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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X TUDO SOBRE A DITADURA MILITAR”: MULHERES E ESQUECIMENTO Carolina Souza Macedo Resumo: O presente trabalho deseja discutir de que forma o jornal Folha de São Paulo, ao narrar tempos depois o Golpe de 64 e a Ditadura Militar brasileira mais recente (1964-1985), contribui para a (re)escrita de uma certa memória onde as mulheres foram elididas da história. Em outras palavras, tendo como eixo a triangulação entre memória/esquecimento, ditadura militar e mulheres, o trabalho pretende compreender que construção social da memória da ditadura é feita quase exclusivamente do ponto de vista masculino e com destaque para homens. Nesse sentido, deve-se perguntar sobre o apagamento e/ou silenciamento das experiências das mulheres, seja na questão da vida privada quanto da luta política. Palavras-chave: Memória individual; memória coletiva; esquecimento; mulheres; teorias feministas; luta política. 2014 é o ano em que foi “comemorado” – no sentido que Ricoeur (Cf. SILVA, 2002) dá ao termo o cinquentenário do Golpe Militar de 64. Diversos veículos da imprensa brasileira, além de alguns estrangeiros, dedicaram páginas impressas, tempos de rádio e TV, e espaços na internet ao tema, assim como aos 21 anos de ditadura civil-militar vividos no país. Um dos veículos foi o jornal Folha de S. Paulo, ainda hoje, um dos mais tradicionais do país. Sediada na capital paulista, ele se apresenta como uma publicação de referência, com abrangência nacional e liderança em tiragem de acordo com a mesma, uma posição consolidada “durante a campanha pela redemocratização do país, em 1984, quando empunhou a bandeira das eleições diretas para presidente 1 ”. Entretanto, a Folha escolheu descolar a data e publicar no dia 23 de março um fascículo especial, encartado no jornal, que recebeu o nome de “Tudo sobre a Ditadura Militar”, disponível também como “reportagem multimídia 2 . Ao todo, o tudo sobreimpresso reuniu conteúdo em oito páginas, composto por oito textos sete deles assinados. Entre os temas abordados, motivações para o golpe, estruturas de repressão e combate à luta armada, bom desempenho da economia, resistências no campo cultural, comportamento de órgãos de imprensa e até um espaço para a ficção um bloco de “respostas” a perguntas como “E se Jango tivesse resistido ao golpe?”). A compor a cena, outras unidades redacionais distintas, como infográficos, retrancas, ilustrações, fotografias, entre outros. Na página 3, o jornal informa que o “site especial da Folha sobre a ditadura vai ao ar hoje” e nele há também “vídeos, galerias e depoimentos”. 1 Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/circulacao.shtml 2 Acesso em 06/06/2017 folha.com/golpe64

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

“TUDO SOBRE A DITADURA MILITAR”: MULHERES E ESQUECIMENTO

Carolina Souza Macedo

Resumo: O presente trabalho deseja discutir de que forma o jornal Folha de São Paulo, ao narrar

tempos depois o Golpe de 64 e a Ditadura Militar brasileira mais recente (1964-1985), contribui

para a (re)escrita de uma certa memória onde as mulheres foram elididas da história. Em outras

palavras, tendo como eixo a triangulação entre memória/esquecimento, ditadura militar e mulheres,

o trabalho pretende compreender que construção social da memória da ditadura é feita quase

exclusivamente do ponto de vista masculino e com destaque para homens. Nesse sentido, deve-se

perguntar sobre o apagamento e/ou silenciamento das experiências das mulheres, seja na questão da

vida privada quanto da luta política.

Palavras-chave: Memória individual; memória coletiva; esquecimento; mulheres; teorias

feministas; luta política.

