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O Turista Aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem Telê Ancona Lopez Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo RESUMO: O objeto deste estudo é o escritor Mário de Andrade (1893-1945) em sua experiência de fotógrafo moderno, durante sua permanência no Norte, especialmente na Amazônia, em 1927, na primeira das duas grandes viagens do Turista Aprendiz pelo Brasil. Analisa o processo criativo no qual as imagens da Codaque constituem o diário imagético dos negativos e positivos que se justapõe ao diário das legendas e ao do texto onde se desenvolvem as impressões do viajante e a invenção do ficcionista. Aponta também certos vínculos da fotografia produzida nessa viagem com as leituras, a poesia e a ficção andradiana. PALAVRAS-CHAVE: Mário de Andrade. Diários de viagem. Modernismo brasileiro. Fotografia moderna. ABSTRACT: The object of this study is Brazilian writer Mário de Andrade (1893-1945) in his experience as a modern photographer, during his stay in the Northern region of Brazil, specially in the Amazon region, during the first of his two long Apprentice Tourist trips throughout Brazil in 1927. The author analyses the creative process by which the Codaque’s images constitute the prints and negatives image diary that overlaps with the diary of legends and of text where the traveller’s impressions and the fictionist’s invention are developed. The article highlights certain links between the photography produced in this trip and Andrade’s readings, poetry and fiction. KEYWORDS: Mário de Andrade. Travel Journals. Brazilian Modernism. Modern Photography. Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945), fotógrafo moderno, mas de reconhecimento tardio, é a parte que me cabe na jornada ”Representações do Brasil: da viagem moderna às coleções fotográficas”. Como esse tema é muito amplo, vou restringir-me à fotografia na primeira das duas viagens em que ele se denomina Turista Aprendiz. Essa viagem, ao Norte do país, além de nos 135 Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.13. n.2. p. 135-164. jul.-dez. 2005.

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O Turista Aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem

Telê Ancona Lopez

Instituto de Estudos Brasileiros da

Universidade de São Paulo

RESUMO: O objeto deste estudo é o escritor Mário de Andrade (1893-1945) em sua experiênciade fotógrafo moderno, durante sua permanência no Norte, especialmente na Amazônia, em1927, na primeira das duas grandes viagens do Turista Aprendiz pelo Brasil. Analisa oprocesso criativo no qual as imagens da Codaque constituem o diário imagético dos negativose positivos que se justapõe ao diário das legendas e ao do texto onde se desenvolvem asimpressões do viajante e a invenção do ficcionista. Aponta também certos vínculos dafotografia produzida nessa viagem com as leituras, a poesia e a ficção andradiana.PALAVRAS-CHAVE: Mário de Andrade. Diários de viagem. Modernismo brasileiro. Fotografiamoderna.

ABSTRACT: The object of this study is Brazilian writer Mário de Andrade (1893-1945) in hisexperience as a modern photographer, during his stay in the Northern region of Brazil, speciallyin the Amazon region, during the first of his two long Apprentice Tourist trips throughout Brazilin 1927. The author analyses the creative process by which the Codaque’s images constitutethe prints and negatives image diary that overlaps with the diary of legends and of text wherethe traveller’s impressions and the fictionist’s invention are developed. The article highlightscertain links between the photography produced in this trip and Andrade’s readings, poetryand fiction.KEYWORDS: Mário de Andrade. Travel Journals. Brazilian Modernism. Modern Photography.

Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945), fotógrafo moderno, masde reconhecimento tardio, é a parte que me cabe na jornada ”Representaçõesdo Brasil: da viagem moderna às coleções fotográficas”. Como esse tema émuito amplo, vou restringir-me à fotografia na primeira das duas viagens em queele se denomina Turista Aprendiz. Essa viagem, ao Norte do país, além de nos

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oferecer o début do fotógrafo empenhado em desvendar seu trabalho em maisdetalhes do que na segunda, ao Nordeste, parece-me, ao lado de outros méritos,mais rica em termos da fotografia. Ocorre em 1927, quando Mário, aos 34anos, por sua obra de poeta, ficcionista, teórico do Modernismo, cronista ecrítico, já goza de certa projeção nacional. A escolha do ano de 1927 abreexceção a duas fotos de 1928-1929, dada a importância delas para estareflexão.

No arquivo do escritor, no Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo, na série Fotografias, entre as subséries aliorganizadas, sobressai aquela que o caracteriza como um fotógrafo moderno,manejando uma Kodak de caixão, pelo que se observa no auto-retrato enquantosombra, datado do ano-novo de 1928, no qual nos deteremos mais tarde.Circunscrita a um período de curta duração (1927-1929), a subsérie Mário deAndrade fotógrafo reúne 1.538 imagens em positivo e um número expressivo denegativos1. Os positivos, em preto-e-branco, medem, a maioria, 6,1 cm x 3,7cm, e admitem diversas ampliações de 17,5 cm x 12,5 cm, em PB assim comoem viragens sépia ou avermelhadas2.

