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TURMA: 1º ano Literatura – Landim
Lista 01 – Resumo de obra Análise da obra A metamorfose1, de Franz Kafka, por Henrique Landim2
Olha só, que cara estranho que chegou Parece não achar lugar
No corpo em que Deus lhe encarnou Tropeça a cada quarteirão
Não mede a força que já tem Exibe à frente o coração
Que não divide com ninguém Tem tudo sempre às suas mãos Mas leva a cruz um pouco além
Talhando feito um artesão A imagem de um rapaz de bem [...]
(“Cara Estranho”, da banda Los Hermanos). Dados biográficos do Autor
Filho de Herman Kafka, comerciante judeu que venceu na vida a custo de muito esforço pessoal, condição sempre valorizada, mesmo de forma arrogante diante do filho. A mãe do escritor, Julie Lowy, ajudava o marido nos negócios da família. O casal, antes de ter Franz Kafka, viu nascerem outros dois filhos, porém ambos morreram logo após o nascimento. A relação do escritor com o pai sempre foi marcada pelos conflitos, como ele mesmo relatou em seu livro intitulado de Carta
ao pai, escrito aos 36 anos e publicado postumamente. Esse livro é uma sensível reflexão sobre a relação entre pai e filho que se vê fracassado diante das expectativas paternas. A possível relação arbitrária entre os dois não servirá como tônica para a nossa compreensão da obra A metamorfose, porém poderemos usá‐la se necessário.
Após concluir os estudos no ginásio alemão de Praga, Kafka pensou em fazer filosofia, contudo o pai não era favorável a essa opção de curso, alegando que filosofia não era interessante sob o ponto de vista financeiro. Assim, o escritor acabou optando pelo curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak e Hugo Bergmann, mas não permaneceu no curso por quinze dias, matriculando‐se, em seguida, em Direito,pois assim poderia satisfazer o seu pai e, ao mesmo tempo, seguir a sua verdadeira vocação. Vale dizer que, durante o curso, às vezes, aproveitava para seguir as aulas de literatura e poesia. No
1 Em alemão o livro recebeu o seguinte título: Die Verwandlung. 2 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição.
ano de 1906, o escritor terminou o curso superior de direito.
Em 1908, conseguiu um emprego no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho, no qual exercia as suas atividades no período das 8 às 14 horas. Logo seria promovido a escrevente chefe e passou a trabalhar apenas meio período por dia, podendo, assim, dedicar‐se à literatura.
No ano de 1917, aos 34 anos, Kafka sofreu a primeira hemoptise, fruto de uma tuberculose que iria levá‐lo à morte em sete anos. A partir desse momento, o escritor mantinha‐se internado, por alguns intervalos, em sanatórios e, mesmo com o processo degenerativo da doença, o escritor ainda trabalhava. No ano de 1922, Kafka aposentou‐se, entretanto continuava a escrever. Para ele tudo que não era literatura o aborrecia.
Kafka, no campo amoroso, teve envolvimento com algumas mulheres. Ele chegou a morar com Dora Diamant, em Berlim, no ano de 1923, porém o seu estado de saúde agravou‐se, obrigando‐o a seguir para o sanatório Wiener Wald. Não ficou muito tempo nesse lugar. Com tuberculose na laringe, o escritor foi internado em outro sanatório, nas proximidades de Viena, onde morreu, no dia 03 de junho de 1924, aos 40 anos.
Graças a Max Brod, seu grande amigo desde a infância, podemos hoje ter acesso aos textos de Kafka que, num testamento, pediu o amigo que queimasse todos os seus escritos. Numa carta anterior, o escritor disse:
De todos os meus escritos, os únicos livros que podem ficar são: O veredicto, A metamorfose, Na colônia penal, Um médico de província e o conto “Um artista da fome”. (As poucas cópias de Contemplação podem permanecer. Não quero dar a ninguém o trabalho de macerá‐las; mas que nada desse volume torne a ser publicado).
Max Brod não atendeu ao pedido de Kafka;
interpretou a carta do escritor como algo de alguém que não soubesse o que estava fazendo. Da gaveta do escritor, Brod ainda salvou obras como O processo, O castelo, por exemplo.
Gêneros literários
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. (...) O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Poema “O bicho”, de Manuel Bandeira)
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
O dicionário Aurélio define gênero: qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, fatos, ideias, que tenha caracteres comuns; espécie, classe, etc. Seguindo essa definição, a literatura, desde a Antiguidade, teve divididos os textos que tenham caracteres comuns, em três grandes categorias: épico, lírico e dramático. Quanto à forma, esses textos podem se manifestar em prosa ou verso.
A obra A metamorfose, de Franz Kafka, pode ser
compreendida como uma produção narrativa. Vale dizer que o gênero narrativo consiste em relatar um fato ou uma história de ficção. A obra desse gênero mostra um enredo em que se tem uma situação inicial, a modificação desta situação, um conflito, o clímax (o ponto de tensão na narrativa) e o chamado epílogo, que é a solução narrada no ponto máximo da história. Os elementos que compõem tal gênero são: o narrador, o tempo, o lugar, o enredo ou situação e as personagens.
O gênero narrativo pode vir a nós, leitores, pelas maneiras mais usuais que são as modalidades desse gênero: romance, novela, conto, crônica e fábula.
O gênero narrativo
A novela pertence, como o conto e o romance, ao
gênero narrativo. A novela é uma modalidade literária cujas fronteiras não estão muito bem definidas, misturando‐se, por vezes, com o conto ou com o romance. De vez em quando, encontramos novelas apelidadas de contos; entretanto o mais usual é vermos romances qualificados como novelas ou novelas com a designação de romances.
“No geral, é adotada uma distinção mecânica, baseada no número de páginas ou de palavras: a novela contém de cem a duzentas páginas, ou mais de vinte mil palavras, ou seja, situa‐se a meio caminho entre o romance e o conto, menos extensa que o primeiro, mais longa que o segundo” (MOISÉS,1988, p.361). Portanto, nessa espécie narrativa, condensam‐se os elementos do romance, com diálogos rápidos, sem muitas divagações, ensejando ao autor um encaminhamento da história para o final mais rápido.
Nesses casos, a fronteira torna‐se tão tênue que é necessário comparar e analisar todos os aspectos do texto antes de fixá‐lo num compartimento. Logo, não basta verificar superficialmente o tamanho, o número de ações e de personagens para classificar um texto.
Para Hênio Tavares
Costumam os autores fazer distinção entre o romance, a novela e o conto pela extensão de cada uma dessas espécies. O romance seria a obra mais longa, a novela menos longa que o romance e mais extensa que o conto. A precariedade do critério salta aos olhos. Não é pelo número de páginas que uma espécie se destaca da outra, mas sim pela técnica da construção, segundo nos ensina Soares Amora. A novela condensa os elementos do romance: os diálogos são rápidos, as narrações diretas, sem circunlóquios ou divagações, as descrições impressionistas, tudo ensejando a precipitação da história para seu desenlace (TAVARES, 2002, p.122).
A novela é, então, uma narrativa que se foca na
ação, que pode ou não ter uma aparência fundamentalmente sentimental, e todas as ações contribuem para a conclusão da ação central, que deverá pôr um ponto final em todas as intrigas que foram exploradas, condição não muito aplicável ao nosso texto analisado, A metamorfose.
As personagens, cujo número varia, dependendo do número de ações, são geralmente planas, ou seja, construídas em torno de uma só ideia ou qualidade. Em geral, são definidas em poucas palavras.
O espaço na novela é mais explorado que no conto, permitindo um maior envolvimento do leitor, e o tempo tende a prender‐se num presente constantemente atualizado, de modo que o leitor se defronta sempre com a ação a decorrer no aqui e agora.
A obra de Kafka, A metamorfose, classificada como novela, traz um título – que tem sempre uma função primordial nesse gênero – que é um verdadeiro título‐tema. Quando o lemos, percebemos logo o assunto que será desenvolvido no texto. O desenvolvimento começa já no primeiro parágrafo: “Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu‐se em sua cama transformando num inseto monstruoso”(KAFKA, 2010, p. 11).Nas páginas iniciais da novela, temos o desenvolvimento do tema expresso pelo título, isto é, a transformação profunda do protagonista Gregor Samsa.
O que é notório em A metamorfose é a ausência de vários núcleos narrativos, pois a história se dá em torno do protagonista e, em torno dele, concentra‐se toda a atenção, sem a presença dos chamados núcleos periféricos, que demandariam tempo e distrações.
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Enredo Capítulo I
Na primeira página da novela, mais precisamente no primeiro parágrafo, temos a apresentação do problema central do texto: a transformação do protagonista em um inseto assustador. O narrador evita qualquer tipo de adjetivação que pudesse causar esclarecimentos, por meio da frieza de um relatório, não faz nenhuma preparação para chegar a terrível constatação física do sujeito, ele, simplesmente, por meio de uma economia vocabular, descreve:
Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu‐se em sua cama transformando num inseto monstruoso. Deitado de costas sobre a própria carapaça, ergueu a cabeça e enxergou o seu ventre escurecido, acentuadamente curvo, com profundas saliências onduladas, sobre o qual a colcha deslizava, prestes a cair. Suas inumeráveis pernas, terrivelmente finas se comparadas ao volume do corpo, agitavam‐se pateticamente diante de seus olhos (KAFKA, 2010, p. 11).
O negativismo da narrativa de Kafka nos leva para
um universo absurdamente insólito3. O que mais espanta na leitura da novela é a naturalidade com que o personagem trata a situação. Parece estarmos diante de uma doença corriqueira como, por exemplo, um resfriado. Não há um grito de desespero, somente a terrível constatação da metamorfose e a impossibilidade, pelo menos naquele dia, de cumprir o seu ritual diário: acordar cedo e prosseguir em sua rotina de caixeiro‐viajante. O trecho revela uma descrição objetiva, vazada numa linguagem seca (o alemão protocolar do Império Austro‐Húngaro).
A nossa experiência cognitiva com o mundo nos nega aceitar a transformação de uma pessoa em um inseto, condição marcada por um profundo estranhamento. Ao mesmo tempo, parece que estamos diante de um mundo fantasioso, marcado por criaturas sobrenaturais, que vivem em lugares inóspitos4. Contudo, o espaço demarcado é a casa, mais precisamente, o quarto do um caixeiro‐viajante5 Gregor Samsa. O quarto fechado torna‐se o único espaço de “ação” desse impotente “sujeito”. Esse lugar apresenta uma caracterização interessante: não há corredores separando‐o dos outros espaços da casa, mas três portas o ligam ao quarto do pai, ao da irmã e à sala de jantar, aspecto que sugere uma intimidade altamente forçada e inconveniente. O próprio narrador afirma que Gregor não estava diante de um sonho, pois o quarto é o ambiente facilmente reconhecido pelo protagonista:
3que não é habitual; infrequente, raro, incomum, anormal. 4 Que não recebe com hospitalidade; Diz‐se do lugar que apresenta más condições de vida para o Homem; 5 Representante de vendas;
Em cima da mesa está o mostruário de tecidos ‐ pois Samsa era caixeiro – viajante – e acima dela, numa elegante moldura dourada, a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada. Era a figura de uma senhora, muito aprumada, com chapéus e estola6 de pele, empunhando na direção do observador uma manga, igualmente de pele, que lhe ocultava o antebraço por inteiro (KAFKA, 2010, p. 11).