2014 é o ano em que foi “comemorado” – no sentido que Ricoeur (Cf. SILVA, 2002) dá ao

termo – o cinquentenário do Golpe Militar de 64. Diversos veículos da imprensa brasileira, além de

alguns estrangeiros, dedicaram páginas impressas, tempos de rádio e TV, e espaços na internet ao

tema, assim como aos 21 anos de ditadura civil-militar vividos no país. Um dos veículos foi o jornal

Folha de S. Paulo, ainda hoje, um dos mais tradicionais do país. Sediada na capital paulista, ele se

apresenta como uma publicação de referência, com abrangência nacional e liderança em tiragem –

de acordo com a mesma, uma posição consolidada “durante a campanha pela redemocratização do

país, em 1984, quando empunhou a bandeira das eleições diretas para presidente1”.

Entretanto, a Folha escolheu descolar a data e publicar no dia 23 de março um fascículo

especial, encartado no jornal, que recebeu o nome de “Tudo sobre a Ditadura Militar”, disponível

também como “reportagem multimídia2”. Ao todo, o ‘tudo sobre’ impresso reuniu conteúdo em oito

páginas, composto por oito textos – sete deles assinados. Entre os temas abordados, motivações

para o golpe, estruturas de repressão e combate à luta armada, bom desempenho da economia,

resistências no campo cultural, comportamento de órgãos de imprensa e até um espaço para a ficção

– um bloco de “respostas” a perguntas como “E se Jango tivesse resistido ao golpe?”). A compor a

cena, outras unidades redacionais distintas, como infográficos, retrancas, ilustrações, fotografias,

entre outros. Na página 3, o jornal informa que o “site especial da Folha sobre a ditadura vai ao ar

hoje” e nele há também “vídeos, galerias e depoimentos”.

1 Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/circulacao.shtml 2 Acesso em 06/06/2017 folha.com/golpe64

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Uma primeira mirada, ainda que panorâmica, suscita perguntas e caminhos investigativos

iniciais. Cabe indagar, por exemplo, que fatos marcam os principais traços dessa construção. O que

marcam esses textos dos 50 anos sobre a ditadura? O que o tudo comtempla? O que a escolha por

publicar no dia 23 de março – e não 31, que marca o início do golpe – pode nos apontar? Que

valores se apresentam em disputa? Quem fala na Folha nessa construção da memória? No presente

artigo, entretanto, iremos nos ater mais especialmente a construção de uma memória social que

contempla – ou não – a participação/presença de mulheres na história. Para tanto, lançaremos mão

de teorias que pensem a memória enquanto constituidora de poder e de trajetórias e experiências

históricas que, ainda que vislumbradas em lampejos luminosos, deem a ver outras narrativas sobre o

período.

O jornal “plural”

Antes, façamos uma mirada panorâmica sobre como o veículo se articula com seus leitores e

ele próprio se lê/enxerga.

Uma matéria publicada no caderno Poder em 30 de março de 2014 – domingo seguinte ao

fascículo Tudo sobre a Ditadura Militar –, reafirmava a liderança da Folha também para além do

impresso: “A Folha é o jornal de maior circulação e audiência do Brasil, em diferentes plataformas

e métricas. Detém o maior volume de edições pagas, vende mais edições digitais do que seus

concorrentes e recebe mais cliques e visitantes em seu site do que qualquer outro jornal3”.

O movimento de tornar público – reiteradas vezes – a posição de liderança e de “jornal mais

influente do Brasil4” vem acompanhado de um status de verdade que ela reivindica para si. De

alguma maneira, parece dizer que vende mais porque rigoroso, porque rigoroso vende mais. Como

ressalta o pesquisador Claudio Abramo:

A Folha é o jornal brasileiro que mais revela preocupação com a projeção de imagem. Seu

noticiário faz frequentes alusões aos procedimentos que teriam sido executados durante o

levantamento e tratamento das notícias. O jornal edita e comercializa um Manual Geral da