Penso que se pode procurar a gênese do fotógrafo no esforço deatualização que a biblioteca do crítico e teórico do Modernismo reflete na áreadas artes plásticas e na do cinema. Em suas estantes, em 1919, aparece arevista de Darmstadt, Deutsche Kunst und Dekoration, que lhe exibe excelentesfotos, Le Cinéma de Ernest Coustet (1921), artigos de L. Delluc ou de CélineArnaud, na revista L’Esprit Nouveau, entre 1922 e 1923, bem como ensaiosde ambos que têm por objeto o Charlot, de Chaplin, num enfoque rigorosamentecinematográfico. Ao que se entende, com eles dialogam os comentários sobreThe kid, que Mário assina em Klaxon, no mesmo ano da Semana de ArteModerna, 19223. Nessa revista do Modernismo de São Paulo, na qual, comsuas próprias iniciais ou como J. M. e R. de M., faz crítica de cinema, já seesboça o namoro com a arte de Daguerre. É então que, pioneiro, valorizandonossa cinematografia nascente, assim se expressa sobre a comédia Do Rio aSão Paulo para casar: “Fotografia nítida, bem focalizada. Aquelas cenas noturnasforam tiradas ao meio-dia com sol brasileiro... Filmadas à tardinha, o rosadonão sendo tão fotogênico, a produção sairia suficientemente escura. Isso enquantoa Empresa não consegue filmar à noite”4.

Apesar da L’Esprit Nouveau não cultivar especialmente a fotografia,a presença dela, nas estantes de Mário de Andrade, sinaliza a educação doolhar do leitor perspicaz que se depara, por exemplo, no n. 21, de fevereirode 1924, com Ozenfant e Jeanneret postulando, juntos, a “Formation de l’optiquemoderne”. Esse leitor, em 1923, já definira como “cinematográfico” oromance/idílio estruturado no encadeamento das cenas, sem divisão emcapítulos, Fräulein, que vinha escrevendo, no qual trabalhará até a publicação,em 1927, sob o título Amar, verbo intransitivo. Pode-se então pensar que anecessidade de apreender a geometria na disposição dos objetos e nas cenasdo cotidiano, ressaltada pelo artigo de Ozenfant e Jeanneret, tenha repercutidona criação do olhar sofisticado da heroína de Mário. Mulher culta, de

1.Embora as primeiras fo-tos no tamanho 6,1 cm x3,7 cm tragam legendasna letra de Mário de An-drade, identificando-as edatando-as de 1923 e1925, o fato de seremapenas 22 documentos ede não se associarem anegativos, as coloca nacategoria de cópias rece-bidas como recordação.Retratam férias em Arara-quara, no interior do Es-tado de São Paulo, na fa-zenda de parentes,nos úl-timos dias de junho e noprincípio de julho desseano de 1923 (10 docu-mentos), bem como emjulho de 1925 (cinco do-cumentos), nas quais ohóspede está acompa-nhado de primos ou so-zinho. Captam instantesde alegria e manifestamapenas um bom enqua-dramento.

2.A variação das medidasestá apenas nos milíme-tros e depende do cortedas reproduções.

3. Charlot de L. Delluc(1921) ou a análise de Cé-line Arnaut em L’Action(1922) respaldam os co-mentários que Mário le-va para Klaxon: mensá-rio de arte moderna, ns.3 e 5 em 15/7 e 15/9 de1922,como J.M.em “Umalição de Carlito” e M. deA. em “Ainda O garoto”.

4.Texto assinado como R.de M.em Klaxon,n.2,em15/6/1922.

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sensibilidade moderna, Fräulein, como uma câmera, sabe isolar ângulos, percebervolumes, seguir planos e contornos no espaço da casa da família Sousa Costa.

No arquivo, o exame dos documentos nos faz supor que a sérieFotografias procede dos retratos de família e de si próprio, resguardados porMário a partir da segunda metade da década de 1910. Nesse mesmo período,ao moço autodidata agrada recortar, de jornais e revistas, não só textos comoimagens do Brasil, no intento de conhecer sua terra e de constituir um conjuntodocumental para seu uso. Esses recortes, ao delinear estudos e viagens virtuaispor diversas regiões, associam-se, na malha do arquivo, a oito cartões-postaissem mensagem, com vistas de Mariana e São João del-Rei que demarcam umaviagem real e a existência de uma coleção fotográfica. No envelope que osconservava, a nota manuscrita do colecionador, “Brasil antigo”, convalidaigualmente a finalidade de estudos. As cidades mineiras fotografadas e o fatodos postais serem graficamente mais antigos trazem à baila as férias de Máriode Andrade, em julho de 1919, quando, em Mariana, ele visita Alphonsus deGuimaraens e conta, ao simbolista da sua admiração, estar se preparando parafazer conferências5. Nesse mesmo ano, a crônica “Alphonsus” sai em 1º denovembro na revista paulistana A Cigarra, ilustrada com a fotografia da Igrejade S. Francisco de um dos cartões, aliás, com duplicata na coleção6. Em 1920,a Revista do Brasil estampa, dividida em quatro partes, “A arte religiosa noBrasil”, conferência na Congregação da Imaculada Conceição de Santa Ifigênia7.Tendo publicado em 1917 Há uma gota de sangue em cada poema, Márioestá prestes a se definir como modernista, o que ocorrerá na série de crônicasDe São Paulo, entre novembro de 1920 e maio de 19218.

Como se vê, há bastante tempo interessa a Mário de Andrade conhecerseu país. Esse desígnio, por certo, o motiva a voltar a Minas Gerais, na SemanaSanta de 1924. Com Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, o poeta francêsBlaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado, grande dama da aristocracia do cafée mecenas dos modernistas, e outros amigos, participa da “viagem da descobertado Brasil”, assim nomeada pelo crítico Alexandre Eulálio9. Fundamental nosrumos do nosso nacionalismo modernista, a viagem tem, entre outros importantesresultados, o Noturno de Belo Horizonte, longo poema de Mário no qual asvisões do eu lírico transfiguram caminhos do viajante que deixa, também nodesenho e na crônica, flagrantes de seu percurso10. E que testemunha o gostode fotografar na amiga que assim se registra num hotel: “D. Olívia GuedesPenteado, solteira, photographer, anglaise, London”, em meio ao “o claro risodos modernos”11.

