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 TURMA:  ano Literatura – Landim    Lista 01 – Resumo de obra   Análise da obra A metamorfose 1 , de Franz Kafka, por Henrique Landim 2   Olha só, que cara estranho que chegou Parece não achar lugar No corpo em que Deus lhe encarnou Tropeça a cada quarteirão Não mede a força que  tem Exibe à frente o coração Que não divide com ninguém Tem tudo sempre às suas mãos Mas leva a cruz um pouco além Talhando feito um artesão A imagem de um rapaz de bem [...] (“Cara Estranho”, da banda Los Hermanos).  Dados biográficos do Autor  Filho de Herman Kafka, comerciante judeu que venceu na vida a custo de muito esforço pessoal, condição sempre valorizada, mesmo de forma arrogante diante do filho. A mãe do escritor,  Julie Lowy, ajudava o marido nos negócios da família. O casal,  antes de ter Franz Kafka, viu nascerem outros dois filhos,  porém ambos morreram logo após o nascimento. A relação do escritor com o pai sempre foi marcada pelos conflitos,  como ele mesmo relatou em seu livro intitulado de Carta ao pai, escrito aos 36 anos e publicado postumamente. Esse livro é uma sensível  reflexão sobre a relação entre pai e filho que se  fracassado diante das expectativas paternas. A possível relação arbitrária entre os dois não servirá como tônica para a nossa compreensão da obra A metamorfose, porém poderemos usála se necessário. Após concluir os estudos no ginásio alemão de Praga, Kafka pensou em fazer filosofia,  contudo o pai não era favorável a essa opção de curso, alegando que filosofia não era  interessante sob o ponto de vista financeiro. Assim, o escritor acabou optando pelo curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak e Hugo Bergmann, mas não permaneceu no curso por quinze dias, matriculandose, em seguida, em Direito,pois assim  poderia satisfazer o seu pai e, ao mesmo tempo, seguir a sua verdadeira vocação. Vale dizer que,  durante o curso, às vezes, aproveitava para seguir as aulas de literatura e poesia. No                                                            1  Em alemão o livro recebeu o seguinte título: Die Verwandlung. 2  Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. ano de 1906, o escritor terminou o curso superior de direito. Em 1908, conseguiu um emprego no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho, no qual exercia as suas atividades no período das 8 às 14 horas. Logo seria promovido a escrevente chefe e passou a trabalhar apenas meio período por dia, podendo, assim, dedicarse à literatura.  No ano de 1917, aos 34 anos, Kafka sofreu a primeira hemoptise, fruto de uma tuberculose que iria leválo à morte em sete anos. A partir desse momento, o escritor mantinhase internado, por alguns intervalos, em sanatórios e, mesmo com o processo degenerativo da doença, o escritor ainda trabalhava. No ano de 1922, Kafka aposentouse, entretanto continuava a escrever. Para ele tudo que não era literatura o aborrecia.  Kafka, no campo amoroso, teve envolvimento com algumas mulheres. Ele chegou a morar com Dora Diamant, em Berlim, no ano de 1923, porém o seu estado de saúde agravouse, obrigandoo a seguir para o sanatório Wiener Wald. Não ficou muito tempo nesse lugar. Com tuberculose na laringe, o escritor foi internado em outro sanatório, nas proximidades de Viena, onde morreu, no dia 03 de junho de 1924, aos 40 anos. Graças a Max Brod, seu grande amigo desde a infância, podemos hoje ter acesso aos textos de Kafka que, num testamento, pediu o amigo que queimasse todos os seus escritos. Numa carta anterior, o escritor disse:  De todos os meus escritos, os únicos livros que podem ficar são: O veredicto, A metamorfose, Na colônia penal, Um médico de província e o conto “Um artista da fome”. (As poucas cópias de Contemplação podem permanecer. Não quero dar a ninguém o trabalho de macerálas; mas que nada desse volume torne a ser publicado).  Max Brod não atendeu ao pedido de Kafka; interpretou a carta do escritor como algo de alguém que não soubesse o que estava fazendo. Da gaveta do escritor, Brod ainda salvou obras como O processo, O castelo, por exemplo.  Gêneros literários  Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. (...) O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Poema “O bicho”, de Manuel Bandeira)  

TURMA: 1º ano Literatura –Landim...não era interessante sob o ponto de vista financeiro. Assim, o escritor acabou optando pelo curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak

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Page 1: TURMA: 1º ano Literatura –Landim...não era interessante sob o ponto de vista financeiro. Assim, o escritor acabou optando pelo curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak

 

TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

Lista 01 – Resumo de obra   Análise da obra A metamorfose1, de Franz Kafka, por Henrique Landim2  

Olha só, que cara estranho que chegou Parece não achar lugar 

No corpo em que Deus lhe encarnou Tropeça a cada quarteirão 

Não mede a força que já tem Exibe à frente o coração 

Que não divide com ninguém Tem tudo sempre às suas mãos Mas leva a cruz um pouco além 

Talhando feito um artesão A imagem de um rapaz de bem [...] 

(“Cara Estranho”, da banda Los Hermanos).  Dados biográficos do Autor  

Filho  de  Herman  Kafka, comerciante judeu que venceu na  vida  a  custo  de  muito esforço  pessoal,  condição sempre  valorizada, mesmo de forma  arrogante  diante  do filho.  A mãe  do  escritor,  Julie Lowy,  ajudava  o  marido  nos negócios  da  família.  O  casal, antes  de  ter  Franz  Kafka,  viu nascerem  outros  dois  filhos, porém  ambos morreram  logo após  o  nascimento.  A  relação do  escritor  com  o  pai  sempre foi  marcada  pelos  conflitos, como  ele  mesmo  relatou  em seu  livro  intitulado  de  Carta 

ao  pai,  escrito  aos  36  anos  e  publicado  postumamente. Esse  livro  é  uma  sensível  reflexão  sobre  a  relação  entre pai  e  filho  que  se  vê  fracassado  diante  das  expectativas paternas.  A  possível  relação  arbitrária  entre  os  dois  não servirá como tônica para a nossa compreensão da obra A metamorfose, porém poderemos usá‐la se necessário. 

Após  concluir  os  estudos  no  ginásio  alemão  de Praga, Kafka pensou em fazer  filosofia, contudo o pai não era favorável a essa opção de curso, alegando que filosofia não  era    interessante  sob  o  ponto  de  vista  financeiro. Assim, o escritor  acabou optando pelo  curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak e Hugo Bergmann, mas não permaneceu no curso por quinze dias, matriculando‐se, em seguida, em Direito,pois assim  poderia satisfazer o seu  pai  e,  ao  mesmo  tempo,  seguir  a  sua  verdadeira vocação.  Vale  dizer  que,  durante  o  curso,  às  vezes, aproveitava para seguir as aulas de literatura e poesia. No 

                                                            1 Em alemão o livro recebeu o seguinte título: Die Verwandlung. 2 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. 

ano  de  1906,  o  escritor  terminou  o  curso  superior  de direito. 

Em  1908,  conseguiu  um  emprego  no  Instituto  de Seguros  contra  Acidentes  de  Trabalho,  no  qual  exercia  as suas  atividades  no  período  das  8  às  14  horas.  Logo  seria promovido a escrevente  chefe e passou a  trabalhar apenas meio  período  por  dia,  podendo,  assim,  dedicar‐se  à literatura.  

No  ano  de  1917,  aos  34  anos,  Kafka  sofreu  a primeira hemoptise, fruto de uma tuberculose que  iria  levá‐lo à morte em sete anos. A partir desse momento, o escritor mantinha‐se  internado, por alguns  intervalos, em sanatórios e, mesmo com o processo degenerativo da doença, o escritor ainda  trabalhava.  No  ano  de  1922,  Kafka  aposentou‐se, entretanto continuava a escrever. Para ele tudo que não era literatura o aborrecia.  

Kafka,  no  campo  amoroso,  teve  envolvimento  com algumas mulheres. Ele  chegou  a morar  com Dora Diamant, em Berlim, no  ano de 1923, porém o  seu estado de  saúde agravou‐se,  obrigando‐o  a  seguir  para  o  sanatório Wiener Wald. Não  ficou muito tempo nesse  lugar. Com tuberculose na  laringe, o escritor  foi  internado em outro  sanatório, nas proximidades de Viena, onde morreu, no dia 03 de junho de 1924, aos 40 anos. 

Graças  a  Max  Brod,  seu  grande  amigo  desde  a infância, podemos hoje  ter acesso aos  textos de Kafka que, num  testamento,  pediu  o  amigo  que  queimasse  todos  os seus escritos. Numa carta anterior, o escritor disse: 

 De  todos os meus escritos, os únicos  livros que  podem  ficar  são:  O  veredicto,  A metamorfose, Na colônia penal, Um médico de província e o conto “Um artista da fome”. (As poucas cópias de Contemplação podem permanecer.  Não  quero  dar  a  ninguém  o trabalho de macerá‐las; mas que nada desse volume torne a ser publicado). 

 Max  Brod  não  atendeu  ao  pedido  de  Kafka; 

interpretou a carta do escritor como algo de alguém que não soubesse o que estava  fazendo. Da gaveta do escritor, Brod ainda salvou obras como O processo, O castelo, por exemplo.  

Gêneros literários 

 Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. (...) O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Poema “O bicho”, de Manuel Bandeira)  

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

O  dicionário  Aurélio  define  gênero:  qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, fatos, ideias, que tenha caracteres  comuns;  espécie,  classe,  etc.  Seguindo  essa definição, a literatura, desde a Antiguidade, teve divididos os textos  que  tenham  caracteres  comuns,  em  três  grandes categorias: épico,  lírico e dramático. Quanto à  forma, esses textos podem se manifestar em prosa ou verso.  

 A  obra  A  metamorfose,  de  Franz  Kafka,  pode  ser 

compreendida como uma produção narrativa. Vale dizer que o  gênero  narrativo  consiste  em  relatar  um  fato  ou  uma história  de  ficção. A  obra  desse  gênero mostra  um  enredo em  que  se  tem  uma  situação  inicial,  a modificação  desta situação,  um  conflito,  o  clímax  (o  ponto  de  tensão  na narrativa) e o chamado epílogo, que é a solução narrada no ponto máximo da história. Os elementos que  compõem  tal gênero  são:  o  narrador,  o  tempo,  o  lugar,  o  enredo  ou situação e as personagens.  

O  gênero  narrativo  pode  vir  a  nós,  leitores,  pelas maneiras mais usuais que são as modalidades desse gênero: romance, novela, conto, crônica e fábula.   

O gênero narrativo 

 A novela pertence,  como o  conto  e o  romance,  ao 

gênero narrativo. A novela é uma modalidade  literária cujas fronteiras  não  estão  muito  bem  definidas,  misturando‐se, por  vezes,  com  o  conto  ou  com  o  romance.  De  vez  em quando,  encontramos  novelas  apelidadas  de  contos; entretanto  o  mais  usual  é  vermos  romances  qualificados como novelas ou novelas com a designação de romances.  

“No  geral,  é  adotada  uma  distinção  mecânica, baseada  no  número  de  páginas  ou  de  palavras:  a  novela contém  de  cem  a  duzentas  páginas,  ou mais  de  vinte mil palavras, ou seja, situa‐se a meio caminho entre o romance e o  conto, menos  extensa  que  o  primeiro, mais  longa  que  o segundo”  (MOISÉS,1988,  p.361).  Portanto,  nessa  espécie narrativa,  condensam‐se  os  elementos  do  romance,  com diálogos rápidos, sem muitas divagações, ensejando ao autor um encaminhamento da história para o final mais rápido. 

Nesses  casos,  a  fronteira  torna‐se  tão  tênue  que  é necessário  comparar  e  analisar  todos  os  aspectos  do  texto antes  de  fixá‐lo  num  compartimento.  Logo,  não  basta verificar  superficialmente o  tamanho, o número de ações e de personagens para classificar um texto.  

 Para Hênio Tavares           

Costumam os autores fazer distinção entre o romance, a novela e o conto pela extensão de  cada  uma  dessas  espécies.  O  romance seria  a  obra  mais  longa,  a  novela  menos longa que o  romance e mais extensa que o conto.  A  precariedade  do  critério  salta  aos olhos.  Não  é  pelo  número  de  páginas  que uma  espécie  se  destaca  da  outra, mas  sim pela  técnica  da  construção,  segundo  nos ensina Soares Amora. A novela condensa os elementos  do  romance:  os  diálogos  são rápidos,  as  narrações  diretas,  sem circunlóquios  ou  divagações,  as  descrições impressionistas,  tudo  ensejando  a precipitação da história para  seu desenlace (TAVARES, 2002, p.122).  

 A  novela  é,  então,  uma  narrativa  que  se  foca  na 

ação,  que  pode  ou  não  ter  uma  aparência fundamentalmente  sentimental,  e  todas  as  ações contribuem para a conclusão da ação central, que deverá pôr um ponto  final em  todas  as  intrigas que  foram exploradas, condição  não muito  aplicável  ao  nosso  texto  analisado,  A metamorfose. 

As personagens, cujo número varia, dependendo do número  de  ações,  são  geralmente  planas,  ou  seja, construídas  em  torno  de  uma  só  ideia  ou  qualidade.  Em geral, são definidas em poucas palavras.  

O espaço na novela é mais explorado que no conto, permitindo  um  maior  envolvimento  do  leitor,  e  o  tempo tende  a  prender‐se  num  presente  constantemente atualizado, de modo que o  leitor se defronta sempre com a ação a decorrer no aqui e agora.  

A obra de Kafka, A metamorfose,  classificada  como novela,  traz  um  título  –  que  tem  sempre  uma  função primordial nesse gênero – que é um verdadeiro título‐tema. Quando  o  lemos,  percebemos  logo  o  assunto  que  será desenvolvido  no  texto.  O  desenvolvimento  começa  já  no primeiro  parágrafo:  “Certa  manhã,  após  um  sono conturbado,  Gregor  Samsa  acordou  e  viu‐se  em  sua  cama transformando  num  inseto  monstruoso”(KAFKA,  2010,  p. 11).Nas páginas iniciais da novela, temos o desenvolvimento do  tema  expresso  pelo  título,  isto  é,  a  transformação profunda do protagonista Gregor Samsa.  

O que é notório em A metamorfose é a ausência de vários núcleos narrativos, pois a história se dá em  torno do protagonista e, em torno dele, concentra‐se toda a atenção, sem  a  presença  dos  chamados  núcleos  periféricos,  que demandariam tempo e distrações.   