Redação em que se explicitam os princípios que, idealmente, governariam seu processo

produtivo. Mais, existe em operação há alguns anos um "Projeto Folha", que incorpora

ações de marketing, reformas editoriais e de processo de produção, todas elas fartamente

propagandeadas. Como é natural, um dos efeitos de toda essa divulgação é incutir no leitor

a impressão de que o jornal é, de fato, confeccionado de acordo com todos aqueles rigores e

estipulações normativas. É como se a notícia carregasse, como texto subjacente, seu próprio

atestado de veracidade. (ABRAMO, 1991)

3 Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/158930-maior-jornal-do-brasil-folha-e-lider-em-

diferentes-plataformas.shtml 4 Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/conheca_a_folha.shtml

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Ao propagandear seus métodos de produção, ela valoriza os “princípios editoriais do Grupo

Folha: independência, jornalismo crítico, pluralismo e apartidarismo”5. O pluralismo, em especial,

parece ser acionado como elogio e, ao mesmo tempo, como defesa para rebater críticas como as que

o jornal recebeu quando publicou, no aniversário de 40 anos do golpe, texto6 assinado pelo general

reformado do Exército, Carlos Meira Mattos, no qual ele afirma:

A derrubada do governo João Goulart não foi um golpe militar, como hoje insistem em

tachar e propagar certos setores políticos e da imprensa. O dia 31 de março de 1964 foi,

sim, o marco que coroou a resposta da grande maioria dos brasileiros, apoiada pelas Forças

Armadas, ante as ameaças e as tentativas de implantação de um regime político

incompatível com a nossa vocação de viver numa sociedade livre e democrática.

A preocupação em se dizer um veículo que abriga diferentes vozes é recorrente, e ganhou

novo grifo com a campanha institucional O que a Folha pensa7, veiculada na mídia impressa, em

canais de TV aberta e fechada e na internet de 2014, mesmo ano do fascículo Tudo sobre a

Ditadura Militar. Às opiniões sobre diferentes assuntos – como aborto, pena de morte e as

manifestações de junho de 2013 – segue-se sempre o mesmo texto: “Concordando ou não, siga a

Folha, porque ela tem suas posições, mas sempre publica opiniões divergentes”.

Mas, afinal, o que o jornal considera divergência? Que vozes cabem no pluralismo da

Folha? O quão elástico é este conceito? Indo adiante, ao narrar o passado, a Folha pretende-se total

porque plural? Se sim, ela se esquece de uma das lições de Walter Benjamin: “articular

historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de

uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224).

Em outras palavras, um olhar sobre o jornal nos estimula a indagar em que medida o

encontro de opiniões que se pretendem plurais implica a construção (e possibilidade) da memória

social da ditadura que esse dispositivo engendra. Ressaltamos aqui que pensar a memória como um

campo social é enfatizar seu empenho em orientar e agir em um campo de lutas simbólicas,

discursivas e relacionais. Neste sentido, a memória social deve ser considerada em seu contexto e

produção sócio-históricos, uma vez que:

A memória se constitui como poder, como um contrato e uma luta pela imposição de uma

hegemonia, não conseguindo e pretendendo “dar conta” da complexidade social e dos

processos em curso. Ao contrário, sua dimensão de poder e, portanto, sua eficácia

dependem da política, cuja pretensão de controlar ou orientar a memória social é expressão

dos interesses em luta. Dessa forma, toda memória social é política. (MORAES, 2005. P.

93)

5 Acesso em 07/11/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/missao.shtml 6 Acesso em 07/11/16 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3103200409.htm 7 Acesso em 02/11/16 https://www.youtube.com/watch?v=SFHE0_VqT7A

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A publicação parece nos dar uma pista sobre a memória que ajuda a construir ao convidar

doze figuras consideradas eminentes para responder a pergunta Por que Jango foi deposto em