Logo depois de setembro de 1924, pelo que se pode analisar, teminício o contato mais direto de Mário de Andrade com a arte fotográfica: elepassa a receber, mediante assinatura, Der Querschnitt, revista de Berlim ligadaà Nova Objetividade. Ali, nas reproduções de fotos de Man Ray, Riebicke,Schneider, Galloway e outros, multiplicam-se lições de composição de autor,consignando o corte, o valor do close, matizes para o melhor rendimento dopreto-e-branco, a sugestão de cores, geometrizações, o aproveitamento da luze da sombra, o reflexo, o movimento, o retrato de costas, a plena liberdade

5. GUIMARAENS FILHO,1974. À p. 29, a nota 27do organizador transcre-ve carta do pai, de15/7/1919, relatando ospropósitos da viagem deseu visitante.

6. A crônica vem de A Ci-garra, São Paulo, n. 123,ano 6, 1/11/1919.

7.Ver a edição anotada deClaudete Kronbauer deANDRADE,1993,onde serecupera a publicação naRevista do Brasil, n. 49,50, 52, 54, São Paulo/Riode Janeiro, 1920.A sériedivide-se em “O Trium-pho Eucharistico de1733. Conferência reali-zada na Congregação daI.C.de Sta.Ephigenia”(n.49,p.5-12);“Arte Christã”(n. 50, p. 95-103); [Rio deJaneiro] (n. 52, p. 289-293);“Em Minas Geraes”(n. 54, p. 102-111).

8.As crônicas,publicadasna revista carioca Ilustra-ção Brasileira entre no-vembro de 1920 e maiode 1921,saíram na ediçãoanotada de Telê AnconaLopez, em 2004.

9. EULÁLIO, 1978.

10. O poema, escrito em1924, foi publicado emClã do jabuti, em 1927.São seis os desenhos emfolhas milimetradas decaderninho de bolso (verColeção de artes de Má-rio de Andrade, IEB-USP);a VIII das “Crônicas deMalazarte” focaliza a ex-cursão na América bra-sileira. Rio de Janeiro,maio de 1924.

11. EULÁLIO, op. cit., p.277; registro dos hóspe-des no Hotel Macedo deSão João del-Rei, eml6/4/1924.

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para a experimentação, enfim. Der Querschnitt abre, para o sôfrego leitor, acapacidade da câmara expressar o humor, o lirismo, a poesia visual, a cenacômica; de recriar a alegria, a espontaneidade do cotidiano; de construir oretrato como o instante iluminado que recolhe a alma de homens e mulheres ouque com eles inventa personagens para propor situações existenciais novas,surpreendentes, como o pintor Braque de ponta-cabeça. Ensina-lhe,principalmente, que a máquina é a companheira inseparável do viajante e detodos aqueles que empreendem pesquisas de campo etnográficas ou etnológicas.

Nessa direção, as lições proporcionadas por Der Querschnitt casam-se com aquelas que o modernista brasileiro recebe de Theodor Koch-Grünbergem 1926, nos quatro volumes que possui da obra magna Vom Roroima zumOrinoco12. Em Koch-Grünberg, além do lendário do segundo volume, matriz dopoema Lenda das mulheres de peito chato e da rapsódia Macunaíma, iniciadanesse ano nas margens do exemplar, Mário de Andrade acompanha um longoe rigoroso ensaio fotográfico que documenta, no correr dos volumes, o tipofísico, costumes e elementos da cultura material dos diferentes povos indígenasestudados, bem como o espaço geográfico e o próprio etnólogo em atividade.O ano da leitura de Vom Roroima e o primórdio da escritura de Macunaíma nossão fornecidos pelo próprio escritor, de forma cifrada, na data que encima a“Carta pras icamiabas”, capítulo IX: “Trinta de Maio de Mil Novecentos e vintee seis, em São Paulo”.

Aliás, em 1926, na carta de 26 de julho, enviada por Mário a Luísda Câmara Cascudo, percebe-se que fotografia, coleção e intenções viajorascombinam-se no horizonte do remetente:

Você nem imagina que gosto me deu o campeiro vestido de couro que você me mandou.Andei mostrando pra toda gente e mais a fotografia do maravilhoso cacto. As três fotografiasjá estão bem guardadinhas na minha coleção. Se lembre sempre de mim quando virfotografias da nossa terra aí dos seus lados. Meu Deus! Tem momentos em que eu tenhofome, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah!se eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz sentido que tinha ido por essas bandasdo norte visitar vocês e ao norte13.

A viagem no texto e na Codaque

Mário de Andrade vai primeiramente ao Norte. As duas viagens querealiza como Turista Aprendiz, em 1927 e 1928-1929, são as mais demoradase extensas de uma vida de poucas viagens. Devotadas a uma espécie deimpregnação do Brasil, ambas lhe rendem diários textuais e imagéticos, estesúltimos unindo legendas às fotografias. Na primeira, entre maio e princípio deagosto de 1927, ao lado de D. Olívia Penteado, na verdade, a responsávelpela idéia, e de duas mocinhas, a sobrinha dela, Margarida Guedes Nogueira

12. O ano de 1926 podeser considerado como oano da aquisição de qua-tro volumes da obra deKoch-Grünberg e da lei-tura,bem como do inícioda criação de Macunaí-ma, nas margens do se-gundo volume de VomRoroima zum Orinoco:Myten und Legendender Taulipang und Are-kuná Indianer. É possí-vel que tenha, então,comprado a obra com-pleta em cinco volumes,da qual o quarto desapa-receu, ou reunido, comoconseguiu, os volumesque continuaram emsuas estantes: v. I, ediçãode Berlim, Dietrich Rei-mer, 1917; v. II, Stuttgart,Strecker und Schröder,1924;v. III e V, tirados poresta última editora, am-bos em 1923.