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

Enredo Capítulo I  

Na primeira página da novela, mais precisamente no primeiro  parágrafo,  temos  a  apresentação  do  problema central  do  texto:  a  transformação  do  protagonista  em  um inseto  assustador.  O  narrador  evita  qualquer  tipo  de adjetivação  que  pudesse  causar  esclarecimentos,  por meio da frieza de um relatório, não faz nenhuma preparação para chegar  a  terrível  constatação  física  do  sujeito,  ele, simplesmente,  por  meio  de  uma  economia  vocabular, descreve:   

Certa  manhã,  após  um  sono  conturbado, Gregor Samsa acordou e viu‐se em sua cama transformando  num  inseto  monstruoso. Deitado de costas sobre a própria carapaça, ergueu  a  cabeça  e  enxergou  o  seu  ventre escurecido,  acentuadamente  curvo,  com profundas saliências onduladas, sobre o qual a  colcha  deslizava,  prestes  a  cair.  Suas inumeráveis  pernas,  terrivelmente  finas  se comparadas ao volume do corpo, agitavam‐se  pateticamente  diante  de  seus  olhos (KAFKA, 2010, p. 11). 

 O  negativismo  da  narrativa  de  Kafka  nos  leva  para 

um universo absurdamente insólito3. O que mais espanta na leitura  da  novela  é  a  naturalidade  com  que  o  personagem trata  a  situação.  Parece  estarmos  diante  de  uma  doença corriqueira  como,  por  exemplo,  um  resfriado.  Não  há  um grito  de  desespero,  somente  a  terrível  constatação  da metamorfose  e  a  impossibilidade, pelo menos naquele dia, de cumprir o seu ritual diário: acordar cedo e prosseguir em sua  rotina  de  caixeiro‐viajante.  O  trecho  revela  uma descrição objetiva,  vazada numa  linguagem  seca  (o  alemão protocolar do Império Austro‐Húngaro). 

A  nossa  experiência  cognitiva  com  o  mundo  nos nega aceitar a transformação de uma pessoa em um  inseto, condição  marcada  por  um  profundo  estranhamento.  Ao mesmo  tempo,  parece  que  estamos  diante  de  um mundo fantasioso, marcado por  criaturas  sobrenaturais, que vivem em  lugares  inóspitos4.  Contudo,  o  espaço  demarcado  é  a casa, mais precisamente, o quarto do um  caixeiro‐viajante5 Gregor Samsa. O quarto fechado torna‐se o único espaço de “ação” desse  impotente “sujeito”. Esse  lugar apresenta uma caracterização  interessante: não há corredores separando‐o dos  outros  espaços  da  casa,  mas  três  portas  o  ligam  ao quarto  do  pai,  ao  da  irmã  e  à  sala  de  jantar,  aspecto  que sugere uma intimidade altamente forçada e inconveniente. O próprio narrador afirma que Gregor não estava diante de um sonho, pois o quarto  é o  ambiente  facilmente  reconhecido pelo protagonista:  

                                                            3que não é habitual; infrequente, raro, incomum, anormal. 4 Que não recebe com hospitalidade; Diz‐se do lugar que apresenta más condições de vida para o Homem; 5 Representante de vendas; 

Em  cima  da  mesa  está  o  mostruário  de tecidos ‐ pois Samsa era caixeiro – viajante – e  acima  dela,  numa  elegante  moldura dourada,  a  fotografia  que  recentemente recortara  de  uma  revista  ilustrada.  Era  a figura  de  uma  senhora,  muito  aprumada, com  chapéus  e  estola6  de  pele, empunhando na direção do observador uma manga, igualmente de pele, que lhe ocultava o antebraço por inteiro (KAFKA, 2010, p. 11). 

   A abertura do livro comunica‐se, indiretamente, com 

os contos de fada que são iniciados pela expressão “era uma vez”, porém o universo  kafkiano não permite  aventuras  ao sabor  das  peripécias  do  protagonista.  Nesse  caso,  Gregor tem a vida controlada pelos ponteiros do relógio e, também, pelo  espaço  limitado  de  seu  quarto.  A  absurda transformação  do  caixeiro  –  viajante  fecha‐o  ainda  mais entre as quatro paredes. Quase todo o enredo da novela se passa dentro de um espaço limitado e delimitado. O homem – inseto permanecerá entrincheirado sem nenhum horizonte de  expectativas. Resta  ao  sujeito  rastejar‐se,  confinado  em seu  locus,  não  há  comunicação  possível  com  o  ambiente externo  e  sem  possibilidade  de  qualquer  diálogo humanamente interpretável. Segundo Adorno: 

 O  deslocamento  é  moldado  segundo  o costume  ideológico  que  glorifica  a reprodução da  vida  como um  ato de  graça dos  “empregadores”,  que  dispõem  sobre ela.  Ele  descreve  um  todo  no  qual  aqueles que  a  sociedade  aprisiona,  e  que  a sustentam,  tornam‐se  supérfluos.  Mas  o sórdido, em Kafka, não se esgota nisso. Ele é o  criptograma7  da  fase  final  e resplandecente  do  capitalismo,  que  Kafka exclui  para  determiná‐lo  em  sua negatividade (ADORNO, 1998, p. 252). 

 Como  vemos na novela A metamorfose, o universo 

kafkiano  é  marcado  pela  presença  do  homem  comum, operário, caixeiro – viajante, costureiro, contínuo, balconista, que precisa prestar contas de seu serviço ao seu superior e, quase sempre, se vê mergulhado em situações embaraçosas que não se resolvem. 

Todorov  analisa  a  obra  A metamorfose  como  uma narrativa  do  sobrenatural.  Para  esse  estudioso,  o sobrenatural aparece logo na primeira página do livro: “Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu‐se em sua cama transformando num inseto monstruoso” (KAFKA, 2010, p. 11). Contudo, a novela de Kafka se distingue das narrativas fantásticas tradicionais, pois o acontecimento estranho não  aparece  seguido de  indicações  indiretas, mas logo no  início do texto. Para ele a narrativa fantástica partia 

                                                            6 Tipo de  indumentária  religiosa, usada pelos padres nas missas e outras cerimônias,  tem formato de uma faixa  larga que é posta na nuca deixando as duas pontas deslizar sobre o peito chegando até próximo dos joelhos; em alguns casos é transpassada num dos ombros tendo as pontas unidas num dos lados do ventre. 7 Mensagem ou documento expresso de maneira cifrada; 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

de  uma  situação  perfeitamente  natural  para  alcançar  o sobrenatural,  A  metamorfose  parte  do  acontecimento sobrenatural  para  dar‐lhe,  no  curso  da  narrativa,  uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural (TODOROV, 2008, p. 179). 

 A  realidade  representada  em  A  metamorfose  é 

absurda e anômala. As ações são tão sobrenaturais que não provocam  hesitação  no  leitor,  segundo  Todorov  (2008,  p. 181). Sendo assim, o texto apresenta fatos estranhos, fora da ordem  tradicional,  que,  entretanto,  podem  ser  explicados pelas leis da racionalidade, conforme explica Todorov8.  

Acreditamos  que  o  fantástico,  no  texto  de  Kafka, funciona  como  artifício  para  chamar  a  atenção  sobre  a desumana  realidade  do  sujeito.  Temos  aqui,  na  verdade, uma  espécie  de  realismo  trágico  e  grotesco.  A  natureza alegórica  do  texto mostra  as  incertezas  e  os  absurdos  do homem  moderno.  Talvez,  Gregor  necessitasse  da transformação para poder se libertar do trabalho e da família em  função  de  uma  existência mais  digna  e  autêntica.  Para Coutinho, Kafka: 

 transforma o fantástico num instrumento de autênticas  catarses:  sua  obra  não  confirma os receptores em sua falsa consciência, mas os  obriga  a  entrar  em  contato  com  uma realidade nova, cujo conhecimento os leva a uma  tomada  de  posição  diante  de  si mesmos  e  do  mundo  manipulado  que  os envolve (COUTINHO, 2005, p.174). 

 A  condição  animalesca  é  um  enigma  para  nós, 

leitores, e para o próprio herói. A inusitada transformação do protagonista  nos  causa  bastante  estranhamento.  Como observou  Modesto  Carone  (2009),  grande  especialista kafkiano no Brasil, a novela parece uma fábula invertida, que começa pelo  clímax,  isto  é,  a obra  é  aberta pelo ponto de maior tensão da narrativa. No mundo de Kafka, tudo parece invertido, irreal, fantástico. Assim, contrariando a convenção literária que o clímax é projetado para o  final, vemos em A metamorfose que o escritor traz para o início o ponto alto do enredo,  “ou  seja: aqui a  coisa narrada não  caminha para o auge, ela se inicia com ele” (CARONE, 2009, p. 32).     Gregor  Samsa  se  questiona:  “‐  O  que  aconteceu comigo?” (KAFKA, 2010, p. 11). Pensou em dormir um pouco mais,  acreditava  que  talvez  a  sua  condição  física  fosse alterada com o sono. Entretanto, dormir não seria possível, uma vez que a sua condição não permitia adormecer em sua maneira predileta. A metamorfose do personagem não é um pesadelo  do  qual  pudesse  acordar,  pelo  contrário  ela  é definitiva. A  súbita  transformação não é um disparate, mas uma espécie de licença poética transformada em fato com a qual  todos  nós  (leitor  e  protagonista)  teremos  que  nos  conformar.  

                                                            8 Para esse estudioso, a fórmula que melhor resumo a essência do fantástico é: “quase cheguei a acreditar” (TODOROV, 1970, p. 150).

  Anders (2007, p. 15), estudioso da obra de Franz Kafka, faz uma interessante observação:  

A  fisionomia  do  mundo  kafkiano  aparece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente  normal  do  nosso  mundo louco,  para  tornar  visível  sua  loucura. Manipula,  contudo,  essa  aparência  louca como  algo  muito  normal  e,  com  isso, descreve até mesmo o  fato  louco de que o mundo louco seja considerado normal (grifo do autor). 

   Kafka,  segundo  o  estudioso  acima,  apresenta 

situações deformadas para  introduzir o seu objeto principal, o  homem.  Logo,  o  espantoso  é  a  própria  realidade  que aparece  determinada  pelo  mundo  do  trabalho  que desumaniza e oprime os sujeitos. No universo kafkiano até a simples  prática  do  acordar,  torna‐se  algo  tenebroso,  um pesadelo sem volta, portanto, irresolvível.   

Sendo  assim, Gregor  fechou  os  olhos  para  não  ter que  ver o movimento  frenético das  inúmeras perninhas de seu  novo  corpo.  Pensou  negativamente  na  profissão  que exercia,  a  de  caixeiro  –  viajante,  sentiu‐se  oprimido  pelo ofício, mas sobretudo pela figura de seu chefe:   

Se eu fizesse o mesmo,  levando em conta o chefe que  tenho,  já estaria no olho da  rua. [...] Não  fosse  por  causa  dos meus  pais,  já teria pedido as  contas há muito  tempo: eu me postaria diante do chefe e lhe diria, com todas as  letras, tudo o que penso. Ele cairia da mesa (KAFKA, 2010, p. 12). 

 O  trabalho  exercido  por  Gregor  é  fruto  de  uma 

dívida  adquirida  pelo  seu  pai  no  passado,  o  que  indica  a condição compulsória do emprego:   

No momento em que  juntar o dinheiro que meus pais lhe devem – talvez eu consiga em mais cinco ou seis anos ‐, não tenho dúvidas de que o  farei. Aí  sim, mudo de vida. Mas, por ora, o que preciso  fazer é  levantar‐me, pois o trem parte às cinco  (KAFKA, 2010, p. 12‐13). 

 O protagonista não tem mais a possibilidade de viver 

a sua própria vida. Gregor Samsa se abdicou de ser que o era ou  fosse,  para  dedicar‐se  somente  ao  trabalho,  a  fim  de cumprir  com  a  dívida  oriunda  da  falência  de  seu  pai. Portanto, ele não  trabalhava por uma motivação de ordem subjetiva, mas de ordem pragmática, isto é, sanar a dívida de seu pai. Havia cinco anos que Gregor  trabalhava na mesma empresa  e  ainda necessitaria de outros  cinco para  cumprir com as obrigações pecuniárias herdadas do pai. Em todos os anos de trabalho, o protagonista nunca houvera faltado por nenhum motivo.  Ao  certo,  seria  a  primeira  falta  em  cinco anos,  isso  também  o  aflige. O  relógio  despertou  às  quatro horas  da  madrugada,  porém  Gregor  não  despertou,  não 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

conseguiu  escutar  o  alarme. Agora  planejava  pegar  o  trem das sete horas, infelizmente ouviria a bronca do chefe.  

Os  maus  pensamentos  invadiram  Gregor  e,  no mesmo  momento  em  que  o  despertador  marcava  quinze para  as  sete,  alguém  bateu  de  leve  na  porta  do quarto:  “‐ Gregor  –  era  a  voz de  sua mãe  ‐,  são quinze para  as  sete. Você  não  iria  viajar?”  (KAFKA,  2010,  p.  14). O personagem respondeu com uma voz chiada que já estava  levantando. O pedido da mãe levou ao conhecimento dos outros membros da  casa  cerca  consciência  da  condição  de  Gregor.  Em seguida,  o  pai  bateu  a  porta  do  quarto.  A  irmã,  em  outro quarto,  perguntou  discretamente  ao  irmão  se  estava  tudo bem com ele.  

Gregor  empenhou  grande  energia,  sem  buscar  um ponto  de  apoio,  simplesmente  impulsionando  para  frente, contudo  calculou mal a direção,  chocando‐se  contra os pés da  cama  e  a  dor  sobreveio‐lhe.  Insatisfeito,  voltou  para  a posição original na cama. Queria sair da cama, mas deveria fazê‐lo com serenidade, sem atitudes impensáveis. Com isso, quando 

 necessitava  pensar  em  algo  detidamente, costumava concentrar o olhar na janela, mas infelizmente  a  neblina,  encobrindo  até  o outro  lado da  rua, não permitia que  se  lhe infundisse  algum  ânimo  ou  inspiração (KAFKA, 2010, p. 16). 

 Entre as quatro paredes opressoras, sem horizontes, 

o narrador poderia, talvez, ver pela janela aberta um possível conforto  para  a  sua  alma  dilacerada,  funcionando  como esperança  de melhoria  do  seu  estado  animalesco.  Por  ela entraria  vida  nova,  daria  para  ver  a  rua,  pessoas,  carros, enfim,  o  dinamismo  do  mundo  convidando‐o  a  voltar  à “realidade”. Da  janela do quarto, dava para ver apenas uma neblina desalentadora. Já que a janela não oferecia nenhuma perspectiva,  ficou  deitado  sem  um  mínimo  movimento, respirando  lentamente,  como  se  aquilo  pudesse  lhe proporcionar a volta à sua condição de antes.  

