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Os Maias Eça de Queirós BD Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA

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Os MaiasEça de Queirós

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Os Maias

EPISÓDIOS DA VIDA ROMÂNTICA

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A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outonode 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco dePaula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Rama-lhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome devivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes seve-ras, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiroandar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beirado telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica quecompetia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: comuma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégiode Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto de um revesti-mento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico doEscudo de Armas, que nunca chegara a ser colocado, e represen-tando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se dis-tinguiam letras e números de uma data.

Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teiasde aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tonsde ruína. Em 1858, Monsenhor Buccarini, Núncio de Sua Santi-dade, visitara-o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzidopela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro: eo interior do casarão agradara-lhe também, com a sua disposiçãoapalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescosonde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidi-nhos. Mas Monsenhor, com os seus hábitos de rico prelado romano,

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Capítulo I

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necessitava na sua vivenda os arvoredos e as águas de um jardimde luxo e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo de um terraço detijolo, um pobre quintal inculto, abandonado às ervas bravas, comum cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque entu-lhado, e uma estátua de mármore (onde Monsenhor reconheceulogo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidadedas ramagens silvestres. Além disso, a renda que pediu o velhoVilaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor,que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Igreja nos tempos deLeão X. Vilaça respondeu — que também a nobreza não estava nostempos do senhor D. João V. E o Ramalhete continuou desabitado.

Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Júnior, agora, pormorte de seu pai, administrador dos Maias) só veio a servir, nos finsde 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientesdo palacete de família em Benfica, morada quase histórica, que,depois de andar anos em praça, fora então comprada por um comen-dador brasileiro. Nessa ocasião vendera-se outra propriedade dosMaias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda selembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração eles viviamretirados na sua quinta de Santa Olávia, nas margens do Douro,tinham perguntado a Vilaça se essa gente estava atrapalhada.

— Ainda têm um pedaço de pão — disse Vilaça sorrindo — e amanteiga para lhe barrar por cima.

Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouconumerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas — e agora reduzidaa dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quaseum antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos que estu-dava medicina em Coimbra. Quando Afonso se retirara definitiva-mente para Santa Olávia, o rendimento da casa excedia já cinquentamil cruzados: mas desde então tinham-se acumulado as economiasde vinte anos de aldeia; viera também a herança de um últimoparente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Nápoles, sóocupando-se de numismática: — e o procurador podia certamentesorrir com segurança quando falava dos Maias e da sua fatia de pão.

A venda da Tojeira fora realmente aconselhada por Vilaça: masnunca ele aprovara que Afonso se desfizesse de Benfica — só pelarazão de aqueles muros terem visto tantos desgostos domésticos.Isso, como dizia Vilaça, acontecia a todos os muros. O resultado eraque os Maias, o Ramalhete inabitável, não possuíam agora uma

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casa em Lisboa; e se Afonso naquela idade amava o sossego deSanta Olávia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava asférias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, irsepultar-se nos penhascos do Douro. E com efeito, meses antes deele deixar Coimbra, Afonso assombrou Vilaça anunciando-lhe quedecidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compôs logo umrelatório a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior eranecessitar tantas obras e tantas despesas; depois, a falta de umjardim devia ser muito sensível a quem saía dos arvoredos deSanta Olávia; e por fim aludia mesmo a uma lenda, segundo a qualeram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que(acrescentava ele numa frase meditada) até me envergonho demencionar tais frioleiras neste século de Voltaire, Guizot e outrosfilósofos liberais...»

Afonso riu muito da frase, e respondeu que aquelas razõeseram excelentes — mas ele desejava habitar sob tectos tradicional-mente seus; se eram necessárias obras, que se fizessem e larga-mente; e enquanto a lendas e agouros, bastaria abrir de par em paras janelas e deixar entrar o sol.

Sua Excelência mandava: — e, como esse Inverno ia seco, asobras começaram logo, sob a direcção de um Esteves, arquitecto,político, e compadre de Vilaça. Este artista entusiasmara o procu-rador com um projecto de escada aparatosa, flanqueada por duasfiguras simbolizando as conquistas da Guiné e da Índia. E estavaideando também uma cascata de louça na sala de jantar — quando,inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa com um arquitecto--decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algu-mas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as qua-tro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto,um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio.

Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração peloartista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro político que istoera um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivessedespedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da cons-trução das cocheiras. O artista ia aceitar — quando foi nomeadogovernador civil.

Ao fim de um ano, durante o qual Carlos viera frequentementea Lisboa colaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estéticos»— do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso

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não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa. E Vilaçanão duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês)sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigua-lhas de Benfica, fizera do Ramalhete «um museu».

O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nu,lajeado de pedregulhos — agora resplandecente, com um pavi-mento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos, plantasdecorativas, vasos de Quimper, e dois longos bancos feudais queCarlos trouxera de Espanha, trabalhados em talha, solenes comocoros de catedral. Em cima, na antecâmara, revestida como umatenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e orna-vam-na divãs cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscoscom reflexos metálicos de cobre, uma harmonia de tons severos,onde destacava, na brancura imaculada do mármore, uma figurade rapariga friorenta, arrepiando-se, rindo, ao meter o pezinho naágua. Daí partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas deBenfica, arcas góticas, jarrões da Índia, e antigos quadros devotos.As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. Nosalão nobre, raramente usado, todo em brocados de veludo cor demusgo de Outono, havia uma bela tela de Constable, o retrato dasogra de Afonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e ves-tido escarlate de caçadora inglesa, sobre um fundo de paisagemenevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música,tinha um ar de século XVIII com seus móveis enramalhetados deouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias deGobelins desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes depastores e de arvoredos.

Defronte era o bilhar, forrado de um couro moderno trazido porJones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-gar-rafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se ofumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete: as otomanas tinham afofa vastidão de leitos; e o conchego quente e um pouco sombrio dosestofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes develhas faianças holandesas.

Ao fundo do corredor ficava o escritório de Afonso, revestido dedamascos vermelhos com uma velha câmara de prelado. A maciçamesa de pau-preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o soleneluxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de pazestudiosa — realçada ainda por um quadro atribuído a Rubens,

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antiga relíquia da casa, um Cristo na Cruz, destacando a suanudez de atleta sobre um céu de poente revolto e rubro. Ao lado dofogão, Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japo-nês bordado a ouro, uma pele de urso branco, e uma venerávelcadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dosMaias no desmaio da trama de seda.

No corredor do segundo andar guarnecido com retratos de famí-lia, estavam os quartos de Afonso. Carlos dispusera os seus, numângulo da casa, com uma entrada particular, e janelas sobre o jar-dim: eram três gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmotapete: e os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes,faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico —mas de dançarina!

A casa, depois de arranjada, ficou vazia enquanto Carlos, já for-mado, fazia uma longa viagem pela Europa; — e foi só nas vésperasda sua chegada, nesse lindo Outono de 1875, que Afonso se resolveuenfim a deixar Santa Olávia e vir instalar-se no Ramalhete. Haviavinte e cinco anos que ele não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtosdias, confessou ao Vilaça que estava suspirando outra vez pelassuas sombras de Santa Olávia. Mas, que remédio! Não queria vivermuito separado do neto; e Carlos agora, com ideias sérias de car-reira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, nãodesgostava do Ramalhete, apesar de Carlos, com o seu fervor peloluxo dos climas frios, ter prodigalizado de mais as tapeçarias, ospesados reposteiros e os veludos. Agradava-lhe também muito avizinhança, aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol. Egostava até do seu quintalejo. Não era decerto o jardim de SantaOlávia: mas tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfiladosao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo jun-tos como dois amigos tristes, e a Vénus Citereia parecendo agora, noseu tom claro de estátua de parque, ter chegado de Versalhes, dofundo do Grande Século... E desde que a água abundava, a cascata-zinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus trêspedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizandoaquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade domés-tica, esfiado gota a gota na bacia de mármore.

O que desconsolara Afonso, ao princípio, fora a vista do terraço— donde outrora, decerto, se abrangia até ao mar. Mas as casasedificadas em redor, nos últimos anos, tinham tapado esse hori-

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zonte esplêndido. Agora, uma estreita tira de água e monte que seavistava entre dois prédios de cinco andares, separados por umcorte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E,todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Eracomo uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, sus-pensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedadesinfinitas de cor e luz, os episódios fugitivos de uma pacata vida derio: às vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente àbolina; outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favorda aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancoliade um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga,entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelomar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silen-ciosas, o vulto negro de um couraçado inglês... E sempre ao fundo opedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, eduas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão — ora fais-cantes e despedindo raios das vidraças acesas em brasa; oratomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosadostenros do poente, quase semelhantes a um rubor humano; e de umatristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, comonuas, sob o tempo agreste.

O terraço comunicava por três portas envidraçadas com o escri-tório — e foi nessa bela câmara de prelado que Afonso se acostu-mou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o netolhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residênciaem Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume.Em Santa Olávia as chaminés ficavam acesas até Abril; depoisornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; e eraainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor oseu cachimbo, o seu Tácito, ou o seu querido Rabelais.

Todavia, Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velhoborralheiro. Naquela idade, de Verão ou de Inverno, ao romper doSol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa ora-ção da manhã que era um grande mergulho na água fria. Sempretivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nadahavia melhor para o homem — que sabor de água, som de água evista de água. O que o prendera mais a Santa Olávia fora a suagrande riqueza de águas vivas, nascentes, repuxos, tranquilo espe-lhar de águas paradas, fresco murmúrio de águas regantes... E a

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esta viva tonificação da água atribuía ele o ter vindo assim, desde ocomeço do século, sem uma dor e sem uma doença, mantendo a ricatradição de saúde da sua família, duro, resistente aos desgostos eanos — que passavam por ele, tão em vão, como passavam em vão,pelos seus robles de Santa Olávia, anos e vendavais.

Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e for-tes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quasevermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba deneve aguda e longa — lembrava, como dizia Carlos, um varãoesforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Meneses ou umAfonso de Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar aoneto, gracejando, quanto as aparências iludem!

Não, não era Meneses, nem Albuquerque, apenas um antepas-sado bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua pol-trona, o seu whist ao canto do fogão. Ele mesmo costumava dizerque era simplesmente um egoísta: — mas nunca, como agora navelhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundase largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos,esparsamente, numa caridade enternecida. Cada vez amava mais oque é pobre e o que é fraco. Em Santa Olávia, as crianças corriampara ele, dos portais, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o quevive lhe merecia amor — e era dos que não pisam um formigueiro ese compadecem da sede de uma planta.

Vilaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se contados patriarcas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, nasua coçada quinzena de veludilho, sereno, risonho, com um livro namão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá,branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, osoberbo cão são-bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nas-cido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio:depois, ao chegar à idade do amor e da caça, fora-lhe dado o apelidomais cavalheiresco de «D. Bonifácio de Calatrava»: agora, dormi-nhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidadeseclesiásticas, e era o «Reverendo Bonifácio»...

Esta existência nem sempre assim correra com a tranquilidadelarga e clara de um belo rio de Verão. O antepassado, cujos olhos seenchiam agora de uma luz de ternura diante das suas rosas, e queao canto do lume relia com gosto o seu Guizot, fora, na opinião de

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seu pai, algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal! E todavia,o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rousseau,Volney, Helvécio, e a «Enciclopédia»; em atirar foguetes de lágrimasà Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, reci-tando pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao Supremo Arqui-tecto do Universo. Isto, porém, bastara para indignar o pai. Caetanoda Maia era um português antigo e fiel que se benzia ao nome deRobespierre, e que, na sua apatia de fidalgo beato e doente, tinha sóum sentimento vivo — o horror, o ódio ao jacobino, a quem atribuíatodos os males, os da pátria e os seus, desde a perda das colóniasaté às crises da sua gota. Para extirpar da nação o jacobino, dera eleo seu amor ao senhor infante D. Miguel, messias forte e restauradorprovidencial... E ter justamente por filho um jacobino, parecia-lheuma provação comparável só às de Job!

Ao princípio, na esperança que o menino se emendasse, conten-tou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo— cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se mis-turara à turba que, numa noite de festa cívica e de Luminárias,tinha apedrejado as vidraças apagadas do senhor legado deÁustria, enviado da Santa Aliança — considerou o rapaz um Marate toda a sua cólera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona,não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da Índia, à leide bom pai português: mas decidiu expulsá-lo de sua casa, semmesada e sem bênção, renegado como um bastardo! Que aquelepedreiro-livre não podia ser do seu sangue!

As lágrimas da mamã amoleceram-no; sobretudo as razões deuma cunhada de sua mulher, que vivia com eles em Benfica,senhora irlandesa de alta instrução, Minerva respeitada e tutelar,que ensinara inglês ao menino e o adorava como um bebé. Caetanoda Maia limitou-se a desterrar o filho para a Quinta de Santa Olá-via; mas não cessou de chorar no seio dos padres que vinham a Ben-fica a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, afir-mando-lhe que Deus, o velho Deus de Ourique, não permitiriajamais que um Maia pactuasse com Belzebu e com a Revolução! E, àfalta de Deus-Padre, lá estava Nossa Senhora da Soledade,padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.

E o milagre fez-se. Meses depois, o jacobino, o Marat, voltavade Santa Olávia um pouco contrito, enfastiado sobretudo daquelasolidão, onde os chás do brigadeiro Sena eram ainda mais tristes

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que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pai a bênção, ealguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse país de vivos pradose de cabelos de ouro, de que lhe falara tanto a tia Fanny. O pai bei-jou-o, todo em lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente, vendo ali aevidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade! E omesmo frei Jerónimo da Conceição, seu confessor, declarou estemilagre — não inferior ao de Carnaxide.

Afonso partiu. Era na Primavera — e a Inglaterra toda verde,os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia pene-trante dos seus nobres costumes, aquela raça tão séria e tão forte— encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbá-ticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no cafédos Remolares a recitar Mirabeau, e a República que quisera fun-dar, clássica e voltairiana, com um triunvirato de Cipiões e festasao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava ele nas cor-ridas de Epsom, no alto de uma sege de posta, com um grandenariz postiço, dando hurras medonhos — bem indiferente aos seusirmãos de Maçonaria, que a essas horas o senhor infante espica-çava a chuço, pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo deAlter.

Seu pai morreu de súbito, ele teve de regressar a Lisboa. Foientão que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde deRuna, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim doluto casou com ela. Teve um filho, desejou outros; e começou logo,com belas ideias de patriarca moço, a fazer obras no palacete deBenfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e som-bras à descendência amada que lhe encantaria a velhice.

Mas não esquecia a Inglaterra: — e tornava-lha mais apetecidaessa Lisboa miguelista que ele via, desordenada como uma Tunesbarbaresca; essa rude conjuração apostólica de frades e boleeiros,atroando tabernas e capelas; essa plebe beata, suja e feroz, rolandodo lausperene para o curro, e ansiando tumultuosamente pelo prín-cipe que lhe encarnava tão bem os vícios e as paixões...

Este espectáculo indignava Afonso da Maia; e muitas vezes, napaz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu aindignação da sua alma honesta. Já não exigia decerto, como emrapaz, uma Lisboa de Catões e de Múcios Cévolas. Já admitiamesmo o esforço de uma nobreza para manter o seu privilégio his-tórico; mas então queria uma nobreza inteligente e digna, como a

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aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia ideali-zar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e ins-pirando a literatura, vivendo com fausto e falando com gosto,exemplo de ideias altas e espelho de maneiras patrícias... O quenão tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sórdido.

Tais palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando sereuniram as Cortes Gerais, a polícia invadiu Benfica, «a procurarpapéis e armas escondidas».

Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tre-mendo ao lado — viu, impassivelmente e sem uma palavra, abusca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãossujas do malsim rebuscando os colchões do seu leito. O senhor juizde fora não descobriu nada; aceitou mesmo na copa um cálice devinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...».Desde essa manhã as janelas do palacete conservaram-se cerradas;não se abriu mais o portão nobre para sair o coche da senhora; edaí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da Maia partiapara Inglaterra e para o exílio.

Aí instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredoresde Londres, junto a Richmond, ao fundo de um parque, entre assuaves e calmas paisagens de Surrey.

Os seus bens, graças ao crédito do conde de Runa, antigomimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro ríspido do senhorD. Miguel, não tinham sido confiscados; e Afonso da Maia podiaviver largamente.

Ao princípio os emigrados liberais, Palmela e a gente doBelfast, ainda o vieram desassossegar e consumir. A sua alma rectanão tardou a protestar vendo a separação de castas, de jerarquias,mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma ideia— os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres àforra, e plebe, o exército, depois dos padecimentos da Galiza,sucumbindo agora à fome, à vérmina, à febre nos barracões dePlymouth. Teve logo conflitos com os chefes liberais; foi acusado devintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-seentão — sem fechar todavia a sua bolsa, donde saíam às cinquenta,às cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e poucoa pouco se foram vazando os depósitos de emigrados, respirouenfim — e, como ele disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar deInglaterra!

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Meses depois, sua mãe, que ficara em Benfica, morria de umaapoplexia: e a tia Fanny veio para Richmond completar a felicidadede Afonso, com o seu claro juízo, os seus caracóis brancos, os seusmodos de discreta Minerva. Ali estava ele pois no seu sonho, numadigna residência inglesa, entre árvores seculares, vendo em redornas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sen-tindo em torno de si tudo tão são, forte, livre e sólido — como oamava o seu coração.

Teve relações; estudou a nobre e rica literatura inglesa; interes-sou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura,pela cria dos cavalos, pela prática da caridade; — e pensava comprazer em ficar ali para sempre naquela paz e naquela ordem.

Somente Afonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativae triste, tossia sempre pelas salas. À noite sentava-se ao fogão, sus-pirava e ficava calada...

Pobre senhora! A nostalgia do País, da parentela, das igrejas,ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem sequeixar e sorrindo palidamente, tinha vivido desde que chegaranum ódio surdo àquela terra de hereges e ao seu idioma bárbaro:sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céusfuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali,mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A suadevoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacer-bara-se àquela hostilidade ambiente que ela sentia em redor contraos «papistas». E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se no sótãocom as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numaesteira — gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país pro-testante, o encanto de uma conjuração católica!

Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, oPedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonsolhe provou que era um colégio católico. Não queria: aquele catoli-cismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens doSenhor dos Passos, sem frades nas ruas — não lhe parecia a reli-gião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; — epara o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão doconde de Runa.

O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a car-tilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando aovoltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, de entre o forte

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rumor da vida livre — ouvia no quarto dos estudos a voz dormentedo reverendo, perguntando como do fundo de uma treva:

— Quantos são os inimigos da alma?E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:— Três. Mundo, Diabo e Carne...Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo

Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, como lenço do rapé sobre o joelho...

Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia adoutrina, agarrava a mão do Pedrinho — para o levar, correr comele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio opesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, emterror, a abafá-lo numa grande manta: depois, lá fora, o menino,acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinhamedo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconso-lado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas — o filho todoacobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros,pensativo, triste daquela fraqueza do filho...

Mas o menor esforço dele para arrancar o rapaz àqueles braços demãe que o amoleciam, àquela cartilha mortal do padre Vasques —trazia logo à delicada senhora acessos de febre. E Afonso não se atre-via já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto!Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sábia irlandesa metiaos óculos entre as folhas do seu livro, tratado de Addison ou poema dePope, e encolhia melancolicamente os ombros. Que podia ela fazer!...

Por fim a tosse de Maria Eduarda foi aumentando — como atristeza das suas palavras. Já falava da «sua ambição derradeira»,que era ver o sol uma vez mais! Porque não voltariam a Benfica, aoseu lar, agora que o senhor Infante estava também desterrado eque havia uma grande paz? Mas a isso Afonso não cedeu: não que-ria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas — e ossoldados do senhor D. Pedro não lhe davam mais garantias que osmalsins do senhor D. Miguel.

Por esse tempo veio um grave desgosto à casa: a tia Fanny mor-reu, de uma pneumonia, nos frios de Março; e isto enegreceu maisa melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito também — porser irlandesa e católica.

Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosavilla ao pé de Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o pontual e

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generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dou-rando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores,estava a coisa preciosa e santa — o Papa!

Mas a triste senhora continuava a choramingar. O que real-mente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos doseu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrentapenitência por tardes de sol e de poeira...

Foi necessário calmá-la, voltar a Benfica.Aí começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava

lentamente, todos os dias mais pálida, levando semanas imóvelsobre o canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suasgrossas peles de Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-sedaquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara--se o grande homem da casa. De resto Afonso encontrava a cadamomento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote esolidéu, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magrocapuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sacris-tia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente evago, um rumor de ladainha.

Todos aqueles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Portona copa. As contas do administrador apareciam sobrecarregadas comas mesadas piedosas que dava a senhora: um frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do senhor D. José I...

Esta carolice que o cercava ia lançando Afonso num ateísmorancoroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as ima-gens escavacadas a machado, uma matança de reverendos...Quando sentia na casa a voz das rezas, fugia, ia para o fundo daquinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou entãopartia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, quevivia numa quinta a Queluz.

O Pedrinho no entanto estava quase um homem. Ficara peque-nino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da forçados Maias; a sua linda face oval de um trigueiro cálido, dois olhosmaravilhosos e irresistíveis, prontos sempre a humedecer-se,faziam-no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lenta-mente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, aflores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jamais vibrarnaquela alma meio adormecida e passiva: só às vezes dizia que gos-taria muito de voltar para a Itália. Tomara birra ao padre Vasques,

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mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse aba-timento contínuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crisesde melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, ama-relo, com as olheiras fundas e já velho. O seu único sentimentovivo, intenso, até aí, fora a paixão pela mãe.

Afonso quisera-o mandar para Coimbra. Mas, à ideia de seseparar do seu Pedro, a pobre senhora caíra de joelhos diante deAfonso, balbuciando e tremendo: e ele, naturalmente, lá cedeuperante essas mãos suplicantes, essas lágrimas que caíam quatro aquatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Benfica,dando os seus lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás,começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa...Depois foi despontando naquela organização uma grande tendênciaamorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardozinho.

Afonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão des-graçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muitoesperto, são e, como todos os Maias, valente: não havia muito queele só, com um chicote, dispersara na estrada três saloios de vara-pau que lhe tinham chamado palmito.

Quando a mãe morreu, numa agonia terrível de devota, deba-tendo-se dias nos pavores do Inferno, Pedro teve na sua dor osarrebatamentos de uma loucura. Fizera a promessa histérica, seela escapasse, de dormir durante um ano sobre as lajes do pátio: elevado o caixão, saídos os padres, caiu numa angústia soturna,obtusa, sem lágrimas, de que não queria emergir, estirado de bru-ços sobre a cama numa obstinação de penitente. Muitos mesesainda não o deixou uma tristeza vaga: e Afonso da Maia já sedesesperava de ver aquele rapaz, seu filho e seu herdeiro, sairtodos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, parair visitar a sepultura da mamã...

Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe,quase sem transição, um período de vida dissipada e turbulenta,estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe,procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mamã.Mas essa exuberância ansiosa que se desencadeara tão subita-mente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gas-tou-se depressa também.

Ao fim de um ano de distúrbios no Marrare, de façanhas nasesperas de toiros, de cavalos esfalfados, de pateadas em S. Carlos,

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começaram a reaparecer as antigas crises de melancolia nervosa;voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados emcasa a bocejar pelas salas, ou sob alguma árvore da quinta todoestirado de bruços, como despenhado num fundo de amargura. Nes-ses períodos tornava-se também devoto: lia Vidas de Santos, visi-tava o lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma queoutrora levavam os fracos aos mosteiros.

Isto penalizava Afonso da Maia: preferia saber que ele reco-lhera de Lisboa, de madrugada, exausto e bêbedo, — do que vê-lo,de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para aigreja de Benfica.

E havia agora uma ideia que, a seu pesar, às vezes o torturava:descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de suamulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: estehomem extraordinário, com que na casa se metia medo às crianças,enlouquecera — e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira...

Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava!Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olharesfatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma exis-tência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão,os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.

Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, à porta deMadame Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéubranco, e uma senhora loura, embrulhada num xale de Caxemira.

O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhadapor baixo do queixo, uma face tisnada de antigo embarcadiço e o argoche, desceu todo encostado ao trintanário como se um reuma-tismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; eela voltando devagar a cabeça olhou um momento o Marrare.

Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto, os cabelos loi-ros, de um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e clás-sica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a friagem fazia--lhe mais pálida a carnação de mármore: e com o seu perfil gravede estátua, o modelado nobre dos ombros e dos braços que o xalecingia — pareceu a Pedro nesse instante alguma coisa de imortal esuperior à Terra.

Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodesnegros, vestido de negro, que fumava encostado à outra ombreira,numa pose de tédio — vendo o violento interesse de Pedro, o olhar

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aceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiadoacima, veio tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto à face na suavoz grossa e lenta:

— Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens,as datas e os feitos principais? E pagas ao teu amigo Alencar, aoteu sequioso Alencar, uma garrafa de champanhe?

Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedosmagros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou,todo recostado e dando um puxão aos punhos:

— Por uma doirada tarde de Outono...— André — gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da

mesa — retira o champanhe!O Alencar bradou, imitando o actor Epifânio:— O quê! Sem saciar a avidez do meu lábio?...Pois bem, o champanhe ficaria: mas o amigo Alencar, esque-

cendo que era o poeta das Vozes de Aurora, explicaria aquela genteda caleche azul numa linguagem cristã e prática!...

— Aí vai, meu Pedro, aí vai!Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mamã,

aquele velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamentepelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche comessa bela filha ao seu lado. Ninguém os conhecia. Tinham alugado aArroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a raparigaprincipiou a aparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão — umaimpressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atra-vessava o salão, os ombros vergavam-se no deslumbramento deauréola que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com umpasso de deusa a sua cauda de corte, sempre decotada como em noi-tes de gala, e, apesar de solteira, resplandecente de jóias. O papánunca lhe dava o braço: seguia atrás, entalado numa grande gra-vata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarca-diço na claridade loira que saía da filha, encolhido e quase apavo-rado, trazendo nas mãos o óculo, o libreto, um saco de bombons, oleque e o seu próprio guarda-chuva. Mas era no camarote, quando aluz caía sobre o seu colo ebúrneo e as suas tranças de oiro, que elaoferecia verdadeiramente a encarnação de um ideal da Renascença,um modelo de Ticiano... Ele, Alencar, na primeira noite em que avira, exclamara, mostrando-a a ela e às outras, as trigueirotas deassinatura:

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— Rapazes! É como um ducado de oiro novo entre velhos pata-cos do tempo do senhor D. João VI!

O Magalhães, esse torpe pirata, pusera o dito num folhetim doPortuguês. Mas o dito era dele, Alencar!

Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacetede Arroios. Mas nunca naquela casa se abria uma janela. Os cria-dos interrogados disseram apenas que a menina se chamavaMaria, e que o senhor se chamava Manuel. Enfim uma criada,amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tre-mia diante da filha, e dormia numa rede; a senhora, essa, vivianum ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a lernovelas. Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa. Fez-seuma devassa metódica, hábil, paciente... Ele, Alencar, pertencera àdevassa.

E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores;muito moço, uma facada numa rixa, um cadáver a uma esquinatinham-no forçado a fugir a bordo de um brigue americano. Temposdepois um certo Silva, procurador da Casa de Taveira, que o conhe-cera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabacoque os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrara lá o Mon-forte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo cais,de chinelas de esparto, à procura de embarque para a NovaOrleães. Aqui havia uma treva na história do Monforte. Parece queservira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim,quando reapareceu à face dos céus, comandava o brigue NovaLinda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana epara a Nova Orleães.

Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da peledo africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir aCorelli a S. Carlos. Todavia esta terrível crónica, como dizia o Alen-car, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...

— E a filha? — perguntou Pedro, que o escutara, sério e pálido.Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim

tão loira e bela? Quem fora a mamã? Onde estava? Quem a ensinaraa embrulhar-se com aquele gesto real no seu xale de Caxemira?...

— Isso, meu Pedro, são

mistérios que jamais pôde Lisboaastuta devassar e só Deus sabe!

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Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquela legenda de sanguee negros, o entusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinhasangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senho-ras, deliciando-se em vilipendiar uma mulher tão loira, tão linda e comtantas jóias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ela aparecia agorano teatro, D. Maria da Gama afectava esconder a face detrás do leque,porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ela usava osseus belos rubis) o sangue das facadas que dera o papazinho!E tinham-na caluniado abominavelmente. Assim, depois de passaremem Lisboa o primeiro Inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-selogo, com furor, que estavam arruinados, que a polícia perseguia ovelho, mil perversidades... O excelente Monforte, que sofria de reuma-tismos articulares, achava-se tranquilamente, ricamente, tomando aságuas dos Pirenéus... Fora lá que o Melo os conhecera...

— Ah! o Melo conhece-os? — exclamou Pedro.— Sim, meu Pedro, o Melo os conhece.Pedro daí a um momento deixou o Marrare; e nessa noite, antes

de recolher, apesar da chuva fria e miúda, andou rondando umahora, com a imaginação toda acesa, o palacete dos Vargas, apagadoe mudo. Depois, daí a duas semanas o Alencar, entrando em S. Car-los ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao verPedro da Maia instalado na frisa do Monforte, à frente, ao lado deMaria, com uma camélia escarlate na casaca — igual às de umramo pousado no rebordo de veludo.

Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessastoilettes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizeràs senhoras que ela se vestia «como uma cómica ». Estava de sedacor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças,opalas sobre o colo e nos braços; e estes tons de seara madurabatida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe acarnação ebúrnea, banhando as suas formas de estátua, davam-lheo esplendor de uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigo-des loiros do Melo, que conversava de pé com o papá Monforte —escondido como sempre no canto negro da frisa.

O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedrovoltara à sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Elaconservou algum tempo a sua atitude de deusa insensível; masdepois, no dueto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azuise profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo. O Alencarcorreu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.

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Não tardou de resto a falar-se em toda a Lisboa da paixão dePedro da Maia pela negreira. Ele também namorou-a publicamente,à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas,com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.

Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel— poemas desordenados que ia compor para o Marrare: e ninguémlá ignorava o destino daquelas páginas de linhas encruzadas que seacumulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algumamigo vinha à porta do café perguntar por Pedro da Maia, os cria-dos já respondiam muito naturalmente:

— O sr. D. Pedro? Está a escrever à menina.E ele mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, excla-

mava radiante, com o seu belo e franco sorriso:— Espera aí um bocado, rapaz, estou a escrever à Maria!Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer o seu

whist a Benfica, sobretudo o Vilaça, o administrador dos Maias,muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer anova daqueles amores do Pedrinho. Afonso já os suspeitava: viatodos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo dasmelhores camélias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava nocorredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirarregaladamente o perfume de um envelope com sinete de lacre dou-rado; e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humanoe forte, lhe fosse arrancando o filho à estroinice bulhenta, ao jogo,às melancolias sem razão em que reaparecia o negro ripanço...

Mas ignorava o nome, a existência sequer dos Monfortes; e asparticularidades que os amigos lhe revelaram, aquela facada nosAçores, o chicote de feitor na Virgínia, o brigue Nova Linda, toda asinistra legenda do velho contrariou muito Afonso da Maia.

Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contavaque vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, ambos muitobem e muito distingués, Afonso, depois de um silêncio, disse comum ar enfastiado:

— Enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os costumessão assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas.Mas essa mulher com um pai desses, mesmo para amante acho má.

O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculosde oiro exclamou com espanto:

— Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é umamenina honesta!...

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Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram atremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tre-mia um pouco também:

— O Vilaça decerto não supõe que meu filho queira casar comessa criatura...

O outro emudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:— Isso não, está claro que não...E o jogo continuou algum tempo em silêncio.Mas Afonso da Maia principiou a andar descontente. Passa-

vam-se semanas que Pedro não jantava em Benfica. De manhã, seo via, era um momento, quando ele descia ao almoço, já com umaluva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estavaselado o cavalo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, per-guntava a correr «se o papá queria alguma coisa», dava um jeitoao bigode diante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lápartia, enlevado. Outras vezes todo o dia não saía do quarto: atarde descia, acendiam-se as luzes; até que o pai, inquieto, subia,ia encontrá-lo estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nosbraços.

— Que tens tu? — perguntava-lhe.— Enxaqueca — respondia num tom surdo e rouco.E Afonso descia indignado, vendo em toda aquela angústia

cobarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa oferecidaque não fora posta nos cabelos...

Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em voltada bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que oinquietavam, partindo daqueles homens que habitavam Lisboa, lheconheciam os rumores — enquanto ele passava ali, Inverno eVerão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excelenteSequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagemlonga, para se instruir, à Alemanha, ao Oriente? Ou o velho LuísRuna, o primo de Afonso, que a propósito de coisas indiferentes,rompia lamentando os tempos em que o Intendente da polícia podialivremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidente-mente aludiam à Monforte, evidentemente julgavam-na perigosa.

No Verão, Pedro partiu para Sintra; Afonso soube que os Mon-fortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Vilaça apareceuem Benfica, muito preocupado: na véspera Pedro visitara-o no car-tório, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o

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meio de levantar dinheiro. Ele lá lhe dissera que em Setembro,chegando à sua maioridade, tinha a legítima da mamã...

— Mas não gostei disto, meu senhor, não gostei disto...— E porquê, Vilaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar

presentes à criatura... O amor é um luxo caro, Vilaça.— Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!E aquela confiança tão nobre de Afonso da Maia no orgulho

patrício, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquilizar Vilaça.Daí a dias, Afonso da Maia viu enfim Maria Monforte. Tinha

jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam amboso seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito queseguia o muro a caleche azul com os cavalos cobertos de redes.Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestidocor-de-rosa cuja roda, toda em folhos, quase cobria os joelhos dePedro, sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéu, apertadas numgrande laço que lhe enchia o peito, eram também cor-de-rosa: e asua face, grave e pura como um mármore grego, aparecia real-mente adorável, iluminada pelos olhos de um azul sombrio, entreaqueles tons rosados. No assento defronte, quase todo tomado porcartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéupanamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda--sol entre os joelhos. Iam calados, não viram o mirante; e, no cami-nho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob osramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com achávena de café junto aos lábios, de olho esgazeado, murmurando:

— Caramba! É bonita!Afonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha

escarlate que agora se inclinava sobre Pedro, quase o escondia,parecia envolvê-lo todo — como uma larga mancha de sangue alas-trando a caleche sob o verde triste das ramas.

O Outono passou, chegou o Inverno, frigidíssimo. Uma manhã,Pedro entrou na livraria onde o pai estava lendo junto ao fogão;recebeu-lhe a bênção, passou um momento os olhos por um jornalaberto, e voltando-se bruscamente para ele:

— Meu pai — disse, esforçando-se por ser claro e decidido —venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chamaMaria Monforte.

Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz gravee lenta:

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— Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha de umassassino, de um negreiro, a quem chamam também a negreira...

— Meu pai!...Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encar-

nação mesma da honra doméstica.— Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo atremer, quase em soluços:

— Pois pode estar certo, meu pai, que hei-de casar!Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou

pelo escudeiro, muito alto para que o pai ouvisse, e deu-lhe ordempara levar as suas malas ao Hotel Europa.

Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nosolhos, contando que o menino casara nessa madrugada — esegundo lhe dissera o Sérgio, procurador do Monforte, ia partir coma noiva para a Itália.

Afonso da Maia sentara-se nesse instante à mesa do almoço,posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se num vaso doJapão, à chama forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava onúmero da Grinalda, jornal de versos que ele costumava receber...Afonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrarlentamente o seu guardanapo.

— Já almoçou, Vilaça?O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou:— Já almocei, meu senhor...Então Afonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escu-

deiro:— Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só

um talher à mesa... Sente-se, Vilaça, sente-se.O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indiferença o

talher do menino. Vilaça sentara-se. Tudo em redor era correcto ecalmo como nas outras manhãs em que almoçara em Benfica. Ospassos do escudeiro não faziam ruído no tapete fofo; o lume esta-lava alegremente, pondo retoques de oiro nas pratas polidas; o soldiscreto que brilhava fora no azul de Inverno fazia cintilar cristaisde geada nas ramas secas; e à janela o papagaio, muito patuleia eeducado por Pedro, rosnava injúrias aos Cabrais.

Por fim Afonso ergueu-se; esteve olhando abstraidamente aquinta, os pavões no terraço; depois ao sair da sala tomou o braço

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de Vilaça, apoiou-se nele com força, como se lhe tivesse chegado aprimeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse ali umaamizade segura. Seguiram o corredor, calados. Na livraria Afonsofoi ocupar a sua poltrona ao pé da janela, começou a encher deva-gar o seu cachimbo. Vilaça, de cabeça baixa, passeava ao compridodas altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto de umdoente. Um bando de pardais veio gralhar um momento nos ramosde uma alta árvore que roçava a varanda. Depois houve um silên-cio, e Afonso da Maia disse:

— Então, Vilaça, o Saldanha lá foi demitido do Paço?...O outro respondeu vaga e maquinalmente:— É verdade, meu senhor, é verdade...E não se falou mais de Pedro da Maia.

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PEDRO e Maria, no entanto, numa felicidade de novela, iamdescendo a Itália, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, nessavia sagrada que vai desde as flores e das messes da planície lom-barda até ao mole país de romanza, Nápoles, branca sob o azul.Era lá que tencionavam passar o Inverno, nesse ar sempre tépidojunto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado têmuma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu oapetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar, assim, aos baloiçosdas caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão.Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elí-sios, e gozarem ali um lindo Inverno de amor! Paris estava seguro,agora, com o príncipe Luís Napoleão... Além disso, aquela velhaItália clássica enfastiava-a já: tantos mármores eternos, tantasMadonas começavam (como ela dizia pendurada languidamente dopescoço de Pedro) a dar tonturas à sua pobre cabeça! Suspirava poruma boa loja de modas, sob as chamas do gás, ao rumor do Boule-vard... Depois tinha medo da Itália, onde todo o mundo conspirava.

Foram para França.Mas por fim aquele Paris ainda agitado, onde parecia restar

um vago cheiro de pólvora pelas ruas, onde cada face conservavaum calor de batalha, desagradou a Maria. De noite acordava com aMarselhesa; achava um ar feroz à polícia; tudo permanecia triste; eas duquesas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, commedo dos operários, corja insaciável! Enfim demoraram-se lá até à

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Capítulo II

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Primavera, no ninho que ela sonhara, todo de veludo azul, abrindosobre os Campos Elísios.

Depois principiou a falar-se de novo em revolução, em golpe deestado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes daGarde Mobile fazia Pedro nervoso. E quando ela apareceu grávida,ansiou por a tirar daquele Paris batalhador e fascinante, virabrigá-la na pacata Lisboa adormecida ao sol.

Antes de partir, porém, escreveu ao pai.Fora um conselho, quase uma exigência de Maria. A recusa de

Afonso da Maia ao princípio desesperara-a. Não a afligia a desu-nião doméstica: mas aquele não afrontoso de fidalgo puritano mar-cara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem sus-peita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquela par-tida triunfante para Itália, para lhe mostrar bem que nada valiamgenealogias, avós godos, brios de família — diante dos seus braçosnus... Agora, porém, que ia voltar a Lisboa, dar soirées, criar corte,a reconciliação tornava-se indispensável; aquele pai retirado emBenfica, com o rígido orgulho de outras idades, faria lembrar cons-tantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o bri-gue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lis-boa pelo braço desse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suasbarbas de vizo-rei.

— Diz-lhe que já o adoro — murmurava ela curvada sobre aescrivaninha acariciando os cabelos de Pedro. — Diz-lhe que setiver um pequeno lhe hei-de pôr o nome dele... Escreve-lhe umacarta bonita, hem!

E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapazamava-o. Falou-lhe comovido da esperança de ter um filho varão;as desinteligências deviam findar em torno do berço daquelepequeno Maia que ali vinha, morgado e herdeiro do nome... Con-tava-lhe a sua felicidade com uma efusão de namorado indiscreto: ahistória da bondade de Maria, das suas graças, da sua instrução,enchia duas páginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não tarda-ria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...

Com efeito, apenas desembarcou, correu num trem a Benfica.Dois dias antes o pai partira para Santa Olávia: isto pareceu-lheuma desfeita — e feriu-o acerbamente.

Fez-se então entre o pai e o filho uma grande separação.Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lho participou — dizendo

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dramaticamente ao Vilaça «que já não tinha pai!» Era uma lindabebé, muito gorda, loura e cor-de-rosa, com os belos olhos negrosdos Maias. Apesar dos desejos de Pedro, Maria não a quis criar;mas adorava-a com frenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço,em êxtase, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carni-nhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pezinhos, nas rosqui-nhas das coxas, balbuciando-lhe num enlevo nomes de grandeamor, e perfumando-a já, enchendo-a já de laçarotes.

E nestes delírios pela filha, brotava, mais amarga, a sua cóleracontra Afonso da Maia. Considerava-se então insultada em simesma e naquele querubim que lhe nascera. Injuriava o velhogrosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas, o Barbatanas...

Pedro um dia ouviu isto, e escandalizou-se: ela replicou desa-bridamente: e diante daquela face abrasada, onde entre lágrimasos olhos azuis pareciam negros de cólera, ele só pôde balbuciartimidamente:

— É meu pai, Maria...Seu pai! E à face de toda a Lisboa tratava-a então como uma

concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de vilão. UmD. Fuas, um Barbatanas, nada mais!...

Arrebatou a filha, e abraçada nela, romperam as queixas porentre os prantos:

— Ninguém nos ama, meu anjo! Ninguém te quer! Tens só atua mãe! Tratam-te como se fosses bastarda!

A bebé, sacudida nos braços da mãe, desatou a gritar. Pedrocorreu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já enternecido, jáhumilde; e tudo terminou num longo beijo.

E ele, por fim, no seu coração, justificava aquela cólera de mãeque vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos dePedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora a fre-quentar Arroios, riam daquela obstinação de pai gótico, amuado naprovíncia, porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota!E onde havia outra em Lisboa, com aquelas toilettes, aquela graça,recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, saíra-se já dasatitudes empertigadas do século XVI!

E o próprio Vilaça, um dia que Pedro lhe fora mostrar a pequer-ruchinha adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilizou-se,veio-lhe uma das suas fáceis lágrimas, declarou, com a mão nocoração, que aquilo era uma caturrice do Sr. Afonso da Maia!

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— Pois pior para ele! Não querer ver um anjo destes! — disseMaria, dando diante do espelho um lindo jeito às flores do cabelo.— Também não faz cá falta...

E não fazia falta. Nesse Outubro, quando a pequena completouo seu primeiro ano, houve um grande baile na casa de Arroios, queeles agora ocupavam toda, e que fora ricamente remobilada. E assenhoras que outrora tinham horror à negreira, a D. Maria daGama que escondia a face por trás do leque, lá vieram todas, amá-veis e decotadas, com o beijinho pronto, chamando-lhe «querida»,admirando as grinaldas de camélias que emolduravam os espelhosde quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.

Começara então uma existência festiva e luxuosa, que, segundodizia o Alencar, o íntimo da casa, o cortesão de Madame, «tinha umsaborzinho de orgia distinguée como os poemas de Byron». Eramrealmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceava-se à uma horacom champanhe; talhava-se até tarde um monte forte;inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrava soberana-mente bela sob as roupagens clássicas de Helena ou no luxo som-brio do luto oriental de Judite. Nas noites mais íntimas, ela costu-mava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitasvezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater àcarambola francesa D. João da Cunha, o grande taco da época.

E no meio desta festança, atravessada pelo sopro romântico daRegeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Mon-forte, de alta gravata branca, com as mãos atrás das costas ron-dando pelos cantos, refugiado pelos vãos das janelas, mostrando-sesó para salvar alguma bobeche que ia estalar — e não despren-dendo nunca da filha o olho embevecido e senil.

Nunca Maria fora tão formosa. A maternidade dera-lhe umesplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz àque-las altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira,os diamantes das tranças, o ebúrneo e o lácteo do colo nu, e orumor das grandes sedas. Com razão, querendo ter, à maneira dasdamas da Renascença, uma flor que a simbolizasse, escolhera atúlipa real, opulenta e ardente.

Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas dovalor de propriedades!... Podia fazê-lo! O marido era rico, e ela semescrúpulo arruiná-lo-ia, a ele e ao papá Monforte...

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Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar,esse proclamava-se com alarido «seu cavaleiro e seu poeta». Estavasempre em Arroios, tinha lá o seu talher: por aquelas salas soltavaas suas frases ressoantes, por esses sofás arrastava as suas posesde melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordiná-rio que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que elepronunciava este nome — MARIA!), ia dedicar-lhe o seu poema, tãoanunciado, tão esperado — FLOR DE MARTÍRIO! E citavam-seestrofes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:

Vi-te essa noite no esplendor das salas Com as loiras tranças volteando louca...

A paixão do Alencar era inocente: mas, dos outros íntimos dacasa, mais de um, decerto, balbuciara já a sua declaração no bou-doir azul em que ela recebia às três horas, entre os seus vasos detúlipas; as suas amigas, porém, mesmo as piores, afirmavam queos seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada numvão de janela, ou de algum longo e suave olhar por trás do leque.Pedro todavia começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciúmes,vinha-lhe às vezes, de repente, um tédio daquela existência de luxoe de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, osseus íntimos, que se atropelavam assim tão ardentemente em voltados ombros decotados de Maria.

Refugiava-se então nalgum canto, trincando com furor o cha-ruto: e aí, era em toda a sua alma um tropel de coisas dolorosas esem nome...

Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens»,como ela dizia. Corria para ele, tomava-lhe ambas as mãos, comforça, com domínio:

— Que tens tu, amor? Estás amuado!— Não, não estou amuado...— Olha então para mim!...Colava o seu belo seio contra o peito dele; as suas mãos

corriam-lhe os braços numa carícia lenta e quente, dos pulsos aosombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os lábios. Pedrocolhia neles um longo beijo, e ficava consolado de tudo.

Durante esse tempo Afonso da Maia não saía das sombras deSanta Olávia, tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo.

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Já se não falava dele em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima. SóPedro às vezes perguntava a Vilaça «como ia o papá». E as notícias doadministrador enfureciam sempre Maria: o papá estava óptimo; tinhaagora um cozinheiro francês esplêndido; Santa Olávia enchera-se dehóspedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...

— O Barbatanas trata-se! — ia ela dizer ao pai com rancor.E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim

feliz em Santa Olávia; porque nunca cessara de tremer à ideia de verem Arroios, diante de si, aquele fidalgo tão severo e de vida tão pura.

Quando, porém, Maria teve outro filho, um pequeno, o sossegoque então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente, aocoração de Pedro, a imagem do pai abandonado naquela tristeza doDouro. Falou a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fra-queza da convalescença. E a sua alegria foi grande quando Maria,depois de ficar um momento pensativa, respondeu:

— Creio que me havia de fazer feliz tê-lo aqui...Pedro, entusiasmado com um assentimento tão inesperado,

pensou em abalar para Santa Olávia. Mas ela tinha um planomelhor: Afonso, segundo dizia o Vilaça, devia recolher em breve aBenfica; pois bem, ela iria lá com o pequeno, toda vestida de preto,e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-ia a bênção para oseu neto! Não podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu aliuma alta inspiração de maternidade...

Para abrandar desde já o papá, Pedro quis dar ao pequeno onome de Afonso. Mas nisso Maria não consentiu. Andava lendouma novela de que era herói o último Stuart, o romanesco príncipeCarlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças,queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um talnome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.

O baptizado teve de ser retardado; Maria adoecera com umaangina. Foi muito benigna porém; e daí a duas semanas Pedro podiajá sair para uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante deAlmada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unica-mente para obsequiar um italiano, chegado por então a Lisboa, dis-tinto rapaz que lhe fora apresentado pelo secretário da Legaçãoinglesa, e com quem Pedro simpatizara vivamente; dizia-se sobrinhodos príncipes de Sória; e vinha fugido de Nápoles, onde conspiraracontra os Bourbons e fora condenado à morte. O Alencar e D. JoãoCoutinho iam também à caçada — e a partida foi de madrugada.

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Nessa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiucarruagens parando à porta, um grande rumor encher a escada;quase imediatamente Pedro aparecia-lhe trémulo e enfiado:

— Uma grande desgraça, Maria!— Jesus!— Feri o rapaz, feri o napolitano!...— Como?Um desastre estúpido!... Ao saltar um barranco, a espingarda

disparara-se-lhe, e a carga, zás, vai cravar-se no napolitano! Nãoera possível fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa.Ele naturalmente não consentira que o homem que tinha feridorecolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verdepor cima, mandara chamar o médico, duas enfermeiras para ovelar, e ele mesmo lá ia passar a noite...

— E ele?— Um herói!... Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pálido

como um morto. Um rapaz adorável! Isto só a mim, Senhor! Eentão o Alencar, que ia mesmo ao pé dele... Podia antes ter ferido oAlencar, um rapaz íntimo, de confiança! Até a gente se ria. Masnão, zás, logo o outro, o de cerimónia...

Uma sege, nesse instante, entrava o pátio.— É o médico!E Pedro abalou.Voltou daí a pouco, mais tranquilo. O Dr. Guedes quase rira

daquela bagatela, uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidosnas costas. Prometera-lhe que daí a duas semanas podia caçaroutra vez na Tojeira; e o príncipe estava já fumando o seu charuto.Belo rapaz! Parecia simpatizar com o papá Monforte.

Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhedava aquela ideia de um príncipe entusiasta, conspirador, conde-nado à morte, ferido agora, por cima do seu quarto.

Logo de manhã cedo — apenas Pedro saíra a fazer transportar,ele mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano — Maria mandou asua criada francesa de quarto, uma bela moça de Arles, acima,saber da parte dela como Sua Alteza passara, e «ver que figuratinha». A arlesiana apareceu, com os olhos brilhantes, a dizer àsenhora, nos seus grandes gestos de provençal, que nunca vira umhomem tão formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor JesusCristo! Que pescoço, que brancura de mármore! Estava muito

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pálido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia;e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...

Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido.Era Pedro que vinha, a cada instante, falar-lhe dele, entusiasmado poraquela existência patética de príncipe conspirador, partilhando já oseu ódio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos queencontrava nele, o mesmo amor da caça, dos cavalos, das armas. Agoralogo de manhã, subia para o quarto do príncipe, de robe-de-chambre ecachimbo na boca, e passava lá horas numa camaradagem, fazendogrogues quentes — permitidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para láos seus amigos, o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes porcima as risadas. Às vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pas-mado para o herói, não cessava de lhe rondar o leito.

A arlesiana, essa, também a cada momento aparecia lá a levartoalhas de rendas, um açucareiro que ninguém reclamara, ou algumvaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou aPedro, muito séria, se além de todos os amigos da casa, duas enfer-meiras, dois escudeiros, o papá e ele Pedro — era necessária tam-bém constantemente a sua própria criada no quarto de Sua Alteza!

Não era. Mas Pedro riu muito à ideia de que a arlesiana setivesse namorado do príncipe. Nesse caso Vénus era-lhe propícia! Onapolitano também a achava picante: un très joli brin de femme,tinha ele dito.

A bela face de Maria empalideceu de cólera. Julgava tudo issode mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fora realmente umdoido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estran-geiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquela troça em cima,entre grogues quentes, com guitarra, sem respeito por ela, aindatoda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a! ApenasSua Alteza pudesse acomodar-se com almofadas numa sege,queria-o fora, na estalagem...

— O que aí vai! Jesus! O que aí vai!... — disse Pedro.— É assim.E decerto foi muito severa também com a arlesiana, porque

nessa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor, limpandoao avental os olhos afogueados.

Daí a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quis recolherao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospi-talidade, mandou-lhe um admirável ramo, e, com uma galanteria de

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príncipe artista da Renascença, um soneto em italiano enroladoentre as flores e tão perfumado como elas: comparava-a a umanobre dama da Síria, dando a gota de água da sua bilha ao cavaleiroárabe, ferido na estrada ardente; comparava-a à Beatriz do Dante.

Isto afigurou-se a todos de uma rara distinção, e, como disse oAlencar, um rasgo à Byron.

Depois, na soirée do baptizado Carlos Eduardo, dada daí a umasemana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era umhomem esplêndido, feito como um Apolo, de uma palidez de már-more rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabelos casta-nhos, cabelos de mulher, ondeados e com reflexos de oiro, apartadosà nazarena — davam-lhe realmente, como dizia a arlesiana, umafisionomia de belo Cristo.

Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na ver-dade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo nele fascinava, asua figura, o seu mistério, até o seu nome de Tancredo. Muitoscorações de mulher palpitavam quando ele encostado a umaombreira, de claque na mão, uma melancolia na face, exalando oencanto patético de um condenado à morte, derramava lentamentepela sala o langor sombrio do seu olhar de veludo. A marquesa deAlvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foiaplicar-lhe, como a um mármore de museu, a sua luneta de oiro.

— É de apetite! — exclamou ela. — É uma imagem!... E sãoamigos, são amigos, Pedro?

— Somos como dois irmãos de armas, minha senhora.Nessa mesma soirée, o Vilaça informara Pedro que o pai era

esperado no dia seguinte em Benfica. E Pedro, logo que se recolhe-ram, falou a Maria em «irem fazer a grande cena ao papá». Ela,porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais sensa-tas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivosdaquela teima do papá — ultimamente chamava-lhe sempre o papá— era essa extraordinária existência de Arroios...

— Mas, filha — disse Pedro — escuta, nós não vivemos tambémem plena orgia... Alguns amigos que vêm...

Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter uminterior mais calmo e mais doméstico. Era mesmo melhor para osbebés. Pois bem, queria que o papá estivesse convencido dessatransformação, para que as pazes fossem mais fáceis e eternas.

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— Deixa passar dois ou três meses... Quando ele souber como nósvivemos quietinhos, eu o trarei, sossega... É bom também que sejaquando meu pai partir para as águas, para os Pirenéus. Que o pobrepapá, coitado, tem medo do teu... Filho, não achas assim melhor?

— És um anjo — foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas asmãos.

Toda a antiga maneira de Maria pareceu com efeito ir mudando.Suspendera as soirées. Começou a passar as noites muito recolhi-das, com alguns íntimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; aban-donara o bilhar; e vestida de preto, com uma flor nos cabelos, faziacrochet ao pé do candeeiro. Estudava-se música clássica quandovinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entraratambém na gravidade, recitava traduções de Klopstock. Falava-secom sisudez de política; Maria era muito regeneradora.

E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e belo, dese-nhando alguma flor para ela bordar, ou tangendo à guitarra cançõespopulares de Nápoles. Todos ali o adoravam; mas ninguém mais queo velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata,contemplando o príncipe com enternecimento. Depois, de repente,erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre ele, palpá-lo,senti-lo, respirá-lo, murmurando no seu francês de embarcadiço:

— Ça aller bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo...E estas correntes bruscas de afecto comunicavam-se decerto,

porque nesse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sor-risos para o papá ou vinha beijá-lo na testa.

De dia ocupava-se de coisas sérias. Organizara uma útil asso-ciação de caridade, a Obra Pia dos Cobertores, com o fim de fazerno Inverno às famílias necessitadas distribuições de agasalhos; epresidia no salão de Arroios, com uma campainha, às reuniões emque se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia tambémamiudadas vezes a uma devoção às igrejas, toda vestida de preto, apé, com um véu muito espesso no rosto.

O esplendor da sua beleza aparecia agora velado por uma som-bra tocante de ternura grave: a Deusa idealizava-se em Madona; enão era raro ouvi-la de repente suspirar sem razão.

Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha entãodois anos e estava realmente adorável; vinha todas as noites ummomento à sala, vestida com um luxo de princesa; e as exclamações,os êxtases de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão,

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a esfuminho, a aguarela; ajoelhava-se para lhe beijar a mãozinhacor-de-rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dosprotestos de Pedro, dormia sempre com ela entre os braços.

Ao começo desse Setembro o velho Monforte partiu para osPirenéus. Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como seele largasse de novo para as travessias de África.

Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro vol-tou a falar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir aBenfica recuperar para sempre aquele papá tão teimoso...

— Ainda não — disse ela reflectindo, olhando o seu cálice deBordéus. — Teu pai é uma espécie de santo, ainda o não merece-mos... Mais para o Inverno.

Uma sombria tarde de Dezembro, de grande chuva, Afonso daMaia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu vio-lentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si.Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob oscabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se ater-rado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeua chorar perdidamente.

— Pedro! Que sucedeu, filho?Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do

filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à suasolidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E repetia,trémulo também, desprendendo-o de si com grande amor:

— Sossega, filho, que foi?Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e

levantando para o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, pala-vra a palavra, numa voz surda:

— Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... AMaria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com umhomem, um italiano... E aqui estou!

Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como umafigura de pedra; e a sua bela face, onde todo o sangue subira,enchia-se, pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, oescândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama.E era aquele filho que, desprezando a sua autoridade, ligando-se aessa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa devexame. E ali estava, ali jazia sem um grito, sem um furor, um arran-

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que brutal de homem traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorandomiseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear pela sala, rígidoe áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem as palavrasde ira e de injúria que lhe enchiam o peito em tumulto... — Mas erapai: ouvia, ali ao seu lado, aquele soluçar de funda dor; via tremeraquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos braços...Parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos,e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se ele fosse aindacriança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura inteira.

— Tinha razão, meu pai, tinha razão — murmurava Pedroentre lágrimas.

Depois ficaram calados. Fora, as pancadas sucessivas da chuvabatiam a casa, a quinta, num clamor prolongado; e as árvores, sobas janelas, ramalhavam num vasto vento de Inverno.

Foi Afonso que quebrou o silêncio:— Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só

chorar...— Não sei nada — respondeu Pedro num longo esforço. — Sei

que fugiu. Eu saí de Lisboa na segunda-feira. Nessa mesma noite,ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre dejóias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse àgovernanta e à ama do pequeno que ia ter comigo. Elas estranha-ram, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

Era um papel já sujo, e desde essa manhã decerto muitas vezesrelido, amarrotado com fúria. Continha estas palavras:

«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me,que não sou digna de ti, e levo a Maria, que me não posso separardela.»

— E o pequeno, onde está o pequeno? — exclamou Afonso.Pedro pareceu recordar-se:— Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.— O velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos

braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a suatouca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorá-vel bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, grulhando, agitandoo seu guizo de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com osolhos no tapete e uma trouxazinha na mão.

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Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou oneto no colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura;parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha doméstica; agora sóhavia ali aquela facezinha tenra, que se lhe babava nos braços...

— Como se chama ele?— Carlos Eduardo — murmurou a ama.— Carlos Eduardo, hem?Ficou a olhá-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da

sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhasque não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o perce-besse, disse-lhe:

— Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessário amar o avô!E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos

olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbasgrisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu amãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.

Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o aoseu largo peito muito tempo, pôs-lhe na face um beijo longo, conso-lado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois, com todo ocuidado, foi colocá-lo nos braços da ama.

— Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe oquarto, vá ver o que é necessário.

Fechou a porta, e veio sentar-se junto do filho, que se nãomovera do canto do sofá nem despregara os olhos do chão.

— Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos nãovemos há três anos, filho...

— Há mais de três anos — murmurou Pedro.Ergueu-se, alongou a vista à quinta, tão triste sob a chuva;

depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou ummomento o seu próprio retrato, feito em Roma aos doze anos, todode veludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amarga-mente:

— Tinha razão, meu pai, tinha razão...E pouco a pouco, passeando e suspirando, começou a falar

daqueles últimos anos, o Inverno passado em Paris, a vida emArroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconcilia-ção, por fim aquela carta infame, sem pudor, invocando a fatali-dade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momentotivera só ideias de sangue e quisera persegui-los. Mas conservara

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um clarão de razão. Seria ridículo, não é verdade? Decerto a fugafora de antemão preparada, e não havia de ir correndo as estala-gens da Europa à busca de sua mulher... Ir lamentar-se à polícia,fazê-los prender? Uma imbecilidade; nem impedia que ela fosse jápor esses caminhos fora dormindo com outro... Restava-lhesomente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera algunsanos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, semmãe, com um mau nome. Paciência! Necessitava esquecer, partirpara uma longa viagem, para a América talvez; e o pai veria, haviade voltar consolado e forte.

Dizia estas coisas sensatas, passeando devagar, com o charutoapagado nos dedos, numa voz que se calmava. Mas de repenteparou diante do pai, com um riso seco, um brilho feroz nos olhos.

— Sempre desejei ver a América, e é boa ocasião agora... É umaocasião famosa, hem? Posso até naturalizar-me, chegar a presi-dente, ou rebentar... Ah! Ah!

— Sim, mais tarde, depois pensarás nisso, filho — acudiu ovelho assustado.

Nesse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente,ao fundo do corredor.

— Ainda janta cedo, hem? — disse Pedro.Teve um suspiro cansado e lento, murmurou:— Nós jantávamos às sete...Quis então que o pai fosse para a mesa. Não havia motivo para

que se não jantasse. Ele ia um bocado acima, ao seu antigo quartode solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queriatomar nada...

— O Teixeira que me leve um cálice de genebra... Ainda cá estáo Teixeira, coitado!

E vendo Afonso sentado, repetiu, já impaciente:— Vá jantar, meu pai, vá jantar, pelo amor de Deus...Saiu. O pai ouviu-lhe os passos por cima, e o ruído de janelas

desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar,onde os criados, que, pela ama, sabiam decerto o desgosto, semoviam em pontas de pés, com a lentidão contristada de uma casaonde há morte. Afonso sentou-se à mesa só; mas já lá estava outravez o talher de Pedro; rosas de Inverno esfolhavam-se num vaso doJapão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosa-mente no poleiro.

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Afonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltronapara junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco naquelemelancólico crepúsculo de Dezembro, com os olhos no lume, escu-tando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as coisasterríveis que assim invadiam num tropel patético a sua paz de velho.Mas no meio da sua dor, funda como era, ele percebia um ponto, umrecanto do seu coração onde alguma coisa de muito doce, de muitonovo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se alguresno seu ser estivesse rompendo, borbulhando, uma nascente rica dealegrias futuras; e toda a sua face sorria à chama alegre, revendo abochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...

Pela casa no entanto tinham-se acendido as luzes. Já inquieto,subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão húmido e frio comose a chuva caísse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quandochamou, a voz de Pedro veio do negro da janela; estava lá, com avidraça aberta, sentado fora na varanda, voltado para a noitebrava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face ovento, a água, toda a invernia agreste.

— Pois estás aqui, filho! — exclamou Afonso. — Os criadoshão-de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todomolhado, Pedro.

Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se comum estremeção, desprendeu-se, impaciente daquela ternura do velho.

— Querem arranjar o quarto, hem? Faz-me bem o ar, faz-metão bem!

O Teixeira trouxe luzes, e atrás dele apareceu o criado dePedro, que chegara nesse momento de Arroios, com um largo estojode viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado embaixo; e o cocheiro viera também, como nenhum dos senhoresestava em casa...

— Bem, bem — interrompeu Afonso. — O Sr. Vilaça lá irá ama-nhã, e ele dará as ordens.

O criado então, em bicos de pés, foi depor o estojo sobre o már-more da cómoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilette dePedro: e os castiçais sobre a mesa alumiavam o grande leito tristede solteiro com os colchões dobrados ao meio.

A Gertrudes, toda atarefada, entrara com os braços carregadosde roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; ocriado de Arroios, pousando o chapéu a um canto, e sempre em pon-

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tas de pés, veio ajudá-los também. Pedro, no entanto, como sonâm-bulo, voltara para a varanda, com a cabeça à chuva, atraído poraquela treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor demar bravo.

Afonso, então, puxou-lhe o braço quase com aspereza.— Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.Ele seguiu maquinalmente o pai à livraria, mordendo o charuto

apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe daluz, ao canto do sofá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo sóos passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebra-ram o silêncio em que toda a sala ia adormecendo. Uma brasa mor-ria no fogão. A noite parecia mais áspera. Eram de repente vergas-tadas de água contra as vidraças, trazidas numa rajada, que longa-mente, num clamor teimoso, faziam escoar um dilúvio dos telha-dos; depois havia uma calma tenebrosa, com uma sussurração dis-tante de vento fugindo entre ramagens; nesse silêncio as goteiraspunham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria maisfuriosa, envolvia a casa num bater de janelas, redemoinhava, par-tia com silvos desolados.

— Está uma noite de Inglaterra — disse Afonso, debruçando-sea espertar o lume.

Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. Decertoo ferira a ideia de Maria, longe, num quarto alheio, agasalhando-seno leito do adultério entre os braços do outro. Apertou um instantea cabeça nas mãos, depois veio junto do pai, com o passo mal firme,mas a voz muito calma:

— Estou realmente cansado, meu pai, vou-me deitar. Boanoite... Amanhã conversaremos mais.

Beijou-lhe a mão e saiu devagar.Afonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler,

atento só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia emsilêncio.

Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde sefizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira,estavam lá cochichando ao pé da cómoda, na penumbra que davaum fólio posto diante do candeeiro; todos se esquivaram em pontasde pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arru-mar em silêncio os gavetões. No vasto leito o pequeno dormia comoum Menino Jesus cansado, com o seu guizo apertado na mão.

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Afonso não ousou beijá-lo, para o não acordar com as barbas áspe-ras; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra aparede, deu um jeito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a suador calmar-se naquela sombra de alcova onde o seu neto dormia.

— É necessário alguma coisa, ama? — perguntou abafando a voz.— Não, meu senhor...Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda

clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, como estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na faceque ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe osolhos mais refulgentes e duros.

— Estou a escrever — disse ele.Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e

acrescentou:— Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios... Estão

lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim, uma porção dearranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é?O Teixeira há-de saber... Boas noites, papá, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar,numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziaerguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e dovento que calmara, ressoavam por cima, lentos e contínuos, os pas-sos de Pedro.

A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo — quando derepente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gri-tando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto dePedro, ainda entreaberto, vinha um cheiro de pólvora; e aos pés dacama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava notapete, Afonso encontrou o seu filho morto, apertando uma pistolana mão.

Entre as duas velas que se extinguiam, com fogachos lívidos,deixara-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o envelope,numa letra firme: Para o papá.

Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da Maia partiacom o neto e com todos os criados para a Quinta de Santa Olávia.

Quando Vilaça, em Fevereiro, foi lá acompanhar o corpo dePedro, que ia ser depositado no jazigo de família, não pôde conteras lágrimas ao avistar aquela vivenda onde passara tão alegres

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Natais. Um baetão preto recobria o brasão de armas, e esse panode esquife parecia ter destingido todo o seu negrume sobre afachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pátio; dentroos criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flornas jarras; o próprio encanto de Santa Olávia, o fresco cantar daságuas vivas por tanques e repuxos, vinha agora com a cadênciasaudosa de um choro. E Vilaça foi encontrar Afonso na livraria,com as janelas cerradas ao lindo sol de Inverno, caído para umapoltrona, a face cavada sob os cabelos crescidos e brancos, as mãosmagras e ociosas sobre os joelhos.

O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava umano.

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MAS esse ano passou, outros anos passaram.Por uma manhã de Abril, nas vésperas de Páscoa, Vilaça che-

gava de novo a Santa Olávia.Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito

dessa Primavera chuvosa, os senhores andavam para a quinta. Omordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todosatisfeito de ver o senhor administrador, com quem às vezes se cor-respondia, e conduziu-o à sala de jantar, onde a velha governanta,a Gertrudes, tomada de surpresa, deixou cair uma pilha de guarda-napos, para lhe saltar ao pescoço.

As três portas envidraçadas estavam abertas para o terraço,que se estendia ao sol, com a sua balaustrada de mármore cobertade trepadeiras: e Vilaça, adiantando-se para os degraus que des-ciam ao jardim, mal pôde reconhecer Afonso da Maia naquele velhode barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha subindo arua de romãzeiras com o seu neto pela mão.

Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéu alto,abafado num cache-nez de pelúcia, correu a mirá-lo, curioso — eachou-se arrebatado nos braços do bom Vilaça, que largara oguarda-sol, o beijava pelo cabelo, pela face, balbuciando:

— Oh! meu menino, meu querido menino! Que lindo que está!que crescido que está…

— Então, sem avisar, Vilaça? — exclamava Afonso da Maia,chegando de braços abertos. — Nós só o esperávamos para asemana, criatura!

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Capítulo III

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Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhosencontraram-se, vivos e húmidos, e tornaram a apertar-se comovi-dos.

Carlos ao lado, muito sério, todo esbelto, com as mãos enterra-das nos bolsos das suas largas bragas de flanela branca, o casqueteda mesma flanela posto de lado sobre os belos anéis do cabelo negro— continuava a mirar o Vilaça, que, com o beiço trémulo, tendotirado a luva, limpava os olhos por baixo dos óculos.

— E ninguém a esperá-lo, nem um criado lá em baixo no rio! —dizia Afonso. — Enfim, cá o temos, é o essencial... E como você estárijo, Vilaça!

— E Vossa Excelência, meu senhor! — balbuciou o administra-dor, engolindo um soluço. — Nem uma ruga! Branco sim, mas umacara de moço... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a últimavez que o vi... E cá isto! cá esta linda flor!...

Ia abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapazfugiu-lhe com uma bela risada, saltou do terraço, foi pendurar-sede um trapézio armado entre as árvores, e ficou lá, balançando-seem cadência, forte e airoso, gritando: «Tu és o Vilaça!»

O Vilaça, de guarda-sol debaixo do braço, contemplava-o embe-vecido.

— Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Osmesmos olhos, olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há-deser muito mais homem!

— É são, é rijo — dizia o velho risonho, anediando as barbas. —E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento?Venha você cá para dentro, Vilaça, que há muito que conversar...

Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha nachaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de Abril; porcela-nas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau-santo; os caná-rios pareciam doidos de alegria.

A Gertrudes, que ficara a observar, acercou-se, com as mãoscruzadas sob o avental branco, familiar, terna.

— Então, meu senhor, aqui está um regalo, ver outra vez esteingrato em Santa Olávia!

E, com um clarão de simpatia na face, alva e redonda comouma velha Lua, ornada já de um buço branco:

— Ah! Sr. Vilaça, isto agora é outra coisa! Até os canários can-tam! E também eu cantava, se ainda pudesse...

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E foi saindo, subitamente comovida, já com vontade de chorar.O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia de

uma a outra ponta dos seus altos colarinhos de mordomo.— Eu creio que prepararam o quarto azul ao Sr. Vilaça, hem?

— disse Afonso. — No quarto em que você costumava ficar dormeagora a viscondessa...

Então o Vilaça apressou-se a perguntar pela senhora viscon-dessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Afonso, que notempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casara com umfidalgote galego, o senhor visconde de Urigo de La Sierra, um bor-racho, um brutal que lhe batia: depois, viúva e pobre, Afonso reco-lhera-a por dever de parentela, e para haver uma senhora emSanta Olávia.

Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relógio, Afonsointerrompeu a relação desses achaques.

— Vilaça, vá-se arranjar, depressa, que daqui a pouco é o jan-tar.

O administrador, surpreendido, olhou também o relógio, depoisa mesa já posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas dePorto.

— Então Vossa Excelência agora janta de manhã? Eu penseique era o almoço...

— Eu lhe digo. O Carlos necessita ter um regime. De madru-gada está já na quinta; almoça às sete; e janta à uma hora. E eu,enfim, para vigiar as maneiras do rapaz...

— E o senhor Afonso da Maia — exclamou Vilaça — a mudar dehábitos, nessa idade! O que é ser avô, meu senhor!

— Tolice! não é isso... É que me faz bem. Olhe que me fazbem!... Mas avie-se, Vilaça, avie-se que Carlos não gosta de espe-rar... Talvez tenhamos o abade.

— O Custódio? Rica coisa! Então, se Vossa Excelência me dálicença...

Apenas no corredor, o mordomo, ansioso por conversar com osenhor administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o doguarda-sol e do xale-manta:

— Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta, Sr.Vilaça?

— Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir porgosto a Santa Olávia.

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E, pousando familiarmente a mão no ombro do escudeiro, pis-cando o olho ainda húmido:

— Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão!O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a ale-

gria da casa...— Olá! Quem toca por cá? — exclamou Vilaça, parando nos

degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rabeca.— É o Sr. Brown, o inglês, o preceptor do menino... Muito habi-

lidoso, é um regalo ouvi-lo; toca às vezes à noite na sala, o senhorjuiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, Sr. Vilaça, oquarto de Vossa Senhoria...

— Muito bonito, sim senhor!O verniz dos móveis novos brilhava na luz da duas janelas,

sobre o tapete alvadio semeado de florzinhas azuis: e as bambine-las, os reposteiros de cretone, repetiam as mesmas folhagens azula-das sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou obom Vilaça.

Foi logo apalpar os cretones, esfregou o mármore da cómoda,provou a solidez das cadeiras. Eram as mobílias compradas noPorto, hem? Pois, elegantes. E, realmente, não tinham sido caras.Nem ele fazia ideia! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duasaguarelas inglesas representando vacas de luxo deitadas na relva,à sombra de ruínas românticas. O Teixeira observou-lhe, com orelógio na mão:

— Olhe que Vossa Senhoria tem só dez minutos... O meninonão gosta de esperar.

Então Vilaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou oseu pesado colete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-seainda uma flanela escarlate, por causa dos reumatismos, e os ben-tinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias damaleta; ao fundo do corredor, a rabeca atacara o Carnaval deVeneza; e através das janelas fechadas sentia-se o grande ar, a fres-cura, a paz dos campos, todo o verde de Abril.

Vilaça, sem óculos, um pouco arrepiado, passava a ponta datoalha molhada pelo pescoço, por trás da orelha, e ia dizendo:

— Então o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hem? Já sesabe, é ele quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o senhoradministrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadi-

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nho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se elefosse a contar ao Sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dor-mia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, paradentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E outrasbarbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pelacriança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele,Teixeira, chegara a pensá-lo... Mas não, parece que era sistemainglês! Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apa-nhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com ascomidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a crianci-nha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

E o Teixeira acrescentou:— Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós apro-

vássemos a educação que tem levado, isso nunca aprovámos, nemeu, nem a Gertrudes.

Olhou outra vez o relógio, preso por uma fita negra sobre ocolete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois,tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe pas-sando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, enquantodizia, junto ao toucador onde o Vilaça acamava as duas longasrepas sobre a calva:

— Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre inglês, o que lheensinou? A remar! A remar, Sr. Vilaça, como um barqueiro! Semcontar o trapézio, e as habilidades de palhaço; eu nisso nem gostode falar... Que eu sou o primeiro a dizê-lo: o Brown é boa pessoa,calado, asseado, excelente músico. Mas é o que eu tenho repetido àGertrudes: pode ser muito bom para inglês, não é para ensinar umfidalgo português... Não é. Vá Vossa Senhoria falar a esse respeitocom a Sr.a D. Ana Silveira...

Bateram de manso à porta, o Teixeira emudeceu. Um escudeiroentrou, fez um sinal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosa-mente a sobrecasaca, e ficou com ela junto do toucador, onde oVilaça, vermelho e apressado, lutava ainda com as repas rebeldes.

O Teixeira, da porta, disse com o relógio na mão:— É o jantar. Tem Vossa Senhoria dois minutos, Sr. Vilaça.E o administrador daí a um momento abalava também, abo-

toando ainda o casaco pelas escadas.Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as

achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o

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Times. Carlos, a cavalo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grandehistória de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abade Custódio, como lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de boca aberta, numriso paternal e terno.

— Olhe quem ali vem, abade — disse-lhe Afonso.O abade voltou-se, e deu uma grande palmada na coxa:— Esta é nova! Então é o nosso Vilaça! E não me tinham dito

nada! Venham de lá esses ossos, homem!...Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aqueles

longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos — umacom as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande coroaaberta numa mata de cabelo branco. E como eles, de mãos dadas,continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dosanos, Afonso disse:

— Vilaça! A senhora viscondessa...O administrador, porém, procurou-a debalde, com os olhos

abertos, pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: — e Vilaça desco-briu-a enfim a um canto, entre o aparador e a janela, sentadanuma cadeirinha baixa, vestida de preto, tímida e queda, com osbraços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rostoanafado e mole, branco como papel, as roscas do pescoçocobriam-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra paradizer ao Vilaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pálida, com umdedo embrulhado num pedaço de seda negra. Depois ficou aabanar-se com um grande leque de lantejoulas, o seio a arfar, osolhos no regaço, como exausta daquele esforço.

Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeiraesperava, perfilado por trás do alto espaldar da cadeira de Afonso.

Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra his-tória. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Ele primeiro pen-sara ir às boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneiraque os correu a todos...

— E maiores que tu?— Três rapagões, vovô, pode perguntar à tia Pedra... Ela viu,

que estava na eira. Um deles trazia uma foice…— Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, des-

monte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarca feliz,

veio sentar-se ao alto da mesa, sorrindo e dizendo:

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— Já se vai fazendo pesado, já não está para colo...Mas então reparou no Brown, e tornando a erguer-se, fez a

apresentação do procurador:— O Sr. Brown, o amigo Vilaça... Peço perdão, descuidei-me, foi

culpa daquele cavalheiro lá ao fundo da mesa, o Sr. D. Carlos deMata-Sete!

O preceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasacamilitar, deu toda a volta à mesa, rígido e teso, para vir sacudir oVilaça num tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reocu-pou o seu lugar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidáveis bigo-des, e foi então que disse ao Vilaça, com o seu forte acento inglês:

— Muito belo dia... glorioso!— Tempo de rosas — respondeu o Vilaça, cumprimentando,

intimidado diante daquele atleta.Naturalmente, nesse dia, falou-se da jornada de Lisboa, do bom

serviço da mala-posta, do caminho-de-ferro que se ia abrir... OVilaça já viera no comboio até ao Carregado.

— De causar horror, hem? — perguntou o abade, suspendendoa colher que ia levar à boca.

O excelente homem nunca saíra de Resende; e todo o largomundo que ficava para além da penumbra da sua sacristia e dasárvores do seu passal lhe dava o terror de uma Babel. Sobretudoessa estrada de ferro, de que tanto se falava...

— Faz arrepiar um bocado — afirmou com experiência Vilaça.— Digam o que disserem, faz arrepiar!

Mas o abade assustava-se sobretudo com as inevitáveis desgra-ças dessas máquinas!

O Vilaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alco-baça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de cari-dade! Enfim, de todos os modos havia perigos. Podia-se quebraruma perna a passear no quarto...

O abade gostava do progresso... Achava até necessário o progresso.Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo à lufa-lufa... O País nãoestava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...

— E economia! — disse o Vilaça, puxando para si os pimentões.— Bucelas? — murmurou-lhe sobre o ombro o escudeiro.O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe à

luz a cor rica, provou-o com a ponta do lábio, e piscando o olho paraAfonso:

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— É do nosso!— Do velho — disse Afonso. — Pergunte ao Brown... Hem,

Brown, um bom néctar?— Magnificente! — exclamou o preceptor com uma energia

fogosa.Então Carlos, estendendo o braço por cima da mesa, reclamou

também Bucelas. E a sua razão era haver festa por ter chegado oVilaça. O avô não consentiu; o menino teria o seu cálice de Colares,como de costume, e um só. Carlos cruzou os braços sobre o guarda-napo que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Entãonem para festejar o Vilaça poderia apanhar uma gotinha de Bucelas?Aí estava uma linda maneira de receber os hóspedes na quinta... AGertrudes dissera-lhe que, como viera o senhor administrador, haviade pôr à noite para o chá o fato novo de veludo. Agora observavam-lheque não era festa, nem caso para Bucelas... Então não entendia.

O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente umcarão severo.

— Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoasgrandes é que palram à mesa.

Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito man-samente:

— Está bom, vovô, não te zangues. Esperarei para quando forgrande...

Houve um sorriso em volta da mesa. A própria viscondessa,deleitada, agitou preguiçosamente o leque: o abade, com a sua boaface banhada em êxtase para o menino, apertava as mãos cabelu-das contra o peito, tanto aquilo lhe parecia engraçado: e Afonso tos-sia por trás do guardanapo, como limpando as barbas — a escondero riso, a admiração que lhe brilhava nos olhos.

Tanta vivacidade surpreendeu também Vilaça. Quis ouvir maiso menino, e pousando o seu talher:

— E diga-me, Carlinhos, já vai adiantado nos seus estudos?O rapaz, sem olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelos cós

das flanelas, e respondeu com um tom superior:— Já faço ladear a Brígida.Então o avô, sem se conter, largou a rir, caído para o espaldar

da cadeira:— Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a Brígida! E é verdade,

Vilaça, já a faz ladear... Pergunte ao Brown; não é verdade, Brown?

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E a eguazita é uma piorrita, mas fina...— Ó vovô — gritou Carlos já excitado — diz ao Vilaça, anda.

Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?Afonso reassumiu um ar severo.— Não nego... Talvez o governasse, se lho consentissem. Mas

faça-me o favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bomcavaleiro deve ser modesto... E sobretudo não enterrar assim asmãos pela barriga abaixo...

O bom Vilaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, prepa-rava uma observação. Não se podia decerto ter melhor prenda quemontar a cavalo com as regras... Mas ele queria dizer se o Carli-nhos já entrava com o seu Fedro, o seu Tito Liviozinho...

— Vilaça, Vilaça — advertiu o abade, de garfo no ar e um sor-riso de santa malícia — não se deve falar em latim aqui ao nossonobre amigo... Não admite, acha que é antigo... Ele, antigo é...

— Ora sirva-se desse fricassé, ande, abade — disse Afonso —que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...

O abade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico osbons pedaços de ave, ia murmurando:

— Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá... Éa base; é a basezinha!

— Não! latim mais tarde! — exclamou o Brown, com um gestopossante. Prrimeiro forrça! Forrça! Músculo...

E repetiu, duas vezes, agitando os formidáveis punhos:— Prrimeiro músculo, músculo!...Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O

latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar aensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dosSabinos, o caso dos Gracos, e outros negócios de uma nação extinta,deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que omolha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do uni-verso em que vive...

— Mas enfim os clássicos — arriscou timidamente o abade.— Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para

isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata con-siste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolverexclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridadefísica. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... Aalma é outro luxo. É um luxo de gente grande...

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O abade coçava a cabeça, com o ar arrepiado.— A instruçãozinha é necessária — disse ele. — Você não acha,

Vilaça? Que Vossa Excelência, Sr. Afonso da Maia, tem visto maismundo do que eu... Mas enfim a instruçãozinha...

— A instrução para uma criança não é recitar Tityre, tu patulaerecubans... É saber factos, noções, coisas úteis, coisas práticas...

Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, num sinal ao Vilaça,mostrou-lhe o neto que palrava inglês com o Brown. Eram decertofeitos de força, uma história de briga com rapazes que ele lheestava a contar, animado e jogando com os punhos. O preceptoraprovava, retorcendo os bigodes. E à mesa os senhores, com os gar-fos suspensos, por trás os escudeiros de pé e guardanapo no braço,todos, num silêncio reverente, admiravam o menino a falar inglês.

— Grande prenda, grande prenda — murmurou Vilaça, incli-nando-se para a viscondessa.

A excelente senhora corou, através de um sorriso. Pareciaassim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendosempre; e, a cada gole de Bucelas, refrescava-se languidamentecom o seu grande leque negro e lantejoulado.

Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Afonso fez umasaúde ao Vilaça. Todos os copos se ergueram num rumor de ami-zade. Carlos quis gritar hurra! O avô, com um gesto repreensivo,imobilizou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse comuma grande convicção:

— Ó avô, eu gosto do Vilaça. O Vilaça é nosso amigo.— Muito, e há muitos anos, meu senhor! — exclamou o velho

procurador, tão comovido que mal podia erguer o cálice na mão.O jantar findava. Fora, o Sol deixara o terraço e a quinta verde-

java na grande doçura do ar tranquilo, sob o azul-ferrete. Na cha-miné só restava uma cinza branca: os lilases das jarras exalavam umaroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de umfio de limão: os criados, de coletes brancos, moviam o serviço dondese escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascadadesaparecia sob a confusão da sobremesa, onde os tons dourados dovinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de cristal. A viscon-dessa, afogueada, abanava-se. Padre Custódio enrolava devagar oguardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.

Então Afonso, sorrindo ternamente, fez a última saúde. — Viva Vossa Senhoria, Sr. Carlos de Mata-Sete!

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— Sr. Vovô! — dizia o pequeno escorropichando o copo.A cabecinha de cabelos negros, a velha face de barbas de neve,

saudavam-se das extremidades da mesa — enquanto todos sor-riam, no enternecimento daquela cerimónia. Depois o abade, depalito na boca, murmurou as graças. A viscondessa, cerrando osolhos, juntou também as mãos. E Vilaça, que tinha crenças religio-sas, não gostou de ver Carlos, sem se importar com as graças, sal-tar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, falar-lhe ao ouvido.

— Não senhor! não senhor! — dizia o velho.Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões,

num murmúrio de mimo doce como um beijo, que ia pondo na facedo velho uma fraqueza indulgente.

— É por ser festa — disse ele enfim vencido. — Mas veja lá,veja lá...

O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Vilaça pelos braços,fê-lo redemoinhar, e foi cantando num ritmo seu:

— Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Teresi-nha, inha, inha, inha!

— É a noiva — disse o avô, erguendo-se da mesa. — Já temamores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.

O dia fora convidava, adorável, de um azul suave, muito puro emuito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os gerânios verme-lhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenrasainda, de uma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro;vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfumeadocicado das flores do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas dojardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve àqueleSol tímido de Primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes daquinta, adormecida a essa hora de sesta numa luz fresca e loira.

Os três homens sentaram-se à mesa do café. Defronte do ter-raço, o Brown, de boné escocês posto ao lado e grande cachimbo naboca, puxava ao alto a barra do trapézio para Carlos se balouçar.Então o bom Vilaça pediu para voltar as costas. Não gostava de verginásticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavali-nhos, as cabriolas, os arcos atordoavam-no; saía sempre com o estô-mago embrulhado...

— E parece-me imprudente, sobre o jantar...— Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquilo!Mas Vilaça não se moveu, com a face sobre a chávena.

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O abade, esse, admirava, de lábios entreabertos, e o pires cheiode café esquecido na mão.

— Olhe para aquilo, Vilaça — repetiu Afonso. — Não lhe fazmal, homem!

O bom Vilaça voltou-se, com esforço. O pequeno, muito alto noar, com as pernas retesadas contra a barra do trapézio, as mãos àscordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com oscabelos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo empleno sol; todo ele sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se àaragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negrose muito abertos.

— Não está mais na minha mão, não gosto! — disse o Vilaça. —Acho imprudente!

Então Afonso bateu as palmas, o abade gritou: Bravo, bravo!Vilaça voltou-se para aplaudir, mas Carlos tinha já desaparecido; otrapézio parava, em oscilações lentas; e o Brown, retomando oTimes que pusera ao lado sobre o pedestal de um busto, foi des-cendo para a quinta envolvido numa nuvem de fumo do cachimbo.

— Bela coisa, a ginástica! — exclamou Afonso da Maia, acen-dendo com satisfação outro charuto.

Vilaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abade,depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a suabela frase, arranjada em máxima:

— Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...— Já o tem dito, abade, já! — exclamou Afonso alegremente. —

Diz-mo todas as semanas... Quer você saber, Vilaça? O nosso Custó-dio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha aorapaz. A cartilha!...

Custódio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face des-consolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião daquele velhofidalgo, senhor de quase toda a freguesia, era uma das suas dores.

— A cartilha, sim, meu senhor, ainda que Vossa Excelência odiga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não querofalar da cartilha... Há outras coisas. E se o digo tantas vezes, Sr.Afonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.

E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quandoCustódio jantava na quinta.

O bom homem achava horroroso que naquela idade um tãolindo moço, herdeiro de uma casa tão grande, com futuras respon-

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sabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narroulogo ao Vilaça a história da D. Cecília Macedo: esta virtuosasenhora, mulher do escrivão, tendo passado diante do portão daquinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga decrianças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o Acto de Contri-ção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar!Estas coisas entristeciam. E o Sr. Afonso da Maia achava-lhe graça,ria-se! Ora ali estava o amigo Vilaça que podia dizer se era casopara jubilar. Não, o Sr. Afonso da Maia tinha muito saber, e correramuito mundo; mas de uma coisa não o podia convencer, a ele pobrepadre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidadee bom comportamento na vida sem a moral do catecismo.

E Afonso da Maia respondia com bom humor:— Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o

rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem men-tir, nem maltratar os inferiores, porque isso é contra os manda-mentos da lei de Deus, e leva ao Inferno, hem? É isso?...

— Há mais alguma coisa…— Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não

deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que senão deve praticar, porque é indigno de um cavalheiro e de umhomem de bem...

— Mas, meu senhor...— Ouça, abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz

seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra;mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodode ir para o Reino do Céu...

E acrescentou, erguendo-se e sorrindo:— Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abade, é quando

vem, depois de semanas de chuva, um dia destes, ir respirar peloscampos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! E se oVilaça não está muito cansado, vamos dar aí um giro pelas fazendas...

O abade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dostempos de Belzebu arrebatando as melhores reses do rebanho;depois olhou a chávena e sorveu com delícias o resto do seu café.

Quando Afonso da Maia, Vilaça e o abade recolheram do seupasseio pela freguesia, escurecera, havia luzes pelas salas, etinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da Quinta daLagoaça.

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D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa dafamília, e era em pontos de doutrina e etiqueta uma grande autori-dade em Resende. A viúva, D. Eugénia, limitava-se a ser uma exce-lente e pachorrenta senhora, de agradável nutrição, trigueirota e pes-tanuda; tinha dois filhos, a Teresinha, a noiva de Carlos, uma rapari-guinha magra e viva com cabelos negros como tinta, e o morgadinho,o Eusebiozinho, uma maravilha muito falada naqueles sítios.

Quase desde o berço este notável menino revelara um edificanteamor por alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhavae já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embru-lhado num cobertor, folheando in-fólios com o craniozinho calvo desábio curvado sobre as letras garrafais da boa doutrina; e depois decrescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numacadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apete-cera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel,onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passavadias a traçar algarismos, com a linguazinha de fora.

Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, haviade ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha aSanta Olávia, a tia Anica instalava-o logo à mesa, ao pé do can-deeiro, a admirar as pinturas de um enorme e rico volume, Os Cos-tumes de Todos os Povos do Universo. Já lá estava nessa noite, ves-tido como sempre de escocês, com o plaid de flamejante xadrez ver-melho e negro posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona;para que conservasse o ar nobre de um Stuart, de um valorosocavaleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o boné onde searqueava com heroísmo uma rutilante pena de galo; e nada haviamais melancólico que a sua facezinha trombuda, a que o excesso delombrigas dava uma moleza e uma amarelidão de manteiga, osseus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a ciêncialhas tivesse já consumido, pasmando com sisudez para as campone-sas da Sicília, e para os guerreiros ferozes do Montenegro apoiadosa escopetas, em píncaros de serranias.

Diante do canapé das senhoras lá se achava também o fiel amigo,o doutor delegado, grave e digno homem, que havia cinco anos andavaponderando e meditando o casamento com a Silveira viúva, sem sedecidir — contentando-se em comprar todos os anos mais meia dúziade lençóis, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal.Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, à braseira: e as

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alusões recatadas, mas inevitáveis, às duas fronhazinhas, ao tamanhodos lençóis, aos cobertores de papa para os conchegos de Janeiro — emlugar de inflamar o magistrado, inquietavam-no. Nos dias seguintesaparecia preocupado — como se a perspectiva da santa consumação domatrimónio lhe desse o arrepio de uma façanha a empreender, o ter deagarrar um toiro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquerrazão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. Ealiviado, tranquilo, o respeitável doutor continuava a acompanhar asSilveiras a chás, festas de igreja ou pêsames, vestido de preto, afável,serviçal, sorrindo a D. Eugénia, não desejando mais prazeres que osdessa convivência paternal.

Apenas Afonso entrou na sala deram-lhe logo notícia do contra-tempo: o doutor juiz de direito e a senhora não podiam vir, porque omagistrado tivera a dor; e as Brancos tinham mandado recado adesculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazerdezassete anos que morrera o mano Manuel...

— Bem — disse Afonso — bem. A dor, a tristeza, o manoManuel... Fazemos nós um voltaretezinho de quatro. Que diz onosso doutor delegado?

O excelente homem dobrou a sua fronte calva, murmurandoque «estava às ordens».

— Então ao dever, ao dever! — exclamou logo o abade, esfre-gando as mãos, no ardor já da partida.

Os parceiros dirigiram-se à saleta do jogo — que um reposteirode damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesaverde e, nos círculos de luz que caíam dos abat-jours, os baralhosabertos em leque. Daí a um momento o doutor delegado voltou,risonho, dizendo que «os deixara para um roquezinho de três»; eretomou o seu lugar ao lado de D. Eugénia, cruzando os pésdebaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras esta-vam falando da dor do doutor juiz de direito. Costumava dar-lhetodos os três meses: e era condenável a sua teima em não quererconsultar médicos. Quanto mais que ele andava acabado, resse-quindo, amarelando — e a D. Augusta, a mulher, a nutrir à larga, aganhar cores!... A viscondessa, enterrada em toda a sua gordura aocanto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que emEspanha vira um caso igual: o homem chegara a parecer um esque-leto, e a mulher uma pipa; e ao princípio fora o contrário; até sobreisso se tinham feito uns versos...

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— Humores — disse com melancolia o doutor delegado.Depois falou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel

Branco, coitadinho, na flor da idade! E que perfeição de rapaz! Eque rapaz de juízo! D. Ana Silveira não se esquecera, como todos osanos, de lhe acender uma lamparina por alma, e de lhe rezar trêspadre-nossos. A viscondessa pareceu toda aflita por se não ter lem-brado... E ela que tinha o propósito feito!

— Pois estive para to mandar dizer! — exclamou D. Ana. — Eas Brancos que tanto o agradecem, filha!

— Ainda está a tempo — observou o magistrado.D. Eugénia deu uma malha indolente no crochet de que nunca

se separava, e murmurou com um suspiro:— Cada um tem os seus mortos.E no silêncio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro,

o da viscondessa, que decerto se recordara do fidalgo de Urigo deLa Sierra, e murmurava:

— Cada um tem os seus mortos...E o digno doutor delegado terminou por dizer igualmente,

depois de passar reflectidamente a mão pela calva:— Cada um tem os seus mortos!Uma sonolência ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as

consoles, as chamas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiozi-nho voltava com cautela e arte as estampas de Os Costumes deTodos os Povos. E na saleta de jogo, através do reposteiro aberto,sentia-se a voz já arrenegada do abade, rosnando com um rancortranquilo: «Passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»

Nesse momento Carlos arremetia pela sala dentro arrastando asua noiva, a Teresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo agrulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.

Os noivos tinham chegado de uma pitoresca e perigosa viagem,e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se de umamaneira atroz; quando ele ia governando a mala-posta, ela quiseraempoleirar-se ao pé dele na almofada... Ora senhoras não viajamna almofada.

— E ele atirou-me ao chão, titi!— Não é verdade! Demais a mais é mentirosa! Foi como quando

chegámos à estalagem... Ela quis-se deitar, e eu não quis... A gente,quando se apeia de viagem, a primeira coisa que faz é tratar dogado... E os cavalos vinham a escorrer...

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A voz de D. Ana interrompeu, muito severa:— Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavalaram bastante.

Senta-te aí ao pé da senhora viscondessa, Teresa... Olha essa tra-vessa do cabelo... Que despropósito!

Sempre destestara ver a sobrinha, uma menina delicada de dezanos, a brincar assim com o Carlinhos. Aquele belo e impetuosorapaz, sem doutrina e sem propósito, aterrava-a; e pela sua imagi-nação de solteirona passavam sem cessar ideias, suspeitas deultrajes que ele poderia fazer à menina. Em casa, ao agasalhá-laantes de vir para Santa Olávia, recomendava-lhe com força quenão fosse com o Carlos para os recantos escuros, que o não deixassemexer-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito lan-gorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abra-çar o seu maridinho. Se eram casados, porque não haviam de fazernené, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas oviolento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas agalope, viagens a terras de nomes bárbaros que o Brown lhe ensi-nava. Ela, despeitada, vendo o seu coração mal compreendido, cha-mava-lhe arrieiro ; ele ameaçava boxá-la à inglesa; — eseparavam-se sempre arrenegados.

Mas quando ela se acomodou ao lado da viscondessa, gravezinhae com as mãos no regaço — Carlos veio logo estirar-se ao pé dela,meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.

— Vamos, filho, tem maneiras — rosnou-lhe muito seca D. Ana.— Estou cansado, governei quatro cavalos — replicou ele, inso-

lente e sem a olhar.De repente, porém, de um salto, precipitou-se sobre o Eusebiozinho.

Queria-o levar à África, a combater os selvagens; e puxava-o já pelo seubelo plaid de cavaleiro da Escócia , quando a mamã acudiu aterrada:

— Não, com o Eusebiozinho não, filho! Não tem saúde paraessas cavaladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!

Mas o Eusebiozinho, a um repelão mais forte, rolara no chão,soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. Amãe, trémula, agachada junto dele, punha-o de pé sobre as perni-nhas moles, limpando-lhe as grossas lágrimas, já com o lenço, jácom beijos, quase a chorar também. O delegado, consternado, apa-nhara o boné escocês, e cofiava melancolicamente a bela pena degalo. E a viscondessa apertava às mãos ambas o enorme seio, comose as palpitações a sufocassem.

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O Eusebiozinho foi então preciosamente colocado ao lado datiti; e a severa senhora, com um fulgor de cólera na face magra,apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repeliro Carlinhos, que, de mãos atrás das costas e aos pulos em roda docanapé, ria, arreganhando para o Eusebiozinho um lábio feroz. Masnesse momento davam nove horas, e a desempenada figura doBrown apareceu à porta.

Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detrás da vis-condessa, gritando:

— Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!Então Afonso da Maia, que se não movera aos uivos lancinantes

do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:— Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.— Ó vovô, é festa, que está cá o Vilaça!Afonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma

palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor —enquanto ele, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protes-tando com desespero:

— É festa, vovô... É uma maldade!... O Vilaça pode-se escanda-lizar... Ó vovô, eu não tenho sono!

Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censu-raram logo aquela rigidez: aí estava uma coisa incompreensível; oavô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então obocadinho da soirée...

— Ó Sr. Afonso da Maia, porque não deixou estar a criança?— É necessário método, é necessário método — balbuciou ele,

entrando, todo pálido do seu rigor.E à mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tré-

mulas, repetia ainda:— É necessário método. Crianças à noite dormem.D. Ana Silveira, voltando-se para o Vilaça — que cedera o seu

lugar ao doutor delegado e vinha palestrar com as senhoras — teveaquele sorriso mudo que lhe franzia os lábios, sempre que Afonsoda Maia falava em «métodos».

Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo oleque, declarou, a trasbordar de ironia, que, talvez por ter a inteli-gência curta, nunca compreendera a vantagem dos «métodos»... Eraà inglesa, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; masou ela estava enganada, ou Santa Olávia era no reino de Portugal.

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E como Vilaça inclinava timidamente a cabeça, com a suapitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Afonso dentronão ouvisse, desabafou. O Sr. Vilaça naturalmente não sabia, masaquela educação do Carlinhos nunca fora aprovada pelos amigos dacasa. Já a presença do Brown, um herético, um protestante, comopreceptor na família dos Maias, causara desgosto em Resende.Sobretudo quando o Sr. Afonso tinha aquele santo do abade Custó-dio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria à criançahabilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação defidalgo, prepará-lo para fazer boa figura em Coimbra.

Nesse momento, o abade, suspeitando uma corrente de ar,erguera-se da mesa do jogo a fechar o reposteiro: então, comoAfonso já não podia ouvir, D. Ana ergueu a voz:

— E olhe que o Custódio teve desgosto, Sr. Vilaça. Que o Carli-nhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhequero contar o que sucedeu com a Macedo.

Vilaça já sabia.— Ah! já sabe? Lembras-te, viscondessa? Com a Macedo, do

Acto de Contrição...A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao Céu atra-

vés do tecto.— Horroroso! — continuou D. Ana. — A pobre mulher chegou lá

a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressão. Até sonhei comaquilo três noites a fio...

Calou-se um momento. Vilaça, embaraçado, acanhado, fazia girara caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langorde sonolência passou na sala; D. Eugénia, com as pálpebras pesadas,fazia de vez em quando uma malha mole no crochet; e a noiva de Car-los, estirada para o canto do sofá, já dormia, com a boquinha aberta,os seus lindos cabelos negros caindo-lhe pelo pescoço.

D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:— Sem contar que o pequeno está muito atrasado. A não ser um

bocado de inglês, não sabe nada... Não tem prenda nenhuma!— Mas é muito esperto, minha rica senhora! — acudiu Vilaça.— É possível — respondeu secamente a inteligente Silveira. E,

voltando-se para o Eusebiozinho, que se conservava ao lado dela,quieto como se fosse de gesso:

— Ó filho, diz tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos quesabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Eusébio, filho, sê bonito...

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Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saiasda titi: teve ela de o pôr de pé, ampará-lo, para que o tenro prodígionão aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lheque, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...

Isto decidiu-o: abriu a boca, e como de uma torneira lassa veiode lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado:

É noite, o astro saudoso Rompe a custo um plúmbeo céu, Tolda-lhe o rosto formoso Alvacento, húmido véu...

Disse-a toda — sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, osolhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com aagulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorrisode quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pál-pebras.

— Muito bem, muito bem! — exclamou o Vilaça, impressionado,quando o Eusebiozinho findou coberto de suor. — Que memória!Que memória!... É um prodígio!...

Os criados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado apartida; e o bom Custódio, de pé, com a sua chávena na mão, quei-xava-se amargamente da maneira por que aqueles senhores otinham esfolado.

Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senho-ras retiraram-se às nove e meia. O serviçal doutor delegado dava obraço a D. Eugénia; um criado da quinta alumiava adiante com olampião; e o moço das Silveiras levava ao colo o Eusebiozinho, queparecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um xale amar-rado na cabeça.

Depois da ceia, Vilaça acompanhou ainda um momento Afonsoda Maia à livraria, onde, antes de recolher, ele tomava sempre àinglesa o seu conhaque e soda.

O aposento, a que as velhas estantes de pau-preto davam umar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave,com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e oglobo do candeeiro pondo a sua claridade serena na mesa cobertade livros. Em baixo, os repuxos cantavam alto no silêncio danoite.

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Enquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Afonso,numa mesa baixa, os cristais e as garrafas de soda, Vilaça, com asmãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a brasa da acha quemorria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar,como ao acaso:

— Aquele rapazito é esperto...— Quem? o Eusebiozinho? — disse Afonso, que se acomodava

junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. — Eu tremo de over cá, Vilaça! O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um desgostohorroroso... Foi já há meses. Havia uma procissão e o Eusebiozinhoia de anjo.. . As Silveiras, excelentes mulheres, coitadas,mandaram-no cá para o mostrar à viscondessa, já vestido de anjo.Pois senhores, distraímo-nos, e o Carlos, que o andava a rondar,apodera-se dele, leva-o para o sótão, e, meu caro Vilaça... Em pri-meiro lugar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o piornão foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece oEusebiozinho aos berros pela titi, todo desfrisado, sem uma asa,com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um bar-bante, a coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões deouro, os tules, as lantejoulas, toda a vestimenta celeste em franga-lhos!... Enfim, um anjo depenado e sovado... Eu ia dando cabo doCarlos.

Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas,acrescentou, com uma satisfação profunda:

— É levado do Diabo, Vilaça!O administrador, sentado agora à borda de uma cadeira, esbo-

çou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Afonso, comas mãos nos joelhos, como esquecido e vago, Ia abrir os lábios, hesi-tou ainda, tossiu de leve; e continuou a seguir pensativamente asfaíscas que erravam sobre as achas.

Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para olume, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatromeses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, por umaeducação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco comas criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava cou-raçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a deco-rar versos, paginas inteiras do Catecismo de Perseverança. Ele porcuriosidade um dia abrira este livreco e vira lá «que, o Sol é queanda em volta da Terra (como antes de Galileu), e que Nosso

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Senhor todas as manhãs dá as ordens ao Sol, para onde há-de ir eonde há-de parar, etc., etc.». E assim lhe estavam arranjando umaalmazinha de bacharel...

Vilaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamentedecidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:

— Vossa Excelência sabe que apareceu a Monforte?Afonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da pol-

trona, perguntou tranquilamente, envolvido no fumo do cachimbo:— Em Lisboa?— Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que

escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa dela.E ficaram calados. Havia anos que entre eles se não pronun-

ciara o nome de Maria Monforte. Ao princípio, quando se retirarapara Santa Olávia, a preocupação ardente de Afonso da Maia foratirar-lhe a filha que ela levara. Mas a esse tempo ninguém sabiaonde Maria se refugiara com o seu príncipe: nem pela influênciadas legações, nem pagando regiamente a polícia secreta de Paris,de Londres, de Madrid, se pôde descobrir a «toca da fera», comodizia então o Vilaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e,dadas essas naturezas boémias, quem sabe se não errariam agorapela América, pela Índia, em regiões mais exóticas? Depois, pouco apouco, Afonso da Maia, descoroçoado com aqueles esforços vãos,todo ocupado do neto que crescia belo e forte ao seu lado, no enter-necimento contínuo que ele lhe dava, foi esquecendo a Monforte e asua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições,de quem mal sabia o nome. E agora, de repente, a Monforte apare-cia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquelacriança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...

Erguera-se, passeava na livraria, pesado e lento, com a cabeçabaixa. Junto à mesa, ao pé do candeeiro, o Vilaça ia percorrendoum a um os papéis da sua carteira.

— E está em Paris com o italiano? — perguntou Afonso dofundo sombrio do aposento.

O Vilaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:— Não senhor, está com quem lhe paga.E como Afonso se aproximava da mesa, sem uma palavra,

Vilaça, dando-lhe um papel dobrado, acrescentou:— Todas estas coisas são muito graves, Sr. Afonso da Maia, e eu

não quis fiar-me só na minha memória. Por isso pedi ao Alencar,

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que é um excelente rapaz, que me escrevesse numa carta tudo oque me contou. Assim, temos um documento. Eu não sei mais doque está escrito. Pode Vossa Excelência ler...

Afonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma história sim-ples, que o Alencar, o poeta da Vozes de Aurora, o estilista de Elvira,ornara de flores e de galões dourados como uma capela em dia de festa.

Uma noite, ao sair da Maison d’Or, ele vira a Monforte saltarde um coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logoreconhecido; e um momento ficaram hesitando, um defronte dooutro, debaixo do candeeiro de gás, no trottoir. Foi ela que, muitodecidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visi-tasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Madamede l’Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte, a Monfortefalou largamente de si: vivera três anos em Viena de Áustria comTancredo, e com o papá que se lhes fora reunir — e que lá conti-nuava decerto como em Arroios, refugiando-se pelos cantos dassalas, pagando as toilettes da filha, e dando palmadinhas ternas noombro do amante como outrora no ombro do marido. Depois tinhamestado em Mónaco; e aí, dizia o Alencar, «num drama sombrio depaixão que ela me fez entrever», o napolitano fora morto em duelo.O papá morrera também nesse ano, deixando apenas da sua for-tuna uns magros contos de réis, e a mobília da casa em Viena: ovelho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as per-das de Tancredo ao bacará. Passara então um tempo em Londres: edaí viera habitar Paris, com Mr. de l’Estorade, um jogador, umespadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonoulegando-lhe esse nome de l’Estorade, que lhe era a ele de ora emdiante inútil porque passava a adoptar outro mais sonoro deVicomte de Manderville. Enfim, pobre, formosa, doida, excessiva,lançara-se na existência daquelas mulheres de quem, dizia o Alen-car, «a pálida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camélias, é otipo sublime, o símbolo poético, a quem muito será perdoado por-que muito amaram». E o poeta terminava: «Ela está ainda noesplendor da beleza, mas as rugas virão, e então que avistará emredor de si? As rosas secas e ensanguentadas da sua coroa deesposa. Saí daquele boudoir perfumado com a alma dilacerada,meu Vilaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio deluar, entre as raízes dos ciprestes. E, desiludido desta cruel vida,vim pedir ao absinto, no Boulevard, uma hora de esquecimento.»

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Afonso da Maia deu um repelão à carta, menos enojado das tor-pezas da história, que daqueles lirismos relambidos.

E começou a passear, enquanto o Vilaça recolhia religiosamenteo documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do senti-mento, do estilo, do ideal daquela página.

— E a pequena? — perguntou Afonso.— Isso não sei. O Alencar não lhe falaria na filha, nem ele

mesmo sabe que ela a levou. Ninguém o sabe em Lisboa. Foi umdetalhe que passou despercebido no grande escândalo. Masenquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga Vossa Excelência omeu raciocínio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar alegítima que cabe à criança... Ela sabe a casa que Vossa Excelênciatem; há-de haver dias, e são frequentes na vida dessas mulheres,em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação damenina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrúpulosnão tem ela. Se o não faz, é que a filha morreu. Não lhe parece aVossa Excelência?

— Talvez — disse Afonso.E acrescentou, parando diante de Vilaça — que olhava outra

vez a brasa morta tirando estalinhos dos dedos:— Talvez... Suponhamos que morreram ambas, e não se fale

mais nisso.Estava dando meia-noite, os dois homens recolheram-se. E

durante os dias que Vilaça passou em Santa Olávia, não se proferiumais o nome de Maria Monforte.

Mas, na véspera da partida do administrador para Lisboa,Afonso subiu ao quarto dele, a entregar-lhe as amêndoas da Páscoaque Carlos mandava a Vilaça Júnior, um alfinete de peito com umamagnífica safira — e disse-lhe, enquanto o outro, sensibilizado, bal-buciava os agradecimentos:

— Agora outra coisa, Vilaça. Tenho estado a pensar. Vou escre-ver a meu primo Noronha, ao André, que vive em Paris como vocêsabe, pedir-lhe que procure essa criatura, e que lhe ofereça dez ouquinze contos de réis, se ela me quiser entregar a filha... No caso,está claro, que esteja viva... E quero que você saiba desse Alencar amorada da mulher em Paris.

O Vilaça não respondeu, ocupado a meter entre as camisas, bemno fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se,ficou diante de Afonso, a coçar reflectidamente o queixo.

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— Então que lhe parece, Vilaça?— Parece-me arriscado.E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze anos.

Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o carácterfeito, talvez os seus hábitos... Nem falaria o português. As sauda-des da mãe haviam de ser terríveis... Enfim, o Sr. Afonso da Maiatrazia uma estranha para casa...

— Você tem razão, Vilaça. Mas a mulher é uma prostituta, e apequena é do meu sangue.

Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovô,precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã.— O Brown tinha achado um corujazinha pequena! Queria que ovovô viesse ver, andara a buscá-lo por toda a casa... Era de morrera rir... Muito pequena, muito feia, toda pelada, e com dois olhos degente grande! E sabiam onde havia o ninho...

— Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é necessário ir pô-la noninho, por causa da coruja velha que se pode afligir... O Brownestá-lhe a dar azeite. Ó Vilaça, vem ver! Ó vovô, pelo amor deDeus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, que a corujavelha pode dar pela falta!...

E impaciente com a lentidão risonha do vovô, tanta indiferençapela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.

— Que bom coração! — exclamou o Vilaça comovido. — A pen-sar nas saudades da coruja... A mãe dele é que não tem saudades!Sempre o disse, é uma fera!

Afonso encolheu tristemente os ombros. Iam já no corredorquando ele, parando um momento, baixando a voz:

— Tem-me esquecido de lhe contar, Vilaça, o Carlos sabe que opai se matou...

Vilaça arredondou os olhos de espanto. Era verdade. Umamanhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: — Ó vovô, o papámatou-se com uma pistola! — Naturalmente algum criado que lhocontara...

— E Vossa Excelência?— Eu... que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho

obedecido ao que Pedro me pediu, nessas quatro ou cinco linhas dacarta que me deixou. Quis ser enterrado em Santa Olávia, aí está.Não queria que o filho jamais soubesse da fuga da mãe; e por mim,decerto, nunca o saberá. Quis que dois retratos que havia dela em

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Arroios fossem destruídos; como você sabe, obtiveram-se e destruí-ram-se. Mas não me pediu que ocultasse ao rapaz o seu fim. E porisso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que num momento deloucura, o papá tinha dada um tiro em si...

— E ele?— E ele — replicou Afonso sorrindo — perguntou-me quem lhe

tinha dado a pistola, e torturou-me toda a manhã para lhe dar tam-bém uma pistola... E aí está o resultado dessa revelação: é que tivede mandar vir do Porto uma pistola de vento...

Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, osdois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.

Vilaça ao outro dia partiu para Lisboa.Passadas duas semanas, Afonso recebia uma carta do adminis-

trador, trazendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelaçãoimprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordandooutros incidentes da sua visita a Madame de l ’Estorade,contara-lhe que no boudoir dela havia um adorável retrato decriança, de olhos negros, cabelo de azeviche, e uma palidez denácar. Esta pintura ferira-o, não só por ser de um grande pintoringlês, mas por ter, pendente sob o caixilho, como um voto funerá-rio, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não haviaoutro quadro no boudoir: e ele perguntara à Monforte se era umretrato ou uma fantasia. Ela respondera que era o retrato da filhaque lhe morrera em Londres.

«Estão assim dissipadas todas as dúvidas», acrescentava oVilaça. «O pobre anjinho está numa pátria melhor. E para ela, bemmelhor!»

Afonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tar-dou. Quando o primo André procurara Madame de l’Estorade,havia semanas que ela partira para a Alemanha, depois de vendermobília e cavalos. E no Clube Imperial, a que ele pertencia, umamigo, que conhecia bem Madame de l’Estorade e a vida galante deParis, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acro-bata do Circo de Inverno nos Campos Elísios, homem de formasmagníficas, um Apolo de feira, que todas as cocottes se disputavame que a Monforte empolgara. Naturalmente corria agora a Alema-nha com a companhia de cavalinhos.

Afonso da Maia, enojado, remeteu esta carta ao Vilaça sem umcomentário. E o honrado homem respondeu: «Tem Vossa Excelência

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razão, é atroz: e mais vale supor que todos morreram, e não gastarmais cera com tão ruins defuntos...» E depois num pós-escritoacrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho-de-ferroaté ao Porto: em tal caso, com permissão de Vossa Excelência, aíirei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias de hospitalidade.»

Esta carta foi recebida em Santa Olávia um domingo, ao jantar.Afonso lera alto o P. S. Todos se alegraram, na esperança de ver obom Vilaça em breve na quinta; e falou-se mesmo em arranjar umgrande piquenique, rio acima.

Mas, terça-feira à noite, chegava um telegrama de ManuelVilaça anunciando que o pai morrera, nessa manhã, de uma apo-plexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores.Fora depois do almoço que, de repente, Vilaça se sentira muitosufocado, e com tonturas: ainda tivera forças de ir ao quarto respi-rar um pouco de éter: mas ao voltar à sala cambaleava, queixava-sede ver tudo amarelo, e caiu de bruços, como um fardo, sobre ocanapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, aindanesse momento se ocupou da casa que há trinta anos administrava:balbuciou, a respeito de uma venda de cortiça, recomendações queo filho já não pôde perceber: depois deu um grande ai; e só tornou aabrir os olhos para murmurar no derradeiro sopro estas derradei-ras palavras: Saudades ao patrão!

Afonso da Maia ficou profundamente afectado, e em Santa Olá-via, mesmo entre os criados, a morte de Vilaça foi como um lutodoméstico. Uma dessas tardes, o velho, muito melancólico, estava nalivraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados —quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veiopassar-lhe um braço pelo pescoço, e como compreendendo os seus pen-samentos, perguntou-lhe se o Vilaça não voltaria a vê-los à quinta.

— Não, filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a ver.O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o

tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:— O Vilaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Ó vovô,

para onde o levaram?— Para o cemitério, filho, para debaixo da terra.Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito

sério, com os olhos nele:— Ó vovô! porque não lhe mandas fazer uma capelinha bonita,

toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?

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O velho achegou-o ao peito, beijou-o, comovido:— Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!Assim o bom Vilaça teve no Cemitério dos Prazeres o seu jazigo

— que fora a alta ambição da sua existência modesta.

Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olávia.Depois uma manhã de Julho, em Coimbra, Manuel Vilaça

(agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mon-dego, onde Afonso se hospedara com o neto, e entrava-lhe pela sala,vermelho, suando, berrando:

— Neminè! Neminè!Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira, que

tinha acompanhado os senhores de Santa Olávia correu à porta,abraçou-se quase chorando ao menino, agora mais alto que ele, emuito formoso na sua batina nova.

Em cima no quarto, Manuel Vilaça, soprando ainda, limpandoas bagas de suor, exclamava:

— Ficou tudo espantado, Sr. Afonso da Maia! Os lentes atéestavam comovidos. Ih! Jesus! que talento! Vem a ser um grandehomem, é o que todo o mundo disse... E que Faculdade vai eleseguir, meu senhor?

Afonso, que passeava, todo trémulo, respondeu com um sorriso:— Não sei, Vilaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.Carlos assomou à porta, radiante, seguido do Teixeira e do

outro escudeiro — que trazia champanhe numa salva.— Então venha cá, seu maroto — disse Afonso muito branco,

com os braços abertos. — Bom exame, hem?... Eu...Mas não pôde prosseguir: as lágrimas, duas a duas, corriam-lhe

pela barba branca.

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CARLOS ia formar-se em Medicina. E como dizia o Dr. Tri-gueiros houvera sempre naquele menino realmente uma «vocaçãopara Esculápio».

A «vocação» revelara-se bruscamente um dia que descobriu nosótão, entre rumas de velhos alfarrábios, um rolo manchado e anti-quado de estampas anatómicas; tinha passado dias a recortá-las,pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos,cabeças de perfil «com o recheio à mostra». Uma noite mesmo rom-pera pela sala em triunfo, a mostrar às Silveiras, ao Eusébio, apavorosa litogradia de um feto de seis meses no útero materno.D. Ana recuou, com um grito, colando o leque à face: e o doutordelegado, escarlate também, arrebatou prudentemente Eusebiozi-nho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o queescandalizou mais as senhoras foi a indulgência de Afonso.

— Então que tem, então que tem? — dizia ele sorrindo.— Que tem, Sr. Afonso da Maia!? — exclamou D. Ana. São inde-

cências!— Não há nada indecente na Natureza, minha rica senhora. Inde-

cente é a ignorância... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de sabercomo é esta pobre máquina por dentro, não há nada mais louvável.

D. Ana abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãosda criança!... Carlos começou a aparecer-lhe como um libertino«que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Teresinha brin-casse só com ele pelos corredores de Santa Olávia.

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Capítulo IV

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As pessoas sérias, porém, o doutor juiz de direito, o próprioabade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concorda-vam que aquilo mostrava no pequeno uma grande queda para amedicina.

— Se pega — dizia então com um gesto profético o Dr. Triguei-ros — temos dali coisa grande!

E parecia pegar.Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus com-

pêndios de lógica e retórica, para se ocupar de anatomia: numasférias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendoalvejar entre as dobras de um casaco o riso de uma caveira: e sealgum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo ocaso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar abeira do catre, fazendo diagnósticos que o bom Dr. Trigueiros escu-tava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo aomenino «o seu talentoso colega».

Esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se sempre que eletomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigosde Santa Olávia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapazque ia crescendo tão formoso, tão bom cavaleiro, viesse a estragar avida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das san-grias. O doutor juiz de direito confessou mesmo um dia a sua des-crença de que o Sr. Carlos da Maia quisesse «ser médico a sério».

— Ora essa! — exclamou Afonso. — E porque não há-de sermédico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sin-ceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio,muito menos para amador; educo-o para ser útil ao seu país...

— Todavia — arriscou o doutor juiz de direito com um sorrisofino — não lhe parece a Vossa Excelência que há outras coisas,importantes também, e mais próprias talvez, em que seu neto sepoderia tornar útil?...

— Não vejo — replicou Afonso da Maia. — Num país em que aocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é incontes-tavelmente saber curar.

— Vossa Excelência tem resposta para tudo — murmurou res-peitosamente o magistrado.

E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida«a sério», prática e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa nofogo de uma vasta clínica, as existências que se salvam com um

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golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um leito, entre o ter-ror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como empequeno o tinham encantado as formas pitorescas das vísceras —atraíam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciência.

Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longosanos de quieto estudo o avô preparara-lhe uma linda casa emCelas, isolada, com graças de cottage inglês, ornada de persianasverdes, toda fresca entre as árvores. Um amigo de Carlos (um certoJoão da Ega) pôs-lhe o nome de «Paços de Celas», por causa deluxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas demarroquim, panóplias de armas, e um escudeiro de libré.

Ao princípio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgo-tes, mas suspeito aos democratas; quando se soube, porém, que odono destes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spen-cer, e considerava também o país uma choldra ignóbil — os maisrígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tãofamiliarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o durosocialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia.

Ao fim de alguns meses, Carlos, simpático a todos, conciliaradandies e filósofos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado,o Serra Torres, um monstro que já era adido honorário em Berlim etodas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava aMorte de Satanás, encolhido no seu gabão de Aveiro, com o seugrande barrete de lontra.

Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre,tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se umaginástica científica. Uma velha cozinha fora convertida em sala dearmas — porque naquele grupo a esgrima passava como umanecessidade social. À noite, na sala de jantar, moços sérios faziamum whist sério: e no salão, sob o lustre de cristal, com o Figaro, oTimes e as revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas,o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os literatos estira-dos pelas poltronas — havia ruidosos e ardentes cavacos, em que aDemocracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismarck,o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flamejava no fumodo tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussõesmetafísicas, as próprias certezas revolucionárias adquiriam umsabor mais requintado com a presença do criado de farda desarro-lhando a cerveja, ou servindo croquetes.

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Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com asfolhas intactas, os seus expositores de medicina. A Literatura e aArte, sob todas as formas, absorveram-no deliciosamente. Publicousonetos no Instituto — e um artigo sobre o Pártenon: tentou, numatelier improvisado, a pintura a óleo: e compôs contos arqueológi-cos, sob a influência da Salammbô. Além disso todas as tardes pas-seava os seus dois cavalos. No segundo ano levaria um R se nãofosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô:moderou a dissipação intelectual, acantoou-se mais na ciência queescolhera: imediatamente lhe deram um accessit. Mas tinha nasveias o veneno do diletantismo: e estava destinado, como dizia Joãoda Ega, a ser um desses médicos literários que inventam doençasde que a humanidade papalva se presta logo a morrer!

O avô, às vezes, vinha passar uma, duas semanas a Celas. Nosprimeiros tempos a sua presença, agradável aos cavalheiros dapartida de whist, desorganizou o cavaco literário. Os rapazes malousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa exce-lência isto, vossa excelência aquilo, regelavam a sala. Pouco apouco, porém, vendo-o aparecer em chinelas e de cachimbo na boca,estirar-se na poltrona com ares simpáticos de patriarca boémio,discutir arte e literatura, contar anedotas do seu tempo de Ingla-terra e de Itália, começaram a considerá-lo como um camarada debarbas brancas. Diante dele já se falava de mulheres e de estroini-ces. Aquele velho fidalgo, tão rico, que lera Michelet e o admirava— chegou mesmo a entusiasmar os democratas. E Afonso gozavaali também horas felizes, vendo o seu Carlos centro daqueles moçosde estudo, de ideal e de veia.