13. MELLO, 1991, p. 35.

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– Mag – e a filha da pintora Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto – Dolur –,retroceder visita os Estados do Amazonas e do Pará, chega a Porto Velho, aIquitos, no Peru, e à fronteira com a Bolívia. Vai e volta de vapor, com escalasnos portos principais; a bordo de embarcações típicas da região, navega osgrandes rios, igapós e igarapés; toma um trem da Madeira-Mamoré. Na segunda,ao Nordeste, do final de 1928 até fevereiro no ano seguinte, anda por Alagoas,Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

O diário, durante a viagem à Amazônia, em 1927, dispersa-se emmuitos fólios de variado feitio, conforme nos conta a última versão de vida dotexto, datada de 1943:

Estas notas de diário são sínteses absurdas, apenas pra uso pessoal, jogadas numanuariozinho de bolso, me dado no Lóide Brasileiro, que só tem cinco linhas pra cada dia.As literatices são jogadas noutro caderninho em branco, em papéis de cartas, costas decontas, margens de jornais, qualquer coisa serve. Jogadas. Sem o menor cuidado. Veremoso que se pode fazer com isso em São Paulo14.

A análise dos documentos do processo criativo aponta quatro diários.Dois, no decorrer da viagem. Este, acima citado, conjunto de textos espalhadosem papéis diversos, coexistiu com um segundo, imagético-textual, constituídodos negativos vinculados, ao que se supõe, a um caderninho de bolso, onde ofotógrafo teria feito de imediato, a lápis preto, anotações relativas às tomadasque concretizava com sua câmera. Vale dizer, informações de ordem técnica,rápido registro de locais, pessoas e talvez de outros dados, visando à precisãodo testemunho no momento de legendar as imagens copiadas em São Paulo.Caderninho que, missão cumprida, foi por ele descartado.

Ao regressar, o escritor e fotógrafo, ainda em 1927, lança-se emmais dois diários: o imagético-textual e o textual propriamente dito. O primeirocompõe-se de mais de 500 imagens reveladas em preto-e-branco e viragens,seguidas das respectivas legendas no verso, a lápis. Estas, em uma primeiraetapa da escritura, geralmente transpõem apenas as informações colhidas inloco, mas, em uma segunda – materializada no traço mais leve –, glosam asrepresentações e o exercício fotográfico, ao construir um texto fragmentário,multifacetado e híbrido, como todos os diários. Nele viceja tanto o registro quese propõe fidedigno como a criação literária que exerce o humor, o lirismo e ametalinguagem.

Diário moderno, junto com o primeiro, aquele das sínteses esboçadasem papéis esparsos, embasa o trabalho do escritor que, em sua escrivaninhapaulistana, no mesmo ano da viagem, expande um novo texto, no qual recorrea diversos tipos de relato e dialoga com o diário da viagem do naturalista Martiuspela Amazônia15. Tem intenção de publicá-lo como O Turista Aprendiz: (Viagempelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizerchega), paródia ao título do livro do avô, Leite Moraes, de 1883, Apontamentosde viagem de São Paulo á capital de Goiás, desta ao Pará, pelos rios Araguaia

14. ANDRADE, 1976, p.64.

15. SPIX;MARTIUS,1823-1831. Obra na bibliotecade Mário de Andrade comnotas a lápis dele.Entre osManuscritos Mário de An-drade está uma traduçãodo nascer do dia amazô-nico na obra de Martius,matriz da alvorada no diá-rio do Turista Aprendiz.

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e Tocantins, e do Pará á Corte. Considerações administrativas e políticas. Dessaversão de 1927, restaram parcelas aproveitadas na versão final em datiloscrito,precedida do prefácio de 30 de dezembro de 1943. Curiosamente, prefácio etexto não prevêem a inclusão de fotografias no livro planejado.

“Crônica do cotidiano”, no dizer de Girard, ou “ancoragem no tempo”,segundo C. Viollet e bem mais que isso, o diário final do Turista Aprendiz,moderno e nacionalista de olhos postos no universal, em muitas seqüênciassupera o registro da realidade do espaço, característica usual dos diários deviagem. Assim acontece porque, ao enveredar pela ficção, prefere um trajeto àmoda do barão de Münchhausen. Faz do narrador o protagonista da transviagemda invenção que lhe faculta de cruzar um espaço de feições surrealistas, nointuito de figurar, com humor, no estranhamento, a hipérbole natural da naturezaamazônica, desprezando o regionalismo de cunho apologético. A transviagempermite ao diarista, paradoxalmente, a viagem ao redor de suas leituras, quandoele logra, na recriação de relatos de outros viajantes, justapor irreverência ediscurso elevado, ao transitar por um espaço de invenção, “desgeograficado”(conforme classificação sua no Prefácio a Macunaíma), contendo elementos doBrasil, da América, da Europa e da África16.