O  relógio  marcava  sete  horas  da  manhã.  Gregor sentiu‐se bastante oprimido por ele. Pensou que a empresa iria mandar alguém à sua casa. Então, decidiu sair da cama. A operação  consistiu  em  inclinar  a  parte  da  frente  do  corpo para fora da cama. Assim, metade do corpo estava de fora da cama. Já houvera avançado bastante quando as sete e dez a campainha  tocou:  “É  alguém  da  firma,  tenho  certeza” (KAFKA, 2010, p. 17). Não demorou muito para Gregor notar que estava em sua casa, era o gerente. Com  isso,  lançou‐se fortemente ao chão. A queda resultou numa pancada surda que despertou a atenção dos outros: 

 Gregor  –  chamou  então  o  pai  ‐,  o  senhor gerente  está  aqui  e  gostaria  de  saber  por que você não seguiu no primeiro trem. Não sabemos  o  que  responder.  Então,  abra  a porta, por  favor. O  senhor  gerente não  vai reparar  na  bagunça  de  seu  quarto  (KAFKA, 2010, p. 19). 

  O pai interveio, porém o protagonista não abriu a porta. A  irmã, no quarto da direita,  começou  a  soluçar,  sabia das consequências  negativas  para  Gregor  daquela  presença opressora do gerente. O protagonista permanecia estendido sobre o tapete e ninguém que o visse naquele estado exigiria que ele abrisse a porta. E essa insignificante descortesia seria desculpada  no  momento  oportuno.  Dessa  maneira,  o gerente interveio: 

‐  Senhor  Samsa  –  interveio  o  gerente, elevando  a  voz  ‐,  o  que  isso  significa?  O senhor  entrincheirou‐se  aí  em  seu  quarto, respondendo  somente  sim  ou  não.  Deixe seus  pais  preocupados  inutilmente  e,  diga‐se  de  passagem,  falta  à  sua  obrigação  na firma  de  maneira  verdadeiramente inacreditável.  Falo  aqui  em  nome  de  seus pais  e,  como  seu  superior,  peço‐lhe muito seriamente  que  apresente  uma  explicação clara e imediata (KAFKA, 2010, p. 20).  

A inserção da figura do gerente acentua ainda mais o clima  de  desconforto  da  narrativa.  Esse  personagem  é  a materialização da dívida9 do pai de Gregor. Aqui, podemos notar  como  o  mundo  do  trabalho  já  havia  invadido  a existência  desse  sujeito.  O  mal  estar  da  situação  é intensificado  quando  o  gerente  afirma  que  a  posição  de Gregor na firma era  incerta,  isto é, ele poderia ser demitido em  virtude da  falta. O mundo  ficcional de Kafka  revela um mundo  arbitrário  e  antiteticamente  dividido  entre  uns poucos que mandam e a maioria que obedece e só conhece a  rigidez das  leis e  regras. Resta ao personagem  fragilizado curvar‐se diante do absurdo das  relações. Para  revelar esse absurdo, Kafka dá vida a um árduo jogo de contrastes entre o natural e o estranho, o absurdo e o  lógico. Portanto, Gregor Samsa vive  situações  impensáveis dentro de uma  realidade cotidiana. A consequência de um sistema que confere ao ser humano o último lugar é a alienação que o transforma numa espécie  de  autômato10  facilmente  manipulado.  Assim, Gregor,  ao  longo  das  páginas,  é  um  homem  desorientado diante  do  poder  do  outro,  parece  estar  em  meio  a  um labirinto  de  proporções  imensuráveis,  tudo  conspira  para uma ordem caótica. 

Samsa,  do  quarto,  respondeu  que  estava melhor  e partiria no trem das oito. Contudo, o gerente não conseguiu entender com clareza a fala de Gregor: “Entenderam algo do que ele  falou? – perguntou aos pais. – Será que ele está se caçoando  de  nós?  [...]  Era  uma  voz  de  animal  –  disse  o gerente,  falando  baixo  em  comparação  aos  gritos  da mãe” (KAFKA, 2010, p. 23). A metamorfose de Gregor progredia ao ponto de modificar a sua capacidade de comunicação verbal. Ao longo do livro, iremos notar que ele perde o poder de se comunicar. A voz parecia um  ruído animalesco. O pai pediu 

                                                            9 No alemão “Schuld” apresenta duas traduções: dívida e culpa. A segunda tradução (culpa) remete diretamente à condição de Gregor, pois a palavra carrega em si um valor bastante psicológico, uma vez que ele assumiu a  culpa da  família e por ela  irá  responder até que possa se redimir das  faltas do outro. As obras de Kafka são repletas desse sentimento de culpa do sujeito.Embora desconheça totalmente a natureza de sua falta, carrega, ao longo das páginas, esse sentimento. Gregor tem a convicção de que é culpado, contudo não sabe, com profundidade, a motivação de tal fato e também não tem a possibilidade de defender‐se. Tudo isso, atesta o universo absurdo das narrativas de Kafka. 10 Máquina que imita o movimento de um corpo animado: o autômato de Vaucanson. Fig. Pessoa que não pensa nem age por si mesma. 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

que Grete, a irmã de Gregor, fosse à procura de um médico e Ana, a empregada, de um serralheiro para abrir a porta.    O  mundo  do  trabalho  anulou  por  completo  o protagonista  da  obra.  Gregor  é  um  sujeito  que  “anda  na linha”. A própria profissão de caixeiro viajante confirma esse aspecto:  a  imagem  do  trem,  meio  de  transporte  que  se movimenta nos  trilhos, poderia ser vista como um exemplo alegórico  do  mundo  que  exerce  o  seu  controle  sobre  o sujeito, anulando‐o demasiadamente. O trem é um meio de transporte em que não há quase nenhuma possibilidade de decisão individual do passageiro, o seu trajeto é determinado pela  linha e tem de ser cumprido, rigorosamente, dentro do tempo.  Sendo  assim, de maneira  análoga,  tanto no mundo do trabalho como familiar, Gregor é como o usuário do trem, isto  é,  alienado,  à  mercê  de  um  modelo  existencial previamente  programado.  A  obra  A  metamorfose  é  a representação do mundo moderno que o homem padece em uma  existência  vazia  de  sensibilidade  inteiramente consumida pelo automatismo que o prende. Gunther Anders delineou com precisão a obra de Franz Kafka:  

Milhares de vezes o homem de nossos dias esbarra  em  aparelhos  cuja  condição  lhe  é desconhecida  e  com  os  quais  só  pode manter  relações  alienantes, uma  vez que  a vinculação  deles  com  o  sistema  de necessidades  dos  homens  é  infinitamente mediada:  pois  estranhamento  não  é  um truque do filósofo ou do escritor Kafka, mas um fenômeno do mundo moderno – só que o  estranhamento,  na  vida  cotidiana,  é encoberto  pelo  hábito  oco.  Kafka  revela, através da sua técnica de estranhamento, o estranhamento encoberto da vida cotidiana (ANDERS, 1969, p.17‐18).  

A obra de arte, às  vezes,  se  configura numa  tônica do  exagero,  a  fim  libertar  o  nosso  olhar  dos condicionamentos  impostos  pela  nossa  cultura.  Assim,  os reais  sentidos  do  nosso  mundo  são  encobertos  e  passam despercebidos ao  longo da nossa rotina. Kafka, por meio de seus textos, lança mão do estranhamento a fim de tirar o véu que  encobre  a  existência.  Conta‐se  que  certa  vez,  numa exposição  de  Picasso,  Gustav  Janouch  disse  a  Kafka  que  o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e coisas. Kafka  disse  que  o  pintor  não  pensava  desse  modo,  mas “apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em  nossa  consciência.  A  arte  é  um  espelho  que  adianta, como  um  relógio,  não  as  formas,  mas  as  nossas deformidades” (KAFKA apud CARONE, 2009, p. 37).  

O  homem moderno  se  aceita  como  coisa,  esquece que  essa  condição  é  adquirida  lentamente  e  que  vai  sedimentando‐o.  Essas  transformações  são  frutos  do absurdo  existencial  no  qual  estamos  mergulhados.  Sendo assim,  Kafka,  em  seu  livro,  denuncia  por  meio  da metamorfose, o processo de aviltamento do ser que ocorre diariamente. Em Kafka temos: 

 

O  inquietante  não  são  os  objetos  nem  as ocorrências, mas o  fato de que as criaturas reagem a eles descontraidamente, como se estivessem  diante  de  objetos  e acontecimentos  normais.  Não  é  a circunstância  de  Gregor  Samsa  acordar  de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente – a trivialidade do grotesco – que torna a leitura aterrorizante (ANDERS, 1969, p. 19). 

 Sendo  assim,  Kafka  deseja  dizer  que  o  natural  e  o 

não  ‐ espantoso da nossa realidade é pavoroso. Ele fez uma inversão:  o  que  causa  pavor  não  é  espantoso.  Essa  é  uma técnica  que  permeia  a  novela  kafkiana,  constituindo  um elemento fundamental de seus textos. 

Franz Kafka  escreveu  e  revisou  as primeiras provas da  novela  A  metamorfose  nos  anos  de  1912  e  1914, respectivamente.  Nessa  época,  os  conflitos  políticos, econômicos  e  sociais  levariam  à  Primeira  Guerra Mundial. Em um contexto de guerra, o ser humano sente‐se pequeno, indefeso  e  temeroso.  A  qualquer  momento,  as  pessoas poderiam ser aniquiladas como  insetos. O escritor não ficou impassível  a  todo  esse  movimento  de  guerra  e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos da guerra e a consequente desumanização do  ser encontra‐se,  principalmente,  nas  páginas  de  sua  novela animalista.  Sigfried  Kracauer,  por  exemplo,  em  seu  ensaio sobre Kafka, diz:   

Eles  foram  escritos  durante  os  anos  da guerra, da  revolução e da  inflação. Embora nem uma única palavra no  volume  todo  se refira  imediatamente  a  estes  eventos,  eles figuram  entre  seus  pressupostos (KRACAUER, S, 1977, p. 256). 

 No  livro A metamorfose, a  incapacidade de  falar da 

opressão da  família, das  injustiças  sociais, dos aviltamentos físicos  e  morais,  das  atrocidades  da  guerra,  do  matar  e morrer  em  massa  e  da  zoomorfização  do  homem  nos campos  de  batalha  pode  ser  representada  pelos  sons incompreensíveis que Gregor produz ao tentar comunicar‐se com o gerente. 

Gregor,  porém,  estava  bem mais  calmo.  Sentiu‐se novamente  incluído  entre  os  humanos,  e  passou  a  contar com  as  ações do médico  e do  serralheiro de uma maneira fantasiosa, fora de propósito. Em seguida, ele amparou‐se na cadeira e deslizou em direção à porta, onde trocou de apoio, lançando‐se contra ela, mantendo‐se de pé, sustentado nela, com  auxílio  das  pontas  das  perninhas,  que  tinham  uma viscosidade  aderente.  Ali,  descansou  por  um  instante  do esforço.  Assim,  tentou  girar,  com  a  boca,  a  chave  da fechadura.  Pareceu‐lhe,  então,  que  não  possuía  dentes  – como  iria  conseguir  segurar  a  chave  para  girá‐la?  Em compensação  tinha mandíbulas  fortes,  com  as  quais  pôde iniciar a operação e nem percebeu que havia machucado a si com aquilo, pois um  líquido amarronzado saía‐lhe da boca e escorregava pela chave, pingando no chão. Em certo sentido, 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

Gregor Samsa ignorava a sua metamorfose corporal, que era lembrada,  sobretudo,  quando  necessitava  movimentar‐se em suas atividades diárias. Em nenhum momento do texto, é colocada  em  pauta  a  motivação  para  a  metamorfose  de Gregor.  Talvez,  se  alguém  se perguntasse  sobre  a questão, pudesse,  quem  sabe,  reverter  o  quadro,  ou  para,  pelo menos,  entendê‐lo  melhor,  sendo  capaz  de  aprender, crescer, amadurecer e, ate mesmo, mudar. Um dos traços da obra de Kafka é essa sensação de nonsense, os personagens não  sabem  que  rumo  tomar,  sentem‐se  presos,  sozinhos  e incomunicáveis. 

Gregor Samsa mordeu a chave com toda a  força de que  dispunha  a  fim  de mover  a  chave,  girou  em  torno  da fechadura,  pendurado  pela  boca  e,  de  acordo  com  a necessidade,  apertava  a  chave  ou  a  empurrava  para  baixo com o peso de seu corpo. O dique da fechadura, abrindo‐se finalmente,  deixou‐o  aliviado  e  confiante,  a  ponto  de congratular‐se.  Depois  de  abrir  a  porta,  empurrou  a maçaneta com a cabeça. 

A porta abriu‐se parcialmente, não o bastante para que se pudesse vê‐lo. Ele teve de girar o corpo com lentidão, enquanto  pressionava  uma  das  folhas  da  porta,  tudo  com extremo  cuidado para não deixar que  seu peso o  levasse a cair de costas na entrada do quarto. Estava ainda entretido com essa difícil  tarefa,  sem pensar em outra  coisa, quando ouviu  de  súbito  “Oh!”  do  gerente,  que  pareceu    um  som forte  de  ventania,  e,  então,  Gregor  o  avistou  também.  O homem  levou  a  mão  à  boca  e,  estarrecido,  retrocedeu pesadamente, como se empurrado por uma força invisível.  

A mãe, apesar da presença do gerente, ainda estava despenteada, com os cabelos eriçados ‐ olhou primeiro para o  pai,  em  seguida  deu  dois  passos  em  direção  a Gregor  e tombou,  desmaiada,  espalhando  as  pregas  da  saia  a  seu redor, o rosto caído em cima do peito. O pai, com expressão hostil, cerrou os punhos, como se quisesse empurrar Gregor para  dentro  do  quarto;  depois,  olhou  em  torno, absolutamente  transtornado,  colocou  as  mãos  no  rosto  e chorou compulsivamente, estremecendo o peito robusto. 

Desse modo,  Gregor  não  chegou  a  entrar  na  sala, permanecendo  apoiado na outra  folha da porta, que  ainda estava  fechada;  deixava  visível,  portanto,  apenas  a  parte superior  do  corpo,  com  a  cabeça meio  inclinada,  olhando para  fora  do  quarto.  Nesse  meio  tempo,  o  dia  já  tinha clareado.  Já  se  podia  ver,  no  outro  lado  da  rua,  o  grande prédio do hospital, com suas paredes escuras e suas  janelas simétricas, que  subvertiam a monótona  rigidez da  fachada. 

Ainda  chovia,  mas em  pingos  grandes e  esparsos,  de  tal modo  que  era possível  vê‐los  cair, quase um a um, no chão da rua. A mesa ainda  estava  posta, com  todos  os  seus 

apetrechos e variedades, pois o café da manhã era para o pai a principal refeição do dia, e ele a prolongava com a  leitura de diversos jornais. 