A abertura do livro comunica‐se, indiretamente, com
os contos de fada que são iniciados pela expressão “era uma vez”, porém o universo kafkiano não permite aventuras ao sabor das peripécias do protagonista. Nesse caso, Gregor tem a vida controlada pelos ponteiros do relógio e, também, pelo espaço limitado de seu quarto. A absurda transformação do caixeiro – viajante fecha‐o ainda mais entre as quatro paredes. Quase todo o enredo da novela se passa dentro de um espaço limitado e delimitado. O homem – inseto permanecerá entrincheirado sem nenhum horizonte de expectativas. Resta ao sujeito rastejar‐se, confinado em seu locus, não há comunicação possível com o ambiente externo e sem possibilidade de qualquer diálogo humanamente interpretável. Segundo Adorno:
O deslocamento é moldado segundo o costume ideológico que glorifica a reprodução da vida como um ato de graça dos “empregadores”, que dispõem sobre ela. Ele descreve um todo no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e que a sustentam, tornam‐se supérfluos. Mas o sórdido, em Kafka, não se esgota nisso. Ele é o criptograma7 da fase final e resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para determiná‐lo em sua negatividade (ADORNO, 1998, p. 252).
Como vemos na novela A metamorfose, o universo
kafkiano é marcado pela presença do homem comum, operário, caixeiro – viajante, costureiro, contínuo, balconista, que precisa prestar contas de seu serviço ao seu superior e, quase sempre, se vê mergulhado em situações embaraçosas que não se resolvem.
Todorov analisa a obra A metamorfose como uma narrativa do sobrenatural. Para esse estudioso, o sobrenatural aparece logo na primeira página do livro: “Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu‐se em sua cama transformando num inseto monstruoso” (KAFKA, 2010, p. 11). Contudo, a novela de Kafka se distingue das narrativas fantásticas tradicionais, pois o acontecimento estranho não aparece seguido de indicações indiretas, mas logo no início do texto. Para ele a narrativa fantástica partia
6 Tipo de indumentária religiosa, usada pelos padres nas missas e outras cerimônias, tem formato de uma faixa larga que é posta na nuca deixando as duas pontas deslizar sobre o peito chegando até próximo dos joelhos; em alguns casos é transpassada num dos ombros tendo as pontas unidas num dos lados do ventre. 7 Mensagem ou documento expresso de maneira cifrada;
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de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, A metamorfose parte do acontecimento sobrenatural para dar‐lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural (TODOROV, 2008, p. 179).
A realidade representada em A metamorfose é
absurda e anômala. As ações são tão sobrenaturais que não provocam hesitação no leitor, segundo Todorov (2008, p. 181). Sendo assim, o texto apresenta fatos estranhos, fora da ordem tradicional, que, entretanto, podem ser explicados pelas leis da racionalidade, conforme explica Todorov8.
Acreditamos que o fantástico, no texto de Kafka, funciona como artifício para chamar a atenção sobre a desumana realidade do sujeito. Temos aqui, na verdade, uma espécie de realismo trágico e grotesco. A natureza alegórica do texto mostra as incertezas e os absurdos do homem moderno. Talvez, Gregor necessitasse da transformação para poder se libertar do trabalho e da família em função de uma existência mais digna e autêntica. Para Coutinho, Kafka:
transforma o fantástico num instrumento de autênticas catarses: sua obra não confirma os receptores em sua falsa consciência, mas os obriga a entrar em contato com uma realidade nova, cujo conhecimento os leva a uma tomada de posição diante de si mesmos e do mundo manipulado que os envolve (COUTINHO, 2005, p.174).
A condição animalesca é um enigma para nós,
leitores, e para o próprio herói. A inusitada transformação do protagonista nos causa bastante estranhamento. Como observou Modesto Carone (2009), grande especialista kafkiano no Brasil, a novela parece uma fábula invertida, que começa pelo clímax, isto é, a obra é aberta pelo ponto de maior tensão da narrativa. No mundo de Kafka, tudo parece invertido, irreal, fantástico. Assim, contrariando a convenção literária que o clímax é projetado para o final, vemos em A metamorfose que o escritor traz para o início o ponto alto do enredo, “ou seja: aqui a coisa narrada não caminha para o auge, ela se inicia com ele” (CARONE, 2009, p. 32). Gregor Samsa se questiona: “‐ O que aconteceu comigo?” (KAFKA, 2010, p. 11). Pensou em dormir um pouco mais, acreditava que talvez a sua condição física fosse alterada com o sono. Entretanto, dormir não seria possível, uma vez que a sua condição não permitia adormecer em sua maneira predileta. A metamorfose do personagem não é um pesadelo do qual pudesse acordar, pelo contrário ela é definitiva. A súbita transformação não é um disparate, mas uma espécie de licença poética transformada em fato com a qual todos nós (leitor e protagonista) teremos que nos conformar.
8 Para esse estudioso, a fórmula que melhor resumo a essência do fantástico é: “quase cheguei a acreditar” (TODOROV, 1970, p. 150).
Anders (2007, p. 15), estudioso da obra de Franz Kafka, faz uma interessante observação:
A fisionomia do mundo kafkiano aparece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal (grifo do autor).
Kafka, segundo o estudioso acima, apresenta
situações deformadas para introduzir o seu objeto principal, o homem. Logo, o espantoso é a própria realidade que aparece determinada pelo mundo do trabalho que desumaniza e oprime os sujeitos. No universo kafkiano até a simples prática do acordar, torna‐se algo tenebroso, um pesadelo sem volta, portanto, irresolvível.
Sendo assim, Gregor fechou os olhos para não ter que ver o movimento frenético das inúmeras perninhas de seu novo corpo. Pensou negativamente na profissão que exercia, a de caixeiro – viajante, sentiu‐se oprimido pelo ofício, mas sobretudo pela figura de seu chefe:
Se eu fizesse o mesmo, levando em conta o chefe que tenho, já estaria no olho da rua. [...] Não fosse por causa dos meus pais, já teria pedido as contas há muito tempo: eu me postaria diante do chefe e lhe diria, com todas as letras, tudo o que penso. Ele cairia da mesa (KAFKA, 2010, p. 12).
O trabalho exercido por Gregor é fruto de uma
dívida adquirida pelo seu pai no passado, o que indica a condição compulsória do emprego:
No momento em que juntar o dinheiro que meus pais lhe devem – talvez eu consiga em mais cinco ou seis anos ‐, não tenho dúvidas de que o farei. Aí sim, mudo de vida. Mas, por ora, o que preciso fazer é levantar‐me, pois o trem parte às cinco (KAFKA, 2010, p. 12‐13).
O protagonista não tem mais a possibilidade de viver
a sua própria vida. Gregor Samsa se abdicou de ser que o era ou fosse, para dedicar‐se somente ao trabalho, a fim de cumprir com a dívida oriunda da falência de seu pai. Portanto, ele não trabalhava por uma motivação de ordem subjetiva, mas de ordem pragmática, isto é, sanar a dívida de seu pai. Havia cinco anos que Gregor trabalhava na mesma empresa e ainda necessitaria de outros cinco para cumprir com as obrigações pecuniárias herdadas do pai. Em todos os anos de trabalho, o protagonista nunca houvera faltado por nenhum motivo. Ao certo, seria a primeira falta em cinco anos, isso também o aflige. O relógio despertou às quatro horas da madrugada, porém Gregor não despertou, não
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conseguiu escutar o alarme. Agora planejava pegar o trem das sete horas, infelizmente ouviria a bronca do chefe.
Os maus pensamentos invadiram Gregor e, no mesmo momento em que o despertador marcava quinze para as sete, alguém bateu de leve na porta do quarto: “‐ Gregor – era a voz de sua mãe ‐, são quinze para as sete. Você não iria viajar?” (KAFKA, 2010, p. 14). O personagem respondeu com uma voz chiada que já estava levantando. O pedido da mãe levou ao conhecimento dos outros membros da casa cerca consciência da condição de Gregor. Em seguida, o pai bateu a porta do quarto. A irmã, em outro quarto, perguntou discretamente ao irmão se estava tudo bem com ele.
Gregor empenhou grande energia, sem buscar um ponto de apoio, simplesmente impulsionando para frente, contudo calculou mal a direção, chocando‐se contra os pés da cama e a dor sobreveio‐lhe. Insatisfeito, voltou para a posição original na cama. Queria sair da cama, mas deveria fazê‐lo com serenidade, sem atitudes impensáveis. Com isso, quando
necessitava pensar em algo detidamente, costumava concentrar o olhar na janela, mas infelizmente a neblina, encobrindo até o outro lado da rua, não permitia que se lhe infundisse algum ânimo ou inspiração (KAFKA, 2010, p. 16).
Entre as quatro paredes opressoras, sem horizontes,
o narrador poderia, talvez, ver pela janela aberta um possível conforto para a sua alma dilacerada, funcionando como esperança de melhoria do seu estado animalesco. Por ela entraria vida nova, daria para ver a rua, pessoas, carros, enfim, o dinamismo do mundo convidando‐o a voltar à “realidade”. Da janela do quarto, dava para ver apenas uma neblina desalentadora. Já que a janela não oferecia nenhuma perspectiva, ficou deitado sem um mínimo movimento, respirando lentamente, como se aquilo pudesse lhe proporcionar a volta à sua condição de antes.
O relógio marcava sete horas da manhã. Gregor sentiu‐se bastante oprimido por ele. Pensou que a empresa iria mandar alguém à sua casa. Então, decidiu sair da cama. A operação consistiu em inclinar a parte da frente do corpo para fora da cama. Assim, metade do corpo estava de fora da cama. Já houvera avançado bastante quando as sete e dez a campainha tocou: “É alguém da firma, tenho certeza” (KAFKA, 2010, p. 17). Não demorou muito para Gregor notar que estava em sua casa, era o gerente. Com isso, lançou‐se fortemente ao chão. A queda resultou numa pancada surda que despertou a atenção dos outros:
Gregor – chamou então o pai ‐, o senhor gerente está aqui e gostaria de saber por que você não seguiu no primeiro trem. Não sabemos o que responder. Então, abra a porta, por favor. O senhor gerente não vai reparar na bagunça de seu quarto (KAFKA, 2010, p. 19).
O pai interveio, porém o protagonista não abriu a porta. A irmã, no quarto da direita, começou a soluçar, sabia das consequências negativas para Gregor daquela presença opressora do gerente. O protagonista permanecia estendido sobre o tapete e ninguém que o visse naquele estado exigiria que ele abrisse a porta. E essa insignificante descortesia seria desculpada no momento oportuno. Dessa maneira, o gerente interveio:
‐ Senhor Samsa – interveio o gerente, elevando a voz ‐, o que isso significa? O senhor entrincheirou‐se aí em seu quarto, respondendo somente sim ou não. Deixe seus pais preocupados inutilmente e, diga‐se de passagem, falta à sua obrigação na firma de maneira verdadeiramente inacreditável. Falo aqui em nome de seus pais e, como seu superior, peço‐lhe muito seriamente que apresente uma explicação clara e imediata (KAFKA, 2010, p. 20).
A inserção da figura do gerente acentua ainda mais o clima de desconforto da narrativa. Esse personagem é a materialização da dívida9 do pai de Gregor. Aqui, podemos notar como o mundo do trabalho já havia invadido a existência desse sujeito. O mal estar da situação é intensificado quando o gerente afirma que a posição de Gregor na firma era incerta, isto é, ele poderia ser demitido em virtude da falta. O mundo ficcional de Kafka revela um mundo arbitrário e antiteticamente dividido entre uns poucos que mandam e a maioria que obedece e só conhece a rigidez das leis e regras. Resta ao personagem fragilizado curvar‐se diante do absurdo das relações. Para revelar esse absurdo, Kafka dá vida a um árduo jogo de contrastes entre o natural e o estranho, o absurdo e o lógico. Portanto, Gregor Samsa vive situações impensáveis dentro de uma realidade cotidiana. A consequência de um sistema que confere ao ser humano o último lugar é a alienação que o transforma numa espécie de autômato10 facilmente manipulado. Assim, Gregor, ao longo das páginas, é um homem desorientado diante do poder do outro, parece estar em meio a um labirinto de proporções imensuráveis, tudo conspira para uma ordem caótica.