Carlos passava as férias grandes em Lisboa, às vezes em Parisou Londres; mas por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa Olávia,que o avô, mais só, se entretinha a embelezar com amor. As salastinham agora soberbos panos de Arrás, paisagens de Rousseau eDaubigny, alguns móveis de luxo e de arte. Das janelas a quinta ofe-recia aspectos nobres de parque inglês: através dos macios tabulei-ros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia mármo-res entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob oscastanheiros. Mas a existência neste meio rico não era agora tãoalegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, caía em sonos conges-tivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois,tinham morrido, ambos de pleurises, ambos no Entrudo: e já se não

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via também à mesa a bondosa face do abade, que lá jazia sob umacruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o ano. O doutor juizde direito com a sua concertina passara para a Relação do Porto;D. Ana Silveira, muito doente, nunca saía; a Teresinha fizera-seuma rapariguinha feia, amarela como uma cidra; o Eusebiozinho,molengão e tristonho, já sem vestígios sequer do seu primeiro amoraos alfarrábios e às letras, ia casar na Régua. Só o doutor delegado,esquecido naquela comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez,sempre afável, amando sempre a pachorrenta D. Eugénia. E quasetodas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua égua branca aoportão, para vir cavaquear com o colega.

As férias, realmente, só eram divertidas para Carlos quandotrazia para a quinta o seu íntimo, o grande João da Ega, a quemAfonso da Maia se afeiçoara muito, por ele e pela sua originalidade,e por ser sobrinho de André da Ega, velho amigo da sua mocidadee, muitas vezes outrora, hóspede também em Santa Olávia.

Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pau-sadamente — ora reprovado, ora perdendo o ano. Sua mãe, rica,viúva e beata, retirada numa quinta ao pé de Celorico de Bastocom uma filha, beata, viúva e rica também, tinha apenas umanoção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coim-bra. O capelão afirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, eque o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e estapromessa bastava à boa senhora, que se ocupava sobretudo da suadoença de entranhas e dos confortos desse padre Serafim. Esti-mava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longeda quinta, que ele escandalizava com a sua irreligião e as suasfacécias heréticas.

João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico,mas também na Academia, que ele espantava pela audácia e pelosditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais apareceranas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou oseu ódio à Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacredas classes médias, o amor livre das ficções do matrimónio, arepartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligêncianeste sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisiono-mia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigodearrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado noolho direito — tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico.

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Desde a sua entrada na Universidade, renovara as tradições daantiga boémia: trazia os rasgões da batina cosidos a linha branca;embebedava-se com carrascão; à noite, na Ponte, com o braçoerguido, atirava injúrias a Deus. E no fundo muito sentimental,enleado sempre em amores por meninas de quinze anos, filhas deempregados, com quem às vezes ia passar a soirée, levando-lhescartuchinhos de doce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apete-cido nas famílias.

Carlos escarnecia estes idílios futricas; mas também ele termi-nou por se enredar num episódio romântico com a mulher de umempregado do Governo Civil, uma lisboetazinha, que o seduziu pelagraça de um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ela oque a fanatizara fora o luxo, o groom, a égua inglesa de Carlos.Trocaram-se cartas; e ele viveu semanas banhado na poesia ásperae tumultuosa do primeiro amor adúltero. Infelizmente a raparigatinha o nome bárbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, des-coberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico, o Presbítero, dirigiampara Celas missivas pelo correio com este nome odioso.

Um dia, Carlos andava tomando o Sol na feira, quando oempregado do Governo Civil passou junto dele com o filhinho pelamão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda.Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adorável,muito gordo, parecendo mais roliço por aquele dia de Janeiro sob osagasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas defrio, e rindo na clara luz — rindo todo ele, pelos olhos, pelas covi-nhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pai amparava-o; e oencanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos doseu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que ele liaMichelet — e enchia-lhe a alma a veneração literária da santidadedoméstica. Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog-cart,a preparar friamente a vergonha, e as lágrimas daquele pobre paitão inofensivo no seu paletó coçado! Nunca mais respondeu às car-tas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapa-riga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do Governo Civil,daí por diante, dardejava sobre ele olhares sangrentos.

Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse oEga, foi quando ele, ao fim de umas férias, trouxe de Lisboa umasoberba rapariga espanhola, e a instalou numa casa ao pé de Celas.Chamava-se Encarnación. Carlos alugou-lhe ao mês uma vitória

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com um cavalo branco e Encarnación fanatizou Coimbra como aaparição de uma Dama das Camélias, uma flor de luxo das civiliza-ções superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazesparavam, pálidos de emoção, quando ela passava, reclinada navitória, mostrando o sapato de cetim, um pouco da meia de seda,lânguida e desdenhosa, com um cãozinho branco no regaço.

Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnaciónfoi chamada Lírio de Israel, Pomba da Arca e Nuvem da Manhã.Um estudante de teologia, rude e sebento transmontano, quis casarcom ela. Apesar das instâncias de Carlos, Encarnación recusou; e oteólogo começou a rondar Celas, com um navalhão, para «beber osangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.

Mas a criatura, desvanecida, tornou-se intolerável, falando semcessar de outras paixões que inspirara em Madrid e em Lisboa, domuito que lhe dera o conde de tal, o marquês sicrano, da grandeposição da sua família ainda aparentada com os Medina-Coeli: osseus sapatos de cetim verde eram tão antipáticos como a sua vozestrídula: e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia,rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos deD. Isabel, a sua gracia, o seu salero — sendo muito conservadoracomo todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro decla-rou que não voltava aos Paços de Celas enquanto por lá aparecesseaquele montão de carne, pago ao arrátel, como a de vaca.

Enfim, uma tarde, Baptista, o famoso criado de quarto de Car-los, surpreendeu-a com um Juca que fazia de dama no Teatro Aca-démico. Aí estava, enfim, um pretexto! E, convenientemente paga,a parenta dos Medina-Coeli, o Lírio de Israel, a admiradora dosBourbons, foi recambiada a Lisboa, e à Rua de S. Roque, seu ele-mento natural.

Em Agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegrefesta em Celas. Afonso viera de Santa Olávia, Vilaça de Lisboa;toda a tarde no quintal, de entre as acácias e as belas sombras,subiram ao ar molhos de foguetes; e João da Ega, que levara o seuúltimo R no seu último ano, não descansou, em mangas de camisa,pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapézio e emroda do poço, para a iluminação da noite. Ao jantar, a que assis-tiam lentes, Vilaça, enfiado e trémulo, fez um speech; ia citar onosso imortal Castilho quando sob as janelas rompeu, a granderuído de tambor e pratos, o Hino Académico. Era uma serenata. —

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Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para trás das cos-tas, correu à sacada, a perorar:

— Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, come-çando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidadeenferma — ou acabar de a matar, segundo as circunstâncias! A queparte remota destes reinos não chegou já a fama do seu génio, do seudog-cart, do sebáceo accessit que lhe enodoa o passado, e deste vinhodo Porto contemporâneo dos heróis de 20, que eu, homem de revolu-ção e homem de carraspana, eu, João da Ega, Joahanes ab Ega...

O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A filarmónica,outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as árvores doquintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correramcom salvas de doce, não cessou de estalar o champanhe. E Vilaça,limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, aoutro, a si mesmo também:

— Grande coisa, ter um curso!

E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pelaEuropa. Um ano passou. Chegara esse Outono de 1875: e o avô,instalado enfim no Ramalhete, esperava por ele ansiosamente. Aúltima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia ele,a estudar a admirável organização dos hospitais de crianças. Assimera: mas passeava também por Brighton, apostava nas corridas deGoodwood, fazia um idílio errante pelos lagos da Escócia, com umasenhora holandesa, separada de seu marido, venerável magistradoda Haia, uma Madame Rughel, soberba criatura de cabelos de oirofulvo, grande e branca como uma ninfa de Rubens.

Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixassucessivas de livros, outras de instrumentos e aparelhos, toda umabiblioteca e todo um laboratório — que trazia o Vilaça, manhãsinteiras, aturdido pelos armazéns da Alfândega.

— O meu rapaz vem com grandes ideias de trabalho — diziaAfonso aos amigos.

Havia catorze meses que ele o não via, o «seu rapaz», a não sernuma fotografia mandada de Milão, em que todos o acharam magroe triste. E o coração batia-lhe forte, na linda manhã de Outono,quando do terraço do Ramalhete, de binóculo na mão, viu assomarvagarosamente, por trás do alto prédio fronteiro, um grandepaquete da Royal Mail que lhe trazia o seu neto.

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À noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho,o Vilaça — não se fartavam de admirar «o bem que a viagem fizeraa Carlos». Que diferença da fotografia! Que forte, que saudável!

Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem feito, deombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos cabelospretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, deum negro líquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia abarba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada noqueixo — o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantosda boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença. E o avô,cujo olhar risonho e húmido trasbordava de emoção, todo se orgu-lhava de o ver, de o ouvir, numa larga veia, falando da viagem, dosbelos dias de Roma, do seu mau humor na Prússia, da originali-dade de Moscovo, das paisagens da Holanda...

— E agora? — perguntou-lhe o Sequeira, depois de ummomento de silêncio em que Carlos estivera bebendo o seu conha-que e soda. — Agora que tencionas tu fazer?

— Agora, general? — respondeu Carlos, sorrindo e pousando ocopo. — Descansar primeiro e depois passar a ser uma glória nacional!

Ao outro dia, com efeito, Afonso veio encontrá-lo na sala debilhar — onde tinham sido colocados os caixotes — a despregar, adesempacotar, em mangas de camisa e assobiando com entusiasmo.Pelo chão, pelos sofás, alastrava-se toda uma literatura em rumasde volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através daslonas descosidas, a luz faiscava num cristal, ou reluziam os verni-zes, os metais polidos dos aparelhos. Afonso pasmava em silênciopara aquele pomposo aparato do saber.

— E onde vais tu acomodar este museu?Carlos pensara em arranjar um vasto laboratório ali perto no

bairro, com fornos para trabalhos químicos, uma sala disposta paraestudos anatómicos e fisiológicos, a sua biblioteca, os seus aparelhos,uma concentração metódica de todos os instrumentos de estudo...

Os olhos do avô iluminavam-se ouvindo este plano grandioso.— E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fize-

mos nestes últimos anos de Santa Olávia algumas economias...— Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Vilaça.As semanas foram passando nestes planos de instalação. Car-

los trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a ciência comomera ornamentação interior do espírito, mais inútil para os outros

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que as próprias tapeçarias do seu quarto, parecia-lhe apenas umluxo de solitário: desejava ser útil. Mas as suas ambições flutua-vam, intensas e vagas; ora pensava numa larga clínica; ora na com-posição maciça de um livro iniciador; algumas vezes em experiên-cias fisiológicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supu-nha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha deaplicação. «Alguma coisa de brilhante», como ele dizia: e isto paraele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto derepresentação social e de actividade científica; o remexer profundode ideias entre as influências delicadas da riqueza; os elevadosvagares da filosofia entremeados com requintes de sport e de gosto;um Claude Bernard que fosse também um Morny... No fundo eraum diletante.

Vilaça fora consultado sobre a localidade própria para o labora-tório; e o procurador, muito lisonjeado, jurou uma diligência incan-sável. Primeira coisa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clí-nica?...

Carlos não decidira fazer exclusivamente clínica: mas desejavadecerto dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como prá-tica. Então Vilaça sugeriu que o consultório estivesse separado dolaboratório.

— E a minha razão é esta: a vista de aparelhos, máquinas, coi-sas, faz esmorecer os doentes...

— Tem você razão, Vilaça! — exclamou Afonso. — Já meu paidizia: poupe-se ao boi a vista do malho.

— Separados, separados, meu senhor — afirmou o procuradornum tom profundo.

Carlos concordou. E Vilaça bem depressa descobriu, para olaboratório, um antigo armazém, vasto e retirado, ao fundo de umpátio, junto ao Largo das Necessidades.

— E o consultório, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Ros-sio, ali em pleno Rossio!

Esta ideia do Vilaça não era desinteressada. Grande entusiastada Fusão, membro do Centro Progressista, Vilaça Júnior aspiravaa ser vereador da Câmara, e mesmo em dias de satisfação superior(como quando o seu aniversário natalício vinha anunciado no Ilus-trado, ou quando no Centro citava com aplauso a Bélgica),parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido umacadeira em S. Bento. Um consultório gratuito, no Rossio, o consultório

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do Dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como umelemento de influência. E tanto se agitou, que daí a dois dias tinhaalugado um primeiro andar de esquina.

Carlos mobilou-o com luxo. Numa antecâmara, guarnecida debanquetas de marroquim, devia estacionar, à francesa, um criadode libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papelverde de ramagens prateadas, a plantas em vasos de Ruão, qua-dros de muita cor, e ricas poltronas cercando a jardineira cobertade colecções do Charivari, de vistas estereoscópicas, de álbuns deactrizes seminuas, para tirar inteiramente o ar triste de consultó-rio, até um piano mostrava o seu teclado branco.

O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quase austero,todo em veludo verde-negro, com estantes de pau-preto. Algunsamigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporâ-neo e agora vizinho do Ramalhete, o Cruges, o marquês de Souse-las, com quem percorrera a Itália — vieram ver estas maravilhas.O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominável;Taveira absorveu-se nas fotografias de actrizes; e a única aprova-ção franca veio do marquês, que depois de contemplar o divã dogabinete, verdadeiro móvel de serralho, vasto, voluptuoso, fofo,experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho aCarlos:

— A calhar.Não pareciam acreditar nestes preparativos. E todavia eram

sinceros. Carlos até fizera anunciar o consultório nos jornais;quando viu, porém, o seu nome em letras grossas, entre o de umaengomadeira à Boa Hora e um reclamo de casa de hóspedes —encarregou Vilaça de retirar o anúncio.

Ocupava-se então mais do laboratório, que decidira instalar noarmazém, às Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, iavisitar as obras. Entrava-se por um grande pátio, onde uma belasombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchosde ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformaraquele espaço em fresco jardinete inglês; e a porta do casarãoencantava-o, ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendoum acesso vulnerável para o seu santuário de ciência. Mas dentroos trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martelar pre-guiçoso numa poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferra-mentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro

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esgrouviado e triste parecia estar ali desde séculos, aplainandouma tábua eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os traba-lhadores, que andavam alargando a clarabóia, não cessavam deassobiar, no sol de Inverno, alguma lamúria de fado.

Carlos queixava-se ao Sr. Vicente, o mestre-de-obras, que lheasseverava invariavelmente «como daí a dois dias havia de SuaExcelência ver a diferença». Era um homem de meia-idade, riso-nho, de falar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao péde Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, porsimpatia, como vizinho, apertava-lhe sempre a mão: e o Sr. Vicente,considerando-o por isso um «avançado», um democrata,confiava-lhe as suas esperanças. O que ele desejava primeiro quetudo era um 93, como em França...

— O quê, sangue? — dizia Carlos, olhando a fresca, honrada eroliça face do demagogo.

— Não, senhor, um navio, um simples navio...— Um navio?— Sim, senhor, um navio fretado à custa da nação, em que se

mandasse pela barra fora o rei, a família real, a cambada dosministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

Carlos sorria, às vezes argumentava com ele.— Mas está o Sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada,

como tão exactamente diz, desaparecesse pela barra fora, ficavamresolvidas todas as coisas e tudo atolado em felicidade?

Não, o Sr. Vicente não era «burro» que assim pensasse. Mas,suprimida a cambada, não via Sua Excelência? Ficava o país desa-travancado; e podiam então começar a governar os homens desaber e de progresso...

— Sabe Vossa Excelência qual é o nosso mal? Não é má vontadedessa gente; é muita soma de ignorância. Não sabem. Não sabemnada. Eles não são maus, mas são umas cavalgaduras!

— Bem, então essas obras, amigo Vicente — dizia-lhe Carlos,tirando o relógio e despedindo-se dele com um valente shake-hands— veja se me andam. Não lho peço como proprietário, é como corre-ligionário.

— Daqui a dois dias há-de Vossa Excelência ver a diferença —respondia o mestre-de-obras, desbarretando-se.

No Ramalhete, pontualmente ao meio-dia, tocava a sineta doalmoço. Carlos encontrava quase sempre o avô já na sala de jantar,

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acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tépidasuavidade daquele fim de Outono não permitia acender lume, masverdejando todo de plantas de estufa.

Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam sua-vemente, no seu luxo maciço e sóbrio, as baixelas antigas; pelas tape-çarias ovais dos muros apainelados corriam cenas de balada, caçado-res medievais soltando o falcão, uma dama entre pajens alimentandoos cisnes de um lago, um cavaleiro de viseira calada seguindo aolongo de um rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho enta-lhado, a mesa resplandecia com as flores entre os cristais.

O «Reverendo Bonifácio», que desde que se tornara dignitárioda Igreja comia com os senhores, lá estava já majestosamente sen-tado sobre a alvura nevada da toalha, à sombra de algum granderamo. Era ali, no aroma das rosas, que o venerável gato gostava delamber, com o seu vagar estúpido, as sopas de leite, servidas numcovilhete de Estrasburgo. Depois agachava-se, traçava por diantedo peito a fofa pluma da sua cauda, e de olhos cerrados, os bigodestesos, todo ele uma bola entufada de pêlo branco malhado de oiro,gozava de leve uma sesta macia.

Afonso — como confessava, sorrindo e humilhado — ia-se tornandocom a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentraçãode crítico, as obras de arte do chef francês que tinham agora, um cava-lheiro de mau génio, todo bonapartista, muito parecido com o impera-dor, e que se chamava Mr. Théodore. Os almoços no Ramalhete eramsempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando;e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma excla-mação, precipitando-se sobre o relógio, se lembrava do seu consultório.Bebia um cálice de chartreuse, acendia à pressa um charuto.

— Ao trabalho, ao trabalho! — exclamava.E o avô, enchendo devagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquela

ocupação, enquanto ele ficava ali a vadiar toda a manhã...— Quando esse eterno laboratório estiver acabado, talvez vá

para lá passar um bocado, ocupar-me de química.— E ser talvez um grande químico. O avô tem já o feitio.O velho sorria.— Esta carcaça já não dá nada, filho. Está pedindo Eternidade!— Quer alguma coisa da Baixa, de Babilónia? — perguntava

Carlos, abotoando à pressa as suas luvas de governar.— Bom dia de trabalho.

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— Pouco provável...E no dog-cart, com aquela linda égua, a Tunante, ou no fae-

tonte com que maravilhava Lisboa, Carlos lá partia em grandeestilo para a Baixa, para «o trabalho».

O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entreos espessos veludos escuros, na penumbra que faziam os estores deseda verde corridos. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiamà farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jar-dineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativos; o tecladobranco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Cançõesde Gounod; mas não aparecia jamais um doente. E Carlos — exac-tamente como o criado que, na ociosidade da antecâmara, dormi-tava sob o Diário de Notícias, acaçapado na banqueta — acendiaum cigarro «Laferme», tomava uma revista, e estendia-se no divã.A prosa, porém, dos artigos estava como embebida do tédio morosodo gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.

Do Rossio, o ruído das carroças, os gritos errantes de pregões, orolar dos americanos, subiam, numa vibração mais clara, por aquelear fino de Novembro: uma luz macia, escorregando docemente doazul-ferrete, vinha dourar as fachadas enxovalhadas, as copas mes-quinhas das árvores do município, a gente vadiando pelos bancos: eessa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar aveludado declima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele abafadogabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dosmóveis, envolver Carlos numa indolência e numa dormência... Coma cabeça na almofada, fumando, ali ficava, nessa quietação de sesta,num cismar que se ia desprendendo, vago e ténue, como o ténue eleve fumo que se eleva de uma braseira meio apagada; até que, comum esforço, sacudia este torpor, passeava na sala, abria aqui e alémpelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de valsa,espreguiçava-se — e, com os olhos nas flores do tapete, terminavapor decidir que aquelas duas horas de consultório eram estúpidas!

— Está aí o carro? — ia perguntar ao criado.Acendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia,

bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, mur-murando consigo:

— Dia perdido!Foi uma dessas manhãs que preguiçando assim no sofá com a

Revista dos Dois Mundos na mão, ele ouviu um rumor na antecâ-

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mara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia portrás do reposteiro:

— Sua Alteza Real está visível?— Oh! Ega! — gritou Carlos, dando um salto do sofá.E caíram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.— Quando chegaste tu?— Esta manhã. Caramba! — exclamava Ega, procurando pelo

peito, pelos ombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o enfimno olho. — Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessascivilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um arValois... Não há nada como a barba toda!

Carlos ria, abraçando-o outra vez.— E donde vens tu, de Celorico?— Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O

fígado, o baço, uma infinidade de vísceras comprometidas. Enfim,doze anos de vinhos e aguardentes.

Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, dademora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito doalto da diligência, às várzeas de Celorico, o adeus de eternidade.

— Imagina tu, Carlos amigo, a história deliciosa que me sucedecom a minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a arespeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinhei-ros largos. Qual, não caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas aopadre Serafim e a toda a Corte do Céu. Chega Julho, e aparece nosarredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhechamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão queé a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns esem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minhairmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que nãogosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação doSenhor — e minha mãe vem pedir-me quase de joelhos, com a bolsaaberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não estejaali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

— E a epidemia...— Desapareceu logo — disse o Ega, começando a puxar devagar

dos dedos magros uma longa luva cor de canário.Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casimira;

e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa;e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um

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Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó-de-arroz — eCarlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bai-lava nos lábios:

— Ega, que extraordinário casaco!Por aquele Sol macio e morno de um fim de Outono português,

o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça,uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e deneve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, epondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísicouma rica e fofa espessura de peles de marta.

— É uma boa peliça, hem? — disse ele logo, erguendo-seabrindo-a, exibindo a opulência do forro. — Mandei-a vir peloStrauss... Benefícios da epidemia.

— Como podes tu suportar isso?— É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz

muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.— E tu que fazes? Conta-me lá... Tens isto esplêndido!Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das

obras do laboratório...— Um momento, quanto te custou tudo isto? — exclamou o Ega

interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o veludo dos repos-teiros, mirar os torneados da secretária de pau-preto.

— Não sei. O Vilaça é que deve saber...E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da peliça,

inventariando o gabinete, fazia considerações:— O veludo dá seriedade... E o verde-escuro é a cor suprema, é

a cor estética... Tem a sua expressão própria, enternece e faz pen-sar... Gosto deste divã. Móvel de amor...

Foi entrando para a sala dos doentes, devagar, de luneta noolho, estudando os ornatos.

— Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E ocretonezinho agrada-me.

Apalpou-o também. Uma begónia, manchada da sua ferrugemde prata, num vaso de Ruão, interessou-o. Queria saber o preço detudo; e diante do piano, olhando o livro da música aberto, as Can-ções de Gounod, teve uma surpresa enternecida:

— Homem, é curioso... Cá me aparece! A Barcarola! É deli-ciosa, hem?...

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Dites, la jeune belle, Où voulez-vous aller?La voile...

— Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!Carlos teve outra exclamação, e cruzando os braços diante dele:— Tu estás extraordinário, Ega! Tu és outro Ega!... A propósito

da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava também na Foz,de quem tu, em cartas sucessivas, verdadeiros poemas, que recebiem Berlim, na Haia, em Londres, me falavas com os arroubos doCântico dos Cânticos?

Um leve rubor subiu às faces do Ega. E limpando negligente-mente o monóculo ao lenço de seda branca:

— Uma judia. Por isso usei o lirismo bíblico. É a mulher doCohen, hás-de conhecer, um que é director do Banco Nacional...Demo-nos bastante. É simpática... Mas o marido é uma besta... Foiuma flirtation de praia. Voilà tout.

Isto era dito aos bocados, passeando, puxando o lume ao cha-ruto, e ainda corado.

— Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete?O avô Afonso? Quem vai por lá?...

No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros.Ia o D. Diogo, o decrépito leão, sempre de rosa ao peito, e frisandoainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoi-rar de sangue, à espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbro-ken...

— Não conheço. Refugiado?... Polaco?...— Não, ministro da Finlândia... Queria-nos alugar umas

cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finurasdiplomáticas, tantos documentos, tantas coisas com o selo real daFinlândia, que o pobre Vilaça, aturdido, para se desembaraçar,remeteu-o ao avô. O avô, desnorteado também, ofereceu-lhe ascocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito aorei da Finlândia, à Finlândia, vai visitar o avô, em grande estado,com o secretário da Legação, o cônsul, o vice-cônsul...

— Isso é sublime!— O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um

gentleman, entusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos,uma autoridade no whist, o avô adopta-o. Não sai do Ramalhete.

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— E de rapazes?De rapazes, aparecia Taveira, sempre muito correcto, empre-

gado agora no Tribunal de Contas; um Cruges, que o Ega nãoconhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinhade génio; o marquês de Souselas...

— Não há mulheres?— Não há quem as receba. É um covil de solteirões. A viscon-

dessa, coitada...— Bem sei. Um apoplecté...— Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos também o Silveiri-

nha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...— O de Resende, o cretino?— O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado

tísico, todo carregado de luto... Um fúnebre.O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e sólida felici-

dade que Carlos já notara, disse, puxando lentamente os punhos:— É necessário reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um

cenáculo, uma boemiazinha doirada, umas soirées de Inverno, comarte, com literatura... Tu conheces o Craft?

— Sim, creio que tenho ouvido falar...Ega teve um grande gesto. Era indispensável conhecer o Craft!

O Craft era simplesmente a melhor coisa que havia em Portugal...— É um inglês, uma espécie de doido?...Ega encolheu os ombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião

da Rua dos Fanqueiros; o indígena, vendo uma originalidade tãoforte como a de Craft, não podia explicá-la senão pela doidice. OCraft era um rapaz extraordinário!... Agora tinha ele chegado daSuécia, de passar três meses com os estudantes de Upsala. Estavatambém na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!

— É um negociante do Porto, não é?— Qual negociante do Porto! — exclamou o Ega erguendo-se,

franzindo a face, enojado de tanta ignorância. — O Craft é filho deum clergyman da igreja inglesa do Porto. Foi um tio, um nego-ciante de Calcutá ou da Austrália, um nababo, que lhe deixou a for-tuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia, nem sabe o que issoé. Dá largas ao seu temperamento byroniano, é o que faz. Tem via-jado por todo o universo, colecciona obras de arte, bateu-se comovoluntário na Abissínia e em Marrocos, enfim vive, vive na grande,na forte, na heróica acepção da palavra. É necessário conhecer o

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Craft. Vais-te babar por ele... Tens razão, caramba, está calor.Desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de

camisa.— O quê! tu não trazias nada por baixo? — exclamou Carlos. —

Nem colete?— Não; então não a podia aguentar... Isto é para o efeito moral,

para impressionar o indígena... Mas, não há negá-lo, é pesada!E imediatamente voltou à sua ideia: apenas o Craft chegasse do

Porto relacionavam-se, organizava-se um cenáculo, um Decâmeronde arte e diletantismo, rapazes e mulheres, três ou quatro mulherespara cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das filosofias...

Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e deluxo, em Lisboa, para adornar um cenáculo! Lamentável ilusão deum homem de Celorico! O marquês de Souselas tinha tentado, epara uma vez só, uma coisa bem mais simples — um jantar nocampo com actrizes. Pois fora o escândalo mais engraçado e maiscaracterístico: uma não tinha criada e queria levar consigo para afesta uma tia e cinco filhos; outra temia que, aceitando, o brasileirolhe tirasse a mesada; uma consentiu, mas o amante, quando soube,deu-lhe uma coça. Esta não tinha vestido para ir; aquela pretendiaque lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalizoucom o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos,os polhos, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam serconvidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos,fizeram-se intrigas — enfim esta coisa banal, um jantar com actri-zes, resultou em o Tarquínio do Ginásio levar uma facada...

— E aqui tens tu Lisboa.— Enfim — exclamou o Ega — se não aparecerem mulheres,

importam-se, que é em Portugal para tudo recurso natural. Aquiimporta-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas,ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nosvem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima,com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feitapara nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizadoscomo os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõemmesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha dopatrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?

Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça, o antigoEga reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistó-

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feles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibraras suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, quelhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelosrins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlosanimava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo,Gambetta, o Niilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharamsobre o país...

Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Egasaltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho,verificou a pose e, encouraçado nos seus alamares, saiu com umarzinho de luxo e de aventura.

— John — disse Carlos que o achava esplêndido e o ia seguindoao patamar — onde estás tu?

— No Universal, esse santuário!Carlos abominava o Universal, queria que ele viesse para o

Ramalhete.— Não me convém...— Em todo o caso vais hoje lá jantar, ver o avô.— Não posso. Estou comprometido com a besta do Cohen... Mas

vou lá amanhã almoçar.Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monóculo, gritou

para cima:— Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!— O quê! está pronto? — exclamou Carlos, espantado.— Está esboçado, à broxa larga...O livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dois últimos anos, que

ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulosde capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. Eentre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendoiniciar, pela forma e pela ideia, uma evolução literária. Em Lisboa(onde ele vinha passar as férias e dava ceias no Silva) o livro foraanunciado como um acontecimento. Bacharéis, contemporâneos ouseus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelasprovíncias e pelas ilhas, a fama do livro do Ega. Já de qualquermodo essa notícia chegara ao Brasil. E sentindo esta ansiosa expec-tativa em torno do seu livro — o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.

Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob epi-sódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e daHumanidade. Intitulava-se Memórias de Um Átomo, e tinha a

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forma de uma autobiografia. Este átomo (o átomo do Ega, como selhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo,rolando ainda no vago das nebulosas primitivas: depois vinhaembrulhado, faísca candente, planta que surgiu da crosta aindamole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transforma-ções da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura doOrango, pai da Humanidade — e mais tarde vivia nos lábios dePlatão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dosheróis, palpitava no coração dos poetas. Gota de água nos lagos deGalileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os após-tolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção,sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anéis deSaturno; e as madrugadas da Terra tinham-no orvalhado, pétalaresplandecente de um dormente e lânguido lírio. Fora omnipre-sente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena doEga, e cansado desta jornada através do Ser, repousava — escre-vendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho — deque os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e comoesmagados de respeito:

— É uma Bíblia!

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NO escritório de Afonso da Maia ainda durava, apesar deser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé,onde a chama morria nos carvões escarlates, no seu recanto costu-mado, abrigada pelo biombo japonês, por causa da bronquite deD. Diogo e do seu horror ao ar.

Esse velho dandy — a quem as damas de outras eras chama-vam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira num leito real —acabava justamente de ter um dos seus acessos de tosse, cavernosa,áspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruína, que ele abafavano lenço, com as veias inchadas, roxo até à raiz dos cabelos.

Mas passara. Com a mão ainda trémula, o decrépito leão lim-pou as lágrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, com-pôs a rosa-de-musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um gole dasua água chazada, e perguntou a Afonso, seu parceiro, numa vozrouca e surda:

— Paus, hem?E de novo, sobre o pano verde, as cartas foram caindo num

daqueles silêncios que se seguiam às tosses de D. Diogo. Sentia-sesó a respiração assobiada, quase silvante, do general Sequeira,muito infeliz essa noite, desesperado com o Vilaça, seu parceiro,rezingão e com todo o sangue na face.

Um tom fino retiniu, o relógio Luís XV foi ferindo alegremente,vivamente, a meia-noite; — depois a toada argentina do seuminuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silêncio.

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Capítulo V

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Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candeeirosCarcel; e a luz assim coada, caindo sobre os damascos vermelhosdas paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracçãocor-de-rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava edormia: só aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes,rebrilhava em silêncio o ouro de um Sèvres, uma palidez de mar-fim, ou algum tom esmaltado de velha majólica.

— O quê! ainda encarniçados! — exclamou Carlos, que abrira oreposteiro, entrava, e com ele o rumor distante de bolas de bilhar.

Afonso, que recolhia a sua vaza, voltou logo a cabeça, a pergun-tar com interesse:

— Como vai ela? Está sossegada?— Está muito melhor!Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem

alsaciana, casada com o Marcelino padeiro, muito conhecida nobairro pelos seus belos cabelos, loiros e penteados sempre em tran-ças soltas. Tinha estado à morte com uma pneumonia; e apesar demelhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda às vezes ànoite atravessava a rua para a ir ver, tranquilizar o Marcelino,que, defronte do leito e de gabão pelos ombros, sufocava soluços deamante, escrevinhando no livro de contas.

Afonso interessara-se ansiosamente por aquela pneumonia; eagora estava realmente agradecido à Marcelina, por ter sido salvapor Carlos. Falava dela comovido; gabava-lhe a linda figura, oasseio alsaciano, a prosperidade que trouxera à padaria... Para aconvalescença, que se aproximava, já lhe mandara até seis garrafasde Château-Margaux.

— Então fora de perigo, inteiramente fora de perigo? — per-guntou Vilaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito asua solicitude.

— Sim, quase rija — disse Carlos, que se aproximara da cha-miné, esfregando as mãos, arrepiado.

É que a noite, fora, estava regelada! Desde o anoitecer geava,de um céu fino e duro, trasbordando de estrelas que rebrilhavamcomo pontas afiadas de aço; e nenhum daqueles cavalheiros, desdeque se entendia, conhecera jamais o termómetro tão baixo. Sim,Vilaça lembrava-se de um Janeiro pior no Inverno de 64...

— É necessário carregar no ponche, hem, general! — exclamouCarlos, batendo galhofeiramente nos ombros maciços do Sequeira.

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— Não me oponho — rosnou o outro, que fixava com concentra-ção e rancor um valete de copas sobre a mesa.

Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: umachuva de ouro caiu por baixo, uma chama mais forte ressaltou,rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as peles de ursoonde o «Reverendo Bonifácio», espapado, torrava ao calor, ronro-nava de gozo.

— O Ega deve estar radiante — dizia Carlos com os pés àchama. — Tem, enfim, justificada a peliça. A propósito, algum dossenhores tem visto o Ega estes últimos dias?

Ninguém respondeu, no interesse súbito que causava a cartada.A longa mão de D. Diogo recolhia devagar a vaza — e languida-mente, no mesmo silêncio, soltou uma carta de paus.

— Oh! Diogo! Oh! Diogo! — gritou Afonso, estorcendo-se, comose o traspassasse um ferro.

Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faíscas, colo-cou o seu valete; Afonso, profundamente infeliz, separou-se do reide paus; Vilaça bateu de estalo com os ás. E imediatamente foi emredor uma discussão tremenda sobre a puxada de D. Diogo —enquanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debru-çava a coçar o ventre fofo do venerável «Reverendo».

— Que perguntavas tu, filho? — disse enfim Afonso,erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, suaconsolação nas derrotas. — O Ega? Não, ninguém o viu, não tornoua aparecer! Está também um bom ingrato, esse John...

Ao nome do Ega, Vilaça, parando de baralhar as cartas,erguera a face curiosa:

— Então sempre é certo que ele vai montar casa?Foi Afonso que respondeu, sorrindo e acendendo o cachimbo:— Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées literá-

rias, publicar um poema, o diabo!— Ele esteve lá no escritório — dizia o Vilaça recomeçando a

baralhar. — Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultório,a mobília de veludo, etc. O veludo verde deu-lhe no goto... Eu, comoé um amigo da casa, lá lhe prestei informações, até lhe mostrei ascontas. — E respondendo a uma pergunta do Sequeira: — Sim, amãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que enquanto amim, ele vem-se meter na política. Tem talento, fala bem, o pai jáera muito regenerador... Ali há ambição.

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— Ali há mulher — disse D. Diogo, colocando com peso estadecisão e acentuando-a com uma carícia lânguida à ponta frisadados bigodes brancos. — Lê-se-lhe na cara, basta ver-lhe a cara... Alihá mulher.

Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino olhoà Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quis saberquem era a Dulcineia. Mas o velho dandy declarou, da profundi-dade da sua experiência, que essas coisas nunca se sabiam, e erapreferível não se saberem. Depois, passando os dedos magros e len-tos pela face, deixou cair de alto e com condescendência este juízo:

— Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem dégagé...Tinham recebido as cartas, fez-se um silêncio na mesa. O gene-

ral, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou ocigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaça furiosa.

— Os senhores são muito viciosos, vou ver a gente do bilhar —disse Carlos. — Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquês,a perder já quatro mil réis. Querem o ponche aqui?

Nenhum dos parceiros respondeu.E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silêncio de sole-

nidade. O marquês, estirado sobre a tabela, com a perna meio no ar,o começo de calva alvejando à luz crua que caía dos abat-jours deporcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apostarapor ele, deixara o divã, o cachimbo turco, e, coçando com um gestonervoso a grenha crespa que lhe ondeava até à gola do jaquetão,vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Dofundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiozinhode Santa Olávia, estendia também o pescoço, afogado numa gravatade viúvo, de merino negro e sem colarinho, sempre macambúzio,mais molengo que outrora, com as mãos enterradas nos bolsos —tão fúnebre que tudo nele parecia completamente de luto pesado,até o preto do cabelo chato, até o preto das lunetas de fumo. Juntoao bilhar, o parceiro do marquês, o conde Steinbroken esperava: eapesar do susto, da emoção de homem do Norte aferrado aodinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, semdesmanchar a sua linha britânica — vestido como um inglês, inglêstradicional de estampa, com uma sobrecasaca justa de manga umpouco curta, e largas calças de xadrez sobre sapatões de tacão raso.

— Hurra! — gritou de repente Cruges. — Os dez tostõezinhospara cá, Silveirinha!

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O marquês carambolara, ganhando a partida, e triunfava tam-bém:

— Você trouxe-me a sorte, Carlos!Steinbroken depusera logo o taco, e alinhava já sobre a tabela,

lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.Mas o marquês, de giz na mão, reclamava-o para outras refre-

gas, esfaimado de ouro finlandês.— Nada mach!... Você hoje ‘stá têrrívêl! — dizia o diplomata, no

seu português fluente, mas de acento bárbaro.O marquês insistia, plantado diante dele, de taco ao ombro

como uma vara de campino, dominando-o com a sua maciça,desempenada estatura. E ameaçava-o de destinos medonhos numavoz possante habituada a ressoar nas lezírias; queria-o arruinar aobilhar, forçá-lo a empenhar aqueles belos anéis, levá-lo a ele,ministro da Finlândia e representante de uma raça de reis fortes, avender senhas à porta da Rua dos Condes!

Todos riam; e Steinbroken também, mas com um riso franzino edifícil, fixando no marquês o olhar azul-claro, claro e frio, que tinhano fundo da sua miopia a dureza de um metal. Apesar da sua sim-patia pela ilustre Casa de Souselas, achava estas familiaridades,estas tremendas chalaças, incompatíveis com a sua dignidade ecom a dignidade da Finlândia. O marquês, porém, coração de ouro,abraçava-o já pela cinta, com expansão:

— Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto,Steinbroken amigo!

A isto o ministro acedeu, afável, preparando-se logo, dandocarícias ligeiras às suíças, e aos anéis do cabelo de um loiro deespiga desbotada.

Todos os Steinbrokens, de pais a filhos (como ele dissera aAfonso) eram bons barítonos: e isso trouxera à família não poucosproventos sociais. Pela voz cativara seu pai o velho rei Rodolfo III,que o fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nosseus quartos, ao piano, cantando salmos luteranos, corais escola-res, sagas da Dalecárlia — enquanto o taciturno monarca cachim-bava e bebia, até que, saturado de emoção religiosa, saturado decerveja preta, tombava do sofá, soluçando e babando-se. Elemesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, já comoadido, já como segundo-secretário. Feito chefe de missão,absteve-se: foi só quando viu o Figaro celebrar repetidamente as

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valsas do príncipe Artoff, embaixador da Rússia em Paris, e a vozde basso do conde de Baspt, embaixador da Áustria em Londres,que ele, seguindo tão altos exemplos, arriscou, aqui e além, em soi-rées mais íntimas, algumas melodias finlandesas. Enfim cantou noPaço. E desde então exerceu com zelo, com formalidades, com pra-xes, o seu cargo de «barítono plenipotenciário», como dizia o Ega.Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvi-dava todavia cantarolar o que ele chamava cançonetas brejêras! —o Amant d’Amanda, ou uma certa balada inglesa:

On the Serpentine, Oh my Caroline... Oh!

Este Oh! como ele o expelia, gemido, bem puxado, num movi-mento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazese com os reposteiros fechados.

Nessa noite, porém, o marquês, que o conduzia pelo braço àsala do piano, exigia uma daquelas canções da Finlândia, de tantosentimento e que lhe faziam tão bem à alma...

— Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk,gluzk... Lá ra lá, lá, lá!

— A Primavera — disse o diplomata sorrindo.Mas antes de entrar na sala, o marquês soltou o braço de Stein-

broken, fez um sinal ao Silveirinha para o fundo do corredor — eaí, sob um sombrio painel de Santa Madalena no deserto peniten-ciando-se e mostrando nudezas ricas de ninfa lúbrica, interpelou-oquase com aspereza:

— Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre

eles, a respeito de uma parelha de éguas. Silveirinha nutria odesejo de montar carruagem; e o marquês procurava vender-lheumas éguas brancas, a que ele dizia «ter tomado enguiço, apesar deserem dois nobres animais». Pedia por elas um conto e quinhentosmil réis. Silveirinha fora avisado pelo Sequeira, por Travassos, poroutros entendedores, que era uma espiga: o marquês tinha a suamoral própria para negócios de gado, e exultaria em intrujar umpexote. Apesar de advertido, Eusébio, cedendo à influência dagrossa voz do marquês, da robustez do seu físico, da antiguidade do

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seu título, não ousava recusar. Mas hesitava: e nessa noite deu aresposta usual ao forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:

— Eu verei, marquês... Um conto e quinhentos é dinheiro...O marquês ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:— Homem, sim ou não! Que diabo! Dois animais que são duas

estampas! Irra! Sim ou não!Eusébio ajeitou as lunetas, rosnou:— Eu verei... Ele é dinheiro. Sempre é dinheiro...— Queria você, talvez, pagá-las com feijões? Você leva-me a

cometer um excesso!O piano ressoou, em dois acordes cheios, sob os dedos do Cru-

ges; e o marquês, baboso por música, imediatamente largou a ques-tão das éguas, recolheu em pontas de pés. Eusebiozinho ainda ficoua remoer, a coçar o queixo; enfim, às primeiras notas de Steinbro-ken veio pousar como uma sombra silenciosa entre a ombreira e oreposteiro.

Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabe-leira como pousada às costas, Cruges feria o acompanhamento, deolhos cravados no livro de Melodias Finlandesas. Ao lado, emperti-gado, quase oficial, com o lenço de seda na mão, a mão fincada con-tra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, num movimentode tarantela triunfante, em que passavam, como um entrechocarde seixos, esses bocados de palavras de que o marquês gostava,frisk, slécht, clikst, glukst. Era A Primavera — fresca e silvestre,Primavera do Norte em país de montanhas, quando toda umaaldeia dança em coros sob os fuscos abetos, a neve se derrete emcascatas, um sol pálido aveluda os musgos, e a brisa traz o aromadas resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbrokenruborizavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo ele se ia alçandosobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegavaentão a mão do peito, alargava um gesto, as belas jóias dos seusanéis faiscavam.

O marquês, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia bebero canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pen-sando em Madame Rughel que viajara na Finlândia, e cantava àsvezes aquela Primavera nas suas horas de sentimentalismo fla-mengo...

Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voznum alto — e imediatamente, afastando-se do piano, passou o

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lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puxão alinha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Crugesnum silencioso shake-hands.

— Bravo! bravo! — berrava o marquês, batendo as mãos comomalhos.

E outros aplausos ressoaram à porta, dos parceiros do whist,que tinham findado a partida. Quase imediatamente os escudeirosentraram com um serviço frio de croquetes e sanduíches, ofere-cendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma mesa, entre os renques decálices, a poncheira fumegou num aroma doce e quente de conha-que e limão.

— Então, meu pobre Steinbroken — exclamou Afonso,vindo-lhe bater amavelmente no ombro — ainda dá desses beloscantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?

— Fui essfôladito, si essfôladito. Agradecido, nô, prefiro umcopita Porto...

— Hoje fomos nós as vítimas — disse-lhe o general, respirandocom delícia o seu ponche.

— Você tãbem, meu genêral?— Sim, senhor, também me cascaram...E que dizia o amigo Steinbroken às notícias da manhã? — per-

guntava Afonso. — A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... Oque o alegrava nisto era o desaparecimento definitivo do antipáticosenhor de Broglie e da sua clique. A impertinência daquele acadé-mico estreito, querendo impor a opinião de dois ou três salões dou-trinários à França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Timescantava-lhas!

— E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!…O ministro pousara o cálice, e, esfregando cautelosamente as

mãos, disse numa meia voz grave a sua frase, a frase definitivacom que julgava todos os acontecimentos que aparecem em telegra-mas:

— É gràve... É eqsessivemente gràve...Depois falou-se de Gambetta; e como Afonso lhe atribuía uma

ditadura próxima, o diplomata tomou misteriosamente o braço deSequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas aspersonalidades superiores, homens de estado, poetas, viajantes outenores.

— É um home mûto forte. É um home eqsessivemente forte!

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— O que ele é, é um ronha! — exclamou o general, escorropi-chando o seu cálice.

E todos três deixaram a sala, discutindo ainda a república —enquanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelssohne por Chopin, depois de ter devorado um prato de croquetes.

O marquês e D. Diogo, sentados no mesmo sofá, um com a suachazada de inválido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspi-rava o bouquet, falavam também de Gambetta. O marquês gostavade Gambetta: fora o único que durante a guerra mostrara ventasde homem; lá que tivesse «comido» ou que «quisesse comer» comodiziam — não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o Sr.Grevy também lhe parecia um cidadão sério, óptimo para chefe deEstado...

— Homem de sala? — perguntou languidamente o velho leão.O marquês só o vira na Assembleia, presidindo e muito digno...D. Diogo murmurou, com um melancólico desdém na voz, no

gesto, no olhar:— O que eu queria a toda essa canalha era a saúde, marquês!O marquês consolou-o, galhofeiro e amável. Toda essa gente,

parecendo forte por se ocupar de coisas fortes, no fundo tinhaasma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um hércules...

— Um hércules! O que é, é que você apaparica-se muito... Adoença é um mau hábito em que a gente se põe. É necessário rea-gir... Você devia fazer ginástica, e muita água fria por essa espinha.Você, na realidade, é de ferro!

— Enferrujadote, enferrujadote... — replicou o outro, sorrindo edesvanecido.

— Qual enferrujadote! Se eu fosse cavalo ou mulher antes oqueria a você que a esses badamecos que por aí andam meiopodres... Já não há homens da sua têmpera, Dioguinho!

— Já não há nada — disse o outro grave e convencido, e como oderradeiro homem nas ruínas de um mundo.

Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a suachazada. O marquês ainda se demorou, preguiçando no sofá,enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar àquela sala queo encantava com o seu luxo Luís XV, os seus floridos e os seus dou-rados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a ampli-dão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados,cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cor-

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deiros, sombras de idílios mortos, transparecendo numa trama deseda... Àquela hora, no adormecimento que ia pesando, sob a luzsuave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o arde um outro século: e o marquês reclamou do Cruges um minuete,uma gavota, alguma coisa que evocasse Versalhes, Maria Anto-nieta, o ritmo das belas maneiras e o aroma dos empoados. Crugesdeixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo emsuspiros, preparou-se, alargou os braços — e atacou, com um pedalsolene, o Hino da Carta. O marquês fugiu.

Vilaça e Eusebiozinho conversavam no corredor, sentados numadas arcas baixas de carvalho lavrado.

— A fazer política? — perguntou-lhes o marquês ao passar.Ambos sorriram; Vilaça respondeu jocosamente:— É necessário salvar a pátria!Eusébio pertencia também ao Centro Progressista, aspirava a

influência eleitoral no círculo de Resende, e ali às noites no Rama-lhete faziam conciliábulos. Nesse momento, porém, falavam dosMaias: Vilaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de pro-priedade, vizinho de Santa Olávia, quase criado com Carlos, certascoisas que lhe desagradavam na casa, onde a autoridade da suapalavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia aprovar oter Carlos tomado uma frisa de assinatura.

— Para quê — exclamava o digno procurador — para quê, meucaro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites...Hoje diz que há entusiasmo, e ele aí esteve. Tem ido lá, eu sei?duas ou três vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de milréis. Podia fazer o mesmo com meia dúzia de libras! Não, não égoverno. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cru-ges... Olhe, eu não me utilizo dela; nem o amigo. É verdade que oamigo está de luto.

Eusébio pensou, com despeito, que se podia meter para o fundoda frisa — se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter umsorriso mole:

— Indo assim, até se podem encalacrar...Uma tal palavra, tão humilhante, aplicada aos Maias, à casa

que ele administrava, escandalizou Vilaça. Encalacrar! Ora essa!— O amigo não me compreendeu... Há despesas inúteis, sim,

mas, louvado Deus, a casa pode bem com elas! É verdade que o ren-dimento gasta-se todo, até o último ceitil; os cheques voam, voam,

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como folhas secas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado,fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...

Eusébio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, osnove cavalos, o cocheiro inglês, os grooms... O procurador acudiu:

— Isso, amigo, é de razão. Uma gente destas deve ter a suarepresentação, as suas coisas bem montadas. Há deveres na socie-dade... É como o Sr. Afonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Nãoé com ele, que lhe conheço aquele casaco há vinte anos... Mas sãoesmolas, são pensões, são empréstimos que nunca mais vê...

— Desperdícios...— Não lho censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos

Maias, já meu pai dizia, saiu ninguém descontente... Mas umafrisa, de que ninguém usa, só para o Cruges, só para o Taveira!...

Teve de se calar. Justamente ao fundo do corredor assomava oTaveira, abafado até aos olhos na gola de uma ulster donde saíamas pontas de um cache-nez de seda clara. O escudeiro desembara-çou-o dos agasalhos; e ele, de casaca e colete branco, limpando obonito bigode húmido da geada, veio apertar a mão ao caro Vilaça,ao amigo Eusébio, arrepiado, mas achando o frio elegante, dese-jando a neve e o seu chique...

— Nada, nada — dizia Vilaça todo amável — cá o nosso solzi-nho português sempre é melhor...

E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do mar-quês, de Carlos, numa das suas sábias e prolixas cavaqueiras sobrecavalos e sport.

— Então? Que tal? A mulher? — foi a interrogação que acolheuo Taveira.

Mas antes de dar notícia da estreia da Morelli, a dama nova,Taveira reclamou alguma coisa quente. E enterrado numa poltronajunto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brasas,respirando o aroma do ponche, saboreando uma cigarette, declarouenfim que não tinha sido um fiasco.

— Que ela, a meu ver, é uma insignificância, não tem nada,nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nosfez pena. Houve indulgência, deram-se-lhe umas palmas... Quandofui ao palco, ela estava contente...

— Vamos a saber, Taveira, que tal é ela? — inquiria o marquês.— Cheia — dizia o Taveira, colocando as palavras como pince-

ladas. — Alta, muito branca; bons olhos; bons dentes…

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— E o pezinho? — E o marquês, já com os olhos acesos, passavadevagar a mão pela calva.

Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...— Quem estava? — perguntou Carlos, indolente e bocejando.— A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa

ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá apareceram hoje...Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe:

o conde de Gouvarinho, o par do Reino, um homem alto, de lunetas,poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabelo cor decenoura, muito bem-feita... Enfim, Carlos não conhecia.

Vilaça encontrava o conde no Centro Progressista, onde ele erauma coluna do partido. Rapaz de talento, segundo o Vilaça. O que oespantava é que ele pudesse ter assim frisa de assinatura, atrapa-lhado como estava: ainda não havia três meses lhe tinham protes-tado uma letra de oitocentos mil réis, no Tribunal do Comércio...

— Um asno, um caloteiro! — diz o marquês com nojo.— Passa-se lá bem, às terças-feiras!... — disse Taveira,

mirando a sua meia de seda.Depois falou-se do duelo do Azevedo da Opinião com o Sá

Nunes, autor de El-Rei Bolacha, a grande mágica da Rua dos Con-des, e ultimamente ministro da Marinha: tinham-se tratado furiosa-mente nos jornais de pulhas e de ladrões: e havia dez intermináveisdias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperavao sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, porestar de luto por uma tia; dizia-se também que o Azevedo partiraprecipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Vilaça,era que o ministro do Reino, primo do Azevedo, para evitar o recon-tro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela polícia...

— Uma canalha! — exclamou o marquês com um dos seus resu-mos brutais que varriam tudo.

— O ministro não deixa de ter razão — observou Vilaça. — Istoàs vezes, em duelos, pode bem suceder uma desgraça...

Houve um curto silêncio. Carlos, que caía de sono, perguntouao Taveira, através de outro bocejo, se vira o Ega no teatro.

— Pudera! Lá estava de serviço, no seu posto, na frisa dosCohens, todo puxado...

— Então essa coisa do Ega com a mulher do Cohen — disse omarquês — parece clara...

— Transparente, diáfana! um cristal!...

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Carlos, que se erguera a acender uma cigarette para despertar,lembrou logo a grande máxima de D. Diogo: essas coisas nunca sesabiam, e era preferível não se saberem! Mas o marquês, a isto,lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se ati-rasse; e via aí um facto de represália social, por o Cohen ser judeue banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe ofendiatanto o gosto e a razão como a espécie banqueiro. Compreendia osalteador de clavina, num pinheiral; admitia o comunista, arris-cando a pele sobre uma barricada. Mas os argentários, os Fulanos eC.as faziam-no encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domés-tica era acto meritório!

— Duas horas e um quarto! — exclamou Taveira, que olhara orelógio. — E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com oEstado, logo às dez horas da manhã.

— Que diabo se faz no Tribunal de Contas? — perguntou Car-los. — Joga-se? Cavaqueia-se?

— Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!Afonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken

tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, láfora também a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob oolho solícito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. Eos outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novosepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendazinha perto comum bonito jardim. O marquês conseguiu levar Cruges no coupépara lhe ir fazer música a casa, no órgão, até às três ou quatrohoras, música religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nosseus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viúvo,o Eusebiozinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamentecomo se caminhasse para a sua própria sepultura, lá se dirigiu aolupanar onde tinha uma paixão.

O laboratório de Carlos estava pronto — e muito convidativo,com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa demármore, um amplo divã de crina para o repouso depois das grandesdescobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico bri-lho de metais e cristais; mas as semanas passavam, e todo esse belomaterial de experimentação, sob a luz branca da clarabóia, jazia vir-gem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diá-rio, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.

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Carlos realmente não tinha tempo de se ocupar do laboratório; edeixaria a Deus mais algumas semanas o privilégio exclusivo desaber o segredo das coisas — como ele dizia rindo ao avô. Logo pelamanhã cedo ia fazer as suas duas horas de armas com o velho Ran-don; depois via alguns doentes no bairro, onde se espalhara, com umbrilho de legenda, a cura da Marcelina — e as garrafas de Bordéusque lhe mandara Afonso. Começava a ser conhecido como médico.Tinha visitas no consultório — ordinariamente bacharéis, seus con-temporâneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entra-vam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada histó-ria de ternuras funestas. Salvara de um garrotilho a filha de um bra-sileiro, ao Aterro — e ganhara aí a sua primeira libra, a primeira quepelo seu trabalho ganhava um homem da sua família. O Dr. Barbedoconvidara-o a assistir a uma operação ovariotómica. E enfim (masesta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) algunsdos seus bons colegas, que até aí, vendo-o só a governar os seus cava-los ingleses, falavam do «talento do Maia» — agora, percebendo-lheestas migalhas de clientela, começavam a dizer «que o Maia era umasno». Carlos já falava a sério da sua carreira. Escrevera, com labo-riosos requintes de estilista, dois artigos para a Gazeta Médica, e pen-sava em fazer um livro de ideias gerais que se devia chamar Medi-cina Antiga e Moderna. De resto ocupava-se sempre dos seus cavalos,do seu luxo, do seu bricabraque. E através de tudo isto, em virtudedessa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais inte-ressante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia falar de umaestátua ou de um poeta, atraía-o singularmente a antiga ideia doEga, a criação de uma revista, que dirigisse o gosto, pesasse na polí-tica, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...

Era porém inútil lembrar ao Ega este belo plano. Abria um olhovago, respondia:

— Ah, a revista... Sim, está claro, pensar nisso! Havemos defalar, eu aparecerei...

Mas não aparecia no Ramalhete, nem no consultório; apenas seavistavam, às vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo quenão passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refu-giar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cru-ges, donde pudesse olhar de vez em quando Raquel Cohen — e alificava, silencioso, com a cabeça apoiada ao tabique, repousando ecomo saturado de felicidade...

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O dia (dizia ele) tinha-o todo tomado: andava procurando casa,andava estudando mobílias... Mas era fácil encontrá-lo pelo Chiadoe pelo Loreto, a rondar e a farejar — ou então no fundo de tipóiasde praça, batendo a meio galope, num espalhafato de aventura.

O seu dandismo requintava; arvorara, com o desplante soberbode um Brummel, casaca de botões amarelos sobre colete de cetimbranco; e Carlos, entrando uma manhã cedo no Universal, deu comele pálido de cólera, a despropositar com um criado, por causa deuns sapatos mal envernizados. Os seus companheiros constantes,agora, eram um Dâmaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo daRaquel Cohen, mocinho imberbe, de olho esperto e duro, já comares de emprestar a trinta por cento.

Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-seàs vezes Raquel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deli-ciosa!» — e dizia-o rilhando o dente: ao marquês não deixava deparecer apetitosa, para uma vez, aquela carnezinha faisandée demulher de trinta anos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgóiarelambória» Nos jornais, na secção do High Life, ela era «uma dasnossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sualuneta de oiro presa por um fio de oiro, e a sua caleche azul comcavalos pretos. Era alta, muito pálida, sobretudo às luzes, delicadade saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita lan-guidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lírio meiomurcho: a sua maior beleza estava nos cabelos, magnificamentenegros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que eladeixava habilmente cair numa massa meio solta sobre as costas,como num desalinho de nudez. Dizia-se que tinha literatura, efazia frases. O seu sorriso lasso, pálido, constante, dava-lhe um arde insignificância. O pobre Ega adorava-a.

Conhecera-a na Foz, na Assembleia; nessa noite, cervejandocom os rapazes, ainda lhe chamou camélia melada; dias depois jáadulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacreem massa das classes médias, soluçava muita vez por causa dela,horas inteiras, caído para cima da cama.

Em Lisboa, entre o Grémio e a Casa Havanesa, já se começavaa falar do «arranjinho do Ega». Ele todavia procurava pôr a suafelicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suascomplicadas precauções tanta sinceridade como prazer românticodo mistério; e era nos sítios mais desajeitados, fora de portas, para

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os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a criada quelhe trazia as cartas dela... Mas em todos os seus modos (mesmo nodisfarce afectado com que espreitava as horas), transbordava aimensa vaidade daquele adultério elegante. De resto sentia bemque os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam empleno drama: era mesmo talvez por isso que, diante de Carlos e dosoutros, nunca até aí mencionara o nome dela, nem deixara jamaisescapar um lampejo de exaltação.

Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete,noite de Lua calma e branca, em que caminhavam ambos calados,Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desa-bafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhosno astro, um tremor na voz:

Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l’amour c’est la vie!

Isto fugira-lhe dos lábios como um começo de confissão; Carlosao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

Mas Ega sentiu-se decerto ridículo, porque se calmou,refugiou-se imediatamente no puro interesse literário.

— No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não hásenão o velho Hugo...

Carlos, consigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindocontra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo»,«boca-aberta de sombra», «avozinho lírico», injúrias piores.

Mas nessa noite o grande fraseador continuou:— Ah, o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heróico de ver-

dades eternas... É necessário um bocado de ideal, que diabo!... Deresto o ideal pode ser real...

E foi, com esta palinódia, acordando os silêncios do Aterro.Dias depois, Carlos, no consultório, acabava de despedir um

doente, um Viegas, que todas as semanas vinha ali fazer a fasti-diosa crónica da sua dispepsia — quando do reposteiro da sala deespera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e umrolo de papel na mão.

— Tens que fazer, doutor?— Não, ia a sair, janota!— Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Átomo...

Senta-te aí. Ouve lá.

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Imediatamente abancou, afastou papéis e livros, desenrolou omanuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho — e Carlos,que se pousara à borda do divã, com a face espantada e as mãosnos joelhos, achou-se quase sem transição transportado dos rugidosdo ventre do Viegas para um rumor de populaça, num bairro dejudeus, na velha cidade de Heidelberga.

— Mas espera lá! — exclamou ele. — Deixa-me respirar. Issonão é o começo do livro! Isso não é o Caos...

Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tam-bém.

— Não, não é o primeiro episódio... Não é o Caos. É já no séc.XV... Mas num livro destes pode-se começar pelo fim... Conveio-mefazer este episódio: chama-se A Hebreia.

A Cohen! — pensou Carlos.Ega tornou a alargar o colarinho — e foi lendo, animando-se,

ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios devoz nas sonoridades finais dos períodos. Depois da sombria pinturade um bairro medieval de Heidelberga, o famoso Átomo, o Átomo doEga, aparecia alojado no coração do esplêndido príncipe Franck,poeta, cavaleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo essecoração de herói palpitava pela judia Ester, pérola maravilhosa doOriente, filha do velho rabino Salomão, um grande doutor da Lei,perseguido pelo ódio teológico do Geral dos Dominicanos.

Isto contava-o o Átomo num monólogo, tão recamado de imagenscomo um manto da Virgem está recamado de estrelas — e que erauma declaração dele, Ega, à mulher do Cohen. Depois abria-se umintermédio panteísta: rompiam coros de flores, coros de astros, can-tando, na linguagem da luz ou na eloquência dos perfumes, a beleza,a graça, a pureza, a alma celeste de Ester — e de Raquel... Enfim,chegava o negro drama da perseguição: a fuga da família hebraica,através de bosques de bruxas e brutas aldeias feudais; a aparição,numa encruzilhada, do príncipe Franck que vem proteger Ester, delança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanática, correndoa queimar o rabino e os seus livros hereges; a batalha, e o príncipeatravessado pelo chuço de um reitre, indo morrer no peito de Ester,que morre com ele num beijo. Tudo isto se precipitava como umsonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernasde estilo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadasde cor atiradas à larga para fazer ressaltar o tom de vida…

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Ao findar, o Átomo exclamava, com a vasta solenidade de umcheio de órgão: «Assim arrefeceu, parou, aquele coração de heróique eu habitava; e evaporado o princípio de vida, eu, agora livre,remontei aos astros, levando comigo a essência pura desse amorimortal.»

— Então?... — disse Ega, esfalfado, quase trémulo.Carlos só pôde responder:— Está ardente.Depois elogiou a sério alguns lances, o coro das florestas, a lei-

tura do Ecclesiastes, de noite, entre as ruínas da torre de Othon,certas imagens de um grande voo lírico.

Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscrito, rea-botoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:

— Então, parece-te apresentável?...— Vais publicar?— Não, mas enfim... — E ficou nesta reticência, fazendo-se

corado.Carlos compreendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta

do Chiado uma descrição «da leitura feita em casa do Ex.mo Sr.Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais bri-lhantes episódios do seu livro — As Memórias de Um Átomo». E ojornalista acrescentava, dando a sua impressão pessoal: «É umapintura dos sofrimentos por que passaram, nos tempos da intole-rância religiosa, aqueles que seguem a Lei de Israel. Que poder deimaginação! Que fluência de estilo! O efeito foi extraordinário, equando o nosso amigo fechou o manuscrito ao sucumbir da protago-nista — vimos lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimávelcolónia hebraica!»

Oh, furor do Ega! Rompeu nessa tarde pelo consultório, pálido,desorientado...

— Estas bestas! Estas bestas destes jornalistas! Leste? Lágri-mas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica!Faz cair a coisa em ridículo... E depois a fluência do estilo. Queburros! Que idiotas!

Carlos, que cortava as folhas de um livro, consolou-o. Aquelaera a maneira nacional de falar de obras de arte... Não valia a penabramar...

— Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara àquele folicu-lário!

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— E porque lha não quebras?— É um amigo dos Cohens.E foi grunhindo impropérios contra a imprensa, a passos de

tigre pelo gabinete. Por fim, irritado com a indiferença de Carlos:— Que diabo estás tu aí a ler? Nature parasitaire des accidents

de l’impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma coisa.Que diabo serão umas picadas que me vêm aos braços, sempre quevou a adormecer?…

— Pulgas, bichos, vérmina… — murmurou Carlos com os olhosno livro.

— Animal! — rosnou Ega, arrebatando o chapéu.— Vais-te, John?— Vou, tenho que fazer! — E junto do reposteiro, ameaçando o

céu com o guarda-chuva, chorando quase de raiva: — Estes burrosdestes jornalistas! São a escória da sociedade!

Daí a dez minutos reapareceu, bruscamente: e já com outravoz, num tom de caso sério:

— Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aosGouvarinhos?

— Não tenho um interesse especial — respondeu Carlos,erguendo os olhos do livro, depois de um silêncio. — Mas não tenhotambém uma repugnância especial.

— Bem — disse Ega. — Eles desejam conhecer-te, sobretudo acondessa faz empenho... Gente inteligente, passa-se lá bem...Então, decidido! Terça-feira vou-te buscar ao Ramalhete, evamo-nos gouvarinhar.

Carlos ficou pensando naquela proposta do Ega, na maneiracomo ele sublinhara o empenho da condessa. Lembrava-se agoraque ela era muito íntima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos,naquela fácil vizinhança de frisa, surpreendera certos olharesdela... Mesmo, segundo o Taveira, ela realmente fazia-lhe umolhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabelos crespos e rui-vos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, de um grande brilho,dizendo mil coisas. Era deliciosamente bem-feita — e tinha umapele muito clara, fina e doce à vista, a que se sentia mesmo delonge o cetim.

Depois daquele dia tristonho de aguaceiros, ele resolvera pas-sar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seurobe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram

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a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão,colocando-se tentadoramente entre ele e a sua noite de estudo,pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa doEga, esse Mefistófeles de Celorico!

Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se, porém, à boca da frisa,preparado, de colete branco e pérola negra na camisa — em lugar doscabelos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, umpreto de doze anos, trombudo e luzidio, de grande colarinho à mamãsobre uma jaqueta de botões amarelos; ao lado outro preto, maispequeno, com o mesmo uniforme de colégio, enterrava pela ventaaberta o dedo calçado de pelica branca. Ambos eles lhe relancearamos olhos bugalhudos, cor de prata embaciada. A pessoa que os acom-panhava, escondida para o fundo, parecia ter um catarro ascoroso.

Dava-se a Lúcia em benefício, com a segunda dama. Os Cohensnão tinham vindo — nem o Ega. Muitos camarotes estavam deser-tos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuvis-cosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar ali, derramando oseu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras,vazias, havia uma mulher solitária, vestida de cetim claro;Edgardo e Lúcia desafinavam; o gás dormia, e os arcos das rabecas,sobre as cordas, pareciam ir adormecendo também.

— Isto está lúgubre — disse Carlos ao amigo Cruges, que ocu-pava o escuro da frisa.

Cruges, amodorrado num acesso de spleen, com o cotovelo sobreas costas da cadeira, os dedos por entre a cabeleira, todo ele embru-lhado em crepes sobrepostos de melancolia, respondeu, como dofundo de um sepulcro:

— Pesadote.Por indolência, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquele preto de

que os seus olhos se não podiam despegar, ali entronizado na pol-trona de repes verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plan-tada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braço — foi-lhearrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa dela; relem-brou toilettes com que ela ali estivera; e nunca lhe pareceram tãopicantes, como agora que os não via, os seus cabelos ruivos, cor debrasa às luzes, de um encrespado forte, como crestados da chamainterna. A carapinha do preto, essa, em lugar de risca tinha umsulco cavado à tesoura na massa de lã espessa. Quem seriam, por-que estavam ali, aqueles africanos de perfil trombudo?

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— Tu já reparaste nesta extraordinária carapinha, Cruges?O outro, que se não mexera da sua atitude de estátua tumular,

grunhiu da sombra um monossílabo surdo.Carlos respeitou-lhe os nervos.De repente, ao desafinar mais áspero de um coro, Cruges deu

um salto.— Isto só a pontapé... Que empresa esta! — rugiu ele, enver-

gando furiosamente o paletó.Carlos foi levá-lo no coupé à Rua das Flores, onde ele morava

com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentarconsigo o seu serão de estudo perdido.

O criado de Carlos, o Baptista (familiarmente o Tista)esperava-o lendo o jornal, na confortável antecâmara dos «quartosdo menino», forrada de veludo cor de cereja, ornada de retratos decavalos e panóplias de velhas armas, com divãs do mesmo veludo, emuito alumiada a essa hora por dois candeeiros de globo pousadossobre colunas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos devide.

Carlos tinha desde os onze anos este criado de quarto, queviera com o Brown para Santa Olávia, depois ter servido em Lis-boa, na Legação inglesa, e ter acompanhado o ministro, Sir Hercu-les Morrisson, várias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos Paçosde Celas, que Baptista começou a ser um personagem: Afonso cor-respondia-se com ele de Santa Olávia. Depois viajou com Carlos;enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam das mesmas sanduí-ches no bufete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hojeum homem de cinquenta anos, desempenado, robusto, com umcolar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamentegentleman. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par deluvas amarelas espetado na mão, a sua bengala de cana-da-índia,os sapatos bem envernizados, tinha a considerável aparência deum alto funcionário. Mas conservava-se tão fino e tão desembara-çado como quando em Londres aprendera a valsar e a boxar narude balbúrdia dos salões dançantes, ou como quando mais tarde,durante as férias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e oajudava a saltar o muro do quintal do senhor escrivão de Fazenda— aquele que tinha uma mulher tão garota.

Carlos foi buscar um livro ao gabinete de estudo, entrou noquarto, estendeu-se, cansado, numa poltrona. À luz opalina dos glo-

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bos, o leito entreaberto mostrava, sob a seda dos cortinados, umluxo efeminado de bretanhas, bordados e rendas.

— Que há hoje no Jornal da Noite? — perguntou ele bocejando,enquanto Baptista o descalçava.

— Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvessecoisa alguma. Em França continua sossego… Mas a gente nuncapode saber, porque estes jornais portugueses imprimem sempre osnomes estrangeiros errados.

— São uma bestas. O Sr. Ega hoje estava furioso com eles...Depois, enquanto Baptista preparava com esmero um grogue

quente, Carlos já deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente olivro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarette, e ficoufumando com as pálpebras cerradas, numa imensa beatitude. Atra-vés das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo,e os aguaceiros alagando os vidros.

— Tu conheces os senhores condes de Gouvarinho, Tista?— Conheço o Pimenta, meu senhor, que é criado de quarto do

senhor conde... Criado de quarto e serve à mesa.— E que diz então esse Tormenta? — perguntou Carlos, numa

voz indolente, depois de um silêncio.— Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O Sr. Gouvari-

nho chama-lhe Romão, porque estava acostumado ao outro criadoque era Romão. E já isto não é bonito, porque cada um tem o seunome. O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente...

E Baptista, depois de colocar junto da cabeceira a salva com ogrogue, o açucareiro, as cigarettes, transmitiu as revelações doPimenta. O conde de Gouvarinho, além de muito maçador e muitopeguinhento, não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de che-viote claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão coçado e tão cheio deriscas de tinta, de limpar a pena à perna e ao ombro, que oPimenta deitou o presente fora. O conde e a senhora não se davambem: já no tempo do Pimenta, uma ocasião, à mesa, tinham-sepegado de tal modo que ela agarrou do copo e do prato, e esmiga-lhou-os no chão. E outra qualquer teria feito o mesmo; porque osenhor conde, quando começava a repisar, a remoer, não se podiaaturar. As questões eram sempre por causa de dinheiro. O Tompsonvelho estava farto de abrir os cordões à bolsa...

— Quem é esse Tompson velho, que nos aparece agora, a estahora da noite? — perguntou Carlos, a seu pesar interessado.

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— O Tompson velho é o pai da senhora condessa. A senhoracondessa era uma Miss Tompson, dos Tompson do Porto. O Sr.Tompson não tem querido ultimamente emprestar nem mais umreal ao genro: de sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta tam-bém, o senhor conde, furioso, disse à senhora que ela e o pai sedeviam lembrar que eram gente de comércio e que fora ele quefizera dela uma condessa; e com perdão de Vossa Excelência, asenhora condessa ali mesmo à mesa mandou o condado à tábua...Estas coisas não estão no género do Pimenta.

Carlos bebeu um gole do grogue. Bailava-lhe nos lábios umapergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tão rígi-dos escrúpulos a respeito de uma gente que, ao jantar, diante doescudeiro, quebrava a porcelana, mandava à tábua o título dosantepassados. E perguntou:

— Que diz o Sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Eladiverte-se?

— Creio que não, meu senhor. Mas a criada de confiança dela,uma escocesa, essa é desobstinada. E não fica bem à senhora con-dessa ser assim tão íntima com ela...

Houve um silêncio no quarto, a chuva cantou mais forte nosvidros.

— Passando a outro assunto, Baptista. Vamos a saber, háquanto tempo não escrevo eu a Madame Rughel?

Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apon-tamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e veri-ficou, com método, estas datas: «Dia 1 de Janeiro, telegrama expe-dido com felicitações do começo de ano a Madame Rughel, Hôteld’Albe, Champs Elysées, Paris. Dia 3, telegrama recebido deMadame Rughel, reciprocando cumprimentos, exprimindo amizade,anunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao cor-reio, para Madame Rughel, William-Strasse, Hamburgo, Alle-magne.» Depois — mais nada. De modo que havia já cinco semanasque o menino não escrevia a Madame Rughel...

— É necessário escrever amanhã — disse Carlos.Baptista tomou uma nota.Depois, entre uma fumaça lânguida, a voz de Carlos ergueu-se

de novo na paz dormente do quarto:— Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista?

É a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!

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O velho criado meteu o livro no bolso da casaca, e respondeu,sem hesitar, muito certo de si:

— Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas amulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino dálicença, era aquela senhora do coronel de hussardos que vinha aoquarto do hotel em Viena.

Carlos atirou a cigarette para a salva — e escorregando pelaroupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordações alegres,exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de ênfaseboémia dos Paços de Celas:

— O Sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel erauma ninfa de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o esplendorde uma deusa da Renascença, senhor! Madame Rughel devia terdormido no leito imperial de Carlos Quinto... Retire-se, senhor!

Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto umolhar solícito, e, contente da ordem em que as coisas adormeciam,saiu, levando o candeeiro. Carlos não dormia: e não pensava nacoronela de hussardos, nem em Madame Rughel. A figura que noescuro dos cortinados lhe aparecia, num vago dourado que provi-nha do reflexo dos seus cabelos soltos, era a Gouvarinho — a Gou-varinho que não tinha o esplendor de uma deusa da Renascençacomo Madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Bap-tista pusera os seus olhos como a coronela de hussardos: mas, como seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhorque todas na imaginação de Carlos — porque ele esperara-a essanoite e ela não tinha aparecido.

Na terça-feira prometida Ega não veio buscar Carlos para seirem gouvarinhar. E foi Carlos que daí a dias, entrando como poracaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:

— Então quando nos gouvarinhamos?Nessa noite, em S. Carlos, num entreacto dos Huguenotes, Ega

apresentou-o ao senhor conde de Gouvarinho, no corredor das fri-sas. O conde, muito amável, lembrou logo que já tivera, mais deuma vez, o prazer de passar pela porta de Santa Olávia, quando iaver os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre Rios — uma formosavivenda também. Falaram então do Douro, da Beira, compararamoutras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal,como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoável,pois nesses férteis vales nascera e se criara: e falou um momento

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de Formoselha, onde tinha casa, onde vivia idosa e doente sua mãe,a senhora condessa viúva...

Ega, que afectara beber as palavras do conde, começou entãouma controvérsia, sustentando, como se se tratasse dos dogmas deuma fé, a beleza superior do Minho, «esse paraíso idílico». O condesorria: via ali, como ele observou a Carlos, batendo amavelmenteno ombro do Ega, a rivalidade das duas províncias. Emulaçãofecunda, de resto, no seu pensar...

— Aí está, por exemplo — dizia ele — o ciúme entre Lisboa ePorto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hun-gria e a Áustria... Ouço por ali lamentá-la. Pois bem, eu, se fossepoder, instigá-la-ia, acirrá-la-ia, se Vossas Excelências me permi-tem a expressão. Nesta luta das duas grandes cidades do reino,podem outros ver despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de pro-gresso. Vejo civilização!

Proferia estas coisas como do alto de um pedestal, muito acimados homens, deixando-as providamente cair dos tesouros do seuintelecto à maneira de dons inestimáveis. A voz era lenta erotunda; os cristais da sua luneta de oiro faiscavam vistosamente;e no bigode encerado, na pêra curta, havia ao mesmo tempoalguma coisa de doutoral e de casquilho.

Carlos dizia: «Tem Vossa Excelência razão, senhor conde.» OEga dizia: «Você vê essas coisas de alto, Gouvarinho.» Ele cruzaraas mãos por baixo das abas da casaca — e estavam todos trêsmuito sérios.

Depois o conde abriu a porta da frisa, Ega desapareceu. E daí aum momento, Carlos, apresentado como «vizinho de camarote»,recebia da senhora condessa um grande shake-hands, em que tilin-taram uma infinidade de aros de prata e de blangles índios sobre asua luva preta de doze botões.

A senhora condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa,lembrou logo a Carlos que o vira no Verão passado em Paris, nosalão baixo do Café Inglês: até por sinal estava nessa noite um velhoabominável com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto,para uma mesa defronte, histórias horrorosas do Sr. Gambetta: umsujeito ao lado protestou; o outro não fez caso, era o velho duque deGrammont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um arquase angustioso: não se lembrava de nada disso! Queixou-se logoamargamente da sua falta de memória. Uma coisa tão indispensável

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em quem segue a vida pública, a memória!, e ele, desgraçadamente,não possuía nem um átomo. Por exemplo, lera (como todo o homemdevia ler) os vinte volumes da História Universal de César Cantu;lera-os com atenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra.Pois, senhores, escapara-lhe tudo — e ali estava sem saber história!

— Vossa Excelência tem boa memória, Sr. Maia?— Tenho uma razoável memória.— Inapreciável bem de que goza!A condessa voltara-se para a plateia, coberta com o leque, com o

ar constrangido, como se aquelas palavras pueris do marido a dimi-nuíssem, a desfeassem... Carlos então falou da ópera. Que belo escu-deiro huguenote fazia o Pandolli! A condessa não aturava o Corcelli,o tenor, com as suas notas ásperas e aquela obesidade que o tornavabufo. Mas também (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Pas-sara essa grande raça dos Mários, homens de beleza, de inspiração,realizando os grandes tipos líricos. Nicolini era já uma degenera-ção... Isto fez lembrar a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graçade fada, e a sua voz semelhante a uma chuva de oiro!...

Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil coisas; em certos movimen-tos, o cabelo, crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho:e em torno dela errava, no calor do gás e da enchente, um aromaexagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha derendas negras, à Valois, afogando-lhe o pescoço onde pousavamduas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arzinho deprovocação e de ataque. De pé, calado, grave, o conde batia a coxacom a claque fechada.

O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhosencontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binóculo, obser-vando-o, mirando a condessa e falando a Raquel, que sorria, moviao leque com um ar dolente e vago.

— Nós recebemos às terças-feiras — disse a condessa a Carlos.E o resto da frase perdeu-se num murmúrio e num sorriso.

O conde acompanhou-o fora, ao corredor.— É sempre uma honra para mim — dizia ele caminhando ao

lado de Carlos — fazer o conhecimento das pessoas que valemalguma coisa neste país... Vossa Excelência é desse número, bemraro infelizmente.

Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta erotunda:

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— Não lisonjeio. Eu nunca lisonjeio... Mas a Vossa Excelênciapodem-se dizer estas coisas, porque pertence à élite: a desgraça dePortugal é a falta de gente. Isto é um país sem pessoal. Quer-se umbispo? Não há um bispo. Quer-se um economista? Não há um eco-nomista. Tudo assim! Veja Vossa Excelência mesmo nas profissõessubalternas. Quer-se um bom estofador? Não há um bom estofa-dor...

Um cheio de instrumentos e vozes, de um tom sublime, pas-sando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas últimaspalavras sobre a deficiência dos fotógrafos... Escutou com a mão noar:

— É o Coro dos Punhais, não? Ah! vamos a ouvir... Ouve-sesempre isto com proveito. Há filosofia nesta música... É pena quelembre tão vivamente os tempos da intolerância religiosa, mas háali incontestavelmente filosofia!

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CARLOS, nessa manhã, ia visitar de surpresa a casa doEga, a famosa «Vila Balzac», que esse fantasista andara meditandoe dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha enfiminstalado.

Ega dera-lhe esta denominação literária, pelos mesmos motivospor que a alugara num subúrbio longínquo, na solidão da Penha deFrança — para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silênciocampestre, os ares limpos, tudo ali fosse favorável ao estudo, àshoras de arte e de ideal. Porque ia fechar-se lá, como num claustrode letras, a findar as Memórias de Um Átomo! Somente, por causadas distâncias, tinha tomado ao mês um coupé da Companhia.

Carlos teve dificuldades em encontrar a «Vila Balzac»: não era,como tinha dito Ega no Ramalhete, logo adiante do Largo da Graçaum chalezinho retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre árvo-res. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depoispenetrava-se numa vereda larga, entre quintais, descendo pelopendor da colina, mas acessível a carruagens; e aí, num recanto,ladeada de muros, aparecia enfim uma casota de paredes enxova-lhadas, com dois degraus de pedra à porta e transparentes novosde um escarlate estridente.

Nessa manhã, porém, debalde Carlos deu puxões desesperadosà corda da campainha, martelou a aldrava da porta, gritou a toda avoz por cima do muro do quintal e das copas das árvores o nome doEga: — a «Vila Balzac» permaneceu muda, como desabitada, no seu

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Capítulo VI

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retiro rústico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes debater, ouvira o estalar de rolhas de champanhe.

Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com oscriados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeitode Torre de Nesle...

— Vai lá amanhã; se ninguém responder, escala as janelas pegafogo ao prédio, como se fossem apenas as Tulherias.

Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já a «Vila Balzac» oesperava, toda em festa: à porta «o pajem», um garoto de feiçõeshorrivelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botõesde metal, com uma gravata muito branca e muito tesa; as duasjanelas em cima, abertas, mostrando o repes verde das bambinelas,bebiam à larga todo o ar do campo e o Sol de Inverno: e no topo daestreita escada, tapetada de vermelho, Ega, num prodigiosorobe-de-chambre, de um estofo adamascado do século XVIII, vestidode corte de alguma das suas avós, exclamou dobrando a fronte aochão:

— Bem-vindo, meu príncipe, ao humilde tugúrio do filósofo!Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de repes verde,

de um verde feio e triste, e introduziu o «príncipe» na sala ondetudo era verde também: o repes que recobria uma mobília denogueira, o tecto de tabuado, as listras verticais do papel daparede, o pano franjado da mesa e o reflexo de um espelho redondo,inclinado sobre o sofá.

Não havia um quadro, uma flor, um ornato, um livro — apenassobre a jardineira uma estatueta de Napoleão I, de pé, equilibradosobre o orbe terrestre, nessa conhecida atitude em que o herói, comum ar pançudo e fatal, esconde uma das mãos por trás das costas eenterra a outra nas profundidades do seu colete. Ao lado uma gar-rafa de champanhe, encarapuçada de papel dourado, esperavaentre dois copos esguios.

— Para que tens tu aqui Napoleão, John?— Como alvo de injúrias — disse Ega. — Exercito-me sobre ele

a falar dos tiranos....Esfregou as mãos radiante. Estava nessa manhã em alegria e

em verve. E quis imediatamente mostrar a Carlos o seu quarto decama; aí reinava um cretone de ramagens alvadias, sobre fundovermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, ocentro da «Vila Balzac»; e nele se esgotara a imaginação artística

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do Ega. Era de madeira, baixo como um divã, com a barra alta, umrodapé de renda, e de ambos os lados um luxo de tapetes de felpoescarlate; um largo cortinado de seda da Índia avermelhada envol-via-o num aparato de tabernáculo; e dentro, à cabeceira, como numlupanar, reluzia um espelho.

Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho.Ega deu a todo o leito um olhar silencioso e doce, e disse, depois depassar uma pontinha de língua pelo beiço:

— Tem seu chique...Sobre a mesinha-de-cabeceira erguia-se um montão de livros: a

Educação de Spencer ao lado de Baudelaire, a Lógica de StuartMill por cima do Cavaleiro da Casa Vermelha. No mármore dacómoda havia outra garrafa de champanhe entre dois copos; o tou-cador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de póde arroz no meio de plastrões e gravatas brancas do Ega, e ummaço de ganchos do cabelo ao lado de ferros de frisar.

— E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?— Ali — disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.Mas foi mostrar logo o seu recantozinho estudioso, formado por

um biombo, ao lado da janela, e tomado todo por uma mesa depé-de-galo, onde Carlos, assombrado, descobriu, entre o belo papelde cartas do Ega, um Dicionário de Rimas...

E a visita à casa continuou.Na sala de jantar, quase nua, caiada de amarelo, um armário

de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviçobarato de louça nova; e do fecho da janela pendia um vestuário ver-melho, que parecia roupão de mulher.

— É sóbrio e simples — exclamou Ega — como compete àqueleque se alimenta de uma côdea de Ideal e duas garfadas de Filoso-fia. Agora, à cozinha!...

Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas jane-las abertas; e entreviam-se árvores de quintal, um verde de terrenosvagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol;uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do colo,ergueu-se, com o Jornal de Notícias na mão. Ega apresentou-a, numtom de farsa:

— A Sr.a Josefa, solteira, de temperamento sanguíneo, artistaculinária da «Vila Balzac», e, como se pode observar pelo papel quelhe pende das garras, cultora das boas letras!

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A moça sorria, sem embaraço, habituada decerto a estas fami-liaridades boémias.

— Eu hoje não janto cá, Sr.a Josefa — continuava o Ega nomesmo tom. — Este formoso mancebo que me acompanha, duquedo Ramalhete e príncipe de Santa Olávia, dá hoje de papar ao seuamigo filósofo... E, como quando eu recolher, talvez a Sr.a Josefaesteja entregue ao sono da inocência, ou à vigília da devassidão,aqui lhe ordeno que me tenha amanhã para o meu lunch duas for-mosas perdizes.

E subitamente, numa outra voz, com um olhar que ela deviaperceber:

— Duas perdizezinhas bem assadas e bem coradinhas. Frias,está claro... O costume.

Travou do braço de Carlos, voltaram à sala.— Com franqueza, Carlos, que te parece a «Vila Balzac»?Carlos respondeu como a respeito do episódio da Hebreia:— Está ardente.Mas elogiou o asseio, a vista da casa e a frescura dos cretones.

De resto, para um rapaz, para uma cela de trabalho...— Eu — dizia o Ega, passeando pela sala, com as mãos enterra-

das nos bolsos do seu prodigioso robe-de-chambre — eu não tolero obibelot, o bricabraque, a cadeira arqueológica, essas mobílias dearte... Que diabo, móvel deve estar em harmonia com a ideia e osentir do homem que o usa! Eu não penso, nem sinto como umcavaleiro do século XVI, para que me hei-de cercar de coisas doséculo XVI? Não há nada que me faça tanta melancolia, como vernuma sala um venerável contador do tempo de Francisco I, rece-bendo pela face conversas sobre eleições e altas de fundos. Faz-meo efeito de um belo herói de armadura de aço, viseira caída e cren-ças profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogarcopas. Cada século tem o seu génio próprio e a sua atitude própria.O século XIX concebeu a Democracia e a sua atitude é esta... — Eenterrando-se de estalo numa poltrona, espetou as pernas magraspara o ar. — Ora esta atitude é impossível num escabelo do tempodo Prior do Crato. Menino, toca a beber o champanhe.

E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega acudiu:— É excelente, que pensas tu? Vem directamente da melhor

casa de Épernay, arranjou-mo o Jacob.— Que Jacob?

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— O Jacob Cohen, o Jacob.Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma súbita

recordação, e pousando a garrafa outra vez, entalando o monóculono olho:

— É verdade! Então, noutro dia, que tal, em casa dos Gouvari-nhos? Eu infelizmente não pude ir.

Carlos contou a soirée. Havia dez pessoas, espalhadas pelasduas salas, num zunzum dormente, à meia luz dos candeeiros. Oconde maçara-o indiscretamente com a política, admirações idiotaspor um grande orador, um deputado de Mesão Frio, e explicaçõessem fim sobre a reforma da instrução. A condessa, que estavamuito constipada, horrorizou-o, dando sobre a Inglaterra, apesarde inglesa, as opiniões da Rua de Cedofeita. Imaginava que aInglaterra é um país sem poetas, sem artistas, sem ideais, ocu-pando-se só de amontoar libras... Enfim, secara-se.

— Que diabo! — murmurou o Ega num tom de viva desconsola-ção.

A rolha estalou, ele encheu os copos em silêncio; e numa saúdemuda os dois amigos beberam o champanhe — que Jacob arranjaraao Ega, para o Ega se regalar com Raquel.

Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando devagar o coponovamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar,naquela entoação triste de inesperado desapontamento:

— Que ferro!...E após um momento:— Pois menino, pensei que a Gouvarinho te apetecia...Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe falara

dela, tivera um caprichozinho, interessara-se por aqueles cabeloscor de brasa...

— Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...Ega sentara-se, com o copo na mão; e depois de contemplar

algum tempo as suas meias de seda, escarlates como as de um pre-lado, deixou cair, muito sério, estas palavras:

— É uma mulher deliciosa, Carlinhos.E, como Carlos encolhia os ombros, Ega insistiu: a Gouvarinho

era uma senhora de inteligência e de gosto; tinha originalidade,tinha audácia, uma pontinha de romantismo muito picante…

— E, como corpinho de mulher, não há melhor que aquilo deBadajoz para cá!

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— Vai-te daí, Mefistófeles de Celorico!E Ega, divertido, cantarolou:

Je suis Mephisto...Je suis Mephisto...

Carlos, no entanto, fumando preguiçosamente, continuava afalar na Gouvarinho e nessa brusca saciedade que o invadira, maltrocara com ela três palavras numa sala. E não era a primeira vezque tinha destes falsos arranques de desejo, vindo quase com asformas de amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo,todo o seu ser, e resolvendo-se em tédio, em «seca». Eram como osfogachos de pólvora sobre uma pedra; uma fagulha ateia-os, nummomento tornam-se chama veemente que parece que vai consumiro Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja apedra. Seria o seu um desses corações de fraco, moles e flácidos,que não podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-sepelas malhas lassas do tecido reles?

— Sou um ressequido! — disse ele sorrindo. — Sou um impo-tente de sentimento, como Satanás... Segundo os padres da Igreja,a grande tortura de Satanás é que não pode amar.

— Que frases essas, menino! — murmurou Ega.Como frases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as

paixões falharem-lhe nas mãos como fósforos. Por exemplo, com acoronela de hussardos em Viena! Quando ela faltou ao primeirorendez-vous, chorara lágrimas como punhos, com a cabeça enter-rada no travesseiro e aos coices à roupa. E daí a duas semanas,mandava postar o Baptista à janela do hotel, para ele se safar, mala pobre coronela dobrasse a esquina! E com a holandesa, comMadame Rughel, pior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensa-tez: queria-se estabelecer para sempre na Holanda, casar com ela(apenas ela se divorciasse), outras loucuras; depois os braços queela lhe deitava ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe pesa-dos como chumbo...

— Passa fora, pedante! E ainda lhe escreves! — gritou Ega.— Isso é outra coisa. Ficámos amigos, puras relações de inteligên-

cia. Madame Rughel é uma mulher de muito espírito. Escreveu umromance, um desses estudos íntimos e delicados, como os de MissBroughton: chama-se as Rosas Murchas. Eu nunca li, é em holandês...

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— As Rosas Murchas... em holandês! — exclamou Ega aper-tando as mãos na cabeça.

Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monóculo no olho:— Tu és extraordinário, menino!... Mas o teu caso é simples, é o

caso de Don Juan. Don Juan também tinha essas alternações dechama e cinza. Andava à busca do seu ideal, da sua mulher, procu-rando-a principalmente, como de justiça, entre as mulheres dosoutros. E après avoir couché, declarava que se tinha enganado, quenão era aquela. Pedia desculpa e retirava-se. Em Espanha experi-mentou assim mil e três. Tu és simplesmente, como ele, umdevasso; e hás-de vir a acabar desgraçadamente como ele, numatragédia infernal!

Esvaziou outro copo de champanhe, e a grandes passadas pelasala:

— Carlinhos da minha alma, é inútil que ninguém ande àbusca da sua mulher. Ela virá. Cada um tem a sua mulher e neces-sariamente tem de a encontrar. Tu estás aqui, na Cruz dos QuatroCaminhos, ela está talvez em Pequim: mas tu, aí a raspar o meurepes com o verniz dos sapatos, e ela a orar no templo de Confúcio,estais ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, mar-chando um para o outro!... Estou eloquentíssimo hoje, e temos ditocoisas idiotas. Toca a vestir. E, enquanto eu adorno a carcaça, pre-para mais frases sobre Satanás!

Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto — enquantodentro o Ega batia com as gavetas, lançando, a todo o desafinadoda sua voz roufenha, a Barcarola de Gounod. Quando apareceu,vinha de casaca, gravata branca, enfiando o paletó — com o olhobrilhante do champanhe.

Desceram. O pajem lá estava à porta perfilado, ao pé do coupéde Carlos, que esperara. E a sua fardeta azul de botões amarelos, amagnífica parelha baia reluzindo como um cetim vivo, as pratasdos arreios, a majestade do cocheiro loiro com o seu ramo na libré,tudo ali fazia, junto da «Vila Balzac», um quadro rico que deleitou oEga.

— A vida é agradável — disse ele.O coupé partiu, ia entrar no Largo da Graça, quando uma cale-

che de praça, aberta, o cruzou a largo trote. Dentro um sujeito dechapéu baixo ia lendo um grande jornal.

— É o Craft! — gritou Ega, debruçando-se pela portinhola.

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O coupé parou. Ega de um pulo estava na calçada, correndo,bradando:

— Ó Craft! Ó Craft!Quando, daí a um momento, sentiu duas vozes

aproximarem-se, Carlos desceu também do coupé, achou-se em facede um homem baixo, loiro, de pele rosada e fresca, e aparência fria.Sob o fraque correcto percebia-se uma musculatura de atleta.

— O Carlos, o Craft — gritou o Ega, lançando esta apresenta-ção com uma simplicidade clássica.

Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a mão. E Egainsistia para que voltassem todos à «Vila Balzac», fossem beberoutra garrafa de champanhe, a celebrar o advento do Justo! Craftrecusou, com o seu modo calmo e plácido; chegara na véspera doPorto, abraçara já o nobre Ega, e aproveitava agora a viagemàquele bairro longínquo para ir ver o velho Shelgen, um alemãoque vivia à Penha de França.

— Então outra coisa! — exclamou Ega. — Para conversarmos,para que vocês se conheçam mais, venham vocês jantar comigoamanhã ao Hotel Central. Dito, hem? Perfeitamente. Às seis.

Apenas o coupé partiu de novo, Ega rompeu nas costumadasadmirações pelo Craft, encantado com aquele encontro que davamais um retoque luminoso à sua alegria. O que o entusiasmava noCraft era aquele ar imperturbável de gentleman correcto, com queele igualmente jogaria uma partida de bilhar, entraria numa bata-lha, arremeteria com uma mulher ou partiria para a Patagónia...

— É das melhores coisas que tem Lisboa. Vais-te morrer porele... E que casa que ele tem nos Olivais, que sublime bricabraque!

Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga natesta:

— Como diabo soube ele da «Vila Balzac»?— Tu não fazes segredo dela, hem?— Não... Mas também não a pus nos anúncios! E o Craft chegou

ontem, ainda não esteve com ninguém que eu conheça... É curioso!— Em Lisboa sabe-se tudo...— Canalha de terra! murmurou Ega.

O jantar no Central foi adiado, porque o Ega, alargando poucoa pouco a ideia, convertera-o agora numa festa de cerimónia emhonra do Cohen.

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— Janto lá muitas vezes — disse ele a Carlos — estou lá todasas noites... É necessário repagar a hospitalidade... Um jantar noCentral é o que basta. E para o efeito moral, pespego-lhe à mesa omarquês e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim...

Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquês partira paraa Golegã, e o pobre Steinbroken estava sofrendo de um incómodode entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira — mas receou acabeleira desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques deamargo spleen que estragariam o jantar. Terminou por convidardois íntimos do Cohen; mas teve então de suprimir o Taveira, queestava de mal com um desses cavalheiros por palavras que tinhamtrocado em casa da «Lola gorda».

Decididos os convidados, fixado o jantar para umasegunda-feira, Ega teve uma conferência com o maître d’hôtel doCentral, em que lhe recomendou muita flor, dois ananases paraenfeitar a mesa, e exigiu que um dos pratos do menu, qualquerdeles, fosse à la Cohen; e ele mesmo sugeriu uma ideia: tomatesfarcies à la Cohen...

Nessa tarde, às seis horas, Carlos, ao descer a Rua do Alecrimpara o Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bricabraquedo tio Abraão.

Entrou. O velho judeu, que estava mostrando a Craft uma falsafaiança do Rato, arrancou logo da cabeça o sujo barrete de borla, eficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mãos sobre ocoração.

Depois, numa linguagem exótica, misturada de inglês, pediu aoseu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seubeautiful gentleman, que se dignasse examinar uma maravilhazi-nha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentlemantinha só a voltar os olhos, a maravilhazinha estava ali ao lado,numa cadeira. Era um retrato de espanhola, apanhado a fortes bro-xadelas de primeira impressão, e pondo, sobre um fundo audaz decor-de-rosa murcho, uma face gasta de velha garça, picada dasbexigas, caiada, ressudando vício, com um sorriso bestial que pro-metia tudo.

Carlos, tranquilamente, ofereceu dez tostões. Craft pasmou deuma tal prodigalidade; e o bom Abraão, num riso mudo que lheabria entre a barba grisalha uma grande boca de um só dente,saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores». Dez tostõezi-

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nhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortuny,valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse nomezinho ben-dito... Ainda assim valia dez notazinhas de vinte mil réis...

— Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! — exclamouCarlos.

E saíram, deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois,com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seusgenerosos fidalgos...

— Não tem uma única coisa boa, este velho Abraão — disseCarlos.

— Tem a filha — disse o Craft.Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja. Então a pro-

pósito do Abraão, falou a Craft dessas belas colecções dos Olivais,que o Ega, apesar do desdém que afectava pelo bibelot e pelo móvelde arte, lhe descrevera como sublimes.

Craft encolheu os ombros.— O Ega não entende nada. Mesmo em Lisboa, não se pode

chamar ao que eu tenho uma colecção. É um bricabraque deacaso... De que, de resto, me vou desfazer!

Isto surpreendeu Carlos. Compreendera das palavras do Egaser essa uma colecção formada com amor, no laborioso decurso deanos, orgulho e cuidado de uma existência de homem...

Craft sorriu daquela legenda. A verdade era que só em 1872 elecomeçara a interessar-se pelo bricabraque; chegava então da Amé-rica do Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui e além, acu-mulara-o nessa casa dos Olivais, alugada então por fantasia, umamanhã que aquele pardieiro, com o seu bocado de quintal em redor,lhe parecera pitoresco, sob o sol de Abril. Mas agora, se pudessedesfazer-se do que tinha, ia dedicar-se então a formar uma colecçãohomogénea e compacta de arte do século XVIII.

— Aqui nos Olivais?— Não. Numa quinta que tenho ao pé do Porto, junto mesmo ao

rio.Entravam então no peristilo do Hotel Central — e nesse

momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do ladoda Rua do Arsenal, veio estacar à porta.

Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correulogo à portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muitonegra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa,

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de pêlos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depoisapeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta,loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que real-çava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afasta-ram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa,maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma clari-dade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia umcasaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre aslajes do peristilo brilhou o verniz da suas botinas. O rapaz ao lado,esticado num fato de xadrezinho inglês, abria negligentemente umtelegrama; o preto seguia com a cadelinha nos braços. E no silêncioa voz de Craft murmurou:

— Très chic.Em cima, no gabinete que o criado lhes indicou, Ega esperava,

sentado no divã de marroquim, e conversando com um rapaz baixote,gordo, frisado como um noivo de província, de camélia ao peito e plas-trão azul-celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o Sr.Dâmaso Salcede, e mandou servir vermute, por ser tarde, segundolhe parecia, para esse requinte literário e satânico do absinto...

Fora um dia de Inverno suave e luminoso, as duas janelas esta-vam ainda abertas. Sobre o rio, no céu largo, a tarde morria, semuma aragem, numa paz elísia, com nuvenzinhas muito altas, para-das, tocadas de cor-de-rosa; as terras, os longes da outra banda jáse iam afogando num vapor aveludado, do tom de violeta; a águajazia lisa e luzidia como uma bela chapa de aço novo; e aqui e além,pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetesestrangeiros, dois couraçados ingleses, dormiam, com as mastrea-ções imóveis, como tomados de preguiça, cedendo ao afago do climadoce...

— Vimos agora lá em baixo — disse Craft indo sentar-se nodivã — uma esplêndida mulher, com uma esplêndida cadelinhagriffon, e servida por um esplêndido preto!

O Sr. Dâmaso Salcede, que não despregava os olhos de Carlos,acudiu logo:

— Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim comeles de Bordéus... Uma gente muito chique que vive em Paris.

Carlos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afável einteressando-se:

— O Sr. Salcede chegou agora de Bordéus?

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Estas palavras pareceram deleitar Dâmaso como um favorceleste: ergueu-se imediatamente, aproximou-se do Maia, banhadonum sorriso:

— Vim aqui há quinze dias, no Orenoque. Vim de Paris... Que euem podendo é lá que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordéus.Isto é, verdadeiramente, conheci-a a bordo. Mas estávamos todos noHotel de Nantes. Gente muito chique: criado de quarto, governantainglesa para a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas...Chique a valer! Parece incrível, uns brasileiros... Que ela na voz nãotem sutaque nenhum, fala como nós. Ele sim, ele muito sutaque...Mas elegante também, Vossa Excelência não lhe pareceu?

— Vermute? — perguntou-lhe o criado, oferecendo a salva.— Sim, uma gotinha para o apetite. Vossa Excelência não toma,

Sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho para Paris! Aquiloé que é terra! Isto aqui é um chiqueiro... Eu, em não indo lá todosos anos, acredite Vossa Excelência, até começo a andar doente.Aquele Boulevarzinho, hem!... Ai, eu gozo aquilo! E sei gozar, seigozar, que eu conheço aquilo a palmo... Tenho até um tio em Paris.

— E que tio! — exclamou Ega, aproximando-se. — Íntimo deGambetta, governa a França... O tio do Dâmaso governa a França,menino!

Dâmaso, escarlate, estoirava de gozo.— Ah, lá isso influência tem. Íntimo do Gambetta, tratam-se

por tu, até vivem quase juntos... E não é só com o Gambetta; é como Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esqueceagora o nome, com todos os republicanos, enfim!... É tudo quantoele queira. Vossa Excelência não o conhece? É um homem de bar-bas brancas... Era irmão de minha mãe, chama-se Guimarães. Masem Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...

Nesse momento a porta envidraçada abriu-se de golpe. Egaexclamou: «Saúde ao poeta!»

E apareceu um indivíduo muito alto, todo abotoado numasobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, esob o nariz aquilino, longos, espessos, românticos bigodes grisa-lhos: já todo calvo na frente, os anéis fofos de uma grenha muitoseca caíam-lhe inspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pes-soa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre.

Estendeu silenciosamente dois dedos ao Dâmaso, e abrindo os bra-ços lentos para Craft, disse numa voz arrastada, cavernosa, ateatrada:

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— Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? Dá-mecá esses ossos honrados, honrado inglês!

Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:— Não sei se são relações. Carlos da Maia... Tomás de Alencar,

o nosso poeta...Era ele! o ilustre cantor das Vozes de Aurora, o estilista de

Elvira, o dramaturgo do Segredo do Comendador. Deu dois passosgraves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mão emsilêncio — e sensibilizado, mais cavernoso:

— Vossa Excelência, já que as etiquetas sociais querem que eulhe dê excelência, mal sabe a quem apertou agora a mão...

Carlos, surpreendido, murmurou:— Eu conheço muito de nome...E o outro com o olho cavo, o lábio trémulo:— Ao camarada, ao inseparável, ao íntimo de Pedro da Maia,

do meu pobre, do meu valente Pedro!— Então, que diabo, abracem-se! — gritou Ega. — Abracem-se,

com um berro, segundo as regras...Alencar já tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou,

retomando-lhe as mãos, sacudindo-lhas, com uma ternura ruidosa:— E deixemo-nos já de excelências! que eu vi-te nascer, meu

rapaz! trouxe-te muito ao colo! sujaste-me muita calça! Cos diabos,dá cá outro abraço!

Craft olhava estas coisas veementes, impassível; Dâmaso pare-cia impressionado; Ega apresentou um copo de vermute ao poeta.

— Que grande cena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para terecuperares da emoção...

Alencar esgotou-o de um trago, e declarou aos amigos que nãoera a primeira vez que via Carlos. Já o admirara no seu faetonte,muitas vezes, e aos seus belos cavalos ingleses. Mas não se quiseradar a conhecer. Ele nunca se atirava aos braços de ninguém, a nãoser das mulheres... Foi encher outro cálice de vermute, e com ele namão, plantado diante de Carlos, começou, num tom patético:

— A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estavaeu no Rodrigues, esquadrinhando alguma dessa velha literatura,hoje tão desprezada... Lembro-me até que era um volume das Éclo-gas do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta daNatureza, esse rouxinol tão português, hoje, está claro, metido aum canto, desde que para aí apareceu o Satanismo, o Naturalismo

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e o Bandalhismo, e outros esterquilínios em ismo... Nesse momentopassaste, disseram-me quem eras, e caiu-me o livro da mão...Fiquei ali uma hora, acredita, a pensar, a rever o passado...

E atirou o vermute às goelas. Ega, impaciente, olhava o relógio.Um criado, entrando, acendeu o gás; a mesa surgiu da penumbra,com um brilho de cristais e louças, um luxo de camélias em ramos.

No entanto Alencar (que à luz viva parecia mais gasto e maisvelho) começara uma grande história, e como fora ele o primeiro quevira Carlos depois de nascer, e como fora ele que lhe dera o nome.

— Teu pai — dizia ele — o meu Pedro, queria-te pôr o nome deAfonso, desse santo, desse varão de outras idades, Afonso da Maia!Mas tua mãe, que tinha lá as suas ideias, teimou em que havias deser Carlos. E justamente por causa de um romance que eu lheemprestara; nesses tempos podia-se emprestar romances a senho-ras, ainda não havia a pústula e o pus... Era um romance sobre oúltimo Stuart, aquele belo tipo do príncipe Carlos Eduardo, quevocês, filhos, conhecem todos bem, e que na Escócia, no tempo deLuís XIV... Enfim, adiante! Tua mãe, devo dizê-lo, tinha literaturae da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre, nesse tempo euera alguém, e lembro-me de lhe ter respondido... (Lembro-me ape-sar de já lá irem vinte e cinco anos... Que digo eu? Vinte e sete!Vejam vocês isto, filhos, vinte e sete anos!). Enfim, voltei-me paratua mãe, e disse-lhe, palavras textuais: «Ponha-lhe o nome de Car-los Eduardo, minha rica senhora, Carlos Eduardo, que é o verda-deiro nome para o frontispício de um poema, para a fama de umheroísmo ou para o lábio de uma mulher!»

Dâmaso, que continuava a admirar Carlos, deu bravos estron-dosos; Craft bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava aporta, nervoso, de relógio na mão, soltou de lá um muito bemdesenxabido.

Alencar, radiante com o seu efeito, derramava em roda um sor-riso que lhe mostrava os dentes estragados. Abraçou outra vez Car-los, atirou uma palmada ao coração, exclamou:

— Caramba!, filhos, sinto uma luz cá dentro!A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se

logo da sua demora — enquanto Ega, que se precipitara para ele, lheajudava a despir o paletó. Depois apresentou-o a Carlos — a únicapessoa ali de quem o Cohen não era íntimo. E dizia, tocando o botãoda campainha eléctrica:

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— O marquês não pôde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coi-tado, está com a sua gota, a gota de diplomata, de lorde e de ban-queiro... A gota que tu hás-de ter, velhaco!

Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suíçastão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria,descalçando as luvas, dizendo que, segundo os ingleses, havia tam-bém a gota da gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe com-petia a ele...

Ega, no entanto, travara-lhe do braço, colocara-o preciosamenteà mesa, à sua direita: depois ofereceu-lhe um botão de camélia deum ramo: o Alencar floriu-se também — e os criados serviram asostras.

Falou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impres-sionava Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado à navalha poruma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfa-queando-se, toda uma viela em sangue — uma sarrabulhada comodisse o Cohen, sorrindo e provando o Bucelas.

Dâmaso teve a satisfação de poder dar detalhes; conhecera arapariga, a que dera as facadas, quando ela era amante do vis-conde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita. Umas mãos deduquesa... E como aquilo cantava o fado! O pior era que mesmo notempo do visconde, quando ela era chique, já se empiteirava... E ovisconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera a amizade;respeitava-a, mesmo depois de casado ia vê-la, e tinha-lhe prome-tido que se ela quisesse deixar o fado lhe punha uma confeitariapara os lados da Sé. Mas ela não queria. Gostava daquilo, doBairro Alto, dos cafés de lepes, dos chulos...

Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer umestudo, um romance... Isto levou logo a falar-se do Assommoir, deZola e do realismo: — e o Alencar imediatamente, limpando osbigodes dos pingos de sopa, suplicou que se não discutisse, à horaasseada do jantar, essa literatura latrinária. Ali todos eramhomens de asseio, de sala, hem? Então, que se não mencionasse oexcremento!

Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes,tirados a milhares de edições; essas rudes análises, apoderando-seda Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coi-sas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão,como a cadáveres num anfiteatro; esses estilos novos, tão preciosos

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e tão dúcteis, apanhando em flagrante a linha, a cor, a palpitaçãomesma da vida; tudo isso (que ele, na sua confusão mental, cha-mava a Ideia Nova), caindo assim de chofre e escangalhando acatedral romântica, sob a qual tantos anos ele tivera altar e cele-brara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o des-gosto literário da sua velhice. Ao princípio reagiu. «Para pôr umdique definitivo à torpe maré», como ele disse em plena Academia,escreveu dois folhetins cruéis; ninguém os leu; a «maré torpe» alas-trou-se, mais profunda, mais larga. Então Alencar refugiou-se namoralidade como numa rocha sólida. O naturalismo, com as suasaluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social? Poisbem. Ele, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bonscostumes. Então o poeta das Vozes de Aurora, que durante vinteanos, em cançoneta e ode, propusera comércios lúbricos a todas asdamas da capital; então o romancista de Elvira que, em novela edrama, fizera a propaganda do amor ilegítimo, representando osdeveres conjugais como montanhas de tédio, dando a todos os mari-dos formas gordurosas e bestiais, e a todos os amantes a beleza, oesplendor e o génio dos antigos Apolos; então Tomás Alencar, que (aacreditarem-se as confissões autobiográficas da Flor do Martírio)passava ele próprio uma existência medonha de adultérios, lubrici-dades, orgias, entre veludos e vinhos de Chipre — de ora em dianteaustero, incorruptível, todo ele uma torre de pudicícia, passou avigiar atentamente o jornal, o livro, o teatro. E mal lobrigava sinto-mas nascentes de realismo num beijo que estalava mais alto, numabrancura de saia que se arregaçava de mais — eis o nosso Alencarque soltava por sobre o país um grande grito de alarme, corria àpena, e as suas imprecações lembravam (a académicos fáceis decontentar) o rugir de Isaías. Um dia, porém, Alencar teve uma des-tas revelações que prostram os mais fortes: quanto mais ele denun-ciava um livro como imoral, mais o livro se vendia como agradável!O Universo pareceu-lhe coisa torpe, e o autor de Elvira encavacou...

Desde então reduziu a expressão do seu rancor ao mínimo, aessa frase curta, lançada com nojo:

— Rapazes, não se mencione o excremento!Mas nessa noite teve o regozijo de encontrar aliados. Craft não

admitia também o naturalismo, a realidade feia das coisas e dasociedade estatelada nua num livro. A arte era uma idealização!Bem: então que mostrasse os tipos superiores de uma humanidade

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aperfeiçoada, as formas mais belas do viver e do sentir... Ega, hor-rorizado, apertava as mãos na cabeça — quando do outro lado Car-los declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus gran-des ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de umafilosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimenta-lismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito deuma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente ofraco do realismo estava em ser ainda pouco científico, inventarenredos, criar dramas, abandonar-se à fantasia literária! A formapura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco deum tipo, de um vício, de uma paixão, tal qual como se se tratassede um caso patológico, sem pitoresco e sem estilo...

— Isso é absurdo — dizia Carlos — , os caracteres só se podemmanifestar pela acção...

— E a obra de arte — acrescentou Craft — vive apenas pelaforma...

Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessáriastantas filosofias.

— Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos. O rea-lismo critica-se deste modo: mão no nariz! Eu quando vejo um des-ses livros, enfrasco-me logo em água-de-colónia. Não discutamos oexcremento.

— Sole normande? — perguntou-lhe o criado, adiantando a tra-vessa.

Ega ia fulminá-lo. Mas, vendo que o Cohen dava um sorrisoenfastiado e superior a estas controvérsias de literaturas, calou-se;ocupou-se só dele, quis saber que tal ele achava aquele St. Emilion;e, quando o viu confortavelmente servido de sole normande, lançoucom grande alarde de interesse esta pergunta:

— Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimofaz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados que aquela ques-tão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verda-deiro episódio histórico!...

O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respon-deu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolu-tamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma dasfontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o

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imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta —cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de conti-nuar...

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, dessemodo, o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.

— Num galopezinho muito seguro e muito a direito — disse oCohen, sorrindo. — Ah! sobre isso, ninguém tem ilusões, meu carosenhor. Nem os próprios ministros da Fazenda!... A bancarrota éinevitável; é como quem faz uma soma...

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hem! Etodos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice denovo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as pala-vras.

— A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas paraela — continuava o Cohen — que seria mesmo fácil a qualquer, emdois ou três anos, fazer falir o país...

Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: man-ter uma agitação revolucionária constante; nas vésperas de se lan-çarem os empréstimos haver duzentos maganões decididos quecaíssem à pancada na municipal e quebrassem os candeeiros comvivas à República; telegrafar isto em letras bem gordas para os jor-nais de Paris, de Londres e do Rio de Janeiro; assustar os merca-dos, assustar o brasileiro, e a bancarrota estalava. Somente, comoele disse, isto não convinha a ninguém.

Então Ega protestou com veemência. Como não convinha a nin-guém? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! À bancar-rota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um país que vive dainscrição, em não lha pagando, agarra no cacete; e procedendo porprincípio, ou procedendo apenas por vingança — o primeiro cui-dado que tem é varrer a monarquia que lhe representa o calote, ecom ela o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise,Portugal, livre da velha dívida, da velha gente, dessa colecção gro-tesca de bestas...

A voz do Ega sibilava... Mas, vendo assim tratados de grotescos,de bestas, os homens de ordem que fazem prosperar os bancos,Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bomsenso. Evidentemente, ele era o primeiro a dizê-lo, em toda essagente que figurava desde 46 havia medíocres e patetas — mas tam-bém homens de grande valor!

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— Há talento, há saber — dizia ele com um tom de experiência.— Você deve reconhecê-lo, Ega... Você é muito exagerado! Nãosenhor, há talento, há saber.

E, lembrando-se que algumas dessas bestas eram amigos doCohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar, porém,cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para ideiasradicais, para a democracia humanitária de 1848: por instinto, vendoo romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismopolítico, como num asilo paralelo: queria uma república governadapor génios, a fraternização dos povos, os Estados Unidos da Europa...Além disso, tinha longas queixas desses politicotes, agora gente doPoder, outrora seus camaradas de redacção, de café e de batota...

— Isso — disse ele — lá a respeito de talento e de saber, histó-rias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...

O Cohen acudiu:— Não senhor, Alencar, não senhor! Você também é dos tais...

Até lhe fica mal dizer isso... É exageração. Não senhor, há talento,há saber.

E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitadodirector do Banco Nacional, o marido da divina Raquel, o donodessa hospitaleira casa da Rua do Ferregial onde se jantava tãobem, recalcou o despeito — admitiu que não deixava de havertalento e saber.

Então, tendo assim, pela influência do seu banco, dos belosolhos da sua mulher e da excelência do seu cozinheiro, chamadoestes espíritos rebeldes ao respeito dos parlamentares e à venera-ção da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suaveda sua voz, que o país necessitava reformas...

Ega, porém, incorrigível nesse dia, soltou outra enormidade:— Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que pre-

cisa é a invasão espanhola.Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen, com aquele

sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitosdentes, viu ali apenas «um dos paradoxos do nosso Ega». Mas o Egafalava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele,invasão não significa perda absoluta de independência. Um receiotão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a doPrimeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habi-tantes serem engolidos, de um só trago, por um país que tem ape-

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nas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em dei-xar cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta belalinha de costa de Portugal. Sem contar as alianças que teríamos atroco das colónias — das colónias que só nos servem, como a pratade família aos morgados arruinados, para ir empenhando em casosde crise... Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma inva-são, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sovatremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ouduas províncias, ver talvez a Galiza estendida até ao Douro...

— Poulet aux champignons — murmurou o criado, apresen-tando-lhe a travessa.

E enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elea salvação do país nessa catástrofe que tornaria povoação espanholaCelorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heróis, berço dos Egas...

— Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio portu-guês! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos defazer um esforço desesperado para viver. E em que bela situaçãonos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos, semesse tortulho da inscrição, porque tudo desaparecia, estávamosnovos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos ser-vido. E recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, umPortugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando,fazendo civilização como outrora... Meninos, nada regenera umanação como uma medonha tareia.. . Oh! Deus de Ourique,manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St. Emilion.

Agora, num rumor animado, discutia-se a invasão. Ah!,podia-se fazer uma bela resistência! Cohen afiançava o dinheiro.Armas, artilharia, iam comprar-se à América — e Craft ofereceulogo a sua colecção de espadas do século XVI. Mas generais? Aluga-vam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato...

— O Craft e eu organizamos uma guerrilha — gritou o Ega.— Às ordens, meu coronel!— O Alencar — continuava Ega — é encarregado de ir desper-

tar pela província o patriotismo, com cantos e com odes!Então o poeta, pousando o cálice, teve um movimento de leão

que sacode a juba:— Isto é uma velha carcaça, meu rapaz, mas não está só para

odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa,ainda vão a terra um par de galegos... Caramba, rapazes, só a ideia

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dessas coisas me põe o coração negro! E como vocês podem falarnisso, a rir, quando se trata do país, desta terra onde nascemos,que diabo! Talvez seja má, de acordo, mas, caramba!, é a única quetemos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que rebenta-mos... Irra! falemos de outra coisa, falemos de mulheres!

Dera um repelão ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de pai-xão patriótica...

E no silêncio que se fez, Dâmaso, que desde as informaçõessobre a rapariga do Ermidinha emudecera, ocupado a observarCarlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com ar debom senso e de finura:

— Se as coisas chegassem a esse ponto, se se pusessem assimfeias, eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris...

Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sinté-tico de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português!Raspar-se, pirar-se!... Era assim que de alto a baixo pensava asociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde el-rei nossosenhor até aos cretinos de secretaria!...

— Meninos, ao primeiro soldado espanhol que apareça à fron-teira, o país em massa foge como uma lebre! Vai ser uma deban-dada única na história!

Houve uma indignação, Alencar gritou:— Abaixo o traidor!Cohen interveio, declarou que o soldado português era valente,

à maneira dos turcos — sem disciplina, mas teso. O próprio Carlosdisse, muito sério:

— Não senhor... Ninguém há-de fugir, e há-de-se morrer bem.Ega rugiu. Para que estavam eles fazendo essa pose heróica?

Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de cons-titucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na pio-lhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarias,arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o mús-culo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarderaça da Europa?...

— Isso são os lisboetas — disse Craft.— Lisboa é Portugal — gritou o outro. — Fora de Lisboa não há

nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...— A mais miserável raça da Europa! — continuava ele a berrar.

— E que exército! Um regimento, depois de dois dias de marcha,

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dava entrada em massa num hospital! Com seus olhos tinha elevisto, no dia da abertura das Cortes, um marujo sueco, um rapagãodo Norte, fazer debandar, a socos, uma companhia de soldados; aspraças tinham literalmente largado a fugir, com a patrona abater-lhes os rins; e o oficial, enfiando de terror, meteu-se parauma escada, a vomitar!...

Todos protestaram. Não, não era possível... Mas se ele tinhavisto, que diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos falazes dafantasia...

— Juro pela saúde da mamã! — gritou Ega furioso.Mas emudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O Cohen ia falar.O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os

Espanhóis, porém, pensassem na invasão, isso parecia-lhe certo —sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. Em Madridtodo o mundo lho dissera. Já havia mesmo negócios de fornecimen-tos entabulados...

— Espanholadas, galegadas! — rosnou Alencar, por entre den-tes, sombrio e torcendo os bigodes.

— No Hotel de Paris — continuou Cohen — em Madrid, conhecieu um magistrado, que me disse com um certo ar que não perdia aesperança de se vir estabelecer de todo em Lisboa, tinha-lhe agra-dado muito Lisboa, quando cá estivera a banhos. E enquanto amim, estou que há muitos espanhóis que estão à espera desteaumento de território para se empregarem!

Então Ega caiu em êxtase, apertou as mãos contra o peito. Oh!que delicioso traço! Oh! que admiravelmente observado!

— Este Cohen! — exclamava ele para os lados. — Que finamenteobservado! Que traço adorável! Hem!, Craft? Hem!, Carlos? Delicioso!

Todos cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agrade-cia, com o olho enternecido, passando pelas suíças a mão onde relu-zia um diamante. E nesse momento os criados serviam um prato deervilhas num molho branco, murmurando:

— Petits pois à la Cohen.À la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente.

E lá estava, era o legume: Petits pois à la Cohen. Dâmaso, entu-siasmado, declarou isto «chique a valer». E fez-se, com o champa-nhe que se abria, a primeira saúde ao Cohen.

Esquecera-se a bancarrota, a invasão, a pátria — o jantar ter-minava alegremente. Outras saúdes cruzaram-se, ardentes e

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loquazes: o próprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capri-cho de criança, bebeu à Revolução e à Anarquia, brinde complicado,que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, asobremesa alastrava-se, destroçada; no prato do Alencar as pontasde cigarros misturavam-se a bocados de ananás mastigado.Dâmaso, todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelhainglesa e daquele faetonte que era a coisa mais linda que passeavaLisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razão, Egaarremetera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendoexcluí-la de entre as nações pensantes, ameaçando-a de uma revo-lução social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com ace-nos de cabeça, imperturbável, partindo nozes.

Os criados serviram o café. E como havia já três longas horasque estavam à mesa, todos se ergueram, acabando os charutos,conversando, na animação viva que dera o champanhe. A sala, detecto baixo, com os cinco bicos de gás ardendo largamente,enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora oaroma forte das chartreuses e dos licores por entre a névoa alvadiado fumo.

Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; eaí recomeçou logo, naquela comunidade de gostos que os começavaa ligar, a conversa da Rua do Alecrim sobre a bela colecção dos Oli-vais. Craft dava detalhes; a coisa rica e rara que tinha era umarmário holandês do século XVI; de resto, alguns bronzes, faiançase boas armas...

Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto àmesa, estridências de voz, e como um conflito que rompia: Alencar,sacudindo a grenha, gritava contra a palhada filosófica; e do outrolado, com o cálice de conhaque na mão, Ega, pálido e afectandouma tranquilidade superior, declarava toda essa babugem líricaque por aí se publica digna da polícia correccional...

— Pegaram-se outra vez — veio dizer Dâmaso a Carlos, aproxi-mando-se da varanda. — É por causa do Craveiro. Estão ambosdivinos!