O Turista Aprendiz, diário textual publicado, contém diversas alusõesà câmera, cuja marca é abrasileirada para Codaque, e ao ato de fotografar,criado o neologismo “fotar”. Caminha paralelo ao diário na fotografia, ambosmultifacetados, mais um traje de arlequim no modo de Mário de Andrade estruturarsuas obras. O diário imagético, aquele que aqui nos interessa, consolida aexperimentação, vincada por um forte senso da composição, apoiada noconhecimento técnico. Configura a incursão consciente pela fotografia comolinguagem, a redefinição do olhar através da lente, sabendo que “nenhumfotógrafo oferece uma imagem natural: o que ele produz com sua câmera ésempre construção que recorta, enquadra, valoriza ou diminui aspectosrepresentados do mundo”, conforme sublinha hoje o crítico Jorge Coli17.

Mário fotógrafo subverte planos, pratica o close; calcula, compõe;despreza padrões ao fazer cortes ou tomar figuras de costas. Grava sutilezas,como no desfile escolar em Porto Velho, em que o semicírculo dos chapéus e doguarda-sol de D. Olívia é arremedado pela copa das árvores. Imprime um “clima”à fotografia. Desenvolve seqüências de acordo com a movimentação da luz,da cena, quase cinema, como nas fotos do pescador que arremessa a tarrafa.E anota, de imediato, seu propósito para cada imagem, bem como as condiçõesem que o trabalho se processa, para depois agregar esses apontamentos àslegendas, no verso dos positivos: luz – “sol” –, abertura do diafragma, hora eminutos exatos (Figuras 1 e 2).

16.“Desgeograficar”é ex-pressão cunhada por Má-rio de Andrade quandoda apresentação de suaspropostas de modernida-de e nacionalismo no se-gundo prefácio para Ma-cunaíma, 1928.Ver edi-ções críticas da obra,Co-leção Archives, 1988,1996.

17. COLI, 2005.

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Figura 1 – “Casa telada da/Madeira-Mamoré/Porto Velho – 11/VI-27/Obj. 2 Sol1/13 e 10.” Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 2 – “Almoço da 3ª. Classe. Baependy – ao largo/6-VIII-27/diaf. 1 – Sol 1 das 10 Emterceira voracidade”. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Vertentes

O diário das imagens e legendas, que funde testemunho e artefazer,possui vertentes que se interpenetram, concernindo ao registro do cotidiano dogrupo de amigos, do espaço e da vida do homem na Amazônia, assim comoàquela dimensão que põe Mário de Andrade em destaque – a experimentaçãoartística.

O cotidiano do quarteto excursionista – instantâneos, poses e retratos– circunscreve-se ao Turista Aprendiz e suas companheiras, apanhando por vezesoutros companheiros de viagem. Desdobra-se na ficção vivida como lazer: oturista e a filha de Tarsila se fantasiam de índio, incorporando legendas jocosas;Mário se arranja especialmente para uma “Aposta de ridículo” em Tefé, a 12de junho, de luvas, leque, comendo banana, e suas três companheiras seconvertem em personagens. Assim, D. Olívia, objeto da amizade reverente domodernista, é cognominada Nossa Senhora do Brasil e Manacá, flor discreta,perfumada; Dolur se torna Trombeta, e Mag, Balança, por conta de umabrincadeira envolvendo a questão do Juízo Final.

Nessa vertente, os auto-retratos de Mário, na referida aposta e emAssacaio, em 17 de junho, são bastante significativos. Preludiam – cheios dehumor – uma espécie de adesão à civilização tropical por ele postulada emBelém, no dia 18 de maio de 1927:

Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintação, que me estraga todoo europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o quemais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito àspressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que oBrasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitandocom elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores,vocabulários, quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pelaraça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas macaquear, a Europa. Nos orgulhamosde ser o único grande (grande?) país tropical.... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência.Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemoscriar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza18.

São imagens que ampliam o alcance do crivo crítico nacionalistaproposto na profissão de fé do poeta, em 1922, “Sou um tupi tangendo umalaúde!”19.

Se em diversas passagens, no datiloscrito concluído em 1943, acrônica do cotidiano deixa transparecer o espanto do olhar europeizado dopaulistano diante da desmesura e da singularidade do mundo amazônico, odiário imagético também se instala nessa dimensão. No texto, muito do que, aoviajante, parece inusitado, insólito, ali se reveste da dimensão ficcional, marcadapelo estranhamento que se vale do corriqueiro e apela para o nonsense, para odisparate, como no fragmento que parodia a composição escolar ao apresentaro peixe-boi. Ou na longa seqüência intitulada “Perdidos” – quase um conto –,

18. No diário: “18 demaio”, ANDRADE, 1976,p. 60.

19.Verso 10º,final,do poe-ma “O trovador”de Pauli-céia desvairada. São Pau-lo, ed. do A. na Casa Ma-yença, 1922. O ensaio dacrítica norte-americanaEsther Gebara, “‘Nuncaolhei tão olhado em mi-nha vida e está sublime’:o (auto)-retrato de Máriode Andrade”,põe a “Apos-ta de ridículo”na esfera dasátira. Ver GEBARA In:SÜSSSEKIND;DIAS,2004,p.169-190.

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que joga com a escala do tamanho dos excursionistas desorientados na imensidãoda floresta e que se liga, na fotografia, ao bem-humorado auto-retrato à Lilliput,no qual o Turista Aprendiz, muito chique, pára, diminuto, diante do tronco dasumaúma gigante. A ficção implícita se repete na pose de Dolur, no mesmolugar, frágil e miúda, também trajada com elegância. Na verdade, seqüêncianarrativa e fotos nos permitem imaginar a força da imagem no âmbito da criaçãodo texto. Refiro-me ao estreito relacionamento do texto com a imagem quandoda escritura que, em São Paulo, unificou o diário, debruçando-se sobre as notastomadas in loco, sobre as legendas e as reproduções fotográficas (Figura 3).