1964?, uma pergunta direcionada exclusivamente a homens e brancos e ilustrada na matéria

multimídia. A estratégia de aglutinar especialistas de diferentes áreas, que teria como efeito traduzir

pontos de vistas plurais, acaba por (re)ocultar outras tantas histórias possíveis do golpe e dos anos

de regime de exceção. São nessas vozes de autoridade que o poder e a palavra costumam se

encontrar e, como nos lembra Pierre Clastres sobre as sociedades com estado, “há acontecimento

histórico quando, abolido aquilo que os separa e assim os condena à inexistência, poder e palavra se

estabelecem no próprio ato de seu reencontro. Toda tomada de poder é também uma aquisição da

palavra” (CLASTRES, 2003, p. 169). Ainda assim, sabemos que uma pegada no chão pode apontar

caminhos, mas não os determina e, portanto, insistimos na investigação: quem fala na Folha quando

ela quer se lembrar?

Print retirado da página/reportagem multimídia folha.com/golpe64

Léxico da memória

O fascículo impresso oferece, na primeira página, uma leitura sobre os então candidatos à

presidência da república Aécio Neves e Eduardo Campos e da presidenta Dilma Rousseff, leitura

que, apesar de breve, revelam percepções distintas a depender do recorte de gênero. O primeiro é

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apresentado no ano do golpe como “um menino de quatro anos que gostava de brincar com o avô, o

então deputado federal Tancredo Neves”, a segunda como “uma estudante de 16 anos que se

preocupava pouco com política” e o terceiro como alguém que “não tinha nascido, mas se lembra

até hoje das histórias que seu avô Miguel Arraes, à época govenador de Pernambuco, contava sobre

o dia em que foi deposto e levado à prisão pelos militares”. Nas três descrições, é possível perceber

a distinção entre aqueles que, tendo já nascido ou não, têm para si designados uma nobre herança

política e possuem portas abertas à cena política/pública, e entre aquela que supostamente tinha

outros interesses que a política.

O fascículo traz uma topografia de imagens que inclui trinta fotografias da época. Dentre

elas, apenas três é possível ver mulheres: uma pequena fotografia (em close) da escritora Ana

Cristina César, no rodapé da página 7 e acompanhada dos dizeres “Cenas de Abril – Poesia, 1979.

Livro independente da poeta que, com escracho e lirismo, marcou a contracultura nos 70”; uma

imagem localizada na parte debaixo da mesma página 7 contendo seis atores do Teatro Oficina a

encenar a peça O Rei da Vela e em que é possível ver duas atrizes (não identificadas

nominalmente); e um registro de artistas e intelectuais espalhados na Passeata dos Cem Mil,

realizada em 1968, em que, dentre as dez pessoas identificadas, duas delas são Ítala Nandi (“atriz,

atuava em O Rei da Vela”) e Nana Caymmi (“cantora, era casada com Gilberto Gil”).

Já os textos somam quase 45 mil caracteres, assinados por seis jornalistas, cinco homens e

uma mulher (Érica Fraga8). Entre as cerca de mais de sete mil palavras contidas nos textos, a

palavra mulher existe apenas uma única vez; aparece quando é feita menção à resistência ao

governo do presidente João Goulart demonstrada na Marcha da Família com Deus pela Liberdade

(“Mulheres de classe média, líderes religiosos e políticos de oposição estavam na linha de frente da

passeata”). Dentre as pessoas mencionadas, seja protagonizando momentos importantes da história

ou atuando como personagens laterais, seja como sustentação à ditadura ou na resistência e luta pela

democracia, há apenas duas mulheres: a então presidenta Dilma Rousseff e a cantora Nara Leão, na

matéria Da resistência ao showbiz, que cita o musical Opinião (“Dirigido por Augusto Boal, o

espetáculo era assinado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Levava ao

palco Zé Keti, João do Vale e Nara Leão para protestar contra a ditadura que se instalava”).