Era com efeito a propósito de poesia moderna, de Simão Cra-veiro, do seu poema A Morte de Satanás. Ega estivera citando, comentusiasmo, estrofes do episódio da Morte, quando o grande esque-leto simbólico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como umacocotte arrastando sedas rumorosas:

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E entre duas costeletas, no decote,Tinha um «bouquet» de rosas!

E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da Ideia Nova,o paladino do Realismo, triunfara, cascalhara, denunciando logonessa simples estrofe dois erros de gramática, um verso errado, euma imagem roubada a Baudelaire!

Então Ega, que bebera um sobre outro dois cálices de conha-que, tornou-se muito provocante, muito pessoal.

— Eu bem sei porque tu falas, Alencar — dizia ele agora. — Eo motivo não é nobre. É por causa do epigrama que ele te fez:

O Alencar d’Alenquer,Aceso com a Primavera…

— Ah!, vocês nunca ouviram isto? — continuou ele voltando-se,chamando os outros. — É delicioso, é das melhores coisas do Cra-veiro. Nunca ouviste, Carlos? É sublime, sobretudo esta estrofe:

O Alencar d’AlenquerQue quer? Na verde campinaNão colhe a tenra boninaNem consulta o malmequer...Que quer? Na verde campinaO Alencar d’AlenquerQuer menina!

Eu não me lembro do resto, mas termina com um grito de bomsenso, que é a verdadeira crítica de todo esse lirismo pandilha:

O Alencar d’AlenquerQuer cacete!

Alencar passou a mão pela testa lívida, e com o olho cavo fitono outro, a voz rouca e lenta:

— Olha, João da Ega, deixa-me dizer-te uma coisa, meu rapaz...Todos esses epigramas, esses dichotes lorpas do raquítico e dos queo admiram, passam-me pelos pés como um enxurro de cloaca...

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O que faço é arregaçar as calças! Arregaço as calças... Mais nada,meu Ega. Arregaço as calças!

E arregaçou-as realmente, mostrando a ceroula, num gestobrusco e de delírio.

— Pois quando encontrares enxurros desses — gritou-lhe o Ega— agacha-te e bebe-os! Dão-te sangue e força ao lirismo!

Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando oar:

— Eu, se esse Craveirote não fosse um raquítico, talvez me entre-tivesse a rolá-lo aos pontapés por esse Chiado abaixo, a ele e à versa-lhada, a essa lambisgonhice excrementícia com que seringou Satanás!E depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o crânio!

— Não se esborracham assim crânios — disse de lá o Ega numtom frio de troça.

Alencar voltou para ele uma face medonha. A cólera e o conha-que incendiavam-lhe o olhar; todo ele tremia:

— Esborrachava-lho, sim, esborrachava, João da Ega! Esborra-chava-lho assim, olha, assim mesmo! — Rompeu a atirar patadasao soalho, abalando a sala, fazendo tilintar cristais e louças. —Mas não quero, rapazes! Dentro daquele crânio só há excremento,vómito, pus, matéria verde, e se lho esborrachasse, porque lhoesborrachava, rapazes, todo o miolo podre saía, empestava acidade, tínhamos o cólera! Irra! Tínhamos a peste!

Carlos, vendo-o tão excitado, tomou-lhe o braço, quis calmá-lo:— Então, Alencar! Que tolice... Isso vale lá a pena!...O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca,

soltou o último desabafo:— Com efeito, não vale a pena ninguém zangar-se por causa

desse Craveirote da Ideia Nova, esse caloteiro, que se não lembraque a porca da irmã é uma meretriz de doze vinténs em Marco deCanaveses!

— Não, isso agora é de mais, pulha! — gritou Ega, arremes-sando-se, de punhos fechados.

Cohen e Dâmaso, assustados, agarraram-no. Carlos puxara logopara o vão da janela o Alencar, que se debatia, com os olhos chame-jantes, a gravata solta. Tinha caído uma cadeira; a correcta sala,com os seus divãs de marroquim, os seus ramos de camélias,tomava um ar de taverna, numa bulha de faias, entre a fumaraçade cigarros. Dâmaso, muito pálido, quase sem voz, ia de um a outro:

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— Oh! meninos, oh! meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!...Aqui, no Hotel Central!...

E, de entre os braços de Cohen, Ega berrava, já rouco:— Esse pulha, esse cobarde... Deixe-me, Cohen! Não, isso

hei-de esbofeteá-lo!... A D. Ana Craveiro, uma santa!... Esse calu-niador... Não, isso hei-de esganá-lo!...

Craft, no entanto, impassível, bebia aos goles a sua chartreuse.Já presenciara, mais vezes, duas literaturas rivais engalfinhando-se,rolando no chão, num latir de injúrias: a torpeza do Alencar sobre airmã do outro fazia parte dos costumes de crítica em Portugal: tudoisso o deixava indiferente, com um sorriso de desdém. Além dissosabia que a reconciliação não tardaria, ardente e com abraços. E nãotardou. Alencar saiu do vão da janela, atrás de Carlos, abotoando asobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohenfalava ao Ega com autoridade, severo, à maneira de um pai: depoisvoltou-se, ergueu a mão, ergueu a voz, disse que ali todos eram cava-lheiros: e como homens de talento e de coração fidalgo os dois deviamabraçar-se...

— Vá, um shake-hands, Ega, faça isso por mim!... Alencar,vamos, peço-lho eu!

O autor de Elvira deu um passo, o autor das Memórias de UmÁtomo estendeu a mão: mas o primeiro aperto foi goche e mole. EntãoAlencar, generoso e rasgado, exclamou que entre ele e o Ega nãodevia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fora o seu desgraçadogénio, esse calor de sangue, que durante toda a existência só lhe trou-xera lágrimas! E ali declarava bem alto que D. Ana Craveiro era umasanta! Tinha-a conhecido em Marco de Canaveses, em casa dos Peixo-tos... Como esposa, como mãe, D. Ana Craveiro era impecável. E reco-nhecia, do fundo da alma, que o Craveiro tinha carradas de talento!...

Encheu um copo de champanhe, ergueu-o alto, diante do Ega,como um cálice de altar:

— À tua, João!Ega, generoso, também respondeu:— À tua, Tomás!Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na véspera, em casa de

D. Joana Coutinho, ele dissera que não conhecia ninguém mais cin-tilante que o Ega! Ega afirmou logo que em poemas nenhuns cor-ria, como nos do Alencar, uma tão bela veia lírica. Apertaram-seoutra vez, com palmadas pelos ombros. Trataram-se de irmãos naarte, trataram-se de génios!...

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— São extraordinários — disse Craft baixo a Carlos, procu-rando o chapéu. — Desorganizam-me, preciso ar!...

A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu maisconhaque. Depois Cohen saiu levando o Ega. Dâmaso e Alencardesceram com Carlos — que ia recolher a pé pelo Aterro.

À porta, o poeta parou com solenidade.— Filhos — exclamou ele tirando o chapéu e refrescando larga-

mente a fronte — então? Parece-me que me portei como um gentleman!Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...— Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que é

ser gentleman! E agora vamos lá por esse Aterro fora... Masdeixa-me ir ali primeiro comprar um pacote de tabaco...

— Que tipo! — exclamou Dâmaso, vendo-o afastar-se. — E acoisa ia-se pondo feia...

E imediatamente, sem transição, começou a fazer elogios a Car-los. O Sr. Maia não imaginava há quanto tempo ele desejavaconhecê-lo!

— Oh! senhor...— Creia Vossa Excelência... Eu não sou de sabujices... Mas

pode Vossa Excelência perguntar ao Ega, quantas vezes o tenhodito: Vossa Excelência é a coisa melhor que há em Lisboa!

Carlos baixava a cabeça, mordendo o riso. Dâmaso repetia, dofundo do peito:

— Olhe que isto é sincero, Sr. Maia! Acredite Vossa Excelênciaque isto é do coração!

Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa,tivera ali, naquele moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma ado-ração muda e profunda; o próprio verniz dos seus sapatos, a cor dassuas luvas eram para o Dâmaso motivo de veneração, e tão impor-tantes como princípios. Considerava Carlos um tipo supremo dechique, do seu querido chique, um Brummel, um D’Orsay, umMorny — uma «destas coisas que só se vêem lá fora», como ele diziaarregalando os olhos. Nessa tarde, sabendo que vinha jantar com oMaia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho experimen-tando gravatas, perfumara-se como para os braços de uma mulher— e por causa de Carlos mandara estacionar ali o coupé, às dezhoras, com o cocheiro de ramo ao peito.

— Então essa senhora brasileira vive aqui? — perguntou Carlos,que dera dois passos, olhava uma janela alumiada no segundo andar.

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Dâmaso seguiu-lhe o olhar.— Vive lá do outro lado. Estão aqui há quinze dias... Gente chi-

que... E ela é de apetecer, Vossa Excelência reparou? Eu a bordoatirei-me... E ela dava cavaco! Mas tenho andado muito presodesde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurazitas...Não tenho podido cá vir, deixei-lhe só bilhetes; mas trago-a de olho,que ela demora-se... Talvez venha cá amanhã, estou cá agora a sen-tir umas cócegas... E se me pilho só com ela, zás, ferro-lhe logo umbeijo! Que eu cá, não sei se Vossa Excelência é a mesma coisa, maseu cá, com mulheres, a minha teoria é esta: atracão! Eu cá, é logo:atracão!

Nesse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca.Dâmaso despediu-se, atirando muito alto ao cocheiro, para queCarlos ouvisse, a adresse da Morelli, a segunda dama de S. Carlos.

— Bom rapaz, este Dâmaso — dizia Alencar, travando do braçode Carlos, ao seguirem ambos pelo Aterro. — É lá muito dosCohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho dovelho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pai; e a mim também.Mas ele assina Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez inventado.Bom rapaz. O pai era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedrodizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silvajudeu, dinheiro, e a rodo!...» Outros tempos, meu Carlos, grandestempos! Tempos de gente!

E então por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzesdo gás dormente luzindo em fila de enterro, Alencar foi falando des-ses «grandes tempos» da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e,através das suas frases de lírico, Carlos sentia vir como um aromaantiquado desse mundo defunto... Era quando os rapazes aindatinham um resto de calor das guerras civis, e o calmavam indo embando varrer botequins ou rebentando pilecas de seges em galopa-das para Sintra. Sintra era então um ninho de amores, e sob assuas românticas ramagens as fidalgas abandonavam-se aos braçosdos poetas. Elas eram Elviras, eles eram Antonis. O dinheiro abun-dava; a corte era alegre; a Regeneração literata e galante iaengrandecer o país, belo jardim da Europa; os bacharéis chegavamde Coimbra, frementes de eloquência; os ministros da Coroa recita-vam ao piano; o mesmo sopro lírico inchava as odes e os projectosde lei...

— Lisboa era bem mais divertida — disse Carlos.

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— Era outra coisa, meu Carlos! Vivia-se! Não existiriam essesares científicos, toda essa palhada filosófica, esses badamecos posi-tivistas... Mas havia coração, rapaz! Tinha-se faísca! Mesmo nessascoisas da política... Vê esse chiqueiro agora aí, essa malta de ban-dalhos... Nesse tempo ia-se ali à Câmara e sentia-se a inspiração,sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeças!... E depois, menino,havia muitíssimo boas mulheres.

Os ombros descaíam-lhe na saudade desse mundo perdido. Eparecia mais lúgubre, com a sua grenha de inspirado saindo-lhe desob as abas largas do chapéu velho, a sobrecasaca coçada e malfeita colando-se-lhe lamentavelmente às ilhargas.

Um momento caminharam em silêncio. Depois, na Rua dasJanelas Verdes, o Alencar quis refrescar. Entraram numa pequenavenda, onde a mancha amarela de um candeeiro de petróleo desta-cava numa penumbra de subterrâneo, alumiando o zinco húmidodo balcão, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste da patroa comum lenço amarrado nos queixos. Alencar parecia íntimo no estabe-lecimento: apenas soube que a Sr.a Cândida estava com dores dedentes, aconselhou logo remédios, familiar, descido das nuvensromânticas, com os cotovelos sobre o balcão. E quando Carlos quispagar a cana branca zangou-se, bateu a sua placa de dois tostõessobre o zinco polido, exclamou com nobreza:

— Eu é que faço a honra da bodega, meu Carlos! Nos paláciosos outros pagarão... Cá na taberna pago eu!

À porta tomou o braço de Carlos. Depois de alguns passos len-tos no silêncio da rua, parou de novo, e murmurou numa voz vaga,contemplativa, como repassada da vasta solenidade da noite:

— Aquela Raquel Cohen é divinamente bela, menino! Tuconhece-la?

— De vista.— Não te faz lembrar uma mulher da Bíblia? Não digo lá uma

dessas viragos, uma Judite, uma Dalila... Mas um desses lírios poé-ticos da Bíblia... É seráfica!

Era agora a paixão platónica do Alencar, a sua dama, a suaBeatriz...

— Tu viste há tempos, no Diário Nacional, os versos que eu lhe fiz?

«Abril chegou! Sê minha.»Dizia o vento à rosa.

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Não me saiu mau! Aqui há uma maliciazinha: Abril chegou, sêminha... Mas logo: Dizia o vento à rosa. Compreendes? Calhou bemeste efeito. Mas não imagines lá outras coisas, ou que lhe faço acorte... Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmão... E aRaquel, para mim, coitadinha, é como uma irmã... Mas é divina.Aqueles olhos, filho, um veludo líquido!...

Tirou o chapéu, refrescou a fronte vasta. Depois noutro tom, ecomo a custo:

— Aquele Ega tem muito talento... Vai lá muito aos Cohens... ARaquel acha-lhe graça...

Carlos parara, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu umolhar à severa frontaria de convento, adormecida, sem um ponto deluz.

— Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, queeu vou andando por aqui para a minha toca. E quando quiseres,filho, lá me tens na Rua do Carvalho, 52, terceiro andar. O prédio émeu, mas eu ocupo o terceiro andar. Comecei por habitar no pri-meiro, mas tenho ido trepando... A única coisa mesmo que tenhotrepado, meu Carlos, é de andares...

Teve um gesto, como desdenhando essas misérias.— E hás-de ir lá jantar um dia. Não te posso dar um banquete,

mas hás-de ter uma sopa e um assado... O meu Mateus, um preto(um amigo!), que me serve há muito ano, quando há que cozinhar,sabe cozinhar! Fez muito jantar a teu pai, ao meu pobre Pedro...Que aquilo foi casa de alegria, meu rapaz. Dei lá cama e mesa, edinheiro para a algibeira, a muita dessa canalha que hoje por aítrota em coupé da Companhia e de correio atrás... E agora, quandome avistam, voltam para o lado o focinho...

— Isso são imaginações — disse Carlos com amizade.— Não são, Carlos — respondeu o poeta, muito grave, muito

amargo. — Não são. Tu não sabes a minha vida. Tenho sofridomuito repelão, rapaz. E não o merecia! Palavra, que o não mere-cia...

Agarrou o braço de Carlos, e com voz abalada:— Olha que esses homens que por aí figuram embebedavam-se

comigo, emprestei-lhes muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agorasão ministros, são embaixadores, são personagens, são o Diabo. Poisofereceram-te eles um bocado do bolo agora que o têm na mão? Não.Nem a mim. Isto é duro, Carlos, isto é muito duro, meu Carlos.

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E que diabo, eu não queria que me fizessem conde, nem que me des-sem uma embaixada... Mas aí alguma coisa numa secretaria... Nemum chavelho! Enfim, ainda há para o bocado do pão, e para a meiaonça de tabaco... Mas esta ingratidão tem-me feito cabelos brancos...Pois não te quero maçar mais, e que Deus te faça feliz como tumereces, meu Carlos!

— Tu não queres subir um bocado, Alencar?Tanta franqueza enterneceu o poeta.— Obrigado, rapaz — disse ele, abraçando Carlos. — E

agradeço-te isso, porque sei que vem do coração... Todos vocês têmcoração... Já teu pai o tinha, e largo, e grande como o de um leão! Eagora crê uma coisa: é que tens aqui um amigo. Isto não é palavreado,isto vem de dentro... Pois adeus, meu rapaz. Queres tu um charuto?

Carlos aceitou logo, como um presente do Céu.— Então aí tens um charuto, filho! — exclamou Alencar com

entusiasmo.E aquele charuto dado a um homem tão rico, ao dono do Rama-

lhete, fazia-o por um momento voltar aos tempos em que nesseMarrare ele estendia em redor a charuteira cheia, com o seugrande ar de Manfredo triste. Interessou-se então pelo charuto.Acendeu ele mesmo um fósforo. Verificou se ficava bem aceso. Eque tal, charuto razoável? Carlos achava um excelente charuto!

— Pois ainda bem que te dei um bom charuto!Abraçou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando ele

enfim se afastou, mais ligeiro, mais contente de si, trauteando umtrecho de fado.

Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o péssimocharuto do Alencar estirado numa chaise-longue, enquanto Bap-tista lhe fazia uma chávena de chá, ficou pensando nesse estranhopassado que lhe evocara o velho lírico...

E era simpático o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado,ao falar de Pedro, de Arroios, dos amigos e dos amores de então, eleevitara pronunciar sequer o nome de Maria Monforte! Mais de umavez, pelo Aterro fora, estivera para lhe dizer: — Podes falar damamã, amigo Alencar, que eu sei perfeitamente que ela fugiu comum italiano!

E isto fê-lo insensivelmente recordar da maneira como essalamentável história lhe fora revelada, em Coimbra, numa noite de

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troça, quase grotescamente. Porque o avô, obedecendo à carta tes-tamentária de Pedro, contara-lhe um romance decente: um casa-mento de paixão, incompatibilidades de naturezas, uma separaçãocortês, depois a retirada da mamã com a filha para a França, ondetinham morrido ambas. Mais nada. A morte de seu pai fora-lheapresentada sempre como brusco remate de uma longa nevrose...

Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceadoambos; Ega muito bêbado, e num acesso de idealismo, lançara-senum paradoxo tremendo, condenando a honestidade das mulherescomo origem da decadência das raças: e dava por prova os bastar-dos, sempre inteligentes, bravos, gloriosos! Ele, Ega, teria orgulhose sua mãe, sua própria mãe, em lugar de ser a santa burguesa querezava o terço à lareira, fosse como a mãe de Carlos, uma inspi-rada, que por amor de um exilado abandonara fortuna, respeitos,honra, vida! Carlos, ao ouvir isto, ficara petrificado, no meio daponte, sob o calmo luar. Mas não pôde interrogar o Ega, que játaramelava, agoniado, e que não tardou a vomitar-lhe ignobilmentenos braços. Teve de o arrastar à casa das Seixas, despi-lo,aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, até que o deixou abra-çado ao travesseiro, babando-se, balbuciando «que queria ser bas-tardo, que queria que a mamã fosse uma marafona!...»

E ele mal pudera dormir essa noite, com a ideia daquela mãe,tão outra do que lhe haviam contado, fugindo nos braços de um des-terrado — um polaco talvez! Ao outro dia, cedo, entrava pelo quartodo Ega, a pedir-lhe, pela sua grande amizade, a verdade toda...

Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o lenço que tinhaamarrado na cabeça com panos de água sedativa: e não achavauma palavra, coitado! Carlos, sentado na cama, como nas noites decavaco, tranquilizou-o. Não vinha ali ofendido, vinha ali curioso!Tinham-lhe ocultado um episódio extraordinário da sua gente, quediabo, queria sabê-lo! Havia romance! Para ali o romance!

Ega, então, lá ganhou ânimo, lá balbuciou a sua história — aque ouvira ao tio Ega — a paixão de Maria por um príncipe, a fuga,o longo silêncio de anos que se fizera sobre ela...

Justamente as férias chegavam. Apenas em Santa Olávia, Car-los contou ao avô a bebedeira do Ega, os seus discursos doidos,aquela revelação vinda entre arrotos. Pobre avô! Um momento nempôde falar — e a voz por fim veio-lhe tão débil e dolente como sedentro do peito lhe estivesse morrendo o coração. Mas narrou-lhe,

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detalhe a detalhe, o feio romance todo até àquela tarde em quePedro lhe aparecera lívido, coberto de lama, a cair-lhe nos braços,chorando a sua dor com a fraqueza de uma criança. E o desfechodesse amor culpado, acrescentara o avô, fora a morte da mãe emViena de Áustria, e a morte da pequenita, da neta que ele nuncavira, e que a Monforte levara... E eis aí tudo. E assim, aquela ver-gonha doméstica estava agora enterrada, ali, no jazigo de SantaOlávia, e em duas sepulturas distantes, em país estrangeiro...

Carlos recordava-se bem que nessa tarde, depois da melancó-lica conversa com o avô, devia ele experimentar uma égua inglesa:e ao jantar não se falou senão da égua, que se chamava Sultana. Ea verdade era que daí a dias tinha esquecido a mamã. Nem lhe erapossível sentir por esta tragédia senão um interesse vago e comoliterário. Isto passara-se havia vinte e tantos anos, numa sociedadequase desaparecida. Era como o episódio histórico de uma velhacrónica de família, um antepassado morto em Alcácer Quibir, ouuma das suas avós dormindo num leito real. Aquilo não lhe derauma lágrima, não lhe pusera um rubor na face. Decerto, prefeririapoder orgulhar-se de sua mãe, como de uma rara e nobre flor dehonra: mas não podia ficar toda a vida a amargurar-se com os seuserros. E porquê? A honra dele não dependia dos impulsos falsos outorpes que tivera o coração dela. Pecara, morrera, acabou-se. Res-tava, sim, aquela ideia do pai, findando numa poça de sangue, nodesespero dessa traição. Mas não conhecera seu pai: tudo o quepossuía dele e da sua memória, para amar, era uma fria tela malpintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moçomoreno, de grandes olhos, com luvas de camurça amarelas e umchicote na mão... De sua mãe não ficara nem um daguerreótipo,nem sequer um contorno a lápis. O avô tinha-lhe dito que era loira.Não sabia mais nada. Não os conhecera; não lhes dormira nos bra-ços; nunca recebera o calor da sua ternura. Pai, mãe, eram para elecomo símbolos de um culto convencional. O papá, a mamã, os seresamados, estavam ali todos — no avô.

Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; e ele con-tinuava na chaise-longue, como amolecido nestas recordações, ecedendo já, num meio adormecimento, à fadiga do longo jantar... Eentão, pouco a pouco, diante das suas pálpebras cerradas, umavisão surgiu, tomou cor, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tardemorria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central alargava-se,

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claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no colo.Uma mulher passava, alta, com uma carnação ebúrnea, bela comouma deusa, num casaco de veludo branco de Génova. O Craft diziaao seu lado: Très chic. E ele sorria, no encanto que lhe davam estasimagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de coisasvivas.

Eram três horas quando se deitou. E apenas adormecera naescuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo dia de Invernomorria sem uma aragem, banhado de cor-de-rosa; banal peristilodo hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto vol-tava, com a cadelinha nos braços; uma mulher passava, com umcasaco de veludo branco de Génova, mais alta que uma criaturahumana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno queremonta ao Olimpo: a ponta dos seus sapatos de vernizenterrava-se na luz do azul, por trás as saias batiam-lhe como ban-deiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia: Très chic.Depois tudo se confundia, e era só o Alencar, um Alencar colossal,enchendo todo o céu, tapando o brilho das estrelas com a sua sobre-casaca negra e mal feita, os bigodes esvoaçando ao vendaval daspaixões, alçando os braços, clamando no espaço:

Abril chegou, sê minha!

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NO Ramalhete, depois do almoço, com as três janelas doescritório abertas bebendo a tépida luz do belo dia de Março,Afonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé dachaminé já sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva comoum altar doméstico. Numa faixa oblíqua de sol, sobre o tapete, o«Reverendo Bonifácio», enorme e fofo, dormia de leve a sua sesta.

Craft tornara-se, em poucas semanas, íntimo no Ramalhete,Carlos e ele, tendo muitas similitudes de gosto e de ideias, omesmo fervor pelo bricabraque e pelo bibelot, o uso apaixonado daesgrima, igual diletantismo de espírito, uniram-se imediatamenteem relações de superfície, fáceis e amáveis. Afonso, por seu lado,começara logo a sentir uma estima elevada por aquele gentlemande boa raça inglesa, como ele os admirava, cultivado e forte, demaneiras graves, de hábitos rijos, sentindo finamente e pensandocom rectidão. Tinham-se encontrado ambos entusiastas de Tácito,de Macaulay, de Burke, e até dos poetas laquistas; Craft eragrande no xadrez; o seu carácter ganhara nas longas e trabalhadasviagens a rica solidez de um bronze; para Afonso da Maia «aquiloera deveras um homem». Craft, madrugador, saía cedo dos Olivaisa cavalo, e vinha assim às vezes almoçar de surpresa com os Maias;por vontade de Afonso jantaria lá sempre; — mas ao menos as noi-tes passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo enfim, comoele dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conver-sar bem sentado, no meio de ideias, e com boa educação.

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Capítulo VII

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Carlos saía pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquelarevoada de clientela que lhe dera esperanças de uma carreiracheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; resta-vam-lhe três doentes no bairro; e sentia agora que as suas carrua-gens, os cavalos, o Ramalhete, os hábitos de luxo, o condenavamirremediavelmente ao diletantismo. Já o fino Dr. Teodósio lhe dis-sera um dia, francamente: «Você é muito elegante para médico! Assuas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o burguês quelhe vai confiar a esposa dentro de uma alcova?... Você aterra opater-famílias!» O laboratório mesmo prejudicara-o. Os colegasdiziam que o Maia, rico, inteligente, ávido de inovações, de moder-nismos, fazia sobre os doentes experiências fatais. Tinha-se troçadomuito a sua ideia, apresentada na Gazeta Médica, a prevenção dasepidemias pela inoculação dos vírus. Consideravam-no um fanta-sista. E ele, então, refugiava-se todo nesse livro sobre a medicinaantiga e moderna, o seu livro, trabalhado com vagares de artistarico, tornando-se o interesse intelectual de um ou dois anos.

Nessa manhã, enquanto dentro prosseguia grave e silenciosa apartida de xadrez, Carlos, no terraço, estendido numa vastacadeira índia de bambu, à sombra do toldo, acabava o seu charuto,lendo uma revista inglesa, banhado pela carícia tépida daquelebafo de Primavera que aveludava o ar, fazia já desejar árvores erelvas...

Ao lado dele, numa outra cadeira de bambu, também de cha-ruto na boca, o Sr. Dâmaso Salcede percorria o Figaro. De pernaestirada, numa indolência familiar, tendo o amigo Carlos ao seulado, vendo junto ao terraço as rosas das roseiras de Afonso, sen-tindo por trás, através das janelas abertas, o rico e nobre interiordo Ramalhete — o filho do agiota saboreava ali uma dessas horasdeliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.

Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o Sr. Salcede foraao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e visto-sos, tendo ao ângulo, numa dobra simulada, o seu retratozinho emfotografia, um capacete com plumas por cima do nome — DÂMASOCÂNDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras — COMENDA-DOR DE CRISTO, ao fundo a sua adresse — Rua de S. Domingos, àLapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta azul, estaoutra mais aparatosa — GRAND HÔTEL, BOULEVARD DESCAPUCINES, CHAMBRE N.° 103. Em seguida procurou Carlos no

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consultório, confiou ao criado outro cartão. Enfim, uma tarde, noAterro, vendo passar Carlos a pé, correu para ele, pendurou-se dele,conseguiu acompanhá-lo ao Ramalhete.

Aí, logo desde o pátio, rompeu em admirações extáticas, comodentro de um museu, lançando, diante dos tapetes, das faianças edos quadros, a sua grande frase: «Chique a valer!» Carlos levou-opara o fumoir, ele aceitou um charuto; e começou a explicar, deperna traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos.Considerava Lisboa chinfrim, e só estava bem em Paris — sobre-tudo por causa do género «fêmea» de que em Lisboa se passavamfomes: ainda que nesse ponto a Providência não o tratava mal. Gos-tava também do bricabraque; mas apanhava-se muita espiga, e ascadeiras antigas, por exemplo, não lhe pareciam cómodas para agente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguém o pilhava semlivros à cabeceira da cama; ultimamente andava às voltas comDaudet, que lhe diziam ser muito chique, mas ele achava-o confu-sote. Em rapaz perdia sempre as noites, até às quatro ou cinco damadrugada, no delírio! Agora não, estava mudado e pacato; enfim,não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um excesso-zinho; mas só em dias duples... E as suas perguntas foram terrí-veis. O Sr. Maia achava chique ter um cab inglês? Qual era maiselegante, assim para um rapaz da sociedade que quisesse ir passaro Verão lá fora, Nice ou Trouville?... Depois ao sair, muito sério,quase comovido, perguntou ao Sr. Maia (se o Sr. Maia não faziasegredo) quem era o seu alfaiate.

E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos aparecia no tea-tro, Dâmaso imediatamente arrancava-se da sua cadeira, às vezesna solenidade de uma bela ária, e pisando os botins dos cavalhei-ros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria de estaloa claque, vinha-se instalar na frisa, ao lado de Carlos, com a boche-cha corada, camélia na casaca, exibindo os botões de punho queeram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entraracasualmente no Grémio, Dâmaso abandonou logo a partida, indife-rente à indignação dos parceiros, para se vir colar à ilharga doMaia, oferecer-lhe marrasquino ou charutos, segui-lo de sala emsala como um rafeiro. Numa dessas ocasiões, tendo Carlos soltadoum trivial gracejo, eis o Dâmaso rompendo em risadas soluçantes,rebolando-se pelos sofás, com as mãos nas ilhargas, a gritar querebentava! Juntaram-se sócios; ele, sufocado, repetia a pilhéria;

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Carlos fugiu vexado. Chegou a odiá-lo; respondia-lhe só commonossílabos; dava voltas perigosas com o dog-cart, se lhe avistavade longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Dâmaso Cândido deSalcede filara-o, e para sempre.

Depois, um dia, Taveira apareceu no Ramalhete com umaextraordinária história. Na véspera, no Grémio (tinham-lhe contado,ele não presenciara) um sujeito, um Gomes, num grupo onde secomentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era umasno! Dâmaso, que estava ao lado mergulhado na Ilustração, levan-tou-se, muito pálido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do Sr.Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao Sr. Gomes se eleousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o Sr. Gomes tragou, comos olhos no chão, a afronta, por ser raquítico de nascença — e porqueera inquilino de Dâmaso e andava muito atrasado na renda. Afonsoda Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlostrouxe o Sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.

Este dia pareceu belo a Dâmaso, como se fosse feito de azul eouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco inco-modado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes...Daí datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você.Depois, nessa semana, revelou aptidões úteis. Foi despachar àAlfândega (Vilaça achava-se no Alentejo) um caixote de roupa paraCarlos. Tendo aparecido num momento em que Carlos copiava umartigo para a Gazeta Médica, ofereceu a sua boa letra, letra prodi-giosa, de uma beleza litográfica; e daí por diante passava horas àbanca de Carlos, aplicado e vermelho, com a ponta da língua defora, o olho redondo, copiando apontamentos, transcrições de revis-tas, materiais para o livro... Tanta dedicação merecia um tu defamiliaridade. Carlos deu-lho.

Dâmaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidadeinquieta, desde a barba, que começava agora a deixar crescer, até àforma dos sapatos. Lançara-se no bricabraque. Trazia sempre ocoupé cheio de lixos arqueológicos, ferragens velhas, um bocado detijolo, a asa rachada de um bule... E se avistava um conhecido,fazia parar, entreabria a portinhola como um ádito de sacrário, exi-bia a preciosidade:

— Que te parece? Chique a valer!... Vou mostrá-la ao Maia.Olha-me isto, hem! Pura Meia Idade, do reinado de Luís XIV. OCarlos vai-se roer de inveja!

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Nesta intimidade de rosas havia todavia para Dâmaso horaspesadas. Não era divertido assistir em silêncio, do fundo de umapoltrona, às infindáveis discussões de Carlos e de Craft sobre arte esobre ciência. E, como ele confessou depois, chegara a encavacarum pouco quando o levaram ao laboratório para fazer no seu corpoexperiências de electricidade... «Pareciam dois demónios engalfi-nhados em mim», disse ele à senhora condessa de Gouvarinho; «eeu então que embirro com o espiritismo!...»

Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando à noite,num sofá do Grémio, ou ao chá numa casa amiga, ele podia dizer,correndo a mão pelo cabelo:

— Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, brica-braque, discutimos... Um dia chique! Amanhã tenho uma manhã detrabalho com o Maia... Vamos às colchas.

Nesse domingo, justamente, deviam ir às colchas, ao Lumiar.Carlos concebera um boudoir, todo revestido de colchas antigas decetim, bordadas a dois tons especiais, pérola e botão-de-ouro. O tioAbraão esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos subúrbios; enessa manhã viera anunciar a Carlos a existência de duas preciosi-dades, so beautiful! oh! so lovely! em casa de umas senhoras Medei-ros que esperavam o Sr. Maia às duas horas...

Já três vezes Dâmaso tossira, olhara o relógio — mas, vendoCarlos confortavelmente mergulhado na Revista, recaía também nasua indolência de homem chique, investigando o Figaro. Enfim,dentro, o relógio Luís XV cantou argentinamente as duas...

— Esta é boa! — exclamou Dâmaso ao mesmo tempo com umapalmada na coxa. Olha quem aqui me aparece! A Susana! A minhaSusana!

Carlos não despegara os olhos da página.— Ó Carlos — acrescentou ele — fazes favor? Ouve. Ouve esta

que é boa. Esta Susana é uma pequena que eu tive em Paris... Umromance! Apaixonou-se por mim, quis-se envenenar, o diabo!... Poisdiz aqui o Figaro que debutou nas Folies-Bergères. Fala nela... Éboa, hem? E era rapariguita chique... E o Figaro diz que ela teveaventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo... Todo omundo sabia em Paris. Ora a Susana! Tinha bonitas pernas. E cus-tou-me a ver livre dela!

— Mulheres! — murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundoda Revista.

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Dâmaso era interminável, torrencial, inundante a falar das«suas conquistas», naquela sólida satisfação em que vivia de quetodas as mulheres, desgraçadas delas, sofriam a fascinação da suapessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico,estimado na sociedade, com coupé e parelha, todas as meninastinham para ele um olhar doce. E no demi-monde, como ele dizia,«tinha prestígio a valer». Desde moço fora célebre, na capital, porpôr casas a espanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mês; eeste fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dosprostíbulos. Conhecia-se também a sua ligação com a viscondessada Gafanha, uma carcaça esgalgada, caiada, rebocada, gasta portodos os homens válidos do país: ia nos cinquenta anos, quandochegou a vez do Dâmaso — e não era decerto uma delícia ter nosbraços aquele esqueleto rangente e lúbrico; mas dizia-se que emnova dormira num leito real, e que augustos bigodes a tinham lam-buzado; tanta honra fascinou Dâmaso, e colou-se-lhe às saias comuma fidelidade tão sabuja, que a decrépita criatura, farta, enojadajá, teve de o enxotar à força e com desfeitas. Depois gozou uma tra-gédia: uma actriz do Príncipe Real, uma montanha de carne, apai-xonada por ele, numa noite de ciúme e de genebra, engoliu umacaixa de fósforos; naturalmente daí a horas estava boa, tendo vomi-tado abominavelmente sobre o colete do Dâmaso, que chorava aolado — mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Comoele dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida, quase tre-mia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher...

— Passaram-se cenas com esta Susana! — murmurou ele,depois de um silêncio em que estivera catando películas nos beiços.

E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez umsilêncio no terraço. Dentro, a partida continuava. Para lá da som-bra do toldo, agora, o Sol ia aquecendo, batendo a pedra, os vasosde louça branca, numa refracção de ouro-claro em que palpitavamas asas das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros emflor: em baixo, o jardim verde-java, imóvel na luz, sem um bulir deramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho líquido da águado tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o amarelo dasrosas, pela carnação das últimas camélias... O bocado de rio que seavistava entre os prédios era azul-ferrete como o céu: e entre rio ecéu, o monte punha uma grossa barra verde-escura, quase negra noresplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas

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casinhas alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pare-ciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e,muito alto, no ar, passava o claro repique de um sino.

— O duque de Norfolk chegou a Paris — disse Dâmaso numtom entendido e traçando a perna. — O duque de Norfolk é chique,não é verdade, ó Carlos?

Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus um gesto,como exprimindo o infinito do chique!

Dâmaso largara o Figaro para meter um charuto na boquilha;depois desapertou os últimos botões do colete, deu um puxão àcamisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sobuma coroa de conde, e de pálpebra cerrada, com o beiço trombudo,ficou mamando gravemente a boquilha...

— Tu estás hoje em beleza, Dâmaso — disse-lhe Carlos, quedeixara também a Revista e o contemplava com melancolia.

Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapa-tos, à meia cor de carne, e revirando para Carlos o bugalho azuladoda órbita:

— Eu agora ando bem... Mas, muito blasé.E foi realmente com um ar blasé que se ergueu a ir buscar a

uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornais e charutos, aGazeta Ilustrada, «para ver o que ia pela pátria». Apenas lhe deitouos olhos soltou uma exclamação.

— Outro debute? — perguntou Carlos.— Não, é a besta do Castro Gomes!A Gazeta Ilustrada anunciava que «o Sr. Castro Gomes, o cava-

lheiro brasileiro que no Porto fora vítima da sua dedicação por oca-sião da desgraça ocorrida na Praça Nova, e de que o nosso corres-pondente J. T. nos deu uma descrição tão opulenta de colorido rea-lista, acha-se restabelecido e é hoje esperado no Hotel Central. Osnossos parabéns ao arrojado gentleman».

— Ora está Sua Excelência restabelecida! — exclamou Dâmaso,atirando para o lado o jornal. — Pois deixa estar que, agora, é aocasião de lhe dizer na cara o que penso... Aquele pulha!

— Tu exageras — murmurou Carlos, que se apoderara viva-mente do jornal, e relia a notícia.

— Ora essa! — exclamou Dâmaso, erguendo-se. — Ora essa!Queria ver, se fosse contigo... É uma besta! É um selvagem!

E repetiu mais uma vez a Carlos essa história que o magoava.

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Desde a sua chegada de Bordéus, logo que o Castro Gomes se insta-lara no Hotel Central, ele fora deixar-lhe bilhetes duas vezes — aúltima na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, Sua Exce-lência não se dignara agradecer a visita! Depois eles tinham par-tido para o Porto; fora aí que, passeando só na Praça Nova, vendo aparelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Cas-tro Gomes se lançara ao freio dos cavalos — e, cuspido contra asgrades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no hotel,cinco semanas. E ele imediatamente (sempre com o olho namulher) mandara-lhe dois telegramas: um de sentimento, lamen-tando; outro de interesse, pedindo notícias. Nem a um, nem aoutro, o animal respondeu!

— Não, isso — exclamava Salcede, passeando pelo terraço, erecordando estas injúrias — hei-de-lhe fazer uma desfeita!... Nãopensei ainda o quê, mas há-de amargar-lhe... Lá isso, desconsidera-ções não admito a ninguém! A ninguém!

Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Grémio,quando o raquítico apavorado emudecera diante dele, Dâmaso ia-setornando feroz. Pela menor coisa falava em «quebrar caras».

— A ninguém! — repetia ele, com puxões ao colete. — Desconsi-derações, a ninguém!

Nesse momento ouviu-se dentro, no escritório, a voz rápida doEga — e quase imediatamente ele apareceu, com um ar de pressa,e atarantado.

— Olá, Damasozinho!... Carlos, dás-me aqui em baixo umapalavra?

Desceram do terraço, penetraram no jardim, até junto de duasolaias em flor.

— Tu tens dinheiro? — foi aí logo a exclamação ansiosa do Ega.E contou a sua terrível atrapalhação. Tinha uma letra de

noventa libras que se vencia no dia seguinte. Além disso, vinte ecinco libras que devia ao Eusebiozinho, e que ele lhe reclamaranuma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega...

— Quero pagar a esse canalha, e quando o vir colar-lhe a cartaà cara com um escarro. Além disso, a letra! E tenho para tudo istoquinze tostões...

— O Eusebiozinho é homem de ordem... Enfim, queres cento equinze libras disse Carlos.

Ega hesitou, com uma cor no rosto. Já devia dinheiro a Carlos.

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Estava-se sempre dirigindo àquela amizade, como a um cofre ines-gotável...

— Não, bastam-me oitenta. Ponho o relógio no prego, e a peliça,que já não faz frio...

Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque —enquanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botão de rosapara florir a sobrecasaca. Carlos não tardou, trazendo na mão ocheque, que alargara até cento e vinte libras, para o Ega ficararmado...

— Seja pelo amor de Deus, menino! — disse o outro, embol-sando o papel, com um belo suspiro de alívio.

Imediatamente trovejou contra o Eusebiozinho, esse vilão! Mastinha já uma vingança. Ia remeter-lhe a soma toda em cobre, numsaco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começandoassim: Ascorosa lombriga e imunda osga, aí te atiro ao focinho, etc.

— Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras respi-rando o teu ar, aquele ser repulsivo!...

Mas era até sujo mencionar o Eusebiozinho!... Quis saber dostrabalhos de Carlos, do grande livro. Falou também do seu Átomo— e, por fim, numa voz diferente, aplicando o monóculo a Carlos:

— Diz-me outra coisa. Porque não tens tu voltado aos Gouvari-nhos?

Carlos tinha só esta razão: não se divertia lá.Ega encolheu os ombros. Parecia-lhe aquilo uma puerilidade...— Tu não percebeste nada — exclamou ele. — Aquela mulher

tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie o teu nome,sobe-lhe todo o sangue à cara.

E como Carlos ria, incrédulo, Ega, muito grave, deu a sua pala-vra de honra. Ainda na véspera, estava-se falando de Carlos, e eleespreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observação,tinha a visão correcta; pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, todaa expressão de um sentimento sincero...

— Não estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra!Tem-la quando quiseres.

Carlos achava deliciosa aquela naturalidade mefistofélica comque o Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas,morais, sociais, domésticas...

— Ah! bem exclamou Ega — se tu me vens com essa blague dacartilha e do código, então não falemos mais nisso! Se apanhaste a

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sarna da virtude, com comichões por qualquer coisa, então era umavez um homem, vai para a Trapa comentar o Ecclesiastes...

— Não — disse Carlos, sentando-se num banco sob as árvores,ainda com uns restos da preguiça do terraço — o meu motivo não étão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho um maçador.

Ega teve um sorriso mudo.— Se a gente fosse a fugir das mulheres que têm maridos

maçadores...Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silêncio o

chão areado; e sem erguer os olhos, deixando cair as palavras, umaa uma, com melancolia:

— Anteontem, toda a noite, a pé firme, das dez à uma, estive aouvir a história da demanda do Banco Nacional!

Era quase uma confidência, e como o desabafo dos tédios secre-tos em que se debatia, naquele mundo dos Cohens, o seu tempera-mento de artista. Carlos enterneceu-se.

— Meu pobre Ega, então toda a demanda?— Toda! E a leitura do relatório da Assembleia geral! E interes-

sei-me! E tive opiniões!... A vida é um inferno.Subiram ao terraço. Dâmaso reocupara a sua cadeira de vime, e,

com um canivetezinho de madrepérola, estava tratando das unhas.— Então decidiu-se? — perguntou ele logo ao Ega.— Decidiu-se ontem! Não há cotillon.Tratava-se de uma grande soirée mascarada que iam dar os

Cohens, no dia dos anos de Raquel. A ideia desta festa sugerira-a oEga, ao princípio com grandes proporções de gala artística, a res-surreição histórica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depoisviu-se que uma tal festa era irrealizável em Lisboa — e desceu-se aum plano mais sóbrio, um simples baile costumé a capricho...

— Tu, Carlos, já decidiste como vais?— De dominó, um severo dominó preto, como convém a um

homem de ciência...— Então — exclamou Ega — se se trata de ciência, vai de

rabona e chinelas de ourelo!... A ciência faz-se em casa e de chine-las... Nunca ninguém descobriu uma lei do Universo metido dentrode um dominó... Que sensaboria, um dominó!...

Justamente a Sr.a D. Raquel desejava evitar, no seu baile, essamonotonia dos dominós. E em Carlos não havia desculpa. Não oprendiam vinte ou trinta libras; e, com aquele esplêndido físico de

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cavaleiro da Renascença, devia ornar a sala pelo menos com umsoberbo Francisco I.

— É nisto — ajuntava ele com fogo — que está a beleza de umasoirée de máscaras! Não lhe parece, a você, Dâmaso? Cada um deveaproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vai muitobem. Teve uma inspiração: com aquele cabelo ruivo, o nariz curto,as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra...

— Quem é Margarida de Navarra? — perguntou Afonso daMaia, aparecendo no terraço com Craft.

— Margarida, a duquesa de Angoulême, a irmã de Francisco I,a Margarida das Margaridas, a pérola dos Valois, a padroeira daRenascença, a senhora condessa de Gouvarinho!...

Riu muito, foi abraçar Afonso, explicou-lhe que se discutia obaile dos Cohens. E apelou logo para ele, para o Craft, acerca donefando dominó de Carlos. Não estava aquele mocetão, com os seusares de homem de armas, talhado para um soberbo Francisco I, emtoda a glória de Marignam?

O velho deu um olhar enternecido à beleza do neto.— Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco I, rei de

França, não se pode apear de uma tipóia e entrar numa sala, só.Precisa de corte, arautos, cavaleiros, damas, bobos, poetas... Tudoisso é difícil.

Ega curvou-se. Sim senhor, de acordo! Ali estava uma maneirainteligente de compreender o baile dos Cohens!

— E tu, de que vais? — perguntou Afonso.Era um segredo. Tinha a teoria de que, naquelas festas, um dos

encantos consistia na surpresa: dois sujeitos por exemplo que tendojantado juntos, de jaquetão, no Bragança, se encontram à noite, umna púrpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandidoda Calábria...

— Eu cá não faço segredo — disse ruidosamente Dâmaso. — Eucá vou de selvagem.

— Nu?— Não. De Nelusko na Africana. Ó Sr. Afonso da Maia, que lhe

parece? Acha chique?— Chique não exprime bem — disse Afonso sorrindo. — Mas

grandioso, é, decerto.Quiseram então saber como ia Craft. Craft não ia de coisa

nenhuma; Craft ficava nos Olivais, de robe-de-chambre.

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Ega encolheu os ombros com tédio, quase com cólera. Aquelasindiferenças pelo baile dos Cohens feriam-no como injúrias pes-soais. Ele estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na biblio-teca, um trabalho fumegante de imaginação; e pouco a pouco elatomava aos seus olhos a importância de uma celebração de arte,provando o génio de uma cidade. Os dominós, as abstenções, pare-ciam-lhe evidências de inferioridade de espírito. Citou então oexemplo do Gouvarinho: ali estava um homem de ocupações, deposição política, nas vésperas de ser ministro, que não só ia aobaile, mas estudara o seu costume: estudara, e ia muito bem, ia deMarquês de Pombal!

— Reclamo para ser ministro — disse Carlos.— Não o precisa — exclamou Ega. — Tem todas as condições

para ser ministro: tem voz sonora, leu Maurício Block, está encala-crado, e é um asno!...

E no meio das risadas dos outros, ele, arrependido de demolirassim um cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acu-diu logo:

— Mas é muito bom rapaz, e não se dá ares nenhuns! É umanjo!

Afonso repreendia-o, risonho e paternal:— Ora tu, John, que não respeitas nada...— O desacato é a condição do progresso, Sr. Afonso da Maia. Quem

respeita decai. Começa-se por admirar o Gouvarinho, vai-se a genteesquecendo, chega a reverenciar o monarca, e quando mal se precatatem descido a venerar o Todo-Poderoso!... É necessário cautela!

— Vai-te embora, John, vai-te embora! Tu és o próprio Anti-cristo...

Ega ia responder, exuberante e em veia — mas dentro o tinirargentino do relógio Luís XV, com o seu gentil minuete,emudeceu-o.

— O quê? Quatro horas!Ficou aterrado, verificou no seu próprio relógio, deu em redor

rápidos, silenciosos apertos de mão, desapareceu como um sopro.Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde! E assim

passara a hora de ir ao Lumiar ver as colchas antigas das senhorasMedeiros...

— Quer você então meia hora de florete, Craft? — perguntouCarlos.

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— Seja: e é necessário dar a lição ao Dâmaso...— É verdade, a lição... — murmurou Dâmaso, sem entusiasmo,

com um sorriso murcho.A sala de esgrima era uma casa térrea, debaixo dos quartos de

Carlos, com janelas gradeadas para o jardim, por onde resvalava,através das árvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados eranecessário acender os quatro bicos de gás. Dâmaso seguiu, atrásdos dois, com uma lentidão de rês desconfiada.

Aquelas lições, que ele solicitara por amor do chique,iam-se-lhe tornando odiosas. E nessa tarde, como sempre, apenasse enchumaçou com o plastrão de anta, se cobriu com a caraça dearame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante dele Craft,de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aqueles seusombros de hércules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros ras-param. Dâmaso estremeceu todo.

— Firme! — gritou-lhe Carlos.O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça; o florete de

Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre ele; Dâmaso recuou, sufocado,cambaleando e com o braço frouxo...

— Firme! — berrava-lhe Carlos.Dâmaso, exausto, abaixou a arma.— Então que querem vocês, é nervos! É por ser a brincar... Se

fosse a valer, vocês veriam.Assim acabava sempre a lição; e ficava depois abatido sobre

uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenço, pálido comoa cal dos muros.

— Vou-me até casa — disse ele daí a pouco, fatigado de tantocruzar o ferro. Queres alguma coisa, Carlinhos?

— Quero que venhas cá jantar amanhã... Tens o marquês.— Chique a valer... Não faltarei.Mas faltou. E, como toda essa semana aquele moço pontual não

apareceu no Ramalhete, Carlos, sinceramente inquieto, julgando-omoribundo, foi uma manhã a casa dele, à Lapa. Mas aí, o criado(um galego achavascado e triste, que, desde as suas relações com osMaias, Dâmaso trazia entalado numa casaca e mortalmente aper-reado em sapatos de verniz) afirmou-lhe que o Sr. Damasozinhoestava de boa saúde, e até saíra a cavalo. Carlos veio então ao tioAbraão; o tio Abraão também não avistara, havia dias, aquele bomSr. Salcede, that beautiful gentleman! A curiosidade de Carlos

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levou-o ao Grémio: no Grémio nenhum criado vira ultimamente oSr. Salcede. «Está por aí de lua-de-mel com alguma bela andaluza»,pensou Carlos.

Chegara ao fim da Rua do Alecrim quando viu o conde de Stein-broken, que se dirigia ao Aterro, a pé, seguido da sua vitória apasso. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercício depois doseu desgraçado ataque de entranhas. Mas não tinha já vestígios dadoença: vinha todo rosado e louro, muito sólido na sua sobrecasaca,e com uma bela rosa de chá na botoeira. Declarou mesmo a Carlosque estava «más forrte». E não lamentava os sofrimentos, porqueeles lhe tinham dado o meio de apreciar as simpatias que gozavaem Lisboa. Estava enternecido. Sobretudo o cuidado de S. M. — oaugusto cuidado de S. M. — fizera-lhe melhor que «todos os dro-gues de botique»! Realmente nunca as relações entre esses dois paí-ses, tão estreitamente aliados, Portugal e a Finlândia, tinham sido«más firmes, pur assi dizerre, más intimes, que durrante seu ata-que de intestinais»!

Depois, travando do braço de Carlos, aludiu comovido ao ofere-cimento de Afonso da Maia, que pusera à sua disposição Santa Olá-via, para ele se restabelecer nesses ares fortes e limpos do Douro.Oh! esse convite tocara-o au plus profond de son cœur. Mas, infeliz-mente, Santa Olávia era longe, tão longe!... Tinha de se contentarcom Sintra, donde podia vir todas as semanas, uma, duas vezes,vigiar a Legação. C’était ennuyeux, mais... A Europa estava numdesses momentos de crise, em que homens de Estado, diplomatas,não podiam afastar-se, gozar as menores férias. Precisavam estarali, na brecha, observando, informando...

— C’est très grave — murmurou ele, parando, com um pavorvago no olhar azulado. — C’est excessivement grave!

Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Portoda a parte uma confusão, um gâchis. Aqui a questão do Oriente...além o socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo... Oh!, trèsgrave! très grave!...

— Tenez, la France, par exemple... D’abord Gambetta. Oh! je nedis pas non, il est très fort, il est excessivement fort... Mais... Voilà!C’est très grave...

Por outro lado os radicais, les nouvelles couches... Era excessi-vamente grave...

— Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!

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Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do Aterro apro-ximava-se, caminhando depressa, uma senhora — que ele reconhe-ceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando aTerra, pela cadelinha cor de prata que lhe trotava junto às saias, epor aquele corpo maravilhoso onde vibrava, sob linhas ricas de már-more antigo, uma graça quente, ondeante e nervosa. Vinha todavestida de escuro, numa toilette de serge muito simples que eracomo o complemento natural da sua pessoa, colando-se bem sobreela, dando-lhe, na sua correcção, um ar casto e forte; trazia na mãoum guarda-sol inglês, apertado e fino como uma cana; e toda ela,adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, naquele caistriste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como orequinte claro de civilizações superiores. Nenhum véu, nessa tarde,lhe assombreava o rosto. Mas Carlos não pôde detalhar-lhe as fei-ções; apenas de entre o esplendor ebúrneo da carnação, sentiu onegro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivel-mente deu um passo para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, semver nada, estava achando Bismarck assustador. À maneira que elase afastava, parecia-lhe maior, mais bela: e aquela imagem falsa eliterária de uma deusa marchando pela Terra prendia-se-lhe à ima-ginação. Steinbroken ficara aterrado com o discurso do chanceler noReichstag... Sim, era bem uma deusa. Sob o chapéu, numa forma detrança enrolada, aparecia o tom do seu cabelo castanho, quase loiroà luz; a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas direitas.

— Evidentemente — disse Carlos — Bismarck é inquietador...Steinbroken, porém, já deixara Bismarck. Steinbroken agora

atacava Lord Beaconsfield.— Il est très fort... Oui, je vous l’accorde, il est excessivement

fort... Mais voilà... Où va-t-il?Carlos olhava para o Cais do Sodré. Mas tudo lhe parecia

deserto. Steinbroken, antes de adoecer, justamente, tinha dito aoministro dos Negócios Estrangeiros aquilo mesmo: Lord Beaconsfieldera muito forte, mas para onde ia ele? O que queria ele?... E SuaExcelência tinha encolhido os ombros... Sua Excelência não sabia...

— Eh, oui! Beaconsfield est très fort... Vous avez lu son speechchez le Lord-Maire? Épatant, mon cher, épatant!... Mais voilà... Oùva-t-il?

— Steinbroken, não me parece que seja prudente deixar-se aquiestar a arrefecer no Aterro...

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— Deverras? — exclamou o diplomata, passando logo a mãorapidamente pelo estômago e pelo ventre.

E não se quis demorar um instante mais. Como Carlos ia reco-lher também, ofereceu-lhe um lugar na vitória até ao Ramalhete.

— Venha então jantar connosco, Steinbroken.— Charmé, mon cher, charmé...A vitória partiu. E o diplomata, agasalhando as pernas e o estô-

mago num grande plaid escocês:— Pôs, Maia, fezemos um belo passêo... Mas este Aterro no é

deverrtido.Não era divertido o Aterro!... Carlos achara-o nessa tarde o

mais delicioso lugar da Terra!Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre

as árvores, viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado o marido, esticado,apurado numa jaqueta de casimira quase branca, com uma ferradurade diamantes no cetim negro da gravata, fumava, indolente e lânguido,e trazia a cadelinha debaixo do braço. Ao passar, deu um olhar sur-preendido a Carlos — como descobrindo enfim entre os bárbaros umser de linha civilizada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ela.

Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e sérios: masnão lhe parecera tão bela; trazia uma outra toilette menos simples, dedois tons, cor de chumbo e cor de creme, e no chapéu, de abas grandesà inglesa, vermelhava alguma coisa, flor ou pena. Nessa tarde não eraa deusa descendo das nuvens de oiro que se enrolavam além sobre omar; era uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.

Voltou ainda três vezes ao Aterro, não a tornou a ver; e entãoenvergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanescoque o trazia assim, numa inquietação de rafeiro perdido, farejandoo Aterro, da Rampa de Santos ao Cais do Sodré, à espera de unsolhos negros e de uns cabelos loiros de passagem em Lisboa, e queum paquete da Royal Mail levaria uma dessas manhãs...

E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abando-nado sobre a mesa! E que todas as tardes, antes de sair, se demoravaao espelho, estudando a gravata! Ah!, miserável, miserável natureza...

Ao fim dessa semana, Carlos estava no consultório, já para sair,calçando as luvas, quando o criado entreabriu o reposteiro, e mur-murou com alvoroço:

— Uma senhora!

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Apareceu um menino muito pálido, de caracóis loiros, vestidode veludo preto — e atrás uma mulher, toda de negro, com um véujusto e espesso como uma máscara.

— Creio que vim tarde — disse ela, hesitando, junto da porta.— O Sr. Carlos da Maia ia sair...

Carlos reconheceu a Gouvarinho.— Oh! senhora condessa!Desembaraçou logo o divã dos jornais e das brochuras; ela

olhou um momento, como indecisa, aquele amplo e mole assento deserralho; depois sentou-se à borda e de leve, com o pequeno juntode si.

— Venho trazer-lhe um doente — disse ela sem erguer o véu,como falando do fundo daquela toilette negra que a dissimulava. —Não o mandei chamar, porque realmente pouco é, e tinha hoje depassar por aqui... Além disso, o meu pequeno é muito nervoso; se vêentrar o médico, parece-lhe que vai morrer. Assim é como umavisita que se faz... E não tens medo, não é verdade, Charlie?

O pequeno não respondeu; de pé, quedo ao lado da mamã,mimoso e débil sob os caracóis de anjo que lhe caíam até aosombros, devorava Carlos com uns grandes olhos tristes.

Carlos pôs um interesse quase terno na sua pergunta:— Que tem ele?Havia dias, aparecera-lhe uma impigem no pescoço. Além disso,

por trás da orelha, tinha como uma dureza de caroço. Aquiloinquietava-a. Ela era forte, de uma boa raça, que dera atletas evelhos de grande idade. Mas na família do marido, em todos osGouvarinhos, havia uma anemia hereditária. O conde mesmo, comaquela sólida aparência, era um achacado. E ela, receando que ainfluência debilitante de Lisboa não conviesse a Charlie, estavacom o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao campo,em Formoselha, a casa da avó.

Carlos, aproximando ligeiramente a cadeira, estendeu os bra-ços a Charlie:

— Ora venha cá o meu lindo amigo, para vermos isso. Quemagnífico cabelo ele tem, senhora condessa!...

Ela sorriu. E Charlie, seriozinho, bem ensinado, sem aqueleterror do médico de que falara a mamã, veio logo, desapertou deli-cadamente o seu grande colarinho, e, quase entre os joelhos de Car-los, dobrou o pescoço macio e alvo como um lírio.

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Carlos viu apenas uma pequena mancha cor-de-rosa desvane-cendo-se; do caroço não havia vestígio; e então uma ligeira verme-lhidão subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente os olhos da condessa,como compreendendo tudo, querendo ver neles a confissão do senti-mento que a trouxera ali com um pretexto pueril, sob aquela toi-lette negra, aqueles véus que a mascaravam...

Mas ela permaneceu impenetrável, sentada à borda do divã,com as mãos cruzadas, atenta, como esperando as suas palavras,num vago susto de mãe.

Carlos abotoou o colarinho do pequeno, e disse:— Não é absolutamente nada, minha senhora.No entanto, fez perguntas de médico sobre o regime e a natu-

reza de Charlie. A condessa, num tom pesaroso, queixou-se de quea educação da criança não fosse, como ela desejava, mais forte emais viril; mas o pai opunha-se ao que ele chamava «a aberraçãoinglesa», a água fria, os exercícios a todo o ar, a ginástica...

— A água fria e a ginástica — disse Carlos sorrindo — têmmelhor reputação do que merecem... É o seu único filho, senhoracondessa?

— É, tem os mimos de morgado — disse ela, passando a mãopelos cabelos loiros do pequeno.

Carlos assegurou-lhe que, apesar do seu aspecto nervoso e deli-cado, Charlie não devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade deo exilar para os ares de Formoselha... Depois ficaram um momentocalados.

— Não imagina como me tranquilizou — disse ela, erguendo-se,dando um jeito ao véu. — Demais a mais é um gosto virconsultá-lo... Não há aqui o menor ar de doença, nem de remédios...E realmente tem isto muito bonito... acrescentou, dando um olharlento em redor aos veludos do gabinete.

— Tem justamente esse defeito — exclamou Carlos rindo. —Não inspira nenhum respeito pela minha ciência... Eu estou comideias de alterar tudo, pôr aqui um crocodilo empalhado, corujas,retortas, um esqueleto, pilhas de in-fólios...

— A cela de Fausto.— Justamente, a cela de Fausto.— Falta-lhe Mefistófeles — disse ela alegremente, com um

olhar que brilhou sob o véu.— O que me falta é Margarida!

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A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu osombros, como duvidando discretamente; depois tomou a mão deCharlie, e deu um passo lento para a porta, puxando outra vez o véu.

— Como Vossa Excelência se interessa pela minha instalação —acudiu Carlos querendo retê-la — deixe-me mostrar-lhe a outra sala.

Correu o reposteiro. Ela aproximou-se, murmurou algumaspalavras, aprovando a frescura dos cretones, a harmonia dos tonsclaros; depois o piano fê-la sorrir.

— Os seus doentes dançam quadrilhas?— Os meus doentes, senhora condessa — respondeu lenta-

mente Carlos — não são bastante numerosos para formar umaquadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma valsa... Opiano está simplesmente ali para dar ideias alegres; é como umapromessa tácita de saúde, de futuras soirées, de bonitas árias doTrovador, em família...

— É engenhoso — disse ela dando familiarmente alguns passosna sala, com Charlie colado aos vestidos.

E Carlos, caminhando ao lado dela:— Vossa Excelência não imagina como eu sou engenhoso!— Já noutro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era

muito inventivo quando odiava.— Muito mais quando amo — disse ele rindo.Mas ela não respondeu: parara junto ao piano, remexeu um

momento as músicas espalhadas, feriu duas notas no teclado.— É um chocalho.— Oh!, senhora condessa!Ela seguiu, foi examinar um quadro a óleo, copiado de Land-

seer — um focinho de cão são-bernardo, maciço e bonacheirão,adormecido sobre as patas. Quase roçando-lhe o vestido, Carlossentia o fino perfume de verbena que ela usava sempre exagerada-mente; e, entre aqueles tons negros que a cobriam, a sua pele pare-cia mais clara, mais doce à vista, e atraindo como um cetim.

— Este é um horror — murmurou ela, voltando-se. — Masdisse-me o Ega que há quadros lindos no Ramalhete... Falou-mesobretudo de um Greuze e de um Rubens... É pena que se não pos-sam ver essas maravilhas.

Carlos lamentava também que uma existência de solteirõeslhes impedisse, a ele e ao avô, de receberem senhoras. O Ramalheteestava tomando uma melancolia de mosteiro. Se assim continuas-

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sem mais alguns meses, sem que se sentisse ali um calor de ves-tido, um aroma de mulher, vinha a nascer a erva pelos tapetes.

— É por isso — acrescentou ele muito sério — que eu vou obri-gar o avô a casar-se.

A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram nasombra do véu.

— Gosto da sua alegria — disse ela.— É uma questão de regime. Vossa Excelência não é alegre?Ela encolheu os ombros, sem saber... Depois, batendo com a

ponta do guarda-sol na sua botina de verniz, que brilhava sobre otapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando ir as pala-vras, num tom de intimidade e de confidência:

— Dizem que não, que sou triste, que tenho spleen...O olhar de Carlos seguira o dela, pousara-se na botina de ver-

niz que calçava delicadamente um pé fino e comprido: Charlie,entretido, mexia nas teclas do piano — e ele baixou a voz para lhedizer:

— É que a senhora condessa tem um mau regime. É necessáriotratar-se, voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhedizer!

Ela interrompeu-o vivamente, erguendo para ele os olhos,donde se escapou um clarão de ternura e de triunfo:

— Venha-mo antes dizer um destes dias, tomar chá comigo, àscinco horas... Charlie!

O pequeno veio logo dependurar-se-lhe do braço.Carlos, acompanhando-a abaixo à rua, lamentava a fealdade da

sua escada de pedra:— Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora con-

dessa volte a dar-me a honra de me vir consultar...Ela gracejou, toda risonha:— Ah! não! O Sr. Carlos da Maia prometeu-nos a todos a

saúde... E naturalmente não espera que seja eu que venha cátomar chá consigo...

— Oh!, minha senhora, eu quando começo a esperar, não ponholimites nenhuns às minhas esperanças...

Ela parou, com o pequeno pela mão, olhou para ele, como pas-mada, encantada com aquela grandiosa certeza de si mesmo.

— Então vai por aí além, por aí além...?— Vou por aí além, por aí além, minha senhora!

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Estavam no último degrau, diante da claridade e do rumor da rua.— Mande-me chegar um coupé.Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipóia.— E agora disse ela sorrindo — mande-o ir à Igreja da Graça.— A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor dos Passos?Ela corou de leve, murmurou:— Ando fazendo as minhas devoções...Depois saltou ligeiramente para o coupé — deixando Charlie,

que Carlos ergueu nos braços e lhe colocou ao lado, paternalmente.— Que Deus a leve em Sua santa guarda, senhora condessa!Ela agradeceu com um olhar, um movimento de cabeça —

ambos tão doces como carícias.Carlos subiu: e, sem tirar o chapéu, ficou ainda enrolando uma

cigarette, passeando naquela sala sempre deserta, sempre fria,onde ela deixara agora alguma coisa do seu calor e do seu aroma...

Realmente gostava daquela audácia dela — ter vindo assim aoconsultório, toda escondida, quase mascarada numa grande toilettenegra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para over, para dar um nó brusco e mais apertado naquele leve fio derelações que ele tão negligentemente deixara cair e quebrar...

O Ega desta vez não fantasiara: aquele bonito corpo oferecia-se,tão claramente como se se despisse. Ah! se ela fosse de sentimentoserrantes e fáceis — que bela flor a colher, a respirar, a deitar foradepois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa nuncase tinha divertido. E o que ele não queria era achar-se envolvidonuma paixão ciosa, uma dessas ternuras tumultuosas de mulher detrinta anos, de que depois se desembaraçaria dificilmente... Nosbraços dela o seu coração ficaria mudo: e apenas esgotada a pri-meira curiosidade, começaria o tédio dos beijos que se não desejam,a horrível maçada do prazer a frio. Depois, teria de ser íntimo dacasa, receber pelo ombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe avoz morosa destilando doutrina... Tudo isto o assustava... E, toda-via, gostara daquela audácia! Havia ali uma pontinha de roman-tismo, muito irregular, e picante... E devia ser deliciosamente bemfeita... A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe no cetim das for-mas, onde sentia ao mesmo tempo alguma coisa de maduro e devirginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os vira emS. Carlos, aqueles cabelos tentavam-no, assim avermelhados, tãocrespos e quentes...

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Saiu. E dera apenas alguns passos na Rua Nova do Almada,quando avistou o Dâmaso, num coupé lançado a grande trote, que ochamava, mandava parar, com a face à portinhola, vermelho eradiante.

— Não tenho podido lá ir — exclamou ele, apoderando-se-lhe damão, apenas Carlos se aproximou, e apertando-lha com entusiasmo.Tenho andado num turbilhão! Eu te contarei! Um romance divino...Mas eu te contarei!... Tem cuidado com a roda! Bate lá, ó Calção!

A parelha abalou; ele ainda se debruçou da portinhola agitou amão, gritou no rumor da rua:

— Um romance divino, chique a valer!Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar,

Craft, que acabava de bater o marquês, perguntou, pousando o tacoe acendendo o cachimbo:

— E notícias do nosso Dâmaso? Já se esclareceu esse lamentá-vel desaparecimento?...

Carlos então contou como o encontrara, afogueado e triunfante,atirando-lhe da portinhola do coupé, em plena Rua Nova doAlmada, a notícia de um romance divino!

— Bem sei — disse o Taveira.— Como sabes?... — exclamou Carlos.Taveira vira-o na véspera, num grande landau da Companhia,

com uma esplêndida mulher, muito elegante e que parecia estran-geira...

— Ora essa! — gritou Carlos. — E com uma cadelinha escocesa?— Exactamente, uma cadelinha escocesa, uma griffon cor de

prata... Quem são?— E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar ingle-

sado?— Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente é?— Uma gente brasileira, penso eu.Eram os Castro Gomes, decerto! Isto parecia-lhe espantoso.

Havia apenas duas semanas que no terraço o Dâmaso, de punhosfechados, bramara contra os Castro Gomes e as suas «desconside-rações»! Ia pedir outros pormenores ao Taveira — mas o marquêsergueu a voz do fundo da poltrona onde se estirara, e quis saber aopinião de Carlos sobre o grande acontecimento dessa manhã naGazeta Ilustrada. — Na Gazeta Ilustrada?... Carlos não sabia, essamanhã não vira jornal nenhum.

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— Então não lhe digam nada — gritou o marquês. — Venha asurpresa! Cá há a Gazeta? Manda buscar a Gazeta!

Taveira puxou o cordão da campainha — e quando o escudeirotrouxe a Gazeta, ele apoderou-se dela, quis fazer uma leiturasolene.

— Deixa-lhe ver primeiro o retrato — berrou o marquês,erguendo-se.

— Primeiro o artigo! — exclamava o Taveira, defendendo-se,com o jornal atrás das costas.

Mas cedeu, e pôs o papel diante dos olhos de Carlos, larga-mente, como um sudário desdobrado. Carlos reconheceu logo oretrato do Cohen... E a prosa que se alastrava em redor, encaixi-lhando a face escura de suíças retintas, era um trabalho de seiscolunas, em estilo emplumado e cantante, celebrando até aos céusas virtudes domésticas do Cohen, o génio financeiro do Cohen, osditos de espírito do Cohen, a mobília das salas do Cohen; haviaainda um parágrafo aludindo à festa próxima, ao grande sarau demáscaras do Cohen. E tudo isto vinha assinado — J. da E. — asiniciais de João da Ega!

— Que tolice! — exclamou Carlos, com tédio, atirando o jornalpara cima do bilhar.

— É mais que tolice — observou Craft —; é uma falta de sensomoral.

O marquês protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, ede velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta desenso moral?...

— Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo acha istomuito natural. É íntimo da casa, celebra os donos. É admirador damulher, lisonjeia o marido. Está na lógica cá da terra... Você veráque sucesso isto vai ter... E lá que o artigo está lindo, isso está!

Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoircor-de-rosa de Madame Cohen: «Respira-se ali (dizia o Ega) algumacoisa de perfumado, íntimo e casto, como se todo aquele cor-de-rosaexalasse de si o aroma que a rosa tem!».

— Isto, caramba, é lindo em toda a parte! — exclamou o mar-quês. — Tem muito talento, aquele diabo! Tomara eu ter o talentoque ele tem!...

— Nada disso impede — repetiu Craft, cachimbando tranquila-mente — que seja uma extraordinária falta de senso moral.

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— Pura e simplesmente insensato! — disse Cruges, desenros-cando-se do canto de um sofá, para deixar cair às sílabas estapesada opinião.

O marquês investiu com ele.— Que entende você disso, seu maestro? O artigo é sublime! E

saiba mais: é de finório!O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar em

silêncio ao outro canto do sofá.E então o marquês, de pé e bracejando, apelou para Carlos, e

quis saber o que é que Craft em princípio entendia por senso moral.Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não respondeu,

tomou o braço do Taveira, levou-o para o corredor.— Dize-me uma coisa: onde viste tu o Dâmaso, com essa gente?

Para que lado iam?— Iam pelo Chiado abaixo; anteontem, às duas horas... Estou

convencido que iam para Sintra. Levavam uma maleta no landau,e atrás ia uma criada num coupé com uma mala maior... Aquilocheirava a ida a Sintra. E a mulher é divina! Que toilette, que ar,que chique! É uma Vénus, menino!... Como conheceria ele aquilo?...

— Em Bordéus, num paquete, não sei onde!— Eu do que gostei foi dos ares que ele se ia dando por aquele

Chiado! Cumprimento para a direita, cumprimento para aesquerda... A debruçar-se, a falar muito baixo para a mulher, comolho terno, alardeando conquista...

— Que besta! — exclamou Carlos, batendo com o pé no tapete.— Chama-lhe besta — disse o Taveira. — Vem a Lisboa, por

acaso, uma mulher civilizada e decente, e é ele que a conhece, e éele que vai com ela para Sintra! Chama-lhe besta!... Anda daí,vamos à partidinha do dominó.

Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete — ehavia agora ali, às vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apa-recia o marquês. Porque a paixão do Taveira era bater o marquês.

Mas foi necessário que o marquês acabasse de bracejar, dedesenrolar o arrazoado com que estava acabrunhando o Craft —que do fundo da poltrona, de cachimbo na mão e com ar de sono,respondia por monossílabos. Era ainda a propósito do artigo doEga, da definição de senso moral. Já tinha falado de Deus, de Gari-baldi, até do seu famoso perdigueiro Finório; e agora definia aconsciência... Segundo ele, era o medo da polícia. Tinha o amigo

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Craft visto já alguém com remorsos? Não, a não ser no teatro daRua dos Condes, em dramalhões...

— Acredite você uma coisa, Craft — terminou ele por dizer,cedendo ao Taveira, que o puxava para a mesa — isto de consciên-cia é uma questão de educação. Adquire-se como as boas maneiras;sofrer em silêncio por ter traído um amigo, aprende-se exactamentecomo se aprende a não meter os dedos no nariz. Questão de educa-ção... No resto da gente é apenas medo da cadeia, ou da bengala...Ah! vocês querem levar outra sova no dominó como a de sábadopassado? Perfeitamente, sou todo vosso...

Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo doEga, aproximou-se também da mesa. E estavam sentados, reme-xiam as pedras quando à porta da sala apareceu o conde de Stein-broken, de casaca e crachat, grã-cruz sobre o colete branco, lourocomo uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha jantado noPaço, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirée, em família...

Então o marquês, que o não via desde o famoso ataque de intes-tinos, abandonou o dominó, correu a abraçá-lo ruidosamente e semo deixar sequer sentar, nem estender a mão aos outros,implorou-lhe logo uma das suas belas canções finlandesas, uma só,daquelas que lhe faziam tão bem à alma!...

— Só a Balada, Steinbroken... Eu também não me posso demo-rar, que tenho aqui a partida à espera. Só a Balada! Vá, salta lápara dentro para o piano, Cruges...

O diplomata sorria, dizia-se cansado, tendo já feito música deli-ciosa no Paço com Sua Majestade. Mas nunca sabia resistir àquelemodo folgazão do marquês — e lá foram para a sala do piano, debraço dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade adesenroscar-se do canto do sofá. E daí a um momento, através dosreposteiros meio corridos, a bela voz de barítono do diplomataespalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a embaladoramelancolia da Balada, com a sua letra traduzida em francês, que omarquês adorava, e em que se falava das névoas tristes do Norte,de lagos frios e de fadas loiras...

Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado uma grandepartida de dominó, a tostão o ponto. Mas Carlos nessa noite não seinteressava, jogando distraído, a cantarolar também baixo bocadostristes da Balada; depois, quando já Taveira tinha só uma pedradiante de si, e ele estava comprando interminavelmente as que res-

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tavam, voltou-se para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotelda Lawrence, em Sintra, estava aberto todo o ano...

— A ida do Dâmaso para Sintra deu-te no goto — rosnouTaveira impaciente. Anda, joga!

Carlos, sem responder, pousou molemente uma pedra.— Dominó! — gritou Taveira.E em triunfo, aos pulos, contou ele mesmo os sessenta e oito

pontos que Carlos perdia.Justamente o marquês entrava, e a vitória de Taveira indignou-o.— Agora nós — exclamou ele, puxando vivamente uma cadeira.

— Ó Carlos, deixe-me você dar aqui uma sova neste ladrão. Depoisjogamos de três... Como queres tu isto, Taveirete? A dois tostões oponto? Ah!, queres só a tostão... Muito bem, eu te ensinarei. Anda,desembaraça-te já desse doble-seis, miserável...

Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma ciga-rette apagada nos dedos, o mesmo ar distraído: de repente, pareceutomar uma decisão, atravessou o corredor, entrou na sala demúsica. Steinbroken fora ao escritório ver Afonso da Maia, e a par-tida de whist; e Cruges só, entre as duas velas do piano, com osolhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente.

— Dize cá, Cruges — perguntou-lhe Carlos — queres vir ama-nhã a Sintra?

O teclado calou-se, o maestro ergueu um olhar espantado. Car-los nem o deixou falar.

— Está claro que queres, não te faz senão bem vir a Sintra...Amanhã lá estou à porta, com o break. Mete sempre uma camisanuma maleta, que talvez passemos lá a noite... Às oito em ponto,hem?... E não digas nada lá dentro.

Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominó.Agora havia um largo silêncio. O marquês e Taveira moviam lenta-mente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo.Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas,sob a luz que caía dos abat-jours de porcelana. Um som de piano,dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braço descaído aolongo da poltrona, dormitava beatificamente.

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NA manhã seguinte, às oito horas pontualmente, Carlosparava o break na Rua das Flores, diante do conhecido portão dacasa do Cruges. Mas o trintanário, que ele mandara acima bater àcampainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que oSr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava então o Sr. Cru-ges? A criada dissera que o Sr. Cruges vivia agora na Rua deS. Francisco, quatro portas adiante do Grémio. Durante ummomento, Carlos, desesperado, pensou em partir só para Sintra.Depois lá largou para a Rua de S. Francisco, amaldiçoando o maes-tro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tene-broso!... E era em tudo assim, Carlos nada sabia do seu passado, doseu interior, das suas afeições, dos seus hábitos. O marquês, umanoite, levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos queestava ali um génio. Ele encantara logo todo o mundo pela modés-tia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo omundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a falartambém do Cruges como de um génio, a declarar que Chopin nuncafizera obra igual à Meditação de Outono do Cruges. E ninguémsabia mais nada. Fora pelo Dâmaso que Carlos conhecera a casa doCruges e soubera que ele vivia lá com a mãe, uma senhora viúva,ainda fresca, e dona de prédios na Baixa.

Ao portão da Rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar umquarto de hora. Primeiro apareceu furtivamente ao fundo daescada uma criada em cabelo, que espreitou o break, os criados de

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Capítulo VIII

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farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veio um criado em man-gas de camisa trazer a maleta do senhor e um xale-manta. Enfim, omaestro desceu, a correr, quase aos trambolhões, com um cache-nezde seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando ata-rantadamente o paletó.

Quando vinha pulando os últimos degraus, uma voz esganiçadade mulher gritou-lhe de cima:

— Olha não te esqueçam as queijadas!E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado

de Carlos, rosnando que, com a preocupação de se levantar tãocedo, tivera uma insónia abominável...

— Mas que diabo de ideia é essa de mudar de casa, sem avisara gente, homem? — exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dosjoelhos um bocado do plaid que o agasalhava, porque o maestroparecia arrepiado.

— É que esta casa também é nossa — disse simplesmente Cru-ges.

— Está claro, aí está uma razão! — murmurou Carlos rindo eencolhendo os ombros.

Partiram.Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma

nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nasfachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboaacordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas comos seirões de hortaliças: varria-se devagar a testada das lojas: no armacio morria a distância um toque fino de missa.

Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar asluvas, estendeu um olhar à esplêndida parelha baia reluzindo comoum cetim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seusramos nas librés, a todo aquele luxo correcto e rolando em cadência— onde fazia mancha o seu paletó: mas o que o impressionou foi oaspecto resplandecente de Carlos, o olhar aceso, as belas cores, obelo riso, o que quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob oseu simples veston de xadrezinho castanho, naquela almofada bur-guesa de break, lhe dava um arranque de herói jovial, lançando oseu carro de guerra... Cruges farejou uma aventura, soltou logo apergunta que desde a véspera lhe ficara nos lábios.

— Com franqueza, aqui para nós, que ideia foi esta de ir a Sin-tra?

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Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melo-diosa de Mozart e pelas fugas de Bach? Pois bem, a ideia era vir aSintra, respirar o ar de Sintra, passar o dia em Sintra... Mas, peloamor de Deus, que o não revelasse a ninguém!

E acrescentou rindo:— Deixa-te levar, que não te hás-de arrepender...Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o passeio,

gostara sempre muito de Sintra... Todavia não se lembrava bem,tinha apenas uma vaga ideia de grandes rochas e de nascentes deáguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove anos nãovoltara a Sintra.

O quê! o maestro não conhecia Sintra?... Então era necessárioficarem lá, fazer as peregrinações clássicas, subir à Pena, ir beberágua à Fonte dos Amores, barquejar na Várzea...

— A mim o que me está a apetecer muito é Seteais; e a man-teiga fresca.

— Sim, muita manteiga — disse Carlos. — E burros, muitosburros... Enfim, uma écloga!

O break rodava na estrada de Benfica: iam passando murosenramados de quintas, casarões tristonhos de vidraças quebradas,vendas com o seu maço de cigarros à porta dependurado de umaguita: e a menor árvore, qualquer bocado de relva com papoulas,um fugitivo longe de colina verde, encantavam Cruges. Há quetempos ele não via o campo!

Pouco a pouco o Sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se doseu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletó — edeclarou-se morto de fome.

Felizmente estavam chegando à Porcalhota.O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado — mas

como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito,por uma bela pratada de ovos com chouriço. Era uma coisa que nãoprovava havia anos e que lhe daria a sensação de estar na aldeia...Quando o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor,pousou sobre a mesa sem toalha a enorme travessa com o petisco,Cruges esfregou as mãos, achando aquilo deliciosamente campestre.

— A gente em Lisboa estraga a saúde! — disse ele, puxandopara o prato uma montanha de ovo e chouriço. — Tu não tomasnada?...

Carlos, para lhe fazer companhia, aceitou uma chávena de café.

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Daí a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a boca cheia:— O Reno também deve ser magnífico! Carlos olhou-o espan-

tado e rindo. A que vinha agora ali o Reno?... É que o maestro,desde que saíra as portas, estava cheio de ideias de viagens e depaisagens; queria ver as grandes montanhas onde há neve, os riosde que se fala na história. O seu ideal seria ir à Alemanha, percor-rer a pé, com uma mochila, aquela pátria sagrada dos seus deuses,de Beethoven, de Mozart, de Wagner...

— Não te apetecia mais ir à Itália? — perguntou Carlos acen-dendo o charuto.

O maestro esboçou um gesto de desdém, teve uma das suas fra-ses sibilinas:

— Tudo contradanças!Carlos então falou de um certo plano de ir à Itália, com o Ega,

no Inverno. Ir à Itália, para o Ega, era uma higiene intelectual:precisava calmar aquela imaginação tumultuosa de nervoso penin-sular entre a plácida majestade dos mármores...

— O que ele precisava antes de tudo era chicote — rosnou o Cru-ges. E voltou a falar do caso da véspera, do famoso artigo da Gazeta.Achava aquilo, como ele dissera, pura e simplesmente insensato, ede uma sabujice indecorosa. E o que o afligia é que o Ega, com aqueletalento, aquela verve fumegante, não fizesse nada...

— Ninguém faz nada — disse Carlos espreguiçando-se. — Tu,por exemplo, que fazes? Cruges, depois de um silêncio, rosnou enco-lhendo os ombros: — Se eu fizesse uma boa ópera, quem é que marepresentava?

— E se o Ega fizesse um belo livro, quem é que lho lia? O maes-tro terminou por dizer:

— Isto é um país impossível... Parece-me que também voutomar café.

Os cavalos tinham descansado, Cruges pagou a conta, partiram.Daí a pouco entravam na charneca, que lhes pareceu infindável. Deambos os lados, a perder de vista, era um chão escuro e triste; e porcima um azul sem fim, que naquela solidão parecia triste também.O trote compassado dos cavalos batia monotonamente a estrada.Não havia um rumor: por vezes um pássaro cortava o ar, num voobrusco, fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criadosdormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço, olhava, vaga emelancolicamente, as ancas lustrosas dos cavalos. Carlos,

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no entanto, pensava no motivo que o trazia a Sintra. E realmente nãosabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que ele não avis-tava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a Terra, e quenão encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixadonos seus: agora supunha que ela estava em Sintra, corria a Sintra.Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvezela tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar nelaassim por aquela estrada fora, penetrar, com essa doçura no coração,sob as belas árvores de Sintra... Depois, era possível que daí a pouco,na velha Lawrence, ele a cruzasse de repente no corredor, roçasse tal-vez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ela lá estivesse, decertoviria jantar à sala, aquela sala que ele conhecia tão bem, que já lheestava apetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, osramos toscos sobre a mesa, e os dois grandes candeeiros de latãoantigo... Ela entraria ali, com o seu belo ar claro de Diana loira; o bomDâmaso apresentaria o seu amigo Maia; aqueles olhos negros, que elevira passar de longe como duas estrelas, pousariam mais devagar nosseus; e, muito simplesmente, à inglesa, ela estender-lhe-ia a mão...

— Ora até que finalmente! — exclamou Cruges, com um sus-piro de alívio e respirando melhor.

Chegavam às primeiras casas de Sintra, havia já verduras naestrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.

E a passo, o break foi penetrando sob as árvores do Ramalhão.Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco umalenta e embaladora sussurração de ramagens e como o difuso evago murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos deheras e de musgos: através da folhagem, faiscavam longas flechasde sol. Um ar subtil e aveludado circulava, rescendendo às verdu-ras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilrea-vam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicadode manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidadedos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, atristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas deVerão... Cruges respirava largamente, voluptuosamente.

— A Lawrence onde é? Na serra? — perguntou ele, com a ideiarepentina de ficar ali um mês naquele paraíso.

— Nós não vamos para a Lawrence — disse Carlos, saindobruscamente do seu silêncio e espertando os cavalos. — Vamospara o Nunes, estamos lá muito melhor!

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Era uma ideia que lhe viera de repente, apenas passara as pri-meiras casas de São Pedro e o break começara a rolar naquelasestradas onde a cada momento ele a poderia encontrar. Tomara-ouma timidez, a que se misturava um laivo de orgulho, o receiomelindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim a Sintra, ainda queela o não reconhecesse, indo instalar-se sob as mesmas telhas, apo-derando-se de um lugar à mesma mesa... E ao mesmo tempo repug-nou-lhe a ideia de lhe ser apresentado pelo Dâmaso: via-o já,bochechudo e vestido de campo, a esboçar um gesto de cerimónia, amostrar o seu amigo Maia, a tratá-lo por tu, afectando intimidadescom ela, cocando-a com um olho terno... Isto seria intolerável.

— Vamos para o Nunes, que se come melhor!Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma

impressão religiosa de todo aquele esplendor sombrio de arvoredo,dos altos fragosos da serra entrevistos um instante lá em cima nasnuvens, desse aroma que ele sorvia deliciosamente, e do sussurrodoce de águas descendo para os vales...

Só ao avistar o Paço descerrou os lábios:— Sim senhor, tem cachet!E foi o que mais lhe agradou — este maciço e silencioso palácio,

sem florões e sem torres, patriarcalmente assentado entre o casarioda vila, com as suas belas janelas manuelinas que lhe fazem umnobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e fresco, e no alto asduas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essaresidência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de umagula de rei que cada dia come todo um reino...

E apenas o break parou à porta do Nunes, foi-lhe ainda dar umolhar, tímido e de longe — receando alguma palavra rude da sentinela.

Carlos, no entanto, saltando logo da almofada, tomou à parte ocriado do hotel, que descera a recolher as maletas.

— Você conhece o Sr. Dâmaso Salcede? Sabe se ele está em Sin-tra?

O criado conhecia muito bem o Sr. Dâmaso Salcede. Ainda navéspera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com umsujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque só comraparigas e em pândega é que o Sr. Dâmaso vinha para o Nunes.

— Então, depressa, dois quartos! — exclamou Carlos, com umaalegria de criança, certo agora que ela estava em Sintra. — E umasala particular, só para nós, para almoçarmos.

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Cruges, que se aproximara, protestou contra esta sala solitária.Preferia a mesa redonda. Ordinariamente na mesa redonda encon-tram-se tipos...

— Bem — exclamou Carlos, rindo e esfregando as mãos — põeo almoço na sala de jantar, põe-no até na praça... E muita manteigafresca para o Sr. Cruges!

O cocheiro levou o break, o criado sobraçou as maletas. Cruges,entusiasmado com Sintra, rompeu pela escada acima, a assobiar —conservando aos ombros o xale-manta, de que se não queria sepa-rar, porque lho emprestara a mamã. E apenas chegou à porta dasala de jantar, estacou, ergueu os braços, teve um grito.

— Oh! Eusebiozinho!Carlos correu, olhou... Era ele, o viúvo, acabando de almoçar,

com duas raparigas espanholas. Estava no topo da mesa, como pre-sidindo, diante de uns restos de pudim e de pratos de fruta, amare-lado, despenteado, carregado de luto, com a larga fita das lunetaspretas passada por trás da orelha, e uma rodela de tafetá negrosobre o pescoço, tapando alguma espinha rebentada.

Uma das espanholas era um mulherão trigueiro, com sinais debexigas na cara; a outra, muito franzina, de olhos meigos, tinhauma roseta de febre, que o pó-de-arroz não disfarçava. Ambas ves-tiam de cetim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura queentrava pela janela, pareciam mais gastas, mais moles, aindapegajosas da lentura morna dos colchões, e cheirando a bafio dealcova. Pertencendo à súcia havia um outro sujeito, gordo, baixo,sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça sobre o prato,babujando uma metade de laranja.

Durante um momento, Eusebiozinho ficou interdito, com ogarfo no ar; depois lá se ergueu, de guardanapo na mão, veio aper-tar os dedos aos amigos, balbuciando logo uma justificação embru-lhada, a ordem do médico para mudar de ares, aquele rapaz que oacompanhara, e que quisera trazer raparigas... E nunca pareceratão fúnebre, tão reles, como resmungando estas coisas hipócritas,encolhido à sombra de Carlos.

— Fizeste muito bem, Eusebiozinho — disse Carlos por fim,batendo-lhe no ombro. — Lisboa está um horror, e o amor é coisa doce.

O outro continuava a justificar-se. Então a espanhola magritaque fumava, afastada da mesa e com a perna traçada, elevou a voz,perguntou ao Cruges se ele não lhe falava. O maestro afirmou-se

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um momento, e partiu de braços abertos para a sua amiga Lola. Efoi, nesse canto da mesa, uma grulhada em espanhol, grandesapertos de mão, e hombre, que no se le ha visto! e mira, que me heacordado de ti! e caramba, que reguapa estás... Depois, a Lola,tomando um arzinho espremido, apresentou o outro mulherão, laseñorita Concha...

Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade — o sujeitoobeso, que apenas levantara um instante a cabeça do prato,decidiu-se a examinar mais atentamente os amigos do Eusébio:cruzou o talher, limpou com o guardanapo a boca, a testa e o pes-coço, encavalou laboriosamente no nariz uma grande luneta devidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e cor de cidra, exa-minou detidamente Cruges, e depois Carlos com uma impudênciatranquila.

Eusebiozinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigoPalma, ouvindo o nome conhecido de Carlos da Maia, quis logomostrar, diante de um gentleman, que era um gentleman também.Arrojou para longe o guardanapo, arredou para fora a cadeira; e depé, estendendo a Carlos os dedos moles e de unhas roídas, excla-mou, com um gesto para os restos da sobremesa:

— Se Vossa Excelência é servido, é sem cerimónia... Que istoquando a gente vem a Sintra, é para abrir o apetite e fazer bem àbarriga...

Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animavae gracejava com a Lola, fez também do outro lado da mesa a suaapresentação:

— Carlos, quero que conheças aqui a lindíssima Lola, relaçõesantigas, e a senõrita Concha, que eu tive agora o prazer...

Carlos saudou respeitosamente as damas. O mulherão da Con-cha rosnou secamente os buenos dias: parecia de mau humor, pesadado almoço, amodorrada para ali, sem dizer uma palavra, com os coto-velos fincados na mesa, os olhos pestanudos meio cerrados, orafumando, ora palitando os dentes. Mas a Lola foi amável, fez desenhora, ergueu-se, ofereceu a Carlos a mãozita suada. Depois reto-mando o cigarro, dando um jeito às pulseiras de ouro, declarou, comum requebro de olhos, que conhecia de há muito Carlos...

— No ha estado usted con Encarnación?Sim, Carlos tivera essa honra... que era feito dela, dessa bela

Encarnación?

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A Lola sorriu com finura, tocou no cotovelo do maestro. Nãoacreditava que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnación...Enfim, terminou por dizer que a Encarnación estava agora com oSaldanha.

— Mas olhe que não é com o duque de Saldanha! — exclamouPalma, que se conservara de pé, com a bolsa do tabaco aberta sobrea mesa, fazendo um grande cigarro.

A Lolita, com um modo seco, replicou que o Saldanha não seriaduque, mas era um chico muy decente...

— Olha — disse o Palma lentamente, de cigarro na boca etirando a isca da algibeira — duas boas bofetadas na cara lhe deieu ainda não há três semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gasparassistiu... Foi até no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo ochapéu parar ao meio da rua... O Sr. Maia há-de conhecer o Salda-nha... Há-de conhecer, que ele também tem um carrito e um cavalo.

Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se de novo,saudando as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-omais um instante, enquanto satisfazia uma curiosidade: queriasaber qual daquelas meninas era a esposa do amigo Eusébio.

Assim interpelado, o viúvo encordoou, rosnou com uma vozmorosa, sem erguer as lunetas da laranja que descascava, queestava ali de passeio, não tinha esposa, e ambas aquelas meninaspertenciam ao amigo Palma...

E ainda ele mascava as últimas palavras, quando Concha, quedigeria de perna estendida, se endireitou bruscamente como sefosse saltar, atirou um murro à borda da mesa e, com os olhos cha-mejantes, desafiou o Eusébio a que repetisse aquilo! Queria que elerepetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha dela, e de dizerque a tinha trazido a Sintra... E como o Eusébio, já enfiado, ten-tava gracejar, fazer-lhe uma festa — ela despropositou, atirou-lheos piores nomes, dando sempre punhadas na mesa, com uma fúriaque lhe torcia a boca, lhe punha duas manchas de sangue no carãotrigueiro. A Lolita, vexada, puxava-lhe pelo braço; a outra deu-lheum repelão; e, mais excitada com a estridência da própria voz,esvaziou-se de toda a bílis, chamou-lhe porco, acusou-o de forreta,usou-o como um trapo vil.

Palma, aflito, debruçado sobre a mesa, exclamava num tomansioso.

— Ó Concha, escuta lá!... Ouve lá!... Concha, eu te explico...

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De repente, ela ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e omulherão abalou pela sala fora, a grande cauda de cetim varreudesabridamente o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. Nochão ficara caído um pedaço da mantilha de renda.

O criado, que entrava do outro lado com a cafeteira, estacou,afiando o olho curioso, farejando o escândalo; depois, calado e seca-mente, foi servindo em roda o café.

Durante um momento houve um silêncio. Apenas, porém, ocriado saiu — a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz,atacaram o Eusebiozinho. Ele portara-se muito mal! Aquilo nãofora de cavalheiro! Tinha trazido a rapariga a Sintra, devia-a res-peitar, não a ter renegado assim, à bruta, diante de todos...

— Esto no se hace — dizia a Lolita, de pé, gesticulando, com osolhos brilhantes, voltada para Carlos — ha sido una cosa muy fea!...

E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involun-tária da catástrofe — ela baixou a voz, contou que a Concha erauma fúria, viera a Sintra com pouca vontade, e desde manhãestava de muy malo humor... Pero lo de Silbeira habia sido unagran pulhice...

Ele, coitado, com a cabeça caída e as orelhas em brasa, remexiadesoladamente o seu café; não se lhe viam os olhos escondidospelas lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluço que lheafogava a garganta. Então Palma pousou a chávena, lambeu os bei-ços, e de pé no meio da sala, com a face luzidia, o colete desabo-toado, fez, num tom entendido, o resumo daquele desgosto.

— Tudo provém disto, e desculpe-me você dizê-lo, Silveira: éque você não sabe tratar com espanholas!

A esta cruel palavra o viúvo sucumbiu. A colher caiu-lhe dosdedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refu-giando-se neles, vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade — edesabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos lábios:

— Vejam vocês! Vem a gente a um sítio destes para gozar umbocado de poesia, e no fim é uma destas!...

Carlos bateu-lhe melancolicamente no ombro:— A vida é assim, Eusebiozinho.Cruges fez-lhe uma festa nas costas: — Não se pode contar com prazeres, Silveirinha.Mas Palma, mais prático, declarou que era forçoso arranjarem-se

as coisas. Virem a Sintra, para questões e amuos, isso não! Naquelas

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pândegas queria-se harmonia, chalaça, e gozar. Coices, não. Entãoficava-se em Lisboa, que era mais barato.

Chegou-se a Lola, passou-lhe os dedos pela face, com amor:— Anda, Lolita, vai tu lá dentro à Concha, dize-lhe que se não

faça tola, que venha tomar café... Anda, que tu sabe-la levar...Diz-lhe que peço eu!

Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foidar um jeito ao cabelo diante do espelho, apanhou a cauda — esaiu, atirando a Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho.

Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusébio, e deu-lhe con-selhos muito sérios sobre o sistema de tratar espanholas. Era necessá-rio levá-las por bons modos; por isso é que elas se pelavam por portu-gueses, porque lá em Espanha era à bordoada... Enfim, ele não diziaque em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de benga-ladas, não fossem úteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando sedevia bater? Quando elas não gostavam da gente, e se faziam ariscas.Então sim. Então, zás, tapona, que elas ficavam logo pelo beiço... Masdepois bons modos, delicadeza, tal qual como com francesas...

— Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiência. Eo Sr. Maia que lhe diga se isto não é verdade, ele que tem tambémexperiência e sabe viver com espanholas!

E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito — que Crugesdesatou a rir, fez rir Carlos também.

O Sr. Palma, um pouco chocado, compôs mais as lunetas, eolhou para eles

— Os senhores riem-se? Imaginam que eu estou a mangar?Olhem que eu comecei a lidar com espanholas aos quinze anos!Não, escusam de rir, que nisso ninguém me ganha! Lá o que sechama ter jeito para espanholas, cá o meco! E vamos lá, que não éfácil! É necessário ter um certo talento!... Olhem, o Herculano écapaz de fazer belos artigos e estilo catita... Agora tragam-no cápara lidar com espanholas e veremos! Não dá meia...

Eusebiozinho, no entanto, fora duas vezes escutar à porta. Todoo hotel caíra num grande silêncio, a Lolita não voltava. EntãoPalma aconselhou um grande passo.

— Vá você lá dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim semmais nem menos, chegue-se ao pé dela...

— E tapona? — perguntou Cruges, muito seriamente, gozandoo Palma.

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— Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão... Neste caso é pedir per-dão... E como pretexto, Silveira, leve-lhe você mesmo o café.

Eusebiozinho, com um olhar ansioso e mudo, consultou os seusamigos. Mas o seu coração já decidira: e daí a um momento, com opedaço de mantilha numa das mãos, a chávena do café na outra,enfiado e comovido, lá partia a passos lentos pelo corredor a pedirperdão à Concha.

E, logo atrás dele, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se des-pedirem do Sr. Palma — que de resto, indiferente também, já seacomodara à mesa a preparar regaladamente o seu grogue.

Eram duas horas quando os dois amigos saíram enfim do hotel,a fazer esse passeio a Seteais — que desde Lisboa tentava tanto omaestro. Na praça, por defronte das lojas vazias e silenciosas, cãesvadios dormiam ao sol: através das grades da cadeia, os presospediam esmola. Crianças, enxovalhadas e em farrapos, garotavampelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janelas fecha-das, continuando o seu sono de Inverno, entre as árvores já verdes.De vez em quando aparecia um bocado da serra, com a sua mura-lha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o Castelo daPena, solitário, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de Abrilpunha a doçura do seu veludo.

Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mos-trou-o ao Cruges.

— Tem o ar mais simpático — disse o maestro. — Mas valeumuito a pena ir para o Nunes, só para ver aquela cena... E entãocom quê o Sr. Carlos da Maia tem experiência de espanholas?

Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavamdaquela fachada banal, onde só uma janela estava aberta com umpar de botinas de duraque secando ao ar. À porta, dois rapazesingleses, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silêncio; edefronte, sentados sobre um banco de pedra, dois burriqueiros, aolado dos burros, não lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes,cocando-os como uma presa.

Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancólico,saindo do silêncio do hotel, um vago som de flauta: e parou ainda,remexendo as suas recordações, quase certo de Dâmaso lhe ter ditoque a bordo Castro Gomes tocava flauta...

— Isto é sublime! — exclamou do lado o Cruges, comovido.

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Parara diante da grade donde se domina o vale. E dali olhava,enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só sevêem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como omusgo veste um muro, e tendo àquela distância, no brilho da luz, asuavidade macia de um grande musgo escuro. E nesta espessuraverde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, bran-quejando, afogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso,debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma ideia deartista: desejou habitá-la com uma mulher, um piano e um cãoterra-nova.

Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava atragos deliciosos.

— Que ar! Isto dá saúde, menino! Isto faz reviver!...Para o gozar mais docemente, sentou-se adiante, num bocado

de muro baixo, defronte de um alto terraço gradeado, onde velhasárvores assombreiam bancos de jardim e estendem sobre a estradaa frescura das suas ramagens, cheias do piar das aves. E como Car-los lhe mostrava o relógio, as horas que fugiam para ir ver o palá-cio, a Pena, as outras belezas de Sintra — o maestro declarou quepreferia estar ali, ouvindo correr a água, a ver monumentos catur-ras…

— Sintra não são pedras velhas, nem coisas góticas... Sintra éisto, uma pouca de água, um bocado de musgo... Isto é umparaíso!...

E, naquela satisfação que o tornava loquaz, acrescentou, repe-tindo a sua chalaça:

— E Vossa Excelência deve sabê-lo, Sr. Maia, porque tem expe-riência de espanholas!...

— Poupa-me, respeita a Natureza — murmurou Carlos, queriscava pensativamente o chão com a bengala.

Ficaram calados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo domuro em que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura,arbustos, flores e árvores, sufocando-se numa prodigalidade de bos-que silvestre, deixando apenas espaço para um tanquezinhoredondo, onde uma pouca de água, imóvel e gelada, com dois ou trêsnenúfares, se esverdinhava sob a sombra daquela ramaria profusa.Aqui e além, entre a bela desordem da folhagem, distinguiam-searranjos de gosto burguês, uma volta de ruazita estreita como umafita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de um gesso. Noutros

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recantos, aquele jardim de gente rica, exposto às vistas, tinha reto-ques pretensiosos de estufa rara, aloés e cactos, braçosaguarda-solados de araucárias erguendo-se de entre as agulhasnegras dos pinheiros bravos, lâminas de palmeira, com o seu artriste de planta exilada, roçando a rama leve e perfumada dasolaias floridas de cor-de-rosa. A espaços, com uma graça discreta,branquejava um grande pé de margaridas; ou em torno de umarosa, solitária na sua haste, palpitavam borboletas aos pares.

— Que pena que isto não pertença a um artista! — murmurou omaestro. — Só um artista saberia amar estas flores, estas árvores,estes rumores...

Carlos sorriu. Os artistas, dizia ele, só amam na Natureza osefeitos de linha e cor; para se interessar pelo bem-estar de umatúlipa, para cuidar de que um craveiro não sofra sede, para sentirmágoa de que a geada tenha queimado os primeiros rebentões dasacácias — para isso só o burguês, o burguês que todas as manhãsdesce ao seu quintal com um chapéu velho e um regador, e vê nasárvores e nas plantas uma outra família muda, por que ele é tam-bém responsável...

Cruges, que escutara distraidamente, exclamou:— Diabo! É necessário que não me esqueçam as queijadas!Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta

desembocou a trote do lado de Seteais. Carlos ergueu-se logo, certode que era ela, e que ele ia ver os seus belos olhos brilhar e fulgircomo duas estrelas. A caleche passou, levando um ancião de barbasde patriarca, e uma velha inglesa com o regaço cheio de flores e ovéu azul flutuando ao ar. E logo atrás, quase no pó que as rodastinham erguido, apareceu, caminhando pensativamente, de mãosatrás das costas, um homem alto todo de preto, com um grandechapéu panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os lon-gos bigodes românticos, que gritou:

— Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braços

abertos, no meio da estrada. Depois, com a mesma efusão ruidosa,apertou Carlos contra o coração, beijou o Cruges na face — porqueconhecia Cruges desde pequeno, Cruges era para ele como umfilho. Caramba! Eis aí uma surpresa que ele não trocava pelo títulode duque! Ora o alegrão de os ver ali! Como diabo tinham elesvindo ali parar?

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E não esperou a resposta, contou ele logo a sua história. Tiveraum dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e oMelo, o bom Melo, recomendara-lhe mudança de ares. Ora ele, bonsares, só compreendia os de Sintra: porque ali não eram só os pul-mões que lhe respiravam bem, mas também o coração, rapazes!...De sorte que viera na véspera, no ónibus.

— E onde estás tu, Alencar? — perguntou logo Carlos.— Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a

minha velha Lawrence. Coitada! Está bem velha, mas para mim ésempre uma amiga, é quase uma irmã!... E vocês, que diabo? Paraonde vão vocês com essas flores nas lapelas?

— A Seteais... Vou mostrar Seteais ao maestro.Então também ele voltava a Seteais! Não tinha nada que fazer

senão sorver bom ar, e cismar... Toda a manhã andara ali, vaga-mente, pendurando sonhos dos ramos das árvores. Mas agora já osnão largava; era mesmo um dever ir ele próprio fazer ao maestro ashonras de Seteais...

— Que aquilo é sítio muito meu, filhos! Não há ali árvore queme não conheça... Eu não vos quero começar já a impingir versos;mas enfim, vocês lembram-se de uma coisa que eu fiz a Seteais e deque por aí se gostou...

Quantos luares eu lá vi?Que doces manhãs d’Abril?E os ais que soltei aliNão foram sete mas mil!

Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão para conhecerSeteais...

O poeta lançou no ar um vago suspiro, e durante um instantecaminharam todos três calados.

— Diz-me uma coisa, Alencar — perguntou Carlos baixo,parando, e tocando no braço do poeta. — O Dâmaso está naLawrence?

Não, que ele o tivesse visto. Verdade seja que na véspera, ape-nas chegara, fora-se deitar, fatigado; e nessa manhã almoçara sócom dois rapazes ingleses. O único animal que avistara fora umlindo cãozinho de luxo, ladrando no corredor...

— E vocês onde estão?

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— No Nunes.Então o poeta, parando de novo, contemplando Carlos com sim-

patia:— Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!... Quan-

tas vezes eu tenho dito àquele diabo que se metesse no ónibus,viesse passar dois dias a Sintra. Mas ninguém o tira de martelar opiano. E olha tu que mesmo para a música, para compor, paraentender um Mozart, um Chopin, é necessário ter visto isto, escu-tado este rumor, esta melodia da ramagem...

Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhavaadiante, enlevado:

— Tem muito talento, tem muita ideia melódica!... Olha queandei com aquilo às cabritas... E a mãe, menino, foi muitíssimo boamulher.

— Vejam vocês isto! — gritou Cruges, que parara,esperando-os. — Isto é sublime.

Era apenas um bocadito de estrada, apertada entre dois velhosmuros, cobertos de hera, assombreada por grandes árvores entrela-çadas que lhe faziam um toldo de folhagem aberto à luz como umarenda: no chão tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silên-cio, uma água que se não via ia fugindo e cantando.

— Se tu queres sublime, Cruges — exclamou Alencar — , entãotens de subir à serra. Aí tens o espaço, tens a nuvem, tens a arte...

— Não sei, talvez goste mais disto — murmurou o maestro.A sua natureza de tímido preferiria, decerto, estes humildes

recantos, feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaçode muro musgoso, lugares de quietação e de sombra, onde se ani-nha com um conforto maior o cismar dos indolentes...

— De resto, filho — continuou Alencar — , tudo em Sintra édivino. Não há cantinho que não seja um poema... Olha, ali tens tu,por exemplo, aquela linda florinha azul.. . E, ternamente,apanhou-a.

— Vamos andando, vamos andando — murmurou Carlos impa-ciente, e agora, desde que o poeta falara do cãozinho de luxo, maiscerto de que ela estava na Lawrence, e que a ia brevemente encontrar.

Mas, ao chegar a Seteais, Cruges teve uma desilusão diantedaquele vasto terreiro coberto de erva, com o palacete ao fundo,enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobreo arco, em pleno céu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a

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ideia, de pequeno, que Seteais era um montão pitoresco de rochedos,dominando a profundidade de um vale; e a isto misturava-se vaga-mente uma recordação de luar e de guitarras... Mas aquilo que eleali via era um desapontamento.

— A vida é feita de desapontamentos — disse Carlos. — Andapara diante!

E apressou o passo através do terreiro, enquanto o maestro,cada vez mais animado, lhe gritava a chalaça do dia:

— E Vossa Excelência deve sabê-lo, Sr. Maia, porque tem expe-riência de espanholas!...

Alencar, que se demorara atrás a acender o cigarro, estendeu oouvido, curioso, quis saber o que era isso de espanholas. O maestrocontou-lhe o encontro do Nunes e os furores da Concha.

Iam ambos caminhando por uma das alamedas laterais, verde efresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. Oterreiro estava deserto; a erva que o cobria crescia ao abandono,toda estrelada de botões-de-ouro brilhando ao sol e de malmequer-zinhos brancos. Nenhuma folha se movia: através da ramarialigeira o Sol atirava molhos de raios de ouro. O azul pareciarecuado a uma distância infinita, repassado do silêncio luminoso; esó se ouvia, às vezes, monótona e dormente, a voz de um cuco noscastanheiros.

Toda aquela vivenda, com a sua grade enferrujada sobre aestrada, os seus florões de pedra roídos da chuva, o pesado brasãorococó, as janelas cheias de teias de aranha, as telhas todas que-bradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente naquelaverde solidão — amuada com a vida, desde que dali tinham desapa-recido as últimas graças do tricorne e do espadim, e os derradeirosvestidos de anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Crugesia descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiozinho, com a chávenade café na mão, a ir pedir perdão à Concha; e a cada momento opoeta, com o seu grande chapéu panamá, se agachava a colher flo-rinhas silvestres.

Quando passaram o arco, encontraram Carlos sentado num dosbancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O pala-cete deitava sobre aquele bocado de terraço a sombra dos seusmuros tristes; do vale subia uma frescura e um grande ar; e algu-res, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então o poeta,sentando-se ao lado do seu amigo, falou com nojo do Eusebiozinho.

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— Aí está uma torpeza que ele nunca cometera, trazer meretrizes aSintra! Nem a Sintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos aSintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religião daquelasárvores e o amor daquelas sombras...

— E esse Palma — acrescentou ele — é um traste! Euconheço-o; ele teve uma espécie de jornal, e já lhe dei muita bofe-tada na Rua do Alecrim. Foi uma história curiosa... Ora eu taconto, Carlos... Aquele canalha! quando me lembro!... Aquela vilbolinha de matéria pútrida!... Aquele chouricinho de pus!

Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes, já exci-tado pela lembrança daquela velha desordem, vergastando o Palmacom nomes ferozes, todo numa dessas fervuras de sangue que erama sua desgraça.

Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grandeplanície de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem traba-lhada, repartida em quadros verde-claros e verde-escuros, que lhefaziam lembrar um pano feito de remendos assim que ele tinha namesa do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelomeio: aqui e além, numa massa de arvoredo, branquejava umcasal: e a cada passo, naquele solo onde as águas abundam, umafila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo ereluzindo entre as ervas. O mar ficava ao fundo, numa linha unida,esbatida na tenuidade difusa da bruma azulada: e por cima arre-dondava-se um grande azul lustroso como um belo esmalte, tendoapenas, lá no alto, um farrapozinho de névoa, que ficara ali esque-cido, e que dormia enovelado e suspenso na luz...

— Tive nojo! — exclamava o Alencar, rematando fogosamente asua história. — Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pés,cruzei os braços e disse-lhe: «Aí tem você a bengala, seu cobarde, amim bastam-me as mãos!».

— Que diabo, não me hão-de esquecer as queijadas! — murmu-rou Cruges, para si mesmo, afastando-se do parapeito.

Carlos erguera-se também, olhava o relógio. Mas antes de dei-xar Seteais, Cruges quis explorar o outro terraço ao lado: e, apenassubira os dois velhos degraus de pedra, soltou de lá um grito ale-gre:

— Bem dizia eu! cá estão eles... E vocês a dizer que não!Foram-no encontrar triunfante, diante de um montão de pene-

dos, polidos pelo uso, já com um vago feitio de assentos deixados ali

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outrora, poeticamente, para dar ao terraço uma graça agreste deselva brava. Então, não dizia ele? Bem dizia ele que em Seteaishavia penedos!

— Se eu me lembrava perfeitamente! Penedo da Saudade, nãoé que se chama, Alencar?

Mas o poeta não respondeu. Diante daquelas pedras cruzara osbraços, sorria dolorosamente; e imóvel, sombrio no seu fato negro,com o panamá carregado para a testa, envolveu todo aquelerecanto num olhar lento e triste.

Depois, no silêncio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:— Vocês lembram-se, rapazes, nas Flores e Martírios, de uma

das coisas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 deAgosto? Não se lembram talvez... Pois eu vo-la digo, rapazes!

Maquinalmente tirara do bolso um lenço branco. E com ele flu-tuante na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando dooutro lado o Cruges, baixou a voz como numa confidência sagrada,recitou, com um ardor surdo, mordendo as sílabas, trémulo, numapaixão efémera de nervoso:

Vieste! Cingi-te ao peito.Em redor, que noite escura!Não tinha rendas o leito,Não tinha lavores na barraQue era só a rocha dura...Muito ao longe uma guitarraGemia vagos harpejos...(Vê tu que não me esqueceu...)E a rocha dura aqueceuAo calor dos nossos beijos!

Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancasbatidas do Sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:

— Foi ali.E afastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéu panamá, com

o lenço branco na mão. Cruges, que aqueles romantismos impres-sionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sítio histó-rico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do ter-raço — o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilhoda ceroula.

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Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava osmaus dentes num sorriso amigo, e exclamou, apontando para oarco:

— Agora, Cruges, filho, repara tu naquela tela sublime.O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma

pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadromaravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustra-ção de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiroplano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botõesamarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com heranos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagemreluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bos-que assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigo-rosamente num relevo nítido sobre o fundo do céu azul-claro, ocume airoso da serra, toda cor de violeta-escura, coroada pelo Palá-cio da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque som-brio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhandoao Sol como se fossem feitas de ouro...

Cruges achou aquele quadro digno de Gustavo Doré. Alencarteve uma bela frase sobre a imaginação dos Árabes. Carlos, impa-ciente, foi-os apressando para diante.

Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir àPena. Alencar, por si, ia também com prazer. A Pena para ele eraoutro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemitério...Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ela na Pena? Eolhava a estrada, olhava as árvores, como se pudesse adivinharpelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinhamtomado os passos que ele seguia... Por fim teve uma ideia.

— Vamos indo primeiro à Lawrence. E depois, se quisermos ir àPena, arranjam-se lá os burros...

E nem mesmo quis escutar Alencar, que tivera também umaideia, falava de Colares, de uma visita ao seu amigo Carvalhosa;acelerou o passo para a Lawrence, enquanto o poeta tornava aarranjar o atilho da ceroula, e o maestro, num entusiasmo bucólico,ornava o chapéu de folhas de hera.

Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na boca,não tendo podido apoderar-se dos ingleses, preguiçavam ao Sol.

— Vocês sabem — perguntou-lhes Carlos — se uma família,que está aqui no hotel, foi para a Pena?

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Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarre-tando-se:

— Sim, senhor, foram para lá há bocado, e aqui está o burrinhotambém para Vossa Excelência, meu amo!

Mas o outro, mais honesto, negou. Não, senhor, a gente que forapara a Pena estava no Nunes...

— A família que o senhor diz foi agora ali para baixo, para opalácio...

— Uma senhora alta?— Sim, senhor.— Com um sujeito de barba preta?— Sim, senhor.— E uma cadelinha?— Sim, senhor.— Tu conheces o Sr. Dâmaso Salcede?— Não, senhor... É o que tira retratos?— Não, não tira retratos... Tomai lá.Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos

outros, declarando que realmente era tarde para subirem à Pena.— Agora o que tu deves ver, Cruges, é o palácio. Isso é que tem

originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?— Eu vos digo, filhos — começou o autor de Elvira — historica-

mente falando...— E eu tenho de comprar as queijadas — murmurou Cruges.— Justamente! — exclamou Carlos. — Tens ainda as queijadas;

é necessário não perder tempo; a caminho!Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palácio, em

quatro largas passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo jáo portão, passando rente da sentinela, a famosa família hospedadana Lawrence e a sua cadelinha de luxo. Era, com efeito, um sujeitode barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado dele, umamatrona enorme, com um mantelete de seda, coisas de oiro pelopescoço e pelo peito, e o cãozinho felpudo ao colo. Vinham ambosrosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e emespanhol.

Carlos ficou a olhar para aquele par com a melancolia de quemcontempla os pedaços de um belo mármore quebrado. Não esperoumais pelos outros, nem os quis encontrar. Correu à Lawrence porum caminho diferente, ávido de uma certeza: — e aí, o criado que

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lhe apareceu disse-lhe que o Sr. Salcede e os senhores CastroGomes tinham partido na véspera para Mafra...

— E de lá?...O criado ouvira dizer ao Sr. Dâmaso que de lá voltavam a Lis-

boa.— Bem — disse Carlos atirando o chapéu para cima da mesa — ,

traga-me você um cálice de conhaque, e uma pouca de água fresca.Sintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e

triste. Não teve ânimo de voltar ao palácio, nem quis sair maisdali; e arrancando as luvas, passeando em volta da mesa de jan-tar, onde murchavam os ramos da véspera, sentia um desejodesesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, inva-dir-lhe o quarto, vê-la, saciar os seus olhos nela!... Porque o que oirritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa,onde toda a gente se acotovela, aquela mulher que ele procuravaansiosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um cão per-dido: fizera peregrinações ridículas de teatro em teatro: numamanhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a ver.Agora sabia-a em Sintra, voava a Sintra, e não a via também. Elacruzava-o uma tarde, bela como uma deusa tansviada no Aterro,deixava-lhe cair na alma por acaso um dos seus olhares negros, edesaparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontadoao Céu, de ora em diante invisível e sobrenatural: e ele ali ficava,com aquele olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orien-tando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades,toda a sua vida interior, para uma adorável desconhecida, dequem ele nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha umacadelinha escocesa... Assim acontece com as estrelas de acaso!Elas não são de uma essência diferente, nem contêm mais luz queas outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e seesvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbra-mento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Elenão a tornara a ver. Outros viam-na. O Taveira vira-a. No Grémio,ouvira um alferes de lanceiros falar dela, perguntar quem era,porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos osdias. Ele não a via, e não sossegava...

O criado trouxe o conhaque. Então Carlos, preparando vagaro-samente o seu refresco, conversou com ele, falou um momento dosdois rapazes ingleses, depois da espanhola obesa... Enfim, domi-

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nando uma timidez, quase corando, fez, através de grandes silên-cios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe pareciauma aquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia ocriado: às sete horas tinha tomado banho, estava vestida e saía só.O Sr. Castro Gomes, que dormia num quarto separado, nunca semexia antes do meio-dia; e, à noite, ficava uma eternidade à mesa,fumando cigarettes e molhando os beiços em copinhos de conhaquee água. Ele e o Sr. Dâmaso jogavam o dominó. A senhora tinhamontões de flores no quarto; e tencionavam ficar até domingo, masfora ela que apressara a partida

— Ah! — disse Carlos depois de um silêncio — foi a senhoraque apressou a partida?...

— Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado emLisboa... Vossa Excelência toma mais conhaque?

Com um gesto Carlos recusou, e veio sentar-se no terraço. Atarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem,cheia de claridade dourada, numa larga serenidade que penetravaa alma. Ele tê-la-ia pois encontrado, ali mesmo naquele terraço,vendo também cair a tarde — se ela não estivesse impaciente portornar a ver a filha, algum bebezinho loiro que ficara só com a ama.Assim, a brilhante deusa era também uma boa mamã; e istodava-lhe um encanto mais profundo, era assim que ele gostavamais dela, com este terno estremecimento humano nas suas belasformas de mármore. Agora, já ela estava em Lisboa; e imaginava-anas rendas do seu peignoir, com o cabelo enrolado à pressa, grandee branca, erguendo ao ar o bebé nos seus esplêndidos braços deJuno, e falando-lhe com um riso de oiro. Achava-a assim adorável,todo o seu coração fugia para ela... Ah! poder ter o direito de estarjunto dela, nessas horas de intimidade, bem junto, sentindo oaroma da sua pele, e sorrindo também a um bebé. E, pouco a pouco,foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: umsopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violenta-mente, levava juntos o seu destino e o dela; depois, que divina exis-tência, escondida num ninho de flores e de Sol, longe, nalgum cantoda Itália... E toda a sorte de ideias de amor, de devoção absoluta,de sacrifício, invadiam-no deliciosamente — enquanto os seus olhosse esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solenidadedaquele belo fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosacor de ouro pálido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco

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indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-setodo de uma tinta loira, delicada e dormente. Todos os rumorestomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno semovia como na imobilidade de um êxtase. E as casas, voltadas parao poente, com uma ou outra janela acesa em brasa, os cimos redon-dos das árvores apinhadas, descendo a serra numa espessa deban-dada para o vale, tudo parecera ficar de repente parado num reco-lhimento melancólico e grave, olhando a partida do Sol, que mergu-lhava lentamente no mar...

— Ó Carlos, tu estás aí?Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por

ele. Carlos apareceu à varanda do terraço.— Que diabo estás tu aí a fazer, rapaz? — exclamou Alencar,

agitando alegremente o seu panamá. — Nós lá estivemos à espera,no covil real... Fomos ao Nunes... Íamos agora procurar-te à cadeia!

E o poeta riu largamente da sua pilhéria — enquanto Cruges,ao lado, de mãos atrás das costas, e a face erguida para o terraço,bocejava desconsoladamente.

— Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de conhaque,que estava com sede.

Conhaque? Eis aí o mimo por que o pobre Alencar estiveraansiando toda a tarde, desde Seteais. E galgou logo as escadas doterraço — depois de ter gritado para dentro, para a sua velhaLawrence, que lhe mandasse acima meia da fina.

— Viste o Paço, hem, Cruges? — perguntou Carlos ao maestro,quando ele apareceu, arrastando os passos. — Então, parece-meque o que nos resta a fazer é jantar, e abalar...

Cruges concordou. Voltava do palácio com um ar murcho, fati-gado daquele vasto casarão histórico, da voz monótona do ciceronemostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. aRainha, «melhores que as de Mafra», o tira-botas de S. A.; e traziade lá uma pouca dessa melancolia que erra, como uma atmosferaprópria, nas residências reais.

E aquela natureza de Sintra, ao escurecer, dizia ele, começavaa entristecê-lo.

Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar oespectáculo torpe do Palma e das damas, mandar vir à porta obreak, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando acarruagem, recolhia também a Lisboa.

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— E, para ser festa completa — exclamou ele, limpando osbigodes do conhaque — enquanto vocês vão ao Nunes pagar aconta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender lá abaixo àcozinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um bacalhau à Alen-car, récipe meu... E vocês verão o que é um bacalhau! Porque, láisso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!

Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontras-sem mais o Eusebiozinho. Mas, apenas puseram os pés nos primei-ros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da súcia. Esta-vam na antessala, já todos reconciliados, a Concha contente — einstalados aos dois cantos de uma mesa, com cartas. O Palma,munido de uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha para oEusébio; e as duas espanholas, de cigarro na boca, jogavam langui-damente a bisca.