Samsa, do quarto, respondeu que estava melhor e partiria no trem das oito. Contudo, o gerente não conseguiu entender com clareza a fala de Gregor: “Entenderam algo do que ele falou? – perguntou aos pais. – Será que ele está se caçoando de nós? [...] Era uma voz de animal – disse o gerente, falando baixo em comparação aos gritos da mãe” (KAFKA, 2010, p. 23). A metamorfose de Gregor progredia ao ponto de modificar a sua capacidade de comunicação verbal. Ao longo do livro, iremos notar que ele perde o poder de se comunicar. A voz parecia um ruído animalesco. O pai pediu
9 No alemão “Schuld” apresenta duas traduções: dívida e culpa. A segunda tradução (culpa) remete diretamente à condição de Gregor, pois a palavra carrega em si um valor bastante psicológico, uma vez que ele assumiu a culpa da família e por ela irá responder até que possa se redimir das faltas do outro. As obras de Kafka são repletas desse sentimento de culpa do sujeito.Embora desconheça totalmente a natureza de sua falta, carrega, ao longo das páginas, esse sentimento. Gregor tem a convicção de que é culpado, contudo não sabe, com profundidade, a motivação de tal fato e também não tem a possibilidade de defender‐se. Tudo isso, atesta o universo absurdo das narrativas de Kafka. 10 Máquina que imita o movimento de um corpo animado: o autômato de Vaucanson. Fig. Pessoa que não pensa nem age por si mesma.
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que Grete, a irmã de Gregor, fosse à procura de um médico e Ana, a empregada, de um serralheiro para abrir a porta. O mundo do trabalho anulou por completo o protagonista da obra. Gregor é um sujeito que “anda na linha”. A própria profissão de caixeiro viajante confirma esse aspecto: a imagem do trem, meio de transporte que se movimenta nos trilhos, poderia ser vista como um exemplo alegórico do mundo que exerce o seu controle sobre o sujeito, anulando‐o demasiadamente. O trem é um meio de transporte em que não há quase nenhuma possibilidade de decisão individual do passageiro, o seu trajeto é determinado pela linha e tem de ser cumprido, rigorosamente, dentro do tempo. Sendo assim, de maneira análoga, tanto no mundo do trabalho como familiar, Gregor é como o usuário do trem, isto é, alienado, à mercê de um modelo existencial previamente programado. A obra A metamorfose é a representação do mundo moderno que o homem padece em uma existência vazia de sensibilidade inteiramente consumida pelo automatismo que o prende. Gunther Anders delineou com precisão a obra de Franz Kafka:
Milhares de vezes o homem de nossos dias esbarra em aparelhos cuja condição lhe é desconhecida e com os quais só pode manter relações alienantes, uma vez que a vinculação deles com o sistema de necessidades dos homens é infinitamente mediada: pois estranhamento não é um truque do filósofo ou do escritor Kafka, mas um fenômeno do mundo moderno – só que o estranhamento, na vida cotidiana, é encoberto pelo hábito oco. Kafka revela, através da sua técnica de estranhamento, o estranhamento encoberto da vida cotidiana (ANDERS, 1969, p.17‐18).
A obra de arte, às vezes, se configura numa tônica do exagero, a fim libertar o nosso olhar dos condicionamentos impostos pela nossa cultura. Assim, os reais sentidos do nosso mundo são encobertos e passam despercebidos ao longo da nossa rotina. Kafka, por meio de seus textos, lança mão do estranhamento a fim de tirar o véu que encobre a existência. Conta‐se que certa vez, numa exposição de Picasso, Gustav Janouch disse a Kafka que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e coisas. Kafka disse que o pintor não pensava desse modo, mas “apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência. A arte é um espelho que adianta, como um relógio, não as formas, mas as nossas deformidades” (KAFKA apud CARONE, 2009, p. 37).
O homem moderno se aceita como coisa, esquece que essa condição é adquirida lentamente e que vai sedimentando‐o. Essas transformações são frutos do absurdo existencial no qual estamos mergulhados. Sendo assim, Kafka, em seu livro, denuncia por meio da metamorfose, o processo de aviltamento do ser que ocorre diariamente. Em Kafka temos:
O inquietante não são os objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a eles descontraidamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente – a trivialidade do grotesco – que torna a leitura aterrorizante (ANDERS, 1969, p. 19).
Sendo assim, Kafka deseja dizer que o natural e o
não ‐ espantoso da nossa realidade é pavoroso. Ele fez uma inversão: o que causa pavor não é espantoso. Essa é uma técnica que permeia a novela kafkiana, constituindo um elemento fundamental de seus textos.
Franz Kafka escreveu e revisou as primeiras provas da novela A metamorfose nos anos de 1912 e 1914, respectivamente. Nessa época, os conflitos políticos, econômicos e sociais levariam à Primeira Guerra Mundial. Em um contexto de guerra, o ser humano sente‐se pequeno, indefeso e temeroso. A qualquer momento, as pessoas poderiam ser aniquiladas como insetos. O escritor não ficou impassível a todo esse movimento de guerra e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos da guerra e a consequente desumanização do ser encontra‐se, principalmente, nas páginas de sua novela animalista. Sigfried Kracauer, por exemplo, em seu ensaio sobre Kafka, diz:
Eles foram escritos durante os anos da guerra, da revolução e da inflação. Embora nem uma única palavra no volume todo se refira imediatamente a estes eventos, eles figuram entre seus pressupostos (KRACAUER, S, 1977, p. 256).
No livro A metamorfose, a incapacidade de falar da
opressão da família, das injustiças sociais, dos aviltamentos físicos e morais, das atrocidades da guerra, do matar e morrer em massa e da zoomorfização do homem nos campos de batalha pode ser representada pelos sons incompreensíveis que Gregor produz ao tentar comunicar‐se com o gerente.
Gregor, porém, estava bem mais calmo. Sentiu‐se novamente incluído entre os humanos, e passou a contar com as ações do médico e do serralheiro de uma maneira fantasiosa, fora de propósito. Em seguida, ele amparou‐se na cadeira e deslizou em direção à porta, onde trocou de apoio, lançando‐se contra ela, mantendo‐se de pé, sustentado nela, com auxílio das pontas das perninhas, que tinham uma viscosidade aderente. Ali, descansou por um instante do esforço. Assim, tentou girar, com a boca, a chave da fechadura. Pareceu‐lhe, então, que não possuía dentes – como iria conseguir segurar a chave para girá‐la? Em compensação tinha mandíbulas fortes, com as quais pôde iniciar a operação e nem percebeu que havia machucado a si com aquilo, pois um líquido amarronzado saía‐lhe da boca e escorregava pela chave, pingando no chão. Em certo sentido,
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Gregor Samsa ignorava a sua metamorfose corporal, que era lembrada, sobretudo, quando necessitava movimentar‐se em suas atividades diárias. Em nenhum momento do texto, é colocada em pauta a motivação para a metamorfose de Gregor. Talvez, se alguém se perguntasse sobre a questão, pudesse, quem sabe, reverter o quadro, ou para, pelo menos, entendê‐lo melhor, sendo capaz de aprender, crescer, amadurecer e, ate mesmo, mudar. Um dos traços da obra de Kafka é essa sensação de nonsense, os personagens não sabem que rumo tomar, sentem‐se presos, sozinhos e incomunicáveis.
Gregor Samsa mordeu a chave com toda a força de que dispunha a fim de mover a chave, girou em torno da fechadura, pendurado pela boca e, de acordo com a necessidade, apertava a chave ou a empurrava para baixo com o peso de seu corpo. O dique da fechadura, abrindo‐se finalmente, deixou‐o aliviado e confiante, a ponto de congratular‐se. Depois de abrir a porta, empurrou a maçaneta com a cabeça.
A porta abriu‐se parcialmente, não o bastante para que se pudesse vê‐lo. Ele teve de girar o corpo com lentidão, enquanto pressionava uma das folhas da porta, tudo com extremo cuidado para não deixar que seu peso o levasse a cair de costas na entrada do quarto. Estava ainda entretido com essa difícil tarefa, sem pensar em outra coisa, quando ouviu de súbito “Oh!” do gerente, que pareceu um som forte de ventania, e, então, Gregor o avistou também. O homem levou a mão à boca e, estarrecido, retrocedeu pesadamente, como se empurrado por uma força invisível.
A mãe, apesar da presença do gerente, ainda estava despenteada, com os cabelos eriçados ‐ olhou primeiro para o pai, em seguida deu dois passos em direção a Gregor e tombou, desmaiada, espalhando as pregas da saia a seu redor, o rosto caído em cima do peito. O pai, com expressão hostil, cerrou os punhos, como se quisesse empurrar Gregor para dentro do quarto; depois, olhou em torno, absolutamente transtornado, colocou as mãos no rosto e chorou compulsivamente, estremecendo o peito robusto.
Desse modo, Gregor não chegou a entrar na sala, permanecendo apoiado na outra folha da porta, que ainda estava fechada; deixava visível, portanto, apenas a parte superior do corpo, com a cabeça meio inclinada, olhando para fora do quarto. Nesse meio tempo, o dia já tinha clareado. Já se podia ver, no outro lado da rua, o grande prédio do hospital, com suas paredes escuras e suas janelas simétricas, que subvertiam a monótona rigidez da fachada.
Ainda chovia, mas em pingos grandes e esparsos, de tal modo que era possível vê‐los cair, quase um a um, no chão da rua. A mesa ainda estava posta, com todos os seus
apetrechos e variedades, pois o café da manhã era para o pai a principal refeição do dia, e ele a prolongava com a leitura de diversos jornais.
O protagonista em forma de inseto dirigiu a palavra ao gerente tentando se justificar, entretanto, desde as primeiras palavras de Gregor, o gerente tinha lhe dado as costas, fitando o com a cabeça voltada para trás. Não ficou parado em nenhum momento, pois enquanto Gregor falava, ele tentava se deslocar lentamente embora parecesse que uma força secreta o segurava. Gregor se deu conta de que o gerente não devia sair daquele jeito, pois o seu emprego ficaria perigosamente ameaçado. Era absolutamente necessário não deixar que o gerente fosse embora daquela forma, era imperativo acalmá‐lo, convencê‐lo. Dessa ação dependia seu futuro e de sua família. Passando pelo vão aberto da outra divisão da porta, Gregor caiu, buscando inutilmente sustentar‐se nas incontáveis perninhas, soltou um breve gemido. Ele se encontrava emparedado, perplexo, diante de uma situação que começava a desvendar‐se sem saída. Era necessário manter o emprego e garantir que a engrenagem familiar continuasse a existir. Até esse momento, não houve uma tentativa analítica, por parte de Gregor, de entender o que o levou àquela absurda condição de inseto. Parece que ele estava numa situação irreal, espécie de pesadelo. Com isso, quanto mais o texto apresenta esse aspecto de pesadelo e de irrealidade, mais se aproxima do real, pois é a realidade que, às vezes, apresenta a dimensão mais absurda.