Outra vertente da mescla de fotos e legendas é aquela que retém –com engenho e arte – a função documental da fotografia ao se voltar paraaspectos da geografia física da região, para o homem e a cultura material.Deste modo, a paisagem – a terra, os rios, a vegetação –, a população debrancos, mestiços e indígenas, homens, mulheres, curumins, os meios detransporte, trabalho, usos e costumes são fixados. A profusão de imagens, dentreas quais se pode lembrar o vaqueiro de Marajó, as caiçaras, isto é, os estradosque protegem os bois da voracidade das piranhas, o mogno cortado e numerado,deslizando na corrente, os sacos de sernambi, a pesca de tarrafa, a casa sobrepalafitas, a casa de alvenaria telada, a maloca e os índios pintados com jenipapo,o hotel de janelas góticas, as ruínas da igreja de Porto Velho – para selecionaralgumas –, recebe, nas legendas, além da identificação e do relatório técnico,o comentário cheio de humor, incluindo por vezes rimas, trocadilhos e a citaçãode versos de grandes poetas.

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Figura 3 – “Eu diante dum tronco de sumaúma entre Sto. Antônio e Porto-Velho, nos limites entreAmazonas e Mato Grosso/11-VII-27/Diaf. 1 Sol 3/16 e 30”. Acervo do Instituto de EstudosBrasileiros da Universidade de São Paulo.

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Mário de Andrade, nessa viagem, não é um pesquisador da vidaindígena. Os índios com os quais se defronta, quase todos aculturados, são apenasobjeto da admiração ou do espanto do diarista, no texto e na fotografia. Ele assimse manifesta, por exemplo, neste trecho datado de Assacaio, 17 de junho:

Índios legítimos, bancando negros, pintados com jenipapo. Não pintam as articulações dosdedos, que ficam parecendo cicatrizes claras, é horrível. Fotei. Pouco depois do meio-diaportamos em Belém, onde vimos uns índios lindos, principalmente a cunhã tristonha, já bemmulher, fineza esplêndida de linhas20.

E na foto, em cuja legenda está:

“Assacaio/17-VI-27/ O mais alto é enegrecido pintado de jenipapo”.

A falta de recursos técnicos da Codaque impossibilitou, seguramente,a fotografia noturna. As dificuldades de ordem técnica e o desejo de aumentara documentação iconográfica fundamentam, ao que nos parece, o lote de 24imagens que complementa a viagem de 1927, na série Fotografias. Retrataindivíduos e aspectos da cultura de nações indígenas, uma caçada de jacaré ea praça principal de Iquitos. Com legendas impressas, sete são cartões-postaisverdadeiros, da lavra de um profissional. Da máquina de um amador, 17, tendono verso informações sumárias em autógrafo ou datilografadas, ou não portandolegenda, são poses de índios ampliadas como cartões-postais.

Nas vertentes da fotografia andradiana, é preciso destacarespecialmente a experimentação artística modernista, a qual, por exemplo,concentra-se na geometria dos mastros dos veleiros em Areia Branca, Mossoró, narota do regresso, em 6 de agosto, repetindo, de certo modo, os barcos de pescade Galloway no golfo de Corinto, da Querschnitt de fevereiro daquele ano de1927. Recorte semelhante, em 1942, afirmaria o grande Nikvist, em O porto, deBergman, na bela cena em que a aglomeração dos mastros preenche a tela.

Quando o fotógrafo pesa a sua experimentação, isto é, quandoanalisa a própria arte nas cópias em positivo, dá à legenda, em vários casos,a incumbência de avaliar o resultado. O lápis traça, então, no verso: “Ritmo”,“Equilíbrio”, “Futurismo pingando” ou “Minha obra-prima” (que é de fato, noflagrante da vitória-régia), e não se esquece de acusar a dupla exposição dosnegativos: “Desvairismo por acaso/questão de lancha e de lunch/ 7-VI-27.” e“Foto futurista de Mag e Dolur sobrepostas às margens do Amazonas. Junho de1927. Obsessão.”

O olhar do fotógrafo que persegue a dimensão poética harmoniza-secom os estudos de Mário a respeito do Seqüestro da Dona Ausente, os quais,amparados pela psicanálise, esmiúçam esse tema do lirismo amoroso nocancioneiro luso-brasileiro. Quando o vento enfuna no varal os lençóis e levantaas roupas brancas, os volumes e o movimento colhidos pela objetiva sugeremcorpos e fazem jus à legenda “Roupas freudianas/Fortaleza, 5-VII-27/Fotografiarefoulenta/Refoulement/Sol l diaf. l” (Figura 4). O branco espraia-se pelo areãocomo a luz intensa do sol que as lentes vêem branco, também. Mário possui,

20. ANDRADE, 1976, p.103.

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sem dúvida, o dom de “compor o ambiente em que a realidade capitula dianteda luz e se converte em uma expressão sugestiva e bela”, se fizermos nossas aspalavras dele sobre a exposição Jorge de Castro, em 193921. Curiosamente,essa foto recupera um varal rabiscado em 1923 (Figura 5), pelo leitor da L’EspritNouveau, na folha de guarda do seu exemplar do n. 10, de outubro de 192122.