O protagonista em forma de  inseto dirigiu a palavra ao  gerente  tentando  se  justificar,  entretanto,  desde  as primeiras  palavras  de Gregor,  o  gerente  tinha  lhe  dado  as costas,  fitando o com a cabeça voltada para  trás. Não  ficou parado em nenhum momento, pois enquanto Gregor falava, ele  tentava  se  deslocar  lentamente  embora  parecesse  que uma força secreta o segurava. Gregor se deu conta de que o gerente  não  devia  sair  daquele  jeito,  pois  o  seu  emprego ficaria  perigosamente  ameaçado.  Era  absolutamente necessário não deixar que o gerente  fosse embora daquela forma,  era  imperativo  acalmá‐lo,  convencê‐lo.  Dessa  ação dependia  seu  futuro  e  de  sua  família.  Passando  pelo  vão aberto  da  outra  divisão  da  porta,  Gregor  caiu,  buscando inutilmente  sustentar‐se  nas  incontáveis  perninhas,  soltou um breve gemido. Ele se encontrava emparedado, perplexo, diante de uma  situação que  começava  a desvendar‐se  sem saída.  Era  necessário manter  o  emprego  e  garantir  que  a engrenagem  familiar  continuasse  a  existir.  Até  esse momento, não houve uma  tentativa analítica, por parte de Gregor, de entender o que o levou àquela absurda condição de  inseto.  Parece  que  ele  estava  numa  situação  irreal, espécie  de  pesadelo.  Com  isso,  quanto  mais  o  texto apresenta esse aspecto de pesadelo e de irrealidade, mais se aproxima do real, pois é a realidade que, às vezes, apresenta a dimensão mais absurda.  

Toda  a  família  se  assustou  com  a  imagem metamorfoseada de Gregor. O pai procurou empurrá‐lo para dentro do quarto com o apoio de um  jornal e uma bengala. Após muita  dificuldade,  Gregor  chegou  à  porta  do  quarto. Notou que o seu corpo era muito largo para poder passar no vão aberto, e não ocorreu ao pai, dado o humor em que se encontrava,  abrir  a  outra  parte  vertical  da  porta  para  lhe facilitar a passagem. O pai tinha uma ideia fixa: fazer Gregor entrar  no  quarto  o  quanto  antes.  Por  fim,  parte  do  corpo ergueu‐se,  meio  de  lado,  e  esfolou‐se,  deixando  manchas repulsivas na porta. Gregor  ficou entalado, sem poder  fazer nenhum movimento, enquanto as perninhas de um dos lados remexiam‐se no ar, e as do outro eram prensadas contra o chão.  Foi  quando  o  pai  lhe  deu,  por  trás,  uma  pancada enérgica,  libertando‐o  do  aperto,  e  impulsionando‐o  para dentro  do  quarto,  onde  ele  caiu,  sangrando abundantemente. Nisso, o pai fechou a porta, empurrando‐a com a bengala, e tudo ficou em completo silêncio.   Capítulo II  

Somente  à  noite,  Gregor  despertou  de  um  sono profundo,  semelhante  a  um  desmaio.  O  reflexo  da iluminação da rua fazia‐se presente no quarto, tanto no teto quanto  na  parte  de  cima  dos  móveis,  contudo,  embaixo, onde  ele  estava,  tudo  permanecia  na  mais  absoluta escuridão.  Utilizando  de  suas  antenas,  cuja  utilidade começava a compreender, ele se deslocou  lentamente até a porta para ver o que havia se passado. Mancava, pois em um dos  lados  do  corpo  havia  um  longo  ferimento.  Uma  das perninhas  feridas pela manhã  roçava  sem vida no  chão. Ao chegar  à  porta,  percebeu  que  houvera  sido  atraído  pelo cheiro de comida. Havia uma tigela cheia de  leite açucarado e  com  pedacinhos  de  pão  que  fora  colocada  ali.  Gregor 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

estava faminto. Então, mergulhou a cabeça no leite até perto dos olhos, mas  logo  retirou‐a, decepcionado, pois, além da dor que sentia do lado esquerdo, e só conseguisse comer se pusesse  todo  o  corpo  em movimento,  o  leite,  que  sempre fora  sua bebida predileta, motivo pelo qual  a  irmã o havia colocado ali, agora não  lhe apetecia nem um pouco. Quase com  repugnância, afastou‐se da  tigela e deslocou‐se para o meio do quarto.  

Além da transformação corpórea e alteração na voz, agora,  Gregor  inicia  outro  processo  de  animalidade.  Aos poucos,  também mudava os  seus hábitos  alimentares. Não lhe interessava o leite açucarado tão à maneira de seu antigo gosto humano, mas tudo aquilo que era recusado ao paladar das pessoas lhe serviria de bom grado.  

Do  interior  da  casa,  não  saía  nenhum  ruído.  Não obstante,  o  silêncio  era  total,  embora  a  casa,  sem  dúvida, não estivesse vazia: “Que vida tranquila minha família tem!, disse  para  si  mesmo  e,  com  os  olhos  fixos  no  escuro  do quarto, sentiu‐se orgulhoso por ter podido oferecer aos pais e à irmã um vida calma numa bela residência”  (KAFKA, 2010, p. 34). A família buscava retomar a normalidade da vida, mas o silêncio da casa é o  indício de uma  inquietude arraigada e compartilhada entre eles. A mudez é uma espécie de  signo do ruído  interno bastante  incômodo. A comunicação é  feita às avessas, na verdade, às escondidas, por meio de um  jogo dissimulado  de  pequenos  gestos  que  Gregor,  às  vezes, escutava  sons  de  passos  próximos  à  porta  de  seu  quarto, como se estivessem à espreita do lado de fora.  

Gregor garantia o conforto e tranquilidade para toda a  sua  família,  indiretamente.  Para  que  essa  condição  se cumprisse, ele  se  anulava em um emprego  compulsório de caixeiro  viajante  há  cinco  anos.  Entretanto,  o  conforto  e harmonia  da  casa  estavam  ameaçados  pela  condição  de 

Gregor.  Esse  tipo  de pensamento  amedrontava‐o,  condição  que  expressa uma  dificuldade  de  se libertar da  família, aspecto estabelecido  por meio  dos frutos  de  seu  trabalho.  E por aí os seus pensamentos fluíam  quando, repetidamente, se apossou dele  um  sentimento  de vergonha  que  o  levou  a precipitar‐se  para  debaixo do  sofá,  onde  se  sentiu mais  à  vontade,  apesar do 

aperto que não  lhe permitia mexer  a  cabeça  e,  sobretudo, apesar de  seu  grande  corpo não  caber por  inteiro naquele espaço. Antes da transformação, pela manhã, momento em que  todos  puderam  vê‐lo,  a  família  tentou,  de  todas  as maneiras,  entrar no quarto. Agora,  a  chave permanecia do lado de fora, indicando o permanente estado de medo:  

  De manhã, quando a porta estava  fechada, todos queriam entrar, mas depois que ele a 

abrira, ninguém se manifestara. E, ainda por cima,  haviam  deixado  a  chave  no  lado  de fora da fechadura (KAFKA, 2010, p. 34).   

 O questionamento feito pelo narrador no fragmento 

acima, poderia ser explicado: a família manifestou profunda preocupação  para  com  Gregor,  enquanto  desconheciam  a condição animal do  filho. Bateram na porta do  seu quarto, pois era necessário que ele fosse ao trabalho, caso contrário, o  bem  estar  de  todos  estaria  comprometido.  A  partir  do momento  em  que  Gregor  se  transformou  em  inseto,  o equilíbrio  financeiro  doméstico  entrou  em  crise,  e,  em consequência,  ele  deixou  de  ter  um  significado  no  lar.  Se Gregor não  atende mais  ao mundo do  trabalho,  logo  ele  é rebaixado à condição de coisa, por isso, a chave permanecia do  lado  de  fora  da  porta,  subtraindo‐lhe  a  chance  de reintegrar‐se  ao mundo.  Gregor,  vítima  de  uma  fatalidade que o transformou num  inseto monstruoso, aos poucos, vai se tornando vítima da própria família que não sabe lidar com a nova forma de seu filho. 

 Ninguém tentou compreender o que se passou com Gregor, não encontramos um sentimento de humanidade na família do protagonista,  exceto, pelo menos por  enquanto, por parte da irmã. Ao que parece, Gregor e a irmã tinham um relação  de  proximidade,  contudo,  poderíamos  relativizar esse  comportamento,  haja  vista  que,  ao  certo,  a  irmã desejava de Gregor o pagamento de um curso de música:  

 A irmã permanecia mais próxima e afetuosa e,  como  ela,  ao  contrário  de  Gregor,  era amante da música e sabia tocar violino com muita  graça,  ele  tinha  planos  de  enviá‐la para o Conservatório no ano  seguinte,  sem importar‐se  com  os  gastos  extras  que  isso acarretaria.  Em  conversas  com  a  irmã,  nos curtos  períodos  em  que  ficava  sem  viajar, sempre  mencionava  o  projeto  (que  ela considerava  lindo,  mas  impossível  de concretizar),  enquanto  os  pais demonstravam não aprovar nem um pouco a ideia (KAFKA, 2010, p. 40). 

  Sendo  assim,  até  que  ponto  a  preocupação  dela 

seria originária de sentimentos elevados? Ela não seria outro membro  da  família  a  ver  Gregor  apenas  como  um mantenedor  de  ordem  pecuniária?  Um  pouco  adiante  na narrativa, quando ela ingressa no quarto do irmão notamos o imensurável  poder  dela:  “[...]  abriu‐a  novamente  e  entrou devagar,  como  se aquele aposento abrigasse alguém muito doente ou pertencesse a uma pessoa desconhecida” (KAFKA, 2010,  p.  35).  Nesse  trecho,  o  próprio  narrador  deixa transparecer um tom crítico ao comportamento da irmã. 

Enquanto  todos  negligenciavam  qualquer  auxílio mais concreto, Gregor sofria no abandono do quarto sem luz: 

  aquele  quarto  frio  e  de  teto  alto,  em  cujo chão  era  agora  obrigado  a  permanecer deitado,  amedrontou‐o,  sem  que 

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conseguisse  descobrir  o  porquê,  uma  vez que  era,  sem  pôr  nem  tirar,  o  lugar  onde dormia  havia  cinco  anos  (KAFKA,  2010,  p. 34‐35). 

 Gregor permaneceu durante toda a noite debaixo do 

sofá, onde se sentiu mais à vontade, mesmo apossado de um profundo  sentimento  de  vergonha.  Não  conseguiu  dormir com propriedade, entrou numa espécie de transe/delírio:  

Ficou ali durante toda a noite, às vezes num sono  leve,  do  qual  despertava sobressaltado, outras, acordado,  imerso em preocupações  e  esperanças  difusas,  mal definidas, mas  que  sempre  o  conduziam  à conclusão de que devia permanecer sereno e  paciente  para  que  a  família  sofresse,  o menos  possível,  os  aborrecimentos relacionados  ao  seu  estado  atual  (KAFKA, 2010, p. 35). 

 No outro dia cedo, a irmã de Gregor foi ao aposento 

do  irmão. No  local, percebeu que ele não havia alimentado do  leite deixado próximo à porta. Ele sentia grande vontade de  sair  debaixo  do  sofá  e  jogar‐se  aos  pés  da  irmã, implorando que  lhe  trouxesse algo gostoso. Assim, ele  fazia mil especulações a respeito do alimento. Nenhuma, contudo, aproximou‐se  daquele  que  a  “dedicada”  irmã  acabou  lhe proporcionando.  Querendo  desvendar  o  que  mais  lhe agradava,  ela  lhe  ofereceu  uma  variedade  enorme  de alimentos: legumes bem amadurecidos, quase podres; ossos e  um  resto  de  molho  branco,  meio  coalhado,  sobras  do jantar da noite anterior; uvas passas e amêndoas; um pedaço de  queijo  que Gregor,  dois  dias  antes,  não  quisera  comer, pois  julgara rançoso; um pedaço de pão endurecido. A  irmã saiu do quarto para que ele tivesse privacidade para comer: 

 Com uma alegria  tamanha, que  lhe encheu os olhos de lágrimas, devorou o queijo. Não gostou,  porém,  dos  alimentos  frescos,  cujo cheiro considerou insuportável, ao ponto de levá‐los  para  longe  da  comida  que realmente lhe havia agradado (KAFKA, 2010, p. 36).  

 A  profunda  metamorfose  pela  qual  Gregor 

vivenciava  começou  a  afetar  também  os  seus  hábitos alimentares. Como se notou, o gosto pelos alimentos podres atesta  o  distanciamento  do mundo  humano, marcado  por supostas  ações  higiênicas.  Neste  dia,  sobraram  alguns alimentos, e Gregor observava‐os:  

 a  irmã varre os  restos de comida,  incluindo os  alimentos  que  nem  sequer  haviam  sido tocados.  Como  se  nada  mais  daquilo pudesse  ser  aproveitado,  ela  colocou  tudo num cesto de lixo, fechou‐o com uma tampa de  madeira  e  o  levou  para  fora  (KAFKA, 2010, p. 37).  

 As  ações  de  Grete,  aos  poucos,  deixavam 

transparecer  o  que  todos  da  casa  sentiam  por  Gregor, repúdio  e  asco.    Às  vezes,  ao  entrar  no  quarto,  Grete suspirava e invocava “os nomes de todos os santos” (KAFKA, 2010, p. 36).      Dessa maneira, Gregor passou a  receber  comida  todos os  dias:  uma  refeição  pela  manhã,  quando  os  pais  e  a empregada  ainda  dormiam,  e  outra  depois  do  almoço, quando os pais tiravam uma soneca, e a irmã pretextava algo para  obrigar  a  empregada  a  sair  para  a  rua.  Quem intermediava  toda  a  entrega  dos  alimentos  era  a  irmã  de Gregor. Esta, talvez, tivesse optado por se encarregar sozinha da tarefa, poupando os pais de mais esse sofrimento. Sobre a empregada,  no  primeiro  dia  da  transformação  do protagonista,  não  se  sabia  até  que  ponto  ela  tinha conhecimento  da  situação,  havia  suplicado  à  mãe  que  a demitisse  e,  ao  deixar  o  apartamento,  meia  hora  depois, agradeceu a demissão com lágrimas nos olhos, jurando, sem que ninguém lhe pedisse que não contasse nada a ninguém.    Também, nos primeiro dias, o pai revelou a real situação econômica  da  família  e  qual  perspectiva  tinha  pela  frente.  Ainda  restava um capital, que, se não era muito, ao menos tinha crescido nos últimos anos por conta dos  rendimentos de  juros  acumulados.  Além  disso,  o  dinheiro  que  Gregor entregava (retinha apenas uma pequena parte) não era gasto integralmente  e,  pouco  a  pouco,  ampliava  o  montante economizado. Enquanto o pai explicava a vida  financeira da família, Gregor, no quarto, acompanhava a explanação com positiva esperança nas medidas no pai. Antes, o protagonista era a fonte mantenedora de todos, agora, temiam o futuro, pois  os  recursos  não  chegavam  a  casa.  Sendo  assim, portanto,  era  necessário  fazer  algo.  Para  garantir  uma  boa condição à família, Gregor:  

começou a trabalhar com tal perseverança e dedicação que, em pouco tempo, passou de um  reles  empregado  interno  a  caixeiro‐viajante, o que lhe ampliou as possibilidades de  ganho,  uma  vez  que  sua  eficiente atuação  profissional  lhe  proporcionava significativas  comissões  em  dinheiro,  que colocava sobre a mesa da casa, sob o olhar admirado e jubiloso da família (KAFKA, 2010, p. 39). 