Toda a família se assustou com a imagem metamorfoseada de Gregor. O pai procurou empurrá‐lo para dentro do quarto com o apoio de um jornal e uma bengala. Após muita dificuldade, Gregor chegou à porta do quarto. Notou que o seu corpo era muito largo para poder passar no vão aberto, e não ocorreu ao pai, dado o humor em que se encontrava, abrir a outra parte vertical da porta para lhe facilitar a passagem. O pai tinha uma ideia fixa: fazer Gregor entrar no quarto o quanto antes. Por fim, parte do corpo ergueu‐se, meio de lado, e esfolou‐se, deixando manchas repulsivas na porta. Gregor ficou entalado, sem poder fazer nenhum movimento, enquanto as perninhas de um dos lados remexiam‐se no ar, e as do outro eram prensadas contra o chão. Foi quando o pai lhe deu, por trás, uma pancada enérgica, libertando‐o do aperto, e impulsionando‐o para dentro do quarto, onde ele caiu, sangrando abundantemente. Nisso, o pai fechou a porta, empurrando‐a com a bengala, e tudo ficou em completo silêncio. Capítulo II
Somente à noite, Gregor despertou de um sono profundo, semelhante a um desmaio. O reflexo da iluminação da rua fazia‐se presente no quarto, tanto no teto quanto na parte de cima dos móveis, contudo, embaixo, onde ele estava, tudo permanecia na mais absoluta escuridão. Utilizando de suas antenas, cuja utilidade começava a compreender, ele se deslocou lentamente até a porta para ver o que havia se passado. Mancava, pois em um dos lados do corpo havia um longo ferimento. Uma das perninhas feridas pela manhã roçava sem vida no chão. Ao chegar à porta, percebeu que houvera sido atraído pelo cheiro de comida. Havia uma tigela cheia de leite açucarado e com pedacinhos de pão que fora colocada ali. Gregor
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estava faminto. Então, mergulhou a cabeça no leite até perto dos olhos, mas logo retirou‐a, decepcionado, pois, além da dor que sentia do lado esquerdo, e só conseguisse comer se pusesse todo o corpo em movimento, o leite, que sempre fora sua bebida predileta, motivo pelo qual a irmã o havia colocado ali, agora não lhe apetecia nem um pouco. Quase com repugnância, afastou‐se da tigela e deslocou‐se para o meio do quarto.
Além da transformação corpórea e alteração na voz, agora, Gregor inicia outro processo de animalidade. Aos poucos, também mudava os seus hábitos alimentares. Não lhe interessava o leite açucarado tão à maneira de seu antigo gosto humano, mas tudo aquilo que era recusado ao paladar das pessoas lhe serviria de bom grado.
Do interior da casa, não saía nenhum ruído. Não obstante, o silêncio era total, embora a casa, sem dúvida, não estivesse vazia: “Que vida tranquila minha família tem!, disse para si mesmo e, com os olhos fixos no escuro do quarto, sentiu‐se orgulhoso por ter podido oferecer aos pais e à irmã um vida calma numa bela residência” (KAFKA, 2010, p. 34). A família buscava retomar a normalidade da vida, mas o silêncio da casa é o indício de uma inquietude arraigada e compartilhada entre eles. A mudez é uma espécie de signo do ruído interno bastante incômodo. A comunicação é feita às avessas, na verdade, às escondidas, por meio de um jogo dissimulado de pequenos gestos que Gregor, às vezes, escutava sons de passos próximos à porta de seu quarto, como se estivessem à espreita do lado de fora.
Gregor garantia o conforto e tranquilidade para toda a sua família, indiretamente. Para que essa condição se cumprisse, ele se anulava em um emprego compulsório de caixeiro viajante há cinco anos. Entretanto, o conforto e harmonia da casa estavam ameaçados pela condição de
Gregor. Esse tipo de pensamento amedrontava‐o, condição que expressa uma dificuldade de se libertar da família, aspecto estabelecido por meio dos frutos de seu trabalho. E por aí os seus pensamentos fluíam quando, repetidamente, se apossou dele um sentimento de vergonha que o levou a precipitar‐se para debaixo do sofá, onde se sentiu mais à vontade, apesar do
aperto que não lhe permitia mexer a cabeça e, sobretudo, apesar de seu grande corpo não caber por inteiro naquele espaço. Antes da transformação, pela manhã, momento em que todos puderam vê‐lo, a família tentou, de todas as maneiras, entrar no quarto. Agora, a chave permanecia do lado de fora, indicando o permanente estado de medo:
De manhã, quando a porta estava fechada, todos queriam entrar, mas depois que ele a
abrira, ninguém se manifestara. E, ainda por cima, haviam deixado a chave no lado de fora da fechadura (KAFKA, 2010, p. 34).
O questionamento feito pelo narrador no fragmento
acima, poderia ser explicado: a família manifestou profunda preocupação para com Gregor, enquanto desconheciam a condição animal do filho. Bateram na porta do seu quarto, pois era necessário que ele fosse ao trabalho, caso contrário, o bem estar de todos estaria comprometido. A partir do momento em que Gregor se transformou em inseto, o equilíbrio financeiro doméstico entrou em crise, e, em consequência, ele deixou de ter um significado no lar. Se Gregor não atende mais ao mundo do trabalho, logo ele é rebaixado à condição de coisa, por isso, a chave permanecia do lado de fora da porta, subtraindo‐lhe a chance de reintegrar‐se ao mundo. Gregor, vítima de uma fatalidade que o transformou num inseto monstruoso, aos poucos, vai se tornando vítima da própria família que não sabe lidar com a nova forma de seu filho.
Ninguém tentou compreender o que se passou com Gregor, não encontramos um sentimento de humanidade na família do protagonista, exceto, pelo menos por enquanto, por parte da irmã. Ao que parece, Gregor e a irmã tinham um relação de proximidade, contudo, poderíamos relativizar esse comportamento, haja vista que, ao certo, a irmã desejava de Gregor o pagamento de um curso de música:
A irmã permanecia mais próxima e afetuosa e, como ela, ao contrário de Gregor, era amante da música e sabia tocar violino com muita graça, ele tinha planos de enviá‐la para o Conservatório no ano seguinte, sem importar‐se com os gastos extras que isso acarretaria. Em conversas com a irmã, nos curtos períodos em que ficava sem viajar, sempre mencionava o projeto (que ela considerava lindo, mas impossível de concretizar), enquanto os pais demonstravam não aprovar nem um pouco a ideia (KAFKA, 2010, p. 40).
Sendo assim, até que ponto a preocupação dela
seria originária de sentimentos elevados? Ela não seria outro membro da família a ver Gregor apenas como um mantenedor de ordem pecuniária? Um pouco adiante na narrativa, quando ela ingressa no quarto do irmão notamos o imensurável poder dela: “[...] abriu‐a novamente e entrou devagar, como se aquele aposento abrigasse alguém muito doente ou pertencesse a uma pessoa desconhecida” (KAFKA, 2010, p. 35). Nesse trecho, o próprio narrador deixa transparecer um tom crítico ao comportamento da irmã.
Enquanto todos negligenciavam qualquer auxílio mais concreto, Gregor sofria no abandono do quarto sem luz:
aquele quarto frio e de teto alto, em cujo chão era agora obrigado a permanecer deitado, amedrontou‐o, sem que
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conseguisse descobrir o porquê, uma vez que era, sem pôr nem tirar, o lugar onde dormia havia cinco anos (KAFKA, 2010, p. 34‐35).
Gregor permaneceu durante toda a noite debaixo do
sofá, onde se sentiu mais à vontade, mesmo apossado de um profundo sentimento de vergonha. Não conseguiu dormir com propriedade, entrou numa espécie de transe/delírio:
Ficou ali durante toda a noite, às vezes num sono leve, do qual despertava sobressaltado, outras, acordado, imerso em preocupações e esperanças difusas, mal definidas, mas que sempre o conduziam à conclusão de que devia permanecer sereno e paciente para que a família sofresse, o menos possível, os aborrecimentos relacionados ao seu estado atual (KAFKA, 2010, p. 35).
No outro dia cedo, a irmã de Gregor foi ao aposento
do irmão. No local, percebeu que ele não havia alimentado do leite deixado próximo à porta. Ele sentia grande vontade de sair debaixo do sofá e jogar‐se aos pés da irmã, implorando que lhe trouxesse algo gostoso. Assim, ele fazia mil especulações a respeito do alimento. Nenhuma, contudo, aproximou‐se daquele que a “dedicada” irmã acabou lhe proporcionando. Querendo desvendar o que mais lhe agradava, ela lhe ofereceu uma variedade enorme de alimentos: legumes bem amadurecidos, quase podres; ossos e um resto de molho branco, meio coalhado, sobras do jantar da noite anterior; uvas passas e amêndoas; um pedaço de queijo que Gregor, dois dias antes, não quisera comer, pois julgara rançoso; um pedaço de pão endurecido. A irmã saiu do quarto para que ele tivesse privacidade para comer:
Com uma alegria tamanha, que lhe encheu os olhos de lágrimas, devorou o queijo. Não gostou, porém, dos alimentos frescos, cujo cheiro considerou insuportável, ao ponto de levá‐los para longe da comida que realmente lhe havia agradado (KAFKA, 2010, p. 36).
A profunda metamorfose pela qual Gregor
vivenciava começou a afetar também os seus hábitos alimentares. Como se notou, o gosto pelos alimentos podres atesta o distanciamento do mundo humano, marcado por supostas ações higiênicas. Neste dia, sobraram alguns alimentos, e Gregor observava‐os:
a irmã varre os restos de comida, incluindo os alimentos que nem sequer haviam sido tocados. Como se nada mais daquilo pudesse ser aproveitado, ela colocou tudo num cesto de lixo, fechou‐o com uma tampa de madeira e o levou para fora (KAFKA, 2010, p. 37).
As ações de Grete, aos poucos, deixavam
transparecer o que todos da casa sentiam por Gregor, repúdio e asco. Às vezes, ao entrar no quarto, Grete suspirava e invocava “os nomes de todos os santos” (KAFKA, 2010, p. 36). Dessa maneira, Gregor passou a receber comida todos os dias: uma refeição pela manhã, quando os pais e a empregada ainda dormiam, e outra depois do almoço, quando os pais tiravam uma soneca, e a irmã pretextava algo para obrigar a empregada a sair para a rua. Quem intermediava toda a entrega dos alimentos era a irmã de Gregor. Esta, talvez, tivesse optado por se encarregar sozinha da tarefa, poupando os pais de mais esse sofrimento. Sobre a empregada, no primeiro dia da transformação do protagonista, não se sabia até que ponto ela tinha conhecimento da situação, havia suplicado à mãe que a demitisse e, ao deixar o apartamento, meia hora depois, agradeceu a demissão com lágrimas nos olhos, jurando, sem que ninguém lhe pedisse que não contasse nada a ninguém. Também, nos primeiro dias, o pai revelou a real situação econômica da família e qual perspectiva tinha pela frente. Ainda restava um capital, que, se não era muito, ao menos tinha crescido nos últimos anos por conta dos rendimentos de juros acumulados. Além disso, o dinheiro que Gregor entregava (retinha apenas uma pequena parte) não era gasto integralmente e, pouco a pouco, ampliava o montante economizado. Enquanto o pai explicava a vida financeira da família, Gregor, no quarto, acompanhava a explanação com positiva esperança nas medidas no pai. Antes, o protagonista era a fonte mantenedora de todos, agora, temiam o futuro, pois os recursos não chegavam a casa. Sendo assim, portanto, era necessário fazer algo. Para garantir uma boa condição à família, Gregor:
começou a trabalhar com tal perseverança e dedicação que, em pouco tempo, passou de um reles empregado interno a caixeiro‐viajante, o que lhe ampliou as possibilidades de ganho, uma vez que sua eficiente atuação profissional lhe proporcionava significativas comissões em dinheiro, que colocava sobre a mesa da casa, sob o olhar admirado e jubiloso da família (KAFKA, 2010, p. 39).