O viúvo, enfiado, perdia. No monte, que começara miseravel-mente com duas coroas, já luzia ouro; e Palma triunfava, chala-ceando, dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, faziade cavalheiro, falava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessário,até de madrugada.

— Então Vossas Excelências não se tentam? Isto é para passaro tempo... Em Sintra tudo serve... Valete! Perdeu você outro micono rei. Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!

Carlos passara, sem responder, seguido pelo criado — nomomento em que Eusebiozinho, furioso, já desconfiado, quis verifi-car, com as lunetas negras sobre o baralho, se lá estavam todos osreis.

Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entreamigos, que diabo, tudo se admitia! A sua espanhola, essa sim,escandalizou-se, defendendo a honra do seu homem: então Palmitahavia de ter empalmado o rei? Mas a Concha zelava o dinheiro doseu viúvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis esta-vam lá.

Palma atirou um cálice de genebra às goelas, e recomeçou abaralhar majestosamente.

— Então Vossa Excelência não se tenta? — repetia ele para omaestro.

Cruges, com efeito, parara, roçando-se pela mesa, com o olhonas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheironas algibeiras. Subitamente um ás decidiu-o. Com a mão nervosa,

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escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e deporta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criadoque descia as malas, o maestro estava em pleno vício, com a libraentalada, os olhos acesos, o ar esguedelhado.

— Então tu?... — exclamou Carlos com severidade.— Já desço — rosnou o maestro.E, à pressa, foi à paz da libra, num terno contra o rei. Cartada

de cólicas, como disse o Palma: e foi com emoção que ele começou apuxar as cartas, espremendo-as uma a uma, num vagar mortal. Aaparição de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas umduque, Eusebiozinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspi-rinho de alívio; e, escondendo com ambas as mãos o baralho,erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:

— Então, sempre continua toda a libra?...— Toda.Palma teve outro suspiro, de ansiedade; e, mais pálido, voltou

bruscamente as cartas.— Rei! — gritou ele, empolgando o ouro.Era o rei de paus, a espanhola bateu as palmas, o maestro aba-

lou furioso.Na Lawrence o jantar prolongou-se até às oito horas, com luzes;

— e o Alencar falou sempre. Tinha esquecido nesse dia as desilu-sões da vida, todos os rancores literários, estava numa veia exce-lente; e foram histórias dos velhos tempos de Sintra, recordaçõesda sua famosa ida a Paris, coisas picantes de mulheres, bocados dacrónica íntima da Regeneração... Tudo isto com estridências de voz,e filhos isto! e rapazes aquilo! e gestos que faziam oscilar as cha-mas das velas, e grandes copos de Colares emborcados de um trago.Do outro lado da mesa, os dois ingleses, correctos nos seus fraquesnegros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um arembaraçado a que se misturava desdém, para esta desordenadaexuberância de meridional.

A aparição do bacalhau foi um triunfo: — e a satisfação dopoeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que aliestivesse o Ega!

— Sempre queria que ele provasse este bacalhau! Já que menão aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto éum bacalhau de artista em toda a parte!... Noutro dia fi-lo lá emcasa dos meus Cohens; e a Raquel, coitadinha, veio para mim e

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abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinhola são irmãs! Vejamvocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pai Dumas não é umpoeta... E então D’Artagnan? D’Artagnan é um poema... é a faísca,é a fantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arrobo! Então, poço, jávêem vocês, e é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia destes jantarcomigo, e há-de vir o Ega, hei-de-vos arranjar umas perdizes àespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... Eu,palavra, gosto do Ega! Lá essas coisas de realismo e romantismo,histórias... Um lírio é tão natural como um percevejo... Uns prefe-rem fedor de sarjeta; perfeitamente, destape-se o cano público... Euprefiro pós de marechala num seio branco; a mim o seio, e, lá vai àvossa. O que se quer é coração. E o Ega tem-no. E tem faísca, temrasgo, tem estilo... Pois, assim é que eles se querem, e, lá vai àsaúde do Ega!

Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou maisbaixo:

— E, se aqueles ingleses continuam a embasbacar para mim,vai-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que há-de aGrã-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta português!...

Mas não houve vendaval, a Grã-Bretanha ficou sem saber o queé um poeta português, e o jantar terminou num café tranquilo.Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofadado break.

Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padrede aldeia, levava na mão um ramo de rosas: e agora guardara o seupanamá na maleta, trazia um boné de lontra. O maestro, pesado dojantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break,mudo, enterrado na gola do paletó, com a manta da mamã sobre osjoelhos. Partiram. Sintra ficava dormindo ao luar.

Algum tempo o break rodou em silêncio, na beleza da noite. Aespaços, a estrada aparecia banhada de uma claridade quente quefaiscava. Fachadas de casas, caladas e pálidas, surgiam, de entre asárvores, com um ar de melancolia romântica. Murmúrios de águasperdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estavacheio de aroma. Alencar acendera o cachimbo, e olhava a Lua.

Mas, quando passaram as casas de São Pedro, e entraram naestrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambémpara a Lua, e murmurou de entre os seus agasalhos:

— Ó Alencar, recita para aí alguma coisa...

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O poeta condescendeu logo — apesar de um dos criados ir ali aolado deles, dentro do break. Mas, que havia ele de recitar, sob oencanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado dianteda Lua! Enfim, ia dizer-lhe uma história bem verdadeira e bemtriste... Veio sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capo-tão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algumtempo os bigodes, começou, num tom familiar e simples:

Era o jardim de uma vivenda antigaSem arrebiques d’arte ou flores de luxo;Ruas singelas d’alfazema e buxo,Cravos, roseiras...

— Com mil raios! — exclamou de repente o Cruges, saltando dedentro da manta, com um berro que emudeceu o poeta, fez voltarCarlos na almofada, assustou o trintanário.

O break parara, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silêncioda charneca, sob a paz do luar, Cruges, sucumbido, exclamou:

— Esqueceram-me as queijadas!

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O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim dessa semanatão luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos,abrindo cedo a janela sobre o jardim, vira um céu baixo quepesava como se fosse feito de algodão-em-rama enxovalhado: oarvoredo tinha um tom arrepiado e húmido; ao longe o rio estavaturvo, e no ar mole errava um hálito morno de sudoeste. Decidiranão sair — e desde as nove horas, sentado à banca, embrulhado noseu vasto robe-de-chambre de veludo azul, que lhe dava o belo arde um príncipe artista da Renascença, tentava trabalhar: mas,apesar de duas chávenas de café, de cigarettes sem fim, o cérebro,como o céu fora, conservava-se-lhe nessa manhã afogado emnévoas. Tinha destes dias terríveis; julgava-se então «uma besta»;e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, quelhe juncavam o tapete aos pés, davam-lhe a sensação de ser todoele uma ruína.

Foi realmente um alívio, uma trégua naquela luta com asideias rebeldes, quando Baptista anunciou Vilaça, que lhe vinhafalar de uma venda de montados no Alentejo, pertencentes à sualegítima.

— Negociozinho — disse o administrador, pousando o chapéu aum canto da mesa e dentro um rolo de papéis — que lhe mete naalgibeira para cima de dois contos de réis... E não é mau presente,logo assim pela manhã…

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Capítulo IX

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Carlos espreguiçou-se, cruzando fortemente as mãos por trásda cabeça:

— Pois olhe, Vilaça, preciso bem de dois contos de réis, maspreferia que me trouxesse aí alguma lucidez de espírito... Estouhoje de uma estupidez!

Vilaça considerou-o um momento, com malícia.— Quer Vossa Excelência dizer que antes queria escrever uma

bonita página do que receber assim perto de quinhentas libras? Sãogostos, meu senhor, são gostos... Ele é bom sair-se a gente um Her-culano ou um Garrett, mas dois contos de réis, são dois contos deréis... Olhe que sempre valem um folhetim. Enfim, o negócio é este.

Explicou-lho, sem se sentar, apressado, enquanto Carlos, debraços cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete depeito que Vilaça trazia (um macacão de coral comendo uma pêra deouro) e distinguia vagamente, através da sua neblina mental, quese tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando Vilaçalhe apresentou os papéis, assinou-os com um ar moribundo.

— Então não fica para almoçar, Vilaça? — disse ele, vendo oprocurador meter o seu rolo de papéis debaixo do braço.

— Muito agradecido a Vossa Excelência. Tenho de me encontrarcom o nosso amigo Eusébio... Vamos ao Ministério do Reino, eletem lá uma pretensão... Quer a Comenda da Conceição... Mas esteGoverno está desgostoso com ele.

— Ah! — murmurou Carlos com respeito e através de umbocejo. — O Governo não está contente com o Eusebiozinho?

— Não se portou bem nas eleições. Ainda há dias, o Ministro doReino me dizia, em confidência: «O Eusébio é rapaz de mereci-mento, mas atravessado...». Vossa Excelência noutro dia, disse-meo Cruges, encontrou-o em Sintra.

— Sim, lá estava a fazer jus à Comenda da Conceição. Quando Vilaça saiu, Carlos retomou lentamente a pena, e ficou

um momento, com os olhos na página meio escrita coçando a barba,desanimado e estéril. Mas quase em seguida apareceu Afonso daMaia, ainda de chapéu, à volta do seu passeio matinal no bairro, ecom uma carta na mão, que era para Carlos, e que ele achara noescritório misturada ao seu correio. Além disso, esperava encontrarali o Vilaça.

— Esteve aí, mas deitou a correr, para ir arranjar uma comendapara o Eusebiozinho — disse Carlos, abrindo a carta.

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E teve uma surpresa, vendo no papel — que cheirava a verbenacomo a condessa de Gouvarinho — um convite do conde para jantarno sábado seguinte, feito em termos de simpatia tão escolhidos queeram quase poéticos; tinha mesmo uma frase sobre a amizade,falava dos átomos em gancho de Descartes. Carlos desatou a rir,contou ao avô que era um par do Reino que o convidava a jantar,citando Descartes...

— São capazes de tudo — murmurou o velho.E dando um olhar risonho aos manuscritos espalhados sobre a

banca:— Então, aqui trabalha-se, hem?Carlos encolheu os ombros:— Se é que se pode chamar a isto trabalhar... Olhe aí para o

chão. Veja esses destroços... Enquanto se trata de tomar notas, coli-gir documentos, reunir materiais, bem, lá vou indo. Mas quando setrata de pôr as ideias, a observação, numa forma de gosto e desimetria, dar-lhe cor, dar-lhe relevo, então... Então foi-se!

— Preocupação peninsular, filho, — disse Afonso, sentando-seao pé da mesa, com o seu chapéu desabado na mão. — Desemba-raça-te dela. É o que eu dizia noutro dia ao Craft, e ele concor-dava... O português nunca pode ser homem de ideias, por causa dapaixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho,sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-laincompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgra-çado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, massalve-se a bela frase.

— Questão de temperamento — disse Carlos. — Há seres infe-riores, para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importanteque a exactidão de um sistema... Eu sou desses monstros.

— Diabo! então és um retórico...— Quem o não é? E resta saber por fim se o estilo não é uma

disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes anecessidade de uma rima que produz a originalidade de uma ima-gem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadência deuma frase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inespera-dos de uma ideia... Viva a bela frase!

— O Sr. Ega — anunciou o Baptista, erguendo o reposteiro,quando começava justamente a tocar a sineta do almoço.

— Falai na frase... — disse Afonso, rindo.

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— Hem? Que frase? O quê?... — exclamou Ega, que rompeu peloquarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletólevantada. — Oh! por aqui a esta hora, Sr. Afonso da Maia! Comoestá Vossa Excelência? Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirarde uma atrapalhação... Tu terás por acaso uma espada que me sirva?

E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impa-ciente:

— Sim, homem, uma espada! Não é para me bater, estou empaz com toda a humanidade... É para esta noite, para o fato demáscara.

O Matos, aquele animal, só na véspera lhe dera o costume parao baile: e, qual é o seu horror, ao ver que lhe arranjara, em lugar deuma espada artística, um sabre da Guarda Municipal! Tivera von-tade de lho passar através das entranhas. Correu ao tio Abraão,que só tinha espadins de corte, reles e pelintras como a própriacorte! Lembrara-se do Craft e da sua colecção; vinha de lá, mas aíeram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durinda-nas tremendas dos brutos que conquistaram a Índia... Nada quelhe servisse. Fora então que lhe tinham vindo à ideia as panópliasantigas do Ramalhete.

— Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina,com os copos em concha, de aço rendilhado, forrados de veludoescarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz!

Afonso, tomando logo um interesse paternal por aquela dificul-dade de John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espa-das espanholas...

— Em cima, no corredor? — exclamou Ega, já com a mão noreposteiro.

Inútil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Nãoestavam à vista, arranjadas em panóplia, conservavam-se aindanos caixões em que tinham vindo de Benfica.

— Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou — disse Carlos,erguendo-se com resignação. — Mas olha que elas não têm bainhas.

Ega ficou sucumbido. E foi ainda Afonso que achou uma ideia, osalvou.

— Manda fazer uma simples bainha de veludo negro; issofaz-se numa hora. E manda-lhe coser ao comprido rodelas develudo escarlate...

— Esplêndido! — gritou Ega. — O que é ter gosto!

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E apenas Carlos saiu, trovejou contra o Matos.— Veja Vossa Excelência isto, um sabre da Guarda Municipal!

E é quem faz aí os fatos para todos os teatros! Que idiota!... E étudo assim, isto é um país insensato!...

— Meu bom Ega, tu não queres tornar decerto Portugal inteiro,o Estado, sete milhões de almas, responsáveis por esse comporta-mento do Matos?

— Sim senhor — exclamava o Ega passeando pelo gabinete, comas mãos enterradas nos bolsos do paletó. — Sim senhor, tudo isso seprende. O costumier com um fato do século XIV manda um sabre daGuarda Municipal; por seu lado o ministro, a propósito de impostos,cita as Meditações de Lamartine; e o literato, essa besta suprema...

Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, umafolha do século XVI, de grande têmpera, fina e vibrante, com copostrabalhados como uma renda — e tendo gravado no aço o nomeilustre do espadeiro, Francisco Rui de Toledo.

Embrulhou-a logo num jornal, recusou à pressa o almoço quelhe ofereciam, deu dois vivos shake-hands, atirou o chapéu para anuca, ia abalar, quando a voz de Afonso o deteve:

— Ouve lá, John — dizia o velho alegremente — , isso é umaespada cá da casa, que nunca brilhou sem glória, creio eu... Vêcomo te serves dela!

Ao pé do reposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contrao peito do paletó o ferro, enrolado no Jornal do Comércio:

— Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra.Au revoir!

— Que vida, que mocidade! — murmurou Afonso. — Muito felizé este John!... Pois vai-te arranjando, filho, que já tocou a primeiravez para o almoço.

Carlos ainda se demorou uns instante a reler, com um sorriso, aaparatosa carta do Gouvarinho; e ia enfim chamar o Baptista parase vestir, quando em baixo, à entrada particular, o timbre eléctricocomeçou a vibrar violentamente. Um passo ansioso ressoou na ante-câmara, o Dâmaso apareceu esbaforido, de olho esgazeado, com aface em brasa. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpresade o ver enfim no Ramalhete, exclamou, lançando os braços ao ar:

— Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas daí,que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquela gentebrasileira. Mas, pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

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Carlos erguera-se, pálido:— É ela?— Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos,

veste-te, que a responsabilidade é minha!— É um bebé, não é?— Qual bebé!... É uma pequena crescida, de seis anos... Anda

daí!Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista,

que, com um joelho em terra, apressado também, quase fez saltaros botões da bota. E Dâmaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exa-gerando a sua impaciência, a estalar de importância.

— Sempre a gente se vê em coisas!... Olha que responsabilidadea minha! Vou visitá-los, como costumo às vezes, de manhã... E vai,tinham partido para Queluz.

Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meio vestida:— Mas então?...— Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou

com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dor. A gover-nanta queria um médico inglês, porque não fala senão inglês... Dohotel foram procurar o Smith, que não apareceu... E a pequena amorrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foisorte encontrar-te, caramba!

E acrescentou, dando um olhar ao jardim:— Também, irem a Queluz com um dia destes! Hão-de-se diver-

tir... Estás pronto, hem? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa asluvas, vais muito bem sem luvas!

— O avô que não me espere para almoçar — gritou Carlos aoBaptista, já no fundo da escada.

Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quase o assento.— Era para ela — disse o Dâmaso, pondo-o sobre os joelhos. —

Pela-se por flores.Apenas o coupé partiu, Carlos, cerrando a vidraça, fez a per-

gunta que desde a aparição do Dâmaso lhe faiscava nos lábios.— Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro

Gomes?...O Dâmaso contou logo tudo, triunfante. Fora tudo um equívoco!

Ah!, as explicações do Castro Gomes tinham sido de um gentleman.Senão, quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguém!A ninguém! Mas fora assim: os bilhetes de visita que ele lhe dei-

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xara conservavam a sua adresse do Grand Hôtel de Paris. E o Cas-tro Gomes, supondo que ele vivia lá, obedecendo à indicação, man-dara para lá os seus cartões! Curioso, hem? É de estúpido... E afalta de resposta aos telegramas fora culpa de madame, descuido,naquele momento de aflição, vendo o marido com o braço escava-cado... Ah!, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eramíntimos, estava lá quase sempre...

— Enfim, menino, um romance... Mas isso é para mais tarde!O coupé parara à porta do Hotel Central. Dâmaso saltou, cor-

reu ao guarda-portão.— Mandou o telegrama, António?— Já lá vai...— Tu compreendes — dizia ele a Carlos, galgando as escadas —

mandei-lhes logo um telegrama para o hotel em Queluz. Não estoupara ter mais responsabilidades!..

No corredor, defronte do escritório, um criado passava, com umguardanapo debaixo do braço.

— Como está a menina? — gritou-lhe o Dâmaso.O criado encolheu os ombros, sem compreender.Mas Dâmaso já trepava o outro lanço de escada, soprando, gri-

tando:— Por aqui, Carlos, eu conheço isto a palmos! Número 26!Abriu com estrondo a porta do número 26. Uma criada, que

estava à janela, voltou-se.— Ah! Bonjour, Melanie! — exclamava Dâmaso, no seu extraor-

dinário francês. — A criança estava melhor? L’enfant étaitmeilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur le docteur Maia.

Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que mademoi-selle estava mais sossegada, e ela ia avisar Miss Sara, a gover-nanta. Passou o espanador pelo mármore de uma console, ajeitouos livros sobre a mesa, e saiu, dardejando a Carlos um olhar vivocomo uma faísca.

A sala era espaçosa, com uma mobília de repes azul, e um grandeespelho sobre a console dourada, entre as duas janelas: a mesaestava coberta de jornais, de caixas de charutos, e de romances deCappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficara enrolado um bordado.

— Esta Melanie, esta desleixada — murmurava o Dâmaso,fechando a janela com um esforço sobre o fecho perro. — Deixarassim tudo aberto! Jesus, que gente!

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— Este cavalheiro é bonapartista — disse Carlos, vendo sobre amesa os números do Pays.

— Isso, temos questões terríveis! — exclamou o Dâmaso. — Eeu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas tem pouco fundo.

Melanie voltou, pedindo a monsieur le docteur para entrar uminstante no gabinete de toilette. E aí, depois de apanhar uma toa-lha caída, de dardejar a Carlos outro olharzinho petulante, disseque Miss Sara vinha imediatamente, e retirou-se na ponta dossapatos. Fora, na sala, ergueu-se logo a voz do Dâmaso, falando aMelanie de sa responsabilité, et qu’il était très affligé.

Carlos ficou só, na intimidade daquele gabinete de toilette, quenessa manhã ainda não fora arrumado. Duas malas, pertencentesdecerto a madame, enormes, magníficas, com fecharias e cantos deaço polido, estavam abertas: de uma trasbordava uma cauda rica,de seda forte cor de vinho: e na outra era um delicado alvejar deroupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e baptistes, deum brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre umacadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons,unidas, bordadas, abertas em renda, e tão leves que uma aragemas faria voar; e no chão corria uma fila de sapatinhos de verniz,todos do mesmo estilo, longos, com o tacão baixo, e grandes fitas delaçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda cor-de-rosa,onde decerto viajara a cadelinha.

Mas o olhar de Carlos prendia-se sobretudo a um sofá ondeficara estendido, com as duas mangas abertas, à maneira de doisbraços que se oferecem, o casaco branco de veludo lavrado de Génovacom que ele a vira, a primeira vez, apear-se à porta do hotel. O forro,de cetim branco, não tinha o menor acolchoado, tão perfeito devia sero corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sofá, nessa atitude viva,num desabotoado de seminudez, adiantando em vago relevo o cheiode dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aqueleestofo parecia exalar um calor humano, e punha ali a forma de umcorpo amoroso, desfalecendo num silêncio de alcova. Carlos sentiubater o coração. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de mare-chala, de tanglewood elevava-se de todas aquelas coisas íntimas,passava-lhe pela face como um bafo suave de carícia...

Então desviou os olhos, aproximou-se da janela, que tinha porperspectiva a fachada enxovalhada do Hotel Shneid. Quando sevoltou, Miss Sara estava diante dele, vestida de preto e muito

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corada: era uma pessoa simpática, redondinha e pequena, com umar de rola farta, os olhos sentimentais, e uma testa de virgem sobbandós lisos e loiros. Balbuciava umas palavras em francês, em queCarlos só percebeu docteur.

— Yes, I am the doctor — disse ele.A face da boa inglesa iluminou-se. Oh! era tão bom ter enfim

com quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh! o dou-tor vinha livrá-la de uma responsabilidade!...

Abriu o reposteiro, fê-lo penetrar num quarto com as janelastodas cerradas, onde ele apenas distinguiu a forma de um grandeleito e o brilho de cristais num toucador. Perguntou para quemeram aquelas trevas.

Miss Sara pensara que a escuridão faria bem à menina e aadormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser maislargo e mais arejado.

Carlos fez abrir as janelas: e, quando a grande luz entrou, aoavistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve asua admiração.

— Que linda criança!E ficou um instante a contemplá-la, num enlevo de artista, pen-

sando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sábiacombinação de luz, não igualariam a palidez ebúrnea daquela pelemaravilhosa: e esta adorável brancura era ainda realçada por umcabelo negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus doisolhos grandes, de um azul profundo e líquido, pareciam nesse ins-tante maiores, muito sérios, e muito abertos para ele.

Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com osusto ainda da dor, perdida naquele vasto leito, e apertando nosbraços uma enorme boneca paramentada, de pêlo riçado, de olhostambém azuis e arregalados também.

Carlos tomou-lhe a mãozinha e beijou-lha — perguntando se aboneca também estava doente.

— Cricri também teve dor — respondeu ela muito séria, semtirar dele os seus magníficos olhos. — Eu já não tenho...

Estava com efeito fresca como uma flor, com a linguazinhamuito rosada, e sua vontade já de lanchar.

Carlos tranquilizou Miss Sara. Oh!, ela via bem que mademoi-selle estava boa. O que a assustara fora achar-se ali só, sem amamã, com aquela responsabilidade. Por isso a tinha deitado...

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Oh!, se fosse uma criança inglesa saía com ela para o ar... Masestas meninas estrangeiras, tão débeis, tão delicadas... E o labiozi-nho gordo da inglesa traía um desdém compassivo por estas raçasinferiores e deterioradas.

— Mas a mamã não é doente?Oh! não ! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia

mais fraco...— E, como se chama a minha querida amiga? — perguntou

Carlos, sentado à cabeceira do leito.— Esta é Cricri — disse a pequena, apresentando outra vez a

boneca. — Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que sou Rosicler.— Rosicler? realmente? — disse Carlos sorrindo daquele nome

de livro de cavalaria, rescendente a torneios e a bosques de fadas.Então, como colhendo simplesmente informações de médico,

perguntou a Miss Sara se a menina sentira a mudança de clima.Habitavam ordinariamente Paris, não é verdade?

Sim, viviam em Paris no Inverno, no Parque Monceaux; deVerão iam para uma quinta da Turenne, ao pé mesmo de Tours,onde ficavam até ao começo da caça; e iam sempre passar um mêsa Dieppe. Pelo menos fora assim, nos últimos três anos, desde queela estava com madame.

Enquanto a inglesa falava, Rosa, com a sua boneca nos braços,não cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Ele,de vez em quando, sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãozinha. Osolhos da mãe eram negros: os do pai de azeviche e pequeninos: dequem herdara ela aquelas maravilhosas pupilas de um azul tãorico, líquido e doce?

Mas a sua visita de médico findara, ergueu-se para receitar umcalmante. Enquanto a inglesa preparava muito cuidadosamente opapel e experimentava a pena, ele examinou um momento oquarto. Naquela instalação banal de hotel, certos retoques de umaelegância delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre acómoda e sobre a mesa havia grandes ramos de flores: os travessei-ros e os lençóis não eram do hotel, mas próprios, de bretanha fina,com rendas e largos monogramas bordados a duas cores. Na pol-trona que ela usava, uma casimira de Tarnah disfarçava o medo-nho repes desbotado.

Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a mesaalguns livros de encadernações ricas, romances e poetas ingleses:

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mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular — oManual de Interpretação dos Sonhos. E ao lado, em cima do touca-dor, entre os marfins das escovas, os cristais dos frascos, as tarta-rugas finas, havia outro objecto extravagante, uma enorme caixade pó-de-arroz, toda de prata dourada, com uma magnífica safiraengastada na tampa dentro de um círculo de brilhantes miúdos,uma jóia exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonância audaz deesplendor brutal.

Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler; elaestendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botão de rosa; ele nãoousou beijá-la assim naquele grande leito da mãe, e tocou-lhe ape-nas na testa.

— Quando vens tu outra vez? — perguntou ela agarrando-opela manga do casaco.

— Não é necessário vir outra vez, minha querida. Tu estás boa,e Cricri também.

— Mas eu quero o meu lunch... Diz a Sara que eu posso tomar omeu lunch... E Cricri também.

— Sim, já podeis ambas petiscar alguma coisa...Fez as suas recomendações à mestra, e depois, apertando a

mãozinha da pequena:— E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que és Rosi-

cler...E não quis ser menos amável com a boneca, deu-lhe também

um shake-hands.Isto pareceu cativar Rosa ainda mais. A inglesa, ao lado, sorria,

com duas covinhas na face.Não era necessário, lembrou Carlos, conservar a criança na

cama, nem torturá-la com cautelas exageradas...— Oh, no, sir!E se a dor reaparecesse, ainda que ligeira, mandá-lo logo cha-

mar...— Oh, yes, sir!E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.— Oh, thank you, sir!Ao voltar à sala, o Dâmaso saltou do sofá, onde percorria um

jornal, como uma fera a quem se abre a jaula.— Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida! Que estiveste tu

a fazer? Irra, que estopada!

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Carlos, calçando as luvas, sorria sem responder.— Então, é coisa de cuidado?— Não tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordi-

nário.— Ah!, Rosicler — murmurou Dâmaso, agarrando o chapéu com

mau modo. — Muito ridículo, não é verdade?A criada francesa apareceu outra vez a abrir a porta da sala —

dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Dâmaso reco-mendou-lhe muito que dissesse aos senhores que ele tinha vindologo com o médico; e que havia de voltar à noite para lhes fazeruma surpresa, para saber se tinham gostado de Queluz — si ilsavaient aimé Queluz.

Depois, ao passar diante do escritório, meteu a cabeça, paradizer ao guarda-livros que a menina estava boa, tudo ficava emsossego.

O guarda-livros sorriu e cortejou.— Queres que te vá levar a casa? — perguntou ele a Carlos, em

baixo, abrindo a porta do coupé, ainda com um resto de mauhumor.

Carlos preferia ir a pé.— E acompanha-me tu um bocado, Dâmaso, tu agora não tens

que fazer.Dâmaso hesitou, olhando o céu áspero, as nuvens pesadas de

chuva. Mas Carlos tomara-lhe o braço, arrastava-o, amável e grace-jando.

— Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero oromance... Tu disseste que tinhas um romance. Não te largo. Ésmeu. Venha o romance. Eu sei que os tens sempre bons. Quero oromance!

Pouco a pouco Dâmaso sorria, as bochechas esbraseavam-se-lhede satisfação.

— Vai-se fazendo pela vida — disse ele a estoirar de jactância.— Vocês estiveram em Sintra?...— Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance é outro!Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um sinal ao cocheiro

para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fora de contar o seuromance.

— A coisa é esta... O marido daqui a dias vai para o Brasil, temlá negócios. E ela fica! Fica com as criadas e com a pequena, à

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espera, dois ou três meses. Diz que já andaram até a ver casasmobiladas, que ela não quer estar no hotel... E eu, íntimo, a únicapessoa que ela conhece, metido de dentro... Hem, percebes agora?

— Perfeitamente — disse Carlos, arrojando para longe o cha-ruto, com um gesto nervoso. — E decerto a pobre criatura já estáfascinada! Já lhe deste, como costumas, um beijo ardente entreduas portas! Já a desgraçada se sortiu da caixa de fósforos, paramais tarde quando a abandonares!

Dâmaso enfiava.— Não venhas já tu com o espírito e com a chufazinha... Não

lhe dei beijos que ainda não houve ocasião... Mas, o que te possodizer, é que tenho mulher!

— Pois já era tempo — exclamou Carlos, sem conter um gestobrusco e atirando-lhe as palavras como chicotadas.— Já era tempo!Andavas aí metido com umas criaturas ignóbeis, uma ralé de lupa-nar... Enfim, agora há progresso. E eu gosto que os meus amigosvivam numa ordem de sentimentos decentes... Mas vê lá... Nãosejas o costumado Dâmaso! Não te vás pôr a alardear isso pelo Gré-mio e pela Casa Havanesa!

Desta vez Dâmaso estacou, sufocado, sem compreender aquelemodo, semelhante azedume. E terminou por balbuciar, lívido:

— Tu podes entender muito de medicina e de bricabraque, maslá a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as coisas, não medás lições...

Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E derepente, sentiu-o tão inofensivo, tão insignificante, com o seu arbochechudo e mole, que se envergonhou do surdo despeito que oatravessara, tomou-lhe o braço, teve duas palavras amáveis.

— Dâmaso, tu não me compreendeste. Eu não te quis fazer zan-gar... É para teu bem... O que eu receava é que tu, imprudente,arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bela aventura por umaindiscrição...

E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se aobraço do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que ele tivesseuma amante chique. Não, ele não se tinha zangado, nunca se zan-gava com os íntimos... Compreendia bem que o que Carlos dizia erapor amizade...

— Mas tu, às vezes, tens essa coisa que te pegou o Ega, gostasdo teu bocadinho de espírito...

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E então tranquilizou-o. Não, por imprudência não havia ele de«perder a coisa». Aquilo ia com todas as regras. Lá nissosobrava-lhe experiência. A Melanie, já a tinha na mão; já lhe deraduas libras.

— Isto demais a mais é uma coisa muito séria... Ela conhecemeu tio, é íntima dele desde pequena, tratam-se até por tu...

— Que tio?— Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães, Mr. de Gui-

maran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta...— Ah! sim, o comunista...— Qual comunista, até tem carruagem!Subitamente lembrou-lhe outra coisa, um ponto de toilette em

que queria consultar Carlos.— Amanhã vou jantar com eles, e vão também dois brasileiros,

amigos dele, que chegaram aí há dias, e que partem pelo mesmopaquete... Um é chique, é da Legação do Brasil em Londres. Demaneira que é jantar de cerimónia. O Castro Gomes não me dissenada; mas que te parece, achas que vá de casaca?...

— Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapela.O Dâmaso olhou-o, pensativo.— A mim tinha-me lembrado o hábito de Cristo.— O hábito de Cristo... Sim, põe o hábito de Cristo ao pescoço, e

põe a rosa na botoeira.— Será talvez de mais, Carlos!— Não, fica bem ao teu tipo.Dâmaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no

último aperto de mão a Carlos:— Tu sempre vais à noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato

de selvagem ficou divino. Eu venho mostrá-lo à noite à brasileira...Entro no hotel embrulhado num capote, e apareço-lhes de repentena sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:

Alerta, marinari,Il vento cangia…

Chique a valer!... Good bye!

Às dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fora, anoite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas de água,

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que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinetede toilette, errava no ar tépido um vago aroma de sabonete e debom charuto. Sobre duas cómodas de pau-preto, marchetadas amarfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhosde velas acesas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanhadas paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se já, emcima de uma poltrona, o dominó de cetim negro com um grandelaço azul-claro.

Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse achávena de chá preto que ele estava bebendo aos goles, de pé, emmangas de camisa, e de gravata branca. De repente, o timbre eléc-trico da porta particular retiniu, apressado e violento.

— Talvez outra surpresa — murmurou Carlos. — Hoje é o diadas surpresas...

Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir — quando embaixo vibrou outro repique brutal, de uma impaciência frenética.

Então Carlos, curioso, saiu à antecâmara: e aí, à meia luz daslâmpadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos veludos cor decereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro áspero danoite, aparecer vivamente uma forma esguia e vermelha, com umconfuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas penasnegras de galo ondearam, um manto escarlate, esvoaçou — e o Egaestava diante dele, caracterizado, vestido de Mefistófeles!

Carlos apenas pôde dizer: bravo! — o aspecto do Ega emudeceu-o.Apesar dos toques de caracterização que quase o mascaravam —sobrancelhas de Diabo, guias de bigode ferozmente exageradas — ,sentia-se bem a aflição em que vinha, com os olhos injectados, per-dido, numa terrível palidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-sepelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se, cer-rando o reposteiro.

Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente asmãos, numa voz rouca e de agonia:

— Tu sabes o que me sucedeu, Carlos?Mas não pôde dizer mais, sufocado, tremendo todo; e diante

dele, devorando-o com os olhos, Carlos tremia também, enfiado.— Cheguei a casa dos Cohens — continuou Ega por fim com

esforço e quase balbuciando — mais cedo, como tínhamos combi-nado. Ao entrar na sala, já estavam duas ou três pessoas... Ele vemdireito a mim, e diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já no meio da

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rua... Já no meio da rua, senão, diante desta gente, corro-o a ponta-pés!». E eu, Carlos...

Mas a cólera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momentomordendo os beiços, recalcando os soluços, com os olhos reluzentesde lágrimas.

Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:— Quero-me bater em duelo com aquele malvado, a cinco pas-

sos, meter-lhe uma bala no coração!Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e

batendo furiosamente o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar,como cevando-se na estridência da própria voz:

— Quero matá-lo! Quero matá-lo! Quero matá-lo!Depois, alucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabri-

damente pelo quarto, às patadas, com o manto deitado para trás, aespada mal afivelada batendo-lhe as canelas escarlates.

— Então descobriu tudo — murmurou Carlos.— Está claro que descobriu tudo! — exclamou o Ega, no seu

passear arrebatado, atirando os braços ao ar. — Como descobriu,não sei. Sei isto, já não é pouco. Pôs-me fora!... Hei-de-lhe meteruma bala no corpo! Pela alma de meu pai, hei-de-lhe varar o cora-ção!... Quero que vás logo pela manhã com o Craft... E as condiçõessão estas: à pistola, a quinze passos!

Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chávena de chá.Depois, disse muito simplesmente:

— Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.O outro estacou de repelão, atirando pelos olhos dois relâmpagos

de ira — a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas penas degalo ondeando na gorra, davam uma ferocidade teatral e cómica.

— Não o posso mandar desafiar?— Não.— Então põe-me fora de casa...— Estava no seu direito.— No seu direito!... Diante de toda a gente?...— E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado.

Depois fez um grande gesto:— Não se trata da mulher!... Não se falou da mulher! É uma

questão de honra para mim, quero mandá-lo desafiar, queromatá-lo...

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Carlos encolheu os ombros— Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar ama-

nhã em casa, a ver se ele te manda desafiar a ti...— O quê, o Cohen! — exclamou Ega. — É um cobarde, é um

canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote.Desafiar-me! Olha quem... Tu estás doido...

E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janela,soprando, rilhando os dentes, com repelões para trás ao manto quefazia oscilar, nas serpentinas, as chamas altas das velas.

Carlos não dizia nada, de pé junto da mesa, enchendo lentamentede novo a sua chávena. Tudo aquilo começava a parecer-lhe poucosério, pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furoresmelodramáticos do Ega: — e mesmo não podia deixar de sorrir diantedaquele Mefistófeles esgrouviado, espalhando pelo quarto o brilhoescarlate do seu manto de veludo, e a falar furiosamente de honra ede morte, com sobrancelhas postiças, e escarcela de couro à cinta.

— Vamos falar ao Craft! — exclamou de repente Ega, parando,com esta brusca resolução. — Quero ver o que diz o Craft. Tenho láem baixo uma tipóia, estamos lá num instante!

— Ir agora à quinta, aos Olivais? — disse Carlos, olhando orelógio.

— Se és meu amigo, Carlos!...Carlos imediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se

vestir.Ega, no entanto, ia preparando uma chávena de chá,

deitando-lhe rum, ainda tão nervoso que mal podia segurar a gar-rafa. Depois, com um grande suspiro, acendeu uma cigarette. Car-los entrara na alcova de banho, ao lado, alumiada por um fortejacto de gás que assobiava. Fora, a chuva continuava seguida emonótona, as goteiras escoavam-se no chão mole do jardim.

— Achas que a tipóia aguentará? — perguntou Carlos de dentro.— Aguenta, é o Canhoto — disse Ega. Agora reparara no dominó, fora erguê-lo, examinava-lhe o

cetim rico, o belo laço azul-claro. Depois, tendo encontrado diantede si o grande espelho-psyché, entalou o monóculo no olho, recuouum passo, contemplou-se de alto a baixo — e terminou por pousaruma das mãos na cinta, apoiar a outra galhardamente sobre oscopos da espada.

— Eu não estava mal, ó Carlos, hem?

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— Estavas esplêndido — respondeu o outro de dentro daalcova. — Foi pena estragar-se tudo... Como estava ela?

— Devia estar de Margarida.— E ele?— A besta? De beduíno.E continuou ao espelho, gozando a sua figura esguia, as penas

da gorra, os sapatos bicudos de veludo, e a ponta flamante daespada erguendo o manto por trás, numa prega fidalga.

— Mas então — disse Carlos, aparecendo a enxugar as mãos —tu não fazes ideia do que se passou, o que ele diria à mulher, oescândalo...

— Não faço ideia nenhuma — disse o Ega, agora mais sereno.— Quando entrei na primeira sala estava ele, de beduíno; estavaum outro sujeito de urso, e uma senhora não sei de quê, de tirolesa,creio eu... Ele veio para mim, e disse-me aquilo: «Ponha-se fora!»Não sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu,naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Raquel...Depois é que elas são!

Ergueu as mãos para o céu, murmurou:— É horroroso!Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois numa outra voz,

franzindo a face:— Não sei que diabo aquele Godefroy me deu para colar as

sobrancelhas, que me picam que tem diabo!— Tira-as...Diante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu sem-

blante feroz de Satanás. Mas arrancou-as por fim — e a gorraemplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça. Então Carloslembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse domanto e da espada, se agasalhasse num paletó dele. Ega deu aindaum longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com umprofundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletó eramuito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas man-gas. Depois Carlos meteu-lhe um boné escocês na cabeça. — Eassim arranjado, com as canelas vermelhas de diabo aparecendosob o paletó, a gargantilha escarlate à Carlos IX emergindo dagola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o arlamentável de um Satanás pelintra, agasalhado pela caridade deum gentleman, e usando-lhe o fato velho.

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Baptista alumiou, grave e discreto. Ega, ao passar por ele, mur-murou:

— Isto vai mal, Baptista, isto vai mal...O velho criado teve um movimento triste de ombros, como sig-

nificando que nada no mundo ia bem.Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva.

O Canhoto, ao ouvir falar de uma gorjeta de libra, fez um grandeespalhafato, rompeu às chicotadas; e a velha traquitana lá partiu agalope, a escorrer de água, atroando a calçada.

Por vezes um coupé particular cruzava-os, os casacos deguta-percha dos criados branquejavam à luz das lanternas. Então aideia da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorandotudo, valsando nos braços de outros, ansiosa, à espera dele; a ceiadepois, o champanhe, as coisas brilhantes que ele teria dito —todas essas delícias perdidas se vinham cravar no coração do pobreEga, arrancavam-lhe pragas surdas. Carlos fumava silenciosa-mente, com o pensamento no Hotel Central.

Depois de Santa Apolónia a estrada começou, infindável, desa-brigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra,cada um para o seu canto, arrepiados na friagem que entrava pelasgretas da tipóia. Carlos não cessava de ver o casaco branco develudo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se ofere-ciam...

Passava da uma hora quando chegaram à quinta: a sineta doportão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lúgubrenaquele silêncio escuro de aldeia. Um cão ladrou furiosamente:outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito,antes que um criado, sonolento e resmungão, aparecesse com umalanterna. Uma rua de acácias conduzia à casa: o Ega praguejava,enterrando os seus belos sapatos de veludo no chão lamacento.

Craft, surpreendido com aquele tumulto, veio-lhes ao encontrono corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundosdebaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os emsilêncio para o seu gabinete, onde um bom lume de carvão na cha-miné aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros.Ambos foram direitos ao lume.

Ega rompera logo a contar o seu caso — enquanto Craft, semespanto nem exclamações, ia preparando metodicamente sobre amesa três grogues de conhaque e limão. Carlos, sentado ao pé do

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fogão, aquecia os pés: e Craft veio acabar de ouvir o Ega, acomo-dando-se também na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com oseu cachimbo na boca.

— Enfim — exclamou Ega, de pé, cruzando os braços— que meaconselhas tu agora?

— Tens a fazer só isto — disse Craft — : esperar amanhã emcasa que ele te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza quenão manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.

— Perfeitamente o que eu disse — murmurou Carlos, provandoo seu grogue.

Ega olhou-os a ambos, sucessivamente, petrificado. E logo, numfluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos. Aliestava, naquela crise, a maior da sua vida: e em lugar de encon-trar, nos seus camaradas de infância e de Coimbra, apoio, solida-riedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-no, pareciamquerer enterrá-lo, e expô-lo a irrisões maiores... Ia-se comovendo;os olhos vermelhejavam-lhe sob as lágrimas. E quando algum delesia interrompê-lo, numa palavra de senso, batia o pé, persistia nasua teima — um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sidoinsultado. Não existia outra coisa. Não se tinha falado na mulher.Era ele que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra.Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, euma tirolesa... E enquanto a deixar-se varar por uma bala, não!Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguês, e umagiota... E ele era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeçalivros, ideias, coisas grandes. Devia-se ao país, à civilização!... Sefosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen,ali, como uma besta imunda...

— Mas o que é, é que não tenho amigos! — gritou ele exaustopor fim, caindo para o canto de um sofá.

Craft bebia em silêncio, e aos goles, o seu conhaque.Foi Carlos que se ergueu, sério e áspero. Ele não tinha direito

de duvidar da sua amizade. Quando lhe tinha ela faltado? Mas eranecessário não ser pueril, nem teatral... A questão estava simples-mente em que o Cohen o surpreendera amando-lhe a mulher. Logo,podia matá-lo, podia entregá-lo aos tribunais, podia escavacá-lo nasala a pontapés...

— Ou pior — interrompeu Craft. — Mandar-te a senhora, comeste bilhetinho: «Guarde-a.»

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— Ou isso! — continuava Carlos. — Não, senhor: limita-se aproibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, masindicando que, depois de ter feito isto, não quer nada mais violento,nem mais dramático. Teve, portanto, um acto de moderação. E tuqueres mandá-lo desafiar por isso?...

Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pelasala, sem paletó agora, esguedelhado, parecendo mais fantásticonaquele simples gibão escarlate, com os sapatos de veludo enla-meados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de sedavermelha. E teimava que se não tratava disso! Não, não se tratavada mulher! A questão era outra...

Carlos então zangou-se.— Para que diabo te expulsou ele de casa então? Não dispara-

tes, homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso.E é triste que te custe tanto a perceber o que manda o senso.Traíste um amigo teu... Nada de equívocos! Tu declaravas bem altoa tua amizade pelo Cohen. Traíste-lo, tens de aceitar a lei: se ele tequiser matar, tens de morrer. Se ele não quiser fazer nada, tens deficar de braços cruzados. Se ele te quiser chamar aí por essas ruasum infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te infame...

— Então tenho de engolir a afronta?Os dois amigos explicaram-lhe que aquele fato de Satanás lhe

perturbava a lucidez do critério mundano — e que chegava a sertorpe falar ele, Ega, de afronta.

Ega, outra vez acabrunhado sobre o sofá, conservou ummomento a cabeça enterrada nas mãos.

— Eu já nem sei — disse ele por fim. — Vocês devem terrazão... Eu estou-me a sentir idiota... Então, vamos, que hei-de eufazer?

— Vocês têm a tipóia à espera? — perguntou tranquilamenteCraft.

Carlos mandara desaparelhar, recolher o gado esfalfado.— Excelente! Então, meu caro Ega, tens outra coisa a fazer,

antes de morrer amanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia cear, e pormotivos longos de explicar, há nesta casa um peru frio. E há-dehaver uma garrafa de Borgonha...

Daí a pouco estavam à mesa — naquela bela sala de jantar doCraft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaisrepresentando bocados solitários de arvoredo, as severas faianças

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da Pérsia, e a sua original chaminé flanqueada por duas figurasnegras de núbios com olhos rutilantes de cristal. Carlos, que sedeclarara esfomeado, trinchava já o peru enquanto Craft desarro-lhava, com veneração, duas garrafas do seu velho Chambertin,para reconfortar Mefistófeles.

Mas Mefistófeles, sombrio e com os olhos avermelhados, repeliuo prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar oChambertin.

— Pois eu — dizia Craft empunhando o talher — quando vocêschegaram, estava a ler um artigo interessante sobre a decadênciado protestantismo em Inglaterra...

— Que é aquilo, além, naquela lata? — perguntou Ega, comuma voz moribunda.

Um paté de foie gras. Mefistófeles escolheu com tédio umatrufa.

— Bem bom, este teu Chambertin — suspirou ele.— Anda, come e bebe com franqueza — gritou-lhe Craft. — Não

te romantizes. Tu o que tens é fome. Todas as tuas ideias esta noitese ressentem da debilidade!

Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquela excita-ção do seu traje de Satanás nem jantara, contando cear bem emcasa do outro... Sim, com efeito, tinha apetite! Excelente foie gras...

E daí a pouco devorava: foram talhadas de peru, uma porçãoimensa de língua de Oxford, duas vezes presunto de York, todasaquelas boas coisas inglesas que havia sempre em casa do Craft. Eele só bebeu quase toda uma garrafa de Chambertin.

O escudeiro fora preparar o café: e, no entanto, ia-se discu-tindo, em todas as hipóteses, a atitude provável do Cohen com amulher. Que faria ele? Talvez lhe perdoasse. Ega afirmava que não:era vaidoso, e de rancores longos! Num convento também não afechava, sendo judia...

— Talvez a mate — disse Craft, com toda a seriedade.Ega, já com os olhos brilhantes do Borgonha, declarou tragica-

mente que ele então entrava num mosteiro. Os dois gracejaram,sem piedade. Em que mosteiro queria ele entrar? Nenhum era con-génere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapistamuito lascivo, muito palrador para jesuíta, e para beneditino muitoignorante... Era necessário criar uma ordem para ele! Craft lem-brou a Santa Blague!

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— Vocês não têm coração — exclamou Ega, enchendo outrogrande copo. — Vocês não sabem, eu adorava aquela mulher!

Então largou a falar de Raquel. E teve ali, decerto, os momen-tos melhores de toda aquela paixão — porque pôde, sem escrúpulo,fazer reluzir a sua auréola de amante, banhar-se no mar de leitedas confidências vaidosas. Começou por contar o encontro com elana Foz — enquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem seinstrui, se erguera a abrir uma garrafa de champanhe. Dissedepois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes eplatónicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em queela se assinava Violeta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surri-piado entre duas portas, enquanto o marido correra acima a bus-car-lhe charutos especiais; os rendez-vous no Porto, no Cemitériodo Repouso, as pressões ardentes de mãos à sombra dos ciprestes,e os planos de voluptuosidade combinados entre as lápides fúne-bres...

— Muito curioso! — dizia o Craft.Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café.

Enquanto se enchiam as chávenas, e Craft fora buscar uma caixade charutos, ele acabou a garrafa de champanhe, já pálido, com onariz afilado.

O criado saiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega,com o cálice de conhaque ao lado, recomeçou as confidências, con-tou a volta a Lisboa, a Vila Balzac, as manhãs deliciosas passadaslá com ela no calor de um ninho de amor...

Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enter-rando um momento a cabeça entre os punhos. Depois lá vinhaoutro detalhe, os nomes lúbricos que ela lhe dava, uma certacoberta de seda preta onde ela brilhava como um jaspe... Duaslágrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer!

— Se vocês soubessem que corpo de mulher! — gritou ele derepente. — Oh! meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocêsum peito...

— Não queremos saber — disse Carlos. — Cala-te, tu estásbêbedo, miserável!

Ega ergueu-se, retesando a perna, arrimado de lado à mesa.Bêbedo! Ele? Ora essa!... Era coisa que não podia, era empitei-

rar-se. Tinha feito o possível, bebido tudo, até aguarrás. Nunca!Não podia...

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— Olha, vou pôr aquela garrafa à boca, tu verás... E fico frio,fico impassível. A discutir filosofia... Queres que te diga o quepenso de Darwin? É uma besta... Ora aí tens. Dá cá a garrafa.

Mas Craft recusou-lha; e, um momento, Ega ficou oscilando, aolhar para ele, com a face lívida.

— Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa, ou te meto umabala no coração... Não, nem vales a bala... Vou dar-te uma bolacha!

De repente os olhos cerraram-se-lhe, abateu-se sobre a cadeira,daí sobre o chão, como um fardo.

— Terra! — disse tranquilamente Craft.Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da

Ega. E enquanto o levavam para o quarto dos hóspedes e lhe des-piam o fato de Satanás, não cessou de choramingar, dando beijosbabosos pelas mãos de Carlos, balbuciando:

— Raquelzinha!... Racaquê, minha Raquelzinha! Gostas do teubibichinho?...

Quando Carlos partiu na tipóia para Lisboa, não chovia, umvento frio ia varrendo o céu, já clareava a alvorada.

Ao outro dia, às dez horas, Carlos voltou aos Olivais. AchouCraft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janelas tinham ficadoabertas, um largo raio de Sol dourava o leito; e ele ressonavaainda, no meio daquela auréola, deitado de lado, com os joelhoscontra o estômago, o nariz dentro dos lençóis.

Quando Carlos o sacudiu, o pobre John abriu um olho triste, ebruscamente ergueu-se sobre o cotovelo, espantado para o quarto,para os cortinados de damasco verde, para um retrato de damaempoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. Decertoas memórias da véspera o assaltaram, porque se enterrou parabaixo, com os lençóis até ao queixo; e a sua face esverdeada, enve-lhecida, exprimiu a desconsolação de deixar aqueles fofos colchões,a paz confortável da quinta — para ir afrontar a Lisboa toda asorte de coisas amargas.

— Está frio lá fora? — perguntou ele melancolicamente.— Não, está um dia adorável. Mas levanta-te, depressa! Se lá

for alguém da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...Ega deu imediatamente um pulo na cama, e atordoado, esguede-

lhado, procurava a roupa, com as canelas nuas, tropeçando contraos móveis. Só achou o gibão de Satanás. Chamaram o criado, quetrouxe umas calças de Craft. Ega enfiou-as à pressa: e sem se lavar,

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com a barba por fazer, a gola do paletó erguida, enterrou enfim nacabeça o boné escocês, voltou-se para Carlos, disse com ar trágico:

— Vamos a isso!Craft, que se erguera, foi acompanhá-los ao portão, onde espe-

rava o coupé de Carlos. Na alameda de acácias, tão tenebrosa navéspera sob a chuva, cantavam agora os pássaros. A quinta, frescae lavada, verdejava ao Sol. O grande terra-nova do Craft pulava emroda deles.

— Dói-te a cabeça, Ega? — perguntou Craft.— Não — respondeu o outro, acabando de abotoar o paletó. —

Eu ontem não estava bêbedo... O que estava era fraco.Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e filosó-

fico, esta reflexão:— O que é a gente beber bons vinhos... Estou como se não fosse

nada!Craft recomendou que, se houvesse novidade, lhe mandassem

um telegrama; fechou a portinhola, o coupé partiu.Durante a manhã não veio telegrama à quinta; e quando Craft

apareceu na Vila Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperavaà porta, já escurecera, duas velas ardiam na triste sala verde. Car-los, estirado no sofá, dormitava, com um livro aberto sobre o estô-mago: e Ega passeava de um lado para o outro, todo vestido depreto, pálido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado ali na sala,naquela seca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.

— Que te dizia eu? Não há nada, nem podia haver — murmu-rou Craft.

Mas Ega, agora agitado de ideias negras, temia que ele tivesseassassinado a mulher! O sorriso céptico de Craft indignou-o. Quemconhecia melhor o Cohen do que ele? Sob a aparência burguesa, eraum monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por capricho dederramar sangue...

— Tenho um pressentimento de desgraça — balbuciou ele ater-rado.

E logo nesse momento a campainha retiniu. Ega acordou preci-pitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto decama. Craft ainda lhe disse que, àquela hora, não podiam ser osamigos do Cohen. Mas ele queria estar só na sala: e lá ficou, maispálido, rígido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos crava-dos na porta.

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— Que maçada! — dizia Carlos dentro, tenteando a escuridãodo quarto.

Craft acendeu no toucador um resto de vela. Uma luz tristeespalhou-se, tudo apareceu num desarranjo: no meio do chãoestava caída uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia debanho com água de sabão; e, no centro, o enorme leito, envolto nassuas cortinas de seda vermelha, conservava uma majestade detabernáculo.

Um momento estiveram calados. Craft, metódico, e como quemse instrui, examinava o toucador, onde havia um maço de ganchosde cabelo, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetasmurchas. Depois foi olhar o mármore da cómoda: aí ficara um pratocom ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escrita alápis, toda emendada, decerto trabalho literário do Ega. Ele achavatudo isto muito curioso.

Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e íntimo.Carlos, escutando, julgou sentir uma fala abafada de mulher...Impaciente, foi à cozinha. A criada estava sentada à mesa, com amão metida pelos cabelos, sem fazer nada, a olhar para a luz: opajem, espaparrado numa cadeira, chupava o seu cigarro.

— Quem foi que entrou? — perguntou Carlos.— Foi a criada do Sr. Cohen — disse o garoto, escondendo o

cigarro atrás das costas.Carlos voltou ao quarto, anunciando:— É a confidente. As coisas terminam amavelmente.— E como queria você que terminassem? — disse Craft. — O

Cohen tem o seu banco, os seus negócios, as suas letras a vencer, oseu crédito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de coisas a quenão convém um escândalo... É isto que calma os maridos. Alémdisso, já se satisfez, já lhe ofereceu pontapés...

Nesse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violenta-mente a porta.

— Não há nada — exclamou ele. — Deu-lhe uma coça, e vãoamanhã para Inglaterra!

Carlos olhou para o Craft — que movia a cabeça, como vendotodas as suas previsões realizadas, e aprovando plenamente.

— Uma coça — dizia o Ega, com os olhos chamejantes e numavoz que sibilava. — E depois fizeram as pazes... Vem ainda a serum ménage modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha!

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Estava furioso. Nesse momento odiava Raquel — não perdoandoao seu ídolo ter-se deixado desfazer à paulada. Lembrava-se justa-mente da bengala do Cohen, um junco da Índia, com uma cabeça degalgo por castão. E aquilo zurzira as carnes que ele tinha apertadocom paixão! Aquilo pusera vergões roxos onde os seus lábios tinhamavivado sinais cor-de-rosa! E tinham feito as pazes. E assim termi-nava, reles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Prefeririasabê-la morta, a sabê-la espancada. Mas não! Levava a sova, dei-tava-se depois com o marido, e ele mesmo, decerto arrependido, cha-mando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as aplica-ções de arnica! Aquilo acabava em arnica!

— Entre vossemecê para aqui, Sr.a Adélia — gritou ele para asala — entre para aqui! Aqui só há amigos. O segredo acabou, opudor acabou! Isto são amigos! Somos três, mas somos um! Temvossemecê diante de si o grande mistério da Santíssima Trindade.Sente-se, Sr.a Adélia, sente-se... Não faça cerimónia... E pode con-tar... Aqui a Sr.a Adélia, meninos, viu tudo, viu a coça!

A Sr.a Adélia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, comum chapéu de flores vermelhas, veio logo da sala rectificando. Não,ela não vira... Então o Sr. Ega não tinha percebido bem... Ela sóouvira .

— Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pé,naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinhanas pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido demouro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinhacom o Domingos à espera que eles tocassem a campainha. Derepente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei até queeram ladrões. Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quartoestava fechada, e os dois estavam por dentro, lá para o fundo daalcova. Eu ainda pus o olho à fechadura, mas não pude ver nada...Lá o estalar de bofetadas, e trambolhões, e sons de bengalada, issosim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo aoDomingos: «Ai que é uma questão, ai que lá se foi tudo.» Mas derepente, silêncio geral! Nós voltámos para a cozinha; daí a pouco oSr. Cohen apareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, adizer que nos podíamos deitar, que eles não precisavam nada, e queamanhã falaríamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhãparece que estavam muito amiguinhos... Que eu não pus os olhosna senhora. O Sr. Cohen, apenas se levantou, veio à cozinha,

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fez-me ele as contas, e pôs-me fora; muito malcriado, até me amea-çou com a polícia... Foi pelo Domingos que eu soube agora, quandofui buscar o baú com um galego, que o Sr. Cohen ia com a senhorapara Inglaterra. Enfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo odia com o estômago embrulhado.

A Sr.a Adélia, com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se.Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seusamigos. Que lhes parecia aquilo? Uma coça!... Se um cobardedaqueles não merecia uma bala no coração! Mas ela também, dei-xar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir comele!... Tudo uma corja!

— E a Sr.a Adélia — perguntava Craft — não tem ideia de comoele descobriu?...

— Isso é que é prodigioso! — gritou Ega, apertando as mãos nacabeça.

Sim, prodigioso! Não fora carta apanhada: eles não se escre-viam. Não podia ter surpreendido as visitas à Vila Balzac: as coisasestavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamenteimpenetráveis. Para vir ali, nunca ela cometera a indiscrição de seservir da sua carruagem. Nunca ela claramente entrara pela porta.Os criados dele nunca a tinham visto, não sabiam quem era asenhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!

— Estranho, estranho! — murmurava Craft.Houve um silêncio. A Sr.a Adélia terminara por descansar fami-

liarmente numa cadeira, com a sua trouxazinha no regaço.— Pois olhe, Sr. Ega — disse ela, depois de reflectir — creia

então uma coisa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi asenhora que sonhou alto com Vossa Excelência, disse tudo, o Sr.Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu amarosca... E eu sei que ela sonha alto.

Ega, diante da Sr.a Adélia, percorria-a desde as flores do cha-péu até à roda das saias, com os olhos faiscantes.

— Como é possível que ele ouvisse? Se eles tinham quartosseparados!... Eu sei que tinham.

A Sr.a Adélia baixou as pálpebras, acariciou com os dedos calça-dos de luvas pretas a sua trouxazinha redonda, e disse mais baixoestas palavras:

— Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em talarranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciúmes dele.

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Houve um silêncio embaraçado e desagradável. Sobre o touca-dor o resto da vela acabava, com uma luz lúgubre. E Ega, que afec-tara sorrir, encolher os ombros, dava pelo quarto passos lentos emurchos, triturando o bigode com a mão trémula. Então Carlos,enojado, cansado daquele episódio que durava desde a véspera, eonde constantemente se remexera em lodo, declarou que era neces-sário findar! Eram oito horas, e ele queria jantar...

— Sim, vamos todos jantar — murmurou o Ega, com o ar con-fuso e embaçado.

De repente fez um sinal à Sr.a Adélia, arrastou-a para a sala,fechou-se lá outra vez.

— Você não está farto disto, Craft? — exclamou Carlos, deses-perado.

— Não. Acho um estudo curioso.Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vela extinguiu-se.

Carlos, furioso, gritou pelo pajem. E o garoto entrava com umimundo candeeiro de petróleo — quando Ega, mais composto, voltouda sala. Tudo acabara, a Sr.a Adélia partira.

— Vamos lá jantar — disse ele. — Mas aonde, a esta hora?E ele mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, além do

coupé de Carlos, esperava a tipóia do Craft. As duas carruagenspartiram. A Vila Balzac ficava apagada, muda, de ora em dianteinútil.

No André tiveram de esperar muito tempo, num gabinetetriste, com um papel de estrelinhas douradas, cortininhas de cassabarata sob sanefas de repes azul, e dois bicos de gás que silvavam.Ega, enterrado no sofá de molas gastas e lassas, cerrara os olhos,parecia exausto. Carlos ia contemplando as gravuras pela parede,todas relativas a espanholas: uma saindo da igreja; outra saltandouma pocinha de água; outra, de olhos baixos, escutando os conse-lhos de um canónico. Craft, já à mesa, com a cabeça entre ospunhos, percorria um Diário da Manhã, que o criado oferecerapara os senhores se entreterem.

De repente o Ega deu um murro no sofá, que rangeu lamenta-velmente.

— Eu o que não percebo — gritou ele — é como aquele malvadodescobriu!...

— A hipótese da Sr.a Adélia — disse Craft erguendo os olhos dojornal — parece provável. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre

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senhora descaiu-se. Ou talvez uma denúncia anónima. Ou talvezapenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a,e apanhou-a.

Ega erguera-se.— Eu não vos quis dizer diante da Adélia, que não estava no

segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outrolado da viela, uma casa com um grande quintal? Aí mora uma tiado Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitável. A Raquelia vê-la de vez em quando. São íntimas, a D. Maria Lima é íntimade todo o mundo. Depois saía por uma portinha do quintal, atraves-sava a viela, e estava à porta da minha casa, à porta escusa, àporta da escada que vai ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Oscriados nem a avistavam. Quando ela lá lanchava, o lunch estavajá posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguémvisse, era uma senhora com um véu preto, que vinha de casa daLima... Como podia o homem apanhá-la?... Além disso, em casa daLima, ela mudava de chapéu e punha um water-proof...

Craft cumprimentou.— É brilhante! Parece de Scribe.— Então — disse Carlos sorrindo — essa respeitável fidalga...— A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excelente velha,

recebida em toda a parte, mas pobre, e faz destes favores... Àsvezes mesmo em casa dela.

— Leva caro por esses serviços? — perguntou tranquilamenteCraft, que em todo aquele caso procurava instruir-se.

— Não, coitada — disse o Ega. — Dão-se-lhe de vez em quandocinco libras.

O criado entrava com uma travessa de camarões, os três emsilêncio acomodaram-se à mesa.

Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ia lá dormir,receando, com os nervos tão excitados, a solidão da Vila Balzac.Partiram, de charutos acesos, numa caleche descoberta, sob a noiteestrelada e doce.

Felizmente não estava ninguém no Ramalhete; Ega, cansado,pôde retirar-se logo para o seu quarto, um aposento de hóspedes nosegundo andar, onde havia um belo leito antigo de pau-preto. Aí,apenas o criado o deixou, Ega aproximou-se do tremó onde ardiamas luzes, e tirou do pescoço, de sob a camisa, um medalhão de ouro.Tinha dentro uma fotografia de Raquel: — e a sua intenção agora

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era queimá-la, deitar ao balde das águas sujas as cinzas daquelapaixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada num sor-riso, sob o vidro oval, pareceu olhar para ele com uma tristeza noveludo das pupilas lânguidas... A fotografia mostrava apenas acabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e asrecordações de Ega alargaram aquele decote uma vez mais,revendo o colo, o extraordinário cetim da pele, o sinalzinho sobre oseio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo noslábios, sentiu na alma outra vez como o eco dos suspiros cansadosque ela soltara nos seus braços. E ela ia-se embora, nunca mais averia! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo — ecom a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grandefraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.

Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro diaDâmaso aparecera no Ramalhete, e por ele ouviram os rumores deLisboa. Já se sabia no Grémio, no Chiado, por toda a parte, que elefora expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tirol, teste-munhas do episódio, tinham-no badalado com entusiasmo. Dizia-semesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa,esses, sobretudo o Alencar, pregavam com fervor a inocência daSr.a D. Raquel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provin-ciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidênciasde paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe —escrevera à Sr.a D. Raquel uma carta quase obscena, que ela, coita-dinha, toda em lágrimas, viera mostrar ao marido.

— Então dão-me para baixo, hem, Dâmaso? — murmurou Ega,que, no gabinete de Carlos, embrulhado numa velha ulster e enco-lhido numa poltrona, escutava estas coisas com um ar cansado edoente.

Dâmaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.Ah, ele sabia-o bem! Tinha antipatias em Lisboa. Ninguém lhe

perdoara ainda a peliça. A sua verve, toda em sarcasmos, ofendia. Eera desagradável para muita gente que um homem, com esse espí-rito tão perigoso de ferro em brasa, tivesse uma mãe rica, e fosseindependente.

Depois, no sábado seguinte, Carlos ao voltar do jantar dos Gou-varinhos — que fora excelente — contou-lhe a conversa que tiveracom a senhora condessa. A condessa falara-lhe muito livremente,como um homem, daquele desastre do Ega. Tinha-se afligido muito,

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não só pela Raquel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, queela apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que saía detudo aquilo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gou-varinho) que ameaçara o Ega de pontapés, por ele ter escrito a suamulher uma carta imunda. Os que não sabiam nada, como o Gou-varinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os quesabiam, os que havia seis meses sorriam da intimidade do Ega comos Cohens, afectavam também acreditar, cerravam os punhos deindignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa que vive entre oGrémio e a Casa Havanesa folgava em «enterrar» o Ega.

Ega, com efeito, sentia-se «enterrado». E nessa noite declarou aCarlos que decidira recolher-se à quinta da mãe, passar lá um anoa acabar as Memórias de Um Átomo, e reaparecer em Lisboa com oseu livro publicado, triunfando sobre a cidade, esmagando osmedíocres. Carlos não perturbou esta radiante ilusão.

Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negó-cios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de coisas abomináveis.Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha trêsletras a vencer; aquelas dívidas, se as deixasse, soltas e ladrando,juntar-se-iam, na tagarelice pública, ao caso dos Cohens — e eleseria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguidopelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos,para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.

Depois, tendo despedido os criados da Vila Balzac, surgiram-lheoutras complicações. A mãe do pajem veio daí a dias ao Ramalhete,muito insolente, gritando que o filho lhe desaparecera! E eraexacto: o famoso pajem, pervertido pela cozinheira, sumira-se comela para as vielas da Mouraria, a começar aí uma divertida car-reira de faia.

Ega recusou-se a atender as reclamações da matrona. Quediabo tinha ele com essas torpezas?

Então o amante da criatura interveio, ameaçadoramente. Eraum polícia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria fácilprovar como na Vila Balzac se passavam «coisas contra a Natu-reza», e que o pajem não era só para servir à mesa... Nauseado atéà morte, Ega pactuou com a intrujice, largou cinco libras ao polícia.Quando nessa noite, uma noite triste de água, Carlos e Craft oacompanharam a Santa Apolónia, ele disse-lhes na carruagemestas palavras, triste resumo de um amor romântico:

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— Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina!Preciso um banho por dentro!

Afonso da Maia, ao saber este desastre do Ega, tinha dito aCarlos, com tristeza:

— Má estreia, filho, péssima estreia!E nessa noite, depois de voltar de Santa Apolónia, Carlos pen-

sava nestas palavras, dizia também consigo: «Péssima estreia!...». Enem só a estreia do Ega era péssima; também a sua. E talvez, porpensar nisso, as palavras do avô tinham tido aquela tristeza. Péssi-mas estreias! Havia seis meses que o Ega chegara de Celorico,embrulhado na sua grande peliça, preparado a deslumbrar Lisboacom as Memórias de Um Átomo, a dominá-la com a influência deuma revista, a ser uma luz, uma força, mil outras coisas... E agora,cheio de dívidas e cheio de ridículo, lá voltava para Celorico, escor-raçado. Péssima estreia! Ele, por seu lado, desembarcara em Lisboa,com ideias colossais de trabalho, armado como um lutador: era oconsultório, o laboratório, um livro iniciador, mil coisas fortes... Eque tinha feito? Dois artigos de jornal, uma dúzia de receitas, e essemelancólico capítulo da Medicina entre os Gregos. Péssima estreia!

Não, a vida não lhe parecia prometedora nesse instante, pas-seando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, enquanto ao ladoos amigos conversavam, e fora uivava o sudoeste. Pobre Ega, queinfeliz ele iria, encolhido ao canto do seu vagão! Mas os outros, ali,não estavam mais alegres. Craft e o marquês tinham começadouma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que ser-via viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bis-marck? E o marquês, com um ar filosófico, achava que o mundo seia tornando estúpido. Depois chegou o Taveira com a história horrí-vel de um colega dele, cujo filho caíra pela escada, se despedaçara,no momento em que a mulher estava a morrer de uma pleurisia.Cruges resmungou o quer que fosse sobre o suicídio. As palavrasarrastavam-se, melancólicas. Instintivamente, Carlos, de vez emquando, ia despertar as lâmpadas.

Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando daí a instantesDâmaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incomodadoe de cama.

— Naturalmente — acrescentou o Dâmaso — mandam-te cha-mar, por teres já visto a pequena...

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Carlos ao outro dia não saiu de casa, esperando um recado,faiscando de impaciência. Nenhum recado veio. E, duas tardesdepois, ao descer para o Aterro — o primeiro encontro que teve, àsJanelas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com amulher ao lado, e a cadelinha no colo.

Ela passou, sem o ver. E logo ali Carlos decidiu findar aquelatortura, pedir muito simplesmente ao Dâmaso que o apresentasseao Castro Gomes, antes de ele partir para o Brasil... Não podiamais, precisava ouvir a voz dela, ver o que os seus olhos diziamquando eram interrogados de perto.

Mas toda essa semana achou-se constantemente, sem sabercomo, na companhia dos Gouvarinhos. Começou por encontrar oconde, que lhe travou do braço, arrastou-o à Rua de S. Marçal, ins-talou-o numa poltrona, no seu escritório, e leu-lhe um artigo quedestinava ao Jornal do Comércio sobre a situação dos partidos emPortugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte eles tinhamuma partida de croquet. Carlos foi. E, a uma janela, aberta sobre ojardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe,rindo, como os cabelos dela o tinham encantado, a primeira vez quea vira. Nessa noite, ela falou de um livro de Tennyson, que não lera;Carlos ofereceu-lho, foi-lho levar ao outro dia, de manhã.Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam já a voz,as duas cadeiras estavam mais juntas — quando o escudeiro anun-ciou a Sr.a D. Maria da Cunha. Era uma coisa tão extraordinária, aD. Maria da Cunha àquela hora! Carlos, de resto, gostava muito daD. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia desimpatia por todos os pecados — e ela mesmo muito pecadoraquando era a linda Cunha. D. Maria era muito faladora, parecia terque dizer em particular à condessa; e Carlos deixou-as, prometendovoltar uma dessas tardes tomar chá, e falar de Tennyson.

Na tarde em que ele se vestia para lá ir, Dâmaso apareceu-lheno quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e deferro. O telhudo do Castro Gomes mudara de ideia, já não ia aoBrasil! Ficava ali, no Central, até ao meado do Verão! De sorte queestava tudo estragado...

Carlos pensou logo em falar da sua apresentação ao CastroGomes. Mas, como em Sintra, sem saber porquê, veio-lhe umarepugnância de a conhecer por meio do Dâmaso. E foi-se vestindoem silêncio.

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Dâmaso, no entanto, maldizia a sua chance:— E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse ocasião.

Mas que diabo queres tu, assim?...Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um

telhudo. E a vida daquele homem era misteriosa... Que diaboestava ele a fazer em Lisboa? Ali havia dificuldades de dinheiro... Eeles não se davam bem. Na véspera houvera decerto questão.Quando ele entrara, ela estava com os olhos vermelhos, e enfiada; eele, nervoso, a passear pela sala, a retorcer a barba... Ambos con-trafeitos, uma palavra cada quarto de hora...

— Sabes tu? — exclamou ele. — Tenho minha vontade de osmandar à fava.

Queixou-se também dela. Era sobretudo muito desigual. Orabom modo, ora regelada; e, às vezes, ele dizia qualquer coisa muitonatural, destas coisas de conversa de sociedade, e ela punha-se arir. Era de encavacar, hem? Enfim, gente muito esquisita.

— Onde vais tu? — disse ele, com um suspiro de aborrecimento,vendo Carlos pôr o chapéu.

Ia tomar chá com a Gouvarinho.— Pois olha, vou contigo... Estou de uma seca.Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:— Vem, fazes-me até favor...A tarde estava lindíssima. Carlos ia no dog-cart. — Há que tempos que não damos assim um passeio juntos —

disse Dâmaso.— Tu andas lá metido com estrangeiros!...Dâmaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada.

Depois, à porta dos Gouvarinhos, quando soube que a senhora con-dessa recebia, resolveu subitamente não entrar. Não, não entrava.Estava muito estúpido, incapaz de achar uma palavra...

— Ah!, e outra coisa que me lembrou agora — exclamou ele,demorando ainda Carlos diante do portão. — O Castro Gomes, ontem,perguntou-me o que te havia de mandar pela visita à pequena... Eudisse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo. E ele disse quete havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecê-los.

Não era, pois, necessário que Dâmaso o apresentasse!— Aparece à noite, Damasozinho, vai lá jantar amanhã!—

exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente apertode mão ao seu amigo.

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Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir o chá.A sala, forrada de um papel severo, verde e oiro, com retratos defamília em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre afolhagem do jardim. Em cima das mesas havia cestos de flores. Nosofá, duas senhoras de chapéu, ambas de preto, conversavam, coma chávena na mão. A condessa, ao estender os dedos a Carlos,ficara tão cor-de-rosa — como a seda acolchoada da cadeira em queestava recostada, ao pé de um velador de pau-santo. Notou logo,sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom?Carlos sorriu também, disse que não era possível entrar ali comoutro ar. Depois perguntou pelo conde...

O conde ainda não aparecera, detido decerto na Câmara dos Pares,onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrução Pública.

Uma das senhoras de preto fazia votos para que se aliviassemos estudos. As pobres crianças sucumbiam verdadeiramente àquantidade exagerada de matérias, de coisas a decorar: o dela, oJoãozinho, andava tão pálido e tão desfigurado, que ela às vezestinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhorapousou a chávena sobre uma console ao lado, e, passando sobre oslábios a renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores.Era um escândalo as exigências e as dificuldades que punham, sópara poder deitar RR... Ao pequeno dela tinham feito as perguntasmais estúpidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era osabão, porque lavava o sabão?...

A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito,consternadas. E Carlos, muito amável, concordou que era uma abo-minação. O marido dela — continuava a dama de preto — ficaratão desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, oameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudência, decerto; mas,enfim, o homem fora malvado!... Não havia verdadeiramente senãouma coisa digna de se estudar, eram as línguas. Parecia insensatoque se torturasse uma criança com botânica, astronomia, física...Para quê? Coisas inúteis na sociedade. Assim, o pequeno dela,agora, tinha lições de química... Que absurdo! Era o que o pai dizia— para quê, se ele o não queria para boticário?

Depois de um silêncio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmotempo; e houve um murmúrio de beijos, um frufru de sedas.

Carlos ficou só com a senhora condessa, que recuperara a suacadeira cor-de-rosa.

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Imediatamente ela perguntou pelo Ega— Coitado, lá está para Celorico.Ela protestou, com um lindo riso, contra aquela frase tão feia:

«Lá está para Celorico.» Não, não queria... Coitado do Ega! Mereciauma melhor oração fúnebre. Celorico era horrível para um fim deromance...

— Decerto — exclamou Carlos, rindo também — era mais belodizer-se: lá está para Jerusalém!

Nesse momento o criado anunciou um nome, e apareceu oamigo Teles da Gama, um íntimo da casa. Quando soube que oconde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da Instrução,levou as mãos à cabeça como lamentando um tão feio desperdíciode tempo, e não se quis demorar. Não, nem mesmo o excelente cháda senhora condessa o tentava. A verdade era que estava tão aban-donado da graça de Deus, perdera de tal modo o sentimento dascoisas belas, que entrara, não para ver a senhora condessa — massimplesmente falar ao conde. Então ela teve um bonito ar de prin-cesa ofendida, perguntou a Carlos se uma tão rude sinceridade demontanhês não fazia saudades das maneiras polidas do AntigoRegime. E Teles da Gama, gingando de leve, declarava-se demo-crata, homem da Natureza, com um riso que lhe mostrava dentesmagníficos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia,quis saber quando o príncipe de Santa Olávia lhe dava enfim ahonra de vir jantar com ele. A senhora condessa indignou-se. Não,era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante dela —um homem que falava tanto da sua cozinheira alemã, e nem sequerlhe oferecera jamais um prato de chou-crôute!

Teles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava aarranjar a sua sala de jantar para dar à senhora condessa umafesta que havia de ficar nos anais do Reino! Agora com o Maia eradiferente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joe-lhos. E abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrandoos dentes magníficos.

— Muito alegre, este Gama, não é verdade? — disse a condessa.— Muito alegre — disse Carlos.Então a condessa olhou o relógio. Eram cinco e meia, àquela

hora ela já não recebia: podiam, enfim, conversar um momento, emboa camaradagem. E, o que houve, foi um silêncio lento, em que osolhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por

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Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com uma ligeira tosseapanhada no Passeio da Estrela. Ah!, aquela criança nunca dei-xava de lhe dar cuidado! Ficou calada, com o olhar esquecido notapete, movendo languidamente o leque: tinha nessa tarde uma toi-lette exagerada, de um tom de folha de Outono amarelada, de umaseda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhassecas.

— Que lindo tempo tem feito! — exclamou ela de repente, comoacordando.

— Lindo! — disse Carlos. — Eu estive há dias em Sintra, e nãoimagina... Era de uma beleza de idílio.

E imediatamente arrependeu-se, quis-se mal por ter falado dasua ida a Sintra, naquela sala.

Mas a condessa mal o escutara. Tinha-se erguido, falando dealgumas canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novi-dades frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu osdedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquela melodia —The Pale Star. Não, Carlos não conhecia. Mas todas essas cançõesinglesas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, emuito miss. E trata-se sempre de um parque melancólico, umregato lento, um beijo sob os castanheiros...

Então a condessa leu alto a letra da Pale Star. E era a mesmacoisa, uma estrelinha de amor palpitando no crepúsculo, um lagopálido, um tímido beijo sob as árvores...

— É sempre o mesmo — disse Carlos — e é sempre delicioso.Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquilo estú-

pido. Começou a remexer entre os papéis de música, nervosa, e comum olhar que escurecia. Para quebrar o silêncio, Carlos gabou-lheas suas lindas flores.

— Ah, vou-lhe dar uma rosa! — exclamou ela logo, deixando asmúsicas.

Mar a flor que ela lhe queria dar estava no boudoir, ao lado.Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo douradode folhagem de Outono batida do sol. Era um gabinete forrado deazul, com um bonito tremó do século XV, e sobre um forte pedestalde carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de ora-dor, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o lábio fremente...

A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ela mesmo lheveio florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o

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calor que subia do seu seio arfando com força. E ela não acabava deprender a flor, com os dedos trémulos, lentos, que pareciamcolar-se, deixar-se adormecer sobre o pano...

— Voilà! — murmurou enfim, muito baixo. — Aí está o meubelo cavaleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com oslábios nos lábios dela. A seda do vestido roçava-lhe, com um finoruge-ruge entre os braços; — e ela pendia para trás a cabeça,branca como uma cera, com as pálpebras docemente cerradas. Eledeu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelhoencontrou um sofá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de sedaenrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sofá, querolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde osenhor conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro mor-reu, num rumor de saias amarrotadas.

Daí a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto dobusto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arre-pendido: ela, diante do tremó Luís XV, compondo, com os dedos tré-mulos, o frisado do cabelo. De repente, na antecâmara, ouviu-se avoz do conde. Ela, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, comos longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto,atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabelo e aos olhos. Depois, sen-tou-se largamente no sofá — e estava falando de Sintra, rindo alto,quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha aassoar a um enorme lenço de seda da Índia.

Ao ver Carlos no boudoir, o conde teve uma bela surpresa,esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lheque ainda nessa manhã, na Câmara, se lembrara dele...

— Então porque vieram tão tarde? — exclamou a condessa, quese apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amável.

— O nosso conde falou! — disse o velho, ainda com o olho bri-lhante de entusiasmo.

— Falaste? — exclamou ela, voltando-se com um interesseencantador.

É verdade, falara — e desprevenido! Quando ouvira porém oTorres Valente (homem de literatura, mas um doido, sem sensoprático), quando o ouvira defender a ginástica obrigatória nos colé-gios — erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia que ele tinhafeito um discurso.

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— Ora essa! — exclamou o velho, agitando o lenço.— E um dosmelhores que eu tenho ouvido na Câmara! Dos de arromba!

O conde, modestamente, protestou. Não: tinha simplesmentelançado uma palavra de bom senso, e de bom princípio. Perguntaraapenas ao seu ilustre amigo, o Sr. Torres Valente, se, na sua ideia,os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinadospara palhaços!...

— Ah, esta piada, senhora condessa! — exclamou o velho. — Eusó queria que Vossa Excelência ouvisse esta piada... E como ele adisse! com um chique!

O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lheaquilo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que nãoqueria nos liceus, nem nos colégios, um ensino «todo impregnado decatecismo», ele lançara-lhe uma palavra cruel.

— Terrível! — exclamou o velho num tom cavo, preparando olenço para se assoar outra vez.

— Sim, terrível... Voltei-me para ele e disse-lhe isto: «Creia odigno par que nunca este país retomará o seu lugar à testa da civi-lização, se, nos liceus, nos colégios, nos estabelecimentos de instru-ção, nós outros, os legisladores, formos, com mão ímpia, substituira cruz pelo trapézio...»

— Sublime! — rosnou o velho, dando um ronco medonho dentrodo lenço.

Carlos, erguendo-se, declarou aquilo de uma ironia adorável.E o conde, quando ele se despediu, não se contentou com um

simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe oseu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda húmido, umresto de palidez, movendo o leque languidamente, recostada emduas almofadas do sofá — debaixo do busto do marido que erguia afronte inspirada.

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TRÊS semanas depois, por uma tarde quente, com um céutriste de trovoada, e no momento em que estavam caindo algumasgotas grossas de chuva — Carlos apeava-se de um coupé de praça,que viera parar, devagar, à esquina da Patriarcal, com os estoresverdes misteriosamente corridos. Dois sujeitos que passavam sorri-ram-se, como se o vissem escoar-se desjeitosamente de uma porti-nha suspeita. E com efeito a velha traquitana de rodas amarelasacabava de ser uma alcova de amor, perfumada de verbena,durante as duas horas que Carlos rolara dentro dela, pela estradade Queluz, com a senhora condessa de Gouvarinho.

A condessa tinha descido no Largo das Amoreiras. E Carlosaproveitara a solidão da Patriarcal para se desembaraçar docalhambeque de assento duro, onde durante a última hora sufo-cara, sem ousar descer as vidraças, com as pernas adormecidas,enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos intermináveisque ela lhe dava na barba...

Até aí, durante essas três semanas, tinham-se encontradonuma casa da Rua de Santa Isabel, pertencente a uma tia da con-dessa que fora para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave dacasa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamadaMiss Jones, era uma santa, uma apóstola militante da Igreja Angli-cana, missionária da Obra da Propaganda; e todos os meses faziaassim uma viagem de catequização à província, distribuindoBíblias, arrancando almas à treva católica, purificando (como ela

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Capítulo X

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dizia) o tremedal papista... Já na escada havia um cheirinho adoci-cado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar pendia umlargo cartão, com um dístico em letras de oiro entrelaçadas de líriosroxos, rogando aos que entravam que perseverassem nas vias doSenhor! Carlos entrou, tropeçando logo num montão de Bíblias. Oquarto todo era um ninho de Bíblias; havia-as às pilhas por cimados móveis, trasbordando de velhas chapeleiras, misturadas apares de galochas, caídas para o fundo da bacia de assento, todasdo mesmo formato, entaladas numa encadernação negra comonuma armadura de combate, carrancudas e agressivas! As paredesresplandeciam, forradas de cartonagens impressas em letras decor, irradiando versículos duros da Bíblia, ásperos conselhos demoral, gritos dos salmos, ameaças insolentes do Inferno... E nomeio desta religiosidade anglicana, à cabeceira de um leitozinho deferro, rígido e virginal, duas garrafas quase vazias de conhaque ede gin. Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rígido ficou revoltocomo um campo de batalha.

Depois a condessa começou a ter medo de uma vizinha, umaBorges, que visitava a titi, e era viúva de um antigo procurador dosGouvarinhos. Uma ocasião em que, no casto leito de Miss Jones,eles fumavam languidamente cigarrilhas, três enormes argoladas àporta atroaram a casa. A pobre condessa quase desmaiou; Carlos,correndo à janela, viu um homem que se afastava, com uma esta-tueta de gesso na mão, outras dentro de um cesto. Mas a condessajurava que fora a Borges quem mandara o italiano das imagens ati-rar-lhes para dentro aquelas aldravadas, como três avisos, trêsrebates da Moral... Não quisera voltar mais ao beatífico coté da titi.E nessa tarde, como não havia ainda outro esconderijo, tinhamabrigado os seus amores dentro daquela tipóia de praça.

Mas Carlos vinha de lá enervado, amolecido, sentindo já naalma os primeiros bocejos da saciedade. Havia três semanas ape-nas que aqueles braços perfumados de verbena se tinham atiradoao seu pescoço — e agora, pelo passeio de S. Pedro de Alcântara,sob o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda, ele iapensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seuardor, do seu peso... É que a condessa ia-se tornando absurda comaquela determinação ansiosa e audaz de invadir toda a sua vida,tomar nela o lugar mais largo e mais profundo — como se o pri-meiro beijo trocado tivesse unido não só os lábios de ambos um

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momento, mas os seus destinos também e para sempre. Nessatarde lá tinham voltado as palavras que ela balbuciava, caída sobreo seu peito, com os olhos afogados numa ternura suplicante: Se tuquisesses! Que felizes que seríamos! que vida adorável! ambos sós!...E isto era claro — a condessa concebera a ideia extravagante defugir com ele, ir viver num sonho eterno de amor lírico, nalgumcanto do mundo, o mais longe possível da Rua de S. Marçal! Se tuquisesses! Não, com mil demónios, não queria fugir com a senhoracondessa de Gouvarinho!...

E não era só isto — mas ainda exigências, egoísmos, explosõestumultuosas de um temperamento cioso: já mais de uma vez, nes-sas duas curtas semanas, por pieguices, ela despropositara, falarade morrer, debulhada em lágrimas... Ah! nas lágrimas havia aindauma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o cetim do seu colo!O que o inquietava eram certos clarões que lhe sulcavam o rosto,um dardejar nervoso dos olhos secos, revelando a paixão que seacendera naqueles nervos de mulher de trinta e três anos, e a quei-mava até às profundidades do seu ser... Certamente este amorpunha na sua vida um luxo mais, e um perfume. Mas o seu encantoestava em conservar-se fácil, sereno, sem penetrar mais fundo quea epiderme. Se ela, por qualquer coisa, tinha os olhos turvos deágua, e falava em morrer, e torcia os braços, e queria fugir com ele— então adeus! Tudo estava estragado; e a senhora condessa, coma sua verbena, os seus cabelos cor de brasa e o seu pranto, era ape-nas um trambolho!

O chuveiro parara, um bocado de azul lavado apareceu entrenuvens. E Carlos descia a Rua de S. Roque — quando encontrou omarquês, saindo de uma confeitaria, tristonho, com um embrulhona mão, e o pescoço abafado num enorme cache-nez de seda branca.

— Que é isso? Constipação? — perguntou Carlos.— Tudo — disse o marquês, pondo-se a caminhar ao lado dele

com uma lentidão de moribundo. — Deitei-me tarde. Cansaço.Opressão no peito. Pigarreira. Dores no lado. Um horror... Levo jáaqui rebuçados.

— Não seja piegas, homem! Você o que precisa é rosbife e umagarrafa de Borgonha... Não é hoje que você janta lá no Rama-lhete?... É, até tem lá o Craft e o Dâmaso... Então descemos poressa Rua do Alecrim, que já não chove, depois pelo Aterro fora, apasso ginástico, e em chegando lá você está curado.

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O pobre marquês encolheu os ombros. Apenas sentia o menorincómodo, uma dor, um arrepio, considerava-se logo, como ele dizia,liquidado. O mundo começava a findar para ele: tomavam-no terro-res católicos, uma preocupação angustiosa da Eternidade. Nessesdias fechava-se no quarto com o padre capelão — com quem àsvezes, todavia, terminava por jogar as damas.

— Em todo o caso — disse ele, tirando cautelosamente o chapéuao passar pela porta aberta da Igreja dos Mártires — deixe-me vocêir primeiro ao Grémio... Quero escrever à Manueleta que não contecomigo esta noite...

Depois, distraída e melancolicamente, perguntou notícias dessedevasso do Ega. Esse devasso do Ega lá estava em Celorico, naquinta materna, ouvindo arrotar o padre Serafim, e refugiando-se,segundo dizia, na grande arte: andava a compor uma comédia emcinco actos, que se devia chamar O Lodaçal — escrita para se vin-gar de Lisboa.

— O pior — murmurou o marquês, depois de um silêncio e aba-fando-se mais no cache-nez — é se eu estou assim no domingo paraas corridas!

— O quê! — exclamou Carlos. — Então as corridas são já nodomingo?

O marquês foi-lhe explicando, enquanto desciam o Chiado, queas corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grandesportman de Córdova, que devia trazer dois cavalos ingleses... Eraum bocado humilhante depender do Clifford. Mas enfim o Cliffordera um gentleman, e com os seus cavalos de raça, os seus jóqueisingleses, constituía a única feição séria do hipódromo de Belém.Sem o Clifford aquilo era uma brincadeira de pilecas e de abas...

— Você não conhece o Clifford?... Belo rapaz! Um pouco poseur,mas oiro de lei.

Tinham entrado no pátio do Grémio, o marquês estendeu obraço a Carlos.

— Veja esse pulso!— O pulso está excelente... Vá você dar lá esse golpe à Manuela,

que eu fico à espera.No domingo, pois, daí a cinco dias, eram as corridas... E ela

estaria lá, ele ia conhecê-la, enfim! Durante essas três últimassemanas vira-a duas vezes: uma ocasião, estando a conversar com oTaveira à porta do Hotel Central, ela chegara a uma das varandas,

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de chapéu, calçando uma grande luva preta; de outra vez, haviadias, por uma tarde de chuva, ela viera parar à porta do Mourão,ao Chiado, num coupé da Companhia, e ficara esperando enquantoo trintanário levava dentro à loja um embrulho que tinha a formade um cofre, apertado com uma fita vermelha. De ambas as vezesela vira-o, demorara os olhos nele um momento: e parecera a Car-los que o último olhar se prolongara mais, como abandonando-se,humedecendo-se, numa leve doçura, ao pousar no seu... Era talvezuma ilusão; mas isto decidiu-o, na sua impaciência, a realizar aantiga ideia (ainda que desagradável) de ser apresentado peloDâmaso ao Castro Gomes. O pobre Dâmaso, ao princípio, diantedesta exigência, ficou perturbado; e com um ar de cão que defendeo seu osso, lembrou logo a Carlos o deplorável comportamento doCastro Gomes, que não viera, como lho anunciara, havia três sema-nas, deixar o seu cartão ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhavaessas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomesparecia-lhe um homem de gosto e de sport; nem todos os dias apa-recia em Lisboa quem soubesse dar com correcção o nó da gravata;e seria agradável, mesmo para ele Dâmaso, reunirem-se todos devez em quando, com o Craft, com o marquês, a fumar um charuto ea falar de cavalos. Isto decidiu Dâmaso, que terminou por propor aCarlos o levá-lo uma tarde ao Hotel Central. Carlos, porém, nãoqueria entrar pelo hotel dentro, de chapéu na mão, atrás doDâmaso. Resolveram então esperar pelas corridas, onde os CastrosGomes tencionavam ir. «Aí, no recinto da pesagem», disse oDâmaso, «a apresentação é mais chique... É mesmo podre de chi-que.»

— Deus queira com efeito que não chova no domingo — mur-murou Carlos quando o marquês desceu, mais tristonho, mais aba-fado no seu cache-nez.

Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao Ferregial.Adiante do Grémio, encostado ao passeio, estava um coupé da Com-panhia, com um trintanário de luvas brancas, esperando junto aoportal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado à portinhola,um rosto de criança, de uma brancura adorável, sorrindo-lhe, comum belo sorriso que lhe punha duas covinhas na face.Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ela não se contentouem sorrir, com o seu doce olhar azul fugindo todo para ele — deitoua mãozinha de fora, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do

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coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro de estátua, umtom ondeado de cabelo loiro. Carlos tirou profundamente o chapéu,tão perturbado, que os seus passos hesitaram. Ela abaixou acabeça, de leve; alguma coisa de luminoso, um confuso rubor deemoção, espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, damãe e da filha, ao mesmo tempo, viesse para ele uma suave equente emanação de simpatia.

— Caramba, aquilo pertence-lhe? — perguntou o marquês, quenotara a impressão de Madame Gomes.

Carlos corou.— Não, é uma senhora brasileira a quem eu curei aquela

pequerrucha...— Irra! que gratidão! — rosnou o outro de dentro das dobras do

seu cache-nez.Caminhando em silêncio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma

ideia que lhe viera de repente, ao receber aquele doce olhar. Porqueé que Dâmaso não levaria uma manhã o Castro Gomes aos Olivais,a ver as colecções do Craft?... Ele estaria lá, abria-se uma garrafade champanhe, discutiam bricabraque. Depois, muito natural-mente, ele convidava Castro Gomes a almoçar no Ramalhete, paralhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas colchas da Índia. Eassim, já antes das corridas existiria entre eles uma camaradagem,talvez um tratamento de você.

No Aterro, temendo o ar do rio, o marquês quis tomar umatipóia; e, até ao Ramalhete, continuaram calados. O marquês, outravez inquieto, apalpava a garganta. Carlos discutia complicada-mente consigo aquela lenta inclinação de cabeça, o olhar dela, ovivo rubor fugitivo... Ela até aí não o conhecia talvez. Mas, depoisde atirar o seu grande adeus, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se paraa mãe, a dizer-lhe decerto que aquele era o médico que a curara, aela e à boneca... E então a linda cor que lhe enternecera o rostotomava uma significação mais profunda — era como a surpresafeliz, o enleio casto, ao saber que o homem que ela notara já dealgum modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a suafilha, se tinha mesmo sentado à beira do seu leito...

Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivais, mais largoagora, mais brilhante. Porque não iria ela também ver as curiosi-dades do Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idílio!O Craft arranjava um lunch delicado no seu velho serviço de Wed-

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gewood. Ele ficava à mesa junto dela, depois iam ver o jardim já emflor; ou tomavam chá no pavilhão japonês, forrado de esteiras. Mas,o que mais lhe apetecia era percorrer com ela as duas salas deCraft, parando ambos diante de uma bela faiança ou de um móvelraro, e sentindo, através da concordância dos seus gostos, subir,como um perfume, a simpatia dos seus corações... Nunca a vira tãoformosa como nessa tarde, dentro do coupé forrado de escuro, ondebrilhava mais puramente a brancura do seu perfil. Sobre o regaçodo vestido negro pousava o tom claro das suas luvas; e no chapéufrisava-se a ponta de uma pena cor de neve.

A tipóia parara ao portão do Ramalhete, estavam agora entreas silenciosas tapeçarias da antecâmara.

— Como é que ela conhece o Cruges? — perguntou de repente omarquês, com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache--nez.

Carlos olhou para ele, como mal acordado.— Ela quem? Aquela senhora? Como conhece o Cruges?...

Homem, sim, tem você razão!... Aquela era a casa do Cruges!... Acarruagem estava parada à porta do Cruges!... Talvez alguém quemore noutro andar.

— Não mora ninguém — disse o marquês, dando um passopara o corredor. — Em todo o caso, é um mulherão.

Carlos achou a palavra odiosa.Do corredor ouvia-se já no escritório de Afonso, através da

porta aberta, a voz petulante do Dâmaso falando alto de handicape de dead-beat... E foram-no encontrar discursando sobre as corri-das, com convicção, com autoridade, como membro do Jockey Club.Afonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortês e risonho, com o«Reverendo Bonifácio» no colo. Ao canto do sofá, Craft folheava umlivro.

E o Dâmaso apelou logo para o marquês. Não era verdade,como ele estivera dizendo ao Sr. Afonso da Maia, que iam ser asmelhores corridas que se tinham feito em Lisboa? Só para o GrandePrémio Nacional, de seiscentos mil réis, havia oito cavalos inscri-tos! E, além disso, o Clifford trazia a Mist.

— Ah, é verdade, ó marquês, é necessário que você apareçasexta-feira à noite no Jockey Club, para acabarmos o handicap!

O marquês arrastara uma cadeira para o pé de Afonso, para lhefazer a confidência dos seus achaques; mas como Dâmaso se metia

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entre eles, falando ainda da Mist , decidindo que a Mist era chique,querendo apostar cinco libras pela Mist contra o campo — o mar-quês terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que o Sr. Damaso-zinho se estava a dar ares patuscos... Apostar pela Mist! Todo opatriota devia apostar pelo cavalos do visconde de Darque, que erao único criador português!...

— Pois não é verdade, Sr. Afonso da Maia?O velho sorriu, amaciando o seu gato.— O verdadeiro patriotismo, talvez — disse ele — seria, em

lugar de corridas, fazer uma boa tourada.Dâmaso levou as mãos à cabeça. Uma tourada! Então o Sr.

Afonso da Maia preferia toiros a corridas de cavalos? O Sr. Afonsoda Maia, um inglês!...

— Um simples beirão, Sr. Salcede, um simples beirão, e que fazgosto nisso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então,me pôs fora do meu país... Pois é verdade, tenho esse fraco portu-guês, prefiro toiros. Cada raça possui o seu sport próprio, e o nossoé o toiro: o toiro com muito Sol, ar de dia santo, água fresca, efoguetes... Mas sabe o Sr. Salcede qual é a vantagem da tourada? Éser uma grande escola de força, de coragem e de destreza... EmPortugal não há instituição que tenha uma importância igual àtourada de curiosos. E acredite uma coisa: é que se nesta tristegeração moderna ainda há em Lisboa uns rapazes com certo mús-culo, a espinha direita, e capazes de dar um bom soco, deve-se issoao toiro e à tourada de curiosos...

O marquês, entusiasmado, bateu as palmas. Aquilo é que erafalar! Aquilo é que era dar a filosofia do toiro! Está claro que a tou-rada era uma grande educação física! E havia imbecis que falavamem acabar com os toiros! Oh! estúpidos, acabais então com a cora-gem portuguesa!...

— Nós não temos os jogos de destreza das outras nações —exclamava ele, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. —Não temos o cricket, nem o foot-ball, nem o running, como os Ingle-ses: não temos a ginástica como ela se faz em França; não temos oserviço militar obrigatório que é o que torna o Alemão sólido... Nãotemos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos sóa tourada... Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derrea-dos da espinha, a melarem-se pelo Chiado! Pois você não acha,Craft?

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Craft, do canto do sofá, onde Carlos se fora sentar e lhe falavabaixo, respondeu, convencido:

— O quê, o toiro? Está claro! o toiro devia ser neste país como oensino é lá fora: gratuito e obrigatório.

Dâmaso, no entanto, jurava a Afonso compenetradamente quegostava também muito de toiros. Ah, lá nessas coisas de patrio-tismo ninguém lhe levava a palma... Mas as corridas tinham outrochique! Aqueles Bois de Bologne, num dia de Grand Prix, hem!...Era de embatucar!

— Sabes o que é pena? — exclamou ele, voltando-se de repentepara Carlos. — É que tu não tenhas um four-in-hand, um mail-coach.Íamos todos daqui, caía tudo de chique!

Carlos pensou também consigo que era uma pena não ter umfour-in-hand. Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Joc-key Club da Travessa da Conceição irem todos dentro de um ónibus.

Dâmaso voltou-se para o velho, deixando cair os braços, desco-roçoado:

— Aí está, Sr. Afonso da Maia! Aí está porque em Portugalnunca se faz nada em termos! É porque ninguém quer concorrerpara que as coisas saiam bem... Assim não é possível! Eu cáentendo isto: que num país, cada pessoa deve contribuir, quantopossa, para a civilização.

— Muito bem, Sr. Salcede! — disse Afonso da Maia.— Eis aíuma nobre, uma grande palavra!

— Pois não é verdade? — gritou Dâmaso, triunfante, a estoirarde gozo. — Assim eu, por exemplo...

— Tu, o quê? — exclamaram dos lados. — Que fizeste tu pelacivilização?...

— Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasacabranca... E vou de véu azul no chapéu!

Um escudeiro entrou com uma carta para Afonso, numa salva.O velho, sorrindo ainda das ideias de Dâmaso sobre a civilização,puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreuno rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre asua almofada o pesado «Bonifácio».

— Isto é que é ter gosto, isto é que é compreender as coisas! —exclamava o Dâmaso, agitando os braços para Carlos, quando ovelho desapareceu através do reposteiro de damasco. — Este teuavô, menino, é podre de chique!...

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— Deixa lá o chique do avô... Anda cá, que te quero dizer umacoisa.

Abriu uma das janelas do terraço, levou para lá o Dâmaso, edisse-lhe aí, à pressa, o seu plano da visita aos Olivais, e a lindatarde que poderiam passar na quinta com os Castros Gomes... Elejá falara ao Craft, que estava de acordo, achava delicioso, ia enchertudo de flores. E agora só restava que Dâmaso amigo, como amabi-lidade sua, convidasse os Castros Gomes...

— Caramba! — murmurou Dâmaso desconfiado. — Estás comfuror de a conhecer!

Mas enfim concordou que era chique a valer! E via aí uma belaocasião para ele!... Enquanto Carlos e Craft andassem mostrandoas curiosidades ao Castro Gomes e lhe falassem de cavalos, ele,zás, ia para a quinta passear com ela... A calhar!

— Pois vou amanhã já falar-lhes... Estou convencido que acei-tam logo. Ela pela-se por bricabraque!

— E vens dizer-me se aceitaram ou não...— Venho dizer-te... Tu vais gostar dela; tem lido muito, entende

também de literatura; e olha que às vezes a conversar atrapalha...O marquês veio chamá-los para dentro, impaciente, querendo

fechar a porta envidraçada, outra vez preocupado com a garganta.E desejava antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar comágua e sal...

— E é isto um português forte — exclamou Carlos,travando-lhe alegremente do braço.

— Eu sou piegas na garganta — replicou logo o marquês, des-prendendo-se dele e olhando-o com ferocidade. — E você é-o no sen-timento. E o Craft é-o na respeitabilidade. E o Damasozinho é-o natolice. Em Portugal é tudo Pieguice e Companhia!

Carlos, rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entraremna antecâmara, deram com Afonso falando a uma mulher carregadade luto, que lhe beijava a mão, meio de joelhos, sufocada de lágrimas:e ao lado outra mulher, com os olhos turvos de água também, emba-lava dentro do xale uma criancinha que parecia doente e gemia. Car-los parara embaraçado; o marquês instintivamente levou a mão àalgibeira. Mas o velho, assim surpreendido na sua caridade, foi logoempurrando as duas mulheres para a escada: elas desciam, encolhi-das, abençoando-o, num murmúrio de soluços; e ele, voltando-se paraCarlos, quase se desculpou numa voz que ainda tremia:

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— Sempre estes peditórios... Caso bem triste todavia... E o queé pior, é que por mais que dê nunca se dá bastante. Mundo muitomal feito, marquês.

— Mundo muito mal feito, Sr. Afonso da Maia — respondeu omarquês comovido.

No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu faetontede oito molas, levando ao lado Craft, que durante os dois dias de cor-ridas se instalara no Ramalhete, parou ao fim do Largo de Belém, nomomento em que para o lado do hipódromo estavam já estalandofoguetes. Um dos criados desceu a comprar o bilhete de pesagempara o Craft, numa tosca guarita de madeira, armada ali de véspera,onde se mexia um homenzinho de grandes barbas grisalhas.

Era um dia já quente, azul-ferrete, com um desses rutilantes sóisde festa que inflamam as pedras da rua, douram a poeirada baça do ar,põem fulgores de espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essabranca faiscação de cal, de um vivo monótono e implacável, que na len-tidão das horas de Verão cansa a alma, e vagamente entristece. NoLargo dos Jerónimos, silencioso, e a escaldar na luz, um ónibus espe-rava, desatrelado, junto ao portal da igreja. Um trabalhador com o filhoao colo, e a mulher ao lado no seu xale de ramagens, andava ali, pas-mando para a estrada, pasmando para o rio, a gozar ociosamente o seudomingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programas dascorridas que ninguém comprava. A mulher da água fresca, sem fregue-ses, sentara-se com a sua bilha à sombra, a catar um pequeno. Quatropesados municipais a cavalo patrulhavam a passo aquela solidão. E àdistância, sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente.

No entanto o trintanário continuava debruçado na guarita, sempoder arranjar lá dentro o troco de uma libra. Foi necessário Craftsaltar da almofada, ir lá parlamentar — enquanto Carlos, impa-ciente, raspando com o chicote as ancas das éguas, luzidias comoum cetim castanho, riscava no largo uma volta brusca e nervosa.Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, semdescerrar os lábios. É que toda aquela semana, desde a tarde emque combinara com o Dâmaso a visita aos Olivais, fora desconsola-dora. O Dâmaso tinha desaparecido, sem mandar a resposta dosCastros Gomes. Ele, por orgulho, não procurara o Dâmaso. Os diastinham passado, vazios; não se realizara o alegre idílio dos Olivais;ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a

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esperava nas corridas. E aquele domingo de festa, o grande Sol, agente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa,enchiam-no de melancolia e de mal-estar.

Uma caleche de praça passou, com dois sujeitos de flores aopeito, acabando de calçar as luvas; depois um dog-cart, governadopor um homem gordo, de lunetas pretas, quase foi esbarrar contrao arco. Enfim Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido descom-posto pelo homem de barbas proféticas.

Para além do arco, a poeira sufocava. Pelas janelas haviasenhoras debruçadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outrosmunicipais, a cavalo, atravancavam a rua.

À entrada para o hipódromo, abertura escalavrada num murode quintarola, o faetonte teve de parar atrás do dog-cart do homemgordo — que não podia também avançar porque a porta estavatomada pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor ao peitoberrava furiosamente com um polícia. Queria que se fosse chamaro Sr. Savedra! O Sr. Savedra, que era do Jockey Club, tinha-lhedito que ele podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho disserana véspera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar o Sr.Savedra! O polícia bracejava, enfiado. E o cavalheiro, tirando asluvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem — quando, tro-tando na sua grande horsa, um municipal de punho alçado correu,gritou, injuriou o cavalheiro gordo, fez rodar para fora a caleche.Outro municipal intrometeu-se, brutalmente. Duas senhoras, agar-rando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E atravésdo rebuliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, umrealejo tocando a Traviata.

O faetonte entrou — atrás do dog-cart, onde o homem gordo, aestourar de fúria, voltava ainda para trás a face escarlate, jurandodar parte do municipal.

— Tudo isto está arranjado com decência — murmurou Craft.Diante deles o hipódromo elevava-se suavemente em colina,

parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas rever-berações de cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já umpouco crestada pelo Sol de Junho, e uma ou outra papoula verme-lhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegavavagarosamente do rio.

No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, nobrilho do Sol, um magote apertado de gente, com algumas carrua-

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gens pelo meio, donde sobressaíam tons claros de sombrinhas, ofaiscar de um vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro.Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetãovermelho de mesa de repartição, erguiam-se as duas tribunaspúblicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques dearraial. A da esquerda, vazia, por pintar, mostrava à luz as fendasdo tabuado. Na da direita, besuntada por fora de azul-claro, haviauma fila de senhoras quase todas de escuro encostadas ao rebordo,outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadaspermanecia deserto e desconsolado, de um tom alvadio de madeira,que abafava as cores alegres dos raros vestidos de Verão. Por vezesa brisa lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeiro-las. Um grande silêncio caía do céu faiscante.

Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume demadeira, havia mais soldados de infantaria, com as baionetas lam-pejando ao sol. E no homem triste que estava à entrada, recebendoos bilhetes, metido dentro de um enorme colete branco, reteso degoma, e que lhe chegava até aos joelhos — Carlos reconheceu o ser-vente do seu laboratório.

Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira àporta do bufete onde se estivera reconfortando com uma cerveja.Tinha um molho de cravos amarelos ao peito, polainas brancas — equeria animar as corridas. Já vira a Mist, a égua do Clifford, edecidira apostar pela Mist. Que cabeça de animal, meninos, quefinura de pernas...!

— Palavra que me entusiasmou! E está decidido, um dia não sãodias, é necessário animar isto! Aposto três mil réis. Quer você, Craft?

— Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro ver o aspectogeral.

No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia sóhomens, a gente do Grémio, das Secretarias e da Casa Havanesa; amaior parte à vontade, com jaquetões claros, e de chapéu-coco;outros mais em estilo, de sobrecasaca e binóculo a tiracolo, pare-ciam embaraçados e quase arrependidos do seu chique. Falava-sebaixo, com passos lentos pela relva, entre leves fumaraças decigarro. Aqui e além um cavalheiro, parado, de mãos atrás das cos-tas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao lado de Carlosdois brasileiros queixavam-se do preço dos bilhetes, achando aquilouma «sensaboria de rachar».

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Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardadapor soldados: e junto à corda, do outro lado, apinhava-se o magote degente, com as carruagens pelo meio, sem um rumor, numa pasma-ceira tristonha, sob o peso do Sol de Junho. Um rapazote, com umavoz dolente, apregoava água fresca. Lá ao fundo o largo Tejo fais-cava, todo azul, tão azul como o céu, numa pulverização fina de luz.

O visconde de Darque, com o seu ar plácido de gentlemam loiroque começa a engordar, veio apertar a mão a Carlos e a Craft. Emal eles lhe falaram dos seus cavalos (Rabino, o favorito, e o outropotro) encolheu os ombros, cerrou os olhos, como um homem que sesacrifica. Então, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas ele,realmente, não podia apresentar um cavalo decente, com as suascores, senão daí a quatro anos. De resto não apurava cavalos paraaquela melancolia de Belém, não imaginassem os amigos que eleera tão patriota: o seu fim era ir a Espanha, bater os cavalos deCaldillo...

— Enfim, vamos a ver... Dê você cá lume. Isto está um horror. Edepois, que diabo, para corridas é necessário cocottes e champanhe.Com esta gente séria, e água fresca, não vai!

Nesse momento um dos comissários das corridas, um rapagãosem barba, vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob ochapéu branco deitado para a nuca, veio arrebatar o Darque, «queera muito preciso, lá na pesagem, para uma duvidazinha».

— Eu sou o dicionário — dizia o Darque, tornando a encolher osombros resignadamente. — De vez em quando vem um destessenhores do Jockey Club, e folheia-me... Veja você Maia, em queestado eu fico depois das corridas! Há-de ser necessárioencadernar-me de novo...

E lá foi, rindo da sua pilhéria — empurrado para diante pelocomissário, que lhe dava palmadas nas costas, e lhe chamavacatita.

— Vamos nós ver as mulheres — disse Carlos.Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no

rebordo, numa fila muda, olhando vagamente, como de uma janelaem dia de procissão, estavam ali todas as senhoras que vêm noHigh Life dos jornais, as dos camarotes de S. Carlos, as dasterças-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos sériosde missa. Aqui e além um desses grandes chapéus emplumados àGainsborough, que então se começavam a usar, carregava de uma

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sombra maior o tom trigueiro de uma carinha miúda. E na luzfranca da tarde, no grande ar da colina descoberta, as peles apare-ciam murchas, gastas, moles, com um baço de pó de arroz.

Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas,loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois aviscondessa de Alvim, nédia e branca, com o corpete negro relu-zente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparável, a Joani-nha Vilar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez maisdoce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banquei-ras, de cores claras, interessando-se pelas corridas, uma de pro-grama na mão, a outra de pé e de binóculo estudando a pista. Aolado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desar-ranjada, com um ar de ter lama nas saias. Numa bancada isolada,em silêncio, Vilaça com duas damas de preto.

A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava tam-bém aquela que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente esem esperança.

— É um canteirinho de camélias meladas — disse o Taveira,repetindo um dito do Ega.

Carlos, no entanto, fora falar à sua velha amiga D. Maria daCunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque,com o seu sorriso de boa mamã. Era a única senhora que ousaradescer do retiro ajanelado da tribuna, e vir sentar-se em baixo,entre os homens: mas, como ela disse, não aturava a seca de estarlá em cima perfilada, à espera da passagem do Senhor dos Passos.E, bela ainda sob os seus cabelos já grisalhos, só ela parecia diver-tir-se ali, muito à vontade, com os pés pousados na travessa deuma cadeira, o binóculo no regaço, cumprimentada a cada instante,tratando os rapazes por meninos... Tinha consigo uma parenta queapresentou a Carlos, uma senhora espanhola, que seria bonita senão fossem as olheiras negras, cavadas até ao meio da face. ApenasCarlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esseaventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava emCelorico, compondo uma comédia para se vingar de Lisboa, cha-mada O Lodaçal...

— Entra o Cohen? — perguntou ela, rindo.— Entramos todos, Sr.a D. Maria. Todos nós somos lodaçal...Nesse momento, por trás do recinto, rompia, com um taran-

tantã molengão de tambores e pratos, o Hino da Carta, a que se

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misturou uma voz de oficial e o bater de coronhas. E, entre doura-dos de dragonas, El-rei apareceu na tribuna, sorrindo, de quinzenade veludo, e chapéu branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimen-taram, muito de leve: a senhora espanhola, essa, tomou o óculo doregaço de D. Maria, e de pé, muito descansadamente, pôs-se a exa-minar o rei. D. Maria achava ridícula a música, dando às corridasum ar de arraial... Além disso, que tolice, o hino, como num dia deparada!

— E este hino, então, que é medonho — dizia Carlos.— A Sr.a

D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua teoria dos hinos?Maravilhosa!

— Aquele Ega! — dizia ela sorrindo, já encantada.— O Ega diz que o hino é a definição pela música do carácter de

um povo. Tal é o compasso do hino nacional, diz ele, tal é o movi-mento moral da nação. Agora veja a Sr.a D. Maria os diferenteshinos, segundo o Ega. A Marselhesa avança com uma espada nua.O God Save the Queen adianta-se, arrastando um manto real...

— E o Hino da Carta?— O Hino da Carta ginga, de rabona.E D. Maria ria ainda, quando a espanhola, sentando-se e

repousando-lhe tranquilamente o binóculo no regaço, murmurou:— Tiene cara de buena persona.— Quem, o rei? — exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos.

— Excelente!No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indi-

cador subiram os números dos dois cavalos que corriam o primeiroprémio dos Produtos. Eram o n.° 1 e o n.° 4. D. Maria da Cunhaquis-lhes saber os nomes, com o apetite de apostar e ganhar cincotostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um pro-grama:

— Deixe estar o menino — disse ela, tocando-lhe no braço. — Aívem o nosso Alencar, com o programa... Olhe para aquilo! Veja seainda hoje os há por aí com aquele ar de sentimento e de poesia...

Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvasgris-perle, o seu bilhete de pesagem na botoeira, o poeta vinha-seabanando com o programa, e já de longe sorrindo à sua boa amigaD. Maria. Quando chegou junto dela, descoberto, bem penteadonesse dia, com um lustre de óleo na grenha, levou-lhe a mão aoslábios, fidalgamente.

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D. Maria fora uma das suas lindas contemporâneas. Tinhamdançado muita ardente mazurca nos salões de Arroios. Elatratava-o por tu. Ele dizia sempre boa amiga, e querida Maria.

— Deixa ver os nomes desses cavalos, Alencar... Senta-te aí,anda, faz companhia.

Ele puxou uma cadeira, rindo do interesse que ela tomavapelas corridas. E ele que a conhecera sempre uma entusiasta detoiros!... Pois os nomes dos cavalos eram Júpiter e Escocês...

— Nenhum desses nomes me agrada, não aposto. E então quete parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vai-se saindo da con-cha...

Alencar, pousando o chapéu sobre uma cadeira e passando amão pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquilo tinharealmente um certo ar de elegância, um perfume de corte... Depois,lá em baixo, aquele maravilhoso Tejo... sem falar na importância doapuramento das raças cavalares...

— Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superior-mente disso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que oapuramento...

— Sim, com efeito, o apuramento, muito importante...— disseCarlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.

Eram quase três horas, e agora decerto ela já não vinha: e acondessa de Gouvarinho não aparecia também... Começava ainvadi-lo uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movi-mento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joani-nha Vilar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquila-mente a tarde, dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longede todo aquele tédio.

No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira,filha do rico negociante de sapatos de ourelo, passou pelo braço doirmão, abonecada, com o arzinho petulante e enojado de tudo,falando alto inglês. Depois foi a ministra da Baviera, a baronesa deCraben, enorme, empavoada, com uma face maciça de matronaromana, a pele cheia de manchas cor de tomate, a estalar dentro deum vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atrás o barão,pequenino, amável, aos pulinhos, com um grande chapéu de palha.

D. Maria da Cunha erguera-se para lhes falar: e durante ummomento ouviu-se, como um gluglu grosso de peru, a voz da baro-nesa achando que c’était charmant, c’était très beau. O barão, aos

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pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diantedaqueles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a suaatitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes,alçando mais a fronte nua.

Quando eles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tor-nou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava alemães!O ar de sobranceria com que aquela ministra, com feitio de barrica,deixando sair o sebo por todas as costuras do vestido, o olhara, aele! Ora, a insolente baleia!

D. Maria sorria, olhando com simpatia o poeta. E voltando-sede repente para a senhora espanhola:

— Concha, deja-me presentar-te D. Tomás de Alencar, nuestrogran poeta lírico...

Nesse momento, alguns dos rapazes mais amadores, dos quetraziam binóculos a tiracolo, apressaram o passo para a corda dapista. Dois cavalos passavam num galope sereno, quase juntos, sobas vergastadas estonteadas de dois jóqueis de grandes bigodes.Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escocês. Outros afir-mavam que fora Júpiter. E no silêncio que se fez, de lassidão e dedesapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins dabanda, a valsa de Madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se con-servado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna — ondeas senhoras continuavam debruçadas no parapeito, à espera doSenhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu asimpressões, dizendo que tudo aquilo era uma intrujice.

E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Dâmaso, Alencar,muito animado com a espanhola, falava de Sevilha, de malague-nhas e do coração de Espronceda.

O desejo de Carlos agora era achar Dâmaso, saber porquefalhara a visita aos Olivais — e depois ir-se embora para o Rama-lhete, esconder aquela melancolia que o enevoava, estranha e pue-ril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes quelhe falavam, o ratatã da música, até a beleza calma da tarde... Masao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, oapresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava falando ale-gremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Córdova.Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aqueleinglês legendário em Lisboa, dono de cavalos de corridas, amigo dorei de Espanha, homem de todos os chiques. Ele, muito à vontade,

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um pouco poseur, com um simples veston de flanela azul como nocampo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado nocolégio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavel-mente. Não se tinham encontrado havia quase um ano, em Madrid,num jantar, em casa de Pancho Calderón? E assim era. O aperto demão que repetiram foi mais íntimo — e Craft quis que fossem regaraquela flor de amizade com uma garrafa de mau champanhe. Emroda crescera a pasmaceira.

O bufete estava instalado debaixo da tribuna, sob o tabuado nu,sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria umaprateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcãotosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam à pressa asfatias de sanduíches com as mãos húmidas da espuma da cerveja.

Quando Carlos e os dois amigos entraram, havia junto de umdos barrotes que especavam os degraus da tribuna, num grupo ani-mado, com copos de champanhe na mão, o marquês, o visconde deDarque, o Taveira, um rapaz pálido de barba preta, que tinhadebaixo do braço enrolada a bandeira vermelha de starter, e ocomissário imberbe, com o chapéu branco cada vez mais atiradopara a nuca, a face mais esbraseada, o colarinho já mole de suor.Era ele que oferecia o champanhe; e apenas viu entrar Clifford,rompeu para ele, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seuvozeirão:

— À saúde do amigo Clifford! o primeiro sportman da Penín-sula, e rapaz cá dos nossos!... Hip, hip, hurra!

Os copos ergueram-se, num clamor de hurras, onde destacou,vibrante e entusiasta, a voz do starter. Clifford agradecia, risonho,tirando lentamente as luvas — enquanto o marquês, puxando Car-los pelo braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o comissá-rio, seu primo D. Pedro Vargas.

— Muito gosto em conhecer...— Qual história! Eu é que fazia furor! — exclamou o comissá-

rio. — Cá a rapaziada do sport deve conhecer-se toda... Porque istocá é a confraria, e todo o resto é chinfrinada!

E imediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um ímpetoque lhe trazia mais sangue à face:

— À saúde de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da pátria!a melhor mão de rédea... Hip, hip, hurra...

— Hip, hip, hip... Hurra!

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E foi ainda a voz do starter que deu o hurra mais vibrante emais entusiasta.

Um empregado assomou à porta do bufete, e chamou o senhorcomissário. O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gri-tando já de fora, com o olho aceso:

— Isto vai-se animando, rapazes! Caramba! É carregar nolíquido! E você, ó lá de baixo, ó patrão, sô Manuel, mande vir essegelo... Está a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache umpróprio, vá você, rebente! Irra!

No entanto, enquanto se desarrolhava o champanhe de Craft,Carlos tinha convidado Clifford a jantar nessa noite no Ramalhete.O outro aceitou, molhando os lábios no copo, achando excelente quese continuasse a tradição de jantarem juntos, sempre que se encon-travam.

— Olá! o general por aqui! — exclamou Craft.Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um

pimentão, entalado numa sobrecasaca curta que o fazia mais atar-racado, de chapéu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo dobraço.

Aceitou um copo de champanhe, e teve muito prazer em conhe-cer o Sr. Clifford...

— E que me diz você a esta sensaboria? — exclamou ele logo,voltando-se para Carlos.

Enquanto a si estava contente, pulava... Aquela corrida insí-pida, sem cavalos, sem jóqueis, com meia dúzia de pessoas a boce-jar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as últimas e que oJockey Club rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre de umdivertimento que não estava nos hábitos do país. Corridas era parase apostar. Tinha-se apostado? Não? Então histórias!... Em Ingla-terra e em França, sim! Aí eram um jogo como a roleta, ou como omonte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... Então jáviam!

E como o marquês, pousando o copo, e querendo calmar o gene-ral, falava do apuramento das raças, e da remonta — o outroergueu os ombros, com indignação:

— Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura araça para a remonta da cavalaria?... Ora vá lá montar o exércitocom cavalos de corridas!... Em serviço o que se quer não é o cavaloque corra mais, é o cavalo que aguente mais... O resto é uma histó-

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ria... Cavalos de corridas são fenómenos! São como o boi com duascabeças... Então histórias!... Em França até lhes dão champanhe,homem!... Então veja lá!.. .

E a cada frase, sacudia os ombros, furiosamente. Depois, de umtrago, esvaziou o seu copo de champanhe, repetiu que tinha muitoprazer em conhecer o Sr. Clifford, rodou sobre os tacões, saiu,bufando, entalando mais debaixo do braço o chicote — que tremiana ponta como ávido de vergastar alguém.