 A  operação  de  crescimento  profissional, 

acrescentada  à  preocupação  de  ordem  financeira,  aos poucos, não  se pode negar, acabou por modelar a  conduta de  Gregor  que  se  anulava  enquanto  sujeito,  condição  que pode ser a chave, mas não a única, para a compreensão de seu estado animalesco.  

Às vezes, após a metamorfose, o  incômodo era  tão grande  que  Gregor  não  conseguia  dormir  à  noite.  Assim, empurrava o sofá até a janela e, servindo‐se dele, apoiava‐se no  peitoril,  lembrando‐se  do  prazer  e  do  sentimento  de liberdade “que experimentava ao ficar observando da janela o movimento da rua” (KAFKA, 2010, p. 41). Agora, contudo, o deleite da contemplação se extinguira, uma vez que aquele 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

“cenário ficava cada vez menos claro: o hospital, que sempre detestara por estar bem em  frente a seus olhos,  já não era mais  visível”  [...]  (KAFKA,  2010,  p.  41‐42).  A metamorfose também  ia  se  operando  na  visão  desse  sujeito,  já  não conseguia contemplar o cenário da rua de sua casa, condição que  lhe  trazia  prazer.  De  acordo  com  Aristóteles,  o  ser humano  consegue  obter  alegria  no  processo  de contemplação,  isto  é,  para  esse  filósofo  grego,  o  ato  de observar traz ao homem a verdadeira  felicidade. Gregor, ao perder  a  capacidade  da  contemplação,  e  o  prazer  oriundo dela,  decai  ainda mais  em  sua  condição  humana.  Sobre  a paisagem bloqueada da janela o narrador comenta: “[...] que sua  janela  dava  para  um  deserto,  no  qual  terra  e  céu cinzentos se fundiam indistintamente” (KAFKA, 2010, p. 42).    A enigmática metamorfose do protagonista incomodava a  todos há um mês. Gregor bem  sabia que  a  sua  condição física era uma ofensa aos olhos de  todos. Por  isso, um dia, levou  um  lençol  para  o  sofá,  o  trabalho  lhe  custou  quatro horas, e o organizou de forma que o tecido o escondesse por completo. Ele notou na  irmã  certo olhar de  agradecimento pela discrição.   A comida não lhe trazia o prazer dos primeiros dias, por isso, Gregor  criou um mecanismo para  se distrair:  subia  às paredes e ao teto. Particularmente, gostava mais do teto, ali respirava melhor, sentia uma  leve vibração no corpo e, uma vez,  entretido  e quase  feliz, despencou‐se,  contudo não  se machucou, pois o  corpo adquirira  certa  resistência. A  irmã, vendo o contentamento do  irmão  resolveu, com a ajuda da mãe,  retirar  todos  os móveis  do  quarto.  Contudo,  as  duas mulheres  tiveram  concepções  divergentes  sobre  a  nova organização  do  quarto.  A  irmã  ansiava  retirar  todos  os móveis, enquanto a mãe deseja deixar alguns por ali. Por fim, as duas se esforçaram para retirar os móveis, a mãe, contudo não teve força suficiente para promover a nova organização do quarto. Essa articulação do quarto deixava transparecer a falta  de  esperança  familiar  na  possível  recuperação  da humanidade de Gregor.  

O quarto de um  indivíduo carrega a sua marca,  isto é,  a  organização  espacial  dos  lugares  está  repleta  da identidade do  sujeito. A  alteração do quarto  também  seria um  indício  do  distanciamento  da  humanidade  do protagonista. Sobre isso ele reflete:  

[...]  percebeu  que  a  ausência  de comunicação  humana  nos  últimos  dois meses  ‐  aliada  à monotonia  em  que  vivia, causara‐lhe uma perturbação no  raciocínio, pois de outro modo não conseguiria explicar por  que  desejava  ver  o  quarto  vazio.  Será que  ele  queria,  verdadeiramente,  que transformassem  aquele  aposento confortável,  repleto  de  objetos  familiares, numa  toca  onde  ele  pudesse  subir  nas paredes sem nenhum  impedimento, mas ao mesmo tempo arriscando‐se a perder rápida e  completamente  seu passado humano?  Já estava bem próximo disso, e apenas a voz da mãe,  que  há muito  não  ouvia, mexeu  com ele.  Não,  era  melhor  não  alterar  nada, 

deixar  tudo  como  estava.  Os  móveis, certamente,  produziriam  uma  benéfica influência,  e,  embora  eles  impedissem  seu livre  movimento,  poderiam  constituir  uma grande vantagem (KAFKA, 2010, p. 46). 

 Outro  indício  da  transformação  de  Gregor  é  a  sua 

ausência da capacidade de comunicação humana. Ele  já não se  expressava  por  meio  de  palavras,  condição  que  não refletiu  em  sua maneira  de  pensar,  haja  vista  que  o  nosso pensamento  é  profundamente  relacionado  ao  universo  da palavra,  isto  é,  pensamos,  principalmente,  e  não  somente, por meio de vocábulos.  

Sendo  assim,  Gregor  tornou‐se  uma  espécie  de homem‐inseto,  isto é, um  ser híbrido, externamente, é um animal e, por dentro, guarda a dimensão da profundidade da alma  humana.  Deixar  de  comunicar‐se  verbalmente,  ter  o seu quarto  levado à condição de uma toca,  inserem Gregor, um  pouco  mais,  em  um  mundo  animal.    De  acordo  com Modesto Carone:   

Para  o  narrador  e  o  herói,  porém,  a identidade  permanece.  Isto  é:  a metamorfose  em inseto representa de  fato  a perda  da voz  que comunica, a  mudança dos  gestos alimentares,  dos movimentos reativos e da maneira de  lidar com o espaço, ou seja: no  nível  da  aparência,  ela  atesta  uma redução  ao  estágio  puramente  animal  de organização  da  vida. Mas  o  relato  objetivo comprova  que  a  consciência  da metamorfoseado continua sendo humana e inteiramente apta a captar e compreender o que  se  sucede,  no meio  ambiente  – muito embora, pela mão contrária, ninguém, nesse meio, possa admitir que o  inseto seja capaz disso.  Dito  de  outra  forma,  Gregor  está transformado  num  bicho,  mas  não  deixa nunca  de  ser  Gregor.  Ou  seja:  ele  se comporta  como  um  homem  que  ainda existe, mas que  já não pode ser visto como sendo  ele mesmo  –  e  nessa medida  ele  é empurrado  para  o  isolamento  e  a  solidão (para  acabar  na  exclusão).  Isso  explica  que aos  poucos  a  incomunicabilidade  se  firma como  um  dos  temas  centrais  da  novela. Prova  disso  é  o  fato  de  que  a  história mobiliza, nos seus três capítulos, um mesmo 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

padrão  narrativo,  que  é  o  das  iniciativas inúteis de contato do herói com os membros da  família  e  vice‐versa  (CARONE,  2009,  p. 137).  

 Apesar  de  Gregor  repetir  para  si  mesmo  que  as 

mudanças no quarto não ocasionariam nenhuma diferença, pois  se  tratava  apenas  da  retirada  de  alguns móveis,  não deixou  de  se  incomodar  pelo  vaivém  das  mulheres subtraindo‐lhe  os móveis. Quando  retiraram  o  armário  e  a escrivaninha,  permaneciam  no  quarto  ao  lado,  Gregor, afoitamente,  subiu  até  a  parede  onde  havia  uma moldura, quadro de uma mulher, cujo contato achou agradável, pois a sua barriga ardia. Essa ação guardaria uma condição erótica? As  duas  mulheres  voltaram  subitamente  e,  por  mais  que Grete  tenha  se  esforçado  para  que  isso  não  ocorresse, avistaram  aquela  imensa mancha  escura  sobre  o  papel  da parede  florido  e,  antes mesmo  de  ter  certeza  de  que  era Gregor,  a mãe  gritou:  “–  Ai meu Deus!  Ai, meu Deus!  –  e desmaiou  sobre o  sofá,  como  se  todas  as  suas  energias  se tivessem esvaído” (KAFKA, 2010, p. 49) 

Grete  saiu  para  outra  sala  a  fim  de  conseguir  algo para  reanimar  a  mãe.  Gregor,  em  um  profundo  ato  de desespero, saiu atrás da  irmã que não notou a presença do irmão  deixando  um  frasco  cair  ao  chão. O  objeto  quebrou jogando uma  substância  corrosiva em Gregor. Grete  voltou ao quarto para ajudar a mãe. Enquanto isso, sem saber o que fazer, Gregor, cheio de remorsos e  inquietações, começou a rastejar por toda a parte, a subir pelas paredes e móveis e no teto, e, finalmente, tonto de tanto girar, caiu sobre a grande mesa da sala.  

Inesperadamente,  o  pai  chegou  ao  apartamento. Agora,  ele  era outro homem,  rijo  e  ereto,  “ostentando um uniforme  azul  com botões dourados,  como  aqueles usados pelos contínuos dos bancos” (KAFKA, 2010, p. 51). O pai viu o estado da filha, adivinhou o que tivera ocorrido em sua casa. Assim, partiu para cima de Gregor o qual correu na frente do pai, parando quando ele parava e reiniciando a fuga quando o  pai  reiniciava.  Assim,  deram muitas  voltas  em  torno  da sala, sem chegar a  lugar nenhum, além do que, em face das longas pausas entre uma parada e outra, aquilo não chegava a ser, de fato, uma perseguição. O pai decidiu bombardear o filho com objetos:  

As pequenas maçãs vermelhas rolavam pelo chão  como  se  estivessem  eletrizadas, chocando‐se  uma  com  as  outras.  Uma acertou‐lhe  as  costas,  mas  deslizou  sem causar  grandes  danos.  Em  compensação,  a seguinte  lhe  pegou  as  costas  em  cheio, cravando‐se  ali;  mesmo  assim,  ele  tentou escapar,  supondo  que  uma  mudança  de lugar poderia atenuar a dor insuportável que sentia.  Nesse  ponto,  pareceu‐lhe  estar pregado  ao  chão,  e  ficou  ali,  esticado, perdendo  a  noção  do  que  acontecia  em torno.  Com  a  vista  turva,  conseguiu  ver  a porta do quarto  se abrir abruptamente  [...] (KAFKA, 2010, p. 52).  

 A  mãe,  que  houvera  se  recuperado  do  desmaio, 

aproximou‐se do marido, implorando que preservasse a vida do  filho. O  pai  tentou  pelo menos  duas  vezes  se  livrar  da incômoda  presença  do  filho‐inseto,  pois  Gregor  não  mais supria  as  necessidades  pragmáticas  daquela  casa,  pelo contrário,  como  veremos  adiante,  ele  passou  a  ser  um problema para a nova ordem econômica do lar. 

Um dado  simbólico  importante acima é a metáfora contida na  imagem da maçã que pode ser compreendida de inúmeras  maneiras.  Como  todo  bom  texto  literário,  a produção de  Kafka obriga o  leitor  a  relê‐lo, pois  apresenta várias hipóteses ambíguas e contraditórias de interpretação. Sendo  assim,  vamos  à  imagem  da  maçã  e  da  ferida  nas costas do protagonista. Numa primeira asserção, a ferida que não cicatriza, causada pelo arremesso de uma maçã pelo pai, poderia  relacionar‐se  a  um  dado  biográfico  de  Kafka,  a conturbada  relação  familiar  com  o  pai.  Assim,  o  peso  da 

maçã  que  carrega  nas costas,  na  ferida  que não  sara,  vincula‐se  à difícil  relação  entre Kafka  e  o  próprio  pai. Note‐se  que  a  maçã lançada  pegou  Gregor nas  costas,  sugestão  de traição,  como  uma facada  nas  costas  (“a seguinte  lhe  pegou  as 

costas em cheio” – idem), elemento que reforça ainda mais a leitura biográfica proposta acima.  

Como se percebe, o escritor carregará pelo resto da vida as dores de uma difícil relação com o pai.   Outro olhar sobre  a  o  mesmo  símbolo,  a  maçã,  que,  também,  no contexto da obra, como na bíblia, adquire um significado de conscientização. Gregor parece compreender o seu papel de sujeito alienado tanto na esfera profissional como familiar. A maçã  tirou  o  homem  do  paraíso,  de  forma  análoga,  o protagonista  perde  o  seu  “porto  seguro”  da  ilusão  e  do engano.  

Cabem aqui, nessa parte do enredo, algumas noções simbólicas  sobre  a  figura do  pai,  com base  em  Chevalier  e Gheerbrant (2006), que podem nos orientar na compreensão da obra: 

 [...]  é uma  figura  inibidora;  castradora, nos termos  da  psicanálise.  Ele  é  uma representação de toda forma de autoridade: chefe,  patrão,  professor,  protetor,  deus.  O papel  paternal  é  concebido  como desencorajador,  dos  esforços  de emancipação, exercendo uma influência que priva,  limita,  esteriliza,  mantém  na dependência.  Ele  representa  a  consciência diante dos  impulsos  instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente é o mundo da autoridade  tradicional  diante  das  forças novas  de  mudanças  (CHEVALIER  e GHEERBRANT,2006, p. 678). 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

 A força simbólica da figura paterna exposta acima se 

vincula diretamente  com  as  ações do pai de Gregor o qual não mede esforços para  “proteger” os membros da  família da imagem monstruosa do filho. 