A operação de crescimento profissional,
acrescentada à preocupação de ordem financeira, aos poucos, não se pode negar, acabou por modelar a conduta de Gregor que se anulava enquanto sujeito, condição que pode ser a chave, mas não a única, para a compreensão de seu estado animalesco.
Às vezes, após a metamorfose, o incômodo era tão grande que Gregor não conseguia dormir à noite. Assim, empurrava o sofá até a janela e, servindo‐se dele, apoiava‐se no peitoril, lembrando‐se do prazer e do sentimento de liberdade “que experimentava ao ficar observando da janela o movimento da rua” (KAFKA, 2010, p. 41). Agora, contudo, o deleite da contemplação se extinguira, uma vez que aquele
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“cenário ficava cada vez menos claro: o hospital, que sempre detestara por estar bem em frente a seus olhos, já não era mais visível” [...] (KAFKA, 2010, p. 41‐42). A metamorfose também ia se operando na visão desse sujeito, já não conseguia contemplar o cenário da rua de sua casa, condição que lhe trazia prazer. De acordo com Aristóteles, o ser humano consegue obter alegria no processo de contemplação, isto é, para esse filósofo grego, o ato de observar traz ao homem a verdadeira felicidade. Gregor, ao perder a capacidade da contemplação, e o prazer oriundo dela, decai ainda mais em sua condição humana. Sobre a paisagem bloqueada da janela o narrador comenta: “[...] que sua janela dava para um deserto, no qual terra e céu cinzentos se fundiam indistintamente” (KAFKA, 2010, p. 42). A enigmática metamorfose do protagonista incomodava a todos há um mês. Gregor bem sabia que a sua condição física era uma ofensa aos olhos de todos. Por isso, um dia, levou um lençol para o sofá, o trabalho lhe custou quatro horas, e o organizou de forma que o tecido o escondesse por completo. Ele notou na irmã certo olhar de agradecimento pela discrição. A comida não lhe trazia o prazer dos primeiros dias, por isso, Gregor criou um mecanismo para se distrair: subia às paredes e ao teto. Particularmente, gostava mais do teto, ali respirava melhor, sentia uma leve vibração no corpo e, uma vez, entretido e quase feliz, despencou‐se, contudo não se machucou, pois o corpo adquirira certa resistência. A irmã, vendo o contentamento do irmão resolveu, com a ajuda da mãe, retirar todos os móveis do quarto. Contudo, as duas mulheres tiveram concepções divergentes sobre a nova organização do quarto. A irmã ansiava retirar todos os móveis, enquanto a mãe deseja deixar alguns por ali. Por fim, as duas se esforçaram para retirar os móveis, a mãe, contudo não teve força suficiente para promover a nova organização do quarto. Essa articulação do quarto deixava transparecer a falta de esperança familiar na possível recuperação da humanidade de Gregor.
O quarto de um indivíduo carrega a sua marca, isto é, a organização espacial dos lugares está repleta da identidade do sujeito. A alteração do quarto também seria um indício do distanciamento da humanidade do protagonista. Sobre isso ele reflete:
[...] percebeu que a ausência de comunicação humana nos últimos dois meses ‐ aliada à monotonia em que vivia, causara‐lhe uma perturbação no raciocínio, pois de outro modo não conseguiria explicar por que desejava ver o quarto vazio. Será que ele queria, verdadeiramente, que transformassem aquele aposento confortável, repleto de objetos familiares, numa toca onde ele pudesse subir nas paredes sem nenhum impedimento, mas ao mesmo tempo arriscando‐se a perder rápida e completamente seu passado humano? Já estava bem próximo disso, e apenas a voz da mãe, que há muito não ouvia, mexeu com ele. Não, era melhor não alterar nada,
deixar tudo como estava. Os móveis, certamente, produziriam uma benéfica influência, e, embora eles impedissem seu livre movimento, poderiam constituir uma grande vantagem (KAFKA, 2010, p. 46).
Outro indício da transformação de Gregor é a sua
ausência da capacidade de comunicação humana. Ele já não se expressava por meio de palavras, condição que não refletiu em sua maneira de pensar, haja vista que o nosso pensamento é profundamente relacionado ao universo da palavra, isto é, pensamos, principalmente, e não somente, por meio de vocábulos.
Sendo assim, Gregor tornou‐se uma espécie de homem‐inseto, isto é, um ser híbrido, externamente, é um animal e, por dentro, guarda a dimensão da profundidade da alma humana. Deixar de comunicar‐se verbalmente, ter o seu quarto levado à condição de uma toca, inserem Gregor, um pouco mais, em um mundo animal. De acordo com Modesto Carone:
Para o narrador e o herói, porém, a identidade permanece. Isto é: a metamorfose em inseto representa de fato a perda da voz que comunica, a mudança dos gestos alimentares, dos movimentos reativos e da maneira de lidar com o espaço, ou seja: no nível da aparência, ela atesta uma redução ao estágio puramente animal de organização da vida. Mas o relato objetivo comprova que a consciência da metamorfoseado continua sendo humana e inteiramente apta a captar e compreender o que se sucede, no meio ambiente – muito embora, pela mão contrária, ninguém, nesse meio, possa admitir que o inseto seja capaz disso. Dito de outra forma, Gregor está transformado num bicho, mas não deixa nunca de ser Gregor. Ou seja: ele se comporta como um homem que ainda existe, mas que já não pode ser visto como sendo ele mesmo – e nessa medida ele é empurrado para o isolamento e a solidão (para acabar na exclusão). Isso explica que aos poucos a incomunicabilidade se firma como um dos temas centrais da novela. Prova disso é o fato de que a história mobiliza, nos seus três capítulos, um mesmo
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padrão narrativo, que é o das iniciativas inúteis de contato do herói com os membros da família e vice‐versa (CARONE, 2009, p. 137).
Apesar de Gregor repetir para si mesmo que as
mudanças no quarto não ocasionariam nenhuma diferença, pois se tratava apenas da retirada de alguns móveis, não deixou de se incomodar pelo vaivém das mulheres subtraindo‐lhe os móveis. Quando retiraram o armário e a escrivaninha, permaneciam no quarto ao lado, Gregor, afoitamente, subiu até a parede onde havia uma moldura, quadro de uma mulher, cujo contato achou agradável, pois a sua barriga ardia. Essa ação guardaria uma condição erótica? As duas mulheres voltaram subitamente e, por mais que Grete tenha se esforçado para que isso não ocorresse, avistaram aquela imensa mancha escura sobre o papel da parede florido e, antes mesmo de ter certeza de que era Gregor, a mãe gritou: “– Ai meu Deus! Ai, meu Deus! – e desmaiou sobre o sofá, como se todas as suas energias se tivessem esvaído” (KAFKA, 2010, p. 49)
Grete saiu para outra sala a fim de conseguir algo para reanimar a mãe. Gregor, em um profundo ato de desespero, saiu atrás da irmã que não notou a presença do irmão deixando um frasco cair ao chão. O objeto quebrou jogando uma substância corrosiva em Gregor. Grete voltou ao quarto para ajudar a mãe. Enquanto isso, sem saber o que fazer, Gregor, cheio de remorsos e inquietações, começou a rastejar por toda a parte, a subir pelas paredes e móveis e no teto, e, finalmente, tonto de tanto girar, caiu sobre a grande mesa da sala.
Inesperadamente, o pai chegou ao apartamento. Agora, ele era outro homem, rijo e ereto, “ostentando um uniforme azul com botões dourados, como aqueles usados pelos contínuos dos bancos” (KAFKA, 2010, p. 51). O pai viu o estado da filha, adivinhou o que tivera ocorrido em sua casa. Assim, partiu para cima de Gregor o qual correu na frente do pai, parando quando ele parava e reiniciando a fuga quando o pai reiniciava. Assim, deram muitas voltas em torno da sala, sem chegar a lugar nenhum, além do que, em face das longas pausas entre uma parada e outra, aquilo não chegava a ser, de fato, uma perseguição. O pai decidiu bombardear o filho com objetos:
As pequenas maçãs vermelhas rolavam pelo chão como se estivessem eletrizadas, chocando‐se uma com as outras. Uma acertou‐lhe as costas, mas deslizou sem causar grandes danos. Em compensação, a seguinte lhe pegou as costas em cheio, cravando‐se ali; mesmo assim, ele tentou escapar, supondo que uma mudança de lugar poderia atenuar a dor insuportável que sentia. Nesse ponto, pareceu‐lhe estar pregado ao chão, e ficou ali, esticado, perdendo a noção do que acontecia em torno. Com a vista turva, conseguiu ver a porta do quarto se abrir abruptamente [...] (KAFKA, 2010, p. 52).
A mãe, que houvera se recuperado do desmaio,
aproximou‐se do marido, implorando que preservasse a vida do filho. O pai tentou pelo menos duas vezes se livrar da incômoda presença do filho‐inseto, pois Gregor não mais supria as necessidades pragmáticas daquela casa, pelo contrário, como veremos adiante, ele passou a ser um problema para a nova ordem econômica do lar.
Um dado simbólico importante acima é a metáfora contida na imagem da maçã que pode ser compreendida de inúmeras maneiras. Como todo bom texto literário, a produção de Kafka obriga o leitor a relê‐lo, pois apresenta várias hipóteses ambíguas e contraditórias de interpretação. Sendo assim, vamos à imagem da maçã e da ferida nas costas do protagonista. Numa primeira asserção, a ferida que não cicatriza, causada pelo arremesso de uma maçã pelo pai, poderia relacionar‐se a um dado biográfico de Kafka, a conturbada relação familiar com o pai. Assim, o peso da
maçã que carrega nas costas, na ferida que não sara, vincula‐se à difícil relação entre Kafka e o próprio pai. Note‐se que a maçã lançada pegou Gregor nas costas, sugestão de traição, como uma facada nas costas (“a seguinte lhe pegou as
costas em cheio” – idem), elemento que reforça ainda mais a leitura biográfica proposta acima.
Como se percebe, o escritor carregará pelo resto da vida as dores de uma difícil relação com o pai. Outro olhar sobre a o mesmo símbolo, a maçã, que, também, no contexto da obra, como na bíblia, adquire um significado de conscientização. Gregor parece compreender o seu papel de sujeito alienado tanto na esfera profissional como familiar. A maçã tirou o homem do paraíso, de forma análoga, o protagonista perde o seu “porto seguro” da ilusão e do engano.
Cabem aqui, nessa parte do enredo, algumas noções simbólicas sobre a figura do pai, com base em Chevalier e Gheerbrant (2006), que podem nos orientar na compreensão da obra:
[...] é uma figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador, dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém na dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudanças (CHEVALIER e GHEERBRANT,2006, p. 678).
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A força simbólica da figura paterna exposta acima se
vincula diretamente com as ações do pai de Gregor o qual não mede esforços para “proteger” os membros da família da imagem monstruosa do filho.