Craft sorria, batia no ombro de Clifford.— Veja você! Cá nós, velhos portugueses, não gostamos de novi-

dades, e de sports... Somos pelo toiro...— Com razão — dizia o outro, sério e aprumando-se sobre o

colarinho. — Ainda há dias me contava na Granja, o Rei de Espa-nha...

De repente, fora, houve um rebuliço, e vozes sobressaltadas gri-tando: Ordem! Uma senhora, que atravessava com um pequenito,fugiu para dentro do bufete, enfiada. Um polícia passou, correndo.

Era uma desordem!...Carlos e os outros, saindo à pressa, viram ao pé da tribuna real

um magote de homens — onde bracejava o Vargas. Do largo dapesagem, os rapazes corriam com curiosidade, já excitados, api-nhando-se, alçando-se em bicos de pés; do recinto das carruagensacudiam outros, saltando as cordas da pista, apesar dos repelõesdos polícias — e agora era uma massa tumultuosa de chapéusaltos, de fatos claros, empurrando-se contra as escadas da tribunareal, onde um ajudante de el-rei, reluzente de agulhetas e emcabelo, olhava tranquilamente.

E Carlos, furando, pôde enfim avistar no meio do montão umdos sujeitos que correra no prémio dos Produtos, o que montavaJúpiter, ainda de botas, com paletó alvadio por cima da jaqueta dejóquei, furioso, perdido, injuriando o juiz das corridas, o Mendonça,que arregalava os olhos, aturdido e sem uma palavra. Os amigos dojóquei puxavam-no, queriam que ele fizesse um protesto. Mas elebatia o pé, trémulo, lívido, gritando que não se importava nada comprotestos! Perdera a corrida por uma pouca-vergonha! O protestoali era um arrocho! Porque o que havia naquele hipódromo eracompadrice e ladroeira!

Indivíduos, mais sérios, indignaram-se com esta brutalidade.— Fora! Fora!

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Alguns tomavam o partido do jóquei; já aos lados outras ques-tões surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berravaque o Mendonça decidira pelo Pinheiro, que montava Escocês, porser íntimo dele; outro cavalheiro, de binóculo a tiracolo, achavaaquela insinuação infame; e os dois, frente a frente, com os punhosfechados, tratavam-se furiosamente de pulhas.

E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes colarinhosde pintinhas, procurava romper, erguia os braços, exclamava,numa voz suplicante e rouca:

— Por quem são, meus senhores... Um momento... Eu tenhoexperiência... Eu tenho experiência!

De repente o vozeirão do Vargas dominou tudo, como um urrode toiro. Diante do jóquei, sem chapéu, com a face a estoirar desangue, gritava-lhe que era indigno de estar ali, entre gentedecente! Quando um gentleman duvida do juiz da corrida, faz umprotesto! Mas vir dizer que há ladrões, era só de um canalha e deum fadista, como ele, que nunca devia ter pertencido ao JockeyClub! — O outro, agarrado pelos amigos, esticando o pescoço magrocomo para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo. Então o Vargas,com um encontrão para os lados, abriu espaço, repuxou as mangas,berrou:

— Repita lá isso! Repita lá isso!E imediatamente aquela massa de gente oscilou, embateu con-

tra o tabuado da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes deordem e morra, chapéus pelo ar, baques surdos de murros.

Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polí-cia; senhoras, com as saias apanhadas, fugiam através da pista,procurando espavoridamente as carruagens — e um sopro gros-seiro de desordem reles passava sobre o hipódromo, desmanchandoa linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro...

Carlos achou-se ao pé do marquês, que exclamava, pálido:— Isto é incrível! Isto é incrível!. ..Carlos, pelo contrário, achava pitoresco.— Qual pitoresco, homem! É uma vergonha, com todos esses

estrangeiros!No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obede-

cendo ao oficial da Guarda, um moço pequenino mas decidido, que,em bicos de pés, aconselhava para os lados, numa voz de orador,«cavalheirismo» e «prudência»... O jóquei de paletó alvadio

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afastou-se, apoiado ao braço de um amigo, coxeando, com o nariz apingar sangue: e o comissário desceu para a pista, com um cortejoatrás, triunfante, sem colarinho, arranjando o chapéu achatadonuma pasta. A música tocava a marcha do Profeta, enquanto o des-graçado juiz das corridas, o Mendonça, encostado à tribuna real,com os braços caídos, aparvalhado, balbuciava num resto de assom-bro:

— Isto só a mim! Isto só a mim!O marquês, num grupo a que se juntara o Clifford, Craft, e

Taveira, continuava a vociferar:— Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito?

Isto é um país que só suporta hortas e arraiais... Corridas, comomuitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeirogente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gosta-mos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Aíestá o que é!

Ao lado dele, Clifford, que no meio daquele desmancho todoesticava mais correctamente a sua linha de gentleman, mordia umsorriso, assegurando, com um ar de consolação, que conflitos iguaissucedem em toda a parte... Mas no fundo parecia achar tudo aquiloignóbil. Dizia-se mesmo que ele ia retirar a Mist. E algunsdavam-lhe razão. Que diabo! Era aviltante para um belo animal deraça correr num hipódromo sem ordem e sem decência, onde a todoo momento podiam reluzir navalhas.

— Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Dâmaso? — per-guntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. — Há uma horaque ando a farejá-lo...

— Estava ainda há pouco do outro lado, no recinto das carrua-gens, com a Josefina do Salazar... Anda extraordinário, de sobreca-saca branca, e de véu no chapéu!

Mas, quando daí a pouco Carlos quis atravessar, a pista estavafechada. Ia-se correr o Grande Prémio Nacional. Os números játinham subido no indicador, um tom de sineta morria no ar. Umcavalo do Darque, o Rabino, com o seu jóquei de encarnado ebranco, descia, trazido à rédea por um groom e acompanhado peloDarque: alguns sujeitos paravam a examinar-lhe as pernas, com oolho sério, afectando entender. Carlos demorou-se um momentotambém, admirando-o: era de um bonito castanho-escuro, nervoso eligeiro, mas com o peito estreito.

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Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabavadecerto de chegar, e conversava de pé com D. Maria da Cunha.Estava com uma toilette inglesa, justa e simples, toda de casimirabranca, de um branco de creme, onde as grandes luvas negras àmosqueteira punham um contraste audaz: e o chapéu preto tam-bém desaparecia sob as pregas finas de um véu branco, enroladoem volta da cabeça, cobrindo-lhe metade do rosto, com um ar orien-tal que não ia bem ao seu narizinho curto, ao seu cabelo cor debrasa. Mas em redor os homens olhavam para ela como para umquadro.

Ao avistar Carlos, a condessa não conteve um sorriso, um bri-lho de olhos que a iluminou. Instintivamente deu um passo paraele: e ficaram um instante isolados, falando baixo, enquantoD. Maria os observava, sorrindo, cheia já de benevolência, prontajá a abençoá-los maternalmente.

— Estive para não vir — dizia a condessa, que parecia nervosa.— O Gastão fez-se tão desagradável hoje! E naturalmente tenho deir amanhã para o Porto.

— Para o Porto?...— O papá quer que eu lá vá, são os anos dele... Coitado, vai-se

fazendo velho, escreveu-me uma carta tão triste... Há dois anos queme não vê...

— O conde vai? — Não.E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera,

que a cumprimentava de passagem, aos pulinhos, acrescentou,mergulhando o olhar nos olhos de Carlos:

— E quero uma coisa.— O quê?— Que venhas também.Justamente nesse instante, Teles da Gama, de programa e lápis

na mão, parou junto deles:— Você quer entrar numa poule monstro, Maia? Quinze bilhe-

tes, dez tostões cada um... Lá em cima ao canto da tribuna está-seapostando ferozmente... A desordem fez bem, sacudiu os nervos,todo o mundo acordou... Quer Vossa Excelência também, senhoracondessa?

Sim, a condessa entrava na poule. Teles da Gama inscreveu-a, eabalou atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo flo-

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rido, de chapéu branco, ferradura de rubis na gravata, mais esti-cado, mais loiro, mais inglês, neste dia solene de sport oficial.

— Ah, comme vous êtes belle, comtesse!... Voilà une toilettemerveilleuse, n’est ce pas, Maia?... Est-ce que nous n’allons pasparier quelque chose?

A condessa, contrariada, querendo falar a Carlos, risonha toda-via, lamentou-se de ter já uma fortuna comprometida... Enfim sem-pre apostava cinco tostões com a Finlândia. Que cavalo tomava ele?

— Ah, je ne sais pas, je ne connais pas le chevaux... D’abord,quand on parie...

Ela, impaciente, ofereceu-lhe Vladimiro. E teve de estender amão a outro finlandês, o secretário de Steinbroken, um moço loiro,lento, lânguido, que se curvara em silêncio diante dela, deixandoescorregar do olho claro e vago o seu monóculo de oiro. Quase ime-diatamente Taveira excitado veio dizer que Clifford retirara a Mist.

Vendo-a assim cercada, Carlos afastou-se. Justamente o olharde D. Maria, que o não deixara, chamava-o agora, mais carinhoso evivo. Quando ele se chegou, ela puxou-lhe pela manga, fê-lo debru-çar, para lhe murmurar ao ouvido, deliciada: — Está hoje tãogalante!

— Quem?D. Maria encolheu os ombros, impaciente.— Ora quem! Quem há-de ser? O menino sabe perfeitamente. A

condessa... Está de apetite.— Muito galante, com efeito — disse Carlos friamente.De pé, junto de D. Maria, tirando devagar uma cigarette, ele

ruminava, quase com indignação, as palavras da condessa. Ir comela para o Porto!... E via ali outra exigência audaz, a mesma tendên-cia impertinente a dispor do seu tempo, dos seus passos, da sua vida!Tinha um desejo de voltar junto dela, dizer-lhe que não, secamente,desabridamente, sem motivos, sem explicações, como um brutal.

Acompanhada em silêncio pelo esguio secretário de Steinbro-ken, ela vinha agora caminhando lentamente para ele; e o olharalegre com que o envolvia irritou-o mais, sentindo no seu brilhosereno, no sorrir calmo, quanto ela estava certa da sua submissão.

E estava. Apenas o finlandês se afastou languidamente — ela,muito tranquila, ali mesmo junto de D. Maria, falando em inglês, eapontando para a pista como se comentasse os cavalos do Darque,explicou-lhe um plano que imaginara, encantador. Em lugar de

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partir na terça-feira para o Porto — ia na segunda à noite, só com acriada escocesa, sua confidente, num compartimento reservado.Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarém, desciam ambos,muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinteela seguia para o Porto, ele recolhia a Lisboa...

Carlos abria os olhos para ela, assombrado, emudecido. Nãoesperava aquela extravagância. Supusera que ela o queria noPorto, escondido no Francfort, para passeios românticos à Foz, ouvisitas furtivas a algum casebre da Aguardente... Mas a ideia deuma noite, num hotel, em Santarém!

Terminou por encolher os ombros, indignado. Como queria ela,numa linha de caminho-de-ferro em que se encontra constante-mente gente conhecida, apear-se com ele na estação de Santarém,dar-lhe o braço, maritalmente, e enfiarem para uma estalagem?Ela, porém, pensara em todos os detalhes. Ninguém a conheceria,disfarçada num grande water-proof, e com uma cabeleira postiça.

— Com uma cabeleira!?— O Gastão! — murmurou ela de repente.Era o conde, por trás dele abraçando-o ternamente pela cin-

tura. E quis logo saber a opinião do amigo Maia sobre as corridas.Bastante animação, não é verdade? E bonitas toilettes, certo ar deluxo... Enfim, não envergonhavam. E aí estava provado o que elesempre dissera, que todos os requintes da civilização se aclimata-vam bem em Portugal!...

— O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo físico, é um soloabençoado!

A condessa voltara para o pé de D. Maria. E Teles da Gama,passando de novo, naquela faina ruidosa em que o trazia a forma-ção da sua poule, chamou Carlos para a tribuna, para ele tirar oseu bilhete, e apostar com as senhoras...

— Ó Gouvarinho! venha também daí, homem! — exclamou ele.— Que diabo! É necessário animar isto, é até patriótico.

E o conde condescendeu, por patriotismo.— É bom — dizia ele, travando do braço de Carlos— fomentar

os divertimentos elegantes. Já uma vez o disse na Câmara: o luxo éconservador.

Em cima, a um canto, num grupo de senhoras, foram com efeitoencontrar uma animação — que quase fazia escândalo naquela tri-buna silenciosa e à espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de

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Alvim dobrava atarefadamente os bilhetes da poule: uma secretaria-zinha da Rússia, de bonitos olhos garços, apostava desesperada-mente placas de cinco tostões, estonteada, já embrulhada, rabis-cando com frenesi o seu programa. A Pinheiro, a mais magra, comum vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia covas nas cla-vículas, dava opiniões pretensiosas sobre os cavalos, em inglês,enquanto o Taveira, de olhos húmidos no meio de todas aquelassaias, falava de arruinar as senhoras, de viver à custa das senho-ras... E todos os homens, acotovelando-se, queriam fazer uma apostacom a Joaninha Vilar, que, de costas contra o rebordo da tribuna,gordinha e lânguida, sorrindo, com a cabeça deitada para trás, aspestanas mortas, parecia oferecer a todas aquelas mãos, que seestendiam gulosamente para ela, o seu apetitoso peito de rola.

Teles da Gama, no entanto, ia organizando a confusão alegre.Os bilhetes estavam dobrados, era necessário um chapéu... Entãoos cavalheiros afectaram um amor desordenado pelos seus cha-péus, não os querendo confiar às mãos nervosas das senhoras; umrapaz, todo de luto, excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu,com ambas as mãos, aos gritos.

A secretariazinha da Rússia, impaciente, terminou por oferecero barrete de marujo do seu pequeno — uma criança obesa, pousadaali para o lado como uma trouxa. Foi a Joaninha Vilar que levouem roda os bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiçosamente,enquanto o secretário de Steinbroken, grave, como exercendo umafunção, recolhia no seu grande chapéu as placas caindo uma a umacom um som argentino. E a tiragem foi o lindo divertimento dapoule. Como estavam só quatro cavalos inscritos, e as entradaseram quinze, havia onze bilhetes brancos que aterravam. Todosambicionavam tirar o número três, o de Rabino, o cavalo de Dar-que, favorito do Prémio Nacional. Assim cada mãozinha sôfregaque se demorava no fundo do barrete, remexendo, tenteando ospapéis, causava uma indignação folgazã, num exagero de risos.

— A senhora viscondessa procura de mais!... E dobrou os núme-ros, conhece-os... É necessário probidade, senhora viscondessa!

— Oh, mon Dieu, j’ai Minhoto, cette rosse!— Je vous l’achette, madame!— Ó Sr.a D. Maria Pinheiro, Vossa Excelência leva dois núme-

ros!...— Ah! je suis perdue... Blanc!

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— E eu! É necessário fazer outra poule! Vamos fazer outrapoule!

— Isso! Outra poule, outra poule!No entanto a enorme baronesa de Craben, num degrau mais

elevado, que ela ocupava só, como um trono, erguera-se, com o seubilhete na mão. Tinha tirado Rabino: e afectava superiormente nãocompreender esta fortuna, perguntava o que era Rabino. Quando oconde de Gouvarinho lhe explicou muito sério a importância deRabino, e que Rabino era quase uma glória pública, ela mostrou adentuça, condescendeu em rosnar do fundo do papo que c’étaitcharmant. Todo o mundo a invejava; e a vasta baleia alastrou-se denovo sobre o trono, abanando-se, com majestade.

E subitamente houve uma surpresa: enquanto eles tiravam osbilhetes, os cavalos tinham partido, passavam juntos diante da tri-buna. Todos se ergueram, de binóculos na mão. O starter aindaestava na pista, com a bandeira vermelha inclinada ao chão: e asancas dos cavalos fugiam na curva, lustrosos à luz, sob as jaquetasenfunadas dos jóqueis.

Então todo o rumor de vozes caiu; e no silêncio a bela tardepareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Através doar sem poeira, sem a vibração dos raios fortes, tudo tomava umanitidez delicada: defronte da tribuna, na colina, a relva era de umloiro quente: no grupo de carruagens cintilava por vezes o vidro deuma lanterna, o metal de um arreio, ou de pé, sobre uma almofada,destacava em escuro alguma figura de chapéu alto; e pela pistaverde, os cavalos corriam, mais pequenos, finalmente recortados naluz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve aguadacor-de-rosa: e o distante horizonte resplandecia, com dourados deSol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se numa névoa luminosa, ondeas colinas, nos seus tons azulados, tinham quase transparência,como feitas de uma substância preciosa...

— É Rabino! — exclamou por trás de Carlos um sujeito, de pénum degrau.

As cores encarnadas e brancas do Darque corriam com efeito nafrente. Os dois outros cavalos iam juntos; e o último, num galopeque adormecia, era Vladimiro, outro potro do Darque, baio-claro,quase loiro à luz.

Então, a secretária da Rússia bateu as palmas, interpelou Car-los que justamente tirara na poule o número de Vladimiro. A ela

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coubera Minhoto, uma pileca melancólica do Manuel Godinho; etinham feito sobre os dois cavalos uma aposta complicada de luvase de amêndoas. Já umas poucas de vezes os seus lindos olhos gar-ços tinham procurado os de Carlos; e agora tocava-lhe no braço como leque, gracejava, triunfava...

— Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c’est un vieuxcheval de fiacre, vôtre Vladimiro.

Como um cavalo de fiacre? Vladimiro era o melhor potro doDarque! Talvez ainda viesse a ser a única glória de Portugal, comooutrora o Gladiador fora a única glória da França! Talvez aindasubstituísse Camões...

— Ah, vous plaisantez...Não, Carlos não gracejava. Estava até pronto a apostar tudo

por Vladimiro.— Você aposta por Vladimiro? — gritou Teles da Gama, vol-

tando-se vivamente.Carlos, por divertimento, sem mesmo saber porquê, declarou

que tomava Vladimiro. Então, em roda, foi uma surpresa; e todo omundo quis apostar, aproveitar-se daquela fantasia de homem rico,que sustentava um potro verde, de três quartos de sangue, a que opróprio Darque chamava pileca. Ele sorria, aceitava; terminou atépor erguer a voz, proclamar Vladimiro contra o campo. E de todosos lados o chamavam, numa sofreguidão de saque.

— Mr. de Maia, dix tostons.— Parfaitement, madame.— Ó Maia, você quer meia libra?— Às ordens!— Maia, também eu! Ouça lá... Também eu!... Dois mil réis.— Ó Sr. Maia, eu dou dez tostões...— Com o maior prazer, minha senhora...Ao longe os cavalos davam a volta, na subida do terreno.

Rabino já desaparecera — e Vladimiro, num galope a que se sentiao cansaço, corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elemanquejava. Então Carlos, que continuava a tomar Vladimiro con-tra o campo, sentiu que lhe puxavam devagar pela manga;voltou-se; era o secretário de Steinbroken, chegando, subtilmente,a tomar também parte no saque à bolsa do Maia, propondo doissoberanos, em seu nome e em nome do seu chefe, como uma apostacolectiva da Legação, a aposta do reino da Finlândia.

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— C’est fait, monsieur! — exclamou Carlos, rindo.Agora começava a divertir-se. Apenas vira de relance Vladimiro,

e gostara da cabeça ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; masapostava sobretudo para animar mais aquele recanto da tribuna,ver brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres. Telesda Gama ao lado aprovava-o, achava aquilo patriótico e chique.

— É Minhoto! — gritou de repente Taveira.Na volta, com efeito, fizera-se uma mudança. Subitamente

Rabino perdera terreno, resistindo à subida, com o fôlego curto. Eagora era Minhoto, o cavalicoque obscuro de Manuel Godinho, quese arremessava para a frente, vinha devorando a pista, numesforço contínuo, admiravelmente montado por um jóquei espanhol.E logo atrás vinham as cores escarlates e brancas de Darque: aoprincípio ainda pareceu que era Rabino: mas, apanhado de repentenum raio oblíquo de Sol, o cavalo cobriu-se de tons lustrosos debaio-claro, e foi uma surpresa ao reconhecer-se que era Vladimiro!A corrida travava-se entre ele e Minhoto.

Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam,de chapéus no ar:

— Minhoto! Minhoto!E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo con-

tra Vladimiro faziam também votos por Minhoto, em bicos de pés,junto do parapeito da tribuna, estendendo o braço para ele, ani-mando-o:

— Anda Minhoto!... Isso, assim!... Aguenta, rapaz!... Bravo!...Minhoto! Minhoto!

A russa, toda nervosa, na esperança de ganhar a poule, batia aspalmas. Até a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna,enchendo-a com os seus gorgorões azuis e brancos: — enquantoque, ao lado dela, o conde de Gouvarinho, também de pé, sorria,contente no seu peito de patriota, vendo naqueles jóqueis à desfi-lada, nos chapéus que se agitavam, brilhar civilização...

De repente, de baixo, de ao pé da tribuna, de entre os rapazesque cercavam o Darque, uma exclamação partiu.

— Vladimiro! Vladimiro!Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a

Minhoto: e agora chegavam furiosamente, com brilhos vivos decores claras, os focinhos juntos, os olhos esbugalhados, sob umachuva de vergastadas.

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Teles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seuíntimo, berrava por Vladimiro. A russa, de pé num degrau, apoiadasobre o ombro de Carlos, pálida, excitada, animava Minhoto comgritinhos, com pancadas de leque. A agitação daquele canto da tri-buna estendera-se em baixo ao recinto — onde se via uma linha dehomens, contra a corda da pista, bracejando. Do outro lado, erauma fila de rostos pálidos, fixos numa curta ansiedade. Algumassenhoras tinham-se posto de pé nas carruagens. E através dacolina, para ver a chegada, dois cavaleiros, segurando com as mãosos chapéus baixos, corriam à desfilada.

— Vladimiro! Vladimiro! — foram de novo os gritos isolados,aqui, além.

Os dois cavalos aproximavam-se, com um som surdo das patas,trazendo um ar de rajada.

— Minhoto! Minhoto!— Vladimiro! Vladimiro!Chegavam... De repente o jóquei inglês de Vladimiro, todo em

fogo, levantando o potro que lhe parecia fugir de entre as pernas,esticado e lustroso, fez silvar triunfantemente o chicote, e de umarremesso directo lançou-o além da meta, duas cabeças adiante deMinhoto, todo coberto de espuma.

Então em volta de Carlos foi uma desconsolação, um longomurmúrio de lassidão. Todos perdiam; ele apanhava a poule,ganhava as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Umadido italiano, tesoureiro da poule, empalideceu ao separar-se dolenço cheio de prata: e de todos os lados mãozinhas calçadas degris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe com um ar amuado asapostas perdidas, chuva de placas que ele recolhia, rindo, no cha-péu.

— Ah, monsieur — exclamou a vasta ministra da Baviera,furiosa — mefiez-vous... Vous connaissez le proverbe: heureux aujeu...

— Helas! madame! — disse Carlos, resignado, estendendo-lhe ochapéu.

E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braço. Era o secretáriode Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e odinheiro do seu chefe, a aposta do reino da Finlândia.

— Quanto ganha você? — exclamou Teles da Gama, assom-brado.

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Carlos não sabia. No fundo do chapéu já reluzia ouro. Teles con-tou, com o olho brilhante.

— Você ganha doze libras! — disse ele maravilhado, e olhandoCarlos com respeito.

Doze libras! Esta soma espalhou-se em redor, num rumor deespanto. Doze libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando oschapéus, davam ainda hurras. Mas uma indiferença, um tédiolento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente. Os rapazesvinham-se deixar cair nas cadeiras, bocejando, com um ar exausto.A música, desanimada também, tocava coisas plangentes daNorma.

Carlos, no entanto, num degrau da tribuna, com a ideia de des-cobrir o Dâmaso, sondava de binóculo o recinto das carruagens. Agente, agora, ia dispersando pela colina. As senhoras tinham reto-mado a imobilidade melancólica, no fundo das caleches, de mãos noregaço. Aqui e além um dog-cart, mal arranjado, dava um trotecurto pela relva. Numa vitória estavam as duas espanholas doEusebiozinho, a Concha e a Cármen, de sombrinhas escarlates. Esujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam para um char-à--bancs a quatro atrelado à Daumont, onde, entre uma famíliatriste, uma ama de lenço de lavradeira dava de mamar a umacriança cheia de rendas. Dois garotos esganiçados passeavambilhas de água fresca.

Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Dâmaso —quando deu justamente de frente com ele, dirigindo-se para aescada, afogueado, flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.

— Onde diabo tens tu estado criatura?O Dâmaso agarrou-o pelo braço, alçou-se em bicos de pés, para

lhe contar ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gajadivina, a Josefina do Salazar... Chique a valer! lindamente vestida!parecia-lhe que tinha mulher!

— Ah, Sardanápalo!...— Faz-se pela vida... Volta cá acima à tribuna, anda. Eu ainda

hoje não pude cavaquear com o high life!... Mas estou furioso,sabes? Implicaram com o meu véu azul. Isto é um país de bestas!Logo troça, e olhe que não creste a pele, e onde mora, ó catitinha? echalaça... Uma canalha! Tive de tirar o véu... Mas já resolvi. Paraas outras corridas venho nu! Palavra, venho nu! Isto é a vergonhada civilização, esta terra! Não vens daí? Então até já.

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Carlos deteve-o.— Escuta lá, homem, tenho que te dizer... Então, essa visita

aos Olivais?... Nunca mais apareceste... Tínhamos combinado quefosses convidar o Castro Gomes, que viesses dar a resposta... Nãovens, não mandas... O Craft à espera... Enfim, um procedimento deselvagem.

Dâmaso atirou os braços ao ar. Então Carlos não sabia? Haviagrandes novidades! Ele não voltara ao Ramalhete, como estavacombinado, porque o Castro Gomes não podia ir aos Olivais. Ia par-tir para o Brasil. Já partira mesmo, na quarta-feira. A coisa maisextraordinária... Ele chega lá, para fazer o convite, e Sua Excelên-cia declara-lhe que sente muito, mas que parte no dia seguintepara o Rio... E já de mala feita, já alugada uma casa para a mulherficar aqui à espera três meses, já a passagem no bolso. Tudo derepente, feito de sábado para segunda-feira... Telhudo, aquele Cas-tro Gomes.

— E lá partiu — exclamou ele, voltando-se a cumprimentar aviscondessa de Alvim e Joaninha Vilar, que desciam das tribunas.— Lá partiu, e ela já está instalada. Até já antes de ontem a fuivisitar, mas não estava em casa... Sabes do que tenho medo? É queela, nestes primeiros tempos, por causa da vizinhança, como estásó, não queira que eu lá vá muito... Que te parece?

— Talvez... E onde mora ela?Em quatro palavras, Dâmaso explicou a instalação de madame.

Era muito engraçado, morava no prédio do Cruges! A mamã Cru-ges, havia já anos, alugava aquele primeiro andar mobilado: oInverno passado estivera lá o Bertonni, o tenor, com a família.Casa bem arranjada, o Castro Gomes tinha tido dedo...

— E para mim, muito cómodo, ali ao pé do Grémio... Então nãovoltas cá acima, a cavaquear com o femeaço? Até logo... Está hojechique a valer a Gouvarinho! E está a pedir homem! Good-bye.

Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo deD. Maria, a que se viera juntar a Alvim e Joaninha Vilar, não ces-sava de o chamar com o olhar inquieto, torturando o seu grandeleque negro. Mas ele não obedeceu logo, parado ao pé dos degrausda tribuna, acendendo vagamente uma cigarette, perturbado portodas aquelas palavras do Dâmaso, que lhe deixavam na alma umsulco luminoso. Agora que a sabia só em Lisboa, vivendo na mesmacasa do Cruges, parecia-lhe que já a conhecia, sentia-se muito perto

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dela — podendo assim a todo o momento entrar os umbrais da suaporta, pisar os degraus que ela pisava. Na sua imaginação translu-ziam já possibilidades de um encontro, alguma palavra trocada,coisas pequeninas, subtis como fios, mas por onde os seus destinosse começariam a prender... E imediatamente veio-lhe a tentaçãopueril de ir lá, logo nessa mesma tarde, nesse instante, gozar comoamigo do Cruges o direito de subir a escada dela, parar diante daporta dela — e surpreender uma voz, um som de piano, um rumorqualquer da sua vida.

O olhar da condessa não o deixava. Ele aproximou-se, enfim,contrariado: ela ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando algunspassos com ele pela relva, recomeçou a falar na ida a Santarém.Carlos, então, muito secamente, declarou toda essa invenção insen-sata.

— Porquê?...Ora porquê! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridí-

culo... Enfim, a ela, como mulher, ficava-lhe bem ter fantasias pito-rescas de romance; mas a ele competia-lhe ter bom senso.

Ela mordia o beiço, com todo o sangue na face. E não havia alibom senso. Via só frieza. Quando ela arriscava tanto, ele podiabem, por uma noite, afrontar os desconfortos da estalagem...

— Mas não é isso!...Então que era? Tinha medo? Não havia mais perigo do que nas

idas a casa da titi. Ninguém a podia conhecer, com outra cor decabelo, toda a sorte de véus, disfarçada num grande water-proof.Chegavam de noite, entravam para o quarto, donde não saíammais, servidos apenas pela escocesa. No dia seguinte, no comboioda noite, ela seguia para o Porto, tudo acabava... E naquela insis-tência ela era o homem, o sedutor, com a sua veemência de paixãoactiva, tentando-o, soprando-lhe o desejo; enquanto ele parecia amulher, hesitante e assustada. E Carlos sentia isto. A sua resistên-cia a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaçava ser gro-tesca: ao mesmo tempo o calor da voluptuosidade que emanavadaquele seio, arfando junto dele e por ele, ia-o amolecendo lenta-mente. Terminou por a olhar de certo modo; e, como se o desejo selhe acendesse enfim de repente à curta chama que faiscava naspupilas dela, negras, húmidas, ávidas, prometendo mil coisas,disse, um pouco pálido:

— Pois bem, perfeitamente... Amanhã à noite, na estação.

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Nesse momento, em redor, romperam exclamações de troça: eraum cavalo solitário que chegava, num galope pacato, passava ameta sem se apressar, como se descesse uma avenida do CampoGrande numa tarde de domingo. E em redor perguntava-se quecorrida era aquela de um cavalo só — quando ao longe, comosaindo da claridade loura do sol que descia sobre o rio, apareceuuma pobre pileca branca, empurrando-se, arquejando, num esforçodoloroso, sob as chicotadas atarantadas de um jóquei de roxo epreto. Quando ela chegou, enfim, já o outro gentleman-rider voltarada meta, a passo, pachorrentamente — e estava conversando comos amigos, encostado à corda da pista.

Todo o mundo ria. E a corrida do Prémio de El-Rei terminouassim, grotescamente.

Ainda havia o Prémio de Consolação — mas agora desapare-cera todo o interesse fictício pelos cavalos. Perante a calma eradiante beleza da tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim,tinham descido para a pesagem, cansadas da imobilidade da tri-buna. Arranjaram-se mais cadeiras: aqui e além, sobre a relvapisada, formavam-se grupos alegrados por algum vestido claro oupor uma pluma viva de chapéu: e palrava-se, como numa sala deInverno, fumando-se familiarmente. Em redor de D. Maria e daAlvim projectava-se um grande piquenique a Queluz. Alencar e oGouvarinho discutiam a reforma da instrução. A horrível Craben,entre outros diplomatas e moços de binóculo a tiracolo, dava dofundo grosso do papo opiniões sobre Daudet, que ela achava trèsagréable. E, quando Carlos enfim abalou, o recinto, esquecidas ascorridas, tomava um tom de soirée, no ar claro e fresco da colina,com o murmúrio de vozes, um mover de leques, e ao fundo a músicatocando uma valsa de Strauss.

Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no bufetecom o Darque, com outros, bebendo mais champanhe.

— Eu tenho de ir ainda a Lisboa — disse-lhe ele — e vou nofaetonte. Abandono-o torpemente. Você vá para o Ramalhete comopuder...

— Eu o levo — gritou logo o Vargas, que tinha já a gravata todadesmanchada. — Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego dele... OCraft fica por minha conta... É necessário recibo? À saúde do Craft,inglês cá dos meus... Hurra!

— Hurra! Hip, hip, hurra!

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Daí a pouco, a trote largo no faetonte, Carlos descia o Chiado,dava a volta para a Rua de S. Francisco. Ia numa perturbação deli-ciosa e singular, com aquela certeza de que ela estava só na casa doCruges: o último olhar que ela lhe dera parecia ir adiante dele, cha-mando-o: e um despertar tumultuoso de esperanças sem nome ati-rava-lhe a alma para o azul.

Quando parou diante do portão — alguém, por dentro das jane-las dela, ia correndo lentamente os estores. Na rua silenciosa caíajá uma sombra de crepúsculo. Atirou as rédeas ao cocheiro, atra-vessou o pátio. Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira estaescada; e pareceu-lhe horrorosa, com os seus frios degraus depedra, sem tapete, as paredes nuas e enxovalhadas alvejando tris-temente no começo da escuridão. No patamar do primeiro andarparou. Era ali que ela vivia. E ficou olhando, com uma devoçãoingénua, para as três portas pintadas de azul: a do centro estavainutilizada por um banco comprido de palhinha, e na do ladodireito pendia, com uma enorme bola, o cordão da campainha. Dedentro não vinha um rumor: — e este pesado silêncio, juntando-seao movimento de estores que ele vira fechar-se, parecia cercar aspessoas que ali viviam de solidão e de impenetrabilidade. Uma des-consolação passou-lhe na alma. Se ela agora, só, sem o marido,começasse uma vida reclusa e solitária? Se ele não tornasse mais aencontrar os seus olhos?

Foi subindo devagar até ao andar do Cruges. E mal sabia o quehavia de dizer ao maestro para explicar aquela visita estranha,deslocada... Foi um alívio quando a criadita lhe veio dizer que omenino Vitorino tinha saído.

Em baixo, Carlos tomou as rédeas, e foi levando lentamente ofaetonte até ao Largo da Biblioteca. Depois retrocedeu, a passo.Agora, por trás do estore branco, ia uma vaga claridade de luz. Eleolhou-a como se olha uma estrela.

Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pó, estava-se justa-mente apeando de uma caleche de praça. Um momento ficaram alià porta, enquanto Craft, procurando troco para o cocheiro, contavao final das corridas. No Prémio de Consolação, um dos cavaleirostinha caído, quase ao pé da meta, sem se magoar: e, por último, jáà partida, o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champanhe,esmurrara um criado de bufete, com ferocidade.

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— Assim — disse Craft completando o seu troco — estas corri-das foram boas pelo velho princípio shakespeariano de que tudo ébom quando acaba bem.

— Um murro — disse Carlos rindo — é com efeito um beloponto final.

No peristilo, o velho guarda-portão esperava, descoberto, comuma carta na mão para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instan-tes antes de Sua Excelência chegar.

Era uma letra inglesa de mulher, num envelope largo, lacradocom um sinete de armas. Carlos ali mesmo abriu-a, e, logo à pri-meira linha, teve um movimento tão vivo, de tão bela surpresa, ilu-minando-se-lhe tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sor-rindo:

— Aventura? Herança?Carlos, vermelho, meteu a carta no bolso, e murmurou:— Um bilhete apenas, um doente...Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas começava

assim: «Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao Sr.Carlos da Maia, e roga-lhe o obséquio...». Depois, em duas brevespalavras, pedia-lhe para ir ver na manhã seguinte, o mais cedopossível, uma pessoa de família, que se achava incomodada.

— Bem, eu vou-me vestir — disse Craft. — Jantar às sete emeia, hem?

— Sim, o jantar... — respondeu Carlos, sem saber o quê,banhado todo num sorriso, como em êxtase.

Correu aos seus aposentos: e junto da janela, sem mesmo tiraro chapéu, leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda, contem-plando enlevadamente a forma da letra, procurando voluptuosa-mente o perfume do papel.

Era datada desse mesmo dia à tarde. Assim, quando ele pas-sara defronte da sua porta, já ela o escrevera, já o seu pensamentose demorara nele — quanto mais não fosse senão ao traçar asletras simples do seu nome. Não era ela que estava doente. Se fosseRosa, ela não diria tão friamente «uma pessoa de família». Era tal-vez o esplêndido preto de carapinha grisalha. Talvez Miss Sara,abençoada fosse ela para sempre, que queria um médico que enten-desse inglês... Enfim, havia lá uma pessoa na cama, junto da qualela mesmo o conduziria, através dos corredores interiores daquelacasa — que havia apenas instantes sentira tão fechada, e como

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impenetrável para sempre!... E depois este adorado bilhete, estedelicioso pedido para ir a sua casa, agora que ela o conhecia, quevira Rosa atirar-lhe um grande adeus — tomava uma significaçãoprofunda, perturbadora...

Se ela não quisesse compreender, nem aceitar o distante amorque os seus olhos lhe tinham oferecido claramente, o mais lumino-samente que tinham podido, nesses fugitivos instantes que setinham cruzado com os dela — então poderia ter mandado chamaroutro médico, um clínico qualquer, um estranho. Mas não: o seuolhar respondera ao dele, e ela abria-lhe a sua porta... — E o quesentia a esta ideia era uma gratidão inefável, um impulso tumul-tuoso de todo o seu ser a cair-lhe aos pés, ficar-lhe beijando a orlado vestido, devotamente, eternamente, sem querer mais nada, sempedir mais nada...

Quando Craft dali a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engo-mado, correcto — achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada,de chapéu na cabeça, passeando o quarto, nesta agitação radiante.

— Você está a faiscar, homem! — disse Craft, parando diantedele, com as mãos nos bolsos, e contemplando-o um instante do altodo seu resplandecente colarinho. — Você flameja!... Você parece quetem uma auréola na nuca!... Você sucedeu-lhe o que quer que sejade muito bom!

Carlos espreguiçou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft ummomento, em silêncio, encolheu os ombros, e murmurou:

— A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe sucede é, em defini-tivo, bom ou mau.

— Ordinariamente é mau — disse o outro friamente, aproxi-mando-se do espelho a retocar com mais correcção o nó da gravatabranca.

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NA manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pédo Ramalhete até à Rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes.No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da clarabóia,uma velha de lenço na cabeça, encolhida num xalezinho preto, espe-rava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. Aporta aberta mostrava uma parede feia de corredor forrada de papelamarelo. Dentro um relógio ronceiro estava batendo dez horas.

— A senhora já tocou? — perguntou Carlos, erguendo o chapéu.A velha murmurou, de entre a sombra do lenço que lhe caía

para os olhos, num tom cansado e doente:— Já, sim, meu senhor. Já fizeram o favor de me falar. O

criado, o Sr. Domingos, não tarda...Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo

andar vinha um barulho alegre de crianças brincando; por cima, omoço do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiandodesesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depoisoutro, infindável. A velha, de entre a negrura do lenço, deu um sus-pirozinho abatido. Lá ao fundo um canário rompera a cantar; eentão Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha.

Um criado de suíças ruivas, correctamente abotoado numjaquetão de flanela, apareceu correndo, com uma travessa na mão,abafada num guardanapo; e ao ver Carlos ficou tão atarantado,bamboleando à porta, que um pouco de molho de assado escorre-gou, caiu sobre o soalho.

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Capítulo XI

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— Oh! Sr. D. Carlos Eduardo, faz favor de entrar!... Ora esta!Tem a bondade de esperar um instantinho, que eu abro já a sala...Tome lá, Sr.a Augusta, tome lá, olhe não entorne mais! A senhoradiz que lá manda logo o vinho do Porto... Desculpe Vossa Excelên-cia, Sr. D. Carlos... Por aqui, meu senhor...

Correu um reposteiro de repes vermelho, introduziu Carlosnuma sala alta, espaçosa, com papel de ramagens azuis, e duasvarandas para a Rua de S. Francisco; e erguendo à pressa os doistransparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se SuaExcelência não se lembrava já do Domingos. Quando ele se voltou,risonho, descendo precipitadamente os canhões das mangas, Carlosreconheceu-o pelas suíças ruivas. Era com efeito o Domingos, escu-deiro excelente, que no começo do Inverno estivera no Ramalhete, ese despedira por birras patrióticas, birras ciumentas, com o cozi-nheiro francês.

— Não o tinha visto bem, Domingos — disse Carlos. — O pata-mar é um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E então vocêagora aqui, hem? E está contente?

— Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O Sr.Cruges também mora cá por cima...

— Bem sei, bem sei...— Tenha Vossa Excelência a paciência de esperar um instanti-

nho que eu vou dar parte à Sr.a D. Maria Eduarda...Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome

dela; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belezaserena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitudenos seus nomes. Quem sabe se não pressagiava a concordância dosseus destinos!

Domingos, no entanto, já à porta da sala, com a mão no repos-teiro, parou ainda, para dizer num tom de confidência e sorrindo:

— É a governanta inglesa que está doente...— Ah! é a governanta?— Sim, meu senhor, tem uma febrezita desde ontem, peso no

peito.— Ah!...O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se

apressar, contemplando Carlos com admiração:— E o avozinho de Vossa Excelência passa bem?— Obrigado, Domingos, passa bem.

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— Aquilo é que é um grande senhor!... Não há, não há outroassim em Lisboa!

— Obrigado, Domingos, obrigado...Quando ele finalmente saiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma

volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fora esteirado de novo. Aopé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um panoalvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de músi-cas, de jornais ilustrados, pousava um vaso do Japão onde murcha-vam três belos lírios brancos; todas as cadeiras eram forradas derepes vermelhos; e aos pés do sofá estirava-se uma velha pele detigre. Como no Hotel Central, esta instalação sumária de casa alu-gada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas decretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substi-tuído as clássicas bambinelas de cassa: um pequeno contadorárabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tioAbraão, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: otapete de pelúcia de uma mesa oval, colocada ao centro, desapare-cia sob lindas encadernações de livros, álbuns, duas taças japone-sas de bronze, um cesto para flores de porcelana de Dresda, objec-tos delicados de arte que não pertenciam decerto à mãe Cruges. Eparecia errar ali, acariciando a ordem das coisas e marcando-ascom um encanto particular, aquele indefinido perfume que Carlosjá sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jas-mim.

Mas o que atraiu Carlos foi um bonito biombo de linho cru, comramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janela, fazendo umrecanto mais resguardado e mais íntimo. Havia lá uma cadeirinhabaixa de cetim escarlate, uma grande almofada para os pés, umamesa de costura com todo o trabalho de mulher interrompido,números de jornais de modas, um bordado enrolado, molhos de lãde cores trasbordando de um açafate. E, confortavelmente enros-cada no macio da cadeira, achava-se aí, nesse momento, a famosacadelinha escocesa, que tantas vezes passara nos sonhos de Carlos,trotando ligeiramente atrás de uma radiante figura pelo Aterrofora, ou aninhada e adormecida num doce regaço...

— Bonjour, mademoiselle — disse-lhe ele, baixinho, querendocaptar-lhe as simpatias.

A cadelinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, de orelhasfitas, dardejando para aquele estranho, por entre as repas esguede-

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lhadas, dois belos olhos de azeviche, desconfiados, de uma penetra-ção quase humana. Um instante Carlos receou que ela rompesse aladrar. Mas a cadelinha, de repente, namorara-se dele, deitada jána cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezi-nho às suas carícias. Carlos ia coçá-la e amimá-la, quando umpasso leve pisou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante desi.

Foi como uma inesperada aparição — e vergou profundamenteos ombros, menos a saudá-la que a esconder a tumultuosa onda desangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simplese justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão derosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logojunto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço derenda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embara-çadamente à borda do sofá de repes. E depois de um instante desilêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de MariaEduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro queacariciava.

Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lheagradecia os cuidados que ele tivera com Rosa: e, de cada vez que oseu olhar se demorava nela um instante mais, descobria logo umencanto novo e outra forma da sua perfeição. Os cabelos não eramloiros, como julgava de longe à claridade do Sol, mas de dois tons,castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeira-mente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia aomesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito doce. Porum jeito familiar cruzava às vezes, ao falar, as mãos sobre os joe-lhos. E através da manga justa de sarja, terminando num punhobranco, ele sentia a beleza, a brancura, o macio, quase o calor dosseus braços.

Ela calara-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o san-gue abrasar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo Domingos que adoente era a governanta, só achou, na sua perturbação, esta per-gunta tímida:

— Não é a sua filha que está doente, minha senhora?— Oh! não! graças a Deus!E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que

a governanta inglesa havia dois dias se achava incomodada, comdificuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...

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— Imaginámos ao princípio que era uma constipação passa-geira; mas ontem à tarde estava pior, e estou agora impaciente quea veja...

Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pen-dia ao lado do piano. O seu cabelo, por trás, repuxado para o altoda cabeça, deixava uma penugem de oiro frisar-se delicadamentesobre a brancura láctea do pescoço. Entre aqueles móveis de repes,sob o tecto banal de estuque enxovalhado, toda a sua pessoa pare-cia a Carlos mais radiante, de uma beleza mais nobre, e quase ina-cessível; e pensava que nunca ali ousaria olhá-la tão francamente,com uma tão clara adoração, como quando a encontrava na rua.

— Que linda cadelinha Vossa Excelência tem, minha senhora!— disse ele, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo jánestas palavras simples, ditas a sorrir, um acento de ternura.

Ela sorriu também com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covi-nha no queixo, dava uma doçura mais mimosa às suas feições sérias.E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:

— Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!Niniche apareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de

Niniche. E era curioso, tinha tido também uma galguinha italianaque se chamava Niniche...

Nesse instante a criada entrou — a rapariga magra e sardenta,de olhar petulante, que Carlos vira no Hotel Central.

— Melanie vai-lhe ensinar o quarto de Miss Sara — disseMaria Eduarda. — Eu não o acompanho, porque ela é tão tímida,tem tanto escrúpulo em incomodar, que diante de mim é capaz denegar tudo, dizer que não tem nada...

— Perfeitamente, perfeitamente — murmurava Carlos, sor-rindo, num encanto de tudo.

E pareceu-lhe então que no olhar dela alguma coisa brilhara,fugira para ele, de mais vivo, de mais doce.

Com o seu chapéu na mão, pisando familiarmente aquele corre-dor íntimo, surpreendendo detalhes de vida doméstica, Carlos sen-tia como a alegria de uma posse. Por uma porta meio aberta pôdeentrever uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupõesturcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, ecomo desencaixotadas recentemente, garrafas de águas mineraisde Saint-Galmier e de Vals. Ele deduzia logo destas coisas tão sim-ples, tão banais, evidências de vida delicada.

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Melanie correu um reposteiro de linho cru, fê-lo entrar numquarto claro e fresco: aí fora encontrar a pobre Miss Sara num leitozi-nho de ferro, sentada, com um laço de seda azul ao pescoço, e os ban-dós tão lisos, tão acamados pela escova, como se fosse sair numdomingo para a capela presbiteriana. Na mesinha-de-cabeceira osseus jornais ingleses estavam escrupulosamente dobrados, junto deum copo com duas belas rosas; e tudo no quarto resplandecia desevero arranjo, desde os retratos da família real da Inglaterra, expos-tos sobre a toalha de renda que cobria a cómoda, até às suas botinasbem engraxadas, classificadas, perfiladas numa prateleira de pinho.

Apenas Carlos se sentou, ela imediatamente, com duas rosetasde vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinhanada. Era a senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forçara ameter-se na cama... E para ela era um desgosto ver-se ali ociosa,inútil, agora que madame estava tão só, numa casa sem jardim.Onde havia a menina de brincar? Quem havia de sair com ela? Ah!Era uma prisão para madame!...

Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando seergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda de um ruboraflito, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber seera absolutamente necessário... Sim, decerto, era necessário...Achou-lhe o pulmão direito um pouco tomado; e, enquanto a agasa-lhava, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua família. Ela contouque era de York, filha de um clergyman, e tinha catorze irmãos: osrapazes estavam na Nova Zelândia, e todos eram de uma robustezde atletas. Ela saíra a mais fraca; tanto que o pai, vendo que elaaos dezassete anos pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim,destinando-a para governanta.

Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua famíliadoenças de peito? Ela sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. Opapá, já muito velho, morrera de um coice de uma égua.

Carlos, no entanto, já de pé, com o chapéu na mão, continuavaa observá-la, reflectindo. Então, de repente, sem motivo, ela enter-neceu-se, os seus olhos pequeninos enevoaram-se de água. Equando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria deestar ali no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duaslagrimazinhas tímidas quase lhe fugiram das pestanas. Carlos ter-minou por lhe afagar paternalmente a mão.

— Oh! Thank you, sir! — murmurou ela, comovida de todo.

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Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto damesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flores pousadaao lado numa cadeira, e o regaço cheio de cravos. Uma bela résteade Sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche,deitada ali, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sobas janelas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhã deSol, a valsa da Madame Angot. Pelo andar de cima tinham recome-çado as correrias de crianças brincando.

— Então? — exclamou ela, voltando-se logo, com um molho decravos na mão.

Carlos tranquilizou-a. A pobre Miss Sara tinha uma bronquiteligeira, com pouco febre. Em todo o caso necessitava resguardo,toda a cautela...

— Certamente! E há-de tomar algum remédio, não é verdade?Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir

uma secretariazinha de pau-preto colocada entre as janelas. Elamesmo arranjou o papel para ele receitar, meteu um bico novo napena. E estes cuidados perturbavam Carlos como carícias...

— Oh! minha senhora!... — murmurava ele — um lápis basta...Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curio-

sidade enternecida nesse objectos familiares, onde pousava adoçura das mãos dela — um sinete de ágata sobre um velho livrode contas, uma faca de marfim com monograma de prata, ao ladode uma taçazinha de Saxe cheia de estampilhas; e em tudo havia aordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua orealejo calara-se, por cima do tecto já não cavalavam as crianças.E, enquanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre aesteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.

— Que bonitas flores Vossa Excelência tem, minha senhora! —disse ele, voltando a cabeça, enquanto ia secando distraída e lenta-mente a receita.

De pé, junto do contador árabe, onde pousava um vaso amareloda Índia, ela arranjava folhas em volta de duas rosas.

— Dão frescura — disse ela. — Mas imaginei que em Lisboahavia mais bonitas flores. Não há nada que se compare às flores deFrança... Pois não é verdade?

Ele não respondeu logo, esquecido a olhar para ela, pensandona doçura de ficar ali eternamente naquela sala de repes vermelho,cheia de claridade e cheia de silêncio, a vê-la pôr flores verdes emtorno de pés de rosas!

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— Em Sintra há lindas flores — murmurou por fim.— Oh, Sintra é um encanto! — disse ela, sem erguer os olhos do

seu ramo. — Vale a pena vir a Portugal só por causa de Sintra.Nesse momento, o reposteiro de repes esvoaçou, e Rosa entrou

de dentro, correndo, vestida de branco, com meiazinhas de sedapreta, uma onda negra de cabelo a bater-lhe nas costas, e trazendoao colo a sua grande boneca. Ao ver Carlos, parou bruscamente,com os belos olhos muito abertos para ele, toda encantada, e aper-tando mais nos braços Cricri, que vinha em camisa.

— Não conheces? — perguntou-lhe a mãe, indo sentar-se outravez diante do seu cesto de flores.

Rosa começava já a sorrir, o seu rostozinho cobria-se de umalinda cor. E assim, toda de alvo e negro como uma andorinha, tinhaum encanto raro, com o seu doce mimo de forma, a sua graçaligeira, os seus grandes olhos cheios de azul, e um ruborzinho demulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendidapara renovar o antigo conhecimento — ela ergueu-se na ponta dospés, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botão derosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.

Depois quis apertar a mão à sua velha amiga Cricri. E então,de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera ali a correr.

— É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-cham-bre de Cricri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde é que estáo robe-de-chambre?

— Vejam esta desarranjada! — murmurava a mãe, olhando-acom um sorriso lento e terno. — Se Cricri tem uma cómoda particu-lar, o seu guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas...Pois não é verdade, Sr. Carlos da Maia?

Ele, ainda com a sua receita na mão, sorria também, sem dizernada, todo no enternecimento daquela intimidade em que se sentiapenetrar docemente.

A pequena então veio encostar-se à mãe, roçando-se pelo seubraço, com uma vozinha lânguida, lenta e de mimo:

— Anda, dize.. . Não sejas má... Anda.. . Onde está orobe-de-chambre? Dize...

Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lheo pequenino laço de seda branca que lhe prendia no alto o cabelo.Depois ficou mais séria:

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— Está bem, está quieta... Tu sabes que não sou eu que tratodos arranjos da Cricri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar aMelanie.

E Rosa obedeceu logo, séria também, cumprimentando agoraCarlos ao passar, com um arzinho senhoril:

— Bonjour, monsieur...— É encantadora! — murmurou ele.A mãe sorriu. Tinha acabado de compor o seu ramo de cravos;

— imediatamente atendeu a Carlos, que pousara a receita sobre amesa, e sem se apressar, instalando-se numa poltrona, lhe foifalando da dieta que devia ter Miss Sara, das colheres de xarope decodeína que se lhe deviam dar de três em três horas...

— Pobre Sara! — dizia ela. — E é curioso, não é verdade? Veiocom o pressentimento, quase com a certeza, que havia de adoecerem Portugal…

— Então vem a detestar Portugal!— Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por toda a parte

maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada narua... Enfim é infelicíssima, está ardendo por se ir embora...

Carlos ria daquelas antipatias saxónias. De resto em muitascoisas a boa Miss Sara tinha talvez razão...

— E Vossa Excelência tem-se dado bem em Portugal, minhasenhora?

Ela encolheu os ombros, indecisa.— Sim... devo dar-me bem... É o meu país.O seu país!... E ele que a julgava brasileira!— Não, sou portuguesa.E, durante um momento, houve um silêncio. Ela tomara de

sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado deflores vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porquê, uma doçuranova penetrar-lhe no coração. Depois ela falou da sua viagem, quefora muito agradável; adorava andar no mar; tinha sido umencanto a manhã da chegada a Lisboa, com um céu azul-ferrete, omar todo azul também, e já um calorzinho de clima doce... Masdepois, apenas desembarcados, tudo correra desagradavelmente.Tinham ficado mal alojados no Central. Niniche, uma noite, assus-tara-os muito com uma indigestão. Em seguida no Porto vieraaquele desastre...

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— Sim — disse Carlos — o marido de Vossa Excelência, naPraça Nova...

Ela pareceu surpreendida. Como sabia ele? Ah! sim, sabiadecerto pelo Dâmaso...

— São muito amigos, creio eu.Depois de uma leve hesitação, que ela compreendeu, Carlos

murmurou:— Sim... O Dâmaso vai bastante ao Ramalhete... É de resto um

rapaz que eu conheço apenas há meses...Ela abriu os olhos, pasmada. — O Dâmaso? Mas ele disse-me que se conheciam desde peque-

ninos, que eram até parentes...Carlos encolheu simplesmente os ombros, sorrindo.— É uma bela ilusão... E se isso o faz feliz!...Ela sorriu também, encolhendo também ligeiramente os

ombros.— E Vossa Excelência, minha senhora — continuou logo Carlos,

não querendo falar do Dâmaso — como acha Lisboa?Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco

de cidade meridional... Mas, havia tão poucos confortos!... A vidatinha aqui um ar que ela não pudera perceber ainda — se era desimplicidade ou de pobreza.

— Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos sel-vagens...

Ela riu.— Não direi isso. Mas suponho que são como os Gregos: conten-

tam-se em comer uma azeitona, olhando o céu, que é bonito...Isto pareceu adorável a Carlos, todo o seu coração fugiu para

ela.Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de

comodidade, tão despidas de gosto, tão desleixadas. Aquela em quevivia fazia a sua desgraça. A cozinha era atroz, as portas não fecha-vam. Na sala de jantar havia sobre as paredes umas pinturas debarquinhos e colinas que lhe tiravam o apetite...

— Além disso — acrescentou — é um horror não ter um quin-tal, um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar...

— Não é fácil encontrar assim uma casa nas condições desta ecom jardim — disse Carlos.

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Deu um olhar às paredes, ao estuque enxovalhado do tecto — elembrou-lhe de repente a quinta do Craft, com a sua vista de rio, oar largo, as frescas ruas de acácias.

Felizmente, Maria Eduarda tomara a casa apenas ao mês, eestava pensando em ir passar à beira-mar o tempo que tivesse deficar ainda em Portugal.

— De resto — disse ela — foi o que me aconselhou o meumédico em Paris, o Dr. Chaplain.

O Dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o Dr. Cha-plain. Ouvira-lhe as lições, visitara-o até intimamente na sua pro-priedade de Maisonnettes, ao pé de Saint-Germain. Era um grandemestre, era um espírito bem superior!

— E tão bom coração! — disse ela com um claro sorriso, umolhar que brilhou.

E este sentimento comum pareceu de repente aproximá-losmais docemente: cada um nesse instante adorou o Dr. Chaplain: econtinuaram ainda falando dele prolongadamente, gozando, atra-vés dessa trivial simpatia por um velho clínico, a nascente concor-dância dos seus corações.

O bom Dr. Chaplain! Que fisionomia tão amável, tão fina!...Sempre com o seu barretinho de seda... E sempre com a sua grandeflor na casaca... De resto, o prático maior que saíra da geração deTrousseau:

— E Madame Chaplain — acrescentou Carlos — é uma pessoaencantadora... Não é verdade?

Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.Dentro o relógio ronceiro começara a bater onze horas. E Carlos

então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidável, deliciosavisita...

Quando ela lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhede novo à face ao tocar aquela palma tão macia e tão fresca. Pediuos seus cumprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, à porta, jácom o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, numaúltima saudação, a receber o olhar suave com que ela o seguia...

— Até amanhã, está claro! — exclamou ela de repente, com oseu lindo sorriso.

— Até amanhã, decerto!O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem

penteado.

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— É coisa de cuidado, meu senhor? — Não é nada, Domingos... Estimei vê-lo por aqui.— E eu muito a Vossa Excelência. Até amanhã, meu senhor.— Até amanhã.Niniche apareceu também no patamar. Ele abaixou-se terna-

mente a afagá-la, e disse-lhe também, radiante:— Até amanhã, Niniche!

Até amanhã! Voltando para o Ramalhete, era esta a única ideiaque ele sentia distintamente através da névoa luminosa que lheafogava a alma. Agora o seu dia estava findo: — mas, passadas aslongas horas, terminada a longa noite, ele penetraria outra veznaquela sala de repes vermelho, onde ela o esperava, com o mesmovestido de sarja, enrolando ainda as folhas verdes em torno de pésde rosa...

Pelo Aterro, por entre a poeira de Verão e o ruído das carroças,o que ele via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa eclara: por vezes uma frase que ela dissera cantava-lhe na memória,com o tom de oiro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos aspedras dos seus anéis, entremetidos pelos pêlos de Niniche.Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seu sorriso de umagraça tão delicada; era cheia de inteligência, era cheia de gosto; e apobre velha à porta, essa doente a quem ela mandava vinho doPorto, revelavam a sua bondade... E o que o encantava é que nãotornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, à buscados seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus,abria-se diante dele a porta da sua casa: e tudo de repente na vidaparecia tornar-se fácil, equilibrado, sem dúvidas e sem impaciên-cias.

No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.— Trouxe-a a escocesa, já Vossa Excelência tinha saído.Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente

escrito a lápis: All right. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvari-nho!... Não se tornara quase a lembrar dela, desde a véspera, noradiante tumulto em que andara o seu coração. E era no comboiodessa noite, daí a horas, que deviam ambos partir para Santarém,a amarem-se, escondidos numa estalagem! Ele prometera-lho, asério; já ela se preparara, decerto, com a atroz cabeleira postiça,com o water-proof de grande roda; tudo estava all right... Achou-a

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nesse instante ridícula, reles, estúpida... Oh, era claro como a luzque não ia, que nunca iria, jamais! Mas tinha de aparecer na esta-ção de Santa Apolónia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir à suadesconsolação, ver-lhe os olhos marejados de lágrimas. Quemaçada!... Teve-lhe ódio.

Quando chegou à mesa do almoço, Craft e Afonso, já sentados,falavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que ele conti-nuava gravemente a publicar no Jornal do Comércio.

— Que besta essa! — exclamou Carlos numa voz que sibilava,desabafando sobre a literatura política do marido a cólera que lhedavam as importunidades amorosas da mulher.

Afonso e Craft olharam-no, pasmados de tanta violência. ECraft censurou-lhe a ingratidão. Porque, realmente, não havia emtoda a Terra um entusiasmo como o que aquele desventurosohomem de Estado tinha por Carlos...

— Vossa Excelência não faz ideia, Sr. Afonso da Maia. É umculto. É uma idolatria.

Carlos encolhia os ombros, impaciente. E Afonso, já bem dis-posto para com o homem que assim admirava tão prodigamente oseu neto, murmurou com bondade:

— Coitado, suponho que é inofensivo...Craft fez uma ovação ao velho:— Inofensivo! Admirável, Sr. Afonso da Maia! Inofensivo, apli-

cado a um homem de Estado, a um par, a um ministro, a um legis-lador, é um achado! E é com efeito o que ele é, inofensivo... E é oque eles são...

— Chablis? — murmurou o escudeiro.— Não, tomo chá. E acrescentou:— Aquele champanhe que ontem bebemos nas corridas, por

patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pôr uma semana a regimede leite.

Então falou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, doClifford, e do véu azul do Dâmaso.

— Ora quem estava ontem muito bem vestida era a Gouvari-nho — disse Craft remexendo o seu chá. — Ficava-lhe admiravel-mente aquele branco-creme, tocado de tons negros. Uma verda-deira toilette de corridas... C’était un oeillet blanc panaché de noir...Você não achou, Carlos?

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— Sim — rosnou Carlos — estava bem.Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na

sua vida conversa em que não surgisse à Gouvarinho, e que nãohaveria caminho na sua vida que o não atravancasse a Gouvarinho!E ali mesmo, à mesa, decidiu consigo não a tornar a ver, escrever-lheum bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarém, sem razões...

Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longacigarette, sem achar frase que não fosse pueril ou brutal. Nemtinha a simpatia precisa para lhe dar o banal tratamento de que-rida. Vinha-lhe até por ela uma indefinida repulsão física: devia serintolerável toda uma noite o seu cheiro exagerado de verbena — elembrava-se que aquela pele do seu pescoço, que se lhe afiguravaoutrora um cetim, tinha um tom pegajoso, um tom amarelado, paraalém da linha de pós-de-arroz. Decidiu não lhe escrever. Iria ànoite a Santa Apolónia, e no momento de o comboio partir correriaà portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; não lhedaria tempo de choramingar, nem de recriminar; um rápido apertode mão, e adeus, para nunca mais...

À noite, porém, à hora de ir à estação, que sacrifício em se arran-car aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se parao coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que,por causa de uma rosa e de um certo vestido cor de folha morta quelhe ficava bem, ele se achara caído com ela num sofá...

Ao chegar a Santa Apolónia faltavam, para a partida doexpresso, dois minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala,já quase vazia àquela hora, a comprar uma admissão; e ainda aíesperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mãos lentase moles arranjar laboriosamente os patacos de um troco.

Penetrava enfim na sala de espera — quando esbarrou com oDâmaso, de chapéu desabado e sacola de viagem a tiracolo.Dâmaso agarrou-lhe as mãos, enternecido:

— Ó menino! pois tiveste o incómodo?... E como soubeste tu queeu partia?

Carlos não o desiludiu, balbuciando que lho dissera o Taveira,que encontrara o Taveira...

— Pois eu estava mais longe de uma destas! — exclamou oDâmaso. — Esta manhã, muito regalado na cama, quando me vemo telegrama... Fiquei furioso! Isto é, imagina tu como eu fiquei, umdesgosto assim!...

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Foi então que Carlos reparou que ele estava carregado de luto,com fumo no chapéu, luvas pretas, polainas pretas, barra preta nolenço... Murmurou, embaraçado:

— O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada...Morreu-te alguém?

— Meu tio Guimarães.— O comunista? o de Paris?— Não, o irmão dele, o mais velho, o de Penafiel... Espera aí

que eu volto já, vou ali ao café encher o frasco de conhaque. Com aaflição esquecia-me o conhaque...

Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, deguarda-pó, com chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachor-rentamente as bagagens. De uma portinhola, onde se exibia umcavalheiro barrigudo, com um boné bordado a retrós, pendia todoum cacho de amigos políticos, respeitosamente e em silêncio. A umcanto uma senhora soluçava por baixo do véu.

Carlos, vendo um vagão com a papeleta de reservado, imaginoulá a condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse aprofanação de um santuário. Que queria ele, que queria ele dali?Não sabia que era o reservado do Sr. Carneiro?

— Não sabia.— Perguntasse, devia saber! — ficou o outro a resmungar,

ainda trémulo.Carlos correu ainda outros vagões, onde a gente se apinhava,

atabafadamente, na amontoação dos embrulhos; num, dois sujeitos,a propósito de lugares, tratavam-se de malcriados; adiante, umacriança esperneava no colo da ama, aos gritos.

— Ó menino, quem diabo andas tu a procurar? — exclamouDâmaso alegremente, surgindo por trás dele, e passando-lhe obraço pela cinta.

— Ninguém... Imaginei que tinha visto o marquês.Imediatamente Dâmaso queixou-se daquela lúgubre maçada de

ter de ir a Penafiel!— E então agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que

tenho andado com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sortedanada!

Uma sineta badalou. Dâmaso deu logo um abraço terno a Car-los, saltou para o seu vagão, enterrou na cabeça um barretinho deseda — e depois, debruçado da portinhola, continuou ainda as con-

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fidências. O que mais o contrariava era deixar aquele arranjinhoda Rua de S. Francisco. Que ferro! agora que aquilo ia tão bem, ogajo no Brasil, e ela ali, à mão, a dois passos do Grémio!...

Carlos mal o escutava, distraído, olhando o grande relógiotransparente. De repente Dâmaso, à portinhola, deu um salto desurpresa:

— Olha os Gouvarinhos! Carlos deu um salto também. O conde, de coco de viagem, de

paletó alvadio, sem se apressar, como competia a um director daCompanhia, vinha conversando com um empregado superior daestação, agaloado de ouro, que se encarregara da chapeleira depapelão de Sua Excelência. E a condessa, com um rico guarda-póde foulard cor de castanho, um véu cinzento que lhe cobria a face eo chapéu, seguia atrás, com a criada escocesa, trazendo na mão umramo de rosas.

Carlos correu para eles, foi todo um assombro.— Por aqui, Maia?— De viagem, conde?Era verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos

anos do papá... Resolução da última hora, quase iam perdendo ocomboio.

— Então temo-lo por companheiro, Maia? Teremos esse grandeprazer, Maia?

Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão aopobre Dâmaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.

Debruçado da portinhola, com as mãos de fora, calçadas denegro, o pobre Dâmaso estava saudando a senhora condessa, grave-mente, funebremente. E o bom Gouvarinho não quis deixar de lheir dar logo o seu shake-hands e o seu pêsame.

Sozinho nesse curto instante com a condessa, Carlos murmurouapenas:

— Que ferro!— Este maldito homem! — exclamou ela, entre dentes, com um

olhar que fuzilou através do véu. — Tudo tão bem arranjado, e àúltima hora teima em vir!...

Carlos acompanhou-os até ao reservado, num outro vagão quese estivera metendo de novo para Sua Excelência. A condessatomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde, numtom de polidez ácida, a aconselhava a que se sentasse antes com o

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rosto para a máquina, ela teve um gesto de aborrecimento, atirou oramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais força naalmofada; e um duro olhar de cólera passou entre ambos. Carlos,embaraçado, perguntava:

— Então vão com demora?O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:— Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas férias.— Três dias, o mais — replicou ela numa voz fria e afiada como

uma navalha.O conde não respondeu, lívido.Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silêncio caíra

sobre a plataforma. O apito da máquina varou o ar; e o comprido trem,num ruído seco de freios retesados, começou a rolar, com gente às por-tinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para um últimoaperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessapara o lado de Carlos teve a doçura de um beijo. O Dâmaso gritou sau-dades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alu-miado; e com outro dilacerante silvo, o comboio mergulhou na noite...

Carlos, só, dentro do coupé, voltando à Baixa, sentia uma alegriatriunfante com aquela partida da condessa, e a inesperada jornadado Dâmaso. Era como uma dispersão providencial de todos os impor-tunos: e assim se fazia em torno da Rua de S. Francisco uma solidão— com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

No Cais do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial,veio passar diante das janelas na Rua de S. Francisco. Só pôde veruma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Masisto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o serão calmoque ela estava passando na larga sala de repes vermelho. Sabia onome dos livros que ela lia, e as partituras que tinha sobre o piano;e as flores que espalhavam ali o seu aroma vira-as ele arranjarnessa manhã. Poria ela um instante o seu pensamento nele?Decerto; a doença em casa forçava-a a lembrar as horas do remédio,as explicações que ele lhe dera, e o som da sua voz; e falando comMiss Sara pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu aRua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrelada,devagar, ruminando a doçura daquele grande amor.

Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa,esplêndida, perfeita, «a visita à inglesa».

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Saltava do leito, cantando como um canário, e penetrava no seudia como numa acção triunfal. O correio chegava; e invariavel-mente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, três folhas de papeldonde caía sempre alguma pequena flor meio murcha. Ele deixavaficar a flor no tapete; e mal podia dizer o que havia naquelas longaslinhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que, três dias depois deela chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson, tivera uma apoplexia.Ela lá estava, de enfermeira. Depois, levando duas ou três belasflores do jardim embrulhadas num papel de seda, partia para aRua de S. Francisco, sempre no seu coupé — porque o tempomudara, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e dechuva.

À porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez maisenternecido. Niniche corria de dentro, a pular de amizade; eleerguia-a nos braços para a beijar. Esperava um instante na sala, depé, saudando com o olhar os móveis, os ramos, a clara ordem dascoisas; ia examinar no piano a música que ela tocara essa manhã,ou o livro que deixara interrompido, com a faca de marfim entre asfolhas.

Ela entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons-dias, a sua voz deoiro, tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais pene-trante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples: apenasàs vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivelaera cravejada de pedras, avivavam este traje sóbrio, quase severo,que parecia a Carlos o mais belo, e como expressão do seu espírito.

Começavam por falar de Miss Sara, daquele tempo agreste ehúmido que lhe era desfavorável. Conversando, ainda de pé, eladava aqui e além um arranjo melhor a um livro, ou ia mover umacadeira que não estava no seu alinho; tinha o hábito inquieto derecompor constantemente a simetria das coisas; — e, maquinal-mente, ao passar, sacudia a superfície de móveis já perfeitamenteespanejados com as magníficas rendas do seu lenço.

Agora acompanhava-o sempre ao quarto de Miss Sara. Pelo cor-redor amarelo, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sen-tindo a carícia desse íntimo perfume em que havia jasmim, e queparecia sair do movimento das suas saias. Ela às vezes abria fami-liarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velhosofá: era ali que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de Cricri,as carruagens de Cricri, a cozinha de Cricri. Encontravam-na ves-

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tindo e conversando profundamente com a boneca; ou então, aocanto do sofá, com os pezinhos cruzados, imóvel, perdida na admi-ração de algum livro de estampas aberto sobre os joelhos. Ela cor-ria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a fres-cura de uma linda flor.

No quarto da governanta, Maria Eduarda sentava-se aos pés doleito branco; e logo a pobre Miss Sara, ainda cheia de tosse, con-fusa, verificando a cada instante se o lenço de seda lhe cobria cor-rectamente o pescoço, afirmava que estava boa. Carlos gracejavacomo ela, provando-lhe que nesse feio tempo de Inverno, a felici-dade era estar ali na cama, com bons cuidados em redor, algunsromances patéticos, e apetitosa dieta portuguesa. Ela voltava osolhos gratos para madame, com um suspiro. Depois murmurava:

— Oh yes, I am very confortable!E enternecia-se.Logo nos primeiros dias, ao voltar à sala, Maria Eduarda

tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Car-los, retomara muito naturalmente o seu bordado, como na presençafamiliar de um velho amigo. Com que felicidade profunda ele viudesdobrar-se essa talagarça! Devia ser um faisão de plumagensrutilantes: mas por ora só estava bordado o galho de macieira emque ele pousava, galho fresco de Primavera, coberto de florzinhasbrancas, como num pomar da Normandia.

Carlos, junto da linda secretariazinha de pau-preto, ocupava amais velha, a mais cómoda das poltronas de repes vermelho, cujasmolas rangiam de leve. Entre eles ficava a mesa de costura com asIlustrações ou algum jornal de modas; às vezes, um instantecalado, ele folheava as gravuras, enquanto as lindas mãos deMaria, com brilhos de jóias, iam puxando os fios de lã. Aos pés delaNiniche dormitava, espreitando-os a espaços, através das repas dofocinho, com o seu belo olho grave e negro. E nesse escuros dias dechuva, cheios de friagem lá fora e do rumor das goteiras, aquelecanto da janela, com a paz do vagaroso trabalho na talagarça, asvozes lentas e amigas, e às vezes um doce silêncio, tinha um aríntimo e carinhoso...

Mas no que diziam não havia intimidades. Falavam de Paris edo seu encanto, de Londres, onde ela estivera durante quatro lúgu-bres meses de Inverno, da Itália, que era o seu sonho ver, de livros,de coisas de arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e

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agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir tudo de pó de arroz, mesmoas feridas do coração. Apesar de educada num convento severo deOrléans, lera Michelet e lera Renan. De resto não era católica pra-ticante; as igrejas apenas a atraíam pelos lados graciosos e artísti-cos do culto, a música, as luzes, ou os lindos meses de Maria, emFrança, na doçura das flores de Maio. Tinha um pensar muito rectoe muito são — com um fundo de ternura que a inclinava para tudoo que sofre e é fraco. Assim, gostava da República, por lhe parecer oregime em que há mais solicitude pelos humildes. Carlosprovava-lhe rindo que ela era socialista.

— Socialista, legitimista, orleanista — dizia ela — qualquercoisa, contanto que não haja gente que tenha fome!

Mas era isso possível? Já Jesus, mesmo, que tinha tão docesilusões, declarara que pobres sempre os haveria...

— Jesus viveu há muito tempo, Jesus não sabia tudo... Hojesabe-se mais, os senhores sabem muito mais... É necessário arran-jar-se outra sociedade, e depressa, em que não haja miséria. EmLondres, às vezes, por aquelas grandes neves, há criancinhas pelosportais a tiritar, a gemer de fome... É um horror! E em Paris então!É que se não vê senão o boulevard; mas quanta pobreza, quantanecessidade...

Os seus belos olhos quase se enchiam de lágrimas. E cada umadestas palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma —como num só sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.

Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou às suascaridades, pedindo-lhe para ir ver a irmã da sua engomadeira, quetinha reumatismo, e o filho da Sr.a Augusta, a velha do patamar,que estava tísico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor deacções religiosas. E nestas piedades achava-lhe semelhanças com oavô. Como Afonso, todo o sofrimento dos animais a consternava.Um dia viera indignada da Praça da Figueira, quase com ideias devingança, por ter visto nas tendas dos galinheiros aves e coelhosapinhados em cestos, sofrendo durante dias as torturas da imobili-dade e a ansiedade da fome. Carlos levava esta belas cóleras para oRamalhete, increpava violentamente o marquês, que era membroda Sociedade Protectora dos Animais. O marquês, indignado tam-bém, jurara justiça, falava em cadeias, em costa de África... E Car-los, comovido, ficava a pensar quanta larga e distante influênciapode ter, mesmo isolado de tudo, um coração que é justo.

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Uma tarde falaram do Dâmaso. Ela achava-o insuportável, coma sua petulância, os olhos bugalhudos, as perguntas néscias. VossaExcelência acha Nice elegante? Vossa Excelência prefere a capelade S. João Baptista a Notre-Dame?

— E então a insistência de falar de pessoas que eu não conheço!A senhora condessa de Gouvarinho, e os chás da senhora condessade Gouvarinho, e a frisa da senhora condessa de Gouvarinho, e apreferência que a senhora condessa de Gouvarinho tem por ele... Eisto horas! Eu às vezes tinha medo de adormecer...

Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ela, entre todos, onome da Gouvarinho? Tranquilizou-se, vendo-a rir simples e limpi-damente. Decerto não sabia quem era a Gouvarinho. Mas, parasacudir logo entre eles esse nome, começou a falar de Mr. Guima-rães, o famoso tio do Dâmaso, o amigo de Gambetta, o influente daRepública...

— O Dâmaso tem-me dito que Vossa Excelência o conhecemuito...

Ela erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.— Mr. Guimarães... Sim, conheço muito... Ultimamente víamo-nos

menos, mas ele era muito amigo da mamã.E depois de um silêncio, de um curto sorriso, recomeçando a

puxar o seu longo fio de lã:— Pobre Guimarães, coitado! A sua influência na República é

traduzir notícias dos jornais espanhóis e italianos para o Rappel,que disso é que vive... Se é amigo de Gambetta, não sei, Gambettatem amigos tão extraordinários... Mas o Guimarães, aliás bomhomem e homem honrado, é um grotesco, uma espécie de Calinorepublicano. E tão pobre, coitado! O Dâmaso, que é rico, se tivessedecência, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tãomiseravelmente...

— Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de quefala o Dâmaso?

Ela encolheu mudamente os ombros; e Carlos sentiu peloDâmaso um asco intolerável.

Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidademais penetrante. Ela quis saber a idade de Carlos, ele falou-lhe doavô. E durante essas horas suaves em que ela, silenciosa, iapicando a talagarça, ele contou-lhe a sua vida passada, os planosde carreira, os amigos, as viagens... Agora ela conhecia a paisagem

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de Santa Olávia, o «Reverendo Bonifácio», as excentricidades doEga. Um dia quis que Carlos lhe explicasse longamente a ideia doseu livro A Medicina Antiga e Moderna. Aprovou, com simpatia,que ele pintasse as figuras dos grandes médicos, benfeitores dahumanidade. Porque se glorificariam só os guerreiros e os fortes? Avida salva a uma criança, parecia-lhe coisa bem mais bela que abatalha de Austerlitz. E estas palavras, que dizia com simplici-dade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, caíam no coraçãode Carlos e ficavam lá muito tempo, palpitando e brilhando...

Ele tinha-lhe feito assim largamente todas as confissões — eainda não sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em quenascera, nem sequer a rua que habitava em Paris. Não lhe ouviramurmurar jamais o nome do marido, nem falar de um amigo ou deuma alegria da sua casa. Parecia não ter em França, onde vivia,nem interesses, nem lar — e era realmente como a deusa que eleideara, sem contactos anteriores com a Terra, descida da suanuvem de oiro, para vir ter ali, naquele andar alugado da Rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.

Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham faladode afeições. Ela acreditava candidamente que pudesse haver, entreuma mulher e um homem, uma amizade pura, imaterial, feita daconcordância amável de dois espíritos delicados. Carlos jurou quetambém tinha fé nessas belas uniões, todas de estima, todas derazão — contanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, umaponta de ternura... Isso perfumava-as de um grande encanto — enão lhes diminuía a sinceridade. E, sob estas palavras um poucodifusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentossorrisos, ficara subtilmente estabelecido que entre eles só deveriahaver um sentimento assim, casto, legítimo, cheio de suavidade esem tormentos.

Que importava a Carlos? Contanto que pudesse passar aquelahora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conver-sando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pelagraça da sua pessoa; contanto que visse o seu rosto, ligeiramentecorado, baixar-se, com a lenta atracção de uma carícia, sobre as flo-res que lhe trazia; contanto que lhe afagasse a alma a certeza deque o pensamento dela o ficava seguindo simpaticamente atravésdo seu dia, mal ele deixava aquela adorada sala de repes vermelho— o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.

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Não pensava mesmo que aquela ideal amizade, de intençãocasta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enga-nada, aos seus braços ardentes de homem. No deslumbramento queo tomara, ao ver-se de repente admitido a uma intimidade que jul-gara impenetrável — os seus desejos desapareciam: longe dela, àsvezes, ainda ousavam ir temerariamente até à esperança de umbeijo, ou de uma fugitiva carícia com a ponta dos dedos; mas ape-nas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olharnegro, caía em devoção, e julgaria um ultraje bestial roçar sequeras pregas do seu vestido.

Foi aquele decerto o período mais delicado da sua vida. Sentia emsi mil coisas finas, novas, de uma tocante frescura. Nunca imaginaraque houvesse tanta felicidade em olhar para as estrelas, quando o céuestá limpo; ou em descer de manhã ao jardim, para escolher uma rosamais aberta. Tinha na alma um constante sorriso — que os seuslábios repetiam. O marquês achava-lhe o ar baboso e abençoador...

Às vezes, passeando só no seu quarto, perguntava a si mesmoonde o levaria aquele grande amor. Não sabia. Tinha diante de sios três meses em que ela estaria em Lisboa, e em que ninguémmais senão ele ocuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. Omarido andava longe, separado por léguas de mar incerto. Depoisele era rico, e o mundo era largo...

Conservava sempre as suas grandes ideias de trabalho, que-rendo que no seu dia só houvesse horas nobres — e que aquelasque não pertenciam às puras felicidades do amor, pertencessem àsalegrias fortes do estudo. Ia ao laboratório, ajuntava algumaslinhas ao seu manuscrito. Mas, antes da visita à Rua de S. Fran-cisco, não podia disciplinar o espírito, inquieto, num tumulto deesperanças; e depois de voltar de lá, passava o dia a recapitular oque ela dissera, o que ele respondera, os seus gestos, a graça decerto sorriso... Fumava então cigarettes, lia os poetas.

Todas as noites, no escritório de Afonso, se formava a partidade whist. O marquês batia-se ao dominó com o Taveira, enfronha-dos ambos naquele vício, com um rancor crescente que os levava ainjúrias. Depois das corridas, o secretário de Steinbroken começaraa vir ao Ramalhete; mas era um inútil, nem cantava sequer como oseu chefe as baladas da Finlândia; caído no fundo de uma poltrona,de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silencio-samente os seus longos bigodes tristes.

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O amigo que Carlos gostava de ver entrar era o Cruges — quevinha da Rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que MariaEduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia todas as manhãsao prédio, ver a «miss inglesa»; e muitas vezes, inocentemente,ignorando o interesse de coração com que Carlos o escutava,dava-lhe as últimas notícias da vizinha...

— A vizinha lá ficou agora a tocar Mendelssohn... Tem execução,tem expressão, a vizinha... Há ali estofo... E entende o seu Chopin.

Se ele não aparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscá-lo:entravam no Grémio, fumavam um charuto nalguma sala isolada,falando da vizinha: Cruges achava-lhe «um verdadeiro tipo degrande dame».

Quase sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinhaver (como ele dizia a faiscar de ironia) o que se passava «no país doSr. Gambetta». Parecera remoçar ultimamente, mais ligeiro nosmodos, com uma claridade de esperança nas lunetas, na fronteerguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa. Lá estava no Porto,nos seus deveres de filha...

— E seu sogro?O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resig-

nadamente:— Mal.

Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciandoNiniche, que se viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriudiscretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embara-çado, um ar de cumplicidade, murmurou:

— É o Sr. Dâmaso!...Ela olhou o Romão, surpreendida daqueles modos, e quase

escandalizada.— Pois bem, mande entrar!E Dâmaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flor ao peito,

gorducho, risonho, familiar, com o chapéu na mão, trazendo depen-durado por um barbante um grande embrulho de papel pardo...Mas ao ver Carlos ali, intimamente, de cadelinha no colo, estacouassombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Enfim desemba-raçou as mãos, veio cumprimentar Maria Eduarda quase de leve —e voltando-se logo para Carlos, de braços abertos, todo o seuespanto trasbordou ruidosamente:

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— Então tu aqui, homem? Isto é que é uma surpresa! Ora quemme diria!... Eu estava mais longe...

Maria Eduarda, incomodada com aquele alarido, indicou-lhevivamente uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quissaber como ele tinha chegado.

— Perfeitamente, minha senhora... Um bocado cansado, como énatural... Venho direitinho de Penafiel... Como Vossa Excelência vê— e mostrou o seu luto pesado — acabo de passar por um grandedesgosto.

Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga,fria. Dâmaso pousara os olhos no tapete. Vinha da província cheiode cor, cheio de sangue; e como cortara a barba (que havia mesesdeixara crescer para imitar Carlos), parecia agora mais bochechudoe mais nédio. As coxas roliças estalavam-lhe de gordura dentro dacalça de casimira preta.

— E então — perguntou Maria Eduarda — temo-lo por cáalgum tempo?

Ele deu um puxãozinho à cadeira, mais para junto dela, e outravez risonho:

— Agora, minha senhora, ninguém me arranca de Lisboa!Podem-me morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morressealguém. O que quero dizer é que há-de custar a arrancar-me daqui!

Carlos continuava muito sossegadamente a acariciar os pêlosde Niniche. E houve então um pequeno silêncio. Maria Eduardaretomara o bordado. E Dâmaso, depois de sorrir, de tossir, de darum jeito ao bigode, estendeu a mão para acariciar também Ninichesobre os joelhos de Carlos. Mas a cadelinha, que havia momentos oespreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrarfuriosa.

— C’est moi, Niniche! — dizia Dâmaso, recuando a cadeira. —C’est moi, ami... Alors, Niniche...

Foi necessário que Maria Eduarda repreendesse severamenteNiniche. E, aninhada de novo no colo de Carlos, ela continuou aespreitar Dâmaso, rosnando, e com rancor.

— Já me não conhece — dizia ele embaçado — é curioso...— Conhece-o perfeitamente — acudiu Maria Eduarda muito

séria. — Mas não sei o que o Sr. Dâmaso lhe fez, que ela tem-lheódio. É sempre este escândalo.

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Dâmaso balbuciava, escarlate:— Ora essa minha senhora! O que lhe fiz?... Carícias, sempre

carícias...E então não se conteve, falou com ironia, amargamente, das

amizades novas de mademoiselle Niniche. Ali estava nos braços deoutro, enquanto que ele, o amigo velho, era deitado ao canto...

Carlos ria.— Ó Dâmaso, não a acuses de ingratidão... Pois se a Sr.a D.

Maria Eduarda está a dizer que ela sempre te teve ódio...— Sempre! — exclamou Maria.Dâmaso sorria também, lividamente. Depois, tirando um lenço

de barra negra, limpando os beiços e mesmo o suor do pescoço, lem-brou a Maria Eduarda como ela o tinha desapontado no dia dascorridas... Ele toda a tarde à espera...

— Eram vésperas de partida — disse ela.— Sim, bem sei, o marido de Vossa Excelência... E como vai o

Sr. Castro Gomes? Vossa Excelência já recebeu notícias?— Não — respondeu ela com o rosto sobre o bordado.Dâmaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoi-

selle Rosa. Depois por Cricri. Era necessário não esquecer Cricri...— Pois Vossa Excelência — continuou ele, cheio subitamente de

loquacidade — perdeu, que as corridas estiveram esplêndidas...Nós ainda não nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim,vimo-nos na estação... Pois não é verdade que estiveram muito chi-ques? Olhe, minha senhora, de uma coisa pode Vossa Excelênciaestar certa, é que hipódromo mais bonito não há lá fora. Uma vistaaté à barra, que é de apetite... Até se vêem entrar os navios... Poisnão é assim, Carlos?

— Sim — disse Carlos, sorrindo — não é propriamente umcampo de corridas... É verdade que não há também propriamentecavalos de corridas... Verdade seja que não há jóqueis... Ora é ver-dade que não há apostas... Mas é verdade também que não hápúblico...

Maria Eduarda ria, alegremente.— Mas então?— Vêem-se entrar os navios, minha senhora...Dâmaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente

querer dizer mal à força... Não senhor, não senhor!... Eram muitoboas corridas. Tal qual como lá fora, as mesmas regras, tudo.

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— Até na pesagem — acrescentou ele muito sério — falamossempre inglês!

Repetiu ainda que as corridas eram chiques. Depois não achoumais nada — e falou de Penafiel, onde chovera sempre tanto quevira-se forçado a ficar em casa, estupidamente, a ler...

— Uma maçada! Ainda se houvesse ali umas mulheres para irdar um bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradei-ras, raparigas de pé descalço, não tolero... Há gente que gosta...Mas eu, acredite Vossa Excelência, não tolero...

Carlos corara; mas Maria Eduarda parecia não ter ouvido, ocu-pada a contar atentamente as malhas do seu bordado.

De repente Dâmaso recordou-se que tinha ali um presentinhopara a Sr.a D. Maria Eduarda. Mas não imaginasse que era algumapreciosidade... Verdadeiramente até o presente era para Mademoi-selle Rosa.

— Olhe, para não estar com mistérios, sabe o que é? Tenho-o alino embrulhozinho de papel pardo... São seis barrilinhos de ovosmoles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o deAveiro é que tem chique... Pergunte Vossa Excelência ao Carlos.Pois não é verdade, Carlos, que é uma delícia, até conhecido lá fora?

— Ah, certamente — murmurou Carlos — certamente...Pousara Niniche no chão, erguera-se, fora buscar o seu chapéu.— Já?... — perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que

era só para ele. — Até amanhã, então!E voltou-se logo para o Dâmaso, esperando vê-lo erguer-se tam-

bém. Ele conservou-se instalado, com um ar de demora, familiar, ebamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.

— Au revoir — disse o outro. — Recados lá no Ramalhete,hei-de aparecer!...

Carlos desceu as escadas, furioso.Ali ficava, pois, aquele imbecil, impondo a sua pessoa, grossei-

ramente, tão obtuso que não percebia o enfado dela, a sua regeladasecura! E para que ficava? Que outras crassas banalidades tinhaainda a soltar, em calão, e de perna traçada? E de repentelembrou-lhe o que ele lhe dissera na noite do jantar do Ega, à portado Hotel Central, a respeito da própria Maria Eduarda, e do seusistema com mulheres «que era o atracão». Se aquele idiota, derepente, abrasado e bestial, ousasse um ultraje? A suposição erainsensata, talvez — mas reteve-o no pátio, aplicando o ouvido para

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cima, com ideias ferozes de esperar ali o Dâmaso, proibir-lhe detornar a subir aquela escada, e à menor reflexão dele, esmagar-lheo crânio nas lajes...

Mas sentiu em cima a porta a abrir-se, e saiu vivamente, noreceio de ser assim surpreendido à escuta. O coupé do Dâmasoestacionava na rua. Então veio-lhe uma curiosidade mordente desaber quanto tempo ele ficaria ali com Maria Eduarda. Correu aoGrémio; e apenas abrira uma vidraça — viu logo o Dâmaso sair doportão, saltar para o coupé , bater com força a portinhola.Pareceu-lhe que trazia o ar escorraçado, e subitamente teve dódaquele grotesco.

Nessa noite, depois de jantar, Carlos, só no seu quarto, fumava,enterrado numa poltrona, relendo uma carta do Ega recebida nessamanhã — quando apareceu o Dâmaso. E, sem pousar mesmo o cha-péu, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manhã:

— Então dize-me cá! Como diabo te vou eu encontrar hoje coma brasileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso?

Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as mãossobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio debom humor, disse, com uma doce repreensão paternal:

— Pois então tu vais expor a uma senhora as tuas opiniõeslúbricas sobre as lavradeiras de Penafiel!

— Não se trata disso, sei muito bem o que hei-de expor!—exclamou o outro, vermelho. — Conta lá, anda... Que diabo!Parece-me que tenho direito a saber... Como a conheceste tu?

Carlos imperturbável, cerrando os olhos como para se recordar,começou, num tom lento e solene de recitativo:

— Por uma tépida tarde de Primavera, quando o Sol se afun-dava em nuvens de oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se dacampainha do Ramalhete. Via-se-lhe na mão uma carta, lacradacom selo heráldico; e a expressão do seu semblante...

Dâmaso, já zangado, atirou com o chapéu para cima da mesa.— Parece-me que era mais decente deixares-te desses mistérios!— Mistérios? Tu vens obtuso, Dâmaso. Pois tu entras numa

casa onde existe há quase um mês uma pessoa gravemente doente,e ficas assombrado, petrificado, ao encontrar lá o médico! Que espe-ravas tu ver lá? Um fotógrafo?

— Então quem está doente?

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Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronquite da inglesa —enquanto Dâmaso, sentado à beira do sofá, mordendo o charutosem lume, olhava para ele desconfiado.

— E como soube ela onde tu moravas?— Como se sabe onde mora o rei; onde é a Alfândega; de que

lado luz a estrela da tarde; os campos onde foi Tróia... Estas coisasque se aprendem nas aulas de instrução primária...

O pobre Dâmaso deu alguns passos pela sala, embezerrado,com as mãos nos bolsos.

— Ela tem agora lá o Romão, o que foi meu criado — murmu-rou depois de um silêncio. — Eu tinha-lho recomendado... Elaleva-se muito pelo que eu lhe digo...

— Sim, tem, por uns dias, enquanto o Domingos foi à terra. Vaimandá-lo embora, é um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado másmaneiras...

Então Dâmaso atirou-se para o canto do sofá e confessou que aoentrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadelinhano colo, ficara furioso... Enfim, agora que sabia que era por doença,bem, tudo se explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava alitramóia... Só com ela, ainda pensou em lhe perguntar: depoisreceou que não fosse delicado; e além disso ela estava de mauhumor...

E acrescentou logo, acendendo o charuto:— Que apenas tu saíste, pôs-se melhor, mais à vontade... Rimos

muito... Eu fiquei ainda até tarde, quase duas horas mais; eraperto das cinco quando saí. Outra coisa, ela falou-te alguma vez demim?

— Não. É uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhece-mos, não se atreveria a dizer-me mal de ti.

Dâmaso olhou-o, esgazeado:— Ora essa!... Mas podia ter dito bem!— Não; é uma pessoa de bom senso, não se atreveria também.E erguendo-se vivamente, Carlos abraçou Dâmaso pela cinta,

acariciando-o, perguntando-lhe pela herança do titi, e em que amo-res, em que viagens, em que cavalos de luxo ia gastar os milhões...

Dâmaso, sob aquelas festas alegres, permanecia frio, amuado,olhando-o de revés.

— Olha que tu — disse ele — parece-me que me vais saindotambém um traste... Não há a gente fiar-se em ninguém!

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— Tudo na Terra, meu Dâmaso, é aparência e engano!Seguiram dali à sala do bilhar fazer «a partida de reconcilia-

ção». E pouco a pouco, sob a influência que exercia sempre sobre eleo Ramalhete, Dâmaso foi sossegando, risonho já, gozando de novo asua intimidade com Carlos no meio daquele luxo sério, e tratando-ooutra vez por «menino». Perguntou pelo Sr. Afonso da Maia. Quissaber se o belo marquês tinha aparecido. E o Ega, o grande Ega?...

— Recebi carta dele — disse Carlos. — Vem aí, temo-lo talvezcá no sábado.

Foi um espanto para o Dâmaso.— Homem! essa é curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!...

Vieram há dois dias de Southampton... Jogo eu?Jogou, falhou a carambola.— Pois é verdade, encontrei-os hoje, falei-lhes um instante... E

a Raquel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma toilette inglesacom coisas brancas, coisas cor-de-rosa... Chique a valer, parecia ummoranguinho! E então o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temosescândalo!

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NO sábado, com efeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete devolta da Rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto,metido num fato de cheviote claro, e com o cabelo muito crescido.

— Não faças espalhafato — gritou-lhe ele — que eu estou emLisboa incógnito!

E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lis-boa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para conver-sar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes,ali, no Ramalhete...

— Há cá quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Espanhol,mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, comuma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obrasublime.

Decerto! Havia o quarto em cima, onde ele estivera depois dedeixar a Vila Balzac. E mais sumptuoso agora, com um belo leitoda Renascença, e uma cópia dos Borrachos de Velázquez.

— Óptimo covil para a arte! Velázquez é um dos santos padresdo naturalismo... A propósito, sabes com quem eu vim? Com a Gou-varinho. O pai Thompson esteve à morte, arribou, depois o condefoi buscá-la. Achei-a magra, mas com um ar ardente; e falou-meconstantemente de ti.

— Ah! — murmurou Carlos.Ega, de monóculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Car-

los.

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Capítulo XII

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— É verdade. Falou de ti constantemente, irresistivelmente,imoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempreseguiste o meu conselho, hem? Muito bem feita de corpo, não é ver-dade? E que tal, no acto de amor?

Carlos corou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera coma Gouvarinho senão relações superficiais. Ia lá às vezes tomar umachávena de chá; e à hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo omundo, conversar com o conde sobre as misérias públicas, àesquina do Loreto. Nada mais.

— Tu estás-me a mentir, devasso! — dizia o Ega. — Mas nãoimporta. Eu hei-de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac,na segunda-feira... Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.

— Nós... Nós, quem?— Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E

o Gouvarinho, como compete ao indivíduo daquela espécie, acres-centou logo que havíamos de ter também «o nosso Maia». O Maiadele, e o Maia dela... Santo acordo! Suavíssimo arranjo!

Carlos olhou-o com severidade.— Tu vens obsceno de Celorico, Ega.— É o que se aprende no seio da Santa Madre Igreja.Mas também Carlos tinha uma novidade que o devia fazer

estremer. O Ega, porém, já sabia. A chegada dos Cohens, não é ver-dade? Lera-o logo nessa manhã, na Gazeta Ilustrada, no High Life.Lá se dizia respeitosamente que Suas Excelências tinham regres-sado do seu passeio pelo estrangeiro.

— E que impressão te fez? — perguntou Carlos rindo.O outro encolheu brutalmente os ombros:— Fez-me o efeito de haver um cabrão mais na cidade.E, como Carlos o acusava outra vez de trazer de Celorico uma lín-

gua imunda, o Ega, um pouco corado, arrependido talvez, lançou-seem considerações críticas, clamando pela necessidade social de dar àscoisas o nome exacto. Para que servia então o grande movimentonaturalista do século? Se o vício se perpetuava, é porque a sociedade,indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embelezavam, que oidealizavam... Que escrúpulo pode ter uma mulher em beijocar umterceiro entre os lençóis conjugais, se o mundo chama a isso senti-mentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrofes de oiro?

— E a propósito, a tua comédia, o Lodaçal? — perguntou Car-los, que entrara um instante para a alcova de banho.

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— Abandonei-a — disse o Ega. — Era feroz de mais... E alémdisso fazia-me remexer na podridão lisboeta, mergulhar outra vezna sarjeta humana... Afligia-me...

Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente aoseu jaquetão claro e às botas com mau verniz.

— Preciso enfarpelar-me de novo, Carlinhos... O Poole natural-mente mandou-te fato de Verão, hei-de querer examinar esses cor-tes da alta civilização... Não há negá-lo, diabo, esta minha linhaestá chinfrim!

Passou uma escova pelo bigode, e continuou falando para den-tro, para a alcova de banho:

— Pois, menino, eu agora o que necessito é o regime da Qui-mera. Vou-me atirar outra vez às Memórias. Há-de-se fazer aí umaquantidade de arte colossal, nesse quarto que me destinas, diantede Velázquez... E a propósito, é necessário ir cumprimentar o velhoAfonso, uma vez que ele me vai dar o pão, o tecto, e a enxerga.

Foram encontrar Afonso da Maia no escritório, na sua velhapoltrona, com um antigo volume da Ilustração Francesa abertosobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito,muito moreno, de olho vivo, e cabelo encarapinhado. O velho ficoucontentíssimo ao saber que o Ega vinha, por algum tempo, alegraro Ramalhete com a sua bela fantasia.

— Já não tenho fantasia, Sr. Afonso da Maia!— Então esclarecê-lo com a tua clara razão — disse o velho

rindo. — Estamos cá precisando de ambas as coisas, John.Depois apresentou-lhe aquele pequeno cavalheiro, o Sr. Manueli-

nho, rapazinho amável da vizinhança, filho do Vicente,mestre-de-obras; o Manuelinho vinha às vezes animar a solidão deAfonso — e ali folheavam ambos livros de estampas e tinham conver-sas filosóficas. Agora, justamente, estava ele muito embaraçado pornão lhe saber explicar como é que o general Canrobert (de quem esta-vam admirando o garbo sobre o seu cavalo empinado) tendo mandadomatar gente, muita gente, em batalhas, não era metido na cadeia...

— Está visto! — exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado,com as mãos cruzadas atrás das costas. — Se mandou matar gentedeviam-no ferrar na cadeia!

— Hem, amigo Ega! — dizia Afonso rindo. — Que se há-de res-ponder a esta bela lógica? Olha, filho, agora que estão aqui estesdois senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse

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caso... Vai tu ver os bonecos ali para cima da mesa... E depois vãosendo horas de ires lá dentro à Joana, para merendares.

Carlos, ajudando o pequeno a acomodar-se à mesa com o seugrande volume de estampas, pensava quanto o avô, com aquele seuamor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!

Afonso, no entanto, perguntava também ao Ega pela comédia.O quê! Já abandonada? Quando acabaria então o bravo John defazer bocados incompletos de obras-primas?... — Ega queixou-se dopaís, da sua indiferença pela arte. Que espírito original não esmo-receria, vendo em torno de si esta espessa massa de burgueses,amodorrada e crassa, desdenhando a inteligência, incapaz de seinteressar por uma ideia nobre, por uma frase bem feita?

— Não vale a pena, Sr. Afonso da Maia. Neste país, no meio destaprodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto develimitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...

— Pois então — acudiu o velho — planta os teus legumes. É umserviço à alimentação pública. Mas tu nem isso fazes.

Carlos, muito sério, apoiava o Ega.— A única coisa a fazer em Portugal — dizia ele — é plantar

legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfí-cie alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto aindaencerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demi-tamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de país para quenão temos elementos, passemos a ser uma fértil e estúpida provín-cia espanhola, e plantemos mais legumes!

O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em quesentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam serapenas a glorificação da sua inércia. Terminou por dizer:

— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor deDeus, façam alguma coisa!

— O Carlos já não faz pouco — exclamou Ega, rindo. — Passeiaa sua pessoa, a sua toilette e o seu faetonte, e por esse facto educa ogosto!

O relógio Luís XV interrompeu-os — lembrando ao Ega quedevia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Espa-nhol. Depois, no corredor, confessou a Carlos que, antes de ir aoEspanhol, queria correr ao Fillon, ao fotógrafo, ver se podia tirarum bonito retrato.

— Um retrato?

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— Uma surpresa que tem de ir daqui a três dias para Celorico,para o dia de anos de uma criaturinha que me adoçou o exílio.

— Oh, Ega!— É horroroso, mas então? É a filha do padre Correia, filha

conhecida como tal; além disso casada com um proprietário rico davizinhança, reaccionário odioso... De modo que, bem vês, esta duplapeça a pregar à Religião e à Propriedade...

— Ah! nesse caso...— Ninguém se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres

democráticos!

Na segunda-feira seguinte chuviscava quando Carlos e Ega, nocoupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde achegada da condessa, Carlos vira-a só uma vez, em casa dela; e forauma meia hora desagradável, cheia de mal-estar, com um ou outrobeijo frio, e recriminações infindáveis. Ela queixara-se das cartasdele, tão raras, tão secas. Não se puderam entender sobre os planosdesse Verão, ela devendo ir para Sintra, onde já alugara casa, Car-los falando no dever de acompanhar o avô a Santa Olávia. A con-dessa achava-o distraído: ele achou-a exigente. Depois ela sentou-seum instante sobre os seus joelhos — e aquele leve e delicado corpopareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze.

Por fim a condessa arrancara-lhe a promessa de a ir encontrar,justamente nessa segunda-feira de manhã, a casa da titi, queestava em Santarém — porque tinha sempre o apetite perverso erequintado de o apertar nos braços nus, em dias que o devesse rece-ber na sua sala, mais tarde, e com cerimónia. Mas Carlos faltara —e agora, rodando para casa dela, impacientavam-no já as queixasque teria de ouvir nos vãos de janela, e as mentiras chochas queteria de balbuciar...

De repente o Ega, que fumava em silêncio, abotoado no seupaletó de Verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:

— Dize-me uma coisa, se não é segredo sacrossanto... Quem éessa brasileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.— Quem te falou nisso?— Foi o Dâmaso que mo disse. Isto é, o Dâmaso que mo rugiu...

Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos num sofá doGrémio, e com uma cor de apoplexia, que ele me contou tudo...

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— Tudo o quê?— Tudo. Que te apresentara a uma brasileira a quem se ati-

rava, e que tu, aproveitando a sua ausência, te meteras lá, nãosaías de lá...

— Tudo isso é mentira! — exclamou o outro, já impaciente.E Ega, sempre risonho:— Então «que é a verdade», como perguntava o velho Pilatos ao

chamado Jesus Cristo?— É que há uma senhora a quem Dâmaso supunha ter inspi-

rado uma paixão, como supõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido agovernanta inglesa com uma bronquite, me mandou chamar paraeu a tratar. Ainda não está melhor, eu vou vê-la todos os dias. EMadame Gomes, que é o nome da senhora, que nem brasileira é,não podendo tolerar o Dâmaso, como ninguém o tolera, tem-lhefechado a sua porta. Esta é a verdade; mas talvez eu arranque asorelhas ao Dâmaso!

Ega contentou-se em murmurar:— E aí está como se escreve a história... Vá-se lá a gente fiar

em Guizot!Em silêncio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a

sua cólera contra o Dâmaso. Aí estava pois rasgada por aqueleimbecil a penumbra suave e favorável em que se abrigara o seuamor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Gré-mio: o que o Dâmaso dissera ao Ega, repeti-lo-ia a outros, na CasaHavanesa, no Restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim ointeressante supremo da sua vida seria daí por diante constante-mente perturbado, estragado, sujo pela tagarelice reles do Dâmaso!

— Parece-me que temos cá mais gente — disse o Ega, ao pene-trarem na antecâmara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé umpaletó cinzento e capas de senhora.

A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «dobusto», vestida de preto, com uma tira de veludo em volta do pes-coço, picada de três estrelas de diamantes. Uma cesta de esplêndi-das flores quase enchia a mesa, onde se acumulavam tambémromances ingleses, e uma Revista dos Dois Mundos em evidência,com a faca de marfim entre as folhas. Além da boa D. Maria daCunha e da baronesa de Alvim, havia uma outra senhora, que nemCarlos nem Ega conheciam, gorda e vestida de escarlate; e de pé,conversando baixo com o conde, de mãos atrás das costas, um cava-

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lheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a Comendada Conceição.

A condessa, um pouco corada, estendeu a Carlos a mão amuadae frouxa: todos o seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apode-rou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo, o Sr.Sousa Neto. O Sr. Sousa Neto já tinha o prazer de conhecer muitoCarlos da Maia, como um médico distinto, uma honra da Universi-dade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, oconhecerem-se todos de reputação, o poder-se ter assim uma apre-ciação mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, eraimpossível; por isso havia tanta imoralidade, tanta relaxação...

— Nunca sabe a gente quem mete em casa.O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divã, mos-

trando as estrelinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a históriado seu exílio em Celorico, onde se distraía compondo sermões para oabade: o abade recitava-os; e os sermões, sob uma forma mística,eram de facto afirmações revolucionárias que o santo varão lançavacom fervor, esmurrando o púlpito... A senhora de vermelho, sentadadefronte, de mãos no regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.

— Imaginei que Vossa Excelência tinha ido já para Sintra —veio dizer Carlos à baronesa, sentando-se junto dela. — VossaExcelência é sempre a primeira...

— Como quer o senhor que se vá para Sintra com um tempodestes?

— Com efeito, está infernal...— E que conta de novo? — perguntou ela, abrindo lentamente o

seu grande leque preto.— Creio que não há nada de novo em Lisboa, minha senhora,

desde a morte do senhor D. João VI.— Agora há o seu amigo Ega, por exemplo.— É verdade, há o Ega... Como o acha Vossa Excelência,

senhora baronesa?Ela nem baixou a voz para dizer:— Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não

gosto dele, não posso dizer nada...— Oh! senhora baronesa, que falta de caridade!O escudeiro anunciara o jantar. A condessa tomou o braço de

Carlos — e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmúrio de vozese o rumor lento das caudas de seda, pôde dizer-lhe asperamente:

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— Esperei meia hora; mas compreendi logo que estaria entre-tido com a brasileira...

Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel cor devinho, escurecida ainda por dois antigos painéis de paisagem tris-tonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, res-saltava alva e fresca, com um esplêndido cesto de rosas entre duasserpentinas douradas. Carlos ficou à direita da condessa, tendo aolado D. Maria da Cunha, que nesse dia parecia um pouco maisvelha, e sorria com um ar cansado.

— Que tem feito todo este tempo, que ninguém o tem visto? —perguntou-lhe ela, desdobrando o guardanapo.

— Por esse mundo, minha senhora, vagamente...Defronte de Carlos, o Sr. Sousa Neto, que tinha três enormes

corais no peitilho da camisa, estava já observando, enquanto reme-xia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, deviater encontrado nas ruas e nos edifícios grandes mudanças... A con-dessa, infelizmente, mal tinha saído durante o tempo que estiverano Porto. O conde, esse, é que admirara os progressos da cidade. Eespecificou-os: elogiou a vista do Palácio de Cristal; lembrou ofecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais umavez o comparou ao dualismo da Áustria e da Hungria. E atravésdestas coisas graves, lançadas de alto, com superioridade e compeso, a baronesa e a senhora de escarlate, aos dois lados dele, fala-vam do Convento das Salésias.

Carlos, no entanto, comendo em silêncio a sua sopa, ruminavaas palavras da condessa. Também ela conhecia já a sua intimidadecom a «brasileira». Era evidente pois que já andava ali, difamante etorpe, a tagarelice do Dâmaso. E quando o criado lhe ofereceu Sau-terne, estava decidido a bater no Dâmaso.

De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia,pachorrenta e cantada:

— O Sr. Maia é que deve saber... O Sr. Maia já lá esteve.Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora de escarlate

que lhe falava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buçoforte de quarentona pálida. Ninguém lha apresentara, ele nãosabia quem era. Sorriu também, perguntou:

— Onde, minha senhora?— Na Rússia.— Na Rússia?... Não, minha senhora, nunca estive na Rússia.

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Ela pareceu um pouco desapontada.— Ah, é que me tinham dito... Não sei já quem me disse, mas

era pessoa que sabia...O conde, ao fundo, explicava-lhe amavelmente que o amigo

Maia estivera apenas na Holanda.— País de grande prosperidade, a Holanda!... Em nada inferior

ao nosso... Já conheci mesmo um holandês que era excessivamenteinstruído...

A condessa baixara os olhos, partindo vagamente um bocadinhode pão, mais séria de repente, mais seca, como se a voz de Carlos,erguendo-se tão tranquila ao seu lado, tivesse avivado os seus des-peitos. Ele, então, depois de provar devagar o seu Sauterne,voltou-se para ela muito naturalmente e risonho:

— Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo ideia de ir àRússia. Há assim uma infinidade de coisas que se dizem e que nãosão exactas... E se se faz uma alusão irónica a elas, ninguém com-preende a alusão, nem a ironia...

A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordemmuda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pálido:

— No fundo de tudo que se diz há sempre um facto, ou umbocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mimbasta-me...

— A senhora condessa tem então uma credulidade infantil.Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha de um rei quetinha uma estrela na testa...

Mas o conde interpelava-o, o conde queria a opinião do seuamigo Maia. Tratava-se do livro de um inglês, o major Bratt, queatravessara a África, e dizia coisas perfidamente desagradáveispara Portugal. O conde via ali só inveja — a inveja que nos têmtodas as nações por causa da importância das nossas colónias, e danossa vasta influência na África...

— Está claro — dizia o conde — que não temos nem os milhões,nem a marinha dos Ingleses. Mas temos grandes glórias; o infanteD. Henrique é de primeira ordem; e a tomada de Ormuz é um pri-mor... E eu que conheço alguma coisa de sistemas coloniais, possoafirmar que não há hoje colónias nem mais susceptíveis de riqueza,nem mais crentes no progresso, nem mais liberais que as nossas!Não lhe parece, Maia?

— Sim, talvez, é possível... Há muita verdade nisso...

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Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vezem quando o monóculo no olho e sorrindo para a baronesa, pronun-ciou-se alegremente contra todas essas explorações da África, eessas longas missões geográficas... Porque não se deixaria o pretosossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia àordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrário, davam aoUniverso uma deliciosa quantidade de pitoresco! Com a maniafrancesa e burguesa de reduzir todas as regiões e todas as raças aomesmo tipo de civilização, o mundo ia tornar-se de uma monotoniaabominável. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrifícios,despesas sem fim, para ir a Tombuctu — para quê? Para encontrarlá pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates.

O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, saindo doseu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:

— Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chique!Então Sousa Neto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega

esta pergunta grave:— Vossa Excelência pois é em favor da escravatura?Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era

pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinhamcomeçado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obe-decido, quem era seriamente temido... Por isso ninguém agoralograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bemcozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pre-tos em quem fosse lícito dar vergastadas... Só houvera duas civili-zações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade:a civilização romana e a civilização especial dos plantadores daNova Orleães. Porquê? Porque numa e noutra existira a escrava-tura absoluta, a sério, com o direito de morte!...

Durante um momento o Sr. Sousa Neto ficou como desorgani-zado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se,encarou o Ega.

— Então Vossa Excelência, nessa idade, com a sua inteligência,não acredita no progresso?

— Eu não, senhor.O conde interveio, afável e risonho: — O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem

razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes...

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Estava-se servindo jambon aux épinards . Durante ummomento falou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os faziatambém brilhantes e difíceis de sustentar, excessivamente difíceis,era o Barros, o ministro do Reino...

— Talento robusto — murmurou respeitosamente Sousa Neto.— Sim, pujante — disse o conde.Mas ele agora não falava tanto do talento do Barros como par-

lamentar, como homem de Estado. Falava do seu espírito de socie-dade, do seu esprit...

— Ainda este Inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante!Até foi em casa da Sr.a D. Maria da Cunha... Vossa Excelência nãose lembra, Sr.a D. Maria? Esta minha desgraçada memória! ÓTeresa, lembras-te daquele paradoxo do Barros? Ora sobre que era,meu Deus?... Enfim, um paradoxo muito difícil de sustentar... Estaminha memória!... Pois não te lembras, Teresa?

A condessa não se lembrava. E enquanto o conde ficava reme-xendo ansiosamente, com a mão na testa, as recordações — asenhora de escarlate voltou a falar de pretos, e de escudeiros pre-tos, e de uma cozinheira preta que tivera uma tia dela, a tia Vilar...Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde quelhe morrera a Joana, que estava em casa havia quinze anos, nãosabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seismeses já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pre-tensiosas, uma imoralidade! Quase lhe fugiu um suspiro do peito, etrincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:

— Ó baronesa, ainda tens a Vicenta?— Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta...

A Sr.a D. Vicenta, se faz favor.A outra contemplou-a um instante, com inveja daquela felici-

dade. — E é a Vicenta que te penteia?Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coi-

tada... Mas sempre caturra. Agora andava com a mania de apren-der francês. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizerj’aime, tu aimes...

— E a senhora baronesa — acudiu o Ega — começou por lhemandar ensinar os verbos mais necessários.

Está claro, dizia a baronesa, que aquele era o mais necessário.Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!

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— Ah! — gritou de repente o conde, deixando quase cair otalher. — Agora me lembro.

Tinha-se lembrado enfim do soberbo paradoxo do Barros. Diziao Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não eraisto!

— Esta minha desgraçada memória!... E era sobre cães. Umacoisa brilhante, filosófica até!

E, por se falar de cães, a baronesa lembrou-se do Tommy, ogalgo da condessa; perguntou por Tommy. Já o não via há que tem-pos, esse bravo Tommy! A condessa nem queria que se falasse noTommy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, umhorror... Mandara-o para o Instituto, lá morrera.

— Está deliciosa esta galantine — disse D. Maria da Cunha,inclinando-se para Carlos.

— Deliciosa.E a baronesa, do lado, declarou também a galantine uma per-

feição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo agalantine: e apressou-se a responder ao Sr. Sousa Neto, que, a pro-pósito de cães, lhe estava falando da Sociedade Protectora dos Ani-mais. O Sr. Sousa Neto aprovava-a, considerava-a como um pro-gresso... E, segundo ele, não seria mesmo de mais que o Governolhe desse um subsídio.

— Que eu creio que ela vai prosperando... E merece-o, acreditea senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todasas sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, à imita-ção do que se faz lá fora, como a Sociedade de Geografia e outras, aProtectora dos Animais parece-me decerto uma das mais úteis.

Voltou-se para o lado, para o Ega:— Vossa Excelência pertence?— À Sociedade Protectora dos Animais?... Não, senhor pertenço

a outra, à de Geografia. Sou dos protegidos.A baronesa teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se

extremamente sério: pertencia à Sociedade de Geografia, conside-rava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilizadora,detestava aquelas irreverências. Mas a condessa e Carlos tinhamrido também: — e de repente a frialdade que até aí os conservaraao lado um do outro reservados, numa cerimónia afectada, pareceudissipar-se ao calor desse riso trocado, no brilho dos dois olharesencontrando-se irresistivelmente. Servira-se o champanhe, ela

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tinha uma corzinha no rosto. O seu pé, sem ela saber como, roçoupelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez — e, como no resto damesa se conversava sobre uns concertos clássicos que ia haver noPrice, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma repreensão amável:

— Que tolice foi essa da brasileira?... Quem lhe disse isso?Ela confessou-lhe logo que fora o Dâmaso... O Dâmaso viera

contar-lhe o entusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãsinteiras que lá passava, todos os dias, à mesma hora... Enfim, oDâmaso fizera-lhe claramente entrever uma liaison.

Carlos encolheu os ombros. Como podia ela acreditar noDâmaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarelice, a imbecilidade...

— É perfeitamente verdade que eu vou a casa dessa senhora,que nem brasileira é, que é tão portuguesa como eu; mas é porqueela tem a governanta muito doente com uma bronquite, e eu sou omédico da casa. Foi até o Dâmaso, ele próprio, que lá me levoucomo médico!

No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridadevinda do doce alívio que se fazia no seu coração.

— Mas o Dâmaso disse-me que era tão linda!...Sim, era muito linda. E então? Um médico, por fidelidade às

suas afeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antesde penetrar na casa de uma doente, exigir-lhe um certificado dehediondez!

— Mas que está ela cá a fazer?...— Está à espera do marido, que foi a negócios ao Brasil, e vem

aí... É uma gente muito distinta, e creio que muito rica... Vão-sebrevemente embora, de resto, e eu pouco sei deles. As minhas visi-tas são de médico; tenho apenas conversado com ela sobre Paris,sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...

A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominadapelo belo olhar com que ele lhas murmurava: e o seu pé apertava ode Carlos numa reconciliação apaixonada, com a força que deseja-ria pôr num abraço — se ali lho pudesse dar.

A senhora de escarlate, no entanto, recomeçara a falar da Rús-sia. O que a assustava é que era tão caro, corriam-se tantos perigospor causa da dinamite, e uma constituição fraca devia sofrer muitocom a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ela era aesposa de Sousa Neto, e que se tratava de um filho deles, filho único,despachado segundo-secretário para a legação de São Petersburgo.

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— O menino conhece-o? — perguntou D. Maria ao ouvido deCarlos, por trás do leque. — É um horror de estupidez... Nem fran-cês sabe! De resto não é pior que os outros... Que a quantidade demonos, de sensaborões e de tolos que nos representam lá fora, aténos faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um país desgra-çado.

— Pior, minha cara senhora, muito pior. Isto é um país cursi.Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa

com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calara-se, já pre-parada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhorasergueram-se, no momento em que o Ega, ainda acerca da Rússia,acabava de contar uma história ouvida a um polaco, e em que seprovava que o czar era um estúpido...

— Liberal todavia, gostando bastante do progresso! — murmu-rou ainda o conde, já de pé.

Os homens, sós, acenderam os seus charutos; o escudeiro serviuo café. Então o Sr. Sousa Neto, com a sua chávena na mão, aproxi-mou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera emfazer o seu conhecimento...

— Eu tive também em tempos o prazer de conhecer o pai deVossa Excelência... Pedro, creio que era justamente o Sr. Pedro daMaia. Começava eu então a minha carreira pública... E o avô deVossa Excelência, bom?

— Muito agradecido a Vossa Excelência.— Pessoa muito respeitável... O pai de Vossa Excelência era...

enfim, era o que se chama «um elegante». Tive também o prazer deconhecer a mãe de Vossa Excelência.

E de repente calou-se, embaraçado, levando a chávena aoslábios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, queao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a propósitoda secretária da Legação da Rússia, com quem ele encontrara nessamanhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa,com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos gar-ços... E o conde, que a admirava também, gabava-lhe sobretudo oespírito, a instrução. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque odever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida... Oconde afirmou logo com exuberância que não gostava também deliteratas; sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não nabiblioteca...

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— No entanto é agradável que uma senhora possa conversarsobre coisas amenas, sobre o artigo de uma revista, sobre... Porexemplo, quando se publica um livro... Enfim, não direi quando setrata de Guizot, ou de um Jules Simon... Mas, por exemplo, quandose trata de um Feuillet, de um... Enfim, uma senhora deve serprendada. Não lhe parece, Neto?

Neto, grave, murmurou:— Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algu-

mas prendas...Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo

com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o Sr. Thiers, ousobre o Sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher auma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argo-las. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.

— Vossa Excelência decerto, Sr. Sousa Neto, sabe o que dizProudhon?

— Não me recordo textualmente, mas...— Em todo o caso Vossa Excelência conhece perfeitamente o

seu Proudhon?O outro, muito secamente, não gostando decerto daquele interro-

gatório, murmurou que Proudhon era um autor de muita nomeada.Mas o Ega insistia, com uma impertinência pérfida:— Vossa Excelência leu evidentemente, como nós todos, as

grandes páginas de Proudhon sobre o amor?O Sr. Neto, já vermelho, pousou a chávena sobre a mesa. E quis

ser sarcástico, esmagar aquele moço tão literário, tão audaz.— Não sabia — disse ele com um sorriso infinitamente superior

— que esse filósofo tivesse escrito sobre assuntos escabrosos!Ega atirou os braços ao ar, consternado:— Oh! Sr. Sousa Neto! Então Vossa Excelência, um chefe de

família, acha o amor um assunto escabroso?!O Sr. Neto encordoou. E muito direito, muito digno, falando do

alto da sua considerável posição burocrática:— É meu costume, Sr. Ega, não entrar nunca em discussões, e aca-

tar todas as opiniões alheias, mesmo quando elas sejam absurdas...E quase voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Car-

los, desejando saber, numa voz ainda um pouco alterada, se eleagora se fixava algum tempo mais em Portugal. Então, durante ummomento, acabando os charutos, os dois falaram de viagens.

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O Sr. Neto lamentava que os seus muitos deveres não lhe permitis-sem percorrer a Europa. Em pequeno fora esse o seu ideal; masagora, com tantas ocupações públicas, via-se forçado a não deixar acarteira. E ali estava, sem ter visto sequer Badajoz...

— E Vossa Excelência de que gostou mais, de Paris ou de Lon-dres?

Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duascidades tão diferentes, duas civilizações tão originais...

— Em Londres — observou o conselheiro — tudo carvão...Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos

fogões, quando havia frio...O Sr. Sousa Neto murmurou:— E o frio ali deve ser sempre considerável... Clima tão ao

norte!...Esteve um momento mamando o charuto, de pálpebra cerrada.

Depois, fez esta observação sagaz e profunda:— Povo prático, povo essencialmente prático.— Sim, bastante prático — disse vagamente Carlos, dando um

passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baronesa.— E diga-me outra coisa — prosseguiu o Sr. Sousa Neto, com

interesse, cheio de curiosidade inteligente. — Encontra-se por lá,em Inglaterra, desta literatura amena, como entre nós, folhetinis-tas, poetas de pulso?...

Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu,com descaro:

— Não, não há disso. — Logo vi — murmurou Sousa Neto. — Tudo gente de negócio.E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baro-

nesa, sentado defronte dela, falando outra vez de Celorico, con-tando-lhe uma soirée de Celorico, com detalhes picarescos sobre asautoridades, e sobre um abade que tinha morto um homem e can-tava fados sentimentais ao piano. A senhora de escarlate, no sofáao lado, com os braços caídos no regaço, pasmava para aquela veiado Ega como para as destrezas de um palhaço. D. Maria, junto damesa, folheava com o seu ar cansado uma Ilustração; e vendo queCarlos ao entrar procurara com o olhar a condessa, chamou-o,disse-lhe baixo que ela fora dentro ver Charlie, o pequeno...

— É verdade — perguntou Carlos, sentando-se ao lado dela —que é feito dele, desse lindo Charlie?

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— Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...— A Sr.a D. Maria também me parece hoje um pouco murcha.— É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom humor ou o

aborrecimento vêm só das influências do tempo... Na sua idadevêm de outras coisas. E a propósito de outras coisas: então a Cohentambém chegou?

— Chegou — disse Carlos — mas não também. O tambémimplica combinação... E a Cohen e o Ega chegaram realmenteambos por acaso... De resto isso é história antiga, é como os amoresde Helena e de Páris.

Nesse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afo-gueada, e trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar,falando sobretudo para a mulher do Sr. Sousa Neto, queixou-selogo de não ter achado Charlie bem... Estava tão quente, tãoinquieto... Tinha quase medo que fosse sarampo. E voltando-sevivamente para Carlos, com um sorriso:

— Eu estou com vergonha... Mas se o Sr. Carlos da Maia qui-sesse ter o incómodo de o vir ver um instante... É odioso, real-mente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente...

— Oh! senhora condessa! — exclamou ele, já de pé.Seguiu-a. Numa saleta, ao lado, o conde e o Sr. Sousa Neto,

enterrados num sofá, conversavam fumando.— Levo o Sr. Carlos da Maia para ver o pequeno...O conde erguera-se um pouco do sofá, sem compreender bem.

Já ela passara. Carlos seguiu em silêncio a sua longa cauda deseda preta através do bilhar, deserto, com o gás aceso, ornado dequatro retratos de damas, da família dos Gouvarinhos, empoadas esorumbáticas. Ao lado, por trás de um pesado reposteiro de fazendaverde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livrosnuma estante envidraçada, e uma escrivaninha onde pousava umcandeeiro sob o abat-jour de renda cor-de-rosa. E aí, bruscamente,ela parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos, os seus lábiosprenderam-se aos dele num beijo sôfrego, penetrante, completo,findando num soluço de desmaio... Ele sentia aquele lindo corpoestremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos semforça.

— Amanhã, em casa da titi, às onze — murmurou ela quandopôde falar.

— Pois sim.

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Desprendida dele, a condessa ficou um momento com as mãossobre os olhos, deixando desvanecer aquela lânguida vertigem quea fizera cor de cera. Depois, cansada e sorrindo:

— Que doida que eu sou... Vamos ver Charlie.O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E aí, numa cami-

nha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno,fresco, com um bracinho caído para o lado, os seus lindos caracóisloiros espalhados no travesseiro como uma auréola de anjo. Carlostocou-lhe apenas no pulso; e a criada escocesa, que trouxera umaluz de sobre a cómoda, disse, sorrindo tranquilamente:

— O menino neste últimos dias tem andado muitíssimo bem... Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa,

já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus lábiosinsaciáveis. Ele colheu um rápido beijo. E, ao passar na antecâ-mara, onde Sousa Neto e o conde continuavam enfronhados numaconversa grave, ela disse ao marido:

— O pequeno está a dormir... O Sr. Carlos da Maia achou-obem.

O conde de Gouvarinho bateu no ombro de Carlos, carinhosa-mente. E durante um momento a condessa ficou ali conversando,de pé, a deixar-se serenar, pouco a pouco, naquela penumbra favo-rável, antes de afrontar a luz forte da sala. Depois, por se falar emhigiene, convidou o Sr. Sousa Neto para uma partida de bilhar;mas o Sr. Neto, desde Coimbra, desde a Universidade, não pegaranum taco. E ia-se chamar o Ega quando apareceu Teles da Gama,que chegava do Price. Logo atrás dele entrou o conde de Steinbro-ken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor do piano.O ministro cantou melodias da Finlândia. Teles da Gama tocoufados.

Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandyand soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E embaixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfimsoltar a pergunta que lhe faiscara nos lábios toda a noite:

— Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quissaber se em Inglaterra havia também literatura?

Ega olhou-o com espanto:— Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imedia-

tamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?— Não sei... Há tanta gente capaz...

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E o Ega radiante:— Oficial superior de uma grande repartição do Estado!— De qual?— Ora de qual! De qual há-ser?... Da Instrução Pública! Na tarde seguinte, às cinco horas, Carlos, que se demorara de

mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos inter-mináveis, fez voar o coupé até à Rua de S. Francisco, olhando a cadamomento o relógio, num receio de que Maria Eduarda tivesse saídopor aquele lindo dia de Verão, luminoso e sem calor. Com efeito, àporta dela estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou asescadas, desesperado com a condessa, sobretudo consigo mesmo, tãofraco, tão passivo, que assim se deixara retomar por aqueles braçosexigentes, cada vez mais pesados, e já incapazes de o comover...

— A senhora chegou agora mesmo — disse-lhe o Domingos, quevoltara da terra havia três dias, e ainda não cessara de lhe sorrir.

Sentada no sofá, de chapéu, tirando as luvas, ela acolheu-o comuma doce cor no rosto, e uma carinhosa repreensão:

— Estive à espera mais de meia hora antes de sair... É umaingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!

— Porquê? Está pior, Miss Sara?Ela olhou-o, risonhamente escandalizada. Ora, Miss Sara! Miss

Sara ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agorajá não eram as visitas de médico que se esperavam, eram as deamigo; e essa tinha-lhe faltado.

Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, quefolheava junto da mesa um livro novo de estampas; e a ternura, agratidão infinita do seu coração, que não ousava mostrar à mãe,pô-la toda na longa carícia em que envolveu a filha.

— São histórias que a mamã agora comprou — dizia Rosa,séria e presa ao seu livro. — Hei-de-tas contar depois... São histó-rias de bichos.

Maria Eduarda erguera-se desapertando lentamente as fitas dochapéu.

— Quer tomar uma chávena de chá connosco, Sr. Carlos daMaia? Eu vinha morrendo por uma chávena de chá... Que lindo dia,não é verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio enquanto euvou tirar o chapéu...

Carlos, só com Rosa, sentou-se junto dela, desviando-a do livro,tomando-lhe ambas as mãos.

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— Fomos ao passeio da Estrela — dizia a pequena. — Mas amamã não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!

Carlos beijou, uma depois da outra, as mãozinhas de Rosa.— E então que fizeste no Passeio? — perguntou ele, depois de

um leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.— Andei a correr, havia uns patinhos novos...— Bonitos?...A pequena encolheu os ombros:— Chinfrinzitos.Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?Rosa sorriu. Fora o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras

coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma gaja... ODomingos tinha muita graça.

Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão boni-tos vestidos, não devia dizer aquelas palavras... Assim falava agente rota.

— O Domingos não anda roto — disse Rosa muito séria .E subitamente, com outra ideia, bateu as palmas, pulou-lhe

entre os joelhos, radiante:— E trouxe-me uns grilos da praça! O Domingos trouxe-me uns

grilos... Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grilos! Parece incrí-vel, hem? Eu nunca vi ninguém mais medrosa...

Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um argrave:

— É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!Maria Eduarda entrava, ajeitando ainda de leve o ondeado do

cabelo: e, ouvindo assim falar de mimo, quis saber quem é que elaestragava com mimo... Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essamanhã fora castigada!

Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos.— Sabes como a mamã a castiga? — exclamava ela, puxando a

manga de Carlos. — Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe eminglês: «Bad dog! Dreadful dog!»

Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com odedinho erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginandocom efeito que a estavam a repreender, arrastou-se, vexada, paradebaixo do sofá. E foi necessário que Rosa a tranquilizasse, de joelhossobre a pele de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que ela nem eramau cão, nem feio cão; fora só para contar como fazia a mamã...

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— Vai-lhe dar água, que ela deve estar com sede — disse entãoMaria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. — E dizao Domingos que nos traga o chá.

Rosa e Niniche partiram correndo. Carlos veio ocupar, junto dajanela, a costumada poltrona de repes. Mas pela primeira vez, desdea sua intimidade, houve entre eles um silêncio difícil. Depois elaqueixou-se de calor, desenrolando distraidamente o bordado; e Carlospermanecia mudo, como se para ele, nesse dia, apenas houvesseencanto, apenas houvesse significação numa certa palavra de que osseus lábios estavam cheios e que não ousavam murmurar, que quasereceava que fosse adivinhada, apesar de ela sufocar o seu coração.

— Parece que nunca se acaba, esse bordado! — disse ele porfim, impaciente de a ver, tão serena, a ocupar-se das suas lãs.

Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ela respondeu,sem erguer os olhos:

— E para que se há-de acabar? O grande prazer é andá-lo afazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha amanhã,torna-se assim uma companhia... Para que se há-de querer chegarlogo ao fim das coisas?

Uma sombra passou no rosto de Carlos. Nestas palavras, ditasde leve acerca do bordado, ele sentia uma desanimadora alusão aoseu amor — esse amor que lhe fora enchendo o coração à maneiraque a lã cobria aquela talagarça, e que era obra simultânea das mes-mas brancas mãos. Queria ela pois conservá-lo ali, arrastado como obordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tam-bém no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?

Disse-lhe então, comovido:— Não é assim. Há coisas que só existem quando se completam,

e que só então dão a felicidade que se procurava nelas.— É muito complicado isso — murmurou ela, corando. — É

muito subtil...— Quer que lho diga mais claramente?— Nesse instante Domingos, erguendo o reposteiro, anunciou

que estava ali o Sr. Dâmaso...Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciência:— Diga que não recebo!Fora, no silêncio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou

inquieto, lembrando-se que o Dâmaso devia ter visto, em baixo,passeando na rua, o seu coupé. Santo Deus! O que ele iria tagarelar

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agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quaselhe pareceu nesse instante a existência do Dâmaso incompatívelcom a tranquilidade do seu amor.

— Aí está outro inconveniente desta casa — dizia no entantoMaria Eduarda. — Aqui ao lado desse Grémio, a dois passos doChiado, é demasidamente acessível aos importunos. Tenho agora derepelir quase todos os dias este assalto à minha porta! É intolerável.

E com uma súbita ideia, atirando o bordado para o açafate, cru-zando as mãos sobre os joelhos:

— Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Nãome seria possível arranjar por aí uma casinhola, um cottage, ondeeu fosse passar os meses de Verão?... Era tão bom para a pequena!Mas não conheço ninguém, não sei a quem me hei-de dirigir...

Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivais —como já noutra ocasião em que ela mostrara desejos de ir para ocampo. Justamente, nesses últimos tempos Craft voltara a falar, emais decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-sedas suas colecções. Que deliciosa vivenda para ela, artística e cam-pestre, condizendo tão bem com os seus gostos! Uma tentação atra-vessou-lhe, irresistível.

— Eu sei com efeito de uma casa... E tão bem situada, que lheconvinha tanto!...

— Que se aluga?Carlos não hesitou:— Sim, é possível arranjar-se...— Isso era um encanto!Ela tinha dito — «era um encanto». E isto decidiu-o logo, pare-

cendo-lhe desamorável e mesquinho o ter-lhe sugerido uma espe-rança, e não lha realizar com fervor.

O Domingos entrara com o tabuleiro do chá. E enquanto o colo-cava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao péda janela, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pen-sava em começar imediatamente negociações com o Craft,comprar-lhe as colecções, alugar-lhe a casa por um ano, e oferecê-laa Maria Eduarda para os meses de Verão. E não considerava, nesseinstante, nem as dificuldades, nem o dinheiro. Via só a alegria delapasseando com a pequena entre as belas árvores do jardim. E comoMaria Eduarda deveria ser mais grandemente formosa no meiodesses móveis da Renascença, severos e nobres!

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— Muito açúcar? — perguntou ela.— Não... Perfeitamente, basta.Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chávena

de porcelana ordinária com um filetezinho azul, recordava o magní-fico serviço que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e cor defogo. Pobre senhora! Tão delicada, e ali enterrada entre aquelesrepes, maculando a graça das suas mãos nas coisas reles da mãeCruges!

— E onde é essa casa? — perguntou Maria Eduarda.— Nos Olivais, muito perto daqui, vai-se lá numa hora de car-

ruagem...Explicou-lhe detalhadamente o sítio — acrescentando, com os

olhos nela, e com um sorriso inquieto:— Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se for

para lá instalar-se, e depois vier o calor, quem é que a torna a ver?Ela pareceu surpreendida:— Mas que lhe custa, a si, que tem cavalos, que tem carrua-

gens, que não tem quase nada que fazer?...Assim ela achava natural que ele continuasse nos Olivais as

suas visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossível renunciar aoencanto desta intimidade, tão largamente oferecida, e decerto maisdoce na solidão de aldeia. Quando acabou a sua chávena de chá —era como se a casa, os móveis, as árvores fossem já seus, fossem jádela. E teve ali um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietaçãoda quinta, a entrada por uma rua de acácias, e a beleza da sala dejantar com duas janelas abrindo sobre o rio...

Ela escutava-o, encantada:— Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada,

cheia de esperanças... Quando poderei ter uma resposta?Carlos olhou o relógio. Era já tarde para ir aos Olivais. Mas logo

na manhã seguinte, cedo, ia falar com o dono da casa, seu amigo...— Quanto incómodo por minha causa! — disse ela. — Real-

mente! como lhe hei-de eu agradecer?...Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram um instante pousa-

dos nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivel-mente um pouco do segredo que ela retinha no seu coração.

Ele murmurou:— Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me

olhasse outra vez assim.

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Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.— Não diga isso...— E que necessidade há que eu lho diga? Pois não sabe perfei-

tamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!Ela ergueu-se bruscamente, ele também — e assim ficaram,

mudos, cheios de ansiedade, traspassando-se com os olhos, como sese tivesse feito uma grande alteração no Universo, e eles esperas-sem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi elaque falou a custo, quase desfalecida, estendendo para ele, como se oquisesse afastar, as mãos inquietas e trémulas:

— Escute! Sabe bem o que o que eu sinto por si, mas escute...Antes que seja tarde, há uma coisa que lhe quero dizer...

Carlos via-a assim tremer, via-a toda pálida... E nem a escutara,nem a compreendera. Sentia apenas, num deslumbramento, que oamor comprimido até aí no seu coração irrompera por fim, triun-fante, e embatendo no coração dela, através do aparente mármore doseu peito, fizera de lá ressaltar uma chama igual... Só via que elatremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade forte de um actode posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou sub-missa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhas ora uma,ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:

— Meu amor! meu amor! meu amor!Maria Eduarda caíra pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar

as mãos, erguendo para ele os olhos cheios de paixão, enevoados delágrimas, balbuciou ainda, debilmente, numa derradeira suplicação:

— Há uma coisa que eu lhe queria dizer!...Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.— Eu sei o que é! — exclamou, ardentemente, junto do rosto

dela, sem a deixar falar mais, certo de que adivinhara o seu pensa-mento. — Escusa de dizer, sei perfeitamente. É o que eu tenho pen-sado tantas vezes! É que um amor como o nosso não pode viver nascondições em que vivem outros amores vulgares... É que desde queeu lhe digo que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposadiante de Deus...

Ela recuava o rosto, olhando-o angustiosamente e como se nãocompreendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as mãos delapresas, penetrando-a toda da emoção que o fazia tremer:

— Sempre que pensava em si, era já com esta esperança deuma existência toda nossa, longe daqui, longe de todos, tendo que-

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brado todos os laços presentes, pondo a nossa paixão acima detodas as ficções humanas, indo ser felizes para algum canto domundo, solitariamente e para sempre... Levamos Rosa, está claro,sei que se não pode separar dela... E assim viveríamos sós, todostrês, num encanto!

— Meu Deus! Fugirmos? — murmurou ela, assombrada.Carlos erguera-se.— E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer,

digna do nosso amor?Maria não respondeu, imóvel, a face erguida para ele, branca

de cera. E pouco a pouco uma ideia parecia surgir nela, inesperadae perturbadora, revolvendo todo o seu ser. Os seus olhosalargavam-se, ansiosos e refulgentes.

Carlos ia falar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira dasala deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do chá:e durante um momento, quase interminável, houve entre aquelesdois seres, sacudidos por um ardente vendaval de paixão, a caseirapassagem de um criado arrumando chávenas vazias. MariaEduarda, bruscamente, refugiou-se detrás das bambinelas de cre-tone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi sentar-se no sofá, afolhear ao acaso uma Ilustração, que lhe tremia nas mãos. E nãopensava em nada, nem sabia onde estava... Assim na véspera,havia ainda instantes, conversando com ela, dizia cerimoniosa-mente: «Minha cara senhora...» Depois houvera um olhar; e agoradeviam fugir ambos, e ela tornara-se o cuidado supremo da suavida, a esposa secreta do seu coração.

— Vossa Excelência quer mais alguma coisa? — perguntou oDomingos.

Maria Eduarda respondeu sem se voltar:— Não.O Domingos saiu, a porta ficou cerrada. Ela então atravessou a

sala, veio para Carlos, que a esperava no sofá, com os braços esten-didos. E era como se obedecesse só ao impulso da sua ternura, cal-madas já todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante daquelapaixão, tão pronta a apoderar-se de todo o seu ser, e murmurou,quase triste:

— Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão pouco, parairmos assim ambos, quebrando por tudo, criar um destino que éirreparável...

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Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, bran-damente:

— O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer maisnada na vida!

Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida nofundo do seu coração, escutando-lhe as derradeiras agitações.Depois soltou um longo suspiro.

— Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhequeria dizer, mas não importa... É melhor assim!...

E que outra coisa podiam fazer? — perguntava Carlos,radiante. Era a única solução digna, séria... E nada os podia emba-raçar; amavam-se, confiavam absolutamente um no outro; ele erarico, o mundo era largo...

E ela repetia, mais firme agora, já decidida, e como se aquelaresolução a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma,penetrando-a toda e para sempre:

— Pois seja assim! É melhor assim!Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.— Diz-me ao menos que és feliz — murmurou Carlos. Ela lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus lábios uniram-se

num beijo profundo, infinito, quase imaterial pelo seu êxtase.Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as pálpebras, edisse-lhe, muito baixo:

— Adeus, deixa-me só, vai.Ele tomou o chapéu, e saiu.

No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao Rama-lhete, passeava na quinta antes do almoço — quando apareceu Car-los. Apertaram as mãos, falaram um instante do Ega, da chegadados Cohens. Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia aquinta, a casa, todo o horizonte, perguntou rindo:

— Você quer-me vender tudo isto, Craft?O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:— A la disposición de usted...E ali mesmo concluíram a negociação, passeando numa ruazi-

nha de buxo por entre os gerânios em flor.Craft cedia a Carlos todos os seus móveis antigos e modernos

por duas mil e quinhentas libras, pagas em prestações: só reser-vava algumas raras peças do tempo de Luís XV, que deviam fazer

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parte dessa nova colecção que planeava, homogénea, e toda doséculo XVIII. E como Carlos não tinha no Ramalhete lugar paraeste vasto bricabraque, Craft alugava-lhe por um ano a casa dosOlivais, com a quinta.

Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou nalarga despesa que fazia, só para oferecer uma residência de Verão,por dois curtos meses, a quem se contentaria com um simples cot-tage, entre árvores de quintal. Pelo contrário! Quando repercorreuas salas do Craft, já com olhos de dono, achou tudo mesquinho,pensou em obras, em retoques de gosto.

Com que alegria, ao deixar os Olivais, correu à Rua de S. Fran-cisco, anunciar a Maria Eduarda que lhe arranjara enfim definitiva-mente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o viraapear-se, veio ao seu encontro ao patamar: ele ergueu-a nos braços,entrou assim na sala, com ela ao colo, em triunfo. E não se conteve;foi à pequena que deu logo «a grande novidade», anunciando-lhe queia ter duas vacas, e uma cabra, e flores, e árvores para se balouçar...

— Onde é? Dize, onde é? — exclamava Rosa, com os lindosolhos resplandecentes, e a facezinha cheia de riso.

— Daqui muito longe... Vai-se numa carruagem... Vêem-se pas-sar os barcos no rio... E entra-se por um grande portão, onde há umcão de fila.

Maria Eduarda apareceu, com Niniche ao colo.— Mamã, mamã! — gritou Rosa correndo para ela, dependu-

rando-se-lhe do vestido. — Diz que vou ter duas cabrinhas, e umbalouço... É verdade? Dize, deixa ver, onde é? Dize... E vamos jápara lá?

Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem umapalavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joe-lhos, Carlos contou a sua ida aos Olivais... O dono da casa estavapronto a alugar, já, numa semana... E assim se achava ela derepente com uma vivenda pitoresca, mobilada num belo estilo, deli-ciosamente saudável...

Maria Eduarda parecia surpreendida, quase desconfiada.— Há-de ser necessário levar roupas de cama, roupas de mesa...— Mas há tudo! — exclamou Carlos alegremente. — Há quase

tudo! É tal qual como num conto de fadas... As luzes estão acesas, asjarras estão cheias de flores... É só tomar uma carruagem e chegar.

— Somente, é necessário saber o que esse paraíso me vai custar...

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Carlos fez-se vermelho. Não previra que se falasse em dinheiro— e que ela quereria decerto pagar a casa que habitasse... Entãopreferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quaseum ano, andava desejando desfazer-se das suas colecções, e alugara quinta: o avô e ele tinham repetidamente pensado em adquirirgrande parte dos móveis e das faianças, para acabar de mobilar oRamalhete , e ornamentar mais Santa Olávia; e ele enfimdecidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade delhe poder oferecer, por alguns meses de Verão, uma residência tãograciosa, e tão confortável...

— Rosa, vai lá para dentro — disse Maria Eduarda, depois deum momento de silêncio. — Miss Sara está à tua espera.

Depois, olhando para Carlos, muito séria:— De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o

campo, não tinha feito essa despesa...— Tinha feito a mesma despesa... Tinha também alugado a

casa por seis meses ou por ano... Onde possuía eu agora de repenteum sítio para meter as coisas do Craft? O que não fazia talvez eracomprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobíliasdos quartos dos criados, etc.

E acrescentou, rindo:— Ora se me quiser indemnizar disso, podemos debater esse

negócio...Ela baixou os olhos, reflectindo, lentamente.— Em todo o caso o seu avô e os seus amigos devem saber

daqui a dias que me vou instalar nessa casa... E devem compreen-der que a comprou para que eu lá me instalasse...

Carlos procurou o seu olhar, que permanecia pensativo, des-viado dele. E isto inquietou-o — vê-la assim retrair-se àquela abso-luta comunhão de interesses em que a queria envolver, comoesposa do seu coração.

— Não aprova então o que fiz? Seja franca...— Decerto... Como não hei-de eu aprovar tudo quanto faz, tudo

quanto vem de si? Mas...Ele acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triunfar:— Não há mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho

uma casa no campo, inútil por algum tempo, e que a aluguei a umasenhora. De resto, se quiser, meteremos nisto tudo o meu procura-dor... Minha cara amiga, se fosse possível que a nossa afeição se

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passasse fora do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo detodas as suspeitas, seria delicioso... Mas não pode ser!... Alguémtem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão ococheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não sejasenão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Há semprealguém que surpreende o encontro de dois olhares; há semprealguém que adivinha donde se vem a certas horas... Os deuses anti-gamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem queos tornava invisíveis. Nós não somos deuses, felizmente...

Ela sorriu.— Quantas palavras para converter uma convertida!E tudo ficou harmonizado num grande beijo.

Afonso da Maia aprovou plenamente a compra das colecções doCraft. «É um valor», disse ele ao Vilaça, «e acabamos de encher comboa arte Santa Olávia e o Ramalhete.»

Mas o Ega indignou-se, chegou a falar em «desvario» — despei-tado por essa transacção secreta para que não fora consultado. O queo irritava sobretudo era ver, nesta aquisição inesperada de uma casade campo, outro sintoma do grave e do fundo do segredo que pressen-tia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que ele habitava oRamalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidência!... Desde asua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Celas, fora ele oconfessor secular de Carlos; mesmo em viagem, Carlos não tinhauma aventura banal de hotel, de que não mandasse ao Ega «um rela-tório». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao princípio ten-tara, frouxamente, guardar um mistério delicado, já o conhecia todo,já lera as cartas da Gouvarinho, já passara pela casa da titi...

Mas do outro segredo não sabia nada — e considerava-se ultra-jado. Via todas as manhãs Carlos partir para a Rua de S. Fran-cisco, levando flores; via-o chegar de lá, como ele dizia, «besuntadode êxtase»; via-lhe os silêncios repassados de felicidade, e esseindefinido ar, ao mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, dohomem profundamente amado... E não sabia nada.

Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a falar deplanos de Verão, Carlos aludiu aos Olivais, com entusiasmo, relem-brando algumas das preciosidades do Craft, o doce sossego da casa,a clara vista do Tejo... Aquilo realmente fora obter por umamão-cheia de libras um pedaço do Paraíso...

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Era à noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que pas-seava com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu osombros, impaciente, farto daqueles louvores eternos à casinhola doCraft.

— Essa concepção do Paraíso — exclamou ele — parece-me deum estofador da Rua Augusta! Como Natureza, couves galegas;como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já portrês barrelas... Um quarto de dormir lúgubre como uma capela desantuário... Um salão confuso como o armazém de um cara-de-pau,e onde não é possível conversar... A não ser o armário holandês, eum ou outro prato, tudo aquilo é um lixo arqueológico... Jesus! oque eu odeio bricabraque!

Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquilamente e comoreflectindo:

— Com efeito, esses cretones são medonhos... Mas eu vou remo-bilar, tornar aquilo habitável.

Ega estacou no meio do quarto, com o monóculo a faiscar sobreCarlos.

— Habitável? Vais ter hóspedes?— Vou alugar.— Vais alugar! A quem?E o silêncio de Carlos, que soprava o fumo da cigarette com os

olhos no tecto, enfureceu o Ega. Cumprimentou quase até ao chão,disse sarcasticamente:

— Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de quererarrombar uma gaveta fechada... O aluguel de um prédio é sempreum desses delicados segredos de sentimento e de honra em que nãodeve roçar nem a asa da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestial-mente rude!

Carlos continuava calado. Compreendia bem o Ega — e quasesentia um remorso daquela sua rígida reserva. Mas era como umpudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome deMaria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contara ao Ega;e essas confidências constituíam talvez mesmo o prazer mais sólidoque elas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seuamor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadei-ros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé... Todavia, aomesmo tempo, sentia uma tentação de falar dela ao Ega, e de tor-nar vivas, e como visíveis aos seus próprios olhos, dando-lhes o con-

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torno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas quelhe enchiam o coração. Além disso, Ega não saberia tudo, maistarde ou mais cedo, pela tagarelice alheia? Antes lho dissesse ele,fraternalmente. Mas hesitou ainda, acendeu outra cigarette. Justa-mente o Ega tomara o seu castiçal, e começava a acendê-lo a umaserpentina, devagar e com um ar amuado.

— Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te aí — disse Carlos.Contou-lhe tudo miudamente, difusamente, desde o primeiro

encontro, à entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá.

Supusera um romancezinho, desses que nascem e morrem entre umbeijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos falava daquelegrande amor, ele sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bemou para mal tornando-se daí por diante, e para sempre, o seu irrepa-rável destino. Imaginara uma brasileira polida por Paris, bonita efútil, que tendo o marido longe, no Brasil, e um formoso rapaz aolado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente à disposição dascoisas: e saía-lhe uma criatura cheia de carácter, cheia de paixão,capaz de sacrifícios, capaz de heroísmos. Como sempre, diante des-tas coisas patéticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a frase; equando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chocha:

— Então estás decidido a safar-te com ela?— A safar-me, não; a ir viver com ela longe daqui, decididís-

simo!Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um fenó-

meno prodigioso, e murmurou:— É de arromba!Mas que outra coisa podiam fazer? Daí a três meses talvez,

Castro Gomes chegava do Brasil. Ora nem Carlos, nem ela, aceita-riam nunca uma dessas situações atrozes e reles em que a mulheré do amante e do marido, a horas diversas... Só lhes restava umasolução digna, decente, séria — fugir.

Ega, depois de um silêncio, disse pensativamente:— Para o marido é que não é talvez divertido perder assim, de

uma vez, a mulher, a filha, e a cadelinha...Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, também

ele já pensara nisso... E não sentia remorsos — mesmo quando ospudesse haver no absoluto egoísmo da paixão... Ele não conheciaintimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o tipo,

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reconstruí-lo, pelo que lhe dissera o Dâmaso, e por algumas conver-sas com Miss Sara. Castro Gomes não era um esposo a sério: eraum dandy, um fútil, um gommeux, um homem de sport e de cocot-tes... Casara com uma mulher bela, saciara a paixão, e recomeçaraa sua vida de clube e de bastidores... Bastava olhar para ele, para asua toilette, para os seus modos — e compreendia-se logo a triviali-dade daquele carácter...

— Que tal é como homem? — perguntou Ega.— Um brasileiro trigueiro, com um ar espartilhado... Um rasta-

quoère, o verdadeiro tipozinho do Café de la Paix... É possível quesinta, quando isto vier a suceder, um certo ardor na vaidadeferida... Mas é um coração que se há-de consolar facilmente nasFolies Bergères.

Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de clube, emesmo consolável nas Folies Bergères, pode não se importar muitocom sua mulher, mas pode todavia amar muito sua filha... Depois,atravessado por uma ideia, acrescentou:

— E teu avô?Carlos encolheu os ombros.— O avô tem de se afligir um pouco para eu poder ser profun-

damente feliz; como eu teria de ser desgraçado toda a minha vidase quisesse poupar ao avô essa contrariedade... O mundo é assim,Ega... E eu, nesse ponto, não estou decidido a fazer sacrifícios.

Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no chão, repe-tindo a mesma palavra, a única que lhe sugeria todo o seu espírito,perante aquelas coisas veementes:

— É de arromba!

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CARLOS, que almoçara cedo, estava para sair no coupé, e jáde chapéu — quando Baptista veio dizer que o Sr. Ega, desejandofalar-lhe numa coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. OSr. Ega ficara a fazer a barba.

Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas sema-nas que ela chegara a Lisboa, Ega ainda a não vira, e falava delararamente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassossegado. Todas asmanhãs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber ocorreio, que só lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas de Celo-rico. À noite percorria dois, três teatros, já quase vazios naquelecomeço de Verão; e ao recolher era outra desconsolação, quando oscriados lhe afirmavam, com certeza, que não viera carta algumapara Sua Excelência. Decerto Ega não se resignava a perderRaquel, ansiava por a encontrar; e roía-o o despeito de que ela, dequalquer modo, lhe não tivesse mostrado que no seu coração per-manecia, ao menos, a saudade das antigas felicidades... Justa-mente na véspera Ega aparecera à hora do jantar, transtornado:cruzara-se com o Cohen na Rua do Ouro, e parecera-lhe que «essecanalha» lhe atirara de lado um olhar atrevido, sacudindo a ben-gala; o Ega jurava que se «esse canalha» ousasse outra vez fitá-lo,espedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina da Baixa.

Na antecâmara o relógio bateu dez horas. Carlos, impaciente,ia a subir ao quarto do Ega. Mas nesse instante o correio chegava,com a Revista dos Dois Mundos, e uma carta para Carlos. Era da

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Capítulo XIII

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Gouvarinho. Carlos acabava de a ler — quando Ega apareceu, dejaquetão, e em chinelas.

— Tenho a falar-te numa coisa grave, menino.— Lê isto primeiro — disse o outro, passando-lhe a carta da

Gouvarinho.A Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se que, já por duas

vezes, Carlos faltara ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequerescrito uma palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma brutalidade; evinha agora intimá-lo, «em nome de todos os sacrifícios que por elefizera», a que aparecesse na Rua de S. Marçal, domingo ao meio-dia,para terem uma explicação definitiva antes de ela partir para Sintra.

— Excelente ocasião de acabar! — exclamou Ega, entregando acarta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. — Não vás,nem respondas... Ela parte para Sintra, tu para Santa Olávia, nãovos vedes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coi-sas grandes, como o Império Romano, e como o Reno, por dispersão,insensivelmente...

— É o que eu vou fazer — disse Carlos, começando a calçar asluvas. — Jesus! Que mulher maçadora!

— E que desavergonhada! Chamar a essas coisas «sacrifícios»!Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se lá deextravagâncias, bebe champanhe, fuma cigarettes, sobe ao sétimocéu, delira, e depois põe dolorosamente os olhos no chão, e chama aisso «sacrifícios»... Só com um chicote!...

Carlos encolheu os ombros, com resignação, como se nas con-dessas de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse incoerência e dolo.

— E que é isso que tu me tinhas a dizer?Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa

uma cigarette, abotoou devagar o jaquetão. — Tu não tens visto o Dâmaso?— Nunca mais me apareceu — disse Carlos. — Creio que está

amuado... Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavel-mente com dois dedos...

— Devia ser antes com a bengala. O Dâmaso anda aí, por todaa parte, falando de ti e dessa senhora, tua amiga... A ti, chama-tepulha, a ela pior ainda. É a velha história; diz que te apresentou,que te meteste de dentro, e como para essa senhora é uma questãode dinheiro, e tu és o mais rico, ela lhe passou o pé... Vês daí a infa-miazinha. E isto tagarelado pelo Grémio, pela Casa Havanesa, com

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detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudoisto é atroz. Trata de lhe pôr cobro.

Carlos, muito pálido, disse simplesmente:— Há-de-se fazer justiça.Desceu indignado. Aquela torpe insinuação sobre «dinheiro»

parecia-lhe poder ser castigada só com a morte. E um instantemesmo, com a mão no fecho da portinhola do coupé, pensou em cor-rer a casa do Dâmaso, tomar um desforço brutal.

Mas eram quase onze horas, e ele tinha de ir aos Olivais. Nodia seguinte, sábado, dia belo entre todos e solene para o seu cora-ção, Maria Eduarda devia enfim visitar a quinta do Craft: e ficaracombinado, na véspera, que passariam lá as horas do calor, atétarde, sós, naquela casa solitária e sem criados, escondida entre asárvores. Ele pedira-lho assim, hesitante e a tremer: ela consentiralogo, sorrindo e naturalmente. Nessa manhã ele mandara aos Oli-vais dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flo-res. Agora ia lá, como um devoto, ver se estava bem enfeitado osacrário da sua deusa... E era através destes deliciosos cuidados,em plena ventura, que lhe aparecia outra vez, suja e empanando obrilho do seu amor, a tagarelice do Dâmaso!

Até aos Olivais, não cessou de arruinar coisas vagas e violentas quefaria para aniquilar o Dâmaso. No seu amor não haveria paz, enquantoaquele vilão o andasse comentando sordidamente pelas esquinas dasruas. Era necessário enxovalhá-lo de tal modo, com tal publicidade, queele não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face vil...Quando o coupé parou à porta da quinta, Carlos decidira dar bengala-das no Dâmaso, uma tarde, no Chiado, com aparato...

Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo.Pisara a linda rua de acácias que os pés dela pisariam na manhãseguinte: dera um longo olhar ao leito que seria o leito dela, rico,alçado sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel cor deoiro, com um esplendor sério de altar profano... Daí a poucas horas,encontrar-se-iam sós naquela casa muda e ignorada do mundo;depois, todo o Verão os seus amores viveriam escondidos nessefresco retiro de aldeia; e daí a três meses estariam longe, na Itália,à beira de um claro lago, entre as flores de Isola Bela... No meiodestas voluptuosidades magníficas, que lhe podia implorar oDâmaso, gorducho e reles, palrando em calão nos bilhares do Gré-mio! Quando chegou à Rua de S. Francisco, resolvera, se visse oDâmaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.

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Maria Eduarda fora passear a Belém com Rosa, deixando-lheum bilhete, em que lhe pedia para vir à noite faire un bout de cau-serie. Carlos desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinhode papel na carteira, como uma doce relíquia; e saía o portão, nomomento em que o Alencar desembocava defronte, da Travessa daParreirinha, todo de preto, moroso e pensativo. Ao avistar Carlos,parou de braços abertos; depois vivamente, como recordando-se,ergueu os olhos para o primeiro andar.

Não se tinham visto desde as corridas, o poeta abraçou com efu-são o seu Carlos. E falou logo de si, copiosamente. Estivera outravez em Sintra, em Colares com o seu velho Carvalhosa: e o que selembrara do rico dia passado com Carlos e com o maestro emSeteais!... Sintra, uma beleza. Ele, um pouco constipado. E apesarda companhia do Carvalhosa, tão erudito e tão profundo, apesar daexcelente música da mulher, da Julinha (que para ele era comouma irmã), tinha-se aborrecido. Questão de velhice...

— Com efeito — disse Carlos — pareces-me um pouco murcho...Falta-te o teu ar aureolado.

O poeta encolheu os ombros.— O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Bíblia que o diz?...

Não; é S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Enfim a autori-dade não faz ao caso. Num desses santos livros se afirma que estemundo é um vale de lágrimas...

— Em que a gente se ri bastante — disse Carlos alegremente.O poeta tornou a encolher os ombros. Lágrimas ou risos, que

importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na véspera eledissera isso mesmo em casa dos Cohens...

E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço deCarlos:

— E agora por falar nos Cohens, diz-me uma coisa com fran-queza, meu rapaz. Eu sei que tu és íntimo do Ega, e, que diabo,ninguém lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tuaprovas que ele, apenas soube da chegada dos Cohens, se viessemeter em Lisboa? Depois do que houve!...

Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da che-gada, horas depois, soubera pela Gazeta Ilustrada a vinda dosCohens... E de resto, se não pudessem habitar, conjuntas na mesmacidade, as pessoas entre as quais tivesse havido atritos desagradá-veis, as sociedades humanas tinham de se desfazer...

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Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com acabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:

— Outra coisa em que te quero falar. Houve entre ti e oDâmaso alguma pega? Eu pergunto-te isto porque noutro dia, láem casa dos Cohens, ele veio com uns ditos, umas insinuações... Eudeclarei-lhe logo: «Dâmaso: Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia,é como se fosse meu irmão.» E o Dâmaso calou-se... calou-se, por-que me conhece, e sabe que eu nestas coisas de lealdade e de cora-ção sou uma fera!

Carlos disse simplesmente:— Não, não há nada, não sei nada... Nem sequer tenho visto o

Dâmaso.— Pois é verdade — continuou Alencar tomando o braço de Car-

los — lembrei-me muito de ti em Sintra. Até fiz lá uma coisita queme não saiu má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma pai-sagem, um quadrozinho de Sintra ao pôr do Sol. Quis provar aí aesses da «Ideia Nova», que, sendo necessário, também por cá sesabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera aí,eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se: Na Estrada dos Capu-chos...

Tinham parado à esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve,antes de recitar — quando justamente lhe apareceu o Ega, vindo debaixo, vestido de campo, com uma bela rosa branca no jaquetão deflanela azul.

Alencar e ele não se encontravam desde a fatal soirée dosCohens. E ao passo que o Ega conservava um ressentimento ferozcontra o poeta, vendo nele o inventor dessa pérfida lenda da «cartaobscena» — Alencar odiava-o pela certeza secreta de que ele fora oamante amado da sua divina Raquel. Ambos se fizeram pálidos; oaperto de mão que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados,todos três, enquanto Ega, nervoso, levava uma eternidade a acen-der o charuto no lume de Carlos. Mas foi ele que falou, por entreuma fumaça, afectando uma superioridade amável:

— Acho-te com boa cor, Alencar!O poeta foi amável também, um pouco de alto, passando os

dedos no bigode:— Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas

Memórias, homem?— Estou à espera que o país aprenda a ler.

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— Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho queapresse isso, ele ocupa-se da Instrução pública... Olha, ali o tens tu,grave e oco como uma coluna do Diário do Governo...

O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, poronde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com oCohen; e ao lado deles, de chapéu branco, de colete branco, oDâmaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo,como um conquistador nos seus domínios. Já aquele arzinho gordode tranquilo triunfo irritou Carlos. Mas quando o Dâmaso paroudefronte, no outro passeio, todo de costas para ele, ostentando riralto com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.

Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou deleve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Dâmaso friamante:

— Ouve lá. Se continuas a falar de mim e de pessoas dasminhas relações do modo como tens falado, e que não me convém,arranco-te as orelhas.

O conde acudiu, metendo-se entre eles:— Maia, por quem é! Aqui no Chiado...— Não é nada, Gouvarinho — disse Carlos detendo-o, muito

sério e muito sereno. — É apenas um aviso a este imbecil.— Eu não quero questões, eu não quero questões!... — balbu-

ciou o Dâmaso, lívido, enfiando para dentro de uma tabacaria.E Carlos voltou, com sossego, para junto dos seus amigos,

depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.Vinha apenas um pouco pálido: mais perturbado estava o Ega,

que julgara ver de novo, num olhar do Cohen, uma provocação into-lerável. Só o Alencar não reparara em nada: continuava a discursarsobre coisas literárias, explicando ao Ega as concessões que sepodiam fazer ao naturalismo...

— Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que, quando se tratade paisagem, é necessário copiar a realidade... Não se pode descre-ver um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma... E láisso faço eu... Aí está esse soneto de Sintra que eu te dediquei, Car-los. É realista, está claro que é realista... Pudera, se é paisagem!Ora, eu vo-lo digo... Ia justamente dizê-lo, quando tu apareceste,Ega... Mas vejam lá vocês se isto os maça...

Qual maçava! E até, para o escutarem melhor, penetraram naRua de S. Francisco, mais silenciosa. Aí, dando um passo lento,depois outro, o poeta murmurou a sua écloga. Era em Sintra, ao

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pôr do Sol: uma inglesa, de cabelos soltos, toda de branco, descenum burrinho por uma vereda que domina um vale; as aves can-tam de leve, há borboletas em torno das madressilvas; então ainglesa pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céu, os arvoredos, apaz das casas — e aí, no último terceto, vinha «a nota realista» deque se ufanava o Alencar:

Ela olha a flor dormente, a nuvem casta, Enquanto o fumo dos casais se eleva E ao lado, o burro, pensativo, pasta.

— Aí têm vocês o traço, a nota naturalista... E ao lado, o burro,pensativo, pasta... Eis aí a realidade, está-se a ver o burro pensa-tivo... Não há nada mais pensativo que um burro... E são estaspequeninas coisas da Natureza que é necessário observar... Jávêem vocês que se pode fazer realismo, e do bom, sem vir logo comobscenidades... Vocês que lhes parece o sonetito?

Ambos o elogiaram profundamente — Carlos arrependido denão ter completado a humilhação do Dâmaso dando-lhe bengala-das; Ega pensando que, decerto, numa dessas tardes, no Chiado,teria de esbofetear o Cohen. Como eles recolhiam ao Ramalhete,Alencar, já desanuviado, foi acompanhá-los pelo Aterro. E falousempre, contando o plano de um romance histórico, em que ele que-ria pintar a grande figura de Afonso de Albuquerque, mas por umlado mais humano, mais íntimo: Afonso de Albuquerque namorado:Afonso de Albuquerque, só, de noite, na popa do seu galeão, diantede Ormuz incendiada, beijando uma flor seca, entre soluços. Alen-car achava isto sublime.

Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir à Rua de S. Francisco— quando o Baptista veio dizer que o Sr. Teles da Gama lhe dese-java falar com urgência. Não o querendo receber, ali, em mangas decamisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veiodaí a um instante encontrar Teles da Gama admirando as belasfaianças holandesas.

— Você, Maia, tem isto lindíssimo — exclamou ele logo. — Eupelo-me por porcelanas... Hei-de voltar um dia destes, com maisvagar, ver tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venhocom uma missão... Você não adivinha?

Carlos não adivinhava.

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E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em quetransparecia um sorriso:

— Eu venho aqui perguntar-lhe, da parte do Dâmaso, se vocêhoje, naquilo que lhe disse, tinha intenção de o ofender. É só isto...A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você tinha inten-ção de o ofender.

Carlos olhou-o, muito sério.— O quê!? Se tinha intenção de ofender o Dâmaso, quando o

ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha sóintenção de lhe arrancar as orelhas!

Teles da Gama saudou, rasgadamente:— Foi isso mesmo o que eu respondi ao Dâmaso: que você não

tinha senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento, aminha missão está finda... Como você tem isto bonito!... O que éaquele prato grande, majólica?

— Não, um velho Nevers. Veja você ao pé... É Tétis conduzindoas armas de Aquiles... É esplêndido; e é muito raro... Veja você esseDelft, com as duas túlipas amarelas... — é um encanto!

Teles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades,tomando o chapéu de sobre o sofá.

— Lindíssimo tudo isto!... Então só intenção de lhe arrancar asorelhas? nenhuma de o ofender?...

— Nenhuma de o ofender, toda de lhe arrancar as orelhas...Fume você um charuto.

— Não, obrigado...— Cálice de conhaque?— Não! abstenção total de bebidas e aguardentes...— Adeus, meu bom Teles...

Ao outro dia, por uma radiante manhã de Julho, Carlos saltava docoupé, com um molho de chaves, diante do portão da quinta do Craft.Maria Eduarda devia chegar às dez horas, só, na sua carruagem daCompanhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fora a Vila Franca;não havia ainda criados na casa; as janelas estavam fechadas. E pesavaali, envolvendo a estrada e a vivenda, um desses altos e graves silênciosde aldeia, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.

Logo depois do portão, penetrava-se numa fresca rua de acá-cias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apareciao quiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que fora o

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capricho de Craft, e que ele mobilara à japonesa. E ao fundo era acasa, caiada de novo, com janelas de peitoril, persianas verdes, e aportinha ao centro sobre três degraus, flanqueados por vasos delouça azul cheios de cravos.

Só o meter a chave devagar e com uma inútil cautela na fecha-dura daquela morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu asjanelas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doçurarara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparadaespecialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coração.Correu logo à sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para olunch, se conservavam ainda viçosas as flores que lá deixara na vés-pera. Depois voltou ao coupé, a tirar o caixote de gelo que trouxerade Lisboa, embrulhado em flanela, entre serradura. Na estrada,silenciosa por ora, ia só passando uma saloia montada na sua égua.

Mas apenas acomodara o gelo — sentiu fora o ruído lento dacarruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abriasobre o corredor; e ficou ali, espreitando da porta, mas escondido,por causa do cocheiro da Companhia. Daí a um instante viu-aenfim chegar, pela rua de acácias, alta e bela, vestida de preto, ecom um meio véu espesso como uma máscara. Os seus pezinhossubiram os três degraus de pedra. Ele sentiu a sua voz inquietaperguntar de leve:

— Êtes-vous là?Apareceu — e ficaram um instante, à porta do gabinete, aper-

tando sofregamente as mãos, sem falar, comovidos, deslumbrados.— Que linda manhã! — disse ela por fim, rindo e toda vermelha.— Linda manhã, linda! — repetia Carlos, contemplando-a,

enlevado.Maria Eduarda resvalara sobre uma cadeira, junto da porta,

num cansaço delicioso, deixando calmar o alvoroço do seu coração.— É muito confortável, é encantador tudo isto — dizia ela

olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divã turcocoberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia delivros. — Vou ficar aqui adoravelmente...

— Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo — murmurou Car-los, esquecido a olhar para ela. — Ainda nem lhe beijei a mão...

Maria Eduarda começou a tirar o véu, depois as luvas, falando daestrada. Achara-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenasse acomodasse naquele fresco ninho, nunca mais voltava a Lisboa!

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Atirou o chapéu para cima do divã — ergueu-se, toda alegre eluminosa.

— Vamos ver a casa, estou morta por ver essas maravilhas doseu amigo Craft!... É Craft que se chama? Craft quer dizer indústria!

— Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! — tornou Carlos,sorrindo e suplicante.

Ela estendeu-lhe os lábios, e ficou presa nos seus braços.E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabelo, dizia-lhe

quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estesvelhos muros de quinta, que a separavam do resto do mundo...

Ela deixava-se beijar, séria e grave:— E é verdade isso? É realmente verdade?...Se era verdade! Carlos teve um suspiro quase triste:— Que lhe hei-de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa

antiga que já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do Sol,mas que não duvide de mim...

Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.— Vamos ver a casa — disse ela.Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia:

mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados depapéis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.

— Os seus aposentos — disse Carlos — hão-de ser em baixo,está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e Miss Sara ficam aquiesplendidamente. Não lhe parece?

E ela percorria os quartos, devagar, examinando a acomodaçãodos armários, palpando a elasticidade dos colchões, atenta, cuida-dosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmoexigia uma alteração. E era realmente como se aquele homem quea seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.

— O quarto com as duas janelas, ao fundo do corredor, seria omelhor para Rosa. Mas a pequena não pode dormir naquele enormeleito de pau-preto...

— Muda-se!— Sim, pode mudar-se... E falta uma sala larga para ela brin-

car, às horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os doisquartos pequenos...

— Deita-se abaixo!Ele esfregava as mãos, encantado, pronto a refundir toda a

casa; e ela não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.

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Desceram à sala de jantar. E aí, diante da famosa chaminé decarvalho lavrado, flanqueada, à maneira de cariátides, pelas duasnegras figuras de núbios, com os olhos rutilantes de cristal, MariaEduarda começou a achar o gosto do Craft excêntrico, quase exó-tico... Também Carlos não lhe dizia que Craft tivesse o gosto cor-recto de um ateniense. Era um saxónio batido de um raio de solmeridional: mas havia muito talento na sua excentricidade...

— Oh, a vista é que é deliciosa! — exclamou ela, chegando-se àjanela.

Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outrode baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete derelva, mal aparada, um pouco amarelada já pelo calor de Julho; eentre duas grandes árvores que lhe faziam sombra, havia ali, paraos vagares da sesta, um largo banco de cortiça. Um renque dearbustos cerrados parecia fechar a quinta, daquele lado, como umasebe. Depois a colina descia, com outras quintarolas, casas que senão viam, e uma chaminé de fábrica; e lá no fundo o rio rebrilhava,vidrado de azul, mudo e cheio de Sol, até às montanhas dealém-Tejo, azuladas também, na faiscação clara do céu de Verão.

— Isto é encantador! — repetia ela.— É um paraíso! Pois não lhe dizia eu? É necessário pôr um

nome a esta casa... Como se há-de chamar? Vila Marie? Não. Châ-teau Rose... Também não, credo! Parece o nome de um vinho. Omelhor é baptizá-la definitivamente com o nome que nós lhe dáva-mos. Nós chamávamos-lhe a Toca.

Maria Eduarda achou originalíssimo o nome de Toca. Devia-seaté pintar em letras vermelhas sobre o portão.

— Justamente, e com uma divisa de bicho — disse Carlosrindo. — Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seuburaco: Não me mexam!

Mas ela parara, com um lindo riso de surpresa, diante da mesaposta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os cris-tais brilhando entre as flores.

— São as bodas de Canaã!Os olhos de Carlos resplandeceram.— São as nossas!Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a esco-

lher um morango, depois a escolher uma rosa.

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— Quer uma gota de champanhe? — exclamou Carlos. — Comum pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada,nem a bênção de Deus... Uma gotinha de champanhe, vá!

Ela aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus lábiosse encontraram, apaixonadamente.

Carlos acendeu uma cigarette, continuaram a percorrer a casa.A cozinha agradou-lhe muito, arranjada à inglesa, toda em azule-jos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panó-plia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garro-chas, mantos de seda vermelha, conservando nas suas pregas umagraça ligeira, e ao lado o cartaz amarelo de la corrida, com o nomede Lagartijo. Isto encantou-a, como um quente lampejo de festa ede sol peninsular...

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lho foimostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Erauma alcova recebendo a claridade de uma sala forrada de tapeça-rias, onde desmaiavam, na trama de lã, os amores de Vénus eMarte: da porta de comunicação, arredondada em arco de capela,pendia uma pesada lâmpada da Renascença, de ferro forjado: e,àquela hora, batida por uma larga faixa de Sol, a alcova resplande-cia como o interior de um tabernáculo profanado, convertido emretiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tecto, deum brocado amarelo, cor de botão-de-oiro; um tapete de veludo, domesmo tom rico, fazia um pavimento de oiro vivo sobre que pode-riam correr nus os pés ardentes de uma deusa amorosa — e o leitode dossel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha decetim amarelo, bordada a flores de oiro, envolto em solenes corti-nas também amarelas de velho brocatel, enchia a alcova, esplên-dido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosasde uma paixão trágica do tempo de Lucrécia ou de Romeu. E era alique o bom Craft, com um lenço de seda da Índia amarrado nacabeça, ressonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.

Mas Maria Eduarda não gostou destes amarelos excessivos.Depois impressionou-se, ao reparar num painel antigo, defumado,ressaltando em negro do fundo de todo aquele oiro — onde apenasse distinguia uma cabeça degolada, lívida, gelada no seu sangue,dentro de um prato de cobre. E para maior excentricidade, a umcanto, de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme corujaempalhada fixava no leito de amor, com um ar de meditação sinis-

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tra, os seus dois olhos redondos e agoirentos... Maria Eduardaachava impossível ter ali sonhos suaves.

Carlos agarrou logo na coluna e no mocho, atirou-os para umcanto do corredor; e propôs-lhe mudar aqueles brocados, forrar aalcova de um cetim cor-de-rosa e risonho.

— Não, venho-me a acostumar a todos esses oiros... Somenteaquele quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!

— Reparando bem — disse Carlos — creio que é o nosso velhoamigo S. João Baptista.

Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salãonobre, onde Craft concentrara as suas preciosidades. Maria Eduarda,porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.

— É para ver de pé, e de passagem... Não se pode ficar aquisentado, a conversar.

— Mas esta é a matéria-prima! — exclamou Carlos. — Comisto, depois, faz-se uma sala adorável... Para que serve o nossogénio decorativo?... Olhe o armário, veja que centro! Que beleza!

Enchendo quase a parede do fundo, o famoso armário, o «móveldivino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseática,luxuoso e sombrio, tinha uma majestade arquitectural: na base qua-tro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mos-trando cada um em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as ten-das de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatrocantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus,imagens rígidas, envolvidas nessas roupagens violentas que umvento de profecia parece agitar: depois, na cornija, erguia-se um tro-féu agrícola com molhos de espigas, foices, cachos de uvas e rabiçasde arados; e, à sombra destas coisas de labor e fartura, dois faunos,recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos, toca-vam, num desafio bucólico, a frauta de quatro tubos.

— Então, hem? — dizia Carlos. — Que móvel! É todo um poemada Renascença, faunos e apóstolos, guerras e geórgicas... Que sepode meter dentro deste armário? Eu, se tivesse cartas suas, eraaqui que eu as depositava, como num altar-mor.

Ela não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essascoisas do passado, de uma beleza fria, e exalando a indefinida tris-teza de um luxo morto: finos móveis da Renascença italiana, exi-bindo os seus palácios de mármore, com embutidos de cornalina eágata, que punham um brilho suave, de jóia, sobre a negrura dos

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ébanos ou o cetim das madeiras cor-de-rosa; cofres nupciais, longoscomo baús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Prín-cipes, pintados a púrpura e oiro, com graças de miniatura; contado-res espanhóis empertigados, revestidos de ferro brunido e develudo vermelho, e com interiores misteriosos, em forma de capela,cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além, sobre apintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha decetim, toda recamada de flores e de aves de oiro; ou sobre umbocado de tapete do Oriente, de tons severos, com versículos doAlcorão, desdobrava-se a pastoral gentil de um minuete em Citerasobre a seda de um leque aberto...

Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, numa pol-trona Luís XV, ampla e nobre, feita para a majestade das anqui-nhas, recoberta de tapeçarias de Beauvais, donde parecia exalar-seainda um vago aroma de empoado.

Carlos triunfava, vendo a admiração de Maria. Então, aindaconsiderava uma extravagância aquela compra, feita num rasgo deentusiasmo?

— Não, há aqui coisas adoráveis... Nem eu sei se me atreveria aviver uma vida pacata de aldeia, no meio de todas estas raridades...

— Não diga isso — exclamava Carlos rindo — que eu pego fogoa tudo!

Mas o que lhe agradou mais foram as belas faianças, toda umaarte imortal e frágil espalhada por sobre o mármore das consoles.Uma sobretudo atraiu-a, uma esplêndida taça persa, de desenhoraro, com um renque de negros ciprestes, cada um abrigando umaflor de cor viva: e aquilo fazia lembrar breves sorrisos, reapare-cendo entre longas tristezas. Depois eram as aparatosas majólicas,de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes persona-gens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; oslindos Nevers, ingénuos e sérios; os Marselhas, onde se abre volup-tuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa ver-melha; os Derby, com as suas rendas de oiro sobre o azul-ferrete decéu tropical; os Wedgewood, cor de leite e cor-de-rosa, com transpa-rências fugitivas de concha na água...

— Só um instante mais — exclamou Carlos vendo-a outra vezsentar-se — é necessário saudar o génio tutelar da casa!

Era ao centro, sobre uma larga peanha, um ídolo japonês debronze, um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira, faceto e

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banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão detodo um universo — e as duas perninhas bambas, moles e flácidascomo as peles mortas de um feto. E este monstro triunfava, engan-chado sobre um animal fabuloso, de pés humanos, que dobravapara a terra o pescoço submisso, mostrando no focinho e no olhooblíquo todo o surdo ressentimento da sua humilhação...

— E pensarmos — dizia Carlos — que gerações inteiras vieramajoelhar-se diante deste ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o umbigo, ofere-cer-lhe riquezas, morrer por ele...

— O amor que se tem por um monstro — disse Maria — é maismeritório, não é verdade?

— Por isso não acha talvez meritório o amor que se tem por si...Sentaram-se ao pé da janela, num divã baixo e largo, cheio de

almofadas, cercado por um biombo de seda branca, que fazia entreaquele luxo do passado um fofo recanto de conforto moderno: e comoela se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janela. Junto dopeitoril crescia também um grande pé de margaridas; adiante, numvelho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flor deum cacto; e dos ramos de uma nogueira caía uma fina frescura.

Maria Eduarda veio encostar-se à janela, Carlos seguiu-a; eficaram ali juntos, calados, profundamente felizes, penetrados peladoçura daquela solidão. Um pássaro cantou de leve no ramo daárvore; depois calou-se. Ela quis saber o nome de uma povoaçãoque branquejava ao longe, ao Sol, na colina azulada. Carlos não selembrava. Depois, brincando, colheu uma margarida, para a inter-rogar: Elle m’aime, un peu, beaucoup... Ela arrancou-lha das mãos.

— Para que precisa perguntar às flores? — Porque ainda não mo disse claramente, absolutamente, como

eu quero que mo diga...Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com

os olhos mergulhados nos dela, disse-lhe baixinho, e implorando:— Ainda não vimos a saleta de banho...Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão,

depois através da sala de tapeçarias, onde Marte e Vénus se ama-vam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimentode azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramânia.Ele, tendo-a sempre abraçada, pousou-lhe no pescoço um beijolongo e lento. Ela abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se,pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cor de oiro:

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Carlos, ao passar, desprendeu as cortinas do arco de capela, feitasde uma seda leve que coava para dentro uma claridade loira: e uminstante ficaram imóveis, sós enfim, desatado o abraço, sem setocarem, como suspensos e sufocados pela abundância da sua felici-dade.

— Aquela horrível cabeça! — murmurou ela.Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E

então todo o rumor se extinguiu, a solitária casa ficou adormecidaentre as árvores, numa demorada sesta, sob a calma de Julho...

Os anos de Afonso da Maia foram justamente no dia seguinte,domingo. Quase todos os amigos da casa tinham jantado no Rama-lhete; e tomara-se o café no escritório de Afonso, onde as janelas seconservavam abertas. A noite estava tépida, estrelada e serenís-sima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraço.Ao canto de um sofá Cruges escutava religiosamente Steinbroken,que lhe contava, com gravidade, os progressos da música na Fin-lândia. E em redor de Afonso, estendido na sua velha poltrona, decachimbo na mão, falava-se do campo.

Ao jantar, Afonso anunciara a intenção de ir visitar, para omeado do mês, as velhas árvores de Santa Olávia; e combinara-selogo uma grande romaria de amizade às margens do Douro. Craft eSequeira acompanhavam Afonso. O marquês prometera uma visitapara Agosto «na companhia melodiosa», dizia ele, do amigo Stein-broken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humi-dade da aldeia. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir também,com Carlos — quando Carlos acabasse enfim de reunir esses mate-riais do seu livro, que o retinham em Lisboa «à banca do labor...».Mas o Ega resistia. O campo, dizia ele, era bom para os selvagens.O homem, à maneira que se civiliza, afasta-se da Natureza; e arealização do progresso, o Paraíso na Terra, que pressagiam osIdealistas, concebia-o ele como uma vasta cidade ocupando total-mente o globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui ealém um bosquezinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher osramalhetes para perfumar o altar da Justiça...

— E o milho? A bela fruta? A hortaliçazinha? — perguntavaVilaça, rindo com malícia.

Imaginava então o Vilaça, replicava o outro, que daqui a sécu-los ainda se comeriam hortaliças? O hábito dos vegetais era um

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resto de rude animalidade do homem. Com os tempos, o ser civili-zado e completo vinha a alimentar-se unicamente de produtos arti-ficiais, em frasquinhos e em pílulas, feitos nos laboratórios doEstado...

— O campo — disse então D. Diogo, passando gravemente osdedos pelos bigodes — tem certa vantagem para a sociedade, parase fazer um bonito piquenique, para uma burricada, para uma par-tida de croquet... Sem campo não há sociedade.

— Sim — rosnou Ega — como uma sala em que também háárvores ainda se admite...

Enterrado numa poltrona, fumando languidamente, Carlos sor-ria em silêncio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo espar-samente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. Eentão o marquês, que já duas vezes, dirigindo-se a ele, encontrara amesma abstracção radiosa, impacientou-se:

— Homem, fale, diga alguma coisa!... Você está hoje com um arextraordinário, um arzinho de beato que se regalou de papar o San-tíssimo!

Todos em redor, com simpatia, se afirmaram em Carlos: Vilaçaachava-lhe agora melhor cara, cor de alegria: D. Diogo, com um arentendido, sentindo mulher, invejou-lhe os anos, invejou-lhe ovigor. E Afonso, reenchendo o cachimbo, olhava o neto, enternecido.

Carlos ergueu-se imediatamente, fugindo àquele exame afec-tuoso.

— Com efeito — disse ele, espreguiçando-se de leve — tenhoestado hoje lânguido e mono... É o começo do Verão... Mas é necessá-rio sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar, ó marquês?

— Vá lá, homem. Se isso o ressuscita...Foram. Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquês parando,

e como recordando-se, perguntou sem rebuço ao Ega notícias dosCohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o mar-quês, uma flor de lealdade, não havia segredos: Ega contou-lhe que oromance findara, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava pru-dentemente os olhos...

— Eu perguntei isto — disse o marquês — porque já vi a Cohenduas vezes...

— Onde? — foi a exclamação sôfrega do Ega.— No Price, e sempre com o Dâmaso. A última vez foi já esta

semana. E lá estava Dâmaso, muito chegadinho, palrando muito...

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Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre de olhonela... E ela de lá, com aquele ar de lambisgóia, de luneta nele... Nãohavia que duvidar, era um namoro... Aquele Cohen é um predestinado.

Ega fez-se lívido, torceu nervosamente o bigode, terminou pordizer:

— O Dâmaso é muito íntimo deles... Mas talvez se atire, nãoduvido... São dignos um do outro.

No bilhar, enquanto os dois carambolavam preguiçosamente,ele não cessou de passear, numa agitação, trincando o charuto apa-gado. De repente estacou em frente do marquês, com os olhos cha-mejantes:

— Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpefilha de Israel?

— Terça-feira, creio eu.O Ega recomeçou a passear, sombrio.Neste instante Baptista, aparecendo à porta do bilhar, chamou

Carlos em silêncio, com um leve olhar. Carlos veio, surpreendido.— É um cocheiro de praça — murmurou Baptista. — Diz que

está ali uma senhora dentro de uma carruagem que lhe quer falar.— Que senhora?Baptista encolheu os ombros. Carlos, de taco na mão, olhava para

ele aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria sucedido,santo Deus, para ela vir numa tipóia, às nove da noite, ao Ramalhete!

Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéu baixo; eassim mesmo de casaca, sem paletó, desceu numa grande ansie-dade. No peristilo topou com o Eusebiozinho que chegava e sacudiacuidadosamente com o lenço a poeira dos botins. Nem falou aoEusebiozinho. Correu ao coupé, parado à porta particular dos seusquartos, mudo, fechado, misterioso, aterrador...

Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vultonegro, abafado numa mantilha de renda, debruçou-se, perturbado,balbuciou:

— É só um instante! Quero-lhe falar!Que alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos

foi brutal.— Que diabo de tolice é esta? Que quer? Ia bater com a portinhola; ela empurrou-a para fora, desespe-

rada: e não se conteve, desabafou logo ali diante do cocheiro, quemexia tranquilamente na fivela de um tirante.

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— De quem é a culpa? Para que me trata deste modo?... É sóum instante, entre, tenho de lhe falar!...

Carlos saltou para dentro, furioso:— Dá uma volta pelo Aterro — gritou ao cocheiro. — Devagar!O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento,

na escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram asmesmas palavras, bruscas e coléricas, através do barulho dasvidraças.

— Que imprudência! Que tolice!...— E de quem é a culpa? De quem é a culpa?Depois, na Rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosa-

mente no macadame. Carlos então, arrependido da sua dureza, vol-tou-se para ela, e com brandura, quase no tom carinhoso deoutrora, repreendeu-a por aquela imprudência... Pois não eramelhor ter-lhe escrito?

— Para quê? — exclamou ela. — Para não me responder? Paranão fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um impor-tuno a pedir-lhe uma esmola!...

Sufocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar docoupé, sem ruído, ao longo do rio, Carlos sentiu a respiração dela,tumultuosa e cheia de angústia. E não dizia nada, imóvel, numinfinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidroembaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreaçõesvagas de faluas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixasdela desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas de amar-gura.

— Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem... Escrevo-lhe,não me responde... Quero ter uma explicação franca consigo, nãoaparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem umaceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nemdevia ter vindo... Mas não pude, não pude!... Quis saber o que lhetinha feito. O que é isto? Que lhe fiz eu?

Carlos percebia os olhos dela, faiscantes sob a névoa de lágri-mas retidas, suplicando e procurando os seus. E sem coragemsequer de a fitar, murmurou, torturado:

— Realmente, minha amiga... As coisas falam bem por si, nãosão necessárias explicações.

— São! É necessário saber se isto é uma coisa passageira, umamuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento!

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Ele agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave,afectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo dela findara.Terminou por afirmar que não era um amuo. Os seus sentimentostinham sido sempre elevados, não cairia agora na pieguice de terum amuo...

— Então é um rompimento?...— Não, também não... Um rompimento absoluto, para sempre,

não...— Então é um amuo? Porquê?Carlos não respondeu. Ela, perdida, sacudiu-o pelo braço.— Mas fale! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde,

tenha a coragem de dizer o que é!Sim, ela tinha razão... Era uma cobardia, era uma indignidade,

continuar ali, gochemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coi-sas mesquinhas. Quis ser claro, quis ser forte.

— Pois bem, aí está. Eu entendi que as nossas relações deviamser alteradas...

E outra vez hesitou, a verdade amoleceu-lhe nos lábios, sen-tindo aquela mulher ao seu lado a tremer de agonia.

— Alteradas, quero dizer... podíamos transformar um caprichoapaixonado, que não podia durar, numa amizade agradável e maisnobre...

E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe fáceis, hábeis, per-suasivas, através do rumor lento das rodas. Onde os podia levaraquela ligação? Ao resultado costumado. A que um dia se desco-brisse tudo, e o seu belo romance acabasse no escândalo e na vergo-nha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, ele viessea descair na banalidade de uma união quase conjugal, sem inte-resse e sem requinte. De resto, era certo que, continuando a encon-trarem-se, aqui, em Sintra, noutros sítios, a sociedadezinha curiosae mexeriqueira viria a perceber a sua afeição. E havia por acasonada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza de alma,do que uns amores que todo o público conhece, até os cocheiros depraça? Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava anecessidade de uma separação. Ela mesmo mais tarde lhe seriagrata... Decerto, esta primeira interrupção de um hábito doce eradesagradável, e ele estava bem longe de se sentir feliz. Fora porisso que não tivera a coragem de lhe escrever... Enfim, deviam serfortes, e não se verem, pelo menos, durante alguns meses. Depois,

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pouco a pouco, o que era capricho frágil, cheio de inquietação, tor-nar-se-ia uma boa amizade, bem segura e bem duradoira.

Calou-se; e então, no silêncio, sentiu que ela, caída para o cantodo coupé, como uma coisa miserável e meio morta, encolhida no seuvéu, estava chorando baixo.

Foi um momento intolerável. Ela chorava sem violência, man-samente, com um choro lento, que parecia não dever findar. E Car-los só achava esta palavra banal e desenxabida:

— Que tolice, que tolice!Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fábrica

do gás. Um americano passou alumiado, com senhoras vestidas declaro. Naquela noite, de Verão e de estrelas, havia gente vagueandotranquilamente entre as árvores. Ela continuava a chorar.

Aquele pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou acomovê-lo; e ao mesmo tempo quase lhe queria mal por ela nãoreter essas lágrimas infindáveis, que laceravam o seu coração... Eele que estava tão tranquilo, no Ramalhete, na sua poltrona, sor-rindo a tudo, numa deliciosa lassidão!

Tomou-lhe a mão, querendo calmá-la, apiedado, e já impa-ciente.

— Realmente não tem razão. É absurdo... Tudo isto é para seubem...

Ela teve enfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-sedoloridamente por entre os seus longos soluços... E de repente,num arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao pescoço, pren-dendo-se a ele com desespero, esmagando-o contra o seu seio.

— Oh! meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubes-ses! És a única felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eumato-me!... Que te fiz eu? Ninguém sabe do nosso amor... E quesoubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!...

Molhava-lhe a face com o resto das suas lágrimas; e ele abando-nava-se, sentindo aquele corpo sem colete, quente e como nu,subir-lhe para os joelhos, colar-se ao seu, num furor de o repossuir,com beijos sôfregos, furiosos, que o sufocavam... Subitamente atipóia parou. E um momento ficaram assim — Carlos imóvel, elacaída sobre ele e arquejando.

Mas a tipóia não continuava. Então Carlos desprendeu umbraço, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. Ohomem, obedecendo à ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar,

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subira a rampa, retrocedera à porta da casa. Durante um instanteCarlos teve a tentação de descer, acabar ali bruscamente aquelelongo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado,destestando-a, berrou ao cocheiro:

— Outra vez ao Aterro, anda sempre!...A tipóia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a

rolar; de novo as pedras da calçada fizeram tilintar os vidros; denovo, mais suavemente, desceram a Rampa de Santos.

Ela recomeçara os seus beijos. Mas tinham perdido a chamaque um instante os fizera quase irresistíveis. Agora Carlos sentiasó uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, aorepouso de que ela o arrancara para o torturar com estas recrimi-nações, estes ardores entre lágrimas... E de repente, enquanto acondessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço — eleviu surgir na alma, viva e resplandecente, a imagem de MariaEduarda, tranquila àquela hora na sua sala de repes vermelho,fazendo serão, confiando nele, pensando nele, relembrando as feli-cidades da véspera, quando a Toca, cheia dos seus amores, dormia,branca entre as árvores... Teve então horror à Gouvarinho; brutal-mente, sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.

— Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acaba-das, não temos mais nada que nos dizer!

Ela ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve umriso nervoso, repeliu-o também, freneticamente, pisando-lhe o braço.

— Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brasileira!Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, eprecisa quem lhe pague as modistas!...

Ele voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; ena tipóia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhosde ambos, sem se verem, dardejavam o ódio que os enchia... Carlosbateu raivosamente no vidro. A tipóia não parou. E a Gouvarinho,do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer avidraça.

— É melhor que saia! — dizia ela sufocada. — Tenho horror deme achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!

O calhambeque parou. Carlos pulou para fora, fechou de estaloa portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéu, virou cos-tas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, trémulo ainda,cheio de ideias de rancor, sob a paz da noite estrelada.

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FOI num sábado que Afonso da Maia partiu para Santa Olávia.Cedo nesse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boaestreia, instalara-se nos Olivais. E Carlos, voltando de Santa Apoló-nia, onde fora acompanhar o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:

— Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de mármore ede lixo...

— Antes isso — respondeu o Ega — que andar de sapatos bran-cos, a cismar, por entre a poeirada de Sintra!

Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete aoanoitecer — Baptista anunciou que o Sr. Ega tinha partido nessemomento para Sintra, levando apenas livros e umas escovasembrulhadas num jornal... O Sr. Ega tinha deixado uma carta. Etinha dito: «Baptista, vou pastar.»

A carta, a lápis, numa larga folha de almaço, dizia:

Assaltou-me de repente, amigo, juntamente com um horror àcaliça de Lisboa, uma saudade infinita da Natureza e do verde. Aporção de animalidade que ainda resta no meu ser civilizado e reci-vilizado precisa urgentemente de espolinhar-se na relva, beber nofio dos regatos, e dormir balançada num ramo de castanheiro. Osolícito Baptista que me remeta amanhã, pelo ónibus, a mala comque eu não quis sobrecarregar a tipóia do Mulato. Eu demoro-meapenas três ou quatro dias. O tempo de cavaquear um bocado com oAbsoluto, no alto dos Capuchos, e ver o que estão fazendo as miosó-tis junto à meiga Fonte dos Amores...»

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Capítulo XIV

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— Pedante! — rosnou Carlos, indignado com o abandonoingrato em que o deixava o Ega.

E atirando a carta:— Baptista! O Sr. Ega diz aí que lhe mandem uma caixa de

charutos, dos Imperiales. Manda-lhe antes dos Flor de Cuba. OsImperiales são um veneno. Esse animal nem fumar sabe!

Depois do jantar Carlos percorreu o Figaro, folheou um volumede Byron, bateu carambolas solitárias no bilhar, assobiou malague-nhas no terraço — e terminou por sair, sem destino, para os ladosdo Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todoaberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-sena Rua de S. Francisco. As janelas de Maria Eduarda estavamtambém abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O meninoVitorino não estava em casa...

Amaldiçoando o Ega, entrou no Grémio. Encontrou o Taveira,de paletó ao ombro, lendo os telegramas. Não havia nada novo poressa velha Europa; apenas mais uns Niilistas enforcados; e eleTaveira ia ao Price...

— Vem tu também daí, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonitaque se mete na água com cobras e crocodilos... Eu pelo-me por estasmulheres de bichos!... Que esta é difícil, traz um chulo... Mas eu jálhe escrevi: e ela faz-me um bocado de olho de dentro da tina.

Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo noDâmaso. Não tornara a ver essa flor? Pois essa flor andava apre-goando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhedera por um amigo explicações humildes, cobardes... Terrível,aquele Dâmaso! Tinha figura, interior e natureza de péla! Comquanto mais força se atirava ao chão, mais ele ressaltava para o ar,triunfante...

— Em todo o caso é uma rês traiçoeira, e deves ter cautela comele...

Carlos encolheu os ombros, rindo.— Não, não — dizia Taveira muito sério. — Eu conheço o meu

Dâmaso. Quando foi da nossa pega, em casa da Lola Gorda, ele por-tou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida... Écapaz de tudo... Anteontem estava eu a cear no Silva, ele veio sen-tar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas ateu respeito, umas ameaças...

— Ameaças! Que disse ele?

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— Diz que te dás ares de espadachim e de valentão, mas hás-deencontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se está aí prepa-rando um escândalo monumental... Que se não admirará de te verbrevemente com uma boa bala na cabeça...

— Uma bala?— Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei... Eu, se fosse a ti,

ia-me ao Dâmaso e dizia-lhe: «Damasozinho, flor, fique avisadoque, de ora em diante, cada vez que me suceder uma coisa desagra-dável, venho aqui e parto-lhe uma costela; tome as suas medidas...»

Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre epasmada, apinhava-se até às últimas bancadas onde havia rapa-zes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, far-tas risadas, com os requebros do palhaço, rebocado de caio e verme-lhão, que tocava nos pezinhos de uma voltigeuse e lambia os dedos,de olhos em alvo, num gosto de mel... Descansando na sela larga dexairel dourado, a criatura, magrinha e séria, com flores nas tran-ças, dava a volta devagar, ao passo de um cavalo branco, que mor-dia o freio, levado à mão por um estribeiro; e pela arena o palhaçolambão e néscio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas aocoração, numa súplica babosa, rebolando languidamente os quadrisdentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escu-deiros, de calça listrada de oiro, empurrava-o, num arremedo deciúmes; e o palhaço caía, estatelado, com um estouro de nádegas,entre os risos das crianças e os ratatãs da charanga. O calor sufo-cava; e as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam umanévoa onde tremiam as chamas largas do gás. Carlos, incomodado,abalou.

— Espera ao menos para ver a mulher dos crocodilos! — gritouainda o Taveira.

— Não posso, cheira mal, morro!Mas à porta, de repente, foi detido pelos braços abertos do Alen-

car, que chegava — com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas,todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de ver ali o seu Carlos.Fazia-o no seu solar de Santa Olávia! Vira até nos papéis públicos...

— Não — disse Carlos — o avô é que foi ontem... Eu não mesinto ainda em disposição de ir comunicar com a Natureza...

Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra noolho cavo. Ao lado, grave, o ancião de barbas calçava as suas luvaspretas.

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— Pois eu é o contrário! — exclamava o poeta. — Estou preci-sado de um banho de panteísmo! A bela Natureza! O prado! O bos-que!... De modo que talvez me mimoseie com Sintra, para asemana. Estão lá os Cohens, alugaram uma casita muito bonita,logo adiante do Vítor...

Os Cohens! Carlos compreendeu então a fuga do Ega e a «suasaudade do verde».

— Ouve lá — dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga,para o lado. — Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito de teupai, fizemos muita troça juntos... Não era nenhum personagem, eraapenas um alquilador de cavalos... Mas tu sabes, cá em Portugal,sobretudo nesses tempos, havia muita bonomia, o fidalgo dava-se como arrieiro... Mas, que diabo, tu deves conhecê-lo! É o tio do Dâmaso!

Carlos não se recordava.— O Guimarães, o que está em Paris! — Ah, o comunista!— Sim, muito republicano, homem de ideias humanitárias,

amigo do Gambetta, escreve no Rappel... Homem interessante!...Veio aí por causa de umas terras que herdou do irmão, dessoutrotio do Dâmaso que morreu há meses... E demora-se, creio eu... Poisjantámos hoje juntos, beberam-se uns líquidos, e até estivemos afalar do teu pai... Queres tu que eu to apresente?

Carlos hesitou. Seria melhor noutra ocasião mais íntima, quandopudessem fumar um charuto tranquilo, e conversar do passado...

— Valeu! Hás-de gostar dele. Conhece muito Victor Hugo,detesta a padraria... Espírito largo, espírito muito largo!

O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O Sr.Guimarães ergueu de leve o seu chapéu, carregado de crepe.

Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seupai e nesse passado, assim rememorado e estranhamente ressur-gido pela presença daquele patriarca, antigo alquilador, que fizeracom ele tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra ideia, quenesses últimos dias já o atravessara, pertinaz e torturante,dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arrepiode dor... Carlos pensava no avô.

Estava agora decidido que Maria Eduarda e ele partiriam paraItália, nos fins de Outubro. Castro Gomes, na sua última carta doBrasil, seca e pretensiosa, falava «em aparecer por Lisboa, com aselegâncias do frio, lá para meado de Novembro»; — e era necessário

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antes disso que estivessem já longe, entre as verduras de IsolaBela, escondidos no seu amor e separados por ele do mundo comopelos muros de um claustro. Tudo isto era fácil, considerado quaselegítimo pelo seu coração, e enchia a sua vida de esplendor...Somente havia nisto um espinho — o avô!

Sim, o avô! Ele partia com Maria, ele entrava na ventura abso-luta; mas ia destruir de uma vez para sempre a alegria de Afonso, ea nobre paz que lhe tornava tão bela a velhice. Homem de outraseras, austero e puro, como uma dessas fortes almas que nunca des-faleceram — o avô, nesta franca, viril, rasgada solução de um amorindominável, só veria libertinagem! Para ele nada significava oesponsal natural das almas, acima e fora das ficções civis; e nuncacompreenderia essa subtil ideologia sentimental, com que eles,como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. ParaAfonso haveria apenas um homem que leva a mulher de outro, levaa filha de outro, dispersa uma família, apaga um lar, e se atolapara sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão, pormais finas, por mais fortes, quebrar-se-iam, como bolas de sabão,contra as três ou quatro ideias fundamentais de Dever, de Justiça,de Sociedade, de Família, duras como blocos de mármore, sobre queassentara a sua vida quase durante um século... E seria para elecomo o horror de uma fatalidade! Já a mulher de seu filho fugiracom um homem, deixando atrás de si um cadáver; seu neto agorafugia também, arrebatando a família de outro — e a história dasua casa tornava-se assim uma repetição de adultérios, de fugas,de dispersões, sob o bruto aguilhão da carne!... Depois as esperan-ças que Afonso fundara nele — considerá-las-ia tombadas, mortasno lodo! Ele passava a ser para sempre, na imaginação angustiadado avô, um foragido, um inutilizado, tendo partido todas as raízesque o prendiam ao seu solo, tendo abdicado toda a acção que o ele-varia no seu país, vivendo por hotéis de refúgio, falando línguasestranhas, entre uma família equívoca crescida em torno dele,como as plantas de uma ruína... Sombrio tormento, implacável esempre presente, que consumiria os derradeiros anos do pobreavô!... Mas, que podia ele fazer? Já o dissera ao Ega. A vida éassim! Ele não tinha o heroísmo nem a santidade que tornam fácilo sacrifício... E depois os dissabores do avô, de que provinham? Depreconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais lar-gos, fundados na Natureza!...

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Chegara ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuri-dão. Por ali entraria em breve, do Brasil, o outro — que nas suascartas se esquecia de mandar um beijo a sua filha! Ah, se ele nãovoltasse! Uma onda providencial podia levá-lo... Tudo se tornariatão fácil, perfeito e límpido! De que servia na vida esse ressequido?Era como um saco vazio que caísse ao mar! Ah, se ele morresse!... Eesquecia-se, enlevado numa visão em que a imagem de Maria ochamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e coberta de luto...

No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltronacom um suspiro de fadiga, de desconsolação — disse, depois de tos-sir risonhamente, e dando mais luz ao candeeiro:

— Isto agora, sem o Sr. Ega, parece um bocadinho mais só...— Está só, está triste — murmurou Carlos. — É necessário

sacudirmo-nos... Eu já te disse que talvez fôssemos viajar esteInverno...

O menino não lhe tinha dito nada.— Pois talvez vamos a Itália... Apetece-te voltar à Itália?Baptista reflectiu.— Eu, da outra vez não vi o Papa... E antes de morrer não se

me dava de ver o Papa...— Pois sim, há-de-se arranjar isso, hás-de ver o Papa.Baptista, depois de um silêncio, perguntou, lançando um olhar

ao espelho:— Para ver o Papa vai-se de casaca, creio eu?— Sim, recomendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses

casos, era um hábito de Cristo... Hei-de ver se te arranjo um hábitode Cristo.

Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlatede emoção:

— Muito agradecido a Vossa Excelência. Há por aí gente que otem, ainda talvez com menos merecimento que eu... Dizem que atéhá barbeiros...

— Tens razão — replicou Carlos muito sério. — Era uma vergonha.O que hei-de ver se te arranjo, com efeito, é a Comenda da Conceição.

Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminhodos Olivais. Para poupar aos seus cavalos a soalheira, ia na tipóiado Mulato, o batedor favorito do Ega — que recolhia a parelha navelha cavalariça da Toca, e, até à hora em que Carlos voltava aoRamalhete, vadiava pelas tabernas.

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Ordinariamente ao meio-dia, ao acabar de almoçar, MariaEduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha espe-rar Carlos à porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos eresguardados por um fresco toldo de fazenda cor-de-rosa. Na quintausava sempre vestidos claros; às vezes trazia, à antiga moda espa-nhola, uma flor entre os cabelos; o forte e fresco ar do campo avi-vava, com um brilho mais quente, o mate ebúrneo do seu rosto — eassim, simples e radiante, entre sol e verdura, ela deslumbravaCarlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando oportão de entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logoenvolvido num «extraordinário conforto moral», como ele dizia, emque todo o seu ser se movia mais facilmente, fluidamente, numapermanente impressão de harmonia e doçura... Mas o seu primeirobeijo era para Rosa, que corria pela rua de acácias ao seu encontro,com uma onda de cabelo negro a bater-lhe os ombros, e Niniche aolado, pulando e ladrando de alegria. Ele erguia Rosa ao colo.Maria, de longe, sorria-lhes, sob o toldo cor-de-rosa. Em redor tudoera luminoso, familiar e cheio de paz.

A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já sepodia usar o salão nobre, que perdera o seu ar rígido de museu, exa-lando a tristeza de um luxo morto: as flores que Maria punha nosvasos, um jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçardos seus frescos vestidos, tinham comunicado já um subtil calor devida e de conchego aos mais empertigados contadores do tempo deCarlos V, revestidos de ferro brunido: — e era ali que eles ficavamconversando, enquanto não chegava a hora das lições de Rosa.

A essa hora aparecia Miss Sara, séria e recolhida — sempre depreto, com uma ferradura de prata em broche sobre o colarinhodireito de homem. Recuperara as suas cores fortes de boneca, e aspestanas baixas tinham uma timidez mais virginal, sob o liso dosbandós puritanos. Gordinha, com o peito de pomba farta estalandodentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calmae lenta de aldeia. Mas aquelas terras trigueiras de olivedo não lhepareciam campo. «É muito seco, é muito duro», dizia ela, com umaindefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e doscéus de névoa, cinzentos e vagos.

Davam duas horas; e começavam logo, nos quartos de cima, aslongas lições de Rosa. Carlos e Maria iam então refugiar-se, numaintimidade mais livre, no quiosque japonês, que uma fantasia de

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Craft, o seu amor do Japão, construíra ao pé da rua de acácias,aproveitando a sombra e o retiro bucólico de dois velhos castanhei-ros. Maria afeiçoara-se àquele recanto, chamava-lhe o seu pensa-doiro. Era todo de madeira, com uma só janelinha redonda, e umtelhado agudo à japonesa, onde roçavam os ramos — tão leve queatravés dele, nos momentos de silêncio, se sentiam piar as aves.Craft forrara-o todo de esteiras finas da Índia; uma mesa de cha-rão, algumas faianças do Japão, ornavam-no sobriamente; o tectonão se via, oculto por uma colcha de seda amarela, suspensa pelosquatro cantos, em laços, como o rico dossel de uma tenda; — e todoo ligeiro quiosque parecia ter sido armado só com o fim de abrigarum divã baixo e fofo, de uma languidez de serralho, profundo paratodos os sonhos, amplo para todas as preguiças...

Eles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na pre-sença de Miss Sara, Maria Eduarda com um bordado ou uma cos-tura. Mas bordado e livro caíam logo no chão — e os seus lábios, osseus braços uniam-se arrebatadamente. Ela escorregava sobre odivã: Carlos ajoelhava numa almofada, trémulo, impaciente, depoisda forçada reserva diante de Rosa e diante de Sara — e ali ficava,abraçado à sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes,por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerra-dos, numa doçura de desmaio. Ela queria saber o que ele tinha feitodurante a longa, longa noite de separação. E Carlos nada tinha acontar senão que pensara nela, que sonhara com ela... Depois eraum silêncio: os pardais piavam, as pombas arrulhavam por cima doleve telhado: e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os seusmurmúrios, os seus silêncios, enroscada a um canto, com um olhonegro reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.

Fora, por aqueles dias de calma, sem aragem, a quinta seca, deum verde empoeirado, dormia com as folhagens imóveis, sob o pesodo Sol. Da casa branca, através das persianas fechadas, vinha ape-nas o som amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E noquiosque havia também um silêncio satisfeito e pleno — somentequebrado por algum doce suspiro de lassidão que saía do divã, deentre as almofadas de seda, ou algum beijo mais longo e de umremate mais profundo... Era Niniche que os tirava daquele suaveentorpecimento, farta de estar ali quieta, encerrada entre asmadeiras quentes, num ar mole já repassado desse aroma indefi-nido em que havia jasmim.

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Lenta, passando as mãos no rosto, Maria erguia-se — mas paracair logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento infinito... MeuDeus, o que lhe custava então esse momento de separação! Paraque havia de ser assim? Parecia tão pouco natural, esposos comoeram, que ela ficasse ali toda a noite, sozinha, com o seu desejodele, e ele fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente aoRamalhete!... E ainda se demorava muito tempo, numa mudez deêxtase, em que os olhos húmidos, traspassando-se, continuavam obeijo insaciado que morrera nos seus lábios cansados. Era Ninicheque os fazia sair por fim, trotando impacientemente da porta parao divã, rosnando, ameaçando ladrar.

Muitas vezes, ao recolherem, Maria tinha uma inquietação.Que pensaria Miss Sara desta sesta assim enclausurada, sem umrumor, com a janela do pavilhão cerrada? Melanie, desde pequenaao serviço de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, umimbecil, não contava. Mas Miss Sara?... Maria confessava sorrindoque se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois à mesa oscândidos olhos da inglesa sob os seus bandós virginais... Estáclaro... se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou franzir deleve a testa, recebia logo secamente a sua passagem na Royal Mailpara Southampton! Rosa não a lamentaria, Rosa não lhe tinhaafeição. Mas enfim, era tão séria, admirava tanto a senhora! Elanão gostava de perder a admiração de uma rapariga tão séria. Eassim decidiram despedir Miss Sara, regiamente paga, esubstituí-la, mais tarde, em Itália, por uma governanta alemã,para quem eles fossem como casados, «monsieur et madame...».

Mas pouco a pouco o desejo de uma felicidade mais íntima, maiscompleta, foi crescendo neles. Não lhes bastava já essa curta manhãno divã com os pássaros cantando por cima, a quinta cheia de Sol, tudoacordado em redor: apeteciam o longo contentamento de uma longanoite, quando os seus braços se pudessem enlaçar sem encontrar oestofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e aluz... De resto era bem fácil! A sala de tapeçarias, comunicando com aalcova de Maria, abria sobre o jardim por uma porta envidraçada; agovernanta, os criados, subiam às dez horas para os seus quartos, noandar alto; a casa adormecia profundamente; Carlos tinha uma chavedo portão; e o único cão, Niniche, era o confidente fiel dos seus beijos...

Maria desejava essa noite tão ardentemente como ele. Umatarde, ao escurecer, voltando de um fresco passeio pelos campos,

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experimentaram ambos essa dupla chave — que Carlos já prometiamandar dourar: e ele ficou surpreendido ao ver que o velho portão,que ouvira sempre ranger abominavelmente, rolava agora nos gon-zos com um silêncio oleoso.

Veio nessa mesma noite — tendo deixado na vila, para o levarao amanhecer, a caleche do Mulato, um batedor discreto, que elecevava de gorjetas. O céu, mole e abafado, não tinha uma estrela; esobre o mar lampejava a espaços, mudamente, a lividez de umrelâmpago. Caminhando com inúteis cautelas rente do muro, Carlossentia, nesta proximidade de uma posse tão desejada, uma melanco-lia, cortada de ansiedade, que vagamente o acobardava. Abriu quasea tremer o portão: e mal dera alguns passos estacou, ouvindo aofundo Niniche ladrar furiosamente. Mas tudo emudeceu; e da janelado canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o sossegou. Foiencontrar Maria, com um roupão de rendas, junto da porta envidra-çada, sufocando quase entre os braços Niniche, que ainda rosnava.Estava toda medrosa, numa impaciência de o sentir ao seu lado: enão quis recolher logo: um momento ficaram ali, sentados nosdegraus, com Niniche, que aquietara e lambia Carlos. Tudo emredor era como uma infinita mancha de tinta; só lá em baixo, per-dida e mortiça, surgia da treva alguma luzinha vacilante no alto deum mastro. Maria, conchegada a Carlos, refugiada nele, deu umlongo suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos naquelamudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta,parecia perder a realidade, sumida, diluída na sombra.

— Porque não havemos de partir já para a Itália? — perguntouela de repente, procurando a mão de Carlos. — Se tem de ser, por-que não há-de ser já?... Escusávamos de ter estes segredos, estessustos!

— Sustos de quê, meu amor? Estamos aqui tão seguros como naItália, como na China... De resto podemos partir mais depressa, sequiseres... Dize tu um dia, marca um dia!

Ela não respondeu, deixando cair docemente a cabeça sobre oombro de Carlos. Ele acrescentou, devagar:

— Em todo o caso, compreendes bem, preciso primeiro ir aSanta Olávia, ver o avô...

Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão — comorecebendo dela o presságio de um futuro onde tudo seria confuso eescuro também.

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— Tu tens Santa Olávia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eunão tenho ninguém!

Carlos estreitou-a a si, enternecido.— Não tens ninguém! Isso dito a mim! Nem chega a ser injus-

tiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é também o que osingleses chamam a «impudente adulteração de um facto».

Ela ficara aninhada no peito de Carlos, como desfalecida.— Não sei porquê, queria morrer...Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo,

entraram na alcova. Os molhos de velas de duas serpentinas,batendo os damascos e os cetins amarelos, embebiam o ar tépido,onde errava um perfume, numa refulgência ardente de sacrário: eas bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma castaalvura de neve fresca nesse luxo amoroso e cor de chama. Fora,para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria jáo não ouviu, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca oadorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longeque a carne, traspassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma — etoda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos,divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a deusa queele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seuseio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muitoalto, sobre nuvens de oiro...

Quando saiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o Mulato adormir numa taberna, bêbedo. Teve de o meter dentro do carro: efoi ele que governou até ao Ramalhete, embrulhado numa manta dotaberneiro, encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.

Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca,Carlos reparou numa casita, à beira da estrada, com escritos: eveio-lhe logo a ideia de a alugar, para evitar aquela desagradávelpartida de madrugada com o Mulato estremunhado, borracho, des-pedaçando o trem pelas calçadas. Visitaram-na: havia um quartolargo que, com tapete e cortinas, podia dar um refúgio confortável.Tomou-a logo — e Baptista veio ao outro dia, com móveis numa car-roça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quase triste:

— Mais outra casa!— Esta — exclamou Carlos rindo — é a última! Não, é a penúl-

tima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não seionde...

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Começaram a encontrar-se todas as noites. — às nove e meia,pontualmente, Carlos deixava a Toca, com o seu charuto aceso: eDomingos, adiante, de lanterna, vinha fechar o portão, tirar achave. Ele recolhia devagar à sua «choupana», onde o servia umcriadito, filho do jardineiro do Ramalhete. Sobre um tapete solto,deitado no velho soalho, havia apenas, além do leito, uma mesa,um sofá de riscadinho, duas cadeiras de palha; e Carlos entretinhaas horas que o separavam ainda de Maria escrevendo para SantaOlávia, e sobretudo ao Ega, que se eternizava em Sintra.

Recebera duas cartas dele, falando quase somente do Dâmaso.O Dâmaso aparecia em toda a parte com a Cohen; o Dâmaso tor-nara-se grotesco em Sintra, numa corrida de burros; o Dâmasoarvorara capacete e véu em Seteais; o Dâmaso era uma bestaimunda; o Dâmaso, no pátio do Vítor, de perna traçada, dizia fami-liarmente «a Raquel»; era um dever de moralidade pública dar ben-galadas no Dâmaso!... Carlos encolhia os ombros, achando este ciú-mes indignos do coração do Ega. E então por quem! Por aquelalambisgóia de Israel, melada e molenga, sovada a bengala! «Se comefeito», escrevera ele ao Ega, «ela desceu de ti até ao Dâmaso, tenssó a fazer como se fosse um charuto que te caísse à lama: não opodes naturalmente levantar: deves deixar fumá-lo em paz aogaroto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto,é de imbecil». Mas ordinariamente, quando respondia, falava só aoEga dos Olivais, dos seus passeios com Maria, das conversas dela,do encanto dela, da superioridade dela... Ao avô não achava quedizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recomen-dava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hóspe-des, e dava-lhe recados do Manuelzinho — que ele nunca via.

Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com umlivro aberto, os olhos no ponteiro do relógio. À meia-noite saía enca-fuado num gabão de Aveiro, e de varapau. Os seus passos ressoa-vam, solitários na mudez dos campos, com uma indefinida melan-colia de segredo e de culpa...

Numa dessas noites, de grande calor, Carlos, cansado, adorme-ceu num sofá: e só despertou, em sobressalto, quando o relógio naparede dava tristemente duas horas. Que desespero! Aí ficava per-dida a sua noite de amor! E Maria decerto à espera, angustiada,imaginando desastres!... Agarrou o cajado, abalou, correndo pelaestrada. Depois, ao abrir subtilmente o portão da quinta, pensou

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que Maria teria adormecido: Niniche podia ladrar: os seus passos,entre as acácias, abafaram-se, mais cautelosos. E de repente sentiuao lado, sob as ramagens, vindo do chão, de entre a erva, um resfol-gar ardente de homem, a que se misturavam beijos. Parou, varado:e o seu ímpeto logo foi esmagar a cacete aqueles dois animais,enroscados na relva, sujando brutalmente o poético retiro dos seusamores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro; uma voz soluçava,desfalecida: «Oh yes, oh yes...». Era a inglesa!

Oh, santo Deus, era a inglesa, era Miss Sara! Apagando os pas-sos, atordoado, Carlos escoou-se pelo portão, cerrou-o mansamente,foi esperar adiante, num recanto do muro, sob as ramarias de umafaia, sumido na sombra. E tremia de indignação. Era preciso contarimediatamente a Maria aquele grande horror! Não queria que elaconsentisse um momento mais essa impura fêmea junto de Rosa,roçando a candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hipocri-sia, assim astuta e metódica, sem se desconcertar jamais! Haviadias apenas, vira a criatura desviar os olhos de uma gravura daIlustração, onde dois castos pastores se beijavam num arvoredobucólico! E agora rugia, estirada na erva!

Na estrada escura, do lado do portão, brilhou um lume decigarro. Um homem passou, forte e pesado, com uma manta aosombros. Parecia um jornaleiro. A boa Miss Sara não escolhera! Bemlavada, toda correcta, com os seus bandós puritanos, aceitava umqualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim osembaíra, meses, com aquelas suas duas existências, tão separadas,tão completas! De dia virginal, severa, corando sempre, com aBíblia no cesto da costura: à noite a pequena adormecia, todos osseus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra,xale aos ombros, e lá ia para a relva, com qualquer!... Que beloromance para o Ega!

Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão: de novo subiu,amolecendo os passos, a sombria rua de acácias. Mas agora ia sen-tindo uma hesitação em contar a Maria aquele horror. A seu pesar,pensava que também Maria o esperava, com o leito aberto, nosilêncio da casa adormecida; e que também ele penetrava ali, àsescondidas, como o homem da manta... Decerto era bem diferente!Toda a imensurável diferença que vai do divino ao bestial... E toda-via receava despertar os melindrosos escrúpulos de Maria mos-trando-lhe, paralelo ao seu amor cheio de requintes e passado entre

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brocados cor de oiro, aquele outro rude amor, secreto e ilegítimocomo o dela, e arrastado brutamente na relva... Era comomostrar-lhe um reflexo da sua própria culpa, um pouco esfumada,mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmenteparecida... Não, não diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas rela-ções com Rosa a criatura continuaria a ser, como sempre, a puri-tana laboriosa, grave e cheia de ordem.

A porta envidraçada sobre o jardim tinha ainda luz: ele atirouaos vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Mariaapareceu, mal embrulhada num roupão, juntando os cabelos que setinham desenrolado, e meio adormecida.

— Porque vieste tão tarde?Carlos beijou longamente os seus belos olhos pesados, quase

cerrados.— Adormeci estupidamente, a ler... Depois, quando entrei,

pareceu-me ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imagi-nação, tudo deserto.

— Precisávamos ter um cão de fila — murmurou ela, espregui-çando-se.

Sentada à beira do leito, com os braços caídos e adormentados,sorria da sua preguiça.

— Estás tão fatigada, filha! Queres tu que me vá embora?...Ela puxou-o para o seu seio perfumado e quente.— Je veux que tu m’aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps...Ao outro dia Carlos não fora a Lisboa, e apareceu cedo na Toca.

Melanie, que andava espanejando o quiosque, disse-lhe quemadame, um pouco cansada, tinha justamente tomado o seu choco-late na cama. Ele entrou no salão: defronte da janela aberta, sentadano banco de cortiça, Miss Sara costurava, à sombra das árvores.

— Good morning — disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril,todo curioso de a observar.

— Good morning, sir — respondeu ela com o seu ar modesto etímido.

Carlos falou do calor. Miss Sara já àquela hora o achava intole-rável. Felizmente a vista do rio, lá em baixo, refrescava...

Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos, acendendo a ciga-rette, fora tão abafada! Ele mal pudera dormir. E ela?

Oh, ela dormira de um sono só. Carlos quis saber se tiverabonitos sonhos.

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— Oh yes, sir.Oh yes! Mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos

baixos. E tão correcta, tão pregada, fresca como se nunca tivesseservido!... Positivamente era extraordinária! E Carlos, torcendo obigode, pensava que ela devia ter um seiozinho bem alvo e bemredondinho!

Assim ia passando o Verão nos Olivais. No começo de Setembro,Carlos soube por uma carta do avô que Craft devia chegar a Lisboanum sábado, ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo nessa manhã,a ouvir as novidades de Santa Olávia. Achou Craft já a pé, diantedo espelho, fazendo a barba. A um canto do sofá, Eusebiozinho, queviera na véspera à noite de Sintra e estava também no hotel, lim-pava as unhas com um canivete, em silêncio, coberto de negro.

Craft vinha encantado com Santa Olávia. Nem compreendiacomo Afonso, beirão forte, tolerava a Rua de S. Francisco e o quin-talejo abafado do Ramalhete. Tinha-se passado regiamente! O avô,cheio de saúde, de uma hospitalidade que lembrava Abraão e aBíblia. O Sequeira, óptimo, comendo tanto que ficava inútil depoisde jantar, a estoirar e a gemer no fundo de uma poltrona. Lá conhe-cera o velho Travassos, que falava sempre com os olhos cheios delágrimas do «talento do seu caro colega Carlos». E o marquês,esplêndido, com abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego,e apaixonado por uma barqueira... De resto, soberbos jantares,alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danças de raparigas noadro, guitarradas, esfolhadas, todo o doce idílio português...

— Mas a respeito de Santa Olávia temos a falar mais seria-mente — disse por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar acabeça.

— E tu — perguntou então Carlos, voltando-se para o Eusebio-zinho. — Tens estado em Sintra, hem? Que se faz lá?...O Ega?

O outro ergueu-se guardando o canivete, ajeitando as lunetas.— Lá está no Vítor, muito engraçado, comprou um burro... Lá

está o Dâmaso também... Mas esse pouco se vê, não larga osCohens... Enfim tem-se passado menos mal, com bastante calor...

— Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola?Eusebiozinho fez-se escarlate. Credo! Estava no Vítor, muito

sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portu-guesa... Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

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— A Corneta?...— Sim, do Diabo — disse o Eusebiozinho. — É um jornal de

pilhérias, de picuinhas... Ele já existia, chamava-se o Apito; masagora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, emeter-lhe mais chalaça...

— Enfim — disse Carlos — qualquer coisa sebácea e imundacomo ele...

Craft reapareceu, enxugando a cabeça. E enquanto se vestia,falou de uma viagem que, agora, o tentava, que estivera planeandoem Santa Olávia. Como já não tinha a Toca, e a sua casa ao pé doPorto necessitava longas obras, ia passar o Inverno ao Egipto,subindo o Nilo, em comunicação espiritual com a antiguidadefaraónica. Depois talvez se adiantasse até Bagdade, a ver o Eufra-tes, e os sítios de Babilónia...

— Por isso eu lhe vi ali, na mesa — exclamou Carlos — umlivro, Nínive e Babilónia... Que diabo, você gosta disso? Eu tenhohorror a raças e a civilizações defuntas... Não me interessa senão aVida.

— É que você é um sensual — disse Craft. — E a propósito desensualidade e de Babilónia, quer vir você almoçar ao Bragança?Eu tenho de lá encontrar um inglês, o meu homem das minas...Mas havemos de ir à Rua do Ouro, que quero trepar um instante àcaverna do meu procurador... E a caminho, que é meio-dia!

Deixaram o Eusebiozinho, em baixo na sala, ajeitando as suaslúgubres lunetas diante dos telegramas. E apenas saíram o pátio,Craft travou do braço de Carlos, e disse-lhe que as coisas sérias arespeito de Santa Olávia — era o visível, profundo desgosto do avôpor ele não ter lá aparecido.

— Seu avô não me disse nada, mas eu sei que ele está muitís-simo magoado com você. Não há desculpa, são umas horas de via-gem... Você sabe como ele o adora... Que diabo! Est modus in rebus.

— Com efeito — murmurou Carlos. — Eu devia ter lá ido... Quequer você, amigo?... Enfim, acabou-se, é necessário fazer umesforço!... Talvez parta para a semana com o Ega.

— Sim, homem, dê-lhe esse alegrão... Esteja lá umas sema-nas...

— Est modus in rebus. Hei-de ver se lá estou uns dias.A caverna do procurador era defronte do Montepio. Carlos espe-

rava, havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta

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— quando de repente avistou Melanie, a sair o portão do Montepio,com uma matrona gorda, de chapéu roxo. Surpreendido, atravessoua rua. Ela estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; enem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que madame lhe deralicença para vir a Lisboa, e ela andava acompanhando aquelaamiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhadaali, contra o passeio. Melanie saltou para dentro, à pressa. A tra-quitana rodou aos solavancos para o Terreiro do Paço.

Carlos via-a desaparecer, pasmado. E Craft, que voltara, olhandotambém, reconheceu no lamentável calhambeque a caleche do Torto,dos Olivais, onde ele às vezes costumava vir «janotar a Lisboa».

— Era alguém lá da Toca? — perguntou.— Uma criada — disse Carlos, ainda espantado daquele estra-

nho embaraço de Melanie.E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a

voz no rumor da rua:— Ouça lá! O Eusebiozinho disse-lhe alguma coisa a meu res-

peito, Craft?O outro confessou que o Eusebiozinho, apenas lhe aparecera no

quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informá-lo da miste-riosa vida de Carlos nos Olivais...

— Mas eu fi-lo calar — acrescentou Craft, declarando-lhe queera tão pouco curioso que nem mesmo quisera ler nunca a HistoriaRomana. — Em todo o caso, você deve ir a Santa Olávia.

Carlos, com efeito, logo nessa noite falou a Maria da visita quedevia ao avô. Ela, muito séria, aconselhou-lha também, arrepen-dida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dosoutros que o amavam.

— Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?— Pois dois ou três dias, quando muito. E naturalmente trago

até o avô. Não está lá a fazer nada, e eu não estou para a maçadade voltar lá...

Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e baixo, timida-mente, confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era ver oRamalhete! Queria visitar os quartos dele, o jardim, todos essesrecantos, onde tantas vezes ele pensara nela, e se desesperara, sen-tindo-a distante e inacessível...

— Dize, queres? Mas é necessário que seja antes de vir teu avô.Queres?

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— Acho um encanto! Há só um perigo. É eu não te deixar sairmais e ficar a devorar-te na minha caverna.

— Prouvera a Deus!Combinaram então que ela fosse jantar ao Ramalhete no dia da

partida de Carlos para Santa Olávia. À noitinha levava-o no coupéa Santa Apolónia; depois seguia para os Olivais.

Foi no sábado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e oseu coração batia com a deliciosa perturbação de um primeiroencontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus ves-tidos escuros roçarem o veludo cor de cereja que forrava a escadadiscreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na antecâmara,teve a profunda doçura de um primeiro beijo.

Ela foi logo ao toucador tirar o chapéu, dar um jeito ao cabelo. Elenão cessava de a beijar; abraçava-a pela cinta; e com os rostos juntossorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois,impaciente, curiosa, ela percorreu os quartos, miudamente, até àalcova do banho; leu os títulos dos livros, respirou o perfume dos fras-cos, abriu os cortinados de seda do leito... Sobre uma cómoda Luís XVhavia uma salva de prata, trasbordando de retratos que Carlos seesquecera de esconder, a coronela de hussardos de amazona, MadameRughel decotada, outras ainda. Ela mergulhou as mãos, com um sor-riso triste, na profusão daquelas recordações... Carlos, rindo,pediu-lhe que não olhasse «esses enganos do seu coração».

— Porque não? — dizia Maria, séria. Sabia bem que ele nãodescera das nuvens, puro como um serafim. Havia sempre fotogra-fias no passado de um homem. De resto tinha a certeza que nuncaamara as outras como a sabia amar a ela.

— Até é uma profanação falar em amor quando se trata dessascoisas de acaso — murmurou Carlos. — São quartos de estalagemonde se dorme uma vez...

No entanto Maria considerava longamente a fotografia da coro-nela de hussardos. Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma francesa?

— Não, de Viena. Mulher de um correspondente meu, homemde negócios... Gente tranquila, que vivia no campo...

— Ah, vienense... Dizem que têm um grande encanto as mulhe-res de Viena!

Carlos tirou-lhe a fotografia da mão. Para que haviam de falarde outras mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulherúnica, e ele tinha-a ali abraçada sobre o seu coração.

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Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço. Elagostou sobretudo do escritório de Afonso, com os seus damascos decâmara de prelado, a sua feição severa de paz estudiosa.

— Não sei porquê — murmurou dando um olhar lento às estan-tes pesadas e ao Cristo na cruz — não sei porquê, mas teu avôfaz-me medo!

Carlos riu. Que tontaria! O avô, se a conhecesse, fazia-lhe logoa corte rasgadamente... O avô era um santo! E um lindo velho!

— Teve paixões?— Não sei, talvez... Mas creio que o avô foi sempre um puri-

tano.Desceram ao jardim, que lhe agradou também, quieto e bur-

guês, com a sua cascatazinha chorando num ritmo doce.Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa rús-tica de pedra, onde estavam entaladas letras mais distintas e umadata antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria maisdoce que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou umramo para levar como relíquia.

Mesmo em cabelo foram ver defronte as cocheiras: oguarda-portão ficou de boné na mão, embasbacado para aquelasenhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no Rama-lhete! Maria acariciou os cavalos, e fez uma festa grata e maislonga à Tunante, que tantas vezes levara Carlos à Rua de S. Fran-cisco. Ele via nestas simples coisas as graças incomparáveis deuma esposa perfeita.

Recolheram pela escada particular de Carlos — que Mariaachava «misteriosa» com aqueles veludos grossos cor de cereja, for-rando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlosjurou que nunca ali passara outro vestido — a não ser o do Ega,uma vez, mascarado de varina.

Depois deixou-a no quarto um momento, para ir dar ordens aoBaptista: mas quando voltou encontrou-a a um canto do sofá, tãodescaída, tão desanimada, que lhe arrebatou as mãos, cheio deinquietação.

— Que tens, amor? Estás doente?Ela ergueu lentamente os olhos que brilhavam numa névoa de

lágrimas.— Pensar que tu vais deixar por mim esta linda casa, o teu con-

forto, a tua paz, os teus amigos... É uma tristeza, tenho remorsos!

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Carlos ajoelhara ao seu lado, sorrindo dos seus escrúpulos, cha-mando-lhe tonta, secando-lhe num beijo as lágrimas que rolavam...Considerava-se ela então valendo menos que a cascata do jardim ealguns tapetes usados?...

— O que tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha queridaMaria, quando tu sacrificas tanto!

Ela encolheu os ombros, amargamente.— Eu!Passou-lhe as mãos entre os cabelos, puxou-o brandamente

para o seu seio — e dizia, baixo, como falando ao seu próprio cora-ção, calmando-lhe as incertezas e as dúvidas:

— Não, com efeito, nada vale no mundo senão o nosso amor!Nada mais vale! Se ele é verdadeiro, se é profundo, tudo o mais évão, nada mais importa...

A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abra-çada para o leito — onde tantas vezes desesperava dela como deuma deusa intangível.

Às cinco horas pensaram em jantar. A mesa fora posta numasaleta que Carlos quisera, em tempo, revestir de colchas de cetimcor de pérola e botão-de-oiro. Mas não estava ainda arranjada; asparedes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos pusera aliultimamente o retrato de seu pai — uma tela banal, representandoum moço pálido, de grandes olhos, com luvas de camurça e um chi-cote na mão.

Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. Amesa, redonda e pequena, parecia uma cesta de flores; o champa-nhe gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa dearroz-doce tinha as iniciais de Maria.

Aqueles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depoisreparou no retrato de Pedro da Maia: e interessou-se, ficou a con-templar aquela face descorada, que o tempo fizera lívida, e ondepareciam mais tristes os grandes olhos de árabe, negros e lângui-dos.

— Quem é? — perguntou.— É meu pai.Ela examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava

que Carlos se parecesse com ele. E voltando-se muito séria,enquanto Carlos desarrolhava com veneração uma garrafa de velhoChambertin:

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— Sabes tu com quem te pareces às vezes?... É extraordinário,mas é verdade. Pareces-te com minha mãe!

Carlos riu, encantado de uma parecença que os aproximavamais, e que o lisonjeava.

— Tens razão — disse ela — que a mamã era formosa... Pois é ver-dade, há um não sei quê na testa, no nariz... Mas sobretudo certos jei-tos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assimum pouco vago, esquecido... Tenho pensado nisto muitas vezes...

Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos,alegremente, anunciou um jantar à portuguesa. Mr. Antoine, o cheffrancês, fora com o avô. Ficara a Micaela, outra cozinheira da casa,que ele achava magnífica, e que conservava a tradição da antigacozinha freirática do tempo do senhor D. João V.

— Assim, para começar, minha querida Maria, aí tens tu umcaldo de galinha, como só se comia em Odivelas, na ceia da madrePaula, em noites de noivado místico...

E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elesapertavam-se rapidamente a mão por cima das flores. Nunca Carlosa achara tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-lhe irradiaruma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito, via asuperioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadia-os a ambos, deficarem ali eternamente, naquele quarto de rapaz, com jantarzinhosportugueses à moda de D. João V, servidos pelo Baptista de jaquetão.

— Estou com uma vontade de perder o comboio! — disse Car-los, como implorando a sua aprovação.

— Não, deves ir... É necessário não sermos egoístas... Somentenão te descuides, manda-me todos os dias um grande telegrama...Que os telégrafos foram unicamente inventados para quem se amae está longe, como dizia a mamã.

Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com amãe dela. E baixando-se a remexer a garrafa de champanhe dentrodo gelo:

— É curioso não mo teres dito antes... Também tu nunca mefalaste de tua mãe...

Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh,nunca falara da mamã, porque nunca viera a propósito...

— De resto não havia coisas muito interessantes a contar —acrescentou. — A mamã era uma senhora da ilha da Madeira, nãotinha fortuna, casou...

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— Casou em Paris?— Não, casou na Madeira com um austríaco que fora lá acom-

panhar um irmão tísico... Era um homem muito distinto, viu amamã, que era lindíssima, gostaram um do outro, et voilà...

Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortandouma asa de frango.

— Mas então — exclamou Carlos — se teu pai era austríaco,meu amor, tu és também austríaca... És talvez uma dessas vienen-ses que tu dizes que têm um tão grande encanto...

Sim, talvez, segundo essas coisas dos códigos era austríaca.Mas nunca conhecera o pai, vivera sempre com a mamã, falarasempre português, considerava-se portuguesa. Nunca estivera naÁustria, nem sabia mesmo alemão...

— Não tiveste irmãos?— Sim, tive uma irmãzinha, que morreu em pequena... Mas

não me lembra. Tenho em Paris o retrato dela... Bem linda!Nesse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote

largo, estacou. Carlos, surpreendido, correu à janela com o guarda-napo na mão.

— É o Ega! — exclamou. — É aquele velhaco que chega de Sin-tra!

Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos seolharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Eleesperava só que o Ega recolhesse de Sintra para o levar à Toca.Melhor seria que o encontro se desse ali, natural, franco e sim-ples...

— Baptista! — gritou Carlos, sem vacilar mais. — Diz ao Sr.Ega que estou a jantar, que entre para aqui.

Maria sentara-se, vermelha, dando um jeito rápido aos ganchosdo cabelo, arranjado à pressa, um pouco desmanchado.

A porta abriu-se — e o Ega parou, assombrado, intimidado, dechapéu branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papelpardo na mão.

— Maria — disse Carlos — aqui tens enfim o meu grandeamigo Ega.

E ao Ega disse simplesmente:— Maria Eduarda.Ega ia largar atarantadamente o embrulho, para apertar a mão

que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel

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pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas deSintra rolou, esmagando-se, sobre as flores do tapete. Então todo oembaraço findou através de uma risada alegre — enquanto o Ega,desolado, abria os braços sobre as ruínas do seu doce.

— Tu já jantaste? — perguntou Carlos.Não, não tinha jantado. E via já ali uns ovos moles nacionais,

que o encantavam, enfastiado como vinha da horrível cozinha doVítor. Oh! que cozinha! Pratos lúgubres, traduzidos do francês emcalão como as comédias do Ginásio!

— Então avança! — exclamou Carlos. — Depressa, Baptista!...Traz o caldo de galinha! Oh! ainda temos tempo!... Tu sabes quevou hoje para Santa Olávia?

Está claro que sabia, recebera a carta dele, e por isso viera...Mas não podia jantar ainda, assim coberto do pó da estrada, e comum jaquetão de bucólica...

— Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que meguardem tudo, que eu trago uma fome de pastor da Arcádia!...

O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que osdevia levar a Santa Apolónia, esperava já à porta com a maleta.Mas Ega agora queria conversar, afirmou que tinham tempo, tirouo relógio. Estava parado. E ele declarou logo que no campo se regu-lava pelo Sol, como as flores e como as aves...

— Fica agora em Lisboa? — perguntou-lhe Maria Eduarda.— Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de

cidadão, subindo duas ou três vezes o Chiado... Depois volto para arelva. Sintra começa a ser interessante para mim, agora que nãoestá ninguém... Sintra, de Verão, com burgueses, parece-me um idí-lio com nódoas de sebo.

Mas Baptista oferecia a Carlos a chartreuse — dizendo que SuaExcelência não se devia demorar se não tencionava perder o com-boio, de propósito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o cha-péu. E os dois amigos, sós, ficaram um momento calados, enquantoCarlos acendia devagar o charuto.

— Tu quanto tempo te demoras? — perguntou por fim o Ega.— Três ou quatro dias. E tu não voltes para Sintra antes que

eu chegue, precisamos comunicar... Que diabo tens tu feito lá?O outro encolheu os ombros.— Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez

em quando: «Que lindo que isto é!», etc.

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Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito umaazeitona:

— De resto, nada... O Dâmaso lá está! Sempre com a Cohen,como te mandei dizer... Está claro que não há nada entre eles,aquilo é só para mim, para me irritar... É um canalha, aqueleDâmaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!

Deu um puxão forte aos punhos, com uma cor de cólera no rostoqueimado:

— Eu, está claro, falo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigoDâmaso», etc. Mas só quero um pretexto! É necessário aniquilaraquele animal. É um dever de moralidade, de asseio público, degosto, varrer aquela bola de lama humana.

— Quem esteve por lá mais? — perguntou Carlos. — Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Apa-

recia pouco, coitada, agora que andava de luto.— De luto?— Por ti.Calou-se. Maria entrava, com o véu descido, acabando de aper-

tar as luvas. Então Carlos, suspirando, resignado, estendeu os bra-ços ao Baptista para ele lhe vestir um casaco leve de jornada. Egaajudava, pedindo um abraço filial para Afonso, e recados para ogordo Sequeira.

Foi acompanhá-los a baixo, em cabelo: e fechou ele a porti-nhola, prometendo a Maria Eduarda uma visita à Toca, apenasCarlos voltasse desses penhascos do Douro...

— Não vás para Sintra antes de eu voltar! — gritou-lhe aindaCarlos. — E a Micaela que tome conta em ti!

— All right, all right — dizia o Ega. — Boa jornada! Criado deVossa Excelência, minha senhora... Até à Toca!

O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lheestava preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flores e osrestos do jantar, as velas continuavam a arder solitárias, fazendoressaltar no painel escuro a palidez de Pedro da Maia, e a melanco-lia dos seus olhos.

No sábado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, aindaà mesa do almoço, acabavam os seus charutos, falando de SantaOlávia. Carlos chegara de lá essa madrugada, só. O avô decidiraficar entre as suas velhas árvores até ao fim do Outono, que ia tãoluminoso e tão macio...

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Carlos fora-o encontrar muito alegre, muito forte — apesar deter sido obrigado, por causa de um toque de reumatismo, a abando-nar enfim o seu culto da água fria. E esta maciça, resplandecentesaúde do velho fora um alívio para o coração de Carlos: parecia-lheassim mais fácil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Itá-lia, em Outubro. Além disso achara um truque, como ele dizia aoEga, para realizar o supremo desejo da sua vida sem magoar o avô,sem lhe turbar a paz da velhice. Era um truque simples. Consistiaem partir ele só para Madrid, no começo de uma certa «viagem deestudo», para que já preparara o avô em Santa Olávia. Mariaficava na Toca, durante um mês. Depois tomava o paquete paraBordéus: e era aí que Carlos se reunia com ela, a começarem essaexistência de felicidade e romance que as flores da Itália deviamperfumar... Na Primavera ele voltava a Lisboa, deixando Mariainstalada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avôaquela ligação, a que o prendia a honra, e que o forçaria agora aviver regularmente longos meses numa outra terra que se tornaraa pátria do seu coração. E que havia de dizer o avô? Aceitar esseromance, a que não veria os lados desagradáveis, esbatido assimpela distância e pela névoa da paixão. Seria para Afonso uma vagae mal sabida coisa de amor que se passava em Itália... Poderialamentá-la, apenas, por lhe levar pontualmente todos os anos oneto para longe; e cada ano se consolaria pensando na curta dura-ção dos idílios humanos. De resto Carlos contava com essa largabenevolência que amolece as almas mais rígidas, quando apenasalguns passos as separam do túmulo... Enfim o seu truqueparecia-lhe bom. Ega, em resumo, aprovou o truque.

Depois, mais alegremente, falaram da instalação desse amor.Carlos permanecia na sua ideia romântica — um cottage à beira deum lago. Mas Ega não aprovava o lago. Ter todos os dias diante dosolhos uma água sempre mansa e sempre azul, parecia-lhe perigosopara a durabilidade da paixão. Na quietação contínua de uma pai-sagem igual, dois amantes solitários, dizia ele, não sendo botânicosnem pescando à linha, vêem-se forçados a viver exclusivamente dodesejo um do outro, e a tirar daí todas as suas ideias, sensações,ocupações, gracejos e silêncios... E, que diabo, o mais forte senti-mento não pode dar para tanto! Dois amantes, cuja única profissãoé amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta cidade,tumultuosa e criadora, onde o homem tenha durante o dia os clu-

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bes, o cavaco, os museus, as ideias, o sorriso de outras mulheres —e a mulher tenha as ruas, as compras, os teatros, a atenção deoutros homens; de sorte que à noite, quando se reúnam, não tendopassado o infindável dia a observarem-se um no outro e a si pró-prios, trazendo cada um a vibração da vida forte que atravessaram— achem um encanto novo e verdadeiro no conchego da sua soli-dão, e um sabor sempre renovado na repetição dos seus beijos...

— Eu — continuava Ega, erguendo-se — se levasse para longeuma mulher, não era para um lago, nem para a Suíça, nem para osmontes da Sicília; era para Paris, para o Boulevard dos Italianos,ali à esquina do Vaudeville, com janelas deitando para a grandevida, a um passo do Figaro, do Louvre, da filosofia e da blague...Aqui tens tu a minha doutrina!... E aí temos nós o amigo Baptistacom o correio.

Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazianuma salva: e vinha tão perturbado que anunciou «um sujeito, alifora, na antecâmara, numa carruagem, à espera...».

Carlos olhou o bilhete, empalideceu terrivelmente. E ficou arevirá-lo, lento e como atordoado, entre os dedos, que tremiam...Depois, em silêncio, atirou-o ao Ega para cima da mesa.

— Caramba — murmurou Ega, assombrado.Era Castro Gomes!Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.— Manda entrar... Para o salão grande!Baptista apontou para o jaquetão de flanela com que Carlos

tinha almoçado, e perguntou baixo se Sua Excelência queria umasobrecasaca.

— Traz.Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, ansiosamente.— Não é um desafio, está claro — balbuciou Ega.Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem

chamava-se Joaquim Álvares de Castro Gomes: por baixo tinhaescrito a lápis: «Hotel Bragança»... Baptista voltara com a sobreca-saca: e Carlos, abotoando-a devagar, saiu sem outra mais palavraao Ega, que ficara de pé junto da mesa, limpando estupidamente asmãos ao guardanapo.

No salão nobre, forrado de brocados cor de musgo de Outono,Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado àborda do sofá, a esplêndida tela de Constable, o retrato da condessa

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de Runa, bela e forte no seu vestido de veludo escarlate de caça-dora inglesa. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete,voltou-se, de chapéu branco na mão, sorrindo, pedindo perdão deestar assim a pasmar familiarmente para aquele soberbo Consta-ble... Com um gesto rígido, Carlos, muito pálido, indicou-lhe o sofá.Saudando e risonho, Castro Gomes sentou-se vagarosamente. Nopeito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosa; os seussapatos de verniz resplandeciam sobre as polainas de linho; norosto chupado, queimado, a barba negra terminava em bico; oscabelos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar desecura, fadiga.

— Eu possuo também em Paris um Constable muito chique —disse ele, sem embaraço, num tom arrastado, cheio de rr, que osotaque brasileiro adocicava. — Mas é apenas uma pequena paisa-gem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizera verdade... Todavia dá muito tom a uma galeria. É necessáriotê-lo.

Carlos, defronte numa cadeira, com os punhos fortementefechados sobre os joelhos, conservava a imobilidade de um már-more. E, perante aquele modo afável, uma ideia ia-o atravessando,lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos, que não tiravade sobre o outro, uma irreprimível chama de cólera. Castro Gomesdecerto não sabia nada. Chegara, desembarcara, correra aos Oli-vais, dormira nos Olivais! Era o marido, era novo, tivera-a já nosbraços — a ela! E agora ali estava, tranquilo, de flor ao peito,falando de Constable! O único desejo de Carlos, naquele instante,era que aquele homem o insultasse.

No entanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de seapresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por umbilhete uma entrevista...

— O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei estamanhã às dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, eestou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.

Fez-se um alívio infinito no coração de Carlos. Ainda não viraentão Maria Eduarda, aqueles secos lábios não a tinham tocado! Esaiu enfim da sua rigidez de mármore, teve um movimento atento,aproximando de leve a cadeira.

Castro Gomes, no entanto, tendo pousado o chapéu, tirara dobolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo mono-

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grama de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papéis uma carta...Depois, com ela na mão, muito tranquilamente:

— Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anó-nimo... Mas não creia Vossa Excelência que foi ele que me levou aatravessar à pressa o Atlântico. Seria o maior dos ridículos... Edesejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou per-feitamente indiferente... Aqui o tem. Quer Vossa Excelência lê-lo,ou quer que eu leia?

Carlos murmurou com um esforço:— Leia Vossa Excelência.Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre

os dedos.— Como Vossa Excelência vê, é a carta anónima em todo o seu

horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; caligrafia reles;tinta reles; cheiro reles: um documento odioso. E aqui está como elese exprime:

Um homem que teve a honra de apertar a mão de Vossa Excelên-cia — eu dispensava a honra... — que teve a honra de apertar a mãode Vossa Excelência e de apreciar o seu cavalheirismo, julga dever pre-veni-lo que sua mulher é, à vista de toda a Lisboa, a amante de umrapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive numacasa às Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este herói, que é muitorico, comprou expressamente uma quinta nos Olivais, onde instalou amulher de Vossa Excelência e onde a vai ver todos os dias, ficando àsvezes, com escândalo da vizinhança, até de madrugada. Assim o nomehonrado de Vossa Excelência anda pelas lamas da capital.

— É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque osei, que tudo quanto ela diz é incontestavelmente exacto... O Sr.Carlos da Maia é pois, publicamente, com conhecimento de toda aLisboa, o amante dessa senhora.

Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços,numa aceitação inteira de todas as responsabilidades:

— Não tenho então nada a dizer a Vossa Excelência senão queestou às suas ordens!...

Uma fugitiva onda de sangue avivou a palidez morena de Cas-tro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira.Depois, sorrindo friamente:

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— Perdão... O Sr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que,se isto tivesse de ter uma solução violenta, eu não viria aqui pes-soalmente, a sua casa, ler-lhe este papel... A coisa é inteiramenteoutra.

Carlos recaíra na cadeira, assombrado. E agora a lentidão ado-cicada daquela voz ia-se-lhe tornando intolerável. Um confuso ter-ror do que viria desses lábios, que sorriam com uma polidez imper-tinente, quase fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejobrutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que saíssedaquela sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma tor-peza!...

O outro passou os dedos no bigode, e prosseguiu, devagar,arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão:

— O meu caso é este, Sr. Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboaque me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora queexiste algures, em Paris, no Brasil ou no Inferno, um certo CastroGomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse CastroGomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudopor ser falso. E Vossa Excelência compreende que não devo conti-nuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz, visto quea não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso queaqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman,dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquela senhoranão é minha mulher.

Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlosda Maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, ondeapenas os olhos brilhavam angustiosamente na lividez que acobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como aco-lhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquerpalavra entre eles desnecessária e vã.

Mas Castro Gomes encolhera de leve os ombros, como uma lân-guida resignação, como quem atribui tudo à malícia dos Destinos.

— São as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está daía ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que euvivo com essa senhora; quando tive o Inverno passado de ir ao Bra-sil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o Hotel Cen-tral. Vossa Excelência compreende perfeitamente que eu não fuifazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhoravinha comigo, dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do

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hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou noCentral; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa naRua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim umamante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nascircunstâncias mais particularmente desagradáveis para CastroGomes... E, meu Deus!, não podemos realmente condená-la muito...Achava-se por acaso revestida de uma excelente posição social e deum nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade alevasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nomeeram de empréstimo e ela era apenas «Fulana de tal, amigada...». Deresto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar seme-lhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou àmatrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguém,a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída doconvento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; mui-tas vezes, em coisas relativamente delicadas, lhe deixei usar o meunome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomoua governanta inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobre-tudo, uma rapariga tão séria... Enfim tudo isso passou... O queimporta agora é que eu lhe retiro solenemente o nome que lheemprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac Gren.

Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas dacadeira, tão fortemente que quase lhe esgaçava o estofo:

— Mais nada, creio eu?Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate

brutal que o despedia.— Mais nada — disse ele tomando o chapéu e levantando-se

muito vagarosamente. — Devo apenas acrescentar, para evitar aVossa Excelência suspeitas injustas, que aquela senhora não é umamenina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. Apequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãesomente há três anos... Vinha dos braços de um qualquer, passoupara os meus... Posso pois dizer, sem injúria, que era uma mulherque eu pagava.

Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estavadeliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro dasala, numa sacudidela brusca. E, diante desta nova rudeza querevelava só mortificação, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu,murmurou:

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— Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pesar de terfeito o conhecimento de Vossa Excelência por um motivo tão desa-gradável... Tão desagradável para mim.

Os seus passos desafogados e leves perderam-se na antecâ-mara, entre as tapeçarias. Depois, em baixo, uma portinhola bateu,uma carruagem rodou na calçada...

Carlos ficara caído numa cadeira, junto da porta, com a cabeçaentre as mãos. E de todas aquelas palavras de Castro Gomes, queainda lhe ressoavam em redor, adocicadas e lentas, só lhe restava osentimento atordoado de uma coisa muito bela, resplandecendomuito alto, e que caía de repente, se fazia em pedaços na lama, sal-picando-o todo de nódoas intoleráveis... Não sofria: era simples-mente um assombro de todo o seu ser perante este fim imundo deum sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outraalma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de oiro; derepente uma voz passava, cheia de rr; as duas almas rolavam,batiam num charco; e ele achava-se tendo nos braços uma mulherque não conhecia, e que se chamava Mac Gren.

Mac Gren! Era a Mac Gren!Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta

furiosa, de todo o seu orgulho, contra essa ingenuidade que o trou-xera meses tímido, trémulo, ansioso, seguindo à maneira de umaestrela aquela mulher, que qualquer em Paris, com mil francos nobolso, poderia ter sobre um sofá, fácil e nua! Era horrível! E recor-dava agora, afogueado de vergonha, a emoção religiosa com queentrava na sala de repes vermelho da Rua de S. Francisco: oencanto enternecido com que via aquelas mãos, que ele julgava asmais castas da Terra, puxarem os fios de lã no bordado, num cons-tante trabalho de mãe laboriosa e recolhida; a veneração espiritualcom que se afastava da orla do seu vestido, igual para ele à túnicade uma Virgem cujas pregas rígidas nem a mais rude bestialidadeousaria desmanchar de leve! Oh! imbecil, imbecil!... E todo essetempo ela sorria consigo daquela simpleza de provinciano doDouro! Oh! tinha vergonha agora das flores apaixonadas que lhetrouxera! Tinha vergonha das «excelências» que lhe dera!

E seria tão fácil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebidoque aquela deusa, descida das nuvens, estava amigada com umbrasileiro! Mas quê! A sua paixão absurda de romântico pusera-lhelogo, entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma des-

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sas névoas douradas que dão às montanhas mais rugosas e negrasum brilho polido de pedra preciosa! Porque escolhera ela precisa-mente para seu médico, na sua casa e na sua intimidade, o homemque na rua a fitara com um fulgor de desejo na face? Porque é quenas suas longas conversas, nas manhãs da Rua de S. Francisco,não falara jamais de Paris, dos seus amigos e das coisas da suacasa? Porque é que ao fim de dois meses, sem preparação, semtodas essas progressivas evidências do amor que cresce e desabro-cha como uma flor, se lhe abandonara de chofre, toda pronta, ape-nas ele lhe disse o primeiro «amo-te»?... Porque lhe aceitara umacasa já mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos?E outras coisas ainda, pequeninas, mas que não teriam escapadoao mais simples: jóias brutais, de um luxo grosseiro de cocotte; olivro da Explicação de Sonhos, à cabeceira da cama; a sua familia-ridade com Melanie... E agora até o ardor dos seus beijos lhe pare-cia vir menos da sinceridade e da paixão que da ciência da volup-tuosidade!... Mas tudo acabara, providencialmente! A mulher queele amara e as suas seduções esvaíam-se de repente no ar como umsonho, radiante e impuro, de que aquele brasileiro o viera acordarpor caridade! Esta mulher era apenas a Mac Gren... O seu amorfora, desde que a vira, como o próprio sangue das suas veias; eescoava-se agora todo através da ferida incurável, e que nuncamais fecharia, feita no seu orgulho!

Ega apareceu à porta do salão, ainda pálido:— Então?Toda a cólera de Carlos fez explosão:— Extraordinário, Ega, extraordinário! A coisa mais abjecta, a

coisa mais imunda!— O homem pediu-te dinheiro?— Pior!E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo,

sem reticências, com as mesmas palavras cruas do outro — queassim, repetidas e avivadas pelos seus lábios, lhe descobriam moti-vos novos de humilhação e de nojo.

— Já por acaso sucedeu a alguém coisa mais horrível? —exclamou por fim, cruzando violentamente os braços diante do Ega,que se abatera no sofá, assombrado. — Podes tu conceber um casomais sórdido? E também mais burlesco? É para estalar o coração. Eé para rebentar a rir. Estupendo! Aí nesse sofá, aí onde tu estás, o

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homenzinho, muito amável, de flor ao peito, a dizer: «Olhe queaquela criatura não é minha mulher, é uma criatura que eu pago...»Compreendes isto bem? Aquele sujeito paga-a... Quanto é o beijo?Cem francos. Aí estão cem francos... É de morrer!

E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais,recontando tudo, sempre com as palavras de Castro Gomes, que eledeformava ainda numa brutalidade maior...

— Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrível, hem?Ega, que limpava pensativamente o vidro do monóculo, hesitou,

terminou por dizer que, considerando as coisas com superioridade,como homens do seu tempo e «do seu mundo», elas não ofereciamnem motivos de cólera, nem motivos de dor.

— Então não compreendes nada! — gritou Carlos. — Não per-cebes o meu caso!

Sim, sim, Ega compreendia claramente que era horrível paraum homem, no momento em que ia ligar com adoração o seu des-tino ao de uma mulher, saber que os outros a tinham tido a tantopor noite... Mas isso mesmo simplificava e amenizava as coisas. Oque fora um drama complicado tornava-se numa distracção bonan-çosa. Ficava Carlos, desde logo, aliviado do remorso de ter desorga-nizado uma família: já não tinha de se exilar, a esconder o seu erro,num buraco florido da Itália: já o não prendia a honra para semprea uma mulher a quem talvez não o prenderia para sempre o amor.Tudo isto, que diabo!, eram vantagens.

— E a dignidade dela! — exclamou Carlos.Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na ver-

dade grande, porque antes da visita de Castro Gomes já ela erauma mulher que foge do seu marido — o que, sem mesmo usar ter-mos austeros, nem é muito puro nem muito digno... Decerto, tudoisso era uma humilhação irritante — não superior todavia à de umhomem que tem uma Madona que contempla com religião,supondo-a de Rafael, e que descobre um dia que a tela divina foifabricada na Baía, por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas oresultado íntimo e social parecia-lhe ser este: Carlos até tiverauma bela amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconve-nientes uma bela amante...

— O que tu deves fazer, meu caro Carlos...— O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remetendo-lhe

o preço dos dois meses que dormi com ela...

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— Brutalidade romântica! Isso já vem na Dama das Camélias...Sobretudo é não ver com boa filosofia as nuances.

O outro atalhou, impaciente:— Bem, Ega, não falemos mais nisso... Eu estou horrivelmente

nervoso!... Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.Saía atirando a porta, quando Ega, agora tranquilo, disse,

erguendo-se muito lentamente do sofá:— O homenzinho foi para lá.Carlos voltou-se, com os olhos chamejantes:— Foi para os Olivais? Foi ter com ela?Sim, pelo menos mandara a tipóia à quinta do Craft. Ega, para

conhecer esse Sr. Castro Gomes, fora meter-se no cubículo doguarda-portão. E vira-o descer, acender um charuto... Era comefeito um desses rastaquouères que nesse infeliz Paris que tudotolera vêm ao Café de la Paix às duas horas tomar a sua groseille,tesos e embrutecidos... E fora o guarda-portão que lhe dissera que osujeito parecia muito alegre e mandara o cocheiro bater para osOlivais...

Carlos parecia aniquilado:— Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos.

Estou como tu dizias aqui há tempos: «Caiu-me a alma a umalatrina, preciso um banho por dentro!».

Ega murmurou melancolicamente:— Essa necessidade de banhos morais está-se tornando, com

efeito, tão frequente... Devia haver na cidade um estabelecimentopara eles.

Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folhabranca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha adata desse dia, depois: Minha senhora, numa letra que ele se esfor-çara por traçar bem firme e serena — e não achava outra palavra.Estava bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras,paga esplendidamente ultrajante das semanas que passara no seuleito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassíveis, que aferissem mais que o dinheiro: e não encontrava senão frases degrande cólera, revelando um grande amor.

Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhoradava-lhe uma saudade dilacerante por aquela a quem na vésperaainda dizia: minha adorada, pela mulher que se não chamava

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ainda Mac Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomável,superior à razão, entontecera e vencera. E o seu amor por essaMaria Eduarda, nobre e amante, que se transformara na MacGren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperadopor ser irrealizável como o que se tem por uma morta e que palpitamais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ela pudesse ressur-gir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afundara, outra vezMaria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais deli-cado a cercaria para a compensar das afeições domésticas que eladeixasse de merecer! Que veneração maior lhe consagraria — parasuprir o respeito que o mundo superficial e afectado lhe retirasse!E ela tinha tudo para reter amor e respeito — tinha a beleza, agraça, a inteligência, a alegria, a maternidade, a bondade, umincomparável gosto... E com todas estas qualidades doces e fortes —era apenas uma intrujona!

Mas porquê? porquê? Porque entrara ela nesta longa fraude,tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia atéao nome que usava!

Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intolerável. Seela mentia — onde havia então a verdade? Se ela o traía assim,com aqueles olhos claros, o universo podia bem ser todo umaimensa traição muda. Punha-se um molho de rosas num vaso, exa-lava-se dele a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, elaescondia um lamaçal! E para quê, para que mentira ela? Se, desdeo primeiro dia em que o vira, trémulo e rendido, a contemplar o seubordado como se contempla uma acção de santidade, lhe tivessedito que não era a esposa do Sr. Castro Gomes, mas só amante doSr. Castro Gomes, teria a sua paixão sido menos viva, menos pro-funda? Não era a estola do padre que dava beleza ao seu corpo evalor às suas carícias... Para que fora então essa mentira tenebrosae descarada que lhe fazia supor agora que eram imposturas os seusmesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com estelongo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira porum corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! Epor esta mulher, tarifada às horas como as caleches da Companhia,ele ia amargurar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seudestino, cortar a sua livre acção de homem!

Mas porquê? Porque fora esta farsa banal, arrastada por todosos palcos de ópera cómica, da cocotte que se finge senhora? Porque o

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fizera ela, com aquele falar honesto, o puro perfil e a doçura demãe? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico que ele, maislargamente lhe podia satisfazer o apetite mundano de toilettes, decarruagens... Sentia ela que Castro Gomes a ia abandonar, e queriater ao lado, aberta e pronta, outra bolsa rica? Então mais simplesteria sido dizer-lhe: «Eu sou livre, gosto de ti, toma-me livremente,como eu me dou.» Não! Havia ali alguma coisa secreta, tortuosa,impenetrável... O que daria por a conhecer!

E então, pouco a pouco, foi surgindo nele o desejo de ir aos Oli-vais.. . Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantementeatirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado numa insolência! Oque precisava, para sua plena tranquilidade, era arrancar, dofundo daquela turva alma, o segredo daquela torpe farsa... Só issoamansaria o seu incomparável tormento. Queria entrar outra vezna Toca, ver como era aquela outra mulher que se chamava MacGren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem violências, sem recri-minações, muito calmo, sorrindo! Só para que ela lhe dissesse qualfora a razão daquela mentira tão laboriosa, tão vã... Só para lheperguntar serenamente: «Minha rica senhora, para que foi todaesta intrujice?» E depois vê-la chorar... Sim, tinha esta ansiedadecheia de amor de a ver chorar. A agonia que ele sentira no salão corde musgo do Outono, enquanto o outro arrastava os rr, queria vê-larepetida nesse seio, onde ele até aí dormira tão docemente, esque-cido de tudo, e que era belo, tão divinamente belo!...

Bruscamente, decidido, deu um puxão à campainha. Baptistaapareceu, todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto,como armado e pronto a ser útil naquela crise que adivinhava...

— Baptista, corre ao Hotel Central e pergunta se já entrou o Sr.Castro Gomes!... Não, escuta... Põe-te à porta do Central, e esperaaté que entre aquele sujeito que aqui esteve... Não, é melhor pergun-tar! Enfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel. Eapenas estejas bem certo disso, volta aqui, à desfilada, numa tipóia...Um batedor seguro, que é para me levar depois aos Olivais.

Imediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um alívioimenso não ter de escrever a carta e achar as palavras acerbas quea deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque deduzentas libras, ao portador. Ele mesmo lho levaria... Oh! decertonão lho atirava romanticamente ao regaço... Deixá-lo-ia sobre amesa, sobrescritado a Madame Mac Gren... E de repente sentiu

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uma compaixão por ela. Via-se já, abrindo o envelope com duasgrandes lágrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E osseus próprios olhos se humedeceram.

Nesse momento Ega, de fora, perguntou se era importuno.— Entra! — gritou.E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o

outro, em silêncio também, foi encostar-se à janela sobre o jardim.— Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei — murmurou

Carlos por fim, parando junto da mesa.— Dá-lhe recados meus.Carlos sentara-se, tomara languidamente a pena: mas bem

depressa a arremessou: cruzou as mãos por detrás da cabeça, noespaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exausto.

— Sabes uma coisa que me parece certa? — disse de repente oEga da janela. — Quem escreveu a carta anónima ao Castro Gomesfoi o Dâmaso!

Carlos olhou para ele:— Achas?... Sim, talvez... Com efeito, quem havia de ser?— Não foi mais ninguém, menino. Foi o Dâmaso!Carlos então recordou o que lhe contara o Taveira — as alusões

misteriosas do Dâmaso a um escândalo que se estava armando,uma bala que ele devia receber na cabeça... O Dâmaso, portanto,tinha como certa a vinda do brasileiro, depois um duelo...

— É necessário esmagar esse infame! — exclamou Ega, subita-mente furioso. Não há segurança, não há paz na nossa vidaenquanto esse bandido viver!...

Carlos não respondeu. E o outro prosseguia, transtornado, játodo pálido, deixando transbordar ódios cada dia acumulados:

— Eu não o mato porque não tenho um pretexto!... Se tivesseum pretexto, uma insolência dele, um olhar atrevido, era meu,esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto nãopode ficar assim! Não pode! É necessário sangue... Vê tu que infâ-mia, uma carta anónima!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade,tudo exposto constantemente aos ataques do Sr. Dâmaso. Não podeser. Eu o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tem-lo tu,aproveita, e esmaga-o!

Carlos encolheu os ombros:— Merecia chicotadas, com efeito... Mas ele, realmente, só tem

sido velhaco comigo por causa das minhas relações com essa

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senhora; e como isso é um caso acabado, tudo o que se prende comele finda também. Parce sepultis... E no fim era ele que tinharazão, quando dizia que ela era uma intrujona...

Atirou uma punhada à mesa, ergueu-se, e com um sorrisoamargo, num tédio infinito de tudo:

— Era ele, era o Sr. Dâmaso Salcede que tinha razão!...Toda a sua cólera revivera, mais áspera, a esta ideia. Olhou o

relógio. Tinha pressa de a ver, tinha pressa de a injuriar!...— Escreveste-lhe? — perguntou o Ega.— Não, vou lá eu mesmo.Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado,

com os olhos no tapete.Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o Sr. Castro

Gomes apear-se no hotel e mandar descer as suas bagagens: — e atipóia, para levar o menino aos Olivais, esperava em baixo.

— Bem, adeus — disse Carlos, procurando atarantadamenteum par de luvas.

— Não jantas?— Não.Daí a pouco rodava pela estrada dos Olivais. Já se acendera o

gás. E inquieto, no estreito assento, acendendo nervosamente ciga-rettes que não fumava, sofria já a perturbação daquele encontrodifícil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por«minha senhora», se por «minha boa amiga», com uma superiorindiferença. E ao mesmo tempo sentia por ela uma compaixão inde-finida, que o amolecia. Diante destes seus modos regelados, via-a játoda pálida, a tremer, com os olhos cheios de água. E estas lágri-mas que apetecera, agora que estava tão perto de as ver correr,enchiam-no só de comoção e de dó... Durante um momento mesmopensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno escrever-lheduas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e secamente!Poderia não lhe mandar o cheque — afronta brutal de homem rico.Apesar de embusteira, era mulher, cheia de nervos, cheia de fanta-sia, e amara-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era maisdigno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter diri-gido, incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito — que se estavapronto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandonara porpaixão, estava decidido a não sacrificar nem os seus vagares a umamulher que lhe cedera por profissão. Era mais simples, era termi-

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nante... E depois não a via, não teria de suportar a tortura dasexplicações e das lágrimas.

Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar,reflectir um instante, mais calmamente, no silêncio das rodas. Ococheiro não ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo aestrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois àmaneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aqueles sítios onde tan-tas vezes passara com o coração em festa, quando a sua paixão estavaem flor, uma cólera nova voltava — menos contra a pessoa de MariaEduarda que contra essa mentira que fora obra dela, e que vinhaestragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essamentira que, agora, odiava — vendo-a, como uma coisa material e tan-gível, de um peso enorme, feia e cor de ferro, esmagando-lhe o coração.Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidável que estava entreeles, como um indestrutível bloco de granito, poderia abrir-lhe nova-mente os seus braços, se não com a mesma crença, pelo menos com omesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro — no fim queimportava? Não era por faltar aos beijos que esse homem lhe dera aconsagração de um padre, rosnada em latim — que a sua pele estavamais poluída por eles, ou tinha menos frescura. Mas havia a mentira,a mentira inicial, dita no primeiro dia em que fora à Rua de S. Fran-cisco, e que, como um fermento podre, ficava estragando tudo daí pordiante: doces conversas, silêncios, passeios, sestas no calor da quinta,murmúrios de beijos morrendo entre os cortinados cor de oiro... Tudomanchado, tudo contaminado por aquela mentira primeira que ela dis-sera sorrindo, com os seus tranquilos olhos límpidos...

Abafava. Ia descer a vidraça, a que faltava a correia — quandoa tipóia parou de repente, na estrada solitária... Abriu a portinhola.Uma mulher com xale pela cabeça falava ao cocheiro.

— Melanie!— Ah, monsieur!Carlos saltou precipitadamente. Era já próximo da quinta, na

volta da estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia,defronte de sebes de piteiras resguardando campos de olivedo. Car-los gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portão da quinta.E ficou ali, no escuro, com Melanie encolhida no seu xale.

Que estava ela ali a fazer? Melanie parecia transtornada: con-tou que vinha procurar à vila uma carruagem, porque a senhoraqueria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ela julgara a tipóia vazia.

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E apertava as mãos, dando graças, com um imenso alívio. Ah!que felicidade, que felicidade ter ele vindo!... A senhora estavaaflita, nem jantara, perdida de choro. O Sr. Castro Gomes apare-cera lá inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!

Então Carlos, caminhando rente do muro, interrogou Melanie.Como viera o outro? que dissera? como se despedira?… Melanienão ouvira nada. O Sr. Castro Gomes e a senhora tinham conver-sado sós no pavilhão japonês. À saída é que vira o Sr. CastroGomes dizer adeus a madame, muito sossegado, muito amável,rindo, falando de Niniche... A senhora, essa, parecia como morta,tão pálida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio.

Estavam próximo do portão da Toca. Carlos retrocedeu, respi-rando fortemente, com o chapéu na mão. E agora todo o seu orgu-lho se ia sumindo sob a violência da sua ansiedade. Queria saber! Eperguntava, deixava entrar Melanie nas coisas dolorosas da suapaixão... «Dites toujours, Melanie, dites!» Sabia a senhora que Cas-tro Gomes estivera com ele no Ramalhete, lhe confessara tudo?...

Claramente que sabia, por isso chorava — dizia Melanie. Ah,ela bem repetira à senhora que era melhor contar a verdade! Eramuito amiga dela, servia-a desde pequena, vira nascer a menina...E tinha-lho dito, até nos Olivais!

Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie«tinha-lho dito»! Assim ela e a criada discutiam ambas, acamarada-das, o embuste em que andava presa a sua vida! E aquelas revela-ções de Melanie, que suspirava com o xale sobre o rosto, abatiam osúltimos pedaços desse sonho que ele erguera tão alto, entre nuvensde oiro. Nada restava. Tudo jazia em estilhaços, no lodo imundo.

Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltara Lisboa. Mas para além daquele negro muro estava ela, perdidade choro, querendo morrer... E lentamente recomeçou a caminharpara o portão.

E agora, sem resistência nenhuma do orgulho, fazia perguntasmais íntimas a Melanie. Porque é que Maria Eduarda não lhe dis-sera a verdade?

Melanie encolheu os ombros. Não sabia: nem a senhora sabia!Estivera no Central como Madame Gomes; alugara a casa da Ruade S. Francisco como Madame Gomes; recebera-o como MadameGomes... E assim se deixara ir, insensivelmente, conversando comele, gostando dele, vindo para os Olivais... E depois era tarde, já

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não se atrevera a confessar, toda enterrada assim na mentira, commedo de um desgosto...

Mas, exclamava Carlos, nunca imaginara ela que fatalmentetudo se descobriria um dia?

— Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas — murmurou Mela-nie quase a chorar.

Depois eram outras curiosidades. Ela não esperava CastroGomes? não supunha que ele voltasse? não costumava falar dele?...

— Oh non, monsieur, oh non!Madame, desde que o senhor começara a ir todos os dias à Rua

de S. Francisco, considerara-se para sempre desligada do Sr. Cas-tro Gomes, nem falava nele, nem queria que se falasse... Antesdisso a menina chamava ao Sr. Castro Gomes petit ami. Agora nãolhe chamava nada. Tinham-lhe dito que já não havia petit ami...

— Ela escrevia-lhe ainda — dizia Carlos — eu sei que ela lheescrevia...

Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indiferentes. Asenhora levara o seu escrúpulo a ponto de que, desde que vierapara os Olivais, nunca mais gastara um ceitil das quantias que lhemandava o Sr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro con-servava-as intactas, entregara-lhas nessa tarde... Não se lembravaele de a ter encontrado uma manhã à porta do Montepio? Pois bem,fora lá, com uma amiga francesa, empenhar uma pulseira de bri-lhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas jóias; tinha jáoutras no prego.

Carlos parara, comovido. Mas então para que tinha ela men-tido?

— Je ne sais pas — dizia Melanie — je ne sais pas... Mais ellevous aime bien, allez!

Estavam defronte do portão. A tipóia esperava. E, ao fundo darua de acácias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do cor-redor, frouxa e triste. Carlos julgou mesmo ver a figura de MariaEduarda, embrulhada numa capa escura, de chapéu, atravessarnessa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que aflitaimpaciência seria a sua!

— Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! — murmurou Carlos.A rapariga correu. E ele, caminhando devagar sob as acácias, sen-

tia no sombrio silêncio as pancadas desordenadas do seu coração.Subiu os três degraus de pedra que lhe pareciam já de uma casa

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estranha. Dentro o corredor estava deserto, com a sua lâmpada mou-risca alumiando as panóplias de toiros... Ali ficou. Melanie, com o xalena mão, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...

Carlos entrou.Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, pálida, com toda a

alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lágrimas. E cor-reu para ele, arrebatou-lhe as mãos, sem poder falar, soluçando,tremendo toda.

Na sua terrível perturbação, Carlos achava só esta palavra,melancolicamente estúpida:

— Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...Ela pôde enfim balbuciar:— Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa

contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem.Ia ver-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrível...Mas escuta, não digas nada ainda, perdoa, que eu não tenho culpa!

De novo os soluços a sufocaram. E caiu ao canto do sofá, numchoro brusco e nervoso, que a sacudia toda, lhe fazia rolar sobre osombros os cabelos mal atados.

Carlos ficara diante dela, imóvel. O seu coração parecia paradode surpresa e de dúvida, sem força para desafogar. Apenas agorasentia quanto seria baixo e brutal deixar-lhe o cheque — que tinhaali na carteira e que o enchia de vergonha... Ela ergueu o rosto,todo molhado, murmurou com um grande esforço:

— Escuta-me!... Nem sei como hei-de dizer... Oh, são tantas coi-sas, são tantas coisas!... Tu não te vais já embora, senta-te,escuta...

Carlos puxou uma cadeira, lentamente.— Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por

quem és, tem pena, faz-me isso!Ele cedeu à suplicação humilde e enternecedora dos seus olhos

arrasados de água: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastadodela, numa desconsolação infinita. Então, muito baixo, enrouque-cida pelo choro, sem o olhar, e como num confessionário — Mariacomeçou a falar do seu passado, desmanchadamente, hesitando,balbuciando, entre grandes soluços que a afogavam, e pudoresamargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face aflita.

A culpa não fora dela! não fora dela! Ele devia ter perguntadoàquele homem que sabia toda a sua vida... Fora sua mãe... Era hor-

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roroso dizê-lo, mas fora por causa dela que conhecera e que fugiracom o primeiro homem, o outro, um irlandês... E tinha vivido comele quatro anos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e sóocupada da sua casa, que ele ia casar com ela! Mas morrera naguerra com os Alemães, na batalha de Saint-Privat. E ela ficara comRosa, com a mãe já doente, sem recursos, depois de vender tudo...Ao princípio trabalhara... Em Londres tinha procurado dar lições depiano... Tudo falhara, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado,vendo Rosa com fome! A pobre criança com fome! com fome! Ah, elenão podia perceber o que isto era!... Quase fora por caridade que astinham repatriado para Paris... E aí conhecera Castro Gomes. Erahorrível, mas que havia de ela fazer! Estava perdida...

Lentamente escorregara do sofá, caíra aos pés de Carlos. E elepermanecia imóvel, mudo, com o coração rasgado por angústias dife-rentes: era uma compaixão trémula por todas aquelas misérias sofri-das, dor de mãe, trabalho procurado, fome, que lha tornavam confu-samente mais querida; e era horror desse outro homem, o irlandês,que surgia agora, e que lha tornava de repente mais maculada...

Ela continuava falando de Castro Gomes. Vivera três anos comele, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. Oseu desejo era estar quieta em sua casa. Ele é que a forçava aandar em ceias, em noitadas...

E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos,que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...

— Oh! não, não me mandes embora! — gritou ela, prendendo-sea ele ansiosamente. — Eu sei que não mereço nada! Sou uma des-graçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, nãocompreendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas paramim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...

Não! ele não queria olhar. Temia aquelas lágrimas, o rostocheio de agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joe-lhos, já tudo nele começava a oscilar — orgulhos, despeitos, digni-dade, ciúme... E então, sem saber, a seu pesar, as suas mãos aper-taram as dela. Ela cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas,arrebatadamente: e ansiosa implorava do fundo da sua miséria uminstante de misericórdia.

— Oh! dize que me perdoas! Tu és tão bom! Uma palavra só...Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize pri-meiro... Olha ao menos para mim como dantes, uma só vez!...

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E eram agora os seus lábios que procuravam os dele. Então afraqueza em que sentia afundar-se todo o seu ser encheu Carlos decólera, contra si e contra ela. Sacudiu-a brutalmente, gritou:

— Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Paraque foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo!Para que mentiste tu?

Largara-a, prostrada no chão. E, de pé, deixava cair sobre ela asua queixa desesperada:

— É a tua mentira que nos separa, a tua horrível mentira, atua mentira somente!

Ela ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pali-dez de desmaio.

— Mas eu queria dizer-to — murmurou muito baixo, muito que-brada diante dele, deixando cair os braços. — Eu queria dizer-to... Nãote lembras, naquele dia em que tu vieste tarde, quando eu falei dacasa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas demim? Eu disse-te logo: «Há uma coisa que te quero contar...» Tu nemme deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua,longe de tudo... E disseste então que havíamos de ir, com Rosa, ser feli-zes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que meveio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, maistarde, anos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher euera, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: «Agora, se que-res, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma ten-tação, não resisti... Se tu não falasses em fugirmos, tinha-te ditotudo... Mas mal falaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grandeesperança, nem sei quê! E além disso adiava aquela horrível confissão!Enfim, nem posso explicar, era como o Céu que se abria, via-me con-tigo numa casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrível, nomomento em que tu me querias tanto, ir dizer-te: «Não faças tudo issopor mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho...» Quete hei-de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Eratão bom ser assim estimada... Enfim, foi um mal, foi um grande mal...E agora aí está, vejo-me perdida, tudo acabou!

Atirou-se para o chão, como uma criatura vencida e finda,escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo dasala, voltando bruscamente até junto dela, tinha só a mesma recri-minação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os solu-ços dela lhe respondiam.

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— Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivais,quando sabias que tu eras tudo para mim...?

Ela ergueu a cabeça, fatigada:— Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que

fosse de outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te aentrar por aí dentro de chapéu na cabeça, a perder a afeição àpequena, a querer pagar as despesas da casa... Depois tinha remor-sos, ia adiando. Dizia: «Hoje não, um dia só mais de felicidade,amanhã será...» E assim ia indo! Enfim, nem eu sei, um horror!

Houve um silêncio. E então Carlos sentiu à porta Niniche, quequeria entrar e gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadelinhacorreu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enro-dilhada a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta:depois ficou plantada junto dela, como a guardá-la, desconfiada,seguindo com os seus vivos olhos de azeviche Carlos, que recome-çara a passear sombriamente.

Um ai mais longo e mais triste de Maria fê-lo parar. Esteve ummomento olhando para aquela dor humilhada... Todo abalado, comos lábios a tremer, murmurou:

— Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditaragora nunca mais? Há esta mentira horrível sempre entre nós aseparar-nos! Não teria um único dia de confiança e de paz...

— Nunca te menti senão numa coisa, e por amor de ti! — disseela gravemente do fundo da sua prostração.

— Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casa-mento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais tepoderia acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quase quenem acredito no motivo das tuas lágrimas?

Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos derepente secos rebrilharam, revoltados e largos, no mármore da suapalidez.

— Que queres tu dizer? Que estas lágrimas têm outro motivo,estas súplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para nãote perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...

Ele balbuciou:— Não, não! Não é isso!— E eu? — exclamou ela, caminhando para ele, dominando-o,

magnífica e com esplendor de verdade na face. — E eu? porquehei-de eu acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é

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que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher de outro, onome, o requinte do adultério, as toilettes?... Ou era eu própria, omeu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma,olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é omesmo... Só uma coisa é diferente: a minha paixão! Essa é maior,desgraçadamente, infinitamente maior.

— Oh! se isso fosse verdade! — gritou Carlos, apertando as mãos.Num instante Maria estava caída a seus pés, com os braços

abertos para ele.— Juro-te por alma da minha filha, por alma de Rosa! Amo-te,

adoro-te doidamente, absurdamente, até à morte!Carlos tremia. Todo o seu ser pendia para ela; e era um impulso

irresistível de se deixar cair sobre aquele seio que arfava a seuspés, ainda que ele fosse o abismo da sua vida inteira... Mas outravez a ideia da mentira passou, regeladora. E afastou-se dela,levando os punhos à cabeça, num desespero, revoltado contraaquela coisa pequenina e indestrutível que não queria sumir-se, eque se interpunha como uma barra de ferro entre ele e a sua felici-dade divina!

Ela ficara ajoelhada, imóvel, com os olhos esgazeados para otapete. Depois, no silêncio estofado da sala, a sua voz ergueu-sedolente e trémula:

— Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se aca-bou!... É melhor que te vás embora... Ninguém mais me torna aacreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguém mais nomundo... Amanhã saio daqui, deixo-te tudo... Hás-de-me dar tempopara arranjar... Depois, que hei-de fazer, vou-me embora!

E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados,perdida de choro.

Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro,para ali caída e abandonada, parecia já uma pobre criatura arre-messada para fora de todo o lar, sozinha a um canto, entre a incle-mência do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidadedoméstica, tudo nele foi levado como por um grande vento de pie-dade. Viu só, ofuscando todas as fragilidades, a sua beleza, a suador, a sua alma sublimemente amante. Um delírio generoso, degrandiosa bondade, misturou-se à sua paixão. E, debruçando-se,disse-lhe baixo, com os braços abertos:

— Maria, queres casar comigo?

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Ela ergueu a cabeça, sem compreender, com os olhos desvaira-dos. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para afechar dentro deles outra vez, como sua e para sempre... Entãolevantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cair sobre o peito dele,cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos tonta, num deslumbra-mento:

— Casar contigo, contigo? Oh! Carlos... E viver sempre, semprecontigo?... Oh! meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, eadorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa também... Não, não casescomigo, não é possível, não valho nada! Mas se tu queres, porquenão?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! Ehás-de ser nosso amigo, meu e dela, que não temos ninguém nomundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...

Empalideceu, escorregando pesadamente entre os braços dele,desmaiada: e os seus longos cabelos desprendidos rojavam o chão,tocados pela luz de tons de oiro.

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MARIA Eduarda e Carlos — que ficara essa noite nos Oli-vais, na sua casinhola — acabavam de almoçar. O Domingos ser-vira o café, e antes de sair deixara ao lado de Carlos a caixa decigarettes e o Figaro. As duas janelas estavam abertas. Nem umafolha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecidaainda por um dobre lento de sinos, que morria ao longe nos campos.No banco de cortiça, sob as árvores, Miss Sara costurava preguiço-samente; Rosa, ao lado, brincava na relva. E Carlos, que viera,numa intimidade conjugal, com uma simples camisa de seda e umjaquetão de flanela, chegou então a cadeira para junto de Maria,tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anéis, numa lenta carícia:

— Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim, quando que-res partir?

Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mos-trara o desejo enternecido de não alterar o plano da Itália e de umninho romântico entre as flores de Isola Bela: somente agora nãoiam esconder a inquietação de uma felicidade culpada, mas gozar orepouso de uma felicidade legítima. E depois de todas as incertezase tormentos que o tinham agitado, desde o dia em que cruzaraMaria Eduarda no Aterro, Carlos anelava, também, pelo momentode se instalar enfim no conforto de um amor sem dúvidas e semsobressaltos.

— Eu por mim abalava amanhã. Estou sôfrego de paz. Estouaté sôfrego de preguiça!... Mas tu, dize, quando queres?

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Capítulo XV

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Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido eapaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa carícia de Car-los ainda prendia, chamou Rosa através da janela.

— Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andamaqui uns pardais que ainda não almoçaram...

— Não, vem cá.Quando ela apareceu à porta, toda de branco, corada, com uma

das últimas rosas de Verão metida no cinto — Maria qui-la maisperto, entre eles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe afita solta do cabelo, perguntou, muito séria, muito comovida, se elagostaria que Carlos viesse viver com elas de todo e ficar ali naToca... Os olhos da pequena encheram-se de surpresa e de riso:

— O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda anoite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?

Ambos murmuraram: «Sim.»Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que

Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...— Escuta — disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a

sobre os joelhos. — E gostavas que ele fosse como o papá, e queandasse sempre connosco, e que lhe obedecêssemos ambas, e quegostássemos muito dele?

Rosa ergueu para a mãe uma facezinha compenetrada, ondetodo o sorriso se apagara.

— Mas eu não posso gostar mais dele do que gosto!...Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes humedecia os

olhos. — E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa,debruçando-se sobre ela, beijou de leve a testa de Carlos. Apequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãe. Epareceu compreender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veioencostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

— Queres que te chame papá, só a ti?— Só a mim — disse ele, fechando-a toda nos braços. E assim obtiveram o consentimento de Rosa — que fugiu, ati-

rando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardais.Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e

contemplando-a profundamente, até à alma, murmurou num enlevo:— És perfeita!Ela desprendeu-se, com melancolia, daquela adoração que a

perturbava.

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— Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infeliz-mente. Vamos para o nosso quiosque... Tu não tens nada que fazer,não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter contigo. Leva as tuascigarettes.

Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçuravelada do céu cinzento... E a vida pareceu-lhe adorável, de umapoesia fina e triste, assim envolta naquela névoa macia onde nadaresplandecia e nada cantava, e que tão favorável era para que doiscorações, desinteressados do mundo e em desarmonia com ele, seabandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntosna mudez e na sombra.

— Vamos ter chuva, tio André — disse ele, passando junto dovelho jardineiro que aparava o buxo.

O tio André, atarantado, arrancou o chapéu. Ah! uma gota deágua era bem necessária, depois da estiagem! O torrãozinho jáestava com sede! E em casa todos bons? A senhora? A menina?

— Tudo bom, tio André, obrigado.E no seu desejo de ver todos em torno de si felizes como ele e

como a terra sequiosa que ia ser consolada — Carlos meteu umalibra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fecharos dedos sobre aquele oiro extraordinário que reluzia.

Quando Maria entrou no quiosque, trazia um cofre de sândalo.Atirou-o para o divã: fez sentar Carlos ao lado, bem confortável,entre almofadas: acendeu-lhe uma cigarette. Depois agachou-seaos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.

— Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga água econhaque?... Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...

Era toda a sua existência que ela desejava contar. Pensara mesmoem lha escrever numa carta interminável, como nos romances. Masdecidira antes tagarelar ali uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.

— Estás bem, não estás?Carlos esperava, comovido. Sabia que aqueles lábios amados iam

fazer revelações pungentes para o seu coração — e amargas para oseu orgulho. Mas a confidência da sua vida completava a posse dasua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado, senti-la-iamais sua inteiramente. E, no fundo, tinha uma curiosidade insaciá-vel dessas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.

— Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Masagora dize, conta... Onde nasceste tu, por fim?

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Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos tempos decriança, quase nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobrezae a sua grande beleza. Tivera uma irmãzinha que morrera de doisanos e que se chamava Heloísa. A mamã, mais tarde, quando elaera já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; edizia sempre que remexer a memória das coisas antigas prejudi-cava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Vienaapenas recordava confusamente largos passeios de árvores, milita-res vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde sedançava: às vezes durante tempos ela ficava lá só com o avô, umvelhinho triste e tímido, metido pelos cantos, que lhe contava histó-rias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-sesomente de ter atravessado um grande rumor de ruas, num dia dechuva, embrulhada em peles, sobre os joelhos de um escudeiro. Assuas primeiras memórias mais nítidas datavam de Paris; a mamã,já viúva, andava de luto pelo avô; e ela tinha uma aia italiana quea levava todas as manhãs, com um arco e com uma péla, brincaraos Campos Elísios. À noite costumava ver a mamã decotada, numquarto cheio de cetins e de luzes; e um homem loiro, um poucobrusco, que fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vezem quando uma boneca, e chamava-lhe Mademoiselle Triste Coeurpor causa do seu arzinho sisudo. Enfim a mamã metera-a num con-vento ao pé de Tours — porque nessa idade, apesar de cantar já aopiano as valsas da Belle Hélène, ainda não sabia soletrar. Fora nosjardins do convento, onde havia lindos lilases, que a mamã se sepa-rara dela numa paixão de lágrimas; e ao lado esperava, para a con-solar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, aquem a Madre Superiora falava com veneração.

A mamã ao princípio vinha vê-la todos os meses, demorando-seem Tours dois, três dias; trazia-lhe uma profusão de presentes,bonecas, bombons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não per-mitia usar a regra severa do convento. Davam então passeios decarruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre oficiais acavalo, que escoltavam a caleche — e tratavam a mamã por tu. Noconvento, as mestras, a Madre Superiora, não gostavam destas saí-das — nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotoscom as suas risadas e o ruído das suas sedas; ao mesmo tempo pare-ciam temê-la; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã eramuito amiga do general que comandava em Tours, e visitava o

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bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinhaespecial na face e aludia risonhamente à son excellente mère. Depoisa mamã começou a aparecer menos em Tours. Esteve um ano longe,quase sem escrever, viajando na Alemanha; voltou um dia, magra ecoberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ela a chorar.

Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, maisligeira, com dois grandes galgos brancos, anunciando uma romagempoética à Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ela tinha entãoquase dezasseis anos: pela sua aplicação, os seus modos doces e gra-ves, ganhara a afeição da Madre Superiora — que às vezes,olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabelo caído em duas tran-ças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempreao seu lado. Le monde, dizia ela, ne vous sera bon, à rien, monenfant!... Um dia, porém, apareceu para a levar para Paris, para amamã, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracóis bran-cos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.

O que ela chorara ao deixar o convento! Mais choraria se sou-besse o que ia encontrar em Paris!

A casa da mamã, no Parque Monceaux, era na realidade umacasa de jogo — mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeirostinham meias de seda; os convidados, com grandes nomes no Nobi-liário de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos dis-cursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como umadistracção mais picante. Ela recolhia sempre ao seu quarto às dezhoras: Madame de Chavigny, que ficara como sua dama de compa-nhia, ia com ela cedo ao Bois num coupé escuro de douairière.Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. Apobre mamã caíra sob o jugo de um Mr. de Trevernnes, homemperigoso pela sua sedução pessoal e por uma desoladora falta dehonra e de senso. A casa descaiu rapidamente numa boémia maldourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com os seus hábitossaudáveis do convento, encontrava paletós de homens por cima dossofás: no mármore das consoles restavam pontas de charuto, entrenódoas de champanhe; e nalgum quarto mais retirado ainda tinhao dinheiro de um bacará talhado à claridade do sol. Depois, umanoite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandadabrusca na escada: veio encontrar a mamã estirada no tapete, des-maiada; ela dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lágrimas,«que tinha havido uma desgraça»...

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Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin.Aí começou a aparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eramvalacos de grandes bigodes, peruanos com diamantes falsos, e con-des romanos que escondiam para dentro das mangas os punhosenxovalhados... Por vezes, entre esta malta, vinha algum gentle-man — que não tirava o paletó, como num café-concerto. Um des-ses foi um irlandês, muito moço, Mac Gren... Madame de Chavignydeixara-as desde que faltara o coupé severo, acolchoado de cetim; eela, só com a mãe, insensivelmente, fatalmente, fora-se misturandoa essa vida tresnoitada de grogues e de bacará.

A mamã chamava a Mac Gren o «bebé». Era com efeito umacriança estouvada e feliz. Namorara-se dela logo com o ardor, a efu-são, o ímpeto de um irlandês; e prometeu-lhe fazê-la sua esposaapenas se emancipasse — porque Mac Gren, menor ainda, viviasobretudo das liberalidades de uma avó excêntrica e rica que o ado-rava, e que habitava a Provença numa vasta quinta onde tinhaferas em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir comele, desesperado de a ver entre aqueles valacos que cheiravam agenebra. O seu desejo era levá-la para Fontainebleau, para um cot-tage com trepadeiras de que falava sempre, e esperar aí tranquila-mente a maioridade, que lhe traria duas mil libras de renda.Decerto, era uma situação falsa: mas preferível a permanecernaquele meio, depravado e brutal, onde ela a cada instantecorava... A esse tempo a mamã parecia ir perdendo todo o senso,desarranjada de nervos, quase irresponsável. As dificuldades cres-centes estonteavam-na; brigava com as criadas; bebia champanhepour s’étourdir. Para satisfazer as exigências de Mr. de Trevernnes,empenhara as suas jóias, e quase todos os dias chorava com ciúmesdele. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram de enfardelarà pressa roupa num saco, e ir dormir a um hotel. E, pior, pior quetudo, Mr. de Trevernnes começava a olhar para ela de um modo quea assustava...

— Minha pobre Maria! — murmurou Carlos, pálido, agarrando-lheas mãos.

Ela permaneceu um momento sufocada, com o rosto caído nosjoelhos dele. Depois, limpando as lágrimas que a enevoavam:

— Aí estão as cartas de Mac Gren, nesse cofre... Tenho-as guar-dado sempre para me justificar a mim mesma, se me é possível...Pede-me em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua

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esposa; jura que, apenas juntos, iremos ajoelhar-nos diante daavó, obter a sua indulgência... Mil promessas! E era sincero... Quequeres que te diga? A mamã, uma manhã, partiu com uma súciapara Baden. Fiquei em Paris só, num hotel... Tinha um palpite,um terror que Trevernnes aparecia... E eu só! Estava tão transtor-nada que pensei em comprar um revólver... Mas quem veio foi MacGren.

E partira com ele, sem precipitação, como sua esposa, levandotodas as suas malas. A mamã, de volta de Baden, correu a Fontaine-bleau, desvairada e trágica, amaldiçoando Mac Gren, ameaçando-ocom a prisão de Mazas, querendo esbofeteá-lo; depois rompeu a cho-rar. Mac Gren, como um bebé, agarrou-se a ela aos beijos, chorandotambém. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração,já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma».Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada deBaden», já com o plano de vir instalar-se no cottage, viver juntodeles numa felicidade calma e nobre de avozinha... Era em Maio;Mac Gren, à noite, deitou um fogo preso no jardim.

Começou um ano quieto e fácil. O seu único desejo era que amamã vivesse com eles sossegadamente. Diante das suas súplicas,ela ficava pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergu-lhava no torvelinho de Paris, donde ressurgia uma manhã, numfiacre, estremunhada e aflita, com uma rica peliça sobre uma velhasaia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a suaansiedade desde então fora legitimar a sua união. Mas Mac Grenadiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeitobebé! Entretinha as manhãs a caçar pássaros com visco! E aomesmo tempo terrivelmente teimoso: ela pouco a pouco perdera-lhetodo o respeito. No começo da Primavera a mamã, um dia, apare-ceu em Fontainebleau com as suas malas, sucumbida, enojada davida. Rompera enfim com Trevernnes. Mas quase imediatamentese consolou: e começou daí a adorar Mac Gren com uma tão largaefusão de carícias, e achando-o tão lindo, que era às vezes embara-çadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de conhaque,jogando o besigue.

De repente rebentou a guerra com a Prússia. Mac Gren, entu-siasmado, e apesar das súplicas delas, correra a alistar-se no bata-lhão de zuavos de Charette; a avó, de resto, aprovara este rasgo deamor pela França, e fizera-lhe, numa carta em verso, em que cele-

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brava Joana d’Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempoRosa teve o garrotilho. Ela, sem lhe largar o leito, mal atendia àsnotícias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras bata-lhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe noquarto, estonteada, em camisa; o exército capitulara em Sédan, oimperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!»,dizia a mamã espavorida. Ela veio a Paris procurar notícias de MacGren; na Rue Royale teve de se refugiar num portão, diante dotumulto de um povo em delírio, aclamando, cantando a Marselhesa,em torno de uma caleche onde ia um homem, pálido como cera, comum cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado,disse-lhe que o povo fora buscar Rochefort à prisão e que estavaproclamada a República.

Nada soubera de Mac Gren. Começaram então dias de infinitosobressalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã cau-sava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada numa cadeira,murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E pareciana verdade o fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regi-mentos presos, apinhados em vagões de gado, internados a todo ovapor para os presídios da Alemanha; os Prussianos marchandosobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duroInverno começava; e com o que venderam à pressa, com o dinheiroque Mac Gren deixara, partiram para Londres.

Fora uma exigência da mamã. E em Londres ela, desorientadana enorme e estranha cidade, doente também, deixara-se levarpelas tontas ideias da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muitocara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã falava emorganizar ali o centro de resistência dos bonapartistas refugiados;no fundo, a desgraçada pensava em criar uma casa de jogo em Lon-dres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem império,não jogavam já o bacará. E elas em breve, sem rendimentos, gas-tando sempre, tinham-se achado com aquela dispendiosa casa, trêscriados, contas colossais e uma nota de cinco libras no fundo deuma gaveta. E Mac Gren metido dentro de Paris, com meio milhãode prussianos em redor. Foi necessário vender todas as jóias, vesti-dos, até as peliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, trêsquartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a suasuja, solitária tristeza; uma criadita única, enfarruscada como umtrapo; alguns carvões húmidos fumegando mal na chaminé; e para

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jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim fal-tara mesmo o escasso xelim para pagar o lodging. A mamã não saíado catre, doente, sucumbida, chorando. Ela às vezes, ao anoitecer,escondida num water-proff, levava ao prego embrulhos de roupa(até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não faltasse aRosa a sua xícara de leite. As cartas que a mamã escrevia a algunsantigos companheiros de ceias na Maison d’Or ficavam sem res-posta: outras traziam, embrulhada num bocado de papel, algumameia libra que tinha o pavoroso sabor de uma esmola. Uma noite,um sábado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de ren-das da mamã, perdera-se, errara na vasta Londres numa trevaamarelada, a tiritar de frio, quase com fome, perseguida por doisbrutos que empestavam a álcool. Para lhes fugir atirou-se paradentro de um cab que a levou a casa. Mas não tinha um pennypara pagar ao cocheiro; e a patroa roncava no seu cacifro, bêbeda.O homem resmungou; ela, sucumbida, ali mesmo na porta rompeua chorar. Então o cocheiro desceu da almofada, comovido,ofereceu-se para a levar de graça ao prego, onde ajustariam as suascontas. Foi; o pobre homem só aceitou um xelim; até mesmosupondo-a francesa grunhiu blasfémias contra os Prussianos, e tei-mou em lhe oferecer uma bebida.

Ela no entanto procurava uma ocupação qualquer — costura,bordados, traduções, cópias de manuscritos... Não achava nada.Naquele duro Inverno o trabalho escasseava em Londres; surgirauma multidão de franceses, pobres como ela, lutando pelo pão... Amamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrívelque as suas lágrimas — eram as suas alusões constantes à facili-dade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se énova e se é bonita.

— Que te parece esta vida, meu amor? — exclamou ela, aper-tando as mãos amargamente.

Carlos beijou-a em silêncio, com os olhos humedecidos.— Enfim tudo passou — continuou Maria Eduarda. — Fez-se a

paz, o cerco acabou. Paris estava de novo aberto... Somente a difi-culdade era voltar.

— Como voltaste?Um dia, por acaso, em Regent Street, encontrara um amigo de

Mac Gren, outro irlandês, que muitas vezes jantara com eles emFontainebleau. Veio vê-las ao Soho; diante daquela miséria, do bule

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de chá aguado, os ossos de carneiro requentado sobre três brasasmortas, começou, como bom irlandês, por acusar o governo de Ingla-terra e jurar uma desforra de sangue. Depois ofereceu, com os beiçosjá a tremer, toda a sua dedicação. O pobre rapaz batia também olajedo numa luta tormentosa pela vida. Mas era irlandês; e partiulogo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar,através de Londres, o pouco que elas necessitavam para recolher aFrança. Com efeito, apareceu nessa mesma noite, derreado e triun-fante, brandindo três notas de banco e uma garrafa de champanhe. Amamã ao ver, depois de tantos meses de chá preto, a garrafa de Clicquotencarapuçada de ouro — quase desmaiou, de enternecimento. Enfar-delaram os trapos. Ao partirem, na estação de Charing Cross, oirlandês levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes,disse-lhe que Mac Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat.

— Para que te hei-de contar o resto? Em Paris recomecei a procu-rar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quase imediata-mente veio a Comuna... Podes acreditar que muitas vezes tivemosfome. Mas enfim já não era Londres, nem o Inverno, nem o exílio. Está-vamos em Paris, sofríamos de companhia com amigos de outros tem-pos. Já não parecia tão terrível... Com todas estas privações, a pobreRosa começava a definhar... Era um suplício vê-la perder as cores, tris-tinha, mal vestida, metida numa trapeira... A mamã já se queixava dadoença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, malpago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não morrer absolu-tamente de necessidade... Principiei a adoecer, de ansiedade, de deses-pero. Lutei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outroregime, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casade uma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra,nem com os Prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o restosabe-lo... Nem eu me lembro... Fui levada... Via às vezes Rosa, coitadi-nha, embrulhada num xale, muito quietinha ao seu canto, depois derapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...

Não pôde continuar; rompeu a chorar, caída sobre os joelhos deCarlos. E ele, na sua emoção, só lhe podia dizer, passando-lhe asmãos trémulas pelos cabelos, que a havia de desforrar bem detodas as misérias passadas...

— Escuta ainda — murmurou ela, limpando as lágrimas. —Há só uma coisa mais que te quero dizer. E é a santa verdade,juro-te pela alma de Rosa! É que nestas duas relações que tive, o

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meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre,sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te querodizer outra coisa...

Um momento hesitou, coberta de rubor. Passara os braços emtorno de Carlos, pendurada toda dele, com os olhos mergulhadosnos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absolutaconfissão de todo o seu ser:

— Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceusempre frio, frio como mármore...

Ele estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus lábios ficaramcolados muito tempo, em silêncio, completando, numa emoção novae quase virginal, a comunhão perfeita das suas almas.

Daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela estrada dosOlivais, em caminho da Toca.

Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim con-tando ao Ega o impulso de paixão que o lançara de novo e parasempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absolutaque o prendia ao Ega, revelara-lhe mesmo miudamente a históriadela, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propôsque fossem comer as sopas à Toca, Ega deu uma volta pelo quarto,hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo paletó,murmurando, como durante as longas confidências de Carlos: «Éprodigioso!... Que estranha coisa, a vida!»

E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos falavaainda de Maria, da vida na Toca, deixando escapar do coraçãomuito cheio o interminável cântico da sua felicidade.

— É facto, Egazinho, conheço quase a felicidade perfeita!— E cá na Toca ainda ninguém sabe nada?Ninguém — a não ser Melanie, a confidente — suspeitava a

profunda alteração que se fizera nas suas relações: e tinham assen-tado que Miss Sara e o Domingos, primeiras testemunhas da suaamizade, seriam regiamente recompensados e despedidos quandoem fins de Outubro eles partissem para Itália.

— E ides então casar a Roma?...— Sim... Em qualquer lugar onde haja um altar e uma estola.

Isso não falta em Itália... E é então, Ega, que reaparece o espinhode toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quase». O terrívelespinho, o avô!

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— É verdade, o velho Afonso. Tu não tens ideia como lhe hás-defazer conhecer esse caso?

Carlos não tinha ideia nenhuma. Sentia só que lhe faltavaabsolutamente a coragem de dizer ao avô: «Esta mulher, com quemvou casar, teve na sua vida estes erros...» E além disso, já reflec-tira, era inútil. O avô nunca compreenderia os motivos complica-dos, fatais, iniludíveis, que tinham arrastado Maria. Se lhos con-tasse miudamente — o avô veria ali um romance confuso e frágil,antipático à sua natureza forte e cândida. A fealdade das culpasferi-lo-ia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com sereni-dade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso, de umcarácter nobre apanhado dentro de uma implacável rede de fatali-dades, seria necessário um espírito mais dúctil, mais mundano queo do avô... O velho Afonso era um bloco de granito: não se podiamesperar dele as subtis discriminações de um casuísta moderno. Daexistência de Maria só veria o facto tangível: caíra sucessivamentenos braços de dois homens. E daí decorreria toda a sua atitude dechefe de família. Para que havia ele, pois, de fazer ao velho umaconfissão, que necessariamente originaria um conflito de sentimen-tos e uma irreparável separação doméstica?...

— Pois não te parece, Ega?— Fala mais baixo, olha o cocheiro.— Não percebe bem o português, sobretudo o nosso estilo... Pois

não te parece?Ega raspava fósforos na sola para acender o charuto. E res-

mungava:— Sim, o velho Afonso é granítico...Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em

esconder ao avô o passado de Maria e fazer-lhe conhecer a pessoade Maria. Casavam secretamente em Itália. Regressavam: ela paraa Rua de S. Francisco, ele filialmente para o Ramalhete. DepoisCarlos levava o avô a casa da sua boa amiga, que conhecera em Itá-lia, Madame de Mac Gren. Para o prender logo, lá estavam osencantos de Maria, todas as graças de um interior delicado e sério,jantarinhos perfeitos, ideias justas, Chopin, Beethoven, etc. E,para completar a conquista de quem tão enternecidamente adoravacrianças, lá estava Rosa... Enfim, quando o avô estivesse namoradode Maria, da pequena, de tudo — ele, uma manhã, dizia-lhe fran-camente: «Esta criatura superior e adorável teve uma queda no seu

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passado; mas eu casei com ela; e, sendo tal como é, não fiz bem,apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô,perante esta terrível irremediabilidade do facto consumado, comtoda a sua indulgência de velho enternecido a defender Maria —seria o primeiro a pensar que, se esse casamento não era o melhorsegundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os inte-resses do coração...

— Pois não te parece, Ega?Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Car-

los, em resumo, adoptara para com o avô a complicada combinaçãoque Maria Eduarda tentara para com ele — e imitava sem o sentiros subtis raciocínios dela.

— E acabou-se — continuava Carlos. — Se ele na sua indulgên-cia aceitar tudo, bravo!, dá-se uma grande festa no Ramalhete...Senão, foi-se! Passaremos a viver cada um para seu lado, fazendoambos prevalecer a superioridade de duas coisas excelentes: o avôas tradições do sangue, eu os direitos do coração.

E, vendo o Ega ainda silencioso:— Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de ideias, homem!O outro sacudiu a cabeça, como despertando.— Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que

diabo, nós somos dois homens falando como homens!... Então aquiestá: teu avô tem quase oitenta anos, tu tens vinte e sete ou o querque seja... É doloroso dizê-lo, ninguém o diz com mais dor que eu,mas teu avô há-de morrer... Pois bem, espera até lá. Não cases.Supõe que ela tem um pai muito velho, teimoso e caturra, quedetesta o Sr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera: conti-nua a vir à Toca, na tipóia do Mulato; e deixa o teu avô acabar asua velhice calma, sem desilusões e sem desgostos...

Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da vitória.Nunca, nesses dias de inquietação, lhe acudira ideia tão sensata,tão fácil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que pouparao pobre avô toda a dor?... Maria, decerto, como mulher, estavadesejando, ansiosamente, a conversão do amante no marido, pelolaço de estola que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas elamesma preferia uma consagração legal — que não fosse assim pre-cipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, compreende-ria bem a obrigação suprema de não mortificar aquele santo velho.De resto, não conhecia ela a sua lealdade sólida e pura como um

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diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavamcasados, não diante do sacrário e nos registos da sacristia masdiante da honra e na inabalável comunhão dos seus corações...

— Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. — Tensimensamente razão! Essa ideia é genial! Devo esperar... Eenquanto espero?...

— Como, enquanto esperas? — acudiu Ega, rindo. — Quediabo! Isso não é comigo!

E mais sério:— Enquanto esperas, tens esse metal vil que faz a existência

nobre. Instalas tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aquinos Olivais ou noutro sítio, com o gosto, o conforto e a dignidadeque competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede quefaçais essa viagem nupcial à Itália... Voltas, continuas a fumar atua cigarette e a deixar-te ir. Este é o bom senso: é assim que pen-saria o grande Sancho Pança... Que diabo tens tu naquele embru-lho que cheira tão bem?

— Um ananás... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. Éuma ideia!

Uma ideia! E a mais grata ao temperamento de Carlos. Paraque iria com efeito enredar-se numa meada de amarguras domésti-cas, por um excesso de cavalheirismo romântico? Maria confiavanele; era rico, era moço; o mundo abria-se ante eles, fácil e cheio deindulgências. Não tinha senão a deixar-se ir.

— Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio desenso e de oportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a insta-lação da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudoque o avô seja feliz... E para celebrar o advento desta ideia, Deusqueira que Maria nos tenha um bom jantar!

Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiroencontro com Maria Eduarda. Incomodava-o esse enleio, esse ruborque ela não poderia ocultar — certa que, como confidente de Car-los, ele conhecia a sua vida, as suas misérias, as suas relações comCastro Gomes. Por isso hesitara em vir à Toca. Mas também, nãoaparecer mais a Maria Eduarda, seria marcar com um relevo quaseofensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por issodecidira «dar o mergulho de uma vez». Quem, senão ele, deveria sero mais apressado em estender a mão à noiva de Carlos?... Alémdisso, tinha uma infinita curiosidade de ver no seu interior, à sua

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mesa, essa criatura tão bela, com a sua graça nobre de deusamoderna! Mas saltou da vitória muito embaraçado.

Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bor-dava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobressalto, coroutoda, com efeito, ao avistar o Ega, que procurava atarantadamenteo monóculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e tímido: masCarlos, alegremente, desembrulhara o ananás — e na admiraçãodele todo o constrangimento se dissipou.

— Oh! é magnífico!— Que cor, que luxo de tons!— E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.Ega não voltara à Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens,

em que ele ali tanto bebera e delirara tanto. E lembrou logo a Car-los a jornada na velha traquitana, debaixo de um temporal, o gro-gue do Craft, a ceia de peru...

— Já aqui sofri muito, minha senhora, vestido de Mefistófe-les!...

— Por causa de Margarida?— Por quem se há-de sofrer neste apaixonado mundo, minha

senhora, senão por Margarida ou por Fausto?Mas Carlos quis que ele admirasse os esplendores novos da

Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas,lamentando que só viesse assim à Toca no fim do Verão e no fim dasflores. Ega extasiou-se ruidosamente. Enfim, perdera a Toca o seuar regelado e triste de museu! Já ali se podia palrar livremente!

— Isto é um bárbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. —Tem horror à arte! É um Ibero, é um Semita!...

Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Ariano! E por issomesmo não podia viver numa casa em que cada cadeira tinha asolenidade sorumbática de antepassados com cabeleira...

— Mas — dizia Maria rindo — todas estas lindas coisas doséculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espírito, a graça demaneiras...

— Vossa Excelência acha? — acudiu Ega. A mim todos essesdourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me umavivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos numa demo-cracia! E não há para exprimir a alegria simples, sólida e bonachei-rona da democracia, como largas poltronas de marroquim, e omogno envernizado!...

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Assim numa risonha, ligeira discussão sobre bricabraque, des-ceram ao jardim.

Miss Sara passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livrofechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos,cravou-lhe sofregamente o monóculo; e enquanto Maria se abaixaraa cortar um gerânio, exprimiu a Carlos, num gesto mudo, a suaadmiração por aquele beicinho escarlate, aquele seiozinho redondode rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontra-ram Rosa, que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a suabeleza, a sua frescura mate de camélia branca. Pediu-lhe um beijo.Ela exigiu primeiro, muito séria, que ele tirasse o vidro do olho.

— Mas é para te ver melhor! é para te ver melhor!...— Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês

metade...— Encantadora! encantadora! — murmurava Ega. No fundo

achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo à

sopa, falando-se de campo e de um chalé que ele desejava construirem Sintra, nos Capuchos, dissera — «quando nos casarmos». E Egaaludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria.Agora que Carlos se instalava para sempre numa felicidade estável(dizia ele) era necessário trabalhar! E relembrou então a sua velhaideia do Cenáculo, representado por uma Revista que dirigisse aliteratura, educasse o gosto, elevasse a política, fizesse a civiliza-ção, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espírito,pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) deviatomar a direcção deste movimento. E que profunda alegria para ovelho Afonso da Maia!

Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, comuma vida toda de inteligência e actividade, reabilitaria supremamenteaquela união, mostrando-lhe a influência fecunda e purificadora.

— Tem razão, tem bem razão! — exclamava ela com ardor.— Sem contar — acrescentava o Ega — que o país precisa de

nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilíssimo Gouvari-nho, o país não tem pessoal... Como há-de tê-lo, se nós, que possuí-mos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-cartse escrever a vida íntima dos átomos? Sou eu, minha senhora, soueu que ando a escrever essa biografia de um átomo!... No fim, estediletantismo é absurdo. Clamamos por aí, em botequins e livros,

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«que o país é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não tra-balhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo moldeperfeito das nossas ideias?... Vossa Excelência não conhece estepaís, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte deprimeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Atéaqui, a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles, roti-neiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamosfazer disto um bijou!...

Carlos ria, preparando numa travessa o ananás com sumo delaranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que ele risse. A ideiado Ega parecia-lhe superior, inspirada num alto dever. Quase tinharemorsos, dizia ela, daquela preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cer-cado de afeição serena, queria-o ver trabalhar, mostrar-se, dominar...

— Com efeito — disse o Ega recostado e sorrindo — a era doromance findou. E agora...

Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu emclamores de entusiasmo. Oh! que maravilha! Oh! que delícia!

— Como fazes tu isto? Com Madeira...— E génio! — exclamou Carlos. — Delicioso, não é verdade?

Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilização vale-ria este prato de ananás! É para estas coisas que eu vivo! Eu nãonasci para fazer civilização...

— Nasceste — acudiu o Ega — para colher as flores dessaplanta da civilização, que a multidão rega com o seu suor! No fundotambém eu, menino!

Não, não! Maria não queria que falassem assim!— Esses ditos estragam tudo. E o Sr. Ega, em lugar de corrom-

per Carlos, devia inspirá-lo...Ega protestou, requebrando o olho, já lânguido. Se Carlos

necessitava uma musa inspiradora e benéfica — não podia ser ele,bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!

— Ah, com efeito!... Quantas páginas belas, quantas nobresideias se não podem produzir num paraíso destes!...

E o seu gesto mole e acariciador indicava a Toca, a quietaçãodos arvoredos, a beleza de Maria. Depois, na sala, enquanto Mariatocava um «nocturno» de Chopin e Carlos e ele acabavam os charu-tos à porta do jardim, vendo nascer a Lua — Ega declarou que,desde o começo do jantar, estava com ideias de casar!... Realmentenão havia nada como o casamento, o interior, o ninho...

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— Quando penso, menino — murmurou ele, mordendo sombria-mente o charuto — que quase todo o ano da minha vida foi dadoàquela israelita devassa que gosta de levar bordoada...

— Que faz ela em Sintra? — perguntou Carlos.— Ensopa-se na crápula. Não há a menor dúvida que dá todo o

seu coração ao Dâmaso... Tu sabes o que nestes casos significa otermo coração... Viste já imundície igual? É simplesmente obscena!

— E tu adora-la — disse Carlos.O outro não respondeu. Depois, dentro, num ódio repentino da

boémia e do romantismo, entoou louvores sonoros à família, ao tra-balho, aos altos deveres humanos — bebendo copinhos de conha-que. À meia-noite, ao sair, tropeçou duas vezes na rua de acácias,já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir paraa vitória, que ele quis descoberta para ir comunicando com a Lua,Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe falar da Revista, de umforte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazersoprar sobre o país... Por fim, já estirado no assento, tirando o cha-péu à aragem da noite:

— E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a inglesa... Hávícios deliciosos naquelas pestanas baixas... Vê se ma arranjas...Vá lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que beleza de noite!

Carlos ficara encantado com este primeiro jantar de amizadena Toca. Ele tencionava não apresentar Maria aos seus íntimossenão depois de casado e à volta de Itália. Mas agora a «uniãolegal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quase dispersano vago. Como dizia o Ega, devia esperar deixar-se ir... E noentanto Maria e ele não poderiam isolar-se ali todo um longoInverno, sem o calor sociável de alguns amigos em redor. Por issouma manhã, encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria eoutrora lhe dava notícias da «lady inglesa», pediu-lhe para vir jan-tar à Toca no domingo.

O maestro apareceu numa tipóia, à tardinha, de laço branco ede casaca: e os fatos claros de campo, com que encontrou Carlos eEga, começaram logo a enchê-lo de mal-estar. Toda a mulher, alémdas Lolas e Conchas, o atarantava, o emudecia: Maria, «com o seuporte de grande dame», como ele dizia, intimidou-o a tal ponto queficou diante dela, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro dasalgibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe

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mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pelafolhagem dos arbustos, fazia esforços ansiosos por murmuraralgum elogio «à beleza do sítio»; mas escapavam-lhe então inexpli-cavelmente coisas reles, em calão: «Vista catita»! «É pitada»!Depois ficava furioso, coberto de suor, sem compreender como selhe babavam dos lábios esses ditos abomináveis, tão contrários aoseu gosto fino de artista. Quando se sentou à mesa sofria umnegríssimo acesso de spleen e mudez! Nem uma controvérsia, queMaria arranjara caridosamente para ele sobre Wagner e Verdi,pôde descerrar-lhe os lábios empedernidos. Carlos ainda tentouenvolvê-lo na alegria da mesa — contando a ida a Sintra, quandoele procurava Maria na Lawrence, e em vez dela achara umamatrona obesa, de bigode, de cãozinho ao colo, ralhando com ohomem em espanhol. Mas a cada exclamação de Carlos — «Lem-bras-te, Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» — o maestro, rubro,grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar ali, ao lado deMaria, como um trambolho fúnebre. Estragou o jantar.

Combinara-se para depois do café um passeio pelos arredores,num break. E Carlos já tomara as guias, Maria na almofada aca-bava de abotoar as luvas — quando Ega, que receava a friagem datarde, saltou do break, correu a buscar o paletó. Nesse mesmomomento sentiram um trote de cavalo na estrada — e apareceu omarquês.

Foi uma surpresa para Carlos, que o não vira durante esseVerão. O marquês parou logo, tirando profundamente, ao verMaria, o seu largo chapéu desabado.

— Imaginava-o pela Golegã! — exclamou Carlos. — Foi até oCruges que me disse... Quando chegou você?

Chegara na véspera. Lá fora ao Ramalhete; tudo deserto. Agoravinha aos Olivais ver um dos Vargas que tinha casado, se instalaraali perto, a passar o noivado...

— Quem, o gordo, o das corridas?— Não, o magro, o das regatas.Carlos, debruçado da almofada, examinava a eguazita do mar-

quês, pequena, bem estampada, de um baio escuro e bonito.— Isso é novo?— Uma facazita do Darque... Quer-ma você comprar? Sou já um

pouco pesado para ela, e isto mete-se a um dog-cart...— Dê lá uma volta...

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O marquês deu a volta, bem posto na sela, avantajando a égua.Carlos achou-lhe «boas acções». Maria murmurou: «Muito bonita,uma cabeça fina...» Então Carlos apresentou o marquês de Souselaa Madame Mac Gren. Ele chegou a égua à roda, descoberto, paraapertar a mão a Maria: e à espera do Ega que se eternizava lá den-tro, ficaram falando do Verão, de Santa Olávia, dos Olivais, daToca... Há que tempos o marquês ali não passava! A última vez foravítima da excentricidade do Craft...

— Imagine Vossa Excelência — disse ele a Maria Eduarda —que esse Craft me convida a almoçar. Venho, e o hortelão diz-meque o Sr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; masque o Sr. Craft deixara um cartaz na sala... Vou à sala, e vejodependurada ao pescoço de um ídolo japonês uma folha de papelcom estas palavras pouco mais ou menos: «O deus Tchi tem a honrade convidar o senhor marquês, em nome de seu amo ausente, a pas-sar à sala de jantar, onde encontrará, num aparador, queijo evinho, que é o almoço que basta ao homem forte.» E foi com efeito omeu almoço... Para não estar só, partilhei-o com o hortelão.

— Espero que se tivesse vingado! — exclamou Maria rindo.— Pode crer, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando ele

apareceu, vindo daqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que osenhor marquês fora para longe, e que não havia nem pão nemqueijo... Resultado: o Craft mandou-me uma dúzia de magníficasgarrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a ver...

O deus Tchi lá estava, obeso e medonho. E, muito natural-mente, Carlos convidou o marquês a revisitar nessa noite, à voltada casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.

O marquês veio, às dez horas — e foi um serão encantador.Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o commão de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com graça; eaquele esconderijo de amor ficou alumiado até tarde, na sua pri-meira festa de amizade.

Estas reuniões alegres foram ao princípio, como dizia o Ega,dominicais: mas o Outono arrefecia, bem depressa se despiriam asárvores da Toca, e Carlos acumulou-as duas vezes por semana, nosvelhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinhadescoberto uma admirável cozinheira alsaciana, educada nas gran-des tradições, que servira o bispo de Estrasburgo, e a quem asextravagâncias de um filho e outras desgraças tinham arrojado a

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Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantaresuma ciência delicada: o dia de vir à Toca era considerado pelo mar-quês «dia de civilização».

A mesa resplandecia; e as tapeçarias, representando massas dearvoredos, punham em redor como a sombra escura de um retirosilvestre onde, por um capricho, se tivessem acendido candelabrosde prata. Os vinhos saíam da frasqueira preciosa do Ramalhete. Detodas as coisas da Terra e do Céu se grulhava com fantasia —menos de «política portuguesa», considerada conversa indecorosaentre pessoas de gosto.

Rosa aparecia ao café, exalando do seu sorriso, dos bracinhosnus, dos vestidos brancos tufados sobre as meias de seda preta, umbom aroma de flor. O marquês adorava-a, disputando-a ao Ega, quea pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo haviatempo um soneto. Ela preferia o marquês: achava o Ega «muito...»— e completava o seu pensamento com um gestozinho do dedoondeando no ar, como a exprimir que o Ega «era muito retorcido».

— Aí está! — exclamava ele. — Porque eu sou mais civilizadoque o outro! É a simplicidade não compreendendo o requinte.

— Não, desgraçado! — exclamavam do lado. — É porque ésimpresso!... É a Natureza repelindo a convenção!...

Bebia-se à saúde de Maria: ela sorria, feliz entre os seus novosamigos, divinamente bela, quase sempre de escuro, com um curtodecote onde resplandecia o incomparável esplendor do seu colo.

Depois organizaram-se solenidades. Num domingo, em que ossinos repicavam e à distância foguetes esfuziavam no ar — Egalamentou que os seus austeros princípios filosóficos o impedissem defestejar, também, aquele santo de aldeia, que fora decerto em vida umcaturra encantador, cheio de ilusões e doçura... Mas de resto, acres-centou, não teria sido num dia assim, fino e seco, sob um grande céucheio de sol, que se feriu a batalha das Termópilas? Porque não se ati-raria uma girândola de foguetes em honra de Leónidas e dos Trezen-tos? E atirou-se a girândola pela eterna glória de Esparta.

Depois celebraram-se outras datas históricas. O aniversário dadescoberta da Vénus de Milo foi comemorado com um balão queardeu. Noutra ocasião o marquês trouxe de Lisboa, apinhadosnuma tipóia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira-Vira e o Gago: edepois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarraschoraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.

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Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãsno quiosque japonês — afeiçoados àquele primeiro retiro dos seusamores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam maisperto um do outro. Em lugar das esteiras de palha, Carlos reves-tira-o com as suas formosas colchas da Índia, cor de palha e cor depérola. Um dos maiores cuidados dele, agora, era embelezar a Toca:nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, ummarfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçoa o seu ninho.

Maria, no entanto, não cessava de lembrar os planos intelec-tuais do Ega: queria que ele trabalhasse, ganhasse um nome: seriaisso o orgulho íntimo dela, e sobretudo a alegria suprema do avô.Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades deespírito), Carlos recomeçara a compor alguns dos seus artigos demedicina literária, para a Gazeta Médica. Trabalhava no quiosque,de manhã. Trouxera para lá rascunhos, livros, o seu famoso manus-crito da Medicina Antiga e Moderna. E por fim achara um grandeencanto em estar ali, com um leve casaco de seda, as suas cigaret-tes ao lado, um fresco murmúrio de arvoredo em redor cinzelandoas suas frases, enquanto ela ao lado bordava silenciosa. As suasideias surgiam com mais originalidade, a sua forma ganhava emcolorido naquele estreito quiosque acetinado que ela perfumavacom a sua presença. Maria respeitava este trabalho, como coisanobre e sagrada. De manhã, ela mesma espanejava os livros doleve pó que a aragem soprava pela janela; dispunha o papel branco,punha cuidadosamente penas novas; e andava bordando numaalmofada de penas e cetim, para que o trabalhador estivesse maisconfortável na sua vasta cadeira de couro lavrado.

Um dia oferecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, entu-siasmado com a letra dela, quase comparável à lendária letra doDâmaso, ocupava-a agora incessantemente como copista, sentindomais amor por um trabalho a que ela se associava. Quantos cuida-dos se dava a doce criatura! Tinha para isso um papel especial, deum tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolandoas pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo e o Transfor-mismo na graça delicada de uma renda... Um beijo pagava-a detudo.

Às vezes Carlos dava lições a Rosa — ora de história, contando-lhafamiliarmente como um conto de fadas, ora de geografia,interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos

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rios que correm entre as ruínas dos santuários. Isto era o prazer maisalto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava aquele serbem-amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mãos o trabalho— e o interesse de Carlos, a enlevada atenção de Rosa sentada aos pésdele, bebendo aquelas belas histórias de Joana d’Arc ou das caravelasque foram à Índia, fazia resplandecer nos seus olhos uma névoa delágrimas felizes...

Desde o meado de Outubro, Afonso da Maia falava da sua par-tida de Santa Olávia, retardada apenas por algumas obras, quecomeçara na parte velha da casa e nas cocheiras: porque ultima-mente invadira-o a paixão de edificar — sentindo-se remoçar, comoele dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tin-tas. Carlos e Maria pensavam também em abandonar os Olivais.Carlos não poderia, por dever doméstico, permanecer ali instaladodesde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além disso, aquele fim deOutono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucólica, coma quinta desfolhada e alagada, uma névoa sobre o rio, e um fogãoúnico no gabinete de cretones — além da sumptuosa chaminé dasala de jantar, que, por entre os seus núbios de olhos de cristal, sol-tava uma fumaraça odiosa, quando o Domingos a tentava acender.

Numa dessas manhãs, Carlos, que ficara até tarde com Maria,e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um tempo-ral, de vento e água, desencadeado de madrugada, ergueu-se àsnove horas, veio à Toca. As janelas do quarto de Maria conserva-vam-se ainda cerradas; a manhã clareara; a quinta lavada, meiodespida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça deInverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os crisântemosfloriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro.Justamente ele escrevera dias antes ao Cruges, perguntando seestaria desocupado, para os primeiros frios de Dezembro, o andarda Rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir,acompanhado por Niniche. Mas o correio, nessa manhã, consistiaapenas numa carta do Ega e dois números de jornal cintados — umpara ele, outro para «Madame Castro Gomes, na quinta do Sr. Craft,aos Olivais».

Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta do Ega. Erada véspera, com a data: «À noite, à pressa.» E dizia: «Lê, nessetrapo que te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra

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Tácito. Mas não te assustes; eu suprimi, mediante pecúnia, toda atiragem, com excepção de dois números mais que foram, um para aToca, outro (oh! lógica suprema dos hábitos constitucionais!) para oPaço, para o Chefe do Estado!... Mas esse mesmo não chegará aoseu destino. Em todo o caso desconfio de que esgoto saiu esseenxurro e precisamos providenciar! Vem já! Espero-te às duas. E,como Iago dizia a Cássio, mete dinheiro na bolsa.»

Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta doDiabo: e na impressão, no papel, na abundância dos itálicos, notipo gasto, todo ele revelava imundície e malandrice. Logo na pri-meira página duas cruzes a lápis marcavam um artigo que Carlos,num relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: «Ora viva,sô Maia! Então já se não vai ao consultório, nem se vêem os doen-tes do bairro, sô janota? — Esta piada era botada no Chiado, àporta da Havanesa, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um talMaia do Ramalhete, que abarrota por aí de catita; e o pai Paulinoque tem olho e que passava nessa ocasião ouviu a seguinte corne-tada: — É que o sô Maia acha que é mais quente viver nas fraldasde uma brasileira casada, que nem é brasileira nem é casada, e aquem o papalvo pôs casa, aí para o lado dos Olivais, para estar aofresco! Sempre os há neste mundo!... Pensa o homem que botouconquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhequer não são os lindos olhos, são as lindas louras... O simplório,que bate aí pilecas bifes, que nem que fosse o marquês, o verda-deiro marquês, imaginava que se estava abiscoitando com umasenhora do chique, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... Eno fim (não, esta é para a gente deixar estourar o bandulho a rir!)no fim descobre-se que a tipa era uma cocotte safada, que trouxepara aí um brasileiro já farto dela para a passar cá aos belos lusita-nos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o sôMaia só apanhou os restos de outro, porque a tipa, já antes de elese enfeitar, tinha pandegado à larga, aí para a Rua de S. Francisco,com um rapaz da fina, que safou também, porque cá como nós sóaprecia a bela espanhola. Mas não obsta a que o sô Maia sejatraste! — Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque oDiabo cá tem a sua Corneta preparada para cornetear por essemundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, sô Maia!»

Carlos ficou imóvel entre as acácias, com o jornal na mão, noespanto furioso e mudo de um homem que subitamente recebe na

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face uma grossa chapada de lodo! Não era a cólera de ver o seuamor assim aviltado na publicidade chula de um jornal sórdido: erao horror de sentir aquelas frases em calão, pandilhas, afadistadas,como só Lisboa as pode criar, pingando fetidamente, à maneira desebo, sobre si, Maria, sobre o esplendor da sua paixão... Sentia-setodo emporcalhado. E uma única ideia surgia através da sua confu-são — matar o bruto que escrevera aquilo.

Matá-lo! Ega sustera a tiragem da folha, Ega pois conhecia ofoliculário. Nada importava que aqueles números que tinha na mãofossem os únicos impressos. Recebera lama na face. Que a injúriafosse espalhada nas praças numa profusa publicidade ou lhe fosseatirada só a ele escondidamente num papel único, era igual...Quem tanto ousara tinha de cair, esmagado!

Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos, à janela da cozinha,areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe falou de ir buscarum calhambeque aos Olivais, o bom Domingos consultou o relógio:

— Vossa Excelência tem às onze horas a caleche do Torto, que asenhora mandou cá estar para ir a Lisboa...

Carlos, com efeito, recordou-se que Maria, na véspera, planearair à Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente nesse diaem que ele precisava ficar livre — ele e a sua bengala! Mas Mela-nie, passando então com um jarro de água quente, disse que asenhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... ECarlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.

Sentou-se por fim no banco de cortiça; descintou a Cornetasobrescritada para Maria, releu lentamente a prosa imunda: e,nesse número que lhe fora destinado a ela, todo aquele calão lhepareceu mais ultrajante, intolerável, punível só com sangue. Eramonstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, inofensivano silêncio da sua casa, alguém ousasse tão brutalmente arremes-sar esse lodo às mãos-cheias! E a sua indignação alargava-se, dofoliculário que babara aquilo — até à sociedade que, na sua decom-posição, produzira o foliculário. Decerto toda a cidade sofria a suavérmina... Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodreci-mento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira de bomsenso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão,podia produzir uma Corneta do Diabo.

E, no meio desta alta cólera de moralista, uma dor perpassava,precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um

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monturo sórdido neste canto do mundo — mas, em suma, havia noartigo da Corneta uma calúnia? Não. Era o passado de Maria, queela arrancara de si como um vestido roto e sujo, que ele mesmoenterrara muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seunome — e que alguém desenterrava para o mostrar bem alto ao sol,com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçavapara sempre a sua vida, como um terror sobre ela suspenso.Debalde ele perdoara, debalde ele esquecera. O mundo em redorsabia. E a todo o tempo, o interesse ou a perversidade poderiamrefazer o artigo da Corneta.

Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas,onde durante o Verão, quando elas se enchiam de sombra e de mur-múrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida — Carlosperguntou, pela primeira vez a si mesmo, se a honra doméstica, ahonra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidadedos homens que dele descendessem, lhe permitiam em verdadecasar com ela...

Dedicar-lhe toda a sua afeição, toda a sua fortuna, certamente!Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo epuro, poderia um dia ler numa Corneta do Diabo que sua mãe foraamante de um brasileiro, depois de ser amante de um irlandês. Ese seu filho lhe viesse gritar, numa bela indignação: «É uma calú-nia?» — ele teria de baixar a cabeça, murmurar: «É uma verdade!»E seu filho veria para sempre colada a si aquela mãe de quem omundo ignorava os martírios e os encantos — mas de quem conhe-cia cruelmente os erros.

E ela mesma! Se ele apelasse para a sua razão, alta e tão recta,mostrando-lhe as zombarias e as afrontas de que uma vil Cornetado Diabo poderia um dia traspassar o filho que deles nascesse —ela mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente ementrar no Ramalhete pela escadinha secreta, forrada de veludo corde cereja, contanto que em cima a esperasse um amor constante eforte... Nunca ela tornara, em todo o Verão, a aludir a uma uniãodiferente dessa em que os seus corações viviam tão lealmente, tãoconfortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preocupada «dopecado mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...

Sim; mas ele, que lhe pedira essa consagração, na hora maiscomovida do seu longo amor, iria dizer-lhe agora — «foi uma crian-cice, não pensemos mais nisso, desculpa»? Não; nem o seu coração o

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desejava! Antes pendia todo para ela... Pendia todo para ela, numenternecimento mais generoso e mais quente — enquanto a suarazão assim arengava, cautelosa e austera. Ele tinha naquela almao seu culto perfeito, naqueles braços a sua voluptuosidade magní-fica; fora dali não havia felicidade; a única sabedoria eraprender-se a ela pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome,embora as Cornetas do Diabo atroassem todo o ar. E assim afronta-ria o mundo numa soberba revolta, afirmando a omnipotência, oreino único da Paixão... Mas primeiro mataria o foliculário! — Pas-seava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resol-viam, por fim, em fúria contra o infame que babara sobre o seuamor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incer-teza e tanto tormento!

Maria ao lado abriu a janela. Estava vestida de escuro parasair; e bastou o brilho terno do seu sorriso, aqueles ombros a que oestofo justo modelava a beleza cheia e quente — para que Carlosdetestasse logo as dúvidas desleais e cobardes, a que se abando-nara um momento sob as árvores desfolhadas... Correu para ela. Obeijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade de um perdãoque se implora.

— Que tens tu, que estás tão sério?Ele sorriu. Sério, no sentido de solene, não estava. Talvez

secado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicaçõesdo Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda anoite...

— Toda a noite? — exclamou ela com um desapontamento, pou-sando-lhe as mãos sobre os ombros.

— Sim, é bem possível, um horror! Nos negócios do Ega háfatalmente o inesperado... Tu, com efeito, vais a Lisboa?

— Agora, com mais razão... Se me queres.— O dia está bonito... Mas há-de fazer frio na estrada.Maria justamente gostava desses dias de Inverno, cheios de sol,

com um arzinho vivo e arrepiado. Tornavam-na mais leve, maisesperta.

— Bem, bem — disse Carlos atirando o cigarro. — Vamos aoalmoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciência.

Enquanto Maria correra a apressar o Domingos — Carlos, atra-vés da relva húmida, foi ainda lentamente até ao renque baixo dearbustos que daquele lado fechava a Toca como uma sebe. Aí a

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colina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, umagrande chaminé de fábrica que fumegava: para além era o azul finoe frio do rio: depois os montes, de um azul mais carregado, com acasaria branca da povoação aninhada à beira da água, nítida esuave na transparência do ar macio. Parou um momento, olhando.E aquela aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz naluz, deu a Carlos um desejo repentino de sossego e de obscuridade,num canto assim do mundo, à beira de água, onde ninguém oconhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e ele pudesse ter apaz de um simples e de um pobre debaixo de quatro telhas, no seiode quem amava...

Maria gritou por ele da janela da sala de jantar, onde se debru-çara a apanhar uma das últimas rosas trepadeiras que ainda floriam.

— Que lindo tempo para viajar, Maria! — disse Carlos che-gando, através da relva.

— Lisboa é também muito linda, agora, havendo sol...— Pois sim, mas o Chiado, a coscuvilhice, os politiquetes, as

gazetas, todos os horrores... A mim está-me positivamente a apete-cer uma cubata na África!

O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora, quando acaleche do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada dachuva da noite. Logo adiante da vila, na descida, cruzaram um coupéque trepava num trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de relanceo chapéu branco e o monóculo do Ega... Pararam. E era com efeito oEga, que reconhecera também a caleche da Toca, vinha já saltitandoas lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.

Ao ver Maria, ficou atrapalhado:— Que bela surpresa! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito, disse

comigo...— Bem, paga a tua tipóia, vem connosco! — atalhou Carlos,

que traspassava o Ega com os olhos inquietos, querendo adivinharo motivo daquela brusca chegada aos Olivais.

Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega,embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso daCorneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, afalar do Inverno, das inundações do Ribatejo... Maria lera. Umadesgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, umagrande miséria! Por fim Carlos não se conteve:

— Eu lá recebi a tua carta...

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Ega acudiu:— Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com efeito eu não

vim senão por um sentimento bucólico...Muito discretamente Maria olhara para o rio. Ega fez então um

gesto rápido com os dedos, significando «dinheiro, só questão dedinheiro». Carlos sossegou: e Ega voltou a falar dos inundados doRibatejo e do sarau literário e artístico que, em benefício deles, se«ia cometer» no salão da Trindade... Era uma vasta solenidade ofi-cial. Tenores do Parlamento, rouxinóis da literatura, pianistasornados com o hábito de Sant’Iago, todo o pessoal canoro e senti-mental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam,já se teciam grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele, ape-sar de demagogo, fora convidado para ler um episódio das Memó-rias de Um Átomo: recusara-se, por modéstia, por não encontrar,nas Memórias, nada tão suficientemente palerma que agradasse àcapital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arru-lhar uma das suas Meditações. Além disso, havia uma poesia socialpelo Alencar. Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...

— E a Sr.a D. Maria — acrescentou ele — devia ir!... É suma-mente pitoresco. Tinha Vossa Excelência ocasião de ver todo o Por-tugal romântico e liberal, à la besogne, engravatado de branco,dando tudo que tem na alma!

— Com efeito devias ir — disse Carlos, rindo. — Demais a maisse o Cruges toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...

— Pois está claro! — gritou Ega, procurando o monóculo, jáexcitado. — Há duas coisas que é necessário ver em Lisboa... Umaprocissão do Senhor dos Passos e um sarau poético!

Rolavam então pelo Largo do Pelourinho. Carlos gritou aococheiro que parasse no começo da Rua do Alecrim: elesapeavam-se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.

Mas a tipóia estacou antes da calçada, rente ao passeio, emfrente de uma loja de alfaiate. E nesse instante achava-se aíparado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longasbarbas de apóstolo, todo vestido de luto. Ao ver Maria, que se incli-nara à portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com umaleve cor na face larga e pálida, tirou gravemente o chapéu, umimenso chapéu de abas recurvas, à moda de 1830, carregado decrepe.

— Quem é? — perguntou Carlos.

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— É o tio do Dâmaso, o Guimarães — disse Maria, que coraratambém. — É curioso, ele aqui!

Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o íntimo deGambetta! Carlos recordava-se de ter já encontrado aquelepatriarca no Price com o Alencar. Cumprimentou-o também; ooutro ergueu de novo, com uma gravidade maior, o seu sombriochapéu de carbonário. Ega entalara vivamente o monóculo paraexaminar esse lendário tio do Dâmaso, que ajudava a governar aFrança: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche jásubia a Rua do Alecrim e eles atravessavam para o Hotel Central,ainda se voltou, seduzido por aqueles modos, aquelas barbas auste-ras de revolucionário...

— Bom tipo! E que magnífico chapéu, hem! Donde diabo oconhece a Sr.a D. Maria?

— De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãe dela. AMaria já me tinha falado nele. É um pobre diabo. Nem amigo deGambetta, nem coisa nenhuma... Traduz notícias dos jornais espa-nhóis para o Rappel, e morre de fome...

— Mas então, o Dâmaso?— O Dâmaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa

imundície que me mandaste, a Corneta? Dize lá.Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a história da imundí-

cie. Fora na véspera à tarde que recebera no Ramalhete a Corneta.Ele já conhecia o papelucho, já privara mesmo com o proprietário eredactor — o Palma, chamado Palma Cavalão para se distinguir deoutro benemérito chamado Palma Cavalinho. Compreendeu logoque, se a prosa era do Palma, a inspiração era alheia. O Palmanada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da Rua deS. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse pordeleite intelectual um documento que só lhe podia render desgostose bengaladas. O artigo, pois, fora-lhe simplesmente encomendado epago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem maisdinheiro. Por este sólido princípio correra a procurar o PalmaCavalão no seu antro.

— Também lhe conheces o antro? — perguntou Carlos, comhorror.

— Tanto não... Fui perguntar à Secretaria da Justiça, a umsujeito que esteve associado com ele num negócio de almanaquesreligiosos...

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Fora pois ao antro. E encontrara as coisas dispostas pelas mãoshábeis de uma Providência amiga. Primeiramente, depois de impri-mir cinco ou seis números, a máquina, esfalfada na prática daque-las maroteiras, desmanchara-se. Além disso o bom Palma estavafurioso com o cavalheiro que lhe encomendara o artigo, por diver-gência na seriíssima questão de pecúnia. De sorte que apenas elepropôs comprar a tiragem do jornal — o jornalista estendeu logo amão larga, de unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de espe-rança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...

— É caro, mas que queres? — continuou o Ega. — Deixei-meatarantar, não regateei bastante... E enquanto a dizer quem é ocavalheiro que encomendou o artigo, o Palma, coitado, afirma quetem uma rapariga espanhola a sustentar, que o senhorio lhe levan-tou o aluguer da casa, que Lisboa está caríssima, que a literaturaneste desgraçado país...

— Quanto quer ele?— Cem mil réis. Mas, ameaçando-o com a polícia, talvez desça

a quarenta.— Promete os cem, promete tudo, contanto que eu tenha o

nome... Quem te parece que seja?Ega encolheu os ombros, deu um risco lento no chão com a ben-

gala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador daCorneta devia ser alguém familiar com Castro Gomes; alguém fre-quentador da Rua de S. Francisco; alguém conhecedor da Toca;alguém que tinha, por ciúme ou vingança, um desejo ferrenho demagoar Carlos; alguém que sabia a história de Maria; e enfimalguém que era um cobarde...

— Estás a descrever o Dâmaso! — exclamou Carlos, pálido eparando.

Ega encolheu de novo os ombros, tornou a riscar o chão:— Talvez não... Quem sabe! Enfim, nós vamos averiguá-lo com

certeza, porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir encon-trar com o Palma às três horas no Lisbonense... E o melhor é virestambém. Trazes tu dinheiro?

— Se for o Dâmaso, mato-o! — murmurou Carlos.E não trazia suficiente dinheiro. Tomaram uma tipóia para cor-

rer ao escritório do Vilaça. O procurador fora a Mafra, a um bapti-zado. Carlos teve de ir pedir cem mil réis ao velho Cortês, alfaiatedo avô. Quando perto das quatro horas se apearam à entrada do

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Lisbonense, no Largo de Santa Justa, o Palma no portal, com umjaquetão de veludo coçado e calça de casimira clara colada à coxa,acendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a Carlos— que lhe não tocou. E Palma Cavalão, sem se ofender, com a mãoabandonada no ar, declarou que ia justamente sair; cansado já deesperar em cima diante de um grogue frio. De resto sentia que o Sr.Maia se incomodasse em vir ali...

— Eu arranjava cá o negociozinho com o amigo Ega... Em todoo caso, se os senhores querem, vamos lá para cima para um gabi-nete, que se está mais à vontade, e toma-se outra bebida.

Subindo a escada lôbrega, Carlos recordava-se de ter já vistoaquela luneta de vidros grossos, aquela cara balofa cor de cidra...Sim, fora em Sintra, com o Eusebiozinho e duas espanholas, nessedia em que ele farejara pelas estradas silenciosas, como um cãoabandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o Sr.Palma. Em cima entraram num cubículo, com uma janela gradeadapor onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha da mesa,salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galhe-teiro que tinha moscas no azeite. O Sr. Palma bateu as palmas,mandou vir genebra. Depois, dando um grande puxão às calças:

— Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eujá disse cá ao amigo Ega, em todo este negócio...

Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a pon-teira da bengala na borda da mesa.

— Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o Sr. Palma por medizer quem lhe encomendou o artigo da Corneta?

— Dizer quem o encomendou, e prová-lo! — acudiu o Ega, queexaminava na parede uma gravura onde havia mulheres nuas àbeira de água. — Não nos basta o nome... O amigo Palma, estáclaro, é de toda a confiança... Mas enfim, que diabo, não é naturalque nós acreditássemos se o amigo nos dissesse que tinha sido osenhor D. Luís de Bragança.

Palma encolheu os ombros. Está visto que havia de dar provas.Ele podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negócios era todofranqueza e lisura... E, se se entendessem, ali lhas entregava logoessas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e deescachar! Tinha a carta do amigo que lhe encomendara a piada: alista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta: o rascunho doartigo a lápis...

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— Quer cem mil réis por tudo isso? — perguntou Carlos.O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando as lunetas com

os dedos moles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: eentão o redactor da Corneta ofereceu a bebida rasgadamente,puxou mesmo as cadeiras para aqueles cavalheiros abancarem.Ambos recusaram — Carlos de pé junto da mesa onde terminarapor pousar a bengala, Ega passando a outra gravura onde dois fra-des se emborrachavam. Depois, quando o criado saiu, Egaacercou-se, tocou com bonomia no ombro do jornalista:

— Cem mil réis são uma linda soma, Palma amigo! E olhe quese lhe oferecem por delicadeza consigo. Porque artiguinhos comoeste da Corneta, apresentados na Boa Hora, levam à grilheta!...Está claro, este caso é outro, você não teve intenção de ofender;mas levam à grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para aÁfrica. Ali no porãozinho de um navio, com ração de marujo e chi-batadas. Desagradável, muito desagradável. Por isso eu quis quetratássemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.

Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de açúcar dentrodo copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho,que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava oscem mil réis...

Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças umpunhado de libras, que começou a deixar cair em silêncio uma auma dentro de um prato. E Palma Cavalão, agitado com o tinir doouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluziaum pesado monograma de prata sob uma enorme coroa de vis-conde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu trêspapéis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monóculo sôfrego,teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso!

Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta doDâmaso ao Palma, curta e em calão, remetendo o artigo, recomen-dando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laborio-samente trabalhado pelo Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista,escrita pelo Dâmaso, das pessoas que deviam receber a Corneta:vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria da Cunha,El-rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, várias autoridades,e a Fancelli prima-dona...

Palma, no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toa-lha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o ani-

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mou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima doombro de Carlos:

— Recolha o bago, amigo Palma! Negócios são negócios, e obaguinho está aí a arrefecer!

Então, ao palpar o ouro, Palma Cavalão comoveu-se. Palavra,caramba, se soubesse que se tratava de um cavalheiro como o Sr.Maia, não tinha aceitado o artigo! Mas então!... Fora o Eusébio Sil-veira, rapaz amigo, que lhe viera falar. Depois o Salcede. E amboscom muitas lérias e que era uma brincadeira, e que o Maia não seimportava, e isto e aquilo, e muita promessa... Enfim deixara-se ten-tar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente.

— Foi uma sorte que se escangalhasse a máquina! Senãoestava agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba,tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal não foi grande, e sempre sefez alguma coisa pela porca da vida.

Vivamente, com um olhar, recontara o dinheiro na palma damão: depois esvaziou a genebra, de um trago consolado e ruidoso.Carlos guardara as cartas do Dâmaso, levantava já o fecho daporta. Mas voltou-se ainda, numa derradeira averiguação:

— Então esse meu amigo Eusébio Silveira também se meteu nonegócio?

O Sr. Palma, muito lentamente, afiançou que o Eusébio lhefalara apenas em nome do Dâmaso!

— O Eusébio, coitado, veio só como embaixador... Que oDâmaso e eu não vamos muito na mesma bola. Ficámos esquisitos,desde uma pega em casa da Biscainha. Aqui para nós, euprometi-lhe dois estalos na cara, e ele embuchou. Passados tempostornámos a falar, quando eu fazia o High Life na Verdade. Eleveio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, paraeu dar umas piadas catitas sobre um baile de anos... Depois,quando o Dâmaso fez também anos, eu dei outra piadita. Ele pagoua ceia, ficámos mais calhados... Mas é traste... E lá o Eusebiozinho,coitado, veio só de embaixador.

Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as cos-tas, deixou o cubículo. O redactor da Corneta ainda baixou a cabeçapara a porta; depois, sem se ofender, voltou alegremente à genebra,dando outro puxão às calças. Ega, no entanto, acendia devagar ocharuto.

— Você agora é que redige o jornal todo, Palma?

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— O Silvestre, também...— Que Silvestre?— O que está com a Pingada. Você não conhece, creio eu. Um

rapazola magro, que não é feio... Sensaborão, escreve umapalhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com aviscondessa de Cabelas, que ele chama a sua cabeluda... Que o Sil-vestre às vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assimmaroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Você nunca leu nadadele? Chocho. Tenho sempre de lhe arranjar o estilo... Nestenúmero é que havia um folhetinzito meu, catita, cá à moderna,como eu gosto, ali com a piadinha realista a bater... Enfim, ficapara outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quandoquiser, eu e a Corneta às ordens!

Ega estendeu-lhe a mão: — Obrigado, digno Palma! E adiós!— Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! — exclamou logo o

benemérito homem com infinito salero.Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.— E agora? — perguntou Ega, à portinhola.— E agora salta para dentro e vamos liquidar com o Dâmaso...Carlos já esboçara sumariamente o plano dessa liquidação.

Queria mandar desafiar o Dâmaso, como autor comprovado de umartigo de jornal que o injuriava. O duelo devia ser a espada ou aoflorete, um desses ferros cujo lampejo, na sala de armas do Rama-lhete, fazia empalidecer o Dâmaso. Se, contra toda a verosimi-lhança, ele se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha eo ventre, um furo que o cravasse meses na cama. Senão, a únicaexplicação que Carlos aceitaria do Sr. Salcede seria um documentoem que ele escrevesse esta coisa simples: «Eu, abaixo assinado,declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contavacom o Ega.

— Agradeço! agradeço! vamos a isso! — exclamava o Ega esfre-gando as mãos, faiscando de júbilo.

No entanto, dizia ele, a etiqueta fúnebre reclamava outropadrinho; e lembrou o Cruges, moço passivo e maleável. Mas eraimpossível encontrar o maestro, porque invariavelmente a criadaafirmava que o menino Vitorino não estava em casa... Decidiram irao Grémio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges — «paraum caso urgente de amizade e de arte».

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— Com quê — dizia o Ega continuando a esfregar as mãos,enquanto a tipóia trotava para a Rua de S. Francisco — com quêdemolir o nosso Dâmaso?

— Sim, é necessário acabar com esta perseguição. Chega a serridículo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltreaniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senãodeixo-te a ti arranjar os termos de uma carta forte...

— Hás-de ter uma boa carta! — disse o Ega com um sorriso deferocidade.

No Grémio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieramesperar por ele na sala das Ilustrações. O conde de Gouvarinho eSteinbroken conversavam de pé, no vão de uma janela. E foi umasurpresa. O ministro da Finlândia abriu os braços para o cherMaia, que ele não vira desde a partida de Afonso para Santa Olá-via. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certacamaradagem que entre eles se formara nesse Verão, em Sintra:mas o aperto de mão a Carlos foi seco e curto. Já dias antes,tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurara de leve ede passagem um «como está, Maia?» em que se sentia arrefeci-mento. Ah! já não eram essas efusões, essas palmadas enternecidaspelos ombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavamcigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos aban-donara a senhora condessa de Gouvarinho, a Rua de S. Marçal e ocómodo sofá em que ela caía com um rumor de saias amarrotadas— o marido amuava, como abandonado também.

— Tenho tido saudades das nossas belas discussões em Sintra!— disse ele, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas queoutrora pertencia ao Maia. Tivemo-las de primeira ordem!

Eram realmente «pegas tremendas» no pátio do Vítor sobre lite-ratura, sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-sezangado por causa da divindade de Jesus.

— É verdade! — acudiu o Ega. — Você nessa noite parecia teràs costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!

O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos, não, graças aDeus! Ninguém melhor do que ele sabia que, nesses sublimes epi-sódios do Evangelho, reinava bastante lenda... Mas enfim eramlendas que serviam para consolar a alma humana. É o que eleobjectara nessa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a filosofia e oracionalismo capazes de consolar a mãe que chora? Não. Então...

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— Em todo o caso, tivemo-las brilhantes! — concluiu ele,olhando o relógio. — E, eu confesso, uma discussão elevada sobrereligião, sobre metafísica, encanta-me... Se a política me deixassevagares, dedicava-me à filosofia... Nasci para isso, para aprofundarproblemas.

Steinbroken, no entanto, esticado na sua sobrecasaca azul, comum raminho de alecrim ao peito, tomara as mãos de Carlos:

— Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Afonso da Maia,toujours dans ses terres?... Est-ce qu’on ne va pas le voir un peu cethiver?

E imediatamente lamentou não ter visitado Santa Olávia. Masquê! a família real instalara-se em Sintra; ele fora forçado a acom-panhá-la, fazer a sua corte... Depois necessitara ir de fugida aInglaterra, donde acabava de chegar, havia dias.

Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Ilustrada...— Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable

pour moi à la Gazette...Tinham-lhe anunciado a partida, depois a chegada, com pala-

vras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia dei-xar de ser, dada esta afeição sincera que liga Portugal e a Finlân-dia... «Mais enfin on avait été charmant, charmant!...»

— Seulement — ajuntou ele, sorrindo com finura e voltando-setambém para o Gouvarinho — on a fait une petite erreur... On a ditque j’étais venu de Southampton par le Royal Mail... Ce n’est pasvrai, non! Je me suis embarqué à Bordeaux, dans les Messageries.J’ai même pensé à écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui estun charmant garçon... Puis, j’ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, onva croire que je veux donner une leçon d’exactitude à la Gazette, c’esttrès grave...» Alors, voilà, très prudemment, j’ai gardé le silence...Mais enfin c’est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.

Ega murmurou que a História se encarregaria um dia de recti-ficar esse facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gestoem que parecia desejar, por polidez, que a História se não incomo-dasse. E então o Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitaraoutra vez o relógio, perguntou se os amigos tinham ouvido algumacoisa do Ministério e da crise.

Foi uma surpresa para ambos, que não tinham lido os jornais...Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, comas câmaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo de Outono?

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O Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera navéspera, à noitinha, uma reunião de ministros; nessa manhã o pre-sidente do Conselho fora ao Paço, fardado, determinado a «largar oPoder»... Não sabia mais. Não conferenciara com os seus amigos,nem mesmo fora ao seu Centro. Como noutras ocasiões de crise,conservara-se retirado, calado, esperando... Ali estivera toda amanhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.

Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriótica.— Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...— Exactamente por isso — acudiu o conde com uma cor viva na

face — não desejo pôr-me em evidência... Tenho o meu orgulho, tal-vez motivos para o ter... Se a minha experiência, a minha palavra,o meu nome são necessários, os meus correligionários sabem ondeeu estou, venham pedir-mos...

Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken,perante estas coisas políticas, começou logo a retrair-se para ofundo da janela, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impe-netrável, no grande recato neutral que competia à Finlândia. Egano entanto não saía do seu espanto. Mas porque caía, porque caíaassim um governo com maioria nas câmaras, sossego no país, oapoio do exército, a bênção da Igreja, a protecção do Comptoir d’Es-compte?

O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pêra, e murmurouesta razão:

— O Ministério estava gasto.— Como uma vela de sebo? — exclamou Ega, rindo.O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo

subentendia obtusidade... Ora neste Ministério sobrava o talento.Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...

— Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. — Éextraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm imensotalento. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobrede injúrias, têm, à parte os disparates que fazem, um talento deprimeira ordem! Por outro lado a maioria admite que a oposição, aquem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, estácheia de robustíssimos talentos! De resto todo o mundo concordaque o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supracó-mico: um país governado com imenso talento, que é de todos naEuropa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente gover-

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nado! Eu proponho isto, a ver: que, como os talentos semprefalham, se experimentem uma vez os imbecis!

O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exagerosde fantasista. E Carlos, ansioso por ser amável, atalhou, acendendoo charuto no dele:

— Que pasta preferia você, Gouvarinho, se os seus amigossubissem? A dos Estrangeiros, está claro...

O conde fez um largo gesto de abnegação. Era pouco naturalque os seus amigos necessitassem da sua experiência política. Eletornara-se sobretudo num homem de estudo e de teoria. Além dissonão sabia bem se as ocupações da sua casa, a sua saúde, os seushábitos lhe permitiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso,decerto a pasta dos Estrangeiros não o tentava...

— Essa nunca! — prosseguiu ele, muito compenetrado. — Parase poder falar de alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, énecessário ter por trás um exército de duzentos mil homens e umaesquadra com torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E eu,para papéis subalternos, para que venha um Bismarck, um Glads-tone, dizer-me «há-de ser assim», não estou!... Pois não acha, Stein-broken?

O ministro tossiu, balbuciou: — Certainement... C’est très grave... C’est excessivement

grave...Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu inte-

resse geográfico pela África, faria um ministro da Marinha inicia-dor, original, rasgado...

Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.— Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias

todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Liberta-ram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção da moralcristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhorestá feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a termi-nar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como umpormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda preci-sava-se bem um teatro normal, como elemento civilizador!

Nesse momento um criado veio anunciar a Carlos que o Sr.Cruges estava em baixo, no portal, à espera. Imediatamente os doisamigos desceram.

— Extraordinário, este Gouvarinho! — dizia o Ega na escada.

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— E este — observou Carlos com um imenso desdém de mun-dano — é um dos melhores que há na política. Pensando mesmobem, e metendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez omelhor!

Acharam o Cruges à porta, de jaquetão claro, embrulhando umcigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir umasobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.

— É jantar?— É enterro.E rapidamente, sem aludir a Maria, contaram ao maestro que o

Dâmaso publicara num jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragemeles tinham suprimido, não sendo possível por isso mostrar onúmero imundo) um artigo em que a coisa mais doce que se cha-mava a Carlos era pulha. Portanto Ega e ele Cruges iam a casa doDâmaso pedir-lhe a honra ou a vida.

— Bem rosnou o maestro. — Que tenho eu a fazer?... Que eudessas coisas não entendo.

— Tens — explicou Ega — de ir vestir uma sobrecasaca preta efranzir o sobrolho. Depois vir comigo; não dizer nada; tratar oDâmaso por «Vossa Excelência»; assentar em tudo o que eu propu-ser; e nunca desfranzir o sobrolho nem despir a sobrecasaca...

Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se de cerimónia ede negro. Mas no meio da rua retrocedeu:

— Ó Carlos, olha que eu falei lá em casa. Os quartos do pri-meiro andar estão livres, e forrados de papel novo...

— Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!...O maestro abalara, quando diante do Grémio estacou a todo o

trote uma caleche. De dentro saltou o Teles da Gama que, aindacom a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos:

— O Gouvarinho? está lá em cima?— Está... Novidade fresca?— Os homens caíram. Foi chamado o Sá Nunes!E enfiou pelo pátio, correndo. Carlos e Ega continuaram deva-

gar até ao portão do Cruges. As janelas do primeiro andar estavamabertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensavanessa tarde das corridas em que ele viera no faetonte, de Belém,para ver aquelas janelas: ia então escurecendo, por trás dos estoresfechados surgira uma luz, ele contemplara-a como uma estrela ina-cessível... Como tudo passa!

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Retrocederam para o Grémio. Justamente o Gouvarinho e Telesatiravam-se à pressa para dentro da caleche que esperara. Egaparou, deixou cair os braços:

— Lá vai o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar repre-sentar a Dama das Camélias no sertão! Deus se amerceie de nós!

Mas o Cruges apareceu enfim de chapéu alto, entalado numasobrecasaca solene, com botins novos de verniz. Apinharam-se logona tipóia estreita e dura. Carlos ia levá-los a casa do Dâmaso. Ecomo queria ainda jantar nos Olivais, esperaria por eles, para sabero resultado «do chinfrim», no Jardim da Estrela, junto ao coreto.

— Sede rápidos e medonhos!

A casa do Dâmaso, velha e de um andar só, tinha um enormeportão verde, com um arame pendente que fez ressoar dentro umasineta triste de convento: e os dois amigos esperaram muito antesque aparecesse, arrastando as chinelas, o galego achavascado que oDâmaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já não traziatorturado em botins cruéis de verniz. A um canto do pátio uma por-tinha abria sobre a luz de um quintal, que parecia ser um depósitode caixotes, de garrafas vazias e de lixo.

O galego, que reconhecera o Sr. Ega, conduziu-os logo, por umaescadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a mofo.Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridadede uma porta entreaberta. Quase imediatamente Dâmaso gritou de lá:

— Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Euestou-me a vestir...

Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta efusão,Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:

— Não tem dúvida, nós esperamos...O Dâmaso insistia, à porta, em mangas de camisa, cruzando os

suspensórios:— Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já

estou de calças!— Há aqui uma pessoa de cerimónia — gritou o Ega para findar.A porta ao fundo cerrou-se, o galego veio abrir a sala. O tapete

era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. Eem redor abundavam os vestígios da antiga amizade com o Maia: oretrato de Carlos a cavalo, num vistoso caixilho de flores emfaiança: uma das colchas da Índia das senhoras Medeiros, branca e

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verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: esobre um contador espanhol, debaixo de redoma, um sapatinho decetim, de mulher, novo, que o Dâmaso comprara no Serra, por terouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve apare-cer, discretamente disposta, alguma relíquia de amor...».

Sob estes retoques de chique, dados à pressa sob a influência doMaia, empertigava-se a sólida mobília do pai Salcede, de mogno eveludo azul; a console de mármore, com um relógio de bronze dou-rado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espe-lho, tendo entalada no caixilho uma fila de bilhetes de visita, deretratos de cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinarestes documentos, quando os passos alegres do Dâmaso soaram nocorredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diantedo canapé de veludo, teso, cómodo, com o seu chapéu alto na mão.

Ao vê-lo, o bom Dâmaso, que se abotoara todo numa sobreca-saca azul, florida por um botão de camélia, atirou risonhamente osbraços ao ar:

— Então esta é que é a pessoa de cerimónia? Sempre vocês têmcoisas! E eu a pôr a sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo como hábito de Cristo!...

Ega atalhou, muito sério:— O Cruges não é de cerimónia, mas o motivo que aqui nos traz

é delicado e grave, Dâmaso.Dâmaso arregalou os olhos, reparando enfim naquele estranho

modo dos seus amigos, ambos de negro, secos, tão solenes. Erecuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.

— Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...A voz apagava-se-lhe também. Pousado à borda de uma pol-

trona baixa, junto de uma mesa coberta de encadernações ricas,com as mãos nos joelhos, ficou esperando, numa ansiedade.

— Nós vimos aqui — começou Ega — em nome do nosso amigoCarlos da Maia...

Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda doDâmaso, até à risca do cabelo encaracolado a ferro. E não achou umapalavra, atónito, sufocado, esfregando estupidamente os joelhos.

Ega prosseguiu, lento, direito no canapé:— O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Dâmaso

publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso paraele e para uma senhora das relações dele, na Corneta do Diabo...

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— Na Corneta, eu — acudiu o Dâmaso, balbuciando. — QueCorneta? Nunca escrevi em jornais, graças a Deus! Ora essa, a Cor-neta!...

Ega, muito friamente, tirou do bolso um maço de papéis. E veiocolocá-los um por um, ao lado do Dâmaso, na mesa, sobre um mag-nífico volume da Bíblia de Doré.

— Aqui está a sua carta remetendo ao Palma Cavalão o rascu-nho do artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista daspessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até à Fan-celli... Além disso nós temos as declarações do Palma. O Dâmasonão é só o inspirador, mas materialmente o autor do artigo... Onosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma repa-ração pelas armas...

Dâmaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado — que invo-luntariamente Ega recuou, no receio de uma brutalidade. Mas já oDâmaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços trémulosno ar:

— Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu?Ele a mim é que me pregou uma partida!... Foi ele, vocês sabemperfeitamente que foi ele!...

E desabafou, num prodigioso fluxo de loquacidade, atirandopalmadas ao peito, com os olhos marejados de lágrimas. Fora Car-los, Carlos, que o desfeiteara a ele, mortalmente! Durante todo oInverno tinha-o perseguido para que ele o apresentasse a umasenhora brasileira muito chique, que vivia em Paris, e que lhe faziaolho... E ele, bondoso como era, prometia, dizia: «Deixa estar, eu teapresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma ocasiãosagrada, um momento de luto, quando ele Dâmaso fora ao Nortepor causa da morte do tio, e mete-se dentro da casa da brasileira...E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta,a ele, Dâmaso, que era íntimo do marido, íntimo de tu! Caramba,ele é que devia mandar desafiar Carlos! Mas não! fora prudente,evitara o escândalo por causa do Sr. Afonso da Maia.. Queixara-sede Carlos, é verdade... Mas no Grémio, na Casa Havanesa, entrerapaziada amiga... E no fim Carlos prega-lhe uma destas!

— Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundoconhece!...

Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placi-damente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Dâmaso

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concebera, rascunhara, pagara o artigo da Corneta. Isso não onegava, nem o podia negar: as provas estavam ali, abertas sobre amesa: eles tinham disso a declaração do Palma...

— Esse desavergonhado! — gritou o Dâmaso, levado noutrarajada de indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçandonos móveis. — Esse descarado do Palma! Com esse é que eu mequero ver!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se,somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor éque eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado às meiaslibras, aos sete mil réis! E ceias, e tipóias! Um ladrão que pediu orelógio ao Zeferino para figurar num baptizado, e pô-lo no prego!...E faz-me uma destas!... Mas hei-de escavacá-lo! Onde é que você oviu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procurá-lo, hoje mesmo,corrê-lo a chicotadas... Traições não, não admito a ninguém!