Gregor Samsa, após ser atingido pela maçã  lançada pelo pai e de alguns percalços, conseguiu ver a porta de seu quarto  aberta,  dirigiu‐se  para  lá,  dolorosamente, amedrontado.   Capítulo III    A grave ferida de Gregor, que o fez padecer por mais de um mês, ainda guardava a maçã  lançada pelo pai, ninguém se atreveu a tirá‐la. Ali permaneceu, constatando como uma lembrança  concreta  de  um  acontecido,  a  castração existencial  do  pai.  As  consequências  físicas  para  ele  foram permanentes,  perdeu  o  controle  total  das  pernas  para sempre.  Agora,  se  comportava  como  um  idoso.  A  simples atividade  de  transportar‐se  pelo  quarto  consumia  longos minutos.  A  possibilidade  divertida  para  ele  de  subir  as paredes  não  era mais  possível. Não  bastou  o  isolamento  e incomunicabilidade  vividos  por  ele,  o  projeto  de  anulação total desse sujeito também era físico. Não seria mais possível locomover‐se no  interior de  seu quarto. Porém, havia uma compensação  levemente  satisfatória:  no  início  da  noite,  a porta  da  sala  de  jantar  era  aberta,  ele  aproveitava  para observar, sem ser visto, toda a  família reunida em torno da mesa  iluminada, e ouvir as conversas, de certo modo com a aquiescência11  geral.  Aqui,  notamos  um  importante contraste  entre  a  coletividade dos membros  familiares que vivem  à  luz da mesa, numa pálida  troca de  experiências,  e Gregor mergulhado na escura solidão do quarto.   A  rotina  da  família  transformou‐se  bastante  desde  a metamorfose  de  Gregor,  condição  que  nos  prova  que  a transformação operou‐se não apenas nele, mas em todos. A retirada  da  base  econômica,  a  literal  exploração  do  filho, provocou  inúmeras  transformações  na  dinâmica  da residência. Antes, a família vivia, parasitamente, às custas do trabalho  de  Gregor  e  de  sua  alienação  no  mundo  do trabalho,  entretanto,    agora,  ele  é,  aos  olhos  de  todos  na casa,  em  virtude  da  metamorfose,  apenas  um  inseto incômodo,  uma  espécie  de monstro.  O  pai, mesmo  velho, teve que assumir um posto de contínuo em um banco. A mãe costurava  roupas  finas  para  uma  loja,  e  a  irmã,  que  havia conseguido um emprego, estudava estenografia12 e  francês, pois  pretendia  atingir  um  posto  melhor  remunerado. Enquanto  todos  os membros  da  família  se  articulavam  em um  novo  contexto  repleto  de  atividades,  Gregor  afundava em um profundo vazio existencial, não restava nada a ele a não ser definhar  infinitamente no  interior do quarto. Agora, 

                                                            11 Consentimento; ação de consentir, de não impedir, de não colocar obstáculos: a aquiescência de uma solicitação, de um pedido. Concordância; ação de concordar, de permitir: não obteve aquiescência do povo. 12 Taquigrafia ou estenografia é denominação dada a todo método de abreviação ou simbólico de escrita, com o intuito de aprimorar a velocidade da escrita comparada ao método padrão. A diferença das duas denominações é que a taquigrafia é realizada a mão, usando lápis ou caneta enquanto a estenotipia utiliza máquinas destinadas para a produção de taquigramas, ou seja, de símbolos que fornecem abreviaturas para as palavras e frases comuns. O que possibilita que uma pessoa treinada no sistema escreva de maneira muito veloz, sendo capaz de acompanhar as falas de um discurso.

poucas coisas pareciam fazer sentido para ele. O termo vazio existencial  poderia  ser  visto  como  uma  forma  de  niilismo existencial,  que  na  acepção  de  André  Cancian,  no  livro  O vazio da máquina – Niilismo e outros abismos, consiste em:  

O niilismo existencial se demonstra quando reduzimos  o  homem  a  nada,  e  para  isso basta  possuir  algum  talento  intelectual aliado  à  honestidade,  pois  o  esvaziamento da  existência  é  a  mera  consequência  de entendermos o que ela é em si mesma. Não precisamos  degolar  a  humanidade  inteira para  provar  que  a  vida  carece  de  sentido; para chegarmos a essa conclusão basta usar os  olhos  e  um  pouco  de  senso  crítico (CANCIAN, 2009, p.17). 

   Se  a  vida  carece  de  sentido  na  modernidade,  a  de Gregor,  aos  poucos,  tornava‐se  a  representação  do  nada, condição,  imperativamente,  erguida  pela  mãe,  irmã  e, sobretudo,  pelo  pai.  O  protagonista  vivia  imerso  no  total abandono  em  seu  quarto  escuro.  Ele  era  tratado  como  se não  existisse mais nenhum  vestígio do  seu  eu na  sua nova forma.  Assim,  Gregor  deixava  de  ser  reconhecido  como pertencente  àquela  família.  Dessa  maneira,  portanto,  ele deveria  ser  exilado  do  mundo  em  seu  próprio  quarto.  O diferente não pode viver  junto da  sociedade, por  isso deve ser excluído, isolado de todos.    O envolvimento profissional dos membros da família no mundo  do  trabalho  subtraiu  deles  um  dos  aspectos  mais importantes da  vida: o  tempo ocioso. Além disso,  a  fim de restabelecer a economia doméstica, viram sucessivas perdas de ordem pragmática: a empregada é despedida, as joias são vendidas  e,  por  fim,  um  dos  quartos  é  alugado  a  três inquilinos, obrigando Grete a dormir na sala. Como se nota, a transformação de Gregor  implica a  transformação de  todos os outros que vivem na casa.   Com uma espécie de peculiar teimosia, o pai se recusava tirar  o  uniforme  de  contínuo.  Mesmo  quando  estava  em casa,  ele  dormia  uniformizado,  aspecto que  talvez  pudesse sugerir que, na casa, há um novo homem pronto para servir a todos, elemento bem à maneira de Gregor, no passado. As mulheres da  casa  viviam  incomodadas  com  a manifestação profissional  do  pai.  Gregor  passava  “horas  da  noite observando‐o  naquele  traje  cheio  de  manchas,  mas  com botões dourados sempre brilhantes, com o qual o pai dormia desconfortável, mas tranquilo” (KAFKA, 2010, p. 58).   As  despesas  da  casa  tiveram  que  ser  reduzidas drasticamente:  a  empregada  foi demitida  e  substituída por uma  faxineira que  trabalhava na casa no  início da manhã e no  final da tarde, enquanto a mãe cuidava de todo o resto. Foram  obrigados  a  vender  algumas  joias  e  cogitava‐se  a possibilidade de deixar o apartamento onde moravam, pois o consideravam  grande  demais  para  as  condições  atuais, porém  não  sabiam  o  que  fazer  para  remover  Gregor  que percebeu ser um entrave para a mudança.   As  forças  da  família  chegavam  ao  fim,  todos  estavam envolvidos  demais  em  inúmeras  atividades  diárias.  Certa noite, a mãe, que, às vezes, demonstrava relativa compaixão 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

para  com  o  filho  disse  à  filha:  “Grete,  feche  aquela  porta” (KAFKA,  2010,  p.  60).  Assim, Gregor  se  via mergulhado  na imensa escuridão  solitária do quarto. A  insólita  situação do protagonista  começava  a  apresentar  uma  parcela  de angústia, condição eminentemente humana:  

Dias  e  noites  passavam  sem  que  Gregor conseguisse  dormir  direito.  Por  vezes, pensava  que  iria  abrir  a  porta  do  quarto  e encarregar‐se das questões da família, como antes. Em sua mente, retornavam as figuras do  chefe  e  do  gerente,  dos  funcionários internos e dos aprendizes, daquele idiota do contínuo,  de  dois  ou  três  conhecidos  de outras  firmas,  de  uma  camareira  [...]  Essas pessoas  apareciam  em  seu  pensamento misturadas a outras, estranhas e já há muito tempo  esquecidas;  mas  como  nenhuma delas pudesse prestar qualquer ajuda, nem a ele  nem  à  sua  família,  sentiu‐se  aliviado quando  finalmente  conseguiu  apagar aquelas recordações (KAFKA, 2010, p. 60). 

 Embora  tivesse perdido a capacidade comunicativa, 

Gregor ainda possuía a memória,  condição que  lhe  confere um  status  humano.  Ele  ainda  conseguia  realizar  reflexões sobre  a  sua  condição  de  inseto.  É  um  homem  pelo pensamento e um animal pelo corpo físico e pela ausência da fala. A metamorfose levou Gregor à morte física e à morte da linguagem, mas não à morte do pensamento e da memória humana.  

A  nova  condição  de  Gregor  Samsa  libertou‐o  do emprego, mas,  principalmente,  fez  com  que  ele  saísse  da condição  de mantenedor  da  família,  cumprindo  um  papel simbólico  de  pai  que  trabalhava  para  manter  a  todos.  O papel  de  filho  com  a metamorfose  também  lhe  é  negado, mesmo a tentativa de ocupação de seu espaço, o quarto, lhe é subtraída. Se antes, ele era visto como o arrimo da família, aquele que  lhes garantia o sustento e a ordem doméstica, a partir  da  metamorfose,  ele  passa  a  ser  visto  como  um monstro  desertor  de  suas  obrigações.  Toda  uma  carga  de culpa  lhe  é  jogada  nas  costas,  literalmente,  quando  o  pai atira  várias maçãs  para  expulsá‐lo  da  sala.  Por  que Gregor teve que carregar toda a família nas costas após a falência do pai? Qual crime ele cometeu? Por que precisou ser punido? Quem  prescreveu  tão  cruel  sentença  contra  o  rapaz?  Não encontraremos  respostas  para  nenhum  desses questionamentos.  Em  certos momentos,  nos  perguntamos por que esse sujeito pelo menos não questionou os motivos que  o  levaram  àquela  condição? Na  verdade,  não  há mais sujeito (ser). Esse homem animalizado sucumbe à espera da própria morte,  a  vida  e  o mundo  deixaram  de  ter  sentido. Com  isso,  diante  desta  visão  absurda  do  ser  humano,  não resta  salvação, nenhuma esperança  resta  a  esse  “homem”. Como  se nota,  Kafka  apresenta uma  visão bastante  trágica do mundo, isto é, uma "concepção do mundo como lugar da aniquilação  absoluta,  inacessível  a  qualquer  solução  e inexplicável por nenhum sentido transcendente, de  forças e 

valores que necessariamente  se  contrapõem"  (LESKY, 1990, p. 30). 

O  interessante da obra de  Kafka,  conforme Anders (2007,  p.  22),  é  que,  aos  poucos,  vai  sendo  despojada  de espanto.  Na  narrativa  A  metamorfose,  como  em  outros textos do escritor, os personagens se veem mergulhados em sucessivas  situações  absurdas  das  quais  não  conseguem  se desvencilhar.  Essas  situações  traduzem  a  realidade  insólita de  Gregor  Samsa.  Temos,  portanto,  nessa  novela,  a famigerada situação kafkiana. 

Gregor  estava  bastante  desanimado  com  a negligência  da  família,  e,  às  vezes,  passou  sentir  irritação para  com  todos.  A  irmã  não  se  preocupava  mais  em satisfazer os impulsos alimentares dele:   

antes de sair para o trabalho e ao meio‐dia, quando  vinha  almoçar,  ela  apenas empurrava  com  o  pé,  e  às  pressas,  uma comida  qualquer  para  dentro  do  quarto  e, depois,  ao  retornar,  nem  reparava  se  ele havia  comido  ou  –  como  ocorria  mais frequentemente – nem sequer havia tocado na tigela (KAFKA, 2010, p. 61). 

   Se antes, ela tentou agradar o irmão, agora, aos poucos, expressava  o  seu  verdadeiro  sentimento  para  com  ele.  A limpeza  do  quarto  também  estava  comprometida,  havia manchas de sujeira pelas paredes:  

buscando chamar a atenção da irmã, Gregor se  colocava  justamente  nos  pontos  onde  a sujeira  era  mais  flagrante,  mas  logo percebeu que podia permanecer ali durante várias  semanas  sem  que  Grete  se importasse  –  pois,  afinal,  ela  podia  ver  a imundice  tão  bem  quanto  ele, mas  estava decidida  a  não  perder  tempo  como  isso (KAFKA, 2010, p. 61). 

   Embora  os  cuidados  com  o  irmão  tivessem  bem 

reduzidos, Grete ainda não permitia que ninguém limpasse o quarto a não ser ela. Assim, curiosamente, o espaço fechado do quarto, pouco‐a‐pouco, perde a noção de espaço  íntimo do  sujeito  e  adquire  o  sentido  de  uma  cela  que  não  pode mais ser aberta por quem o habita. A  indiferença da  família acaba  revelando  a  incapacidade  de  lidar  com  um  signo estranho. O único elemento de  sentido deste novo  ser que habita o quarto é o aspecto  repulsivo, por  isso, a  reiterada necessidade de manter Gregor isolado. 

A  empregada  da  família  abria  sempre  a  porta  do quarto de Gregor a fim de incomodá‐lo um pouco, é verdade, que  ela  o  chamava  por meio  de  palavras  que,  por  certo, julgava carinhosa como: “vem cá, porqueirinha!” ou “vejam só  o  porqueirinha!”  (KAFKA,  2010,  p.  62).  Essa  empregada não  tinha o compromisso de  limpar o quarto dele, contudo gostava  de  ver  as  reações  do  inseto  gigante  diante  da  sua presença. 

O  homem‐inseto  quase  não  comia,  às  vezes, permanecia  com  um  alimento  horas  na  boca  para  depois 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

cuspi‐lo. Nos últimos dias, viu o seu quarto novamente cheio de  móveis  e  objetos,  a  família,  a  fim  de  trazer  recursos financeiros  para  casa,  havia  alugado  um  dos  quartos  para três inquilinos:  

 Eram três senhores muito circunspectos – os três  usavam  barba,  como Gregor  verificou, numa  ocasião,  pelo  vão  da  porta  –  e gostavam de tudo na mais completa ordem [...]  haviam  trazido  grande  parte  de  seus móveis  próprios,  o  que  tornava  sem  uso alguns  pertences  da  família.  [...]  A empregada atirava no quarto dele  ‐ sempre da maneira mais apressada – aquilo que não tinha  utilidade  no momento,  de  tal  forma que,  apenas  por  sorte,  Gregor  conseguia desviar‐se da trajetória dos objetos  (KAFKA, 2010, p. 63). 