Gregor Samsa, após ser atingido pela maçã lançada pelo pai e de alguns percalços, conseguiu ver a porta de seu quarto aberta, dirigiu‐se para lá, dolorosamente, amedrontado. Capítulo III A grave ferida de Gregor, que o fez padecer por mais de um mês, ainda guardava a maçã lançada pelo pai, ninguém se atreveu a tirá‐la. Ali permaneceu, constatando como uma lembrança concreta de um acontecido, a castração existencial do pai. As consequências físicas para ele foram permanentes, perdeu o controle total das pernas para sempre. Agora, se comportava como um idoso. A simples atividade de transportar‐se pelo quarto consumia longos minutos. A possibilidade divertida para ele de subir as paredes não era mais possível. Não bastou o isolamento e incomunicabilidade vividos por ele, o projeto de anulação total desse sujeito também era físico. Não seria mais possível locomover‐se no interior de seu quarto. Porém, havia uma compensação levemente satisfatória: no início da noite, a porta da sala de jantar era aberta, ele aproveitava para observar, sem ser visto, toda a família reunida em torno da mesa iluminada, e ouvir as conversas, de certo modo com a aquiescência11 geral. Aqui, notamos um importante contraste entre a coletividade dos membros familiares que vivem à luz da mesa, numa pálida troca de experiências, e Gregor mergulhado na escura solidão do quarto. A rotina da família transformou‐se bastante desde a metamorfose de Gregor, condição que nos prova que a transformação operou‐se não apenas nele, mas em todos. A retirada da base econômica, a literal exploração do filho, provocou inúmeras transformações na dinâmica da residência. Antes, a família vivia, parasitamente, às custas do trabalho de Gregor e de sua alienação no mundo do trabalho, entretanto, agora, ele é, aos olhos de todos na casa, em virtude da metamorfose, apenas um inseto incômodo, uma espécie de monstro. O pai, mesmo velho, teve que assumir um posto de contínuo em um banco. A mãe costurava roupas finas para uma loja, e a irmã, que havia conseguido um emprego, estudava estenografia12 e francês, pois pretendia atingir um posto melhor remunerado. Enquanto todos os membros da família se articulavam em um novo contexto repleto de atividades, Gregor afundava em um profundo vazio existencial, não restava nada a ele a não ser definhar infinitamente no interior do quarto. Agora,
11 Consentimento; ação de consentir, de não impedir, de não colocar obstáculos: a aquiescência de uma solicitação, de um pedido. Concordância; ação de concordar, de permitir: não obteve aquiescência do povo. 12 Taquigrafia ou estenografia é denominação dada a todo método de abreviação ou simbólico de escrita, com o intuito de aprimorar a velocidade da escrita comparada ao método padrão. A diferença das duas denominações é que a taquigrafia é realizada a mão, usando lápis ou caneta enquanto a estenotipia utiliza máquinas destinadas para a produção de taquigramas, ou seja, de símbolos que fornecem abreviaturas para as palavras e frases comuns. O que possibilita que uma pessoa treinada no sistema escreva de maneira muito veloz, sendo capaz de acompanhar as falas de um discurso.
poucas coisas pareciam fazer sentido para ele. O termo vazio existencial poderia ser visto como uma forma de niilismo existencial, que na acepção de André Cancian, no livro O vazio da máquina – Niilismo e outros abismos, consiste em:
O niilismo existencial se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso basta possuir algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o esvaziamento da existência é a mera consequência de entendermos o que ela é em si mesma. Não precisamos degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de sentido; para chegarmos a essa conclusão basta usar os olhos e um pouco de senso crítico (CANCIAN, 2009, p.17).
Se a vida carece de sentido na modernidade, a de Gregor, aos poucos, tornava‐se a representação do nada, condição, imperativamente, erguida pela mãe, irmã e, sobretudo, pelo pai. O protagonista vivia imerso no total abandono em seu quarto escuro. Ele era tratado como se não existisse mais nenhum vestígio do seu eu na sua nova forma. Assim, Gregor deixava de ser reconhecido como pertencente àquela família. Dessa maneira, portanto, ele deveria ser exilado do mundo em seu próprio quarto. O diferente não pode viver junto da sociedade, por isso deve ser excluído, isolado de todos. O envolvimento profissional dos membros da família no mundo do trabalho subtraiu deles um dos aspectos mais importantes da vida: o tempo ocioso. Além disso, a fim de restabelecer a economia doméstica, viram sucessivas perdas de ordem pragmática: a empregada é despedida, as joias são vendidas e, por fim, um dos quartos é alugado a três inquilinos, obrigando Grete a dormir na sala. Como se nota, a transformação de Gregor implica a transformação de todos os outros que vivem na casa. Com uma espécie de peculiar teimosia, o pai se recusava tirar o uniforme de contínuo. Mesmo quando estava em casa, ele dormia uniformizado, aspecto que talvez pudesse sugerir que, na casa, há um novo homem pronto para servir a todos, elemento bem à maneira de Gregor, no passado. As mulheres da casa viviam incomodadas com a manifestação profissional do pai. Gregor passava “horas da noite observando‐o naquele traje cheio de manchas, mas com botões dourados sempre brilhantes, com o qual o pai dormia desconfortável, mas tranquilo” (KAFKA, 2010, p. 58). As despesas da casa tiveram que ser reduzidas drasticamente: a empregada foi demitida e substituída por uma faxineira que trabalhava na casa no início da manhã e no final da tarde, enquanto a mãe cuidava de todo o resto. Foram obrigados a vender algumas joias e cogitava‐se a possibilidade de deixar o apartamento onde moravam, pois o consideravam grande demais para as condições atuais, porém não sabiam o que fazer para remover Gregor que percebeu ser um entrave para a mudança. As forças da família chegavam ao fim, todos estavam envolvidos demais em inúmeras atividades diárias. Certa noite, a mãe, que, às vezes, demonstrava relativa compaixão
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
para com o filho disse à filha: “Grete, feche aquela porta” (KAFKA, 2010, p. 60). Assim, Gregor se via mergulhado na imensa escuridão solitária do quarto. A insólita situação do protagonista começava a apresentar uma parcela de angústia, condição eminentemente humana:
Dias e noites passavam sem que Gregor conseguisse dormir direito. Por vezes, pensava que iria abrir a porta do quarto e encarregar‐se das questões da família, como antes. Em sua mente, retornavam as figuras do chefe e do gerente, dos funcionários internos e dos aprendizes, daquele idiota do contínuo, de dois ou três conhecidos de outras firmas, de uma camareira [...] Essas pessoas apareciam em seu pensamento misturadas a outras, estranhas e já há muito tempo esquecidas; mas como nenhuma delas pudesse prestar qualquer ajuda, nem a ele nem à sua família, sentiu‐se aliviado quando finalmente conseguiu apagar aquelas recordações (KAFKA, 2010, p. 60).
Embora tivesse perdido a capacidade comunicativa,
Gregor ainda possuía a memória, condição que lhe confere um status humano. Ele ainda conseguia realizar reflexões sobre a sua condição de inseto. É um homem pelo pensamento e um animal pelo corpo físico e pela ausência da fala. A metamorfose levou Gregor à morte física e à morte da linguagem, mas não à morte do pensamento e da memória humana.
A nova condição de Gregor Samsa libertou‐o do emprego, mas, principalmente, fez com que ele saísse da condição de mantenedor da família, cumprindo um papel simbólico de pai que trabalhava para manter a todos. O papel de filho com a metamorfose também lhe é negado, mesmo a tentativa de ocupação de seu espaço, o quarto, lhe é subtraída. Se antes, ele era visto como o arrimo da família, aquele que lhes garantia o sustento e a ordem doméstica, a partir da metamorfose, ele passa a ser visto como um monstro desertor de suas obrigações. Toda uma carga de culpa lhe é jogada nas costas, literalmente, quando o pai atira várias maçãs para expulsá‐lo da sala. Por que Gregor teve que carregar toda a família nas costas após a falência do pai? Qual crime ele cometeu? Por que precisou ser punido? Quem prescreveu tão cruel sentença contra o rapaz? Não encontraremos respostas para nenhum desses questionamentos. Em certos momentos, nos perguntamos por que esse sujeito pelo menos não questionou os motivos que o levaram àquela condição? Na verdade, não há mais sujeito (ser). Esse homem animalizado sucumbe à espera da própria morte, a vida e o mundo deixaram de ter sentido. Com isso, diante desta visão absurda do ser humano, não resta salvação, nenhuma esperança resta a esse “homem”. Como se nota, Kafka apresenta uma visão bastante trágica do mundo, isto é, uma "concepção do mundo como lugar da aniquilação absoluta, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente, de forças e
valores que necessariamente se contrapõem" (LESKY, 1990, p. 30).
O interessante da obra de Kafka, conforme Anders (2007, p. 22), é que, aos poucos, vai sendo despojada de espanto. Na narrativa A metamorfose, como em outros textos do escritor, os personagens se veem mergulhados em sucessivas situações absurdas das quais não conseguem se desvencilhar. Essas situações traduzem a realidade insólita de Gregor Samsa. Temos, portanto, nessa novela, a famigerada situação kafkiana.
Gregor estava bastante desanimado com a negligência da família, e, às vezes, passou sentir irritação para com todos. A irmã não se preocupava mais em satisfazer os impulsos alimentares dele:
antes de sair para o trabalho e ao meio‐dia, quando vinha almoçar, ela apenas empurrava com o pé, e às pressas, uma comida qualquer para dentro do quarto e, depois, ao retornar, nem reparava se ele havia comido ou – como ocorria mais frequentemente – nem sequer havia tocado na tigela (KAFKA, 2010, p. 61).
Se antes, ela tentou agradar o irmão, agora, aos poucos, expressava o seu verdadeiro sentimento para com ele. A limpeza do quarto também estava comprometida, havia manchas de sujeira pelas paredes:
buscando chamar a atenção da irmã, Gregor se colocava justamente nos pontos onde a sujeira era mais flagrante, mas logo percebeu que podia permanecer ali durante várias semanas sem que Grete se importasse – pois, afinal, ela podia ver a imundice tão bem quanto ele, mas estava decidida a não perder tempo como isso (KAFKA, 2010, p. 61).
Embora os cuidados com o irmão tivessem bem
reduzidos, Grete ainda não permitia que ninguém limpasse o quarto a não ser ela. Assim, curiosamente, o espaço fechado do quarto, pouco‐a‐pouco, perde a noção de espaço íntimo do sujeito e adquire o sentido de uma cela que não pode mais ser aberta por quem o habita. A indiferença da família acaba revelando a incapacidade de lidar com um signo estranho. O único elemento de sentido deste novo ser que habita o quarto é o aspecto repulsivo, por isso, a reiterada necessidade de manter Gregor isolado.
A empregada da família abria sempre a porta do quarto de Gregor a fim de incomodá‐lo um pouco, é verdade, que ela o chamava por meio de palavras que, por certo, julgava carinhosa como: “vem cá, porqueirinha!” ou “vejam só o porqueirinha!” (KAFKA, 2010, p. 62). Essa empregada não tinha o compromisso de limpar o quarto dele, contudo gostava de ver as reações do inseto gigante diante da sua presença.
O homem‐inseto quase não comia, às vezes, permanecia com um alimento horas na boca para depois
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cuspi‐lo. Nos últimos dias, viu o seu quarto novamente cheio de móveis e objetos, a família, a fim de trazer recursos financeiros para casa, havia alugado um dos quartos para três inquilinos:
Eram três senhores muito circunspectos – os três usavam barba, como Gregor verificou, numa ocasião, pelo vão da porta – e gostavam de tudo na mais completa ordem [...] haviam trazido grande parte de seus móveis próprios, o que tornava sem uso alguns pertences da família. [...] A empregada atirava no quarto dele ‐ sempre da maneira mais apressada – aquilo que não tinha utilidade no momento, de tal forma que, apenas por sorte, Gregor conseguia desviar‐se da trajetória dos objetos (KAFKA, 2010, p. 63).
