nos detalhes. Tanto ela quanto Everton estavam aturdidos, mas o filho conseguia a custa de muito esforço se manter no controle. Afinal, era uma sensação muito estranha, se deparar com uma pessoa exatamente igual a ele, sobretudo se essa pessoa estava morta bem diante da sua frente. Qual era a chance real de aquilo acontecer? Everton falou sem olhar para o médico; ele estava tendo a estranha sensação de que era ele mesmo deitado sobre aquela mesa. O que era humanamente impossível. Ou não? Aquele homem sobre a mesa tinha de ser outra pessoa, embora as cicatrizes e sinais de nascença testemunhassem o contrário. _ Não tenho irmão, doutor_ disse Everton_ Sou filho único.

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