 Viver em uma sociedade em que tudo é medido por 

um valor de troca (uso) constrói uma noção pragmática para tudo,  assim  todas  as  coisas  que  nos  cercam  guardam  um valor objetivo, estrutura que moldou a nossa maneira de dar significado  à  realidade.  Essa  organização  do  mundo, imperativamente, nos faz estabelecer eixos paradigmáticos a fim de demarcar fronteiras entre o falso e o verdadeiro, o útil e  o  inútil,  o  certo  e  o  errado,  entre  tantos  outros  valores forjados  pela  noção  de  troca.  Foucault,  em  seu  livro intitulado  As  palavras  e  as  coisas,  debruça‐se  sobre  as relações de  representação e nos  leva a compreender que o valor  é  “um  atributo  acidental  e  que  depende  unicamente das necessidades do homem como o efeito depende de sua causa”  (FOUCAULT,  1992,  p.  65).  Portanto,  de  acordo  com Foucault,  o  valor  dado  a  tudo  que  está  ao  nosso  redor depende  das  necessidades  do  próprio  homem.  É  num contexto  utilitarista  que  Gregor  vive,  e  é  esse  mesmo contexto que, paulatinamente, propõe excluí‐lo ao ponto de misturar‐se  a  objetos  velhos  e  mesmo  ter  que  desviar‐se deles  ao  serem  lançados  no  quarto.  Enquanto  isso,  ele  se sentia  “imóvel,  cansado  e  melancólico  durante  horas” (KAFKA, 2010, p. 64), pois bem entendia a indiferença de sua família. 

A  sala  do  apartamento  de  uso  comum  da  família passou a servir aos inquilinos de refeitório. Às vezes, a porta da sala era esquecida aberta pela empregada e Gregor podia contemplar os homens comendo: “‐ Mas eu  também  tenho apetite, sim – murmurou Gregor para si, muito preocupado. –  Só  que  essas  coisas  não  me  agradam...  Como  esses inquilinos comem! E eu aqui morrendo” (KAFKA, 2010, p. 65). Numa noite, a irmã resolveu tocar, na cozinha, o violino que chamou a atenção dos inquilinos que logo a chamaram para a sala a fim de vibrar as cordas do instrumento. Muito calma, a irmã começou a executar uma música: 

   Atraído  pela melodia,  Gregor  atreveu‐se  a avançar  e  enfiou  a  cabeça  um  pouco  para fora do quarto. Nem se surpreendeu por ter 

feito isso, pois vinha se importando cada vez menos com os demais; a consideração, que antes  lhe era motivo de orgulho, quase não existia mais.  Agora,  contudo, mais  do  que nunca,  deveria  sentir  necessidade  de esconder‐se,  pois,  em  razão  da  sujeira  que se  encontrava  no  quarto,  qualquer movimento  que  fazia  levantava  ondas  de poeira, e ele próprio estava coberto de pó e arrastava [...] E, apesar do estado em que se encontrava, não teve vergonha de  invadir o espaço  imaculado  da  sala.  O  fato  foi  que ninguém  reparou  na  presença  dele.  [...] Gregor avançou um pouco mais e manteve a cabeça  bem  próxima  do  chão,  tentando fazer os olhos da  irmã se encontrarem com os seus. Se a música o envolvia  tanto, seria ele  um  bicho?  [...]  Estava  decidido  a aproximar‐se dela, puxá‐la pela  saia e  fazê‐la, assim, compreender que devia ir para seu quarto,  pois  somente  ele  poderia  valorizar aquela música (KAFKA, 2010, p. 66‐67). 

 A música ecoada do violino  fez  renascer, dentro de 

Gregor,  a  sua  humanidade  já  quase  esquecida.  O protagonista viu‐se envolvido em um momento de profundo prazer estético. A arte pode provocar no homem inspirações diversas. O sentimento de prazer, quando interrompido, nos leva de volta à realidade limitada e opressora, sobretudo, no caso  de  Gregor,  que  parece  fugir  das  suas  angústias existenciais. A música o  liberta da náusea, de seu mundo de sombra, pois, enquanto ouve a irmã com o violino em mãos, habita outro universo: o  irreal que é muito mais autêntico e verdadeiro.  A  beleza  artística,  por  ser  uma  experiência desinteressada,  é  oriunda  de  uma  faculdade  subjetiva. Cabem  aqui  as  palavras  de  Deleuze  sobre  o  belo:  “[...]  o prazer estético é tão independente do interesse especulativo como  do  interesse  prático  e  define‐se  a  si  próprio  como inteiramente  desinteressado”  (1963,  p.  54).  Ocorre  um desinteresse  da  realidade  pragmática  quando  estamos diante do prazer estético, por  isso, Gregor se desprende de sua rotina. Para Chevalier e Gheerbrant:  

 Em  todas  as  civilizações,  os  atos  mais intensos  da  vida  social  ou  pessoal  são decompostos em manifestações, nas quais a música  desempenha  um  papel  mediador para  alagar  as  comunicações  até  os  limites do divino. Platão distingue  formas musicais apropriadas às diversas  funções do homem na cidade (2006, p. 627).   

  A fruição estética e a própria existência da música é 

uma  condição  eminentemente  relacionada  ao  mundo  do homem.  Com  isso,  portanto,  Gregor,  visto  o  fascínio  da 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

música sobre ele, apresenta um forte teor de humanidade13, embora  seja,  sistematicamente,  anulado  enquanto  sujeito em sua casa.  

  Enquanto  Gregor contemplava  a  irmã  com  o violino,  um  dos  inquilinos notou a presença do homem‐inseto  que  se  movia lentamente.  O  instrumento, subitamente,  emudeceu.  Os homens  não  se  assustaram, pelo  contrário,  se  divertiram mais  com  a  estranha  figura do  que  com  as melodias  do violino. O  pai  procurou  levar os  inquilinos  para  o  seu aposento.  Houve  um principio  de  confusão. 

Obstinado no que  fazia, esquecendo o mais básico  respeito que devia a eles, o pai procurava empurrá‐los para o quarto. Por fim, o que parecia ser o mais representativo deles disse:  

 – Afirmo  categoricamente – ergueu a mão, procurando com o olhar também a mãe e a irmã  ‐  que  neste  instante,  em  face  das repugnantes  condições  desta  casa  e  desta família – e nisso cuspiu com força no chão ‐, a  locação  do  meu  quarto  está  encerrada. Obviamente não pagarei coisa alguma pelos dias  que  morei  aqui;  muito  ao  contrário, ainda  vou  pensar  se  não  devo  apresentar uma reclamação  legal contra o senhor, pois me  causou muitos  danos  (KAFKA,  2010,  p. 68‐69). 

 Os  outros  dois  inquilinos  também manifestaram  a 

vontade  de  se  retirarem  da  casa.  Gregor  permaneceu  o tempo  todo  no mesmo  lugar  onde  havia  surpreendido  os inquilinos;  a  fraqueza  causada  pela  fome  excessiva impossibilitava‐o  de  realizar  o  menor  movimento.  O incômodo  na  casa  tornou‐se  insuportável.  Assim,  Grete resolveu falar: 

–  Queridos  pais  –  disse  a  irmã,  e,  como preâmbulo, bateu com a mão na mesa ‐, isso não pode continuar assim. Caso não estejam entendendo,  eu  estou.  Diante  desse monstro,  não  vou  pronunciar  o  nome  do meu  irmão.  E  tem  mais:  precisamos  nos livrar  dele.  Tentamos  o  humanamente possível  para  cuidar  dele,  e  creio  que ninguém  pode  nos  censurar  por  nada (KAFKA, 2010, p. 69).  

Perceba  a  adjetivação  de  Grete  ao  referir‐se  ao irmão  como  “monstro”. Nesse  caso, podemos notar a  total incapacidade  de  lidar  com  uma  situação  atípica  dentro  da 

                                                            13 O próprio narrador  lança mão de um  interessante questionamento sobre essa condição de Gregor: “Se a música o envolvia tanto, seria ele um bicho?” (KAFKA, 2010, p. 66-67).

casa. Sendo assim, para nos ajudar na compreensão do texto de  Kafka,  recorremos  a  Chevalier  e  Gheerbrant  acerca  do conceito de monstro: 

 O monstro surge também da simbologia dos ritos  de  passagem:  ele  devora  o  homem velho  para  que  nasça  o  homem  novo.  O mundo  que  ele  guarda  e  ao  qual  introduz não  é  o  mundo  exterior  dos  tesouros fabulosos, mas o mundo interior do espírito, ao  qual  não  se  tem  acesso  a  não  ser  por meio de uma  transformação  interior.  [...] O que  foi  considerado,  por  exemplo,  como monstruosidades  das  revoluções  toma sentido  todo  especial  à  luz  dessa interpretação: significa que a revolução quer ir até uma transformação radical do homem, para  torná‐lo  apto  a  viver  dentro  de  um mundo novo. Morra o homem velho, viva o homem novo; essa fórmula poderia resumir a  simbologia  do  monstro  (CHEVALIER  e GHEERBRANT, 2006, p. 615).  

  Já que estávamos  tratando de um mundo de papel ao qual  o  fantástico  é  possível,  podemos  levantar  alguma hipótese sobre o caso de Gregor, com base na citação  feita acima, sobre a simbologia associada ao monstro. A figura do monstro  carrega  a  semântica  da  transformação,  rito  de passagem.  Sendo  assim,  o  protagonista  poderia  estar passando  por  uma  profunda  transformação,  a  fim  de  viver “dentro de um mundo novo”  (idem). Contudo, a  resistência da família é tamanha ao ponto de interromper o nascimento de  um  novo  homem.  Portanto,  é  preciso  livrar‐se  dele,  de acordo  com  Grete  com  a  concordância  do  pai:  “‐  Está inteiramente  certa  –  disse  o  pai  consigo mesmo”  (KAFKA, 2010,  p.  69),  enquanto  a  mãe  sentia  falta  de  ar. Categoricamente, para que não haja dúvida, Grete repetiu:  

–  Precisamos  nos  livrar  daquilo  –  disse  a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe, com sua  tosse,  não  ouvia  mais  nada  ‐,  ele  vai acabar  matando  vocês  dois,  é  o  que acontecerá.  Quem  tem  de  trabalhar  duro como nós não é capaz de suportar em casa esse eterno tormento (KAFKA, 2010, p. 70).  

  Curiosamente,  Gregor,  por  cinco  anos,  trabalhou incansavelmente  para  pagar  uma  dívida  herdada  do  pai  e ainda dar qualidade de vida a família sem se queixar.    Com mais ênfase ainda, Grete gritou para todos ouvirem:  

 – Ele tem que ir embora! – gritou a irmã. – É o único  jeito, pai. O senhor precisa desfazer da  ideia  de  que  aquilo  é Gregor.  Acreditar nisso,  durante  tanto  tempo,  tem  sido  a nossa desgraça. Como pode  ser Gregor? Se fosse,  há  muito  teria  percebido  que  seres humanos  não  podem  viver  com  um  bicho como  aquele.  E  teria  partido  por  conta 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

própria.  Perderíamos  o  irmão,  mas poderíamos  continuar  vivendo  com  o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre (KAFKA, 2010, p. 70‐71). 

   Quem  seria  o  verdadeiro  Gregor?  Seria  o  filho 

exemplar? Ou seria o pai simbólico da casa que se anulou em prol de todos? Seria mais fácil expulsá‐lo, ou mesmo matá‐lo, a que  tentar  compreender  as motivações da metamorfose. Diferentemente  dos  heróis  aventureiros  cuja  existência  se apresenta como um horizonte aberto, Gregor vive  reduzido ao  seu  quarto  fechado,  condição  crescente  até  a  sua anulação  total  por  meio  da  morte.  Estamos  diante  do realismo brutal de  Franz Kafka: Gregor  é  apenas uma  vaga memória no  interior daquela casa; é a barata que, portanto precisa  ser  aniquilada.  O  escritor,  certa  vez,  disse  algo relevante sobre a sua escrita:  

 Precisamos de  livros que nos  afetem  como um  desastre,  que  nos  angustiem profundamente,  como  a morte  de  alguém que  amamos mais  do  que  a  nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos,  como  um  suicídio. Um  livro  tem  de ser o machado para o mar congelado dentro de nós (KAFKA, 2010, p. 82). 

 As impressões, curiosamente, da leitura da novela A 

metamorfose,  aproximam‐se  perfeitamente  daquilo  que Kafka descreve acima. A  força arrebatadora desse texto nos convida  a  profundas  reflexões  sobre  a  falta  de  sentido  da existência humana na Modernidade.   Gregor  iniciou,  após  ser  visto  pelos  inquilinos,  com muita dificuldade, como um inválido de guerra, o caminho de volta para o seu quarto. Às vezes, parava para descansar, não era  possível  conter  a  respiração  ofegante.  Dessa  vez, ninguém  o  pressionava,  era  deixado  por  conta  própria.  A fraqueza  tamanha  era  que  achou  a  distância muito  grande até o quarto:  

Somente quando chegou à porta virou‐se a cabeça  –  apenas  um  pouco,  pois  sentia  o pescoço  enrijecido  –  e  pôde  observar  que nada  havia  mudado,  a  não  ser  pela  irmã, que agora estava em pé. Lançou, então, um último  olhar  à mãe,  que  tinha  acabado  de adormecer (KAFKA, 2010, p. 72). 

     Ele  rastejava  como  um  morto‐vivo.  A  fome  e  as violências físicas roubaram‐lhe todas as suas forças. Restava lançar  à  família  um  olhar  de  despedida.  Mal  entrou  no quarto e a porta foi bruscamente fechada e trancada. Gregor assustou‐se de  tal modo  com o barulho da porta que  suas perninhas dobraram.    “E agora?”, questionou‐se Gregor. Olhou a escuridão do quarto e notou que não podia mais se mexer, contudo, não se surpreendeu:  

pois  caminhar  com  aquelas  perninhas  lhe parecia,  agora,  pouco  natural.  Sentia‐se também  relativamente  confortável.  É verdade  que  o  corpo  doía,  mas  teve  a impressão  de  que  pouco  a  pouco  as  dores iriam  atenuar‐se  e  acabariam  por desaparecer.  Nas  costas,  a  maçã  podre encravada e a  inflamação ao redor, coberta de  pó,  praticamente  não  mais  o incomodavam.  Pensava  com  carinho  e emoção  na  sua  família.  Tanto  quanto possível,  pensava,  ainda  mais  firmemente do que a irmã, que era necessário ir embora. E,  assim,  nesse  estado  de  meditação  e insensibilidade, permaneceu até o relógio da torre  da  igreja  bater  três  horas  da madrugada.  Olhando  pela  janela,  ainda pôde  contemplar  o  raiar  do  dia  que despontava. Depois, embora ele relutasse, a cabeça  tombou  por  completo  e  a  boca emitiu  um  último  suspiro  (KAFKA,  2010,  p. 72‐73). 