Viver em uma sociedade em que tudo é medido por
um valor de troca (uso) constrói uma noção pragmática para tudo, assim todas as coisas que nos cercam guardam um valor objetivo, estrutura que moldou a nossa maneira de dar significado à realidade. Essa organização do mundo, imperativamente, nos faz estabelecer eixos paradigmáticos a fim de demarcar fronteiras entre o falso e o verdadeiro, o útil e o inútil, o certo e o errado, entre tantos outros valores forjados pela noção de troca. Foucault, em seu livro intitulado As palavras e as coisas, debruça‐se sobre as relações de representação e nos leva a compreender que o valor é “um atributo acidental e que depende unicamente das necessidades do homem como o efeito depende de sua causa” (FOUCAULT, 1992, p. 65). Portanto, de acordo com Foucault, o valor dado a tudo que está ao nosso redor depende das necessidades do próprio homem. É num contexto utilitarista que Gregor vive, e é esse mesmo contexto que, paulatinamente, propõe excluí‐lo ao ponto de misturar‐se a objetos velhos e mesmo ter que desviar‐se deles ao serem lançados no quarto. Enquanto isso, ele se sentia “imóvel, cansado e melancólico durante horas” (KAFKA, 2010, p. 64), pois bem entendia a indiferença de sua família.
A sala do apartamento de uso comum da família passou a servir aos inquilinos de refeitório. Às vezes, a porta da sala era esquecida aberta pela empregada e Gregor podia contemplar os homens comendo: “‐ Mas eu também tenho apetite, sim – murmurou Gregor para si, muito preocupado. – Só que essas coisas não me agradam... Como esses inquilinos comem! E eu aqui morrendo” (KAFKA, 2010, p. 65). Numa noite, a irmã resolveu tocar, na cozinha, o violino que chamou a atenção dos inquilinos que logo a chamaram para a sala a fim de vibrar as cordas do instrumento. Muito calma, a irmã começou a executar uma música:
Atraído pela melodia, Gregor atreveu‐se a avançar e enfiou a cabeça um pouco para fora do quarto. Nem se surpreendeu por ter
feito isso, pois vinha se importando cada vez menos com os demais; a consideração, que antes lhe era motivo de orgulho, quase não existia mais. Agora, contudo, mais do que nunca, deveria sentir necessidade de esconder‐se, pois, em razão da sujeira que se encontrava no quarto, qualquer movimento que fazia levantava ondas de poeira, e ele próprio estava coberto de pó e arrastava [...] E, apesar do estado em que se encontrava, não teve vergonha de invadir o espaço imaculado da sala. O fato foi que ninguém reparou na presença dele. [...] Gregor avançou um pouco mais e manteve a cabeça bem próxima do chão, tentando fazer os olhos da irmã se encontrarem com os seus. Se a música o envolvia tanto, seria ele um bicho? [...] Estava decidido a aproximar‐se dela, puxá‐la pela saia e fazê‐la, assim, compreender que devia ir para seu quarto, pois somente ele poderia valorizar aquela música (KAFKA, 2010, p. 66‐67).
A música ecoada do violino fez renascer, dentro de
Gregor, a sua humanidade já quase esquecida. O protagonista viu‐se envolvido em um momento de profundo prazer estético. A arte pode provocar no homem inspirações diversas. O sentimento de prazer, quando interrompido, nos leva de volta à realidade limitada e opressora, sobretudo, no caso de Gregor, que parece fugir das suas angústias existenciais. A música o liberta da náusea, de seu mundo de sombra, pois, enquanto ouve a irmã com o violino em mãos, habita outro universo: o irreal que é muito mais autêntico e verdadeiro. A beleza artística, por ser uma experiência desinteressada, é oriunda de uma faculdade subjetiva. Cabem aqui as palavras de Deleuze sobre o belo: “[...] o prazer estético é tão independente do interesse especulativo como do interesse prático e define‐se a si próprio como inteiramente desinteressado” (1963, p. 54). Ocorre um desinteresse da realidade pragmática quando estamos diante do prazer estético, por isso, Gregor se desprende de sua rotina. Para Chevalier e Gheerbrant:
Em todas as civilizações, os atos mais intensos da vida social ou pessoal são decompostos em manifestações, nas quais a música desempenha um papel mediador para alagar as comunicações até os limites do divino. Platão distingue formas musicais apropriadas às diversas funções do homem na cidade (2006, p. 627).
A fruição estética e a própria existência da música é
uma condição eminentemente relacionada ao mundo do homem. Com isso, portanto, Gregor, visto o fascínio da
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
música sobre ele, apresenta um forte teor de humanidade13, embora seja, sistematicamente, anulado enquanto sujeito em sua casa.
Enquanto Gregor contemplava a irmã com o violino, um dos inquilinos notou a presença do homem‐inseto que se movia lentamente. O instrumento, subitamente, emudeceu. Os homens não se assustaram, pelo contrário, se divertiram mais com a estranha figura do que com as melodias do violino. O pai procurou levar os inquilinos para o seu aposento. Houve um principio de confusão.
Obstinado no que fazia, esquecendo o mais básico respeito que devia a eles, o pai procurava empurrá‐los para o quarto. Por fim, o que parecia ser o mais representativo deles disse:
– Afirmo categoricamente – ergueu a mão, procurando com o olhar também a mãe e a irmã ‐ que neste instante, em face das repugnantes condições desta casa e desta família – e nisso cuspiu com força no chão ‐, a locação do meu quarto está encerrada. Obviamente não pagarei coisa alguma pelos dias que morei aqui; muito ao contrário, ainda vou pensar se não devo apresentar uma reclamação legal contra o senhor, pois me causou muitos danos (KAFKA, 2010, p. 68‐69).
Os outros dois inquilinos também manifestaram a
vontade de se retirarem da casa. Gregor permaneceu o tempo todo no mesmo lugar onde havia surpreendido os inquilinos; a fraqueza causada pela fome excessiva impossibilitava‐o de realizar o menor movimento. O incômodo na casa tornou‐se insuportável. Assim, Grete resolveu falar:
– Queridos pais – disse a irmã, e, como preâmbulo, bateu com a mão na mesa ‐, isso não pode continuar assim. Caso não estejam entendendo, eu estou. Diante desse monstro, não vou pronunciar o nome do meu irmão. E tem mais: precisamos nos livrar dele. Tentamos o humanamente possível para cuidar dele, e creio que ninguém pode nos censurar por nada (KAFKA, 2010, p. 69).
Perceba a adjetivação de Grete ao referir‐se ao irmão como “monstro”. Nesse caso, podemos notar a total incapacidade de lidar com uma situação atípica dentro da
13 O próprio narrador lança mão de um interessante questionamento sobre essa condição de Gregor: “Se a música o envolvia tanto, seria ele um bicho?” (KAFKA, 2010, p. 66-67).
casa. Sendo assim, para nos ajudar na compreensão do texto de Kafka, recorremos a Chevalier e Gheerbrant acerca do conceito de monstro:
O monstro surge também da simbologia dos ritos de passagem: ele devora o homem velho para que nasça o homem novo. O mundo que ele guarda e ao qual introduz não é o mundo exterior dos tesouros fabulosos, mas o mundo interior do espírito, ao qual não se tem acesso a não ser por meio de uma transformação interior. [...] O que foi considerado, por exemplo, como monstruosidades das revoluções toma sentido todo especial à luz dessa interpretação: significa que a revolução quer ir até uma transformação radical do homem, para torná‐lo apto a viver dentro de um mundo novo. Morra o homem velho, viva o homem novo; essa fórmula poderia resumir a simbologia do monstro (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 615).
Já que estávamos tratando de um mundo de papel ao qual o fantástico é possível, podemos levantar alguma hipótese sobre o caso de Gregor, com base na citação feita acima, sobre a simbologia associada ao monstro. A figura do monstro carrega a semântica da transformação, rito de passagem. Sendo assim, o protagonista poderia estar passando por uma profunda transformação, a fim de viver “dentro de um mundo novo” (idem). Contudo, a resistência da família é tamanha ao ponto de interromper o nascimento de um novo homem. Portanto, é preciso livrar‐se dele, de acordo com Grete com a concordância do pai: “‐ Está inteiramente certa – disse o pai consigo mesmo” (KAFKA, 2010, p. 69), enquanto a mãe sentia falta de ar. Categoricamente, para que não haja dúvida, Grete repetiu:
– Precisamos nos livrar daquilo – disse a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe, com sua tosse, não ouvia mais nada ‐, ele vai acabar matando vocês dois, é o que acontecerá. Quem tem de trabalhar duro como nós não é capaz de suportar em casa esse eterno tormento (KAFKA, 2010, p. 70).
Curiosamente, Gregor, por cinco anos, trabalhou incansavelmente para pagar uma dívida herdada do pai e ainda dar qualidade de vida a família sem se queixar. Com mais ênfase ainda, Grete gritou para todos ouvirem:
– Ele tem que ir embora! – gritou a irmã. – É o único jeito, pai. O senhor precisa desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante tanto tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito teria percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele. E teria partido por conta
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
própria. Perderíamos o irmão, mas poderíamos continuar vivendo com o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre (KAFKA, 2010, p. 70‐71).
Quem seria o verdadeiro Gregor? Seria o filho
exemplar? Ou seria o pai simbólico da casa que se anulou em prol de todos? Seria mais fácil expulsá‐lo, ou mesmo matá‐lo, a que tentar compreender as motivações da metamorfose. Diferentemente dos heróis aventureiros cuja existência se apresenta como um horizonte aberto, Gregor vive reduzido ao seu quarto fechado, condição crescente até a sua anulação total por meio da morte. Estamos diante do realismo brutal de Franz Kafka: Gregor é apenas uma vaga memória no interior daquela casa; é a barata que, portanto precisa ser aniquilada. O escritor, certa vez, disse algo relevante sobre a sua escrita:
Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós (KAFKA, 2010, p. 82).
As impressões, curiosamente, da leitura da novela A
metamorfose, aproximam‐se perfeitamente daquilo que Kafka descreve acima. A força arrebatadora desse texto nos convida a profundas reflexões sobre a falta de sentido da existência humana na Modernidade. Gregor iniciou, após ser visto pelos inquilinos, com muita dificuldade, como um inválido de guerra, o caminho de volta para o seu quarto. Às vezes, parava para descansar, não era possível conter a respiração ofegante. Dessa vez, ninguém o pressionava, era deixado por conta própria. A fraqueza tamanha era que achou a distância muito grande até o quarto:
Somente quando chegou à porta virou‐se a cabeça – apenas um pouco, pois sentia o pescoço enrijecido – e pôde observar que nada havia mudado, a não ser pela irmã, que agora estava em pé. Lançou, então, um último olhar à mãe, que tinha acabado de adormecer (KAFKA, 2010, p. 72).
Ele rastejava como um morto‐vivo. A fome e as violências físicas roubaram‐lhe todas as suas forças. Restava lançar à família um olhar de despedida. Mal entrou no quarto e a porta foi bruscamente fechada e trancada. Gregor assustou‐se de tal modo com o barulho da porta que suas perninhas dobraram. “E agora?”, questionou‐se Gregor. Olhou a escuridão do quarto e notou que não podia mais se mexer, contudo, não se surpreendeu:
pois caminhar com aquelas perninhas lhe parecia, agora, pouco natural. Sentia‐se também relativamente confortável. É verdade que o corpo doía, mas teve a impressão de que pouco a pouco as dores iriam atenuar‐se e acabariam por desaparecer. Nas costas, a maçã podre encravada e a inflamação ao redor, coberta de pó, praticamente não mais o incomodavam. Pensava com carinho e emoção na sua família. Tanto quanto possível, pensava, ainda mais firmemente do que a irmã, que era necessário ir embora. E, assim, nesse estado de meditação e insensibilidade, permaneceu até o relógio da torre da igreja bater três horas da madrugada. Olhando pela janela, ainda pôde contemplar o raiar do dia que despontava. Depois, embora ele relutasse, a cabeça tombou por completo e a boca emitiu um último suspiro (KAFKA, 2010, p. 72‐73).