Não há nenhuma menção a indígena, índio, negra, negro, gay, lésbica, bissexual, feminino,

feminista, entre outros. O grifo à inexistência deste vocabulário não é despropositado; há ações e

8 Jornalista da Folha de S. Paulo desde maio de 2010. Segundo o veículo, é “jornalista com mestrado em Economia

Política Internacional no Reino Unido. Venceu os prêmios Esso, CNI e Citigroup. Mãe de três meninos, escreve sobre

educação, às quartas.”. Acesso em 26/06/2017 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ericafraga/

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fatos históricos que, se ganhassem visibilidade, poderiam oferecer contribuições importantes para

debates atuais. Além disso, sendo o jornal um veículo de comunicação que disputa mercado, ele

poderia ganhar prestígio apresentando um bom trabalho de apuração e pesquisa. Sobre esses

“vocabulários”, há diversos momentos não canonizados, mas não menos importantes. Em 1969, por

exemplo, o Itamaraty instala a Comissão de Investigação Sumária que listou 44 funcionários a

serem cassados, sob a acusação de “prática de homossexualismo” e “incontinência pública

escandalosa”. Nesse mesmo ano, o Reformatório Agrícola Indígena Krenak começa a funcionar no

Posto Indígena Guido Marlière (hoje denominada Terra Indígena Krenak), no município de

Resplendor, Minas Gerais. Comandado por agentes da Polícia Militar mineira, o local é, na verdade,

um campo de trabalhos forçados, com tortura e maus tratos a índios de mais de 15 etnias. Em 1978,

o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) é fundado em ato público

que reúne duas mil pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato denuncia a

violência policial contra negros. Em 1980, treze organizações protestam, no Centro de São Paulo,

contra a Operação Limpeza, comandada pelo delegado José Wilson Richetti, que espancava,

extorquia, torturava e detinha com violência especialmente prostitutas, travestis, lésbicas e gays.

Ainda em 1980, ocorre a primeira marcha gay em São Paulo e surge o primeiro grupo

exclusivamente lésbico do país.

Onde estão as mulheres?

Para quem busca se informar por meio de um caderno que promete apresentar Tudo sobre a

Ditadura Militar possivelmente ficaria com a impressão de que as mulheres não tiveram

atuação/organização política no período. Quiçá existiram na cena pública. Em um exercício de

memória – nem um pouco custoso – é possível lançar mão de uma imagem talvez icônica de

mulheres a frente da Passeata contra a Censura, em que as atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva

Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Norma Bengell caminham de mãos dadas.

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Foto: Gonçalves/Acervo CPDocJB

Quando se fala em imprensa alternativa é também comum trazer à memória veículos como

Pasquim e jornal Movimento, certamente de grande importância para a resistência. Mas assim como

outros, a Folha parece se esquecer de publicações que tiveram mulheres a frente e que, inclusive,

tencionavam as narrativas desses mesmos jornais alternativos.

Na edição 345 do Pasquim, Ivan Lessa escreveu: “Ei, feministas: em primeiro lugar os

direitos humanos. Depois, então, a gente vê o caso de vocês, tá?”. No mesmo ano, Elice Munerato

responde, afirmando a enorme desigualdade entre homens e mulheres em áreas como alfabetização,

salários, escolaridade, etc., e completa: “nem mesmo a imprensa alternativa dá sinais de vida

quando se trata dos direitos das mulheres. [...] numa atitude que tem muito pouco a ver com seu

‘vanguardismo’ intelectual”.

Entre as publicações, vale destacar o Brasil Mulher, primeiro jornal feminista dos anos

1970, feito por mulheres e dirigido especialmente a elas, circulando entre 1975 e 1980. Pouco

depois, surgiu o Mulherio, criado por jornalistas e acadêmicas, com circulação de 1981 a 1988 e

tendo Lélia Gonzalez como uma de suas editoras. Entre vários textos a questionar o mito da

democracia racial, sua reportagem “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”, de 1982, já colocava

em perspectiva a necessidade de se pensar um feminismo interseccional.