A Codaque que busca, na paisagem amazônica, espelhos d’água ereflexos, recorre também à captação da sombra, o duplo ou uma espécie dealma da imagem, no auto-retrato. Do toldo do vaticano, em julho de 1927,Mário de Andrade/Turista Aprendiz surpreende a própria sombra e o ato defotografar nas águas do Rio Madeira e se/nos pergunta, como no brinquedodo esconde-esconde: “Que-dê o poeta?” E que-dê o fotógrafo? perguntamos.Eles se juntam, por obra e graça do viajante, nas duas artes que ali recorrem àsombra projetada, contemplação de Narciso moderna, plena de humor e metáforada criação. A figura de ponta-cabeça, além de aludir à técnica fotográfica, é oreflexo que, ao duplicar, deforma a imagem e estabelece, na inserção nas águas,uma nova realidade, a realidade da arte (Figura 6).

Assim, esse auto-retrato liga-se intimamente à poesia marioandradina,fortemente marcada pelo reflexo na água de rios. Em 1922, em Paulicéiadesvairada, nos versos 11 e 12 de “Tietê”, as braçadas do imigrante italiano enovo bandeirante abarcam a cidade moderna e cosmopolita dos cartazescomerciais, espelhada no rio. Em Noturno de Belo Horizonte, escrito em 1924 e

21.ANDRADE, Mário de.“O homem que se achou”,publicada no n.150,da 1ªquinzena,jan.1940.In:AN-DRADE,1992,p.80.

22. Diante da inexistên-cia de datas na L’EspritNouveau, a pesquisa dadoutoranda Lílian Esco-rel, voltada para a leiturade Mário de Andrade des-sa revista, logrou estabe-lecê-las.

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Figura 4 – “Roupas freudianas/Fortaleza, 5-VII-27/Fotografiarefoulenta/Refoulement/Sol l diaf.l”. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidadede São Paulo.

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Figura 6 – Rio Madeira. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de EstudosBrasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 5 – Um varal rabiscado em 1923, pelo leitor da L’Esprit Nouveau, na folha de guarda doseu exemplar do n. 10, de outubro de 1921. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

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publicado em 1927, nas “lagoas polidas de cabeça para baixo” (v. 146), o poetanão avista apenas o tumulto e a calma da paisagem mineira, mas ele mesmo,metaforicamente, conforme a bela análise de Gilda de Mello e Souza23. E o eulírico pontifica soberano sua condição de paulista, brasileiro e principalmente dehomem, na Meditação sobre o Tietê, último poema da vida, em 1945. No rio, oeu lírico, incorporado ao caudal, “lágrima” e “alga”, revisita, na cidade refletida,os temas e todos os caminhos do poeta. Pode-se presumir que, nesse auto-retratode 1927 (Figura 7), estão as sementes de versos capitais para a definição do vatebrasileiro, superada a contingência modernista: “Oh espelhos, ô Pirineus! Ôcaiçaras!” (1929), em “Eu sou trezentos...”, e em “Brasão” – “Eu sou aquele queveio do imenso rio” (1937) –, que constam, respectivamente, de Remate de malese de “A costela do Grã Cão”24. Não é hora, porém, de analisar essa repercussão.

De volta a seu meio, em 1º de janeiro de 1928, na fazenda de Tarsila,no interior paulista, a objetiva funde Mário de Andrade ao solo, entregue a esseseu artefazer. No contorno de um gigante que ganha o título camoniano “Sombraminha”, o gesto desvela a máquina-caixão. Renovadíssima forma do auto-retrato,

23.Ver “O colecionador ea coleção”. In: BATISTA;LIMA, 1984, p. XIII-XIX.

24. O livro Remate demales,edição do autor de1930, sai em São Paulo,onde a Livraria MartinsEditora imprime, em1941, Poesias, que inclui“A costela do Grã Cão”.

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Figura 7 – Auto-retrato, 1927. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de EstudosBrasileiros da Universidade de São Paulo.

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será, no decênio de 1940, um dos trunfos de Ansel Adams, atualmente aplaudidoem Friedlander.

A criação de Mário de Andrade fotógrafo, que tanto enriquece aprodução do modernista da década de 1920, foi por ele divulgada uma únicavez. A imagem de Catolé do Rocha, obtida em 1929, durante a viagem doTurista Aprendiz ao Nordeste, deu ensejo à crônica com o mesmo nome dacidadezinha paraibana, no Suplemento em Rotogravura do jornal O Estado deS.Paulo, em 1939 (Figura 8). No texto, uma espécie de movimento de câmeracinematográfica decodifica, para o leitor, as cores plasmadas na fotografia:

Era um domingo e na igrejinha branca, admirável pela harmonia da sua fachada sem torres,a procissão entrava. O céu estava negro de nuvens que não se resolviam a chover sobre aterra, e apenas do lado do poente, uma nesga de céu limpo deixava uns últimos raios dosol focalizarem, para efeitos da fotografia que encima estas evocações, a igreja e as casasda sua direita, no imenso largo vazio. No alto do morro, uma capelinha votiva tambémgritava muito espevitadamente o seu branco sem poeira, como um defeito de películafotográfica. E as casas coloridas, encarnadas, azuis, verde, limão, brincavam, numaesperança de alegria, com o ambiente feroz25.

Em 1929, no término do primeiro tempo modernista dos grupos, dosprogramas e das polêmicas, o empenho do fotógrafo arrefece até cessar semexplicações. Mais tarde, como diretor do Departamento de Cultura da

25.“Catolé do Rocha”,pu-blicada na 1ª quinzena,maio 1939.In:ANDRADE,1992. p. 38-33.