Para alguns estudiosos, Gregor morreu não porque
se tornou uma barata, mas porque perdeu a capacidade de comunicação com os integrantes da sua família. Essa
informação não é de toda errônea, contudo, no caso do protagonista, o que mais exerceu influência sobre a sua morte foi algo mais do que a falta de comunicação com a sua família. Na verdade, um repertório do mal levou Gregor à morte, isto é, o jogo de interesse da irmã, as violências físicas do pai, o não envolvimento da mãe. Tudo isso, levou‐o a desejar a própria morte, vontade de
deixar‐de‐ser, condição construída a partir do momento em que deixou de se alimentar, falar e, sobretudo, pensar. No final da novela, subentende‐se que, enquanto houver pensamento, há esperança de salvação do sujeito, há vida, logo, pode‐se tirar tudo do homem, menos a sua capacidade de pensar. Mesmo no ato da morte, Gregor ainda conseguiu pensar com “carinho e emoção em sua família” (idem).
A faxineira, no outro dia cedo, dirigiu‐se ao quarto de Gregor e, a princípio, não notou nada de especial. Ela pensou que ele estivesse se fazendo imóvel, pois estava ofendido com algo. Assim, resolveu fazer cócegas nele com a vassoura, contudo não obteve respostas. Dessa maneira, passou a cutucá‐lo, sem encontrar nenhuma resistência. Logo compreendeu as condições de Gregor. Por fim, ela abriu a porta do quarto dos pais e gritou: “‐ Ei, venham ver, ele bateu as botas, está lá esticado! Ele bateu as botas”
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
(KAFKA, 2010, p. 73). Todos foram ao quarto, lá, a faxineira empurrou o cadáver com a vassoura a fim de comprovar a veracidade da sua informação. O pai disse: “‐ Bem ‐ disse o senhor Samsa ‐, agora podemos agradecer a Deus” (KAFKA, 2010, p. 74). Grete, sem desviar os olhos do irmão, disse: “‐ Como ele estava magro! É verdade que ultimamente não comia nada. A comida voltava do jeito que ia” (KAFKA, 2010, p.74). Sobre a condição do corpo de Gregor, o narrador comentou: “Verdade, o corpo de Gregor estava ressequido; somente agora percebiam por que já não mais se sustentava nas perninhas, e o olhavam atentamente” (KAFKA, 2010, p. 74).
O antropólogo francês René Girard refere‐se à noção de “vítima expiatória” que para nós seria o mesmo que bode expiatório, que significa “pessoa ou coisa a que(m) se imputam ódios, revezes, frustações, desgraças” (1990, p. 85). Segundo o francês, uma unanimidade coletiva e violenta se volta contra um indivíduo, ou grupo de indivíduo, como meio de instaurar a ordem. Essa hostilidade da maioria contra um sujeito, a vítima expiatória, exerce o papel de purificador. A extinção da vítima é celebrada e tomada como exemplo sempre que a coletividade necessite de restabelecer a ordem. Segundo Girard, a repetição dessa conduta possibilitou a constituição da cultura e humanidade. As noções do antropólogo francês podem ser utilizadas no texto de Kafka, uma vez que, a família irá responsabilizar Gregor pelos males que povoavam aquela casa, portanto, deve ser exterminado como um bode expiatório. A morte do protagonista, como veremos adiante, apazigua a tensão, restaura a ordem e faz com que todos reflitam sobre o futuro.
Os inquilinos acordaram dispostos a tomar café, contudo nada estava sobre a mesa. A faxineira, como para justificar espécie de negligência, levou‐os ao quarto de Gregor: “Eles avançaram para o quarto, agora já banhado de claridade, e ficaram parados em volta do cadáver, com as mãos enfiadas nos bolsos dos casacos um tanto puídos” (KAFKA, 2010, p. 74). Não houve por parte de nenhum membro da casa algum tipo de dor ou sofrimento para com a morte de Gregor, pelo contrário, a sensação de alívio parece mergulhá‐los numa espécie de alegria “contida”.
Inesperadamente, o senhor Samsa ordenou que todos os inquilinos abandonassem a casa. Não queria a presença daquele que, na noite anterior, tinham trazido tantos transtornos à família que resolveu
descansar e passear: não apenas mereciam uma folga no trabalho, como dela necessitava imensamente. Por isso, sentaram‐se à mesa e escreveram três cartas: o senhor Samsa justificando‐se ao seu chefe no banco; a senhora Samsa ao dono da loja e Grete o seu patrão (KAFKA, 2010, p. 76).
A empregada, cinicamente, disse à senhora Samsa, pessoa a quem a faxineira mais respeitava naquela casa: “Pois bem – começou a responder, mas um risinho não a deixava prosseguir ‐, é que a senhora não precisa se
preocupar mais com aquela coisa aí ao lado. Já está tudo arrumado” (KAFKA, 2010, p. 76). O grau de maldade contido na fala da empregada relacionado à condição de Gregor, por incrível que pareça, é a concretização verbal dos sentimentos de todos. A família ficou incomodada com a fala da faxineira, não porque sofria pela morte, mas porque referir‐se ao Gregor seria o mesmo que trazer o problema à tona, por isso, o narrador comenta a inserção da empregada com sua fala: “[...] a empregada parecia ter perturbado a tranquilidade que há tão pouco tempo haviam recuperado” (KAFKA, 2010, p. 77). Em seguida, a família de Gregor pegou um bonde com destino aos arredores da cidade. Sentiam‐se satisfeitos e
contemplaram a luz e sentiam o calor dos raios de sol que invadiam o bonde completamente. Recostados gostosamente em seus assentos, trocaram ideias sobre o futuro e percebiam que, bem pesadas as coisas, as perspectivas não eram ruins, pois seus três empregos – sobre os quais praticamente não haviam conversado – eram bons e auspiciosos (KAFKA, 2010, p. 77).
Em suas reflexões não passou, em nenhum
momento, a imagem do filho morto, pareciam ter esquecido por completo a figura de Gregor.
Pensaram em mudar de casa, queriam um apartamento menor, de aluguel mais barato, mas bem situado e, sobretudo mais prático do que o atual. Cogitou‐se também que já estava na hora de Grete se casar, isto é, precisava arrumar um bom marido para ela: “E quando a filha, ao final da viagem, levantou‐se e esticou preguiçosamente o corpo jovem, tudo pareceu confirmar seus novos sonhos e intenções” (KAFKA, 2010, p. 78). No final da novela, vemos que o conceito de bode expiatório se aplica com certa precisão ao livro, pois, com a morte de Gregor, o bem estar da família é quase automático, chegando ao ponto de fazê‐los planejar o futuro. Alegoria
Feito esse grande percurso ao longo dessa obra tão emblemática de Franz Kafka, que tanto nos causa desconforto e estranhamento, ainda nós nos perguntamos: o que seria a metamorfose? Ler Kafka é como caminhar sobre um território movediço em que cada passo deve ser ponderado a fim de não perdemos por completo o sentido do nosso deslocamento. Sendo assim, de maneira objetiva, tentaremos levantar algumas possibilidades de resposta para essa pergunta, embora, seja inerente a um grande escritor, a multiplicidade de leituras que o texto possa permitir.
A metamorfose poderia indicar um relativo desejo
de mudança de postura de vida. A condição mecânica de caixeiro‐viajante estava exaurindo Gregor por completo. Neste caso, seria necessário o deslocamento dos trilhos da rotina. Porém, a família não permitiu que a transformação
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
seguisse adiante, trazendo‐o para um sistema mais absurdo do que o próprio trabalho. Não há nenhuma fala de Gregor que permita afirmarmos categoricamente essa leitura, na verdade, as suas ações, ou a anulação completa delas, poderia sugerir essa leitura. De outro lado, os membros familiares também passaram por uma profunda metamorfose. Antes, eles eram dependentes, prostrados, doentes, e, após a metamorfose de Gregor, tornaram‐se ativos, independentes e saudáveis. Tudo isso, nos permitiria inferir que o protagonista impedia a independência da família. Assim, olhando‐o por esse viés, Gregor deixaria de ser a vítima inocente adquirindo um status de vilão. Com isso, a metamorfose seria uma possibilidade de reequilíbrio de uma condição de dependência, espécie de redenção de algo que necessitava ser restabelecida a fim de que todos pudessem se tornar seres mais autônomos. A metamorfose de Gregor seria um catalizador para o desabrochar de uma nova forma existencial da família.
Outra possibilidade de compreensão da obra seria olharmos a metamorfose como uma metáfora do isolamento humano, alegoria das condições que nos levam à solidão absoluta. A transformação de Gregor, poderia ser compreendida como a materialização das mais íntimas angústias que nos cercam, levando‐nos à anulação total da nossa individualidade. Em outra possibilidade interpretativa, a metamorfose de Gregor Samsa seria a representação da condição alienante do sujeito moderno. Tornado coisa, o homem aceita‐se com naturalidade, por isso, talvez, Gregor não procurou compreender o que poderia tê‐lo levado à condição de inseto. Com isso, Kafka denuncia o processo de aviltamento do ser humano em sua rotina alienante. Logo,a transformação do protagonista seria a materialização da terrível condição que ele já vivia como humano, subjugado por diversas instituições como, por exemplo, a família e o trabalho. Kafka viveu num momento que antecedeu à Primeira Guerra Mundial. Num contexto de conflitos como esse, o ser humano sente‐se absurdamente pequeno. O escritor não ficou impassível a todo esse movimento de guerra e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos desse conflito e a consequente desumanização do sujeito se encontra principalmente nas páginas de sua novela animalista. Sendo assim, a incapacidade de falar da opressão da família, das injustiças sociais, dos aviltamentos físicos e morais, das atrocidades da guerra, do matar e morrer em massa e da zoomorfização do homem nos campos de batalha podem ser representadas pelos sons incompreensíveis que Gregor produz ao tentar comunicar‐se com o gerente. Personagens: 1) Gregor: personagem que se transforma em um ser
repugnante ao longo do enredo. Trabalhou de maneira
bastante alienada para sanar uma dívida proveniente de
seu pai. Uma das marcas mais características desse
sujeito é a alienação pode ser a representação do sujeito
moderno.
2) Pai: essa figura é altamente opressora. É um dos
personagens mais intolerantes para com o Gregor.
Costuma‐se associá‐lo à própria figura do pai de Kafka.
3) Mãe: mulher asmática que se camuflou atrás de uma
espécie de medo da imagem do filho‐inseto.
4) Grete: irmã de Gregor. Ao certo, tinha um sonho de
entrar para a escola de música. No início da novela,
apresentou uma suposta disposição para cuidar do
irmão, contudo, com o tempo, revelou a sua verdadeira
essência.
5) Gerente: esse sujeito apareceu apenas no início da
novela. Vemos a representação da exploração do
homem pelo homem.
6) Inquilinos: personagens indiferentes ao sofrimento da
família e de Gregor. No final da novela, foram expulsos
do apartamento.
REFERÊNCIAS: ADORNO, Theodor W., Prismas – crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida São Paulo: Editora Ática, 1998. ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Aos autos do processo. São Paulo: Perspectiva, 1969. CANCIAN, André. O vazio da máquina ‐ Niilismo e outros abismos. 2ed. São Paulo: Ateus.net, 2009. CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, 2006. DELEUZE, G. A filosofia crítica de Kant, Edições 70, Lisboa, 1963. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. GIRARD, René. A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo, Universidade Estadual Paulista. KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Lourival Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, 2010.
TURMA: 1º ano Literatura – Landim
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