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No período ditatorial, as mulheres atuavam não só em grande número em movimentos de

jornalistas e artistas, mas também em entidades estudantis, organizações armadas, e nunca poupadas

pela repressão; são muitos os casos de mulheres que, além de torturadas, sofreram abuso sexual por

parte de agentes do estado.

Foto: Arquivo Superior Tribunal Militar

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1975 é instituído pela ONU como Ano Internacional da Mulher, o que possibilitou a

realização, no Rio de Janeiro, do ciclo de debates sobre o papel da mulher na realidade brasileira.

Esse mesmo ano marcaria também o surgimento de um dos mais importantes movimentos na luta

pela anistia: o Movimento Feminino pela Anistia, que conclamava as mulheres a reivindicarem, a

partir de seus papeis de mãe, esposas e filhas, a anistia para seus entes queridos atingidos pela

violência do Estado. Em 1977, Helena Greco9 tornou-se presidente e fundadora do Movimento

Feminino pela Anistia em Minas Gerais, e do Comitê Brasileiro de Anistia/MG (1978).

Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press

Ainda em 1975, o Movimento Feminino pela Anistia é criado por Terezinha Zerbini,

assistente social, advogada e ativista de direitos humanos. Posteriormente, núcleos do movimento

são espalhados pelo país. Em 1978, ele é ampliado com a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia

(CBA), no Rio de Janeiro. Formado por advogados de presos políticos e com apoio da Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB), o comitê pede a anistia ampla, geral e irrestrita, que viria a ser

conquistada em 1979.

9 Em 2005, Helena Greco foi uma das cinquenta e duas brasileiras a integrar a lista do Projeto Mil Mulheres

para o Prêmio Nobel da Paz, iniciativa da Fundação Suíça pela Paz e Associação Mil Mulheres.

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Foto: Imagem da entrevista em vídeo Therezinha Zerbini - Resistir é Preciso..., concedida ao Instituto

Vladimir Herzog (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TU9zGkhRbrc)

Manifestantes nas galerias da Câmara dos Deputados durante a votação da Lei da Anistia.

Foto: Sonja Rego/CPDoc JB.

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Conclusão

Em 1964, sob a bandeira de “tirar Jango do poder, para combinar o resto depois”

(GASPARI, 2002, p. 88), um governo eleito democraticamente foi derrubado pela força das armas,

com respaldo de eminentes grupos conservadores (empresariado, religiosos, políticos estrangeiros,

entre outros) e parte significativa dos brasileiros. O novo governo, recebido nos braços de uma

classe média aliviada por se ver longe do “perigo do comunismo” (vide Marchas da Vitória), logo

no primeiro ano começou a organizar aparatos repressivo e legal próprios, com vistas à manutenção

no poder. Em outras palavras, um conjunto de práticas e normas arbitrárias, mas com valor legal.

Seus dezessete atos institucionais, decretos secretos, leis complementares e instrumentos jurídicos

permitiram que, de forma institucionalizada, fossem praticados atos de censura, fechamento do

Congresso, demissões e exonerações, suspensão de direitos políticos e civis, prisões arbitrárias,

tortura, desaparecimentos forçados e mortes.

Investigar este período (mais de duas décadas), sobre qual repousam perguntas ainda sem

respostas, pode permitir expor redes de cumplicidades e múltiplos níveis de responsabilidade e,

assim, permitir examinar também a sociedade. Como nos lembra a pesquisadora Susana Kaiser, em

seu texto Argentinian Tortures on Trial? How Are Journalists Covering the Hearings’ Memory

Work?, trinta mil pessoas não desaparecem porque um grupo de oficiais militares tomou posse ou,

de forma análoga, um regime de exceção não se sustenta durante 21 anos porque um grupo de

oficiais militares tomou posse:

Thirty thousand people don’t disappear because a group of military officers take over. By detailing

the functioning of state terrorism, activist journalists, as professional witnesses, amplify what

unfolds at the hearings, constantly inviting memory to contextualize new information and counter

denials with proven facts. These rewrites of history expose the networks of complicities and

multiple levels of responsibility, focusing attention on actors beyond those standing trial. In doing

so, they also scrutinize society, revealing inconvenient truths for many10. (KAISER, pág. 255)