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Figura 8 – Catolé do Rocha, 1929. Fotografia de Mário de Andrade. Acervo do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Municipalidade de São Paulo ou como delegado do Serviço do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional, Mário de Andrade incentivará a fotografia aocontratar dois excelentes profissionais, Benedito Duarte e Germano Graeser.Como cronista e crítico do suplemento Rotogravura, em 1939 focalizará asfotomontagens do poeta Jorge de Lima26 e, em 1940, a exposição de Jorge deCastro. Escreve então:

[...] aquilo em que a fotografia artística se eleva sobre a puramente documental, reside nãona máquina ou na luz, como imaginam confusionistamente os manipuladores de truquesfotográficos ou os fotografadores de eternos crepúsculos românticos, mas na criação humanado artista. Enfim, há que ter esse dom especial de apanhar “a poesia do real”, como dissemuito bem o desenhista Santa Rosa, justamente a propósito das fotografias do sr. Jorge deCastro27.

O DIÁRIO DO FOTÓGRAFO: CRÔNICA DO COTIDIANO

26.“Fantasias de um poe-ta”, publicada no n. 146;1ª quinzena,nov.1939.In:Id., p. 71.

27. “O homem que seachou”. In: Ibid, p. 80.

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Figura 9 – “A bordo do S. Salvador em pleno Peru com Sol na cara/ 22-VI-27” (notação noverso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 10 – “Coari – 11-VI-27/ Alto Solimões/ Manacá Trombeta e Balança” (notaçãono verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 11 – “Nossa Senhora no Madeira/ 4-Julho-1927” (notação no verso). Acervo do Institutode Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 12 – “Dolur na vista marajoara 31-VII-27/ Sol 3 diaf. 3/ Trombeta” (notação no verso).Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 13 – “Aposta de Ridículo em Tefé/ 12-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 14 – “Assacaio/ (na mão direita uma flor feito cachimbo. Um grupo de flores bicos-de-araras na outra/ 17-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

Figura 15 – “Eu voltando do passeio por Assacaio/ 17-VI-27/ Monstro à mostra” (notação noverso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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O TURISTA APRENDIZ RETRATA A AMAZÔNIA

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Figura 16 – “Entrada dum paraná ou paranã/ rio Madeira/ 5-VII-27/ Ilha de Manicoré. O I é orio Mataurá, o II é o Madeira” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

Figura 17 – “Bom-Futuro bonita/ O II é um igrejó gótico/ 6-VII-27/ rio Madeira/Ver assumanúmas dos dois lados/ água de Narciso” (notação no verso). Acervo do Instituto de EstudosBrasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 18 – “Assacaio/ 17-VI-27/ O mais alto é enegrecido pintado de genipapo” (notação noverso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 19 – “Boniteza tapuia/ De fato ela era mais bonita que o retrato. S. Salvador/ 1-VII-27/‘A Venus do milho’!” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

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Figura 20 – “Almoço da 3ª. Classe. Baependy – ao largo/ 6-VIII-27/ diaf. 1 – Sol 1 das 10Em terceira voracidade” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

Figura 21 – “Jangadas de mogno enconstando no S. Salvador pra embarcar/Nanay 23- Junho1927/ Peru/ Vitrolas futuras” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de São Paulo.

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Figura 22 – “Casa telada da Madeira-Mamoré/ Porto Velho – 11-VI-27/ Obj. 2 Sol 1/ 13 e10” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 23 – “Margem do Solimões/ Junho – 1927/ Sobre as ondas” (notação no verso). Acervodo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 24 – “Única igreja de Porto-Velho/ 11-VI-27/ Sol 1 Diaf. 2 13 e 15/Nun arm Ich bingehst du zuruck” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade deSão Paulo.

Figura 25 – “Caiçara pra embarque de gado/ S. Joaquim/ Marajó 29-VII-27/ diaf. 1, sol 1 das16” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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O CODAQUE E A EXPERIMENTAÇÃO ARTÍSTICA

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Figura 26 – “Caiçara/ rio Madeira/ 3-VII-27” (notação no verso). Acervo do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 27 – “Veleiros encostados no Baependy/ Areia Branca/ 6-VIII-27/ Diaf. 3 – sol 1 das 7 e40” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 28 – “Procissão de Nossa Senhora em Porto-Velho/ 15-VII-27” (notação no verso). Acervodo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 29 – “Amor e Psiquê no Solimões/ Junho – 1927/ Canova 1927” (notação no verso).Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 30 – “Foto futurista de Mag e Dolur sobrepostas às margens do Amazonas/ Junho 1927/Obsessão” (notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 31 – “Desvairismo por acaso/ questão de lancha e de lunch/ 7-VI-27” (notação noverso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 32 – “Futurismo pingando 7-VI-27” (notação no verso). Acervo do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 34 – “No furo de Barcarena (Manaus)/ Atirando a tarrafa 7-VI-27/ Tarrafeando”(notação no verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 33 –“Atirando tarrafa/ Igarapé de Barcarena/ arredores de Manaus/ 7-VI-27” (notaçãono verso). Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Figura 35 – “Tarrafeando/ Furo de Barcarena/ 7-VI-27” (notação no verso). Acervo do Institutode Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura 36 – “Tarrafeando a beira-rio/ Furo de Barcarena/ 7-VI-27” (notação no verso). Acervodo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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Artigo apresentado em 08/2005. Aprovado em 09/2005.