 Para  alguns estudiosos, Gregor morreu não porque 

se  tornou uma barata, mas porque perdeu a capacidade de comunicação  com  os  integrantes  da  sua  família.  Essa 

informação não é de toda errônea,  contudo,  no caso  do  protagonista,  o que  mais  exerceu influência  sobre  a  sua morte  foi  algo  mais  do que  a  falta  de comunicação  com  a  sua família.  Na  verdade,  um repertório  do  mal  levou Gregor à morte,  isto é, o jogo de interesse da irmã, as  violências  físicas  do pai,  o  não  envolvimento da mãe. Tudo isso, levou‐o  a  desejar  a  própria morte,  vontade  de 

deixar‐de‐ser, condição construída a partir do momento em que deixou de  se  alimentar,  falar  e,  sobretudo, pensar. No final  da  novela,  subentende‐se  que,  enquanto  houver pensamento, há  esperança de  salvação do  sujeito, há  vida, logo, pode‐se tirar tudo do homem, menos a sua capacidade de pensar. Mesmo no ato da morte, Gregor ainda conseguiu pensar com “carinho e emoção em sua família” (idem).   

A  faxineira, no outro dia  cedo, dirigiu‐se  ao quarto de  Gregor  e,  a  princípio,  não  notou  nada  de  especial.  Ela pensou  que  ele  estivesse  se  fazendo  imóvel,  pois  estava ofendido com algo. Assim, resolveu fazer cócegas nele com a vassoura,  contudo  não  obteve  respostas.  Dessa  maneira, passou  a  cutucá‐lo,  sem  encontrar  nenhuma  resistência. Logo  compreendeu  as  condições  de  Gregor.  Por  fim,  ela abriu a porta do quarto dos pais e gritou: “‐ Ei, venham ver, ele  bateu  as  botas,  está  lá  esticado!  Ele  bateu  as  botas” 

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

(KAFKA, 2010, p. 73). Todos  foram ao quarto,  lá, a  faxineira empurrou o  cadáver  com a vassoura a  fim de  comprovar a veracidade da sua  informação. O pai disse: “‐ Bem  ‐ disse o senhor Samsa  ‐, agora podemos agradecer a Deus”  (KAFKA, 2010, p. 74). Grete, sem desviar os olhos do  irmão, disse: “‐ Como  ele  estava magro!  É  verdade  que  ultimamente  não comia nada. A comida voltava do jeito que ia” (KAFKA, 2010, p.74).  Sobre  a  condição  do  corpo  de  Gregor,  o  narrador comentou: “Verdade, o corpo de Gregor estava  ressequido; somente agora percebiam por que já não mais se sustentava nas perninhas, e o olhavam atentamente”  (KAFKA, 2010, p. 74).  

O antropólogo francês René Girard refere‐se à noção de “vítima expiatória” que para nós seria o mesmo que bode expiatório,  que  significa  “pessoa  ou  coisa  a  que(m)  se imputam ódios, revezes, frustações, desgraças” (1990, p. 85). Segundo o  francês, uma unanimidade coletiva e violenta se volta contra um indivíduo, ou grupo de indivíduo, como meio de instaurar a ordem. Essa hostilidade da maioria contra um sujeito, a vítima expiatória, exerce o papel de purificador. A extinção  da  vítima  é  celebrada  e  tomada  como  exemplo sempre  que  a  coletividade  necessite  de  restabelecer  a ordem.  Segundo  Girard,  a  repetição  dessa  conduta possibilitou  a  constituição  da  cultura  e  humanidade.  As noções do antropólogo francês podem ser utilizadas no texto de Kafka, uma  vez que, a  família  irá  responsabilizar Gregor pelos males que povoavam aquela  casa, portanto, deve  ser exterminado  como  um  bode  expiatório.  A  morte  do protagonista,  como  veremos  adiante,  apazigua  a  tensão, restaura  a  ordem  e  faz  com  que  todos  reflitam  sobre  o futuro. 

Os  inquilinos  acordaram  dispostos  a  tomar  café, contudo nada estava  sobre a mesa. A  faxineira,  como para justificar  espécie  de  negligência,  levou‐os  ao  quarto  de Gregor: “Eles avançaram para o quarto, agora já banhado de claridade,  e  ficaram  parados  em  volta  do  cadáver,  com  as mãos  enfiadas  nos  bolsos  dos  casacos  um  tanto  puídos” (KAFKA,  2010,  p.  74).  Não  houve  por  parte  de  nenhum membro da casa algum tipo de dor ou sofrimento para com a morte de Gregor, pelo contrário, a sensação de alívio parece mergulhá‐los numa espécie de alegria “contida”.  

Inesperadamente,  o  senhor  Samsa  ordenou  que todos  os  inquilinos  abandonassem  a  casa.  Não  queria  a presença  daquele  que,  na  noite  anterior,  tinham  trazido tantos transtornos à família que resolveu  

 descansar e passear: não apenas mereciam uma  folga  no  trabalho,  como  dela necessitava  imensamente.  Por  isso, sentaram‐se  à  mesa  e  escreveram  três cartas:  o  senhor  Samsa  justificando‐se  ao seu  chefe  no  banco;  a  senhora  Samsa  ao dono da  loja e Grete o  seu patrão  (KAFKA, 2010, p. 76). 

   A  empregada,  cinicamente,  disse  à  senhora  Samsa, pessoa  a  quem  a  faxineira  mais  respeitava  naquela  casa: “Pois  bem  –  começou  a  responder, mas  um  risinho  não  a deixava  prosseguir  ‐,  é  que  a  senhora  não  precisa  se 

preocupar mais  com  aquela  coisa  aí  ao  lado.  Já  está  tudo arrumado” (KAFKA, 2010, p. 76). O grau de maldade contido na fala da empregada relacionado à condição de Gregor, por incrível que pareça, é a concretização verbal dos sentimentos de todos. A família ficou incomodada com a fala da faxineira, não  porque  sofria  pela  morte,  mas  porque  referir‐se  ao Gregor  seria  o mesmo  que  trazer  o  problema  à  tona,  por isso, o narrador comenta a  inserção da empregada com sua fala:  “[...]  a  empregada  parecia  ter  perturbado  a tranquilidade que há  tão pouco  tempo haviam  recuperado” (KAFKA, 2010, p. 77).   Em  seguida, a  família de Gregor pegou um bonde com destino aos arredores da cidade. Sentiam‐se satisfeitos e   

contemplaram  a  luz  e  sentiam  o  calor  dos raios  de  sol  que  invadiam  o  bonde completamente.  Recostados  gostosamente em  seus  assentos,  trocaram  ideias  sobre  o futuro  e  percebiam  que,  bem  pesadas  as coisas, as perspectivas não eram  ruins, pois seus  três  empregos  –  sobre  os  quais praticamente  não  haviam  conversado  – eram  bons  e  auspiciosos  (KAFKA,  2010,  p. 77). 

 Em  suas  reflexões  não  passou,  em  nenhum 

momento, a imagem do filho morto, pareciam ter esquecido por completo a figura de Gregor.  

Pensaram  em  mudar  de  casa,  queriam  um apartamento  menor,  de  aluguel  mais  barato,  mas  bem situado e, sobretudo mais prático do que o atual. Cogitou‐se também  que  já  estava  na  hora  de  Grete  se  casar,  isto  é, precisava  arrumar  um  bom marido  para  ela:  “E  quando  a filha,  ao  final  da  viagem,  levantou‐se  e  esticou preguiçosamente  o  corpo  jovem,  tudo  pareceu  confirmar seus  novos  sonhos  e  intenções”  (KAFKA,  2010,  p.  78).  No final da novela, vemos que o conceito de bode expiatório se aplica  com  certa  precisão  ao  livro,  pois,  com  a morte  de Gregor,  o  bem  estar  da  família  é  quase  automático, chegando ao ponto de fazê‐los planejar o futuro.  Alegoria  

Feito esse grande percurso ao  longo dessa obra tão emblemática  de  Franz  Kafka,  que  tanto  nos  causa desconforto e estranhamento, ainda nós nos perguntamos: o que seria a metamorfose? Ler Kafka é como caminhar sobre um  território  movediço  em  que  cada  passo  deve  ser ponderado a  fim de não perdemos por  completo o  sentido do nosso deslocamento.  Sendo assim, de maneira objetiva, tentaremos levantar algumas possibilidades de resposta para essa pergunta, embora, seja inerente a um grande escritor, a multiplicidade de leituras que o texto possa permitir.  

 A metamorfose  poderia  indicar  um  relativo  desejo 

de mudança  de  postura  de  vida.  A  condição mecânica  de caixeiro‐viajante  estava  exaurindo  Gregor  por  completo. Neste  caso,  seria necessário o deslocamento dos  trilhos da rotina.  Porém,  a  família  não  permitiu  que  a  transformação 

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seguisse adiante, trazendo‐o para um sistema mais absurdo do que o próprio trabalho. Não há nenhuma  fala de Gregor que  permita  afirmarmos  categoricamente  essa  leitura,  na verdade,  as  suas  ações,  ou  a  anulação  completa  delas, poderia  sugerir  essa  leitura.  De  outro  lado,  os  membros familiares  também  passaram  por  uma  profunda metamorfose.  Antes,  eles  eram  dependentes,  prostrados, doentes,  e,  após  a  metamorfose  de  Gregor,  tornaram‐se ativos,  independentes e saudáveis. Tudo  isso, nos permitiria inferir  que  o  protagonista  impedia  a  independência  da família. Assim,  olhando‐o  por  esse  viés, Gregor  deixaria  de ser  a  vítima  inocente  adquirindo  um  status  de  vilão.  Com isso, a metamorfose  seria uma possibilidade de  reequilíbrio de uma  condição de dependência,  espécie de  redenção de algo  que  necessitava  ser  restabelecida  a  fim  de  que  todos pudessem se  tornar seres mais autônomos. A metamorfose de Gregor  seria um  catalizador para o desabrochar de uma nova forma existencial da família. 

Outra  possibilidade  de  compreensão  da  obra  seria olharmos a metamorfose como uma metáfora do isolamento humano,  alegoria  das  condições  que  nos  levam  à  solidão absoluta.  A  transformação  de  Gregor,  poderia  ser compreendida  como  a  materialização  das  mais  íntimas angústias que nos  cercam,  levando‐nos à anulação  total da nossa individualidade.    Em outra possibilidade interpretativa, a metamorfose de Gregor  Samsa  seria  a  representação  da  condição  alienante do sujeito moderno. Tornado coisa, o homem aceita‐se com naturalidade,  por  isso,  talvez,  Gregor  não  procurou compreender  o  que  poderia  tê‐lo  levado  à  condição  de inseto. Com  isso, Kafka denuncia o processo de aviltamento do  ser  humano  em  sua  rotina  alienante.  Logo,a transformação  do  protagonista  seria  a  materialização  da terrível  condição que ele  já  vivia  como humano,  subjugado por  diversas  instituições  como,  por  exemplo,  a  família  e  o trabalho.   Kafka  viveu  num momento  que  antecedeu  à  Primeira Guerra Mundial. Num contexto de conflitos como esse, o ser humano  sente‐se  absurdamente  pequeno.  O  escritor  não ficou  impassível  a  todo  esse  movimento  de  guerra  e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos desse conflito e a consequente desumanização do sujeito se encontra principalmente nas páginas de sua novela animalista. Sendo assim, a incapacidade de falar da opressão da  família,  das  injustiças  sociais,  dos  aviltamentos  físicos  e morais,  das  atrocidades  da  guerra,  do matar  e morrer  em massa e da zoomorfização do homem nos campos de batalha podem  ser  representadas  pelos  sons  incompreensíveis  que Gregor produz ao tentar comunicar‐se com o gerente.      Personagens:  1) Gregor:  personagem  que  se  transforma  em  um  ser 

repugnante ao  longo do enredo. Trabalhou de maneira 

bastante alienada para sanar uma dívida proveniente de 

seu  pai.  Uma  das  marcas  mais  características  desse 

sujeito é a alienação pode ser a representação do sujeito 

moderno. 

2) Pai:  essa  figura  é  altamente  opressora.  É  um  dos 

personagens  mais  intolerantes  para  com  o  Gregor. 

Costuma‐se associá‐lo à própria figura do pai de Kafka. 

3) Mãe: mulher  asmática  que  se  camuflou  atrás  de  uma 

espécie de medo da imagem do filho‐inseto. 

4) Grete:  irmã  de  Gregor.  Ao  certo,  tinha  um  sonho  de 

entrar  para  a  escola  de  música.  No  início  da  novela, 

apresentou  uma  suposta  disposição  para  cuidar  do 

irmão, contudo, com o tempo, revelou a sua verdadeira 

essência. 

5) Gerente:  esse  sujeito  apareceu  apenas  no  início  da 

novela.  Vemos  a  representação  da  exploração  do 

homem pelo homem. 

6) Inquilinos:  personagens  indiferentes  ao  sofrimento  da 

família e de Gregor. No  final da novela,  foram expulsos 

do apartamento. 

   

REFERÊNCIAS:   ADORNO, Theodor W., Prismas – crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida São Paulo: Editora Ática, 1998.  ANDERS,  Günther.  Kafka:  pró  e  contra.  Aos  autos  do processo. São Paulo: Perspectiva, 1969.  CANCIAN,  André.  O  vazio  da  máquina  ‐  Niilismo  e  outros abismos. 2ed. São Paulo: Ateus.net, 2009.  CARONE, Modesto.  Lição  de  Kafka.  São  Paulo:  Companhia das Letras, 2009.  CHEVALIER,  Jean  &  GHEERBRANT,  Alain.  Dicionário  de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, 2006.  DELEUZE, G.  A  filosofia  crítica  de  Kant,  Edições  70,  Lisboa, 1963.  FOUCAULT,  Michel.  As  Palavras  e  as  Coisas:  Uma Arqueologia  das  Ciências  Humanas.  São  Paulo:  Martins Fontes, 1992.  GIRARD,  René.  A  violência  e  o  sagrado.  Trad.  Martha Conceição  Gambini.  São  Paulo,  Universidade  Estadual Paulista.  KAFKA,  Franz.  A  metamorfose.  Trad.  Lourival  Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, 2010.  

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TURMA: 1º ano  Literatura – Landim 

 

 

 

KRACAUER,  siegfried.  Franz  Kafka,  in  Das  Ornamente  der Masse. Frankfurt am Main: Suhrkamp: 1977.  LESKY,  A.  A  tragédia  grega.  2.  ed.  Trad.  de  J.  Guinsburg, Geraldo  Gerson  de  Souza  e  Alberto  Guzik.  São  Paulo. Perspectiva, 1990.  MOISÉS,  Massaud.  Dicionário  de  termos  literários.  Cultrix. São Paulo.1988.   TAVARES,  Hênio.  Teoria  literária.  Itatiaia.  Belo  Horizonte.  12ª ed. 2002.  TODOROV,  Tzvetan.  As  estruturas  narrativas.  São  Paulo: Perspectiva, 1970.  ________________.  Introdução à  literatura fantástica. Trad. De Maria Clara Correia Castello. 3. ed. 2.  reimp. São Paulo: Perspectiva, 2008.