Pode também jogar luz a episódios e lutas que as narrativas oficiais, por vezes, não

contemplam. Esse movimento de olhar para o passado interrogando sobre o futuro, permite ter no

10 Tradução nossa: Trinta mil pessoas não desaparecem porque um grupo de oficiais militares toma posse. Ao detalhar o

funcionamento do terrorismo de Estado, os jornalistas ativistas, como testemunhas profissionais, amplificam o que se

desenvolve nas audiências, constantemente convidando a memória para contextualizar novas informações e contrariar

as recusas com fatos comprovados. Essas reescritas da história expõem as redes de cumplicidades e múltiplos níveis de

responsabilidade, concentrando a atenção em atores além dos que estão em pé. Ao fazê-lo, eles também examinam a

sociedade, revelando verdades inconvenientes para muitos.

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horizonte exercícios bastante salutares como refletir o atual debate sobre a corrupção, palavra

mencionada uma única vez no fascículo Tudo sobre a Ditadura Militar e como alegação (“Acabar

com a corrupção e extirpar a influência esquerdista do governo Jango eram as alegações de

militares e setores civis para dar o golpe”), apesar dos notórios escândalos durante o período, como

Lutfalla e o Caso Delfin11. Ou, como discutido no presente artigo, fomentar uma (re)escrita da

memória social onde as mulheres não sejam mais elididas da história, nem suas experiências sejam

apagadas ou silenciadas, quer na questão da vida privada ou da luta política.

Ainda que saibamos que, “dos pontos de vista fenomenológico e psicanalítico, o

esquecimento efetivamente cria a memória” (HUYSSEN, 2014. P. 157) – que, portanto, ele faz-se

necessário – e que evitemos o binarismo de opostos irreconciliáveis, talvez seja preciso reconhecer

aquilo que não se pode esquecer, algo que vai além da história que queremos contar. É reconhecer

que as temporalidades são imbricadas e não lineares, reconhecer que existe algo terrível quando se

quer esquecer-se de tudo ou de lembrar-se de muito pouco, congelando o futuro do passado, o

presente do passado e o futuro do presente.

Nesse sentido, não nos parece que a Folha não se lembra ou se esqueceu completamente. Ao

articular memória/esquecimento, ao mesmo tempo em que ela não se esquece do golpe, algumas

experiências seguem apagadas e algumas de suas consequências parecem apaziguadas,

principalmente consequências que incutem na atualidade.

“As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.”

Cartilha da cura, poema de Ana Cristina César.

Referências

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S. PAULO. Novos Estudos CEBRAP São Paulo, Nº 31, outubro 1991, pp. 41-67.

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11 Acesso em 26/06/17 http://memoriasdaditadura.org.br/corrupcao/index.html

Page 13: TUDO SOBRE A DITADURA MILITAR”: MULHERES E …...1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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___________________ “O que é um texto?”; “Explicar e compreender” e “O modelo do texto: a

acção sensata considerada como texto” Do texto à acção. p.139-212.

“Tudo sobre a Ditadura Militar”: women and forgetfulness

Astract: The present paper wishes to discuss how Folha de São Paulo newspaper, describing the

Coup of 64 and the most recent brazilian military dictatorship (1964-1985), contributed to the (re)

writing of a certain memory where women were elided of history. In other words, focusing on the

triangulation between memory / forgetting, military dictatorship and women, the paper intends to

understand that social construction of the memory of the dictatorship is made almost exclusively

from the masculine point of view and with prominence for men. In this sense, one must ask about

the erasure and / or silencing of women's experiences, whether in the question of private life or

political struggle.

Keywords: Individual memory; collective memory; forgetfulness; women; feminist theories;

Political struggle;