Ega, com a tranquilidade paciente de quem sente a presa certa,lembrou de novo a inutilidade daquelas divagações:

— Assim nunca acabamos, Dâmaso... O nosso ponto é este: oDâmaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamentedessa injúria, ou dá uma reparação pelas armas...

Mas o Dâmaso, sem escutar, apelava desesperadamente para oCruges, que se não movera do sofá de veludo, esfregando, um con-tra o outro, com um ar arrepiado e de dor, os dois sapatos novos deverniz.

— Aquele Carlos! Um homem que se dizia meu amigo íntimo!Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Vocêbem viu, Cruges. Diga! Fale, homem! Não sejam vocês todos contramim!... Até às vezes ia à Alfândega despachar-lhe caixotes...

O maestro baixava os olhos, vermelho, num infinito mal-estar.E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimidação derradeira:

— Em resumo, Dâmaso, desdiz-se ou bate-se?— Desdizer-me? — tartamudeou o outro, empertigando-se, num

penoso esforço de dignidade, a tremer todo. — E de quê? Ora essa!É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!

— Perfeitamente, então bate-se...Dâmaso cambaleou para trás, desvairado:— Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a

soco. Que venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o...Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os

punhos fechados e em riste. E queria Carlos ali, para o escavacar!

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Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duelos em Portugal,que acabavam sempre por troça!

Ega, no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoaraa sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia.Depois, serenamente, fez a última declaração de que fora incum-bido. Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retractar-se e rejeitavatambém uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o deque em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse umarua, fosse um teatro, lhe escarraria na face...

— Escarrar-me! — berrou o outro, lívido, recuando, como se oescarro já viesse no ar.

E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-sesobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, numa agonia:

— Ó João, ó João, tu que és meu amigo, por quem és, livra-medesta entaladela!

Ega foi generoso. Desprendeu-se dele, empurrou-o branda-mente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaispelo ombro. E declarou que, desde que Dâmaso apelava para a suaamizade, desaparecia o enviado de Carlos, necessariamente exi-gente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da VilaBalzac. Queria pois o amigo Dâmaso um conselho? Era assinaruma carta afirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta,sobre o Sr. Carlos da Maia e certa senhora, fora invenção falsa egratuita. Só isto o salvava. De outro modo, Carlos um dia, noChiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre,Damasozinho, a não querer ser apontado em Lisboa como umincomparável cobarde, tinha de se bater à espada ou à pistola...

— Ora, em qualquer desses casos, você era um homem morto.O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de veludo,

com a face emparvecida para o Ega. Alargou molemente os braços,murmurou da profundidade do seu terror:

— Pois sim, eu assino, João, eu assino...— É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está pertur-

bado, eu mesmo redijo.Dâmaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar

tonto e vago por sobre os móveis:— Papel de carta? É para carta?— Sim, está claro, uma carta ao Carlos!

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Os passos do desgraçado perderam-se enfim no corredor, pesa-dos e sucumbidos.

— Coitado! — suspirou o Cruges levando de novo, com um ar dearrepio, a mão aos sapatos.

Ega lançou-lhe um psiu severo. Dâmaso voltava com o seusumptuoso papel de monograma e coroa. Para envolver em silêncioe segredo aquele transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto panode veludo, desdobrando-se, mostrou o brasão de Salcede, ondehavia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letrasde ouro, a sua formidável divisa: SOU FORTE! Imediatamente Egaafastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel adata e a adresse do Dâmaso...

— Eu faço o rascunho, você depois copia...— Pois sim! — gemeu o outro, de novo aluído na poltrona, pas-

sando o lenço pelo pescoço e pela face.Ega, no entanto, escrevia muito lentamente, com amor. E naquele

silêncio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foicoxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frinchado caixilho, bilhetes e fotografias. Eram as glórias sociais do Dâmaso,os documentos do chique a valer que era a paixão da sua vida: bilhe-tes com títulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas deentrada no hipódromo, diplomas de membro do Clube Naval, demembro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos: — até peda-ços cortados de jornais anunciando os anos, as partidas, as chegadasdo Sr. Salcede, «um dos nossos mais distintos sportmen».

Desventuroso sportman! Aquela folha de papel, onde o Ega ras-cunhava, ia-o enchendo pouco a pouco de um terror angustioso.Santo Deus! Para que eram tantos apuros numa carta ao Carlos,um rapaz íntimo? Uma linha bastaria: «Meu querido Carlos, não tezangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não! Toda uma página deletra miúda, com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a folha,molhava a pena, como se dela devessem escorrer, sem cessar, coisashumilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa,até ao papel:

— Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?Ega reflectiu, com a pena no ar:— Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos,

vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo de umagaveta.

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Dâmaso respirou com alívio. Ah, bem! Isso parecia-lhe maisdecente entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento,até ele desejava! Com efeito, o artigo fora uma tolice... Mas então!Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão...

Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a acharsabor à vida. Findou mesmo por acender um charuto, levantar-sesem rumor, acercar-se do Cruges que, coxeando através das curiosi-dades da sala, encalhara sobre o piano e sobre os livros de música,com o pé dorido no ar.

— Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.Dâmaso ficou ali um momento, a mascar o charuto. Depois, ati-

rando um olhar inquieto à mesa onde o Ega rascunhava intermina-velmente, murmurou, sobre o ombro do maestro:

— Uma entaladela assim! Eu é por causa da gente conhecida...Senão não me importava! Mas veja você também se arranja as coi-sas e se o Carlos deixa aquilo na gaveta...

Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhavapara o piano, devagar, relendo baixo.

— Ficou óptimo, salva tudo! exclamou por fim. — Vai em forma decarta ao Carlos, é mais correcto. Você depois copia e assina. Ouça lá:«Ex.mo Sr...» Está claro, você dá-lhe «excelência» porque é um docu-mento de honra... «Ex.mo Sr. — Tendo-me Vossa Excelência, por inter-médio dos seus amigos João da Ega e Vitorino Cruges, manifestado aindignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo, deque eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho decla-rar francamente a Vossa Excelência que esse artigo, como agora reco-nheço, não continha senão falsidades e incoerências: e a minha des-culpa única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta nomomento de me achar no mais completo estado de embriaguez...»

Parou. E nem se voltou para o Dâmaso, que deixara pender osbraços, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se diri-giu, entalando o monóculo:

— Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim, por ser justa-mente a única maneira de ressalvar a dignidade do nosso Dâmaso.

E desenvolveu a sua ideia, mostrando quanto era generosa ehábil — enquanto o Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. NemCarlos nem ele queriam que o Dâmaso, numa carta (que se podiatornar pública), declarasse «que caluniara por ser caluniador». Era

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necessário, pois, dar à calúnia uma dessas causas fortuitas e ingo-vernáveis que tiram a responsabilidade às acções. E que melhor, tra-tando-se de um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bêbedo?...Não era vergonha para ninguém embebedar-se... O próprio Carlos,todos eles ali, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado.Sem remontar aos Romanos, onde isso era uma higiene e um luxo,muitos grandes homens na História bebiam de mais. Em Inglaterraera tão chique, que Pitt, Fox e outros nunca falavam na Câmara dosComuns senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bêbedo! Enfim aHistória, a Literatura, a Política, tudo fervilhava de piteiras... Ora,desde que o Dâmaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva.Era um homem de bem que apanhara uma carraspana e que come-tera uma indiscrição... Nada mais!

— Pois não te parece, Cruges?— Sim, talvez, que estava bêbedo — murmurou o maestro timi-

damente.— Pois não lhe parece a você, francamente, Dâmaso?— Sim, que estava bêbedo — balbuciou o desgraçado.Imediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim,

reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é Vossa Excelênciaum carácter absolutamente nobre; e as outras pessoas que nessemomento de embriaguez ousei salpicar de lama são-me só merecedorasde veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a sucedersoltar eu alguma palavra ofensiva para Vossa Excelência, não lhe deviadar Vossa Excelência ou aqueles que a escutassem mais importância doque a que se dá a uma involuntária baforada de álcool — pois que, porum hábito hereditário que reaparece frequentemente na minha famí-lia, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De Vossa Exce-lência, com toda a estima, etc.». Rodou sobre os tacões, pousou o rascu-nho na mesa — e, acendendo o charuto ao lume do Dâmaso, explicoucom amizade, com bonomia, o que o determinara àquela confissão debebedeira incorrigível e palreira. Fora ainda o desejo de garantir atranquilidade do «nosso Dâmaso». Atribuindo todas as imprudênciasem que pudesse cair a um hábito de intemperança hereditária, de quetinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Dâmaso punha-se,para sempre, ao abrigo das provocações de Carlos...

— Você, Dâmaso, tem génio, tem língua... Um dia esquece-se, eno Grémio, sem querer, na cavaqueira depois do teatro, lá lheescapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, aí reco-

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meça a questão, o escarro, o duelo... Assim já Carlos não se podequeixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gota de mais, agota tomada por impulso de borrachice hereditária... Você alcançadeste modo a coisa que mais se apetece neste nosso século XIX — airresponsabilidade!... E depois para a sua família não é vergonha,porque você não tem família. Em resumo, convém-lhe?

O pobre Dâmaso escutava-o, esmagado, enervado, sem com-preender aquelas roncantes frases sobre «a hereditariedade», sobre«o século XIX». E um único sentimento vivo o dominava: acabar,reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros.Encolheu os ombros, sem forças:

— Que lhe hei-de eu fazer?... Para evitar falatórios.E abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu uma folha de

papel em que o monograma luzia mais largo, começou a copiar acarta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, de uma nitidezde gravura em aço.

Ega, no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fume-gante, rondava em torno da mesa, seguindo sofregamente as linhasque traçava a mão aplicada do Dâmaso, ornada de um grosso anelde armas. E durante um momento atravessou-o um susto...Dâmaso parara, com a pena indecisa. Diabo! Acordaria enfim, nofundo de toda aquela gordura balofa, um resto escondido de digni-dade, de revolta?... Dâmaso alçou para ele os olhos embaciados:

— Embriaguez é com n ou com m?— Com um m, um m só, Dâmaso! — acudiu Ega afectuosa-

mente. — Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!E o infeliz sorriu à sua própria letra — pondo a cabeça de lado,

no orgulho sincero daquela soberba prenda.Quando findou a cópia, foi Ega que conferiu, pôs a pontuação.

Era necessário que o documento fosse chique e perfeito.— Quem é o seu tabelião, Dâmaso?— O Nunes, na Rua do Ouro... Porquê?Oh! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre.

Mera cerimónia... Pois amigos, como papel, como letra, como estilo,está de apetite a cartinha!

Meteu-a logo num envelope onde rebrilhava a divisa «SouForte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca.Depois, agarrando o chapéu, batendo no ombro do Dâmaso comuma familiaridade folgazã e leve:

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— Pois, Dâmaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fora deportas, numa poça de sangue! Assim é uma delícia. E adeus... Nãose incomode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira?Vai lá tudo, hem! Não venha cá, homem... Adeus!

Mas o Dâmaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho,cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquieta-ção que o assaltara:

— Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega?Ega encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos...

Mas enfim, Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao

Dâmaso:— E chamei eu àquele homem meu amigo!— Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso! — foi a

observação do Ega, saltando alegremente os degraus.Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrela, Carlos já

esperava ao portão de ferro, numa impaciência, por causa do jantarna Toca. Enfiou logo para dentro, atropelando o maestro, bradou aococheiro que voasse ao Loreto.

— Então, meus senhores, temos sangue?— Temos melhor! — exclamou Ega no barulho das rodas, flo-

reando o envelope.Carlos leu a carta do Dâmaso. E foi um imenso assombro:— Isto é incrível... Chega a ser humilhante para a natureza

humana!— O Dâmaso não é o género humano — acudiu Ega. — Que

diabo esperavas tu? Que ele se batesse?— Não sei, corta o coração... Que se há-de fazer a isto?Segundo o Ega, não se devia publicar; seria criar curiosidade e

escândalo em torno do artigo da Corneta, que custara trinta libras asufocar. Mas convinha conservar aquilo como uma ameaça pairandosobre o Dâmaso, tornando-o para longos anos nulo e inofensivo.

— Eu estou mais que vingado — concluiu Carlos. — Guarda opapel: é obra tua, usa-o como quiseres...

Ega guardou-o com prazer, enquanto Carlos, batendo no joelho domaestro, queria saber como ele se portara naquele lance de honra...

— Pessimamente! — gritou Ega. — Com expressões de compai-xão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrandocom a mão no sapato...

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— Pudera! — exclamou Cruges desafogando enfim. — Vocêsdizem-me que me ponha de cerimónia, calço uns sapatos novos deverniz, estive toda a tarde num tormento!

E não se conteve mais, arrancou o sapato, pálido, com ummedonho suspiro de consolação.

No dia seguinte, depois do almoço, enquanto uma chuva grossaalagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enter-rado numa poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Dâmaso:e pouco a pouco subia nele a mágoa de que esse colossal documento decobardia humana, tão interessante para a fisiologia e para a arte,ficasse para sempre inaproveitado no escuro de uma gaveta!... Queefeito, que soberbo efeito se aquela confissão do «nosso distinto sport-man» surgisse um dia na Gazeta Ilustrada ou no novo jornal A Tarde,nas colunas do High Life, sob este título: «PENDÊNCIA DEHONRA!» E que lição, que meritório acto de justiça social!

Todo esse Verão, Ega detestara o Dâmaso, certo, desde Sintra,de que ele era o amante da Cohen e de que, por esse imbecil degrossas nádegas, esquecera ela para sempre a Vila Balzac, asmanhãs na colcha de cetim preto, os seus beijos delicados, os versosde Musset que lhe lia, os lunchezinhos de perdiz, tantos encantospoéticos. Mas o que lhe tornara o Dâmaso intolerável — fora a suafarófia radiante de homem preferido; o ar de posse com que pas-seava ao lado de Raquel pelas estradas de Sintra, vestido de fla-nela branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobreo ombro; e o acenozinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atiravade lado, ao passar, a ele próprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: eatravés desse ódio ruminara sempre o desejo de uma vingança —pancada, desonra ou ridículo que tornasse o Sr. Salcede, aos olhosde Raquel, desprezível, grotesco, chato como um balão furado...

E agora ali tinha essa carta providencial, em que o homem sole-nemente se declarava bêbedo. «Sou um bêbedo, estou semprebêbedo!» Assim o dizia, no seu papel de monograma de ouro, o Sr. Sal-cede, num medo vil de cão goso, rastejando com o rabo entre as per-nas diante de qualquer pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... Ehavia de encafuar tão decisivo documento no fundo de um gavetão?

Publicá-lo na Gazeta Ilustrada ou n’A Tarde não podia, infeliz-mente, por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «emsegredo», como uma curiosidade psicológica, ao Craft, ao marquês,

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ao Teles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiaruma cópia ao Taveira, que, ressentido eternamente da questão como Dâmaso em casa da Lola Gorda, correria a lê-la em segredo naCasa Havanesa, no bilhar do Grémio, no Silva, nos camarins decantoras. E ao fim de uma semana a Sr.a D. Raquel saberia, inevi-tavelmente, que o escolhido do seu coração era, por confissão pró-pria, um caluniador e um bêbedo!... Delicioso!

Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiara carta do Dâmaso. Mas quase imediatamente, um criadotrouxe-lhe um telegrama de Afonso da Maia, anunciando que che-gava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sair, telegrafarpara os Olivais, avisar Carlos.

Carlos apareceu nessa noite, já tarde, transido de frio, com ummonte de bagagens — porque abandonara definitivamente os Oli-vais. Maria Eduarda regressava também a Lisboa, para o primeiroandar da Rua de S. Francisco, tomado agora por seis meses, tape-tado de novo pela mãe Cruges. E Carlos vinha muito impressio-nado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear, ao fogão,acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias alegres,a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro de uma dorna, afesta do deus Tchi, as guitarradas do marquês, as longas cavaquei-ras ao café com as janelas abertas e as borboletas voando em tornodos candeeiros... Fora as cordas de água, sob o vento de Inverno,batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos terminaram porficar calados, pensativos, com os olhos no lume.

— Quando esta tarde dei pela última vez uma volta na quinta— disse por fim Carlos — já não havia uma única folha nas árvo-res... Tu não sentes sempre uma grande melancolia, nestes fins deOutono?...

— Imensa! — murmurou Ega lugubremente.Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e

Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em SantaApolónia. O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo,entre o rumor de gente que se escoava das portinholas abertas,Afonso, com o seu velho capote de gola de veludo, apegado a umabengala, debatendo-se entre homens de boné agaloado que lhe ofe-reciam o Hotel Terreirense e a Pomba d’Oiro. Atrás Mr. Antoine, ochef francês, grave, de chapéu alto, trazia o cesto em que viajara o«Reverendo Bonifácio».

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Carlos e Ega acharam Afonso mais acabado, mais pesado. Toda-via gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua robustezde patriarca. Ele encolheu os ombros, queixando-se de ter sentido,desde o fim do Verão, vertigens, um cansaço vago...

— Vocês é que estão excelentes — acrescentou abraçando outravez Carlos e sorrindo ao Ega. — E que ingratidão foi essa tua,John, metido aqui todo o Verão sem me ir visitar?... Que tens tufeito? Que têm vocês feito?

— Mil coisas! — acudiu Ega alegremente. — Planos, ideias,títulos... Temos sobretudo o projecto de uma Revista, um aparelhode educação superior, que vamos montar com uma força de milcavalos!... Enfim, logo se lhe conta tudo ao almoço.

E ao almoço, com efeito, para justificar as suas ocupações emLisboa, falaram da Revista como se ela já estivesse organizada e osartigos a imprimir na oficina — tanta foi a precisão com que lhe des-creveram as tendências, a feição crítica, as linhas de pensamentosobre que ela devia rolar... Ega já preparara um trabalho para o pri-meiro número: A Capital dos Portugueses. Carlos meditava umasérie de ensaios à inglesa, sob este título: Porque Falhou entre Nós oSistema Constitucional. E Afonso escutava, encantado com aquelasbelas ambições de luta, querendo partilhar da grande obra, comosócio capitalista... Mas Ega entendia que o Sr. Afonso da Maia deviadescer à arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua expe-riência. Então o velho riu. O quê! compor prosa, ele, que hesitavapara traçar uma carta ao feitor? De resto, o que teria a dizer ao seupaís, como fruto da sua experiência, reduzia-se pobremente a trêsconselhos, em três frases — aos políticos: «menos liberalismo e maiscarácter»; aos homens de letras: «menos eloquência e mais ideia»; aoscidadãos em geral: — «menos progresso e mais moral».

Isto entusiasmou o Ega! Justamente, aí estavam as verdadei-ras feições da reforma espiritual que a Revista devia pregar! Eranecessário tomá-las como moto simbólico, inscrevê-las em letrasgóticas no frontispício porque Ega queria que a Revista fosse origi-nal logo na capa. E então a conversação desviou para o exterior daRevista — Carlos pretendendo que fosse azul-claro com tipo Renas-cença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois Mundos,numa nuance mais cor de canário. E, levados pela sua imaginaçãode meridionais, já não era só para agradar a Afonso da Maia queiam levantando e dando forma àquele confuso plano.

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Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:— Isto agora é sério. Precisamos arranjar imediatamente a

casa para a redacção!Ega bravejava:— Pudera! E móveis! E máquinas!Toda a manhã, no escritório de Afonso, azafamados, com papel e

lápis, se ocuparam em fixar uma lista de colaboradores. Mas já asdificuldades surgiam. Quase todos os escritores sugeridos desagrada-vam ao Ega, por lhes faltar, no estilo, aquele requinte plástico e par-nasiano de que ele desejava que a Revista fosse o impecável modelo.E a Carlos alguns homens de letras pareciam impossíveis —sem querer confessar que neles lhe repugnava exclusivamente afalta de linha e o fato mal feito...

Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia sermobilada luxuosamente, com sofás do consultório de Carlos ealgum bricabraque da Toca: e sobre a porta (ornada de umguarda-portão de libré) a tabuleta de verniz preto, com Revista dePortugal em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos,pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o lançava,como era desejo dela, na actividade, numa luta interessante deideias. Ega, esse, via já a brochura cor de canário aos montões nasvitrinas dos livreiros, discutida nas soirées do Gouvarinho,folheada na Câmara, com espanto, pelos políticos...

— Vai-se remexer Lisboa este Inverno, Sr. Afonso da Maia! —gritou ele atirando um gesto imenso até ao tecto.

E o mais contente era o velho.Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com ele à Rua de

S. Francisco (onde Maria se instalara nessa manhã), levarem anova da grande obra. Mas encontraram à porta uma carroça des-carregando malas; e a senhora, contou o Domingos, que ajudava oscarroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem toa-lha. Com tanta confusão na casa, Ega não quis subir.

— Até logo — disse ele. — Vou talvez procurar o Simão Cra-veiro e falar-lhe da Revista.

Subiu lentamente o Chiado, leu os telegramas na Casa Hava-nesa. Depois, à esquina da Rua Nova da Trindade, um homemrouco, sumido num paletó, ofereceu-lhe uma «senhazinha». Outros,em volta, gritavam na sombra do Hotel Aliança:

— Bilhete para o Ginásio! Mais barato... Bilhete para o Giná-sio! Quem vende?...

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Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicosde gás do Ginásio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rostocom o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca eflor no paletó.

— Que é isto?— Festa de beneficência, não sei — disse o Craft. — Uma coisa

promovida por senhoras, a baronesa de Alvim mandou-me umbilhete... Venha você daí ajudar-me a levar esta caridade ao Calvá-rio.

E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo umasenha. No peristilo do Ginásio encontraram Taveira passeando efumando solitariamente, à espera que findasse a primeira comédia,O Fruto Proibido. Então Craft propôs «botequim e genebra».

— E que há do Ministério — perguntou ele, apenas abancarama um canto.

O Taveira não sabia. Todos esses dois longos dias se intrigaradesesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Públicas: oVideira também. E falava-se de uma cena terrível por causa de sin-dicatos, em casa do presidente do Conselho, o Sá Nunes, que termi-nara por dar um murro na mesa, gritar: «Irra que isto não é opinhal de Azambuja!».

— Canalha! — rosnou Ega com ódio.Depois falaram do Ramalhete, da volta de Afonso, da reapari-

ção de Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez, nesseInverno, uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civili-zada e inteligente.

Taveira acudiu com o olho brilhante:— Diz que vamos ter um centrozinho muito mais interessante

ainda, na Rua de S. Francisco! Foi o marquês que me disse.Madame Mac Gren vai receber.

Craft não sabia mesmo que ela já tivesse recolhido da Toca.— Voltou hoje — disse o Ega. — Você ainda não a conhece?...

Encantadora.— Creio que sim.O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma

beleza! E um ar tão simpático! — Encantadora! — repetiu Ega.Mas O Fruto Proibido findara, os homens enchiam o peristilo,

num rumor lento, acendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e

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Taveira com a genebra, correu à plateia para descobrir o camaroteda Alvim.

Mal erguera, porém, a cortina e assestara o monóculo — avis-tou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com umgrande leque de rendas brancas; por trás negrejavam as suíças for-tes do marido; e em face dela, recostado no veludo da grade, decasaca, com a bochecha risonha, uma grossa pérola no peitilho dacamisa, o Dâmaso, o bêbedo!

Ega caiu ao acaso, molemente, na borda de uma cadeira: e per-turbado, já esquecido da Alvim, ali ficou a olhar o pano coberto deanúncios, correndo os dedos trémulos pelo bigode.

No entanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reen-trava na plateia. Um cavalheiro, gordo e carrancudo, tropeçou no joe-lho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediupermissão a Sua Excelência. Ele não escutava, não percebia: os seusolhos, um momento errantes, tinham-se enfim cravado no camaroteda Cohen e não se desviaram de lá, numa emoção que o empalidecia.

Não a tornara a encontrar desde Sintra, onde só a via de longe,com vestidos claros sob o verde das árvores; e agora ali, toda depreto, em cabelo, com um decote curto onde brilhava a perfeita bran-cura do seu colo, ela era outra vez a sua Raquel, dos tempos divinosda Vila Balzac. Era assim que ele, todas as noites em S. Carlos, acontemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada aotabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta de ouro, presapor um fio de ouro. Parecia mais pálida, mais delicada, com o longoquebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lírio meiomurcho; e, como então, os seus cabelos magníficos e pesados caíamhabilmente numa massa meio solta sobre as costas, num desalinhode nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rabecas e o rumor dascadeiras, Ega revia, numa onda de recordações que o sufocava, ogrande leito da Vila Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizescomidas em camisa à borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tar-des, quando ela saía furtivamente, coberta de véus, e ele ficava, can-sado, no crepúsculo poético do quarto, cantarolando a Traviata.

— Vossa Excelência dá licença, Sr. Ega?Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua

cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o Sr. SousaNeto. O pano subira. À borda da rampa um lacaio, piscando o olhoà plateia, fazia confidências sobre a patroa, de espanejador debaixo

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do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote,cofiando as suíças com um correr lento da mão bem tratada, ondereluzia um diamante.

Ega então, num soberbo alarde de indiferença, cravou o monó-culo no palco. O lacaio abalara espavorido, a um repique furioso desineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca à banda, rom-pera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhandocom uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava:«Pois hei-de amá-lo sempre! hei-de amá-lo sempre!».

Irresistivelmente, Ega revirou o canto do olho para o camarote:Raquel e o Dâmaso, com as cabeças chegadas como em Sintra,cochichavam num sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiunum imenso ódio ao Dâmaso! Colado à ombreira da porta, rilhavaos dentes, num desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.

E não desviava dele os olhos, que dardejavam. Na cena, umvelho general, gotoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pelasua tapioca. A plateia ria, o Cohen ria. E nesse momento Dâmaso,que se debruçara no camarote, com as mãos de fora, calçadas degris perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Sintra umacenozinho petulante, muito de alto, na ponta dos dedos. Isto feriuo Ega como um insulto. E ainda na véspera aquele cobarde se lheagarrara às mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse»!

Subitamente, com uma ideia, palpou por sobre o bolso a car-teira onde na véspera guardara a carta do Dâmaso... «Eu t’ar-ranjo!», murmurou ele. E abalou, desceu a Rua da Trindade, cortoupelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da Praça deCamões, num grande portão que uma lanterna alumiava. Era aredacção da Tarde.

Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria depedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarroado que lhe disse que oNeves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, político, direc-tor da Tarde, fora, havia anos, numas férias, seu companheiro decasa no Largo do Carmo; e desde esse Verão alegre em que o Neveslhe ficara sempre devendo três moedas, os dois tratavam-se por tu.

Foi encontrá-lo numa vasta sala alumiada por bicos de gás semglobo, sentado na borda de uma mesa atulhada de jornais, com o cha-péu para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de província que oescutavam de pé, num respeito de crentes. Num vão de janela, com doishomens de idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e

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uma cabeleira crespa que parecia erguida numa rajada de vento, brace-java como um moinho na crista de um monte. E, abancado, outrosujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.

Ao ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redacção,naquela noite de intriga e de crise, Neves cravou nele os olhos tãocuriosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:

— Nada de política, negócio particular... Não te interrompas.Depois falaremos.

O outro findou a injúria que estava lançando ao José Bento,«essa grande besta que fora meter tudo no bico da amiga do Sousae Sá, o par do Reino» — e na sua impaciência saltou da mesa, tra-vou do braço do Ega, arrastando-o para um canto:

— Então que é?— É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí

por um sujeito muito conhecido. Nada de interessante. Um pará-grafo imundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavalos... OMaia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas,numa carta que quero que vocês publiquem.

A curiosidade do Neves flamejou:— Quem é?— O Dâmaso.O Neves recuou de assombro:— O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta

tarde jantei com ele! Que diz a carta?— Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbedo, que é de pro-

fissão um bêbedo...O Neves agitou as mãos com indignação:— E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso,

nosso amigo político!... E que não fosse, não é questão de partido, éde decência! Eu faço lá isso!...; Se fosse uma acta de duelo, umacoisa honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que umhomem se declara bêbedo! Tu estás a mangar!

Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sanguena face, teve ainda uma revolta àquela ideia de o Dâmaso se decla-rar bêbedo!

— Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história... Deixa ver acarta.

E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura flo-reada, rompeu num alarido:

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— Isto não é o Dâmaso nem é a letra do Dâmaso!... Salcede!Quem diabo é Salcede? Nunca foi o meu Dâmaso!

— É o meu Dâmaso — disse o Ega. — o Dâmaso Salcede, umgordo...

O outro atirou os braços ao ar:— O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro!

Que diabo, quando se diz o Dâmaso é o Guedes!...Respirou com grande alívio: — Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com

estas coisas de Ministério, uma carta dessas escrita pelo Guedes...Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo,um janota que tem uma propriedade em Sintra? Isso! Um maganãoque nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silvério mais detrezentos mil réis... Perfeitamente, às ordens... Ó Pereirinha, olheaqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta para sair amanhã, na primeirapágina, tipo largo...

O Sr. Pereirinha lembrou o artigo do Sr. Vieira da Costa sobre areforma das pautas.

— Vai depois! — gritou o Neves. — As questões de honra antesde tudo!

E voltou ao seu grupo, onde agora se falava do conde de Gouva-rinho, saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão dechefe, afirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!

Ega acendeu o charuto, ficou um momento considerando aque-les sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decertodeputados que a crise arrastara a Lisboa, arrancara à quietaçãodas vilas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido decasimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jucundo,crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, como paletó solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro emaciço de cavalo: e dois padres muito rapados, muito morenos,fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunta-mente apagado e desconfiado, que marca os homens de província,perdidos entre as tipóias e as intrigas da capital. Vinham ali àsnoites, àquele jornal do partido, saber as novas, beber do fino, unscom esperanças de empregos, outros por interesses de terriola,alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robustotalento»; admiravam-lhe a verbosidade e a táctica; decerto gosta-vam de citar nas lojas das suas vilas o amigo Neves, o jornalista, o

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da Tarde... Mas, através dessa admiração e do prazer de roçar porele, percebia-se-lhes um vago medo que aquele «robusto talento»lhes pedisse, num vão de janela, duas ou três moedas. O Neves, noentanto, celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse osrasgos, a pureza, as belas sínteses históricas do José Clemente!Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas queferem e que ficam cravadas, ali a arder, na pele do touro! E era agrande coisa na Câmara — ter a farpa, sabê-la ferrar!

— Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do tra-pézio? — gritou ele virando-se para a janela, para o rapaz de jaque-tão claro.

O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiam de agudeza e malícia,estendeu o pescoço magro num colarinho muito decotado, lançou de lá:

— A do trapézio? Divina! Conta à rapaziada!A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, à espera da «do

trapézio». Fora na Câmara dos Pares, na reforma da instrução.Estava falando o Torres Valente, esse maluco que defendia a ginás-tica dos colégios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouva-rinho ergue-se e atira-lhe esta: «Sr. Presidente, direi uma palavrasó. Portugal sairá para sempre da senda do progresso, em quetanto se tem ilustrado, no dia em que nós formos ao ensino, commão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio!».

— Muito bem! — rosnou um dos padres, profundamente satis-feito.

E no murmúrio de admiração que se ergueu destacou umganido — o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia osombros, chasqueava com uma risota na bochecha cor de tomate:

— Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sai é umgrandíssimo carola!

E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de província,liberais e finórios, que achavam aquele fidalgo excessivamente ape-gado à cruz. Mas já o Neves, de pé, bravejava:

— Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gou-varinho carola! Está claro que tem toda a orientação mental doséculo, é um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é aréplica, a táctica parlamentar! Desde que o tipo da maioria vem delá com a descoberta do trapézio, Gouvarinho amigo, ainda que fossetão ateu como Renan, zás!, atira-lhe logo para cima com a cruz!...Isto é que é a estratégia parlamentar! Pois não é assim, Ega?

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Ega murmurou, através do fumo do charuto:— Sim, com efeito, a cruz para isso ainda serve...Mas nesse momento o sujeito calvo, que repelira a tira de papel

e se espreguiçava, caído para as costas da cadeira, exausto, pediu aoSr. João da Ega «que falasse à gente e guardasse o seu dinheiro...».

Ega acercou-se logo daquele simpático homem, tão engraçado,tão querido de todos:

— Então, na grande faina, Melchior?— Estou aqui a ver se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro,

os Cantos da Serra, e não me sai nada em termos... Não sei o quehei-de dizer!

Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito cama-rada com o Melchior:

— Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, anun-ciadores. De um livro como o do Craveiro têm só respeitosamente adizer onde se vende e quanto custa.

O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzadospor trás da nuca:

— Então onde queria você que se falasse dos livros?... Nosrepertórios?

Não, nas revistas críticas: ou então nos jornais — que fossemjornais, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasmade política em estilo mazorro ou em estilo fadista, um romance maltraduzido do francês por baixo e o resto cheio com anos, despachos,parte de polícia e lotaria da Misericórdia. E como em Portugal nãohavia nem jornais sérios nem revistas críticas — que se não falasseem parte nenhuma.

— Com efeito — murmurou Melchior — ninguém fala de nada,ninguém parece pensar em nada...

E com toda a razão, afirmou Ega. Certamente muito desse silên-cio provinha do natural desejo que têm, os que são medíocres, deque se não aluda muito aos que são grandes. É a invejazinha reles erastejante! Mas em geral o silêncio dos jornais para com os livrosprovém sobretudo de eles terem abdicado todas as funções elevadasde estudo e de crítica, de se terem tornado folhas rasteiras de infor-mação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetência...

— Está claro, não falo por você, Melchior, que é dos nossos e deprimeira ordem! Mas os seus colegas, menino, calam-se por sesaberem incompetentes...

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O Melchior ergueu os ombros com um ar cansado e descrente:— Calam-se também porque o público não se importa, ninguém

se importa...Ega protestou, já excitado. O público não se importava!? Essa

era curiosa! O público então não se importa que lhe falem de livrosque ele compra aos três mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada apopulação de Portugal, caramba, é igual aos grandes sucessos deParis e de Londres... Não, Melchiorzinho amigo, não! Esse silênciodiz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras:«Nós somos incompetentes. Nós estamos bestializados pela notíciado senhor conselheiro que chegou, ou do senhor conselheiro quepartiu, pelos High Lifes, pela amabilidade dos donos da casa, peloartigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosachula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos jáfalar de uma obra de arte ou de uma obra de história, deste belolivro de versos ou deste belo livro de viagens. Não temos nem fra-ses nem ideias. Não somos talvez cretinos — mas estamos cretini-zados. A obra de literatura passa muito alto — nós chafurdamosaqui muito em baixo...»

— E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silêncio dosjornais, o coro dos jornalistas!

Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para trás,como quem goza uma bela ária. Depois, com uma palmada namesa:

— Caramba, ó Ega, muito bem fala você!.. Você nunca pensouem ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! OEga é que era, para atirar ali na Câmara a piadinha à Rochefort.Ardia Tróia!».

E imediatamente, enquanto Ega ria, contente, tornando a acen-der o charuto — Melchior arrebatou a pena:

— Você está em veia! Diga lá, dite lá... Que hei-de eu aqui pôrsobre o livro do Craveiro?

Ega quis saber o que escrevera já o amigo Melchior. Apenastrês linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta SimãoCraveiro. O precioso volume, onde cintilam, em caprichosos rele-vos, todas as jóias deste prestigioso escritor, é publicado pelos acti-vos editores...» E aqui o Melchior emperrara. Melchior não gostavadaquele frouxo termo — activos. Ega então sugeriu — empreende-dores. Melchior emendou, leu:

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— «...publicado pelos empreendedores editores...» Ora sebo,rima!

Arrojou a pena, descoroçoado. Acabou-se! Não estava em verve.E além disso era tarde, tinha a rapariga à espera...

— Fica para amanhã... O pior é que já ando nisto há cinco dias!Irra! Você tem razão, a gente bestializa-se. E faz-me raiva! Não é lápelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bomrapaz, e demais a mais pertence cá ao partido!

Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se comdesespero. E Ega ia ajudá-lo, limpar-lhe as costas cheias de cal —quando entre eles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, coma sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada devento.

— Que está o Egazinho a fazer neste covil da notícia?— Aqui a escovar o Sampaio... Estive também a ouvir o Neves,

a grande frase do Gouvarinho...O Gonçalo pulou, com uma faísca de malícia nos olhos negros

de algarvio esperto.— A da cruz? Espantosa! Mas há melhor, há melhor!Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janela:— É necessário falar baixo por causa da rapaziada de provín-

cia... Há outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é quesabe! É uma coisa da Liberdade conduzindo à mão o corcel do Pro-gresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdadecom calções de jóquei, o Progresso com um grande freio... Espan-toso! Que besta, aquele Gouvarinho! E os outros, menino, os outros!Você não foi à Câmara quando se discutiu a questão de Tondela?Extraordinário! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Estapolítica, este S. Bento, esta eloquência, estes bacharéis matam-me.Querem dizer agora aí que isto por fim não é pior que a Bulgária.Histórias! Nunca houve uma choldra assim no universo!

— Choldra em que você chafurda! — observou o Ega, rindo.O outro recuou com um grande gesto:— Distingamos! Chafurdo por necessidade, como político: e

troço por gosto, como artista!Mas Ega, justamente, achava uma desgraça incomparável para

o país esse imoral desacordo entre a inteligência e o carácter.Assim, ali estava o amigo Gonçalo, como homem de inteligência,considerando o Gouvarinho um imbecil...

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— Uma cavalgadura — corrigiu o outro.— Perfeitamente! E todavia, como político, você quer essa

cavalgadura para ministro, e vai apoiá-la com votos e com discur-sos sempre que ela relinche ou escoucinhe.

Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a facefranzida:

— É necessário, homem! Razões de disciplina e de solidarie-dade partidária... Há uns compromissos... O Paço quer, gosta dele...

Espreitou em roda, murmurou, colado ao Ega:— Há aí umas questões de sindicatos, de banqueiros, de conces-

sões em Moçambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito — o outro,

faiscando todo de finura e cinismo, atirou-lhe uma palmada aoombro:

— Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente! Nósfizemos como vocês, os literatos. Antigamente a literatura era aimaginação, a fantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiência,o facto positivo, o documento. Pois cá a política em Portugal tam-bém se lançou na corrente realista. No tempo da Regeneração e dosHistóricos, a política era o progresso, a viação, a liberdade, o pala-vrório... Nós mudámos tudo isso. Hoje é o facto positivo — odinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossaalma, menino! O divino dinheiro!

E de repente emudeceu, sentindo na sala um silêncio — onde oseu grito de «dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no arquente do gás, com a prolongação de um toque de rebate acordandoas cobiças, chamando ao longe e ao largo todos os hábeis para osaque da Pátria inerte!...

O Neves desaparecera. Os cavalheiros de província dispersa-vam, uns enfiando o paletó, outros sem pressa, dando um olharamortecido aos jornais sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamentedisse adeus ao Ega, rodou nos tacões, desapareceu também, abra-çando ao passar um dos padres a quem tratou de «malandro!»

Era meia-noite, Ega saiu. E na tipóia que o levava ao Ramalhete,já mais calmo, começou logo a reflectir que o resultado dapublicação da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidadevoraz. A «questão de cavalos» com que o Neves se contentara pronta-mente, distraído e absorvido nessa noite pela crise — ninguém maisa acreditaria... O Dâmaso decerto, interrogado, para se desculpar,

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contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma intolerável luz deescândalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eramtalvez apoquentações, desesperos que ele assim estivera preparandoa Carlos — por causa de um odiozinho ao Dâmaso. Nada maisegoísta e pequeno!... E subindo para o quarto, Ega decidia correrdepois de almoço à redacção da Tarde, suster a publicação da carta.

Mas toda essa noite sonhou com Raquel e com Dâmaso. Via-osrolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deita-dos numa carroça de bois, sobre um enxergão onde se desdobrava,lasciva e rica, a sua colcha de cetim preto da Vila Balzac: os doisbeijavam-se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que caíados ramos, ao chiar lento das rodas. E por um requinte do sonhocruel, ele, Ega, sem perder a consciência e o orgulho de homem, eraum dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, acanga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atrás soava nocarro, ele erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos,mugia lamentavelmente para os céus!

Acordou nestes urros de agonia: e a sua cólera contra o Dâmasoressurgiu, mais nutrida pelas incoerências do sonho. Além dissochovia. E decidiu não voltar à Tarde, deixar imprimir a carta. Queimportava, de resto, o que dissesse o Dâmaso? O artigo da Cornetaestava extinto, o Palma bem pago. — E quem jamais acreditarianum homem que nos jornais se declara caluniador e bêbedo?

E Carlos assim pensou também — quando, depois de almoço,Ega lhe contou a sua resolução da véspera ao ver o Dâmaso nocamarote, de olho trocista posto nele, a segredar com a Cohen...

— Percebi claramente, sem erro possível, que estava a falar deti, da Sr.a D. Maria, de nós todos, contando horrores... E então aca-bou-se, não hesitei mais. Era necessário deixar passar a justiça deDeus! Não tínhamos paz enquanto o não aniquilássemos!

Sim, concordou Carlos, talvez. Somente receava que o avô,sabendo o escândalo, se desgostasse de ver o seu nome misturado atoda aquela sordidez de Corneta e de bebedeira...

— Ele não lê a Tarde acudiu Ega. — O rumor, se lhe chegar, éjá vago e desfigurado.

Com efeito, Afonso soube apenas confusamente que o Dâmasosoltara, no Grémio, algumas palavras desagradáveis para Carlos, edeclarara depois num jornal que, nesse momento, estava bêbedo. Ea opinião do velho foi que, se o Dâmaso estava embriagado (e de

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outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo amigo?), a suadeclaração revelava extrema lealdade e um amor quase heróico daverdade!

— Por esta não esperávamos nós! — exclamou depois Ega, noquarto de Carlos. — O Dâmaso torna-se um justo!

De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta,aprovavam a aniquilação do Dâmaso. Só o Craft sustentou queCarlos lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveiraachou cruel que se dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito:«Ou a dignidade ou a vida!»

Mas dias depois não se falava mais nesse escândalo. Outrascoisas interessavam o Chiado e a Casa Havanesa. O Ministério foraformado, finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha — Neves noTribunal de Contas. Já os jornais do Governo caído começavam,segundo a prática constitucional, a achar o país irremediavelmenteperdido e a aludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaído ecoda carta do Dâmaso foi, na véspera do sarau da Trindade, um pará-grafo da própria Tarde onde ela fora publicada, nestas amáveispalavras:

«O nosso amigo e distinto sportman, Dâmaso Salcede, partebrevemente para uma viagem de recreio a Itália. Desejamos ao ele-gante touriste todas as prosperidades, na sua bela excursão ao paísdo canto e das artes.»

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AO fim do jantar, na Rua de S. Francisco, Ega, que se demo-rara no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletó,entrou na sala, perguntando a Maria, já sentada ao piano:

— Então, definitivamente, Vossa Excelência não vem ao sarauda Trindade?...

Ela voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a valsalenta que lhe cantava entre os dedos:

— Não me interessa, estou muito cansada...— É uma seca — murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona

onde se estirara consoladamente, fumando, de olhos cerrados.Ega protestou. Também era uma maçada subir às pirâmides no

Egipto. E no entanto sofria-se invariavelmente, porque nem todosos dias pode um cristão trepar a um monumento que tem cinco milanos de existência... Ora a Sr.a D. Maria, neste sarau, ia ver pordez tostões uma coisa também rara — a alma sentimental de umpovo exibindo-se num palco, ao mesmo tempo nua e de casaca.

— Vá, coragem! Um chapéu, um par de luvas, e a caminho!Ela sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.— Bem — exclamou Ega — eu é que não quero perder o

Rufino... Vamos lá, Carlos, mexe-te! Mas Carlos implorou clemência:— Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas

notas do Hamlet. Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e osbons, só gorjeiam mais tarde...

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Capítulo XVI

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Então Ega, cedendo também a todo aquele conchego tépido e amá-vel, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção de Ofélia,de que Maria já murmurava baixo as palavras cismadoras e tristes:

Pâle et blonde, Dort sous l’eau profonde...

Ega adorava esta velha balada escandinava. Mais porém oencantava Maria, que nunca lhe parecera tão bela: o vestido claroque tinha nessa noite modelava-a com a perfeição de um mármore: eentre as velas do piano, que lhe punham um traço de luz no perfilpuro e tons de ouro esfiado no cabelo, o incomparável ebúrneo da suapele ganhava em esplendor e mimo... Tudo nela era harmonioso, são,perfeito... E quanto aquela serenidade da sua forma devia tornardelicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o homemmais feliz destes reinos! Em torno dele só havia felicidades, doçuras.Era rico, inteligente, de uma saúde de pinheiro novo; passava a vidaadorando e adorado; só tinha o número de inimigos que é necessáriopara confirmar uma superioridade; nunca sofrera de dispepsia;jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacência deforte nem a tolice pública o irritava. Ser verdadeiramente ditoso!

— Quem é por fim esse Rufino? — perguntou Carlos, alongandomais os pés pelo tapete, quando Maria findou a canção de Ofélia.

Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, uminspirado...

Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:— É esse grande orador de que falavam na Toca? Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra, o José

Clemente, homem de eloquência e de pensamento... Este Rufinoera um ratão de pêra grande, deputado por Monção, e sublimenessa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente pro-vinciana, de arranjar, numa voz de teatro e de papo, combinaçõessonoras de palavras...

— Detesto isso! — rosnou Carlos.Maria também achava intolerável um sujeito a chilrear, sem

ideias, como um pássaro num galho de árvore...— É conforme a ocasião — observou Ega, olhando o relógio.

— Uma valsa de Strauss também não tem ideias, e à noite, commulheres numa sala, é deliciosa...

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Não, não! Maria entendia que essa retórica amesquinhava sem-pre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, só pode ser-vir para dar forma às ideias. A música, essa, fala aos nervos. Se secantar uma marcha a uma criança, ela ri-se e salta no colo...

— E se lhe leres uma página de Michelet — concluiu Carlos —o anjinho seca-se e berra!

— Sim, talvez — considerou o Ega. — Tudo isso depende dalatitude e dos costumes que ela cria. Não há inglês, por mais cultoe espiritualista, que não tenha um fraco pela força, pelos atletas,pelo sport, pelos músculos de ferro. E nós, os meridionais, por maiscríticos, gostamos do palavreadinho mavioso. Eu cá pelo menos, ànoite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pelo-mepor um bocado de retórica.

E, com o apetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar opaletó, voar à Trindade, num receio de perder o Rufino.

Carlos deteve-o ainda, com uma grande ideia:— Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca

Beethoven; nós declamamos Musset, Hugo, os parnasianos: temospadre Lacordaire, se te apetece a eloquência; e passa-se a noitenuma medonha orgia de ideal!...

— E há melhores cadeiras — acudiu Maria.— Melhores poetas — afirmou Carlos. — Bons charutos!— Bom conhaque!Ega alçou os braços ao ar, desolado. Aí está como se pervertia

um cidadão, impedindo-o de proteger as letras pátrias — com pro-messas pérfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto ele nãotinha só uma razão literária para ir ao sarau. O Cruges tocava umadas suas Meditações de Outono, e era necessário dar palmas aoCruges.

— Não digas mais! — gritou Carlos, dando um pulo da pol-trona. — Esquecia-me o Cruges!... É um dever de honra! Abalemos.

E daí a pouco, tendo beijado a mão de Maria, que ficava aopiano, os dois, surpreendidos com a beleza dessa noite de Inverno,tão clara e doce, seguiam devagar pela rua — onde Carlos aindaduas vezes se voltou para olhar as janelas alumiadas.

— Estou bem contente — exclamou ele travando do braço doEga — em ter deixado os Olivais!... Aqui ao menos podemosreunir-nos para um bocado de cavaco e de literatura...

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Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, convertero quarto ao lado num fumoir forrado com as suas colchas da Índia,depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim serealizava o velho sonho, o cenáculo de diletantismo e de arte...Além disso havia a lançar a Revista, que era a suprema pândegaintelectual. Tudo isto anunciava um Inverno chique a valer, comodizia o defunto Dâmaso.

— E tudo isto — resumiu o Ega — é dar civilização ao país.Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadãos!...

— Se me quiserem erguer uma estátua — disse Carlos alegre-mente — que seja aqui na Rua de S. Francisco... Que beleza de noite!

Pararam à porta do Teatro da Trindade no momento em que deuma tipóia de praça se apeava um sujeito de barbas de apóstolo,todo de luto, com um chapéu de largas abas recurvas à moda de1830. Passou junto dos dois amigos sem os ver, recolhendo um trocoà bolsa. Mas Ega reconheceu-o.

— É o tio do Dâmaso, o demagogo! Belo tipo!— E, segundo o Dâmaso, um dos bêbedos da família — lembrou

Carlos rindo.Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Car-

los que dava o paletó ao porteiro, receou que já fosse o Cruges...— Qual! — disse o Ega. — Aquilo é aplaudir de retórica!E com efeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram

ao antessalão, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos depés, segredando — sentiram logo um vozeirão túmido, gargan-teado, provinciano, de vogais arrastadas em canto, invocando, lá dofundo do estrado, «a alma religiosa de Lamartine!...»

— É o Rufino, tem estado soberbo! — murmurou o Teles daGama, que não passara da porta, com o charuto escondido atrásdas costas.

Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Teles. Mas Ega, esguio emagro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. De ambos oslados se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atu-lhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde domina-vam os chapéus de senhoras picados por manchas claras de plumasou flores. Em volta, de pé, encostados aos pilares ligeiros que sus-têm a galeria, reflectidos pelos espelhos, estavam os homens, agente do Grémio, da Casa Havanesa, das Secretarias, uns de gra-

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vata branca, outros de jaquetões. Ega avistou o Sr. Sousa Neto,pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, debarba rala; adiante o Gonçalo, com a sua gaforinha ao vento; depoiso marquês, atabafado num cache-nez de seda branca; e num grupo,mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o Mendonça, oPinheiro, assistindo àquele sport da eloquência com uma misturade assombro e tédio. Por cima, no parapeito de veludo da galeria,corria outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-semolemente; por trás alçava-se ainda uma fila de cavalheiros ondedestacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braços cruzados,com um botão de camélia na casaca mal feita.

O gás sufocava, vibrando cruamente naquela sala clara, de umtom desmaiado de canário, raiada de reflexos de espelhos. Aqui ealém uma tosse tímida de catarro desmanchava o silêncio, logoabafada no lenço. E na extremidade da galeria, num camarote feitode tabiques, com sanefas de veludo cor de cereja, duas cadeiras deespaldar dourado permaneciam vazias, na solenidade real do seudamasco escarlate.

No entanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano,muito trigueiro, de pêra, alargava os braços, celebrava um anjo, OAnjo da Esmola que ele entrevira, além no azul, «batendo as asasde cetim...» Ega não compreendia bem — entalado entre um padremuito gordo, que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras.Por fim não se conteve: — «Sobre que está ele a falar?» — E foi opadre que o informou, com a face luzidia, inflamada de entusiasmo:

— Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estadosublime... Infelizmente está a acabar!

Parecia ser, com efeito, a peroração. O Rufino arrebatara o lenço,limpava a testa lentamente; depois arremeteu para a borda dotablado, voltando-se para as cadeiras reais com um tão ardente gestode inspiração — que o colete repuxado descobriu o começo daceroula. Foi então que Ega compreendeu. Rufino — estava exaltandouma princesa que dera seiscentos mil réis para os inundados doRibatejo e ia, a benefício deles, organizar um bazar na Tapada. Masnão era só essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino porqueele, «como todos os homens educados pela filosofia e que têm a verda-deira orientação mental do seu tempo, via nos grandes factos da His-tória não só a sua beleza poética, mas a sua influência social. A mul-tidão, essa, sorria simplesmente, enlevada, para a incomparável

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poesia da mão calçada de fina luva que se estende para o pobre. Eleporém, filósofo, antevia já, saindo desses delicados dedos de prin-cesa, um resultado bem profundo e formoso... O quê, meus senhores?O renascimento da Fé!»

De repente, um leque que escorregara da galeria, arrancandoem baixo um berro a uma senhora gorda, criou um sussurro, umacurta emoção. Um comissário do sarau, D. José Sequeira, ergueu-selogo nos degraus do tablado, com o seu laçarote de seda vermelhana casaca, dardejando severamente os olhos vesgos para o recantoindisciplinado, onde curtos risos esfuziavam. Outros cavalheiros,indignados, gritavam: Chut, silêncio, fora! E das cadeiras da frentesurgiu a face ministerial do Gouvarinho, inquieta pela ordem, comas lunetas brilhando duramente... Então Ega procurou ao lado acondessa; e avistou-a enfim mais longe, com um chapéu azul, entrea Alvim, toda de preto, e umas vastas espáduas cobertas de cetimmalva, que eram as da baronesa de Craben. Todo o rumor findava— e o Rufino, que molhara lentamente os lábios no copo, avançouum passo, sorrindo, com o lenço branco na mão:

— Dizia eu, meus senhores, que dada a orientação mental desteséculo...

Mas o Ega sufocava, esmagado, farto do Rufino, com a impres-são de que o padre ao lado cheirava mal. E não aturou mais, furoupara trás, para desabafar com Carlos.

— Tu imaginavas uma besta assim?— Horroroso! — murmurou Carlos. — Quando tocará o Cruges?Ega não sabia, todo o programa fora alterado.— E tens cá a Gouvarinho! Está lá adiante, de azul... Hei-de

querer ver logo esse encontro!Mas ambos se voltaram, sentindo por trás alguém ciciar discre-

tamente: bonsoir, messieurs... Era Steinbroken e o seu secretário,graves, de casaca, em pontas de pés, com as claques fechadas. Eimediatamente Steinbroken queixou-se da ausência da famíliareal:

— Mr. de Cantanhede, qui est de service, m’avait cependantassuré que la reine viendrait... C’est bien sous sa protection,n’est-ce pas, toute cette musique, ces vers?... Voilà porquoi je suisvenu. C’est très ennuyeux... Et Alphonse de Maia, toujours ensanté?

— Merci...

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Na sala o silêncio impressionava. Rufino, com gestos de quemtraça numa tela linhas lentas e nobres, descrevia a doçura de umaaldeia, a aldeia em que ele nascera, ao pôr do Sol. E o seu vozeirãovelava-se, enternecido, morrendo num rumor de crepúsculo. EntãoSteinbroken, subtilmente, tocou no ombro do Ega. Queria saber seera esse o grande orador de que lhe tinha falado... Ega afirmou compatriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!

— Em que género?...— Género sublime, género de Demóstenes!Steinbroken alçou as sobrancelhas com admiração, falou em

finlandês ao seu secretário, que entalou languidamente o monó-culo: e com as claques debaixo do braço, cerrados os olhos, recolhi-dos como num templo, os dois enviados da Finlândia ficaram escu-tando, à espera do sublime.

Rufino, no entanto, com as mãos descaídas, confessava umafragilidade da sua alma! Apesar da poesia ambiente dessa suaaldeia natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada bal-seira provavam Deus irrefutavelmente — ele fora dilacerado peloespinho da descrença! Sim, quantas vezes, ao cair da tarde, quandoos sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no vale can-tavam as ceifeiras, ele passara junto da cruz do adro e da cruz docemitério, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de Vol-taire!...

Um largo frémito de emoção passou. Vozes sufocadas de gozomal podiam murmurar: muito bem, muito bem...

Pois fora nesse estado, devorado pela dúvida, que Rufino ouviraum grito de horror ressoar por sobre o nosso Portugal... Que suce-dera? Era a Natureza que atacava seus filhos! — E lançando osbraços, como quem se debate numa catástrofe, Rufino pintou ainundação... Aqui aluía um casal, ninho florido de amores; além, naquebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negraságuas iam juntamente arrastando um botão de rosa e um berço!...

Os bravos partiram profundos e roucos de peitos que arfavam.E em torno de Carlos e do Ega, sujeitos voltavam-se apaixonada-mente uns para os outros, com um brilho na face, comungando nomesmo entusiasmo: «Que rajadas!... Caramba!... Sublime!...»

Rufino sorria, bebendo esta comoção, que era a obra do seuverbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reais,solenes e vazias...

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Vendo que a cólera da Natureza rugia implacável, ele ergueraos olhos para o natural abrigo, para o exaltado lugar donde desce asalvação, para o Trono de Portugal! E de repente, deslumbrado,vira por sobre ele estenderem-se as asas brancas de um anjo! Era oAnjo da Esmola, meus senhores! E donde vinha? donde recebera ainspiração da caridade? donde saía assim, com os seus cabelos deoiro? Dos livros da ciência? dos laboratórios químicos? desses anfi-teatros de anatomia onde se nega covardemente a alma? das secasescolas de filosofia que fazem de Jesus um precursor de Robes-pierre? Não! Ele ousara interrogar o Anjo, submisso, com o joelhoem terra. E o Anjo da Esmola, apontando o espaço divino, murmu-rara: «Venho de além!»

Então pelos bancos apinhados correu um sussurro de enlevo.Era como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassemno alto. Um estremecimento devoto e poético arrepiava as cuias dassenhoras.

E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meussenhores! Desde esse momento, a dúvida fora nele como a névoaque o Sol, este radiante Sol português, desfaz nos ares... E agora,apesar de todas as ironias da ciência, apesar dos escárnios orgulho-sos de um Renan, de um Littré e de um Spencer, ele, que receberaa confidência divina, podia ali, com a mão sobre o coração, afirmara todos bem alto — havia um Céu!

— Apoiado! — mugiu na coxia o padre sebento.E por todo o salão, no aperto e no calor do gás, os cavalheiros

das Secretarias, da Arcada, da Casa Havanesa, berrando, batendoas mãos, afirmaram soberbamente o Céu!

O Ega, que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco decólera. Era o Alencar, de paletó, de gravata branca, cofiando som-briamente os bigodes.

— Que te parece, Tomás?— Faz nojo! — rugiu surdamente o poeta.Tremia, revoltado! Numa noite daquelas, toda de poesia,

quando os homens de letras se deviam mostrar como são, filhos daDemocracia e da Liberdade, vir aquele pulha pôr-se ali a lamber ospés à família real... Era simplesmente ascoroso!

Lá ao fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto deabraços, de cumprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo deorgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados,

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comovidos ainda, puxando das charuteiras. Então o poeta travoudo braço do Ega:

— Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o Guimarães, otio do Dâmaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que éuma coisa séria, muito séria... Está lá em baixo no botequim, comum grogue.

Ega pareceu surpreendido... Coisa séria!?— Bem, vamos nós lá a baixo tomar também um grogue! E que

recitas tu logo, Alencar?— A Democracia — foi dizendo o poeta pela escada, com certa

reserva. — Uma coisita nova, tu verás... São algumas verdadesduras a toda essa burguesia...

Estavam à porta do botequim — e precisamente o Sr. Guima-rães saía, com o chapéu sobre o olho, de charuto aceso, abotoando asobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com imensa gravidade:

— O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo Guimarães,um bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.

Ega acercou-se de uma mesa, puxou cortesmente um bancopara o veterano da Democracia, quis saber se ele preferia conhaqueou cerveja.

— Tomei agora o meu grogue de guerra — disse o Sr. Guima-rães com secura — tenho para toda a noite.

Um criado dava uma limpadela lenta sobre o mármore damesa. Ega ordenou cerveja. E directamente, largando o charuto,passando a mão pelas barbas, a retocar a majestade da face, o Sr.Guimarães começou com lentidão e solenidade:

— Eu sou tio do Dâmaso Salcede, e pedi aqui ao meu velhoamigo Alencar para me apresentar a Vossa Excelência com o fim deo intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara debêbedo...

Ega compreendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonomia:— Vossa Excelência refere-se a uma carta que seu sobrinho

escreveu...— Carta que Vossa Excelência ditou! Carta que Vossa Excelên-

cia o forçou a assinar!— Eu?...— Afirmou-mo ele, senhor!Alencar interveio:— Falem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra de curiosos...

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O Sr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa.Tinha estado, contou ele, havia semanas fora de Lisboa por negó-cios da herança de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só pornecessidade se encontrava com esse imbecil. Na véspera, em casade um antigo amigo, o Vaz Forte, deitara por acaso os olhos aoFuturo, um jornal republicano, bem escrito, mas frouxo de ideias. Eavistara logo na primeira página, em tipo enorme, sob esta rubrica,aliás justa, Coisas do High Life, a carta do sobrinho... Imagine o Sr.Ega o seu furor! Ali mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Dâmasopouco mais ou menos nestes termos: «Li a tua infame declaração.Se amanhã não fazes outra, em todos os jornais, dizendo que nãotinhas intenção de me incluir entre os bêbedos da tua família, vouaí e quebro-te os ossos um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. Esabia o Sr. João da Ega qual fora a resposta do Sr. Dâmaso?

— Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigoZola! Aqui está... Grande papel, monograma de ouro, coroa deconde. Aquele asno! Quer Vossa Excelência que eu leia?

A um gesto risonho do Ega, ele mesmo leu, lentamente, e subli-nhando:

Meu caro tio! A carta de que fala foi escrita pelo Sr. João da Ega.Eu era incapaz de tal desacato à nossa querida família. Foi ele queme agarrou na mão, à força, para eu assinar: e eu, naquela atrapa-lhação, sem saber o que fazia, assinei para evitar falatórios. Foi umlaço que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio sabecomo eu gosto de si, que até estava o ano passado com tenção, se sou-besse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho deColares. Não fique pois zangado comigo. Bem infeliz já eu sou! E sequiser procure esse João da Ega que me perdeu! Mas acredite quehei-de tirar uma vingança que há-de ser falada! Ainda não decidiqual, nesta atarantação; mas em todo o caso a nossa família há-deficar desenxovalhada, porque eu nunca admiti que ninguém brin-casse com a minha dignidade... E se o não fiz antes de partir paraItália, se ainda não pugnei pela minha honra, é porque há dias, comtodos estes abalos, veio-me uma tremenda disenteria, que estou queme não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males morais!...

— Vossa Excelência ri-se, Sr. Ega?— Pois que quer Vossa Excelência que eu faça? — balbuciou o

Ega por fim, sufocado, com os olhos em lágrimas. — Rio-me eu,

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ri-se o Alencar, ri-se Vossa Excelência. Isso é extraordinário! Essadignidade, essa disenteria...

O Sr. Guimarães, embaraçado, olhou o Ega, olhou o poeta, quefungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:

— Com efeito, a carta é de uma cavalgadura... Mas o facto per-manece...

Então Ega apelou para o bom senso do Sr. Guimarães, para asua experiência das coisas de honra. Compreendia ele que doiscavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem nopulso, o forcem violentamente a assinar uma carta em que ele sedeclara bêbedo?

O Sr. Guimarães, agradado com aquela deferência pelo seutacto e pela sua experiência, confessou que o caso, pelo menos emParis, seria pouco natural.

— E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a Cafraria! Ediga-me o Sr. Guimarães outra coisa, de gentleman paragentleman: como considera seu sobrinho? um homem irrepreensi-velmente verídico?

O Sr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:— Um refinado mentiroso.— Então! — gritou Ega em triunfo, atirando os braços ao ar.De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe satisfatoria-

mente finda. E não restava senão os dois apertarem-se a mão fra-ternalmente, como bons democratas...

Já de pé, atirou a genebra às goelas. Ega sorria, estendia a mãoao Sr. Guimarães. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombrana face enrugada, desejou que o Sr. João da Ega (se nisso não tinhadúvida) declarasse, ali diante do amigo Alencar, que não lhe achavaa ele, Guimarães, cara de bêbedo...

— Oh, meu caro senhor! — exclamou Ega, batendo com odinheiro na mesa para chamar o criado. — Pelo contrário! O maiorprazer em proclamar diante do Alencar, e aos quatro ventos, quelhe acho a cara de um perfeito cavalheiro e de um patriota!

Então trocaram um rasgado aperto de mãos — enquanto o Sr.Guimarães afirmava a sua satisfação por conhecer o Sr. João daEga, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando Sua Excelênciaquisesse qualquer coisa, política ou literária, era escrever esteendereço bem conhecido no mundo: Redaction du RAPPEL, Paris!

Alencar abalara. E os dois deixaram o botequim, trocando

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impressões do sarau. O Sr. Guimarães estava enojado com a caro-lice, a sabujice desse Rufino. Quando o ouvira palrar das asas daprincesa e da cruz do adro, quase lhe gritara cá do fundo: «Quantote pagam para isso, miserável?»

Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéu:— Oh! senhora baronesa, então já nos abandona?Era a Alvim que descia devagar, com a Joaninha Vilar, atando

as largas fitas de uma capa de pelúcia verde. Queixou-se de umador de cabeça que a torturava, apesar de ter gostado loucamente doRufino... Mas uma noite toda de literatura, que estafa! E agora,para mais, ficara lá um homenzinho a fazer música clássica...

— É o meu amigo Cruges!— Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia ter-lhe dito que tocasse

antes o Pirolito.— Vossa Excelência aflige-me com esse desdém pelos grandes

mestres... Não quer que a vá acompanhar à carruagem? Paciên-cia... Muito boa noite, Sr.a D. Joana!... Um servo seu, senhora baro-nesa! E Deus lhe tire a sua dor de cabeça!

Ela voltou-se, ainda no degrau, para o ameaçar risonhamentecom o leque:

— Não seja impostor! O Sr. Ega não acredita em Deus.— Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dor de cabeça, senhora

baronesa!O velho democrata desaparecera discretamente. E da antessala

Ega avistou ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo quelhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca — o Cruges, como nariz bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamenteo teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetadade vermelho, agora desafogada, quase vazia: um ar mais fresco cir-culava: as senhoras, cansadas, bocejavam por trás dos leques.

Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma filacom todo um rancho íntimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedro-sos, a Teresa Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço,para saber quem era aquele músico de cabeleira.

— Um amigo meu — murmurou Ega. — Um grande maestro, oCruges.

O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conhe-ciam. E era composição dele, aquela coisa triste?

— É de Beethoven, Sr.a D. Maria da Cunha, a Sonata Patética.

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Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da sonata. E amarquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagarum frasquinho de sais, disse que era a Sonata Pateta. Por toda abancada foi um rastilho de risos sufocados. A Sonata Pateta! Aquiloparecia divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas,estendeu a face enorme, imberbe e cor de papoula:

— Muito bem, senhora marquesa, muito catita!E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam

à marquesa, entre o frufru dos leques. Ela triunfava, bela e séria,com um velho vestido de veludo preto, respirando os sais —enquanto adiante um amador de barba grisalha cravava naquelerancho ruidoso dois grandes óculos de ouro que faiscavam de cólera.

No entanto, por toda a sala, o sussurro crescia. Os encatarroa-dos tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a Tarde. Ecaído sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, opobre Cruges, suando, estonteado por aquela desatenção rumorosa,atabalhoava as notas, numa debandada.

— Fiasco completo — declarou Carlos, que se aproximara doEga e do rancho.

Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpresa! Até queenfim se via o Sr. Carlos da Maia, o Príncipe Tenebroso! Que fizera eledurante esse Verão? Todo o mundo a esperá-lo em Sintra, alguémmesmo com ansiedade... Um chut furioso do amador de barbas grisa-lhas emudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois acordesbruscos, arredara o mocho, esgueirava-se do estrado, enxugando asmãos ao lenço. Aqui e além algumas palmas ressoaram, moles e de cor-tesia, entre um grande murmúrio de alívio. E o Ega e Carlos correramà porta, onde já esperavam o marquês, o Craft, o Taveira — para abra-çar, consolar o pobre Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados.

E imediatamente, no silêncio atento que predominava, umsujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manus-crito na mão. Alguém ao lado do Ega disse que era o Prata, que iafalar sobre o estado agrícola da província do Minho. Atrás, umcriado veio colocar sobre a mesa um candelabro de duas velas: oPrata, de ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e de entre operfil triste e as folhas largas, um rumor lento foi escorrendo,rumor de reza numa sonolência de novena, onde por vezes destaca-vam, como gemidos: «riqueza dos gados..., esfacelamento da pro-priedade..., fértil e desprotegida região...»

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Começou então uma debandada sorrateira e formigueira, quenem os chuts do comissário do sarau, vigilante e de pé sobre umdegrau do estrado, podiam conter. Só as senhoras ficavam — e umou outro burocrata idoso, que se inclinava zelosamente para o mur-múrio de reza, com a mão em concha sobre a orelha.

Ega, que fugira também «ao vicejante paraíso do Minho»,achou-se em frente do Sr. Guimarães.

— Que maçada, hem?O democrata concordou que aquele preopinante não lhe parecia

divertido... Depois, mais sério, com outra ideia, segurando umbotão da casaca do Ega:

— Eu espero que Vossa Excelência, há pouco, não ficasse com aimpressão de que eu sou solidário ou me importo com meu sobri-nho...

Oh! decerto que não! Ega vira bem que o Sr. Guimarães nãotinha pelo Dâmaso nenhum entusiasmo de família.

— Asco, senhor, só asco! Quando ele foi a primeira vez a Paris,e soube que eu morava numa trapeira, nunca me procurou! Porqueaquele imbecil dá-se ares de aristocrata... E como Vossa Excelênciasabe, é filho de um agiota!

Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:— A mãe, sim! Minha irmã era de uma boa família. Fez aquele

desgraçado casamento, mas era de uma boa família! Que, com osmeus princípios, já Vossa Excelência vê que tudo isso de fidalguia,pergaminhos, brasões, são para mim blague e mais blague! Masenfim os factos são os factos, a história de Portugal aí está... OsGuimarães da Bairrada eram de sangue azul.

Ega sorriu, num assentimento cortês:— E Vossa Excelência então parte brevemente para Paris?— Amanhã mesmo, por Bordéus... Agora que toda essa cam-

bada do marechal de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Des-cazes foi pelos ares, já se pode lá respirar...

Nesse instante Teles e o Taveira, passando de braço dado, vol-taram-se, a observar curiosamente aquele velho austero, todo depreto, que falava alto com o Ega de marechais e de duques. Egareparou: o democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimiranova: o seu altivo chapéu reluzia; e Ega ficou de bom grado a con-versar com aquele gentleman correcto e venerando que impressio-nava os seus amigos.

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— A república, com efeito — observou ele, dando alguns passosao lado do Sr. Guimarães esteve ali um momento comprometida!

— Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vê, para serexpulso por causa de umas verdadezinhas que soltei numa reuniãoanarquista. Até me afirmaram que num conselho de ministros omarechal de Mac-Mahon, que é um tarimbeiro, batera um murrona mesa e dissera: Ce sacré Guimaran, il nous embête, faut luidonner du pied dans le derrière! Eu não estava lá, não sei, mas afir-maram-me... Em Paris, como os Franceses não sabem pronunciarGuimarães, e eu embirro que me estropiem o nome, assino Mr. Gui-maran. Há dois anos, quando fui a Itália, era Mr. Guimarini. E sefor agora à Rússia, cá por coisas, hei-de ser Mr. Guimaroff...Embirro que me estropiem o nome!

Tinham voltado à porta do salão. Longas bancadas vaziaspunham dentro, no brilho pesado do gás, uma tristeza de abandonoe tédio; e no estrado o Prata continuava, de mão no bolso, com onariz sobre o manuscrito, sem que se sentisse agora surdir um somdaquele espantalho esguio. Mas o marquês, que descia do fundo,atabafando-se no seu cache-nez de seda, disse ao Ega, ao passar,que o homenzinho era muito prático, sabia da poda, e lá tinhaficado às voltas com Proudhon.

Ega e o democrata recomeçaram então os seus passos lentos naantessala, onde o sussurro de conversas mal abafadas crescia, comonum pátio, entre fumaças furtivas de cigarro. E o Sr. Guimarãeschasqueava, achando uma boa bêtise que se citasse Proudhon, alinaquele teatreco, a propósito de estrumes do Minho...

— Oh, Proudhon entre nós — acudiu Ega rindo — cita-semuito, é já um monstro clássico. Até os conselheiros de Estado jásabem que para ele a propriedade era um roubo, e Deus era o mal...

O democrata encolheu os ombros:— Grande homem, senhor! Homem imenso! São os três grandes

pimpões deste século: Proudhon, Garibaldi, e o compadre!— O compadre! — exclamou Ega, atónito. Era o nome de amizade que o Sr. Guimarães dava em Paris a

Gambetta. Gambetta nunca o via, que não lhe gritasse de longe emespanhol: «Hombre, compadre!» E ele também, logo: «Compadre,caramba!» Daí ficara a alcunha, e Gambetta ria. Porque lá isso,bom rapaz, e amigo desta franqueza do Sul, e patriota, até ali!

— Imenso, meu caro senhor! O maior de todos!

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Pois Ega imaginaria que o Sr. Guimarães, com as suas relaçõesdo Rappel, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo...

— Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!E o Sr. Guimarães ergueu mais a face, ajuntou infinitamente

grave:— É um mundo!... E aqui, onde me vê, ainda não há três meses

que ele me disse uma coisa que me foi direita ao coração!Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o demo-

crata contou largamente esse glorioso lance, que ainda o comovia:— Foi uma noite no Rappel. Eu estava a escrever, ele apareceu,

já um pouco trôpego, mas com o olho a luzir, e aquela bondade,aquela majestade!... Eu ergui-me como se entrasse um rei... Isto é,não! que se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque.Levantei-me como se ele fosse um deus! Qual deus! não há deusque me fizesse levantar!... Enfim, acabou-se, levantei-me! Ele olhoupara mim, fez assim um gesto com a mão, e disse, a sorrir, comaquele ar de génio que tinha sempre: Bonsoir, mon ami!

E o Sr. Guimarães deu alguns passos dignos, em silêncio, comose aquele bonsoir, aquele mon ami, assim recordados, lhe fizessemmais vivamente sentir a sua importância no mundo.

De repente Alencar, que bracejava num grupo, rompeu paraeles, pálido, de olhos chamejantes.

— Que me dizem vocês a esta pouca-vergonha? Aquele infameali há meia hora, com o in-fólio, a rosnar, a rosnar...

E toda a gente a sair, não fica ninguém! Tenho de recitar aosbancos de palhinha!...

E abalou, rilhando os dentes, a exalar mais longe o seu furor.Mas algumas palmas cansadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O

estrado ficara novamente vazio, com as duas velas ardendo no can-delabro. Um cartão em grossas letras, que um criado colocara nopiano, anunciava um «intervalo de dez minutos» como num circo. Enesse instante a senhora condessa de Gouvarinho saíra pelo braçodo marido, deixando atrás um sulco largo de cumprimentos, de espi-nhas que se vergavam, de chapéu de burocratas rasgadamenteerguidos. O comissário do sarau azafamava-se, procurando duascadeiras para Suas Excelências. A condessa porém foi reunir-se aD. Maria da Cunha, que ela vira, com as Pedrosos e a marquesa deSoutal, refugiada num vão de janela. Ega imediatamente acercou-sedo rancho íntimo, esperando que as senhoras se beijocassem.

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— Então, senhora condessa, ainda muito comovida com a elo-quência do Rufino?

— Muito cansada... E que calor, hem?— Horrível. A senhora baronesa de Alvim saiu há pouco, com

uma dor de cabeça...A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice

aos cantos da boca, murmurou:— Não admira, isto não é divertido... Enfim, já agora é necessá-

rio levar a cruz ao Calvário.— Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. — Infe-

lizmente é uma lira!Ela riu. E D. Maria da Cunha, nessa noite mais remoçada e

viva, ficou logo toda banhada num sorriso, com aquela carinhosaadmiração pelo Ega, que era um dos seus sentimentos.

— Este Ega!... Não há mal que lhe chegue!... E diga-me outracoisa, que é feito do seu amigo Maia?

Ega vira-a momentos antes, no salão, puxar pela manga deCarlos, cochichar com Carlos. Mas conservou um ar inocente:

— Está aí, anda por aí, assistindo a toda essa literatura.De repente, os olhos sempre bonitos e lânguidos de D. Maria da

Cunha rebrilharam com uma faísca de malícia:— Falai no mau... Neste caso seria falar do bom. Enfim aí nos

vem o Príncipe Tenebroso!E era com efeito Carlos que passava, se encontrara diante dos

braços do conde de Gouvarinho, estendidos para ele com uma efu-são em que parecia renascer o antigo afecto. Pela primeira vez Car-los via a condessa, desde a noite em que no Aterro, abandonando-apara sempre, fechara com ódio a portinhola da tipóia onde elaficava chorando. Ambos baixaram os olhos, ao adiantar a mão umpara o outro, lentamente. E foi ela que findou o embaraço, abrindoo seu grande leque de penas de avestruz:

— Que calor, não é verdade?— Atroz! — disse Carlos. — Não vá Vossa Excelência apanhar

ar dessa janela.Ela forçou os lábios brancos a um sorriso:— É conselho de médico?— Oh, minha senhora, não são as horas da minha consulta! É

apenas caridade de cristão.

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Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido,com a marquesa de Soutal, para o repreender por ele não ter apare-cido terça-feira na Rua de S. Marçal. Surpreendido com tanto inte-resse, tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho, balbuciou quenem sabia, fora o seu infortúnio, tinham-se metido umas coisas...

— Além disso não imaginei que Vossa Excelência começasse areceber tão cedo... Vossa Excelência antigamente era só depois daSerração da Velha. Até me lembro que o ano passado...

Mas emudeceu. O conde de Gouvarinho voltara-se, pousando amão carinhosa no ombro de Carlos, desejando a sua impressãosobre o «nosso Rufino». Ele, conde, estava encantado! Encantadosobretudo com a variedade de escala, aquela arte tão difícil de pas-sar do solene para o ameno, de descer das grandes rajadas para osbrincados de linguagem. Extraordinário!

— Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone,o Canovas, outros muitos. Mas não são estes voos, esta opulência... Étudo muito seco, ideias e factos. Não entra na alma! Vejam os amigosaquela imagem tão pujante, tão respeitosa, do Anjo da Esmola, des-cendo devagar, com as asas de cetim... É de primeira ordem.

Ega não se conteve:— Eu acho esse génio um imbecil.O conde sorriu, como à tontaria de uma criança:— São opiniões...E estendeu em redor as mãos ao Sousa Neto, ao Darque, ao

Teles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho íntimo —enquanto os seus correligionários, os seus colegas do Centro e daCâmara, o Gonçalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe,sem poder roçar pelo ministro que tinham criado, agora que eleconversava e ria com rapazes e senhoras da «sociedade». O Darque,que era parente do Gouvarinho, quis saber como o amigo Gastão seia dando com os encargos do Poder... O conde declarou para oslados que não fizera mais, por ora, do que passar em revista os ele-mentos com que contava para atacar os problemas... De resto, emquestões de trabalho, o Ministério fora infelicíssimo! O presidentedo Conselho, de cama com uma catarreira, inútil para umasemana. Agora o colega da Fazenda com as febres do Aterro...

— Está melhor? Já sai? — foi em torno a pergunta cheia de cuidado.— Está na mesma, vai amanhã para o Dafundo. Mas realmente

esse não se acha de todo inutilizado. Ainda ontem eu lhe dizia: «Você

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parte para o Dafundo, leva os seus papéis, os seus documentos... Pelamanhã dá os seus passeios, respira o bom ar... E à noite, depois de jan-tar, à luz do candeeiro, entretém-se a resolver a questão da Fazenda!»

Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate da azáfama,veio, furando, anunciar a Sua Excelência o fim do intervalo — oferecero braço à senhora condessa. Ao passar, ela lembrou a Carlos as suas«terças-feiras», com a delicada simplicidade de um dever. Elecurvou-se em silêncio. Era como se todo o passado, o sofá que rolava, acasa da titi em Santa Isabel, as tipóias em que ela deixava o seu cheirode verbena — fossem coisas lidas por ambos num livro e por ambosesquecidas. Atrás, o marido seguia, erguendo alto a cabeça e as lune-tas, como representante do Poder naquela festa da Inteligência.

— Pois senhores — disse o Ega afastando-se com Carlos — amulherzinha tem topete!

— Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e depaixão, e agora continua tranquilamente na rotina da vida.

— E na rotina da vida — concluiu Ega — encontra-se a cadapasso contigo, que a viste em camisa!... Bonito mundo!

Mas o Alencar apareceu no alto da escada, voltando do bote-quim e da genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletó nobraço, já preparado para gorjear. E o marquês juntou-se a eles,abafado no cache-nez de seda branca, mais rouco, queixando-se deque a cada minuto a garganta se lhe punha pior... Aquela canalhadaquela garganta ainda lhe vinha a pregar uma!...

Depois, muito sério, considerando o Alencar:— Ouve lá, isso que tu vais recitar, A Democracia, é política ou

sentimento? Se é política, raspo-me. Mas se é sentimento, e ahumanidade, e o santo operário, e a fraternidade, então fico, quedisso gosto e até talvez me faça bem.

Os outros afirmaram que era sentimento. O poeta tirou o cha-péu, passou os dedos pelos anéis fofos da grelha inspirada:

— Eu vos digo, rapazes... Uma coisa não vai sem a outra, vejamvocês Danton... Mas já não falo enfim desses leões da Revolução.Vejam vocês o Passos Manuel! Está claro, é necessário lógica...Mas, também, caramba, sebo para uma política sem entranhas esem um bocado de Infinito!

Subitamente, por sobre o novo silêncio da sala, um vozeirão maisforte do que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. João deCastro e de Afonso de Albuquerque... Todos se acercaram da porta,

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curiosamente. Era um maganão gordo, de barba em bico e camélia nacasaca, que, de mão fechada no ar como se agitasse o pendão das Qui-nas, lamentava aos berros que nós, Portugueses, possuindo estenobre estuário do Tejo e tão formosas tradições de glória, deixássemosesbanjar, ao vento do indiferentismo, a sublime herança dos avós!...

— É patriotismo — disse o Ega. — Fujamos! Mas o marquês reteve-os, gostando também de um bocado de Qui-

nas. E foi o pobre marquês que o patriota pareceu interpelar, alçandona ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agoraaí, que, agarrando numa das mãos a espada e na outra a cruz, saltassepara o convés de uma caravela a ir levar o nome português através dosmares desconhecidos? Quem havia aí, heróico bastante, para imitar ogrande João de Castro, que na sua quinta de Sintra arrancara todasas árvores de fruto, tal era a isenção da sua alma de poeta?...

— Aquele miserável quer-nos privar da sobremesa! — exclamouEga.

Em torno correram risos alegres. O marquês virou costas, eno-jado com aquela patriotice reles. Outros bocejavam por trás da mão,num tédio completo de «todas as nossas glórias ». E Carlos, ener-vado, preso ali pelo dever de aplaudir o Alencar, chamava o Ega parairem a baixo ao botequim espairecer a impaciência — quando viu oEusebiozinho que descia a escada, enfiando à pressa um paletó alva-dio. Não o encontrara mais desde a infâmia da Corneta, em que elefora «embaixador». E a cólera que tivera contra ele, nesse dia, revi-veu logo num desejo irresistível de o espancar. Disse ao Ega:

— Vou aproveitar o tempo, enquanto esperamos pelo Alencar, aarrancar as orelhas àquele maroto!

— Deixa lá — acudiu Ega — é um irresponsável.Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atrás, inquieto,

temendo uma violência. Quando chegaram à porta, Eusébio meterapara os lados do Carmo. E alcançaram-no no Largo da Abegoaria,àquela hora deserto, mudo, com dois bicos de gás mortiços. Ao ver Car-los fender assim sobre ele, sem paletó, de peitilho claro na noite escura,o Eusébio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui...»

— Ouve cá, estupor! — rugiu Carlos, baixo. — Então tambémandaste metido nessa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te osossos um a um!

Agarrara-lhe o braço, ainda sem ódio. Mas, apenas sentiu na suamão forte aquela carne molenga e trémula, ressurgiu nele essa aver-

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são nunca apagada — que já em pequeno o fazia saltar sobre o Euse-biozinho, esfrangalhá-lo, sempre que as Silveiras o traziam à quinta.E então abanou-o, como outrora, furiosamente, gozando o seu furor. Opobre viúvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéucoberto de luto que lhe rolara nas lajes, dançava, escanifrado e desen-gonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta de uma cocheira.

— Acudam! Aqui d’el-rei, polícia! — rouquejou o desgraçado!Já a mão de Carlos lhe empolgara as goelas. Mas Ega interveio:— Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dose...Ele mesmo lhe apanhou o chapéu. Tremendo, arquejando, de bru-

ços, Eusebiozinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, abota de Carlos, atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cimade uma sarjeta onde restavam imundícies e humidade de cavalo.

O largo permanecia deserto, com o gás adormecendo nos candeei-ros baços. Tranquilamente, os dois recolheram ao sarau. No peristilo,cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico,rodeado de amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço opescoço e a face, exclamando com o cansaço radiante de um triunfador:

— Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!Já o Alencar estaria gorjeando! Os dois amigos galgaram a

escada. E com efeito Alencar aparecera no estrado, onde ardiaainda o candelabro de duas velas.

Esguio, mais sombrio naquele fundo cor de canário, o poeta der-ramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar enco-vado e lento: e um silêncio pesou, mais enlevado, diante de tantamelancolia e de tanta solenidade.

— A Democracia! — anunciou o autor de Elvira, com a pompade uma revelação.

Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois ati-rou para a mesa. E levantando a mão num gesto demorado e largo:

Era num parque. O luar Sobre os vastos arvoredos, Cheios de amor e segredos...

— Que lhe disse eu? — exclamou o Ega, tocando no cotovelo domarquês. — É sentimento... Aposto que é o festim!

E era com efeito o festim, já cantado na Flor de Martírio, festimromântico, num vago jardim onde vinhos de Chipre circulam, caudasde brocado rojam entre maciços de magnólias, e das águas do lago

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sobem cantos ao gemer dos violoncelos... Mas bem depressa transpare-ceu a severa ideia social da Poesia. Enquanto, sob as árvores radiantesde luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmúrios» — fora, junto àsgrades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, umamulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro ofilho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabelos para trás, pergun-tava porque havia ainda esfomeados neste orgulhoso século XIX? Deque servira então, desde Espártaco, o esforço desesperado dos homenspara a Justiça e para a Igualdade? De que servira então a cruz dogrande Mártir, erguida além na colina, onde, por entre os abetos

Os raios do Sol se somem, O vento triste se cala... E as águias revolteando Dentre as nuvens estão olhando Morrer o filho do Homem!

A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com asmãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o génio das geraçõesfosse impotente para esta coisa simples dar pão à criança quechora!

Martírio do coração! Espanto da consciência! Que toda a humana ciência Não solva a negra questão! Que os tempos passem e rolem E nenhuma luz assome, E eu veja de um lado a fome E do outro a indigestão!

Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que reben-tava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas líricas, se gri-tara nada tão extraordinário! E sujeitos graves, em redor, sorriamdaquele realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões jáhavia o bicarbonato de potassa.

— Quando não são das minhas! — rosnou um cavalheiro esver-dinhado, que alargava a fivela do colete.

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Mas tudo emudeceu ante um chut terrível do marquês, quedesapertara o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sem-pre lhe davam estes humanitarismos poéticos. E entretanto, noestrado, o Alencar achara a solução do sofrimento humano! Forauma voz que lha ensinara! Uma voz saída do fundo dos séculos, eque através deles, sempre sufocada, viera crescendo todavia irre-sistivelmente desde o Gólgota até à Bastilha! E então, mais solenepor trás da mesa, com um arranque de precursor e uma firmeza desoldado, como se aquele honesto móvel de mogno fosse um púlpito euma barricada — o Alencar, alçando a fronte numa grande audáciaà Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a República!

Sim, a República! Não a do terror e a do ódio, mas a da mansidão edo amor. Aquela em que o milionário, sorrindo, abre os braços ao operá-rio! Aquela que é aurora, consolação, refúgio, estrela mística e pomba.

Pomba da Fraternidade, Que estendendo as brancas asas Por sobre os humanos lodos, Envolve os seus filhos todos Na mesma santa Igualdade!...

Em cima, na galeria, ressoou um bravo ardente. E imediata-mente, para o sufocar, sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut,silêncio!» Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou comum destaque atrevido:

— Bravo! Muito bem! Bravo!E todo pálido da sua audácia, entalando o monóculo, declarou

para os lados:— Aquela democracia é absurda... Mas que os burgueses se

dêem ares intolerantes, isso não! Então aplaudo eu!E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das

do marquês, que retumbavam como malhos. Outros em volta, imedia-tamente, não se querendo mostrar menos democratas que o Ega eaquele fidalgo de tão grande linhagem, reforçaram os bravos com calor.Já pela sala se voltavam olhares inquietos para aquele grupo cheio derevolução. Mas um silêncio caiu, mais comovido e grave, quando o Alen-car (que inspiradamente previra a intolerância burguesa) perguntouem estrofes iradas o que detestavam, o que receavam eles, no adventosublime da República? Era o pão carinhoso dado à criança? Era a mãojusta estendida ao proletário? Era a esperança? Era a aurora?

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Receais a grande luz? Tendes medo do á-bê-cê?... Então castigai quem lê, Voltai à plebe soez! Recuai sempre na História, Apagai o gás nas ruas, Deixai as crianças nuas, E venha a forca outra vez!

Palmas mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, quecedia enfim ao repetido encanto daquele lirismo humanitário e sonoro.Já não importava a República, os seus perigos. Os versos rolavam,cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espíritos mais posi-tivos. Sob aquele bafo de simpatia, Alencar sorria, com os braços aber-tos, anunciando uma a uma, como pérolas que se desfiam, todas asdádivas que traria a República. Debaixo da sua bandeira, não verme-lha mas branca, ele via a terra coberta de searas, todas as fomes satis-feitas, as nações cantando nos vales sob o olhar risonho de Deus. Sim,porque Alencar não queria uma República sem Deus! A Democracia e oCristianismo, como um lírio que se abraça a uma espiga,completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Gólgota tornava-se atribuna da Convenção! E para tão doce ideal não se necessitavam car-deais, nem missais, nem novenas, nem igrejas. A República, feita só depureza e de fé, reza nos campos; a Lua cheia é hóstia; os rouxinóisentoam o Tantum Ergo nos ramos dos loureirais. E tudo prospera,tudo refulge — ao mundo do Conflito substituiu-se o mundo do Amor...

À espada sucede o arado, A Justiça ri da Morte. A escola está livre e forte, E a Bastilha derrocada. Rola a tiara no lodo, Brota o lírio da Igualdade, E uma nova humanidade Planta a cruz na barricada!

Uma rajada farta e franca de bravos fez oscilar as chamas dogás! Era a paixão meridional do verso, da sonoridade, do liberalismoromântico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante

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de foguete, conquistando enfim tudo, pondo uma palpitação em cadapeito, levando chefes de repartição a berrarem, estirados por cimadas damas, no entusiasmo daquela república onde havia rouxinóis!E quando Alencar, alçando os braços ao tecto, com modulações depreghiera na voz roufenha, chamou para a Terra essa pomba daDemocracia, que erguera o voo do Calvário, e vinha com largos sul-cos de luz — foi um enternecimento banhando as almas, um fundoarrepio de êxtase. As senhoras amoleciam nas cadeiras, com a facemeio voltada ao Céu. No salão abrasado perpassavam frescuras decapela. As rimas fundiam-se num murmúrio de ladainha, como evo-ladas para uma Imagem que pregas de cetim cobrissem, estrelas deouro coroassem. E mal se sabia já se Essa que se invocava e se espe-rava, era a Deusa da Liberdade — ou Nossa Senhora das Dores.

Alencar no entanto via-a descer, espalhando um perfume. JáEla tocava com os seus pés divinos os vales humanos. Já do seuseio fecundo trasbordava a universal abundância. Tudo reflorescia,tudo rejuvenescia:

As rosas têm mais aroma! Os frutos têm mais doçura! Brilha a alma clara e pura, Solta de sombras e véus... Foge a dor espavorida, Foi-se a fome, foi-se a guerra, O homem canta na Terra, E Cristo sorri nos Céus!...

Uma aclamação rompeu, imensa e rouca, abalando os muroscor de canário. Moços exaltados treparam às cadeiras, dois lençosbrancos flutuavam. E o poeta, trémulo, exausto, rolou pela escadaaté aos braços que se lhe estendiam frementes. Ele sufocava, mur-murava: «Filhos! rapazes!...» Quando Ega correu do fundo, comCarlos, gritando: «Foste extraordinário, Tomás!» — as lágrimas sal-taram dos olhos do Alencar, quebrado todo de emoção.

E ao longo da coxia a ovação continuou, feita de palmadinhaspelos ombros, de shake-hands da gente séria, de «muitos parabéns aVossa Excelência!» Pouco a pouco ele erguia a cabeça num altivosorriso que lhe mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta daDemocracia, consagrado, ungido pelo triunfo, com a inesperada mis-

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são de libertar almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela mangaquando ele passou, para murmurar, encantada, que achara «lindís-simo, lindíssimo». E o poeta, estonteado, exclamou: «Maria, é neces-sário luz!» Teles da Gama veio bater-lhe nas costas afirmando-lheque «piara esplendidamente». E Alencar, inteiramente perdido, bal-buciou: «Sursum corda, meu Teles, sursum corda!»

Ega, no entanto, através do tumulto, farejava buscando Carlosque desaparecera depois dos abraços ao Alencar. Taveiraassegurou-lhe que Carlos passara para o botequim. Depois, embaixo, um garoto jurou que o Sr. D. Carlos tomara uma tipóia e iajá virando o Chiado...

Ega ficou à porta, hesitando se aturaria o resto do sarau. Nessemomento o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braço, desciarapidamente, com a face toda contrariada e sombria. O trintanáriode Suas Excelências correu a chamar o coupé. E quando o Ega seacercou, sorrindo, para saber que impressão lhes deixara o grandetriunfo democrático do Alencar — a profunda cólera do Gouvarinhoescapou-se-lhe, mal contida, por entre os dentes cerrados:

— Versos admiráveis, mas indecentes!O coupé avançou. Ele teve apenas tempo de rosnar ainda, sur-

damente, apertando a mão ao Ega:— Numa festa de sociedade, sob a protecção da rainha, diante

de um ministro da Coroa, falar de barricadas, prometer mundos efundos às classes proletárias... É perfeitamente indecente!

Já a condessa enfiara a portinhola, apanhando a larga caudade seda. O ministro mergulhou também furiosamente na sombra docoupé. Junto às rodas passou choutando, numa pileca branca, o cor-reio agaloado.

Ega ia subir. Mas o marquês apareceu, abafado num gabão deAveiro, fugindo a um poeta de grandes bigodes que ficara em cima,a recitar quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e omarquês detestava versos feitos a partes do corpo humano. Depoisfoi o Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletó. Então,perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalartambém, ir tomar o seu grogue ao Grémio com o maestro.

Meteram o marquês numa tipóia e — ele e Cruges desceram aRua Nova da Trindade, devagar, no encanto estranho daquela noitede Inverno, sem estrelas, mas tão macia que nela parecia andarperdido um bafo de Maio.

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Passavam à porta do Hotel Aliança quando Ega sentiu alguémque se apressava, chamar atrás: «Ó Sr. Ega! Vossa Excelência fazfavor, Sr. Ega?...» Parou, reconheceu o chapéu recurvo, as barbasbrancas do Sr. Guimarães.

— Vossa Excelência desculpe! — exclamou o demagogo esbafo-rido. — Mas vi-o descer, queria-lhe dar duas palavras, e como mevou embora amanhã...

— Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já te apanho!O maestro estacionou à esquina do Chiado. O Sr. Guimarães

pedia de novo desculpa. De resto eram duas curtas palavras...— Vossa Excelência, segundo me disseram, é o grande amigo do

Sr. Carlos da Maia... São como irmãos...— Sim, muito amigos...A rua estava deserta, com alguns garotos apenas à porta alu-

miada da Trindade. Na noite escura, a alta fachada do Aliança lan-çava sobre eles uma sombra maior. Todavia o Sr. Guimarães baixoua voz cautelosa:

— Aqui está o que é... Vossa Excelência sabe, ou talvez nãosaiba, que eu fui em Paris íntimo da mãe do Sr. Carlos da Maia...Vossa Excelência tem pressa, e não vem agora a propósito essa his-tória. Basta dizer que aqui há anos ela entregou-me, para eu guar-dar, um cofre que, segundo dizia, continha papéis importantes...Depois, naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em quepensar, os anos correram, ela morreu. Numa palavra, porque VossaExcelência está com pressa: eu conservo ainda em meu poder essedepósito, e trouxe-o por acaso quando vim a Portugal por negóciosda herança de meu irmão... Ora hoje justamente, ali no teatro,comecei a reflectir que o melhor era entregá-lo à família...

O Cruges mexeu-se impaciente:— Ainda te demoras?— Um instante! — gritou Ega, já interessado por aqueles papéis

e pelo cofre. — Vai andando.Então o Sr. Guimarães, à pressa, resumiu o pedido. Como sabia

a intimidade do Sr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrara-sede lhe entregar o cofrezinho para que ele o restituísse à família...

— Perfeitamente! — acudiu Ega. — Eu estou mesmo em casados Maias, no Ramalhete.

— Ah, muito bem! Então Vossa Excelência manda um criado deconfiança amanhã buscá-lo... Eu estou no Hotel Paris, no Pelouri-

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nho. Ou melhor ainda: levo-lho eu, não me dá incómodo nenhum,apesar de ser dia de partida...

— Não, não, eu mando um criado! — insistiu o Ega, estendendoa mão ao democrata.

Ele estreitou-lha com calor.— Muito agradecido a Vossa Excelência! Eu junto-lhe então um

bilhete e Vossa Excelência entrega-o da minha parte ao Carlos daMaia, ou à irmã.

Ega teve um movimento de espanto:— À irmã... A que irmã?O Sr. Guimarães considerou Ega também com assombro. E

abandonando-lhe lentamente a mão:— A que irmã!? À irmã dele, à única que tem, à Maria!Cruges, que batia as solas no lajedo, enfastiado, gritou da

esquina:— Bem, eu vou andando para o Grémio.— Até logo!O Sr. Guimarães, no entanto, passava os dedos calçados de

pelica preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, num esforçode penetração. E quando Ega lhe travou do braço, pedindo-lhe paraconversarem um pouco até ao Loreto, o democrata deu os primeirospassos com uma lentidão desconfiada.

— Eu parece-me — dizia o Ega sorrindo, mas nervoso — quenós estamos aqui a enrodilhar-nos num equívoco... Eu conheço oMaia desde pequeno, vivo até agora em casa dele, posso afiançar-lheque não tem irmã nenhuma...

Então o Sr. Guimarães começou a rosnar umas desculpasembrulhadas, que mais enervavam, torturavam o Ega. O Sr. Gui-marães imaginava que não era segredo, que todas essas coisas dairmã estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação.

— Como vi, ainda não há muitos dias, o Sr. Carlos da Maia coma irmã e com Vossa Excelência, na mesma carruagem, no Cais doSodré...

— O quê! Aquela senhora! A que ia na carruagem?— Sim! — exclamou o Sr. Guimarães irritado, farto enfim dessa

confusão em que se debatiam. — Aquela mesma, a Maria EduardaMonforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quiser, que eu conheci depequena, com quem andei muitas vezes ao colo, que fugiu com o MacGren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!

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Era ao meio do Loreto, sob o lampião de gás. E o Sr. Guimarãesde repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror,uma terrível palidez cobrir-lhe a face.

— Vossa Excelência não sabia nada disto?Ega respirou fortemente, arredando o chapéu da testa sem respon-

der. Então o outro, embaçado, terminou por encolher os ombros. Bem,via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometer nosnegócios alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o Sr. Ega que aquilo foraum pesadelo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sincera-mente — e desejava ao Sr. João da Ega muitíssimo boas noites.

Ega, como a um clarão de relâmpago, entrevira toda a catás-trofe: e agarrou avidamente o braço do Sr. Guimarães, num terrorque ele abalasse, desaparecesse, levando para sempre o seu testa-mento, esses papéis, o cofre da Monforte, e com eles a certeza — acerteza por que agora ansiava. E através do Loreto, vagamente, foibalbuciando, justificando a sua emoção, para tranquilizar ohomem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, asprovas, a verdade inteira.

— O Sr. Guimarães compreende... Isto são coisas muito delica-das, que eu supunha absolutamente ignoradas de todos... De modoque fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim, derepente, falar delas com essa simplicidade... Porque enfim, aquipara nós, essa senhora não passa em Lisboa por irmã de Carlos.

O Sr. Guimarães atirou logo a mão num grande gesto. Ah, bem!Então era jogo com ele? Pois tinha feito o Sr. Ega perfeitamente...Com certeza eram coisas muito sérias, que necessitavam toda asorte de véus... Ele compreendia, compreendia muito bem!... E real-mente, dada a posição dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquelasenhora não era irmã que se apresentasse.

— Mas a culpa não a teve ela, meu caro senhor! Foi a mãe, foiaquela extraordinária mãe que o Diabo lhe deu!...

Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velhocom olhos de febre:

— O Sr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?Intimamente! Já a conhecera em Lisboa — mas de longe, como

mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragédia, ela fugiracom o italiano. Ele abalara também para Paris nesse ano, com umaClemence, uma costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiandonoutras, negócios e desgraças, por lá ficara para sempre! Enfim,

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não era a sua vida que lhe ia contar... Só mais tarde encontrara aMonforte, uma noite, no baile Laborde: e daí datavam as suas rela-ções. A esse tempo já o italiano morrera num duelo, e o velho Mon-forte espichara da bexiga. Ela estava então com um rapaz chamadoTrevernnes — numa casa bonita, no Parque Monceaux, em grandechique... Mulher extraordinária! E não se envergonhava de confes-sar que lhe devia obrigações! Quando essa rapariga, a Clemence,que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flores,frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo... Por-que lá isso coração largo e generoso, até ali! Esta, a filha, aD. Maria, tinha então sete ou oito anos, linda como os amores... Ehouvera uma outra pequena do italiano, muito galantinha também.Oh! muito galantinha também! Mas morrera em Londres, essa...

— E com esta Maria andei muitas vezes ao colo, meu carosenhor... Não sei se ela ainda se lembra de uma boneca que eu lhedei, que falava, dizia Napoléon... Era no belo tempo do Império, atéas desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quandoela estava em Tours, no convento, fui lá duas vezes com a mãe. Jáentão os meus princípios me não permitiam entrar nesses covis reli-giosos: mas enfim, fui acompanhar a mãe... E quando ela fugiu com oirlandês, o Mac Gren, foi comigo que a mãe veio ter, furiosa, a quererque eu chamasse o comissário de polícia, para se prender o irlandês.Por fim meteu-se num fiacre, foi para Fontainebleau, lá fez as pazes,viviam até juntos... Enfim, uma série de trapalhadas.

Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastavaos passos, sucumbido:

— E esta senhora, está claro, não sabia então de quem era filha...O Sr. Guimarães encolheu os ombros:— Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da Terra!

A Monforte dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austríaco,com quem ela casara na Madeira... Uma mixórdia, meu carosenhor, uma mixórdia!

— É horrível — murmurou Ega.Mas, dizia o Sr. Guimarães, que podia também fazer a Mon-

forte? Que diabo, era duro confessar à filha: «Olha que eu fugi a teupai, e ele por causa disso matou-se!» Não tanto pela questão depudor; a rapariga devia perceber que a mãe tinha amantes, elamesma aos dezoito anos, coitadinha, já tinha um; mas por causa dotiro, do cadáver, do sangue...

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— A mim mesmo! — exclamou o Sr. Guimarães, parando, alar-gando os braços na rua deserta. — A mim mesmo nunca ela faloudo marido, nem de Lisboa, nem de Portugal. Lembra-me até umaocasião em casa da Clemence, que eu aludi a um cavalo alazão, umcavalo de Pedro da Maia, em que ela costumava montar. Animalsoberbo! Mas nem mencionei o marido, falei só do cavalo. Poissenhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como umabicha: Dites donc, mon cher, vous m’embêtez avec ces histoires del’autre monde!... Com efeito, bem o podia dizer, eram histórias dooutro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos últimostempos ela mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Umainsensata! Por fim até bebia... Mas acabou-se! Tinha grande cora-ção, e portou-se muito bem com a Clemence. Parce sepultis!

— É horrível — murmurou outra vez o Ega, tirando o chapéu,correndo a mão trémula pela testa.

E agora o seu único desejo era a acumulação incessante de pro-vas, de detalhes. Falou então desses papéis, desse cofre da Mon-forte. O Sr. Guimarães não sabia o que eles continham; e não seadmiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços velhosdo Figaro, em que se falava dela...

— É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vésperade partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já aMaria vivia com o irlandês, tinha mesmo uma pequena, a Rosa.Depois veio a Comuna, todos aqueles desastres. Quando a Monfortevoltou de Londres, eu estava em Marselha. Foi então que a pobreMaria se meteu com o Castro Gomes, creio que para não morrer defome... Eu recolhi a Paris, mas não vi mais a Monforte, que jáestava muito doente... À Maria, colada então a essa besta do CastroGomes, um pedante, um rastaquouère mesmo a calhar para a gui-lhotina, não tornei também a falar. Se a encontrava era um cum-primento de longe, como noutro dia, quando a vi na carruagem comVossa Excelência e com o irmão... De sorte que fui ficando com ospapéis. Nem, a falar a verdade, com estas coisas todas de política,me lembrei mais deles. E agora aí estão, às ordens da família.

— Se isso não fosse incómodo para Vossa Excelência — acudiuEga — eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo comigo...

— Incómodo nenhum! Estamos em caminho, é negócio que ficafeito!

Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabara. Umbater de carruagens atroava as descidas no Chiado. Junto deles

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passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, falando altodo Alencar. O Sr. Guimarães tirara lentamente do bolso a charu-teira: depois, parando, para raspar um fósforo:

— Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?... Ecomo soube ela? Como foi isso?

Ega, que caminhava com a cabeça caída, estremeceu como seacordasse. E começou a tartamudear uma história confusa, de queele mesmo corava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava porparenta. Fora o procurador que descobrira. Ela rompera com o Cas-tro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mesada:e vivia nos Olivais, muito retirada, como filha de um Maia quemorrera na Itália. Todos gostavam muito dela, Afonso da Maiatinha grande ternura pela pequena...

E de repente indignou-se com estas invenções, por onde arras-tava já o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:

— Enfim, nem eu sei, um horror!— Um drama! — resumiu gravemente o Sr. Guimarães.E como estavam no Pelourinho, rogou ao Ega que esperasse um

momento, enquanto ele corria acima buscar os papéis da Monforte.Só, no Largo, Ega ergueu as mãos ao céu, num desabafo mudo

daquela angústia em que caminhava, como um sonâmbulo, desde oLoreto. E a sua única sensação, bem clara — era a indestrutívelcerteza da história do Guimarães, tão compacta, sem uma lacuna,sem uma falha por onde rachasse e se fizesse cair aos pedaços. Ohomem conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher dePedro da Maia, brilhando no seu cavalo alazão: encontrara-a emParis, já fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo comoutros; andara então ao colo com Maria Eduarda, a quem se davambonecas... E desde então não deixara mais de ver Maria Eduarda,de a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau como irlandês; nos braços de Castro Gomes; numa tipóia de praça,enfim, com ele e com Carlos da Maia, havia dias, no Cais do Sodré!Tudo isto se encadeava, concordando com a história contada porMaria Eduarda. E de tudo ressaltava esta certeza monstruosa: —Carlos amante da irmã!

Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva,numa janela aberta. Ega recomeçou a passear lentamente pelo meiodo Largo. E agora, pouco a pouco, subia nele uma incredulidade con-tra esta catástrofe de dramalhão. Era acaso verosímil que tal se pas-

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sasse, com um amigo seu, numa rua de Lisboa, numa casa alugada àmãe Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam naconfusão social, no tumulto da Meia Idade! Mas numa sociedade bur-guesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas leis,documentada por tantos papéis, com tanto registo de baptismo, comtanta certidão de casamento, não podia ser! Não! Não estava no fei-tio da vida contemporânea que duas crianças, separadas por umaloucura da mãe, depois de dormirem um instante no mesmo berço,cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parábolasremotas dos seus destinos — para quê? Para virem tornar a dormirjuntas no mesmo ponto, num leito de concubinagem! Não era possí-vel. Tais coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invençõessubtis da arte, para dar à alma humana um terror novo... Depoislevantava os olhos para a janela alumiada — onde o Sr. Guimarães,decerto, rebuscava os papéis na mala. Ali estava porém esse homemcom a sua história — em que não havia uma discordância, por ondeela pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquela luz viva, saída doalto, parecia ao Ega penetrar nessa intrincada desgraça, aclará-latoda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era provávelno fundo! Essa criança, filha de uma senhora que a levara consigo,cresce, é amante de um brasileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. Numbairro vizinho vive outro filho dessa mulher, por ela deixado, quecresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, ele destaca nestacidade provinciana e pelintra. Ela, por seu lado, loira, alta, esplên-dida, vestida pela Laferrière, flor de uma civilização superior, fazrelevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na peque-nez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatal-mente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente seatraem! Há nada mais natural? Se ela fosse feia e trouxesse aosombros uma confecção barata da Loja da América, se ele fosse ummocinho encolhido de chapéu-coco, nunca se notariam e seguiriamdiversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se eracerto, o amarem-se era provável... E um dia o Sr. Guimarães passa, averdade terrível estala!

A porta do hotel rangeu no escuro, o Sr. Guimarãesadiantou-se, de boné de seda na cabeça, com o embrulho na mão.

— Não podia dar com a chave da mala, desculpe Vossa Excelên-cia. É sempre assim quando há pressa... E aqui temos o famoso cofre!

— Perfeitamente, perfeitamente...

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Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrataembrulhara num velho número do Rappel. Ega meteu-a no bolsolargo do seu paletó: e imediatamente, como se qualquer outra pala-vra entre eles fosse vã, estendeu a mão ao Sr. Guimarães. Mas ooutro insistiu em o acompanhar até à esquina da Rua do Arsenal,apesar de estar de boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinhauma doçura oriental — e ele, com os seus hábitos de jornalista,nunca se deitava senão tarde, às duas, três horas da madrugada...

E então, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos e o cha-ruto entre os dentes, o Sr. Guimarães voltou à política e ao sarau. Apoesia do Alencar (de que esperara muito por causa do título ADemocracia) saíra-lhe consideravelmente chocha.

— Muita flor, muita farófia, muita liberdade, mas não havia alium ataque em forma, duas ou três boas estocadas nesta choldra damonarquia e da corte... Pois não é verdade?

— Sim, com efeito... — murmurou Ega, olhando ao longe, naesperança de uma tipóia.

— É como os jornais republicanos que por aí há... Tudo umapalhada, senhores, tudo uma balofice!... É o que eu lhes digo a eles:«Ó almas do Diabo, atacai as questões sociais!»

Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do Ter-reiro do Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mão aodemocrata, desejou-lhe uma boa viagem, atirou ao cocheiro aadresse do Ramalhete. Mas o Sr. Guimarães ainda se apoderou daportinhola para aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, quetinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquela gente...E o Sr. Ega veria! Não era cá a grande pose portuguesa, destesimbecis, destes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá,na primeira nação do mundo, tudo era alegria, e fraternidade, eespírito a rodos...

— E a minha adresse, na redacção do Rappel! Bem conhecidano mundo! Enquanto ao embrulhozinho, fico descansado...

— Pode Vossa Excelência ficar descansado!— Criado de Vossa Excelência... Os meus cumprimentos à Sr.a

D. Maria!Na carruagem, através do Aterro, a ansiosa interrogação do

Ega a si mesmo foi: «Que hei-de fazer?» Que faria, santo Deus, comaquele segredo terrível que possuía, de que só ele era senhor, agoraque o Guimarães partia, desaparecia para sempre? E antevendo,

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com terror, todas as angústias em que essa revelação ia lançar ohomem que mais estimava no mundo — a sua instintiva ideia foiguardar para sempre o segredo, deixá-lo morrer dentro de si. Nãodiria nada; o Guimarães sumia-se em Paris; e quem se amava con-tinuava a amar-se!... Não criaria assim uma crise atroz na vida deCarlos — nem sofreria ele, como companheiro, a sua parte dessasaflições. Que coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida deduas inocentes e adoráveis criaturas, atirando-lhes à face umaprova de incesto!...

Mas, a esta ideia de incesto, todas as consequências desse silên-cio lhe apareceram, como coisas vivas e pavorosas, flamejando noescuro, diante dos seus olhos. Poderia ele, tranquilamente, teste-munhar a vida dos dois desde que a sabia incestuosa? Ir à Rua deS. Francisco, sentar-se-lhes alegremente à mesa, entrever, atravésdo reposteiro, a cama em que ambos dormiam — e saber que estasordidez de pecado era obra do seu silêncio? Não podia ser... Masteria também coragem de entrar, ao outro dia, no quarto de Carlos,e dizer-lhe em face: «Olha que tu és amante de tua irmã»?

A carruagem parara no Ramalhete. Ega subiu, como costu-mava, pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado emudo. Acendeu a sua palmatória; entreabriu o reposteiro dos apo-sentos de Carlos; deu alguns passos tímidos no tapete, que parece-ram já soar tristemente. Um reflexo de espelho alvejou ao fundo nasombra da alcova. E a luz caiu sobre o leito intacto, com a sualonga colcha lisa, entre os cortinados de seda. Então a ideia queCarlos estava àquela hora na Rua de S. Francisco, dormindo comuma mulher que era sua irmã, atravessou-o com uma cruel nitidez,numa imagem material, tão viva e real, que ele viu-os claramente,de braços enlaçados, e em camisa... Toda a beleza de Maria, todo orequinte de Carlos, desapareciam. Ficavam só dois animais, nasci-dos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como cães, sob oimpulso bruto do cio!

Correu para o seu quarto, fugindo àquela visão a que o escurodo corredor, mal dissipado pela luz trémula, acentuava mais orelevo. Aferrolhou a porta; acendeu à pressa sobre o toucador, umadepois da outra, com a mão agitada, as seis velas dos candelabros.E agora aparecia-lhe mais urgente, inevitável, a necessidade decontar tudo a Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cadainstante, menos ânimo para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe

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a felicidade e a vida com uma revelação de incesto. Não podia!Outro que lho dissesse! Ele lá estava depois para o consolar, tomarmetade da sua dor, carinhoso e fiel. Mas o desgosto supremo davida de Carlos não viria de palavras caídas da sua boca!... Outroque lho dissesse! Mas quem? Mil ideias passavam na sua pobrecabeça, incoerentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desapare-cesse... Escrever uma carta anónima a Carlos, com a detalhada his-tória do Guimarães... E esta confusão, esta ansiedade, ia-se resol-vendo lentamente em ódio ao Sr. Guimarães. Para que falaraaquele imbecil? Para que insistira em lhe confiar papéis alheios?Para que lho apresentara o Alencar? Ah! se não fosse a carta doDâmaso... Tudo provinha do maldito Dâmaso!

Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéu, os seus olhos caíramnum sobrescrito pousado sobre a mesa-de-cabeceira. Reconheceu aletra do Vilaça. E nem o abriu... Uma ideia sulcara-o de repente.Contar tudo ao Vilaça!... Porque não? Era o procurador dos Maias.Nunca para ele houvera segredos naquela casa. E esta complicaçãosingular, de uma senhora da família, considerada morta e quesurge inesperadamente — a quem a pertencia aclarar senão ao fielprocurador, ao velho confidente, ao homem que, por herança e pordestino, recebera sempre todos os segredos e partilhara todos osinteresses domésticos?... E sem pensar, sem aprofundar mais,fixou-se logo nesta decisão salvadora — que ao menos o sossegava,lhe tirava já do coração um peso de ferro, sufocante e intolerável...

Devia acordar cedo, procurar Vilaça em casa. Escreveu numafolha de papel: «Acorda-me às sete.» E desceu a baixo, ao longo cor-redor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recadona chave do quarto do escudeiro.

Quando subiu, mais calmo — abriu então a carta do Vilaça. Erauma curta linha, lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzen-tos mil réis, no Banco Popular, se vencia daí a dois dias...

— Sebo, tudo se junta! — exclamou Ega furioso, atirando acarta amarrotada para o chão.

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PONTUAL, às sete horas, o escudeiro acordou Ega. Aorumor da porta ele sentou-se na cama com um salto — e logo todosos negros cuidados da véspera, Carlos, a irmã, a felicidade daquelacasa acabada para sempre, se lhe ergueram na alma em sobres-salto, como despertando também. A portada da varanda ficaraaberta; um ar silencioso e lívido de madrugada clareava através dotransparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficouolhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhounos lençóis, gozando aquele bocado de calor e de conchego antes deir afrontar fora as amarguras do dia.

E pouco a pouco, sob o tépido conchego dos cobertores em quese atabafara, começou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menosútil, essa correria estremunhada a casa do Vilaça... De que serviaprocurar o Vilaça? Não se tratava ali de dinheiro, nem de deman-das, nem de legalidade de nada que reclamasse a experiência deum procurador. Era apenas introduzir um burguês mais numsegredo, tão terrivelmente delicado, que ele mesmo se assustava deo saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao frio,murmurava consigo: «É uma tolice ir ao Vilaça!»

De resto, não poderia ele ajuntar em si bastante coragem, paracontar tudo a Carlos, logo, nessa manhã, claramente, virilmente?Era por fim aquele caso tão pavoroso como lhe parecera na vésperaum irreparável desabamento de uma vida de homem?... Ao pé daquinta da mãe, em Celorico, no lugar de Vouzeias, houvera um

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Capítulo XVII

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sucesso parecido, dois irmãos que inocentemente iam casar. Tudose aclarou ao reunirem-se os papéis para os banhos. Os noivos fica-ram uns dias «embatucados», como dizia o padre Serafim; mas porfim já riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavamde «manos». O noivo, um rapagão bonito, contava depois «que iahavendo uma mixórdia na família». Aqui o engano seguira maislonge, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus cora-ções permaneciam livres de toda a culpa, inocentes absolutamente.Porque ficaria, pois, a existência de Carlos para sempre estragada?A inconsciência impedia-lhe o remorso: e passado o primeiro horror,de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dor? Somente de oprazer ter findado. Era então como outro qualquer desgosto deamor. Bem menos atroz do que se Maria o tivesse traído com oDâmaso.

De repente a porta abriu-se, Carlos apareceu exclamando:— Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá em baixo o

Baptista... É aventura, duelo?Trazia o paletó todo abotoado, com a gola erguida, escondendo

ainda a gravata branca da véspera; e, decerto, chegara da Rua deS. Francisco na tipóia que, havia instantes, Ega sentira parar nacalçada.

Ele sentara-se bruscamente na cama; e estendendo a mão paraos cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que navéspera combinara uma ida a Sintra com o Taveira... Por precauçãomandara-se chamar... Mas não sabia, acordara cansado...

— Que tal está o dia?Justamente Carlos fora correr o transparente da janela. Aí, na

mesa de trabalho, colocada em plena luz, ficara a caixa da Mon-forte, embrulhada no Rappel. E Ega pensou num relance: «Se elerepara, se pergunta, digo tudo!» — O seu pobre coração pôs-se abater ansiosamente, no terror daquela decisão. Mas o transparenteum pouco perro subiu, uma faixa de Sol banhou a mesa — e Carlosvoltou sem reparar no cofre. Foi um imenso alívio para o Ega.

— Então, Sintra? — disse Carlos, sentando-se aos pés da cama.— Com efeito, não é má ideia... A Maria ainda ontem esteve tam-bém a falar de ir a Sintra... Espera! Podíamos fazer a patuscadajuntos! Íamos no break a quatro!

E olhava já o relógio, calculando o tempo para atrelar, avisarMaria.

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— O pior — acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre amesa o monóculo — é que o Taveira falou em irmos com umas rapa-rigas...

Carlos encolheu os ombros com horror. Que sordidez, ir commulheres para Sintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira,vá... Mas à luz do Senhor! Talvez com a Lola Gorda, hem?

Ega embrulhou-se numa complicada história, limpando o monó-culo à ponta do lençol. Não eram espanholas... Pelo contrário, umascostureiras, raparigas sérias... Ele tinha um compromisso antigo deir a Sintra com uma delas, filha de um Simões, um estofador quefalira... Gente muito séria!...

Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiulogo da ideia de Sintra.

— Bem, acabou-se!... Vou então tomar banho e depois a negó-cios... E tu, se fores, traz-me umas queijadas para a Rosa, que elagosta!...

Apenas Carlos saiu, Ega cruzou os braços desanimado, descoro-çoado, sentindo bem que não teria coragem nunca de «dizer tudo».Que havia de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou naideia de procurar o Vilaça, entregar-lhe o cofre da Monforte. Nãohavia homem mais honesto, nem mais prático; e, pela mesmamediocridade do seu espírito burguês, quem melhor para encararaquela catástrofe, sem paixão e sem nervos? E esta falta de nervosdo Vilaça fixou-o definitivamente.

Saltou então da cama, numa impaciência, repicou a campainha.E enquanto o criado não entrava, foi, com o robe-de-chambre aosombros, examinar o cofre da Monforte. Parecia, com efeito, umavelha caixa de charutos, embrulhada num papel de dobras já sujas egastas, com marcas de lacre onde se distinguia uma divisa que seriadecerto a da Monforte — Pro Amore. Na tampa tinha escrito, numaletra de mulher mal ensinada: Monsieur Guimaran, à Paris. Ao sen-tir os passos do criado, deitou-lhe por cima uma toalha, que pendiaao lado, numa cadeira. E daí e meia hora rolava pelo Aterro numatipóia descoberta, mais animado, respirando largamente aquele beloar da manhã, fino e fresco, que ele tão raras vezes gozava.

Começou por uma contrariedade. Vilaça já saíra e a criada nãosabia bem se ele fora para o escritório, se a uma vistoria ao Alfeite...Ega largou para o escritório, na Rua da Prata. O Sr. Vilaça aindanão viera...

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— E a que horas virá?O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente

sobre o colete uma corrente de coral, balbuciou que o Sr. Vilaça nãodevia tardar, se não tivesse atravessado, no vapor das nove, para oAlfeite... Ega desceu desesperado.

— Bem — gritou ao cocheiro — vai ao Café Tavares...No Tavares, ainda solitário àquela hora, um moço areava o

sobrado. E enquanto esperava o almoço, Ega percorreu os jornais.Todos falavam do sarau, em linhas curtas, prometendo detalhescríticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artístico. Só aGazeta Ilustrada se alargava, com frases sérias, tratando o Rufinode grandioso, o Cruges de esperançoso; no Alencar a Gazeta sepa-rava o filósofo do poeta; ao filósofo a Gazeta lembrava, com res-peito, que nem todas as aspirações ideais da filosofia, belas comomiragens de deserto, são realizáveis na prática social; mas aopoeta, ao criador de tão formosas imagens, de tão inspiradas estân-cias, a Gazeta desafogadamente bradava: «Bravo! Bravo!» Haviaainda outras abomináveis sandices. Depois seguia-se a lista daspessoas que a Gazeta se recordava de ter visto, entre as quais «des-tacava, com o seu monóculo, o fino perfil de João da Ega, semprebrilhante de verve». Ega sorriu, cofiando o bigode. Justamente obife chegava fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Egapousou a Gazeta ao lado, dizendo consigo: «Não é nada mal feito,este jornal!»

O bife era excelente: — e depois de uma perdiz fria, de umpouco de doce de ananás, de um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se,enfim, aquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma.No fim, pensava ele, acendendo o charuto e lançando os olhos aorelógio, naquele desastre, praticamente encarado, só havia paraCarlos a perda de uma bela amante. E essa perda que, agora, oangustiava, não traria depois compensações? O futuro de Carlosaté aí tinha uma sombra — aquela promessa de casamento que,irreparavelmente, o colava pela honra a uma mulher muito interes-sante, mas com um passado cheio de brasileiros e de irlandeses... Asua beleza poetizava tudo: mas quanto tempo mais duraria esseencanto, o seu brilho de deusa pisando a Terra?... Não seria, porfim, aquela descoberta do Guimarães uma libertação providencial?Daí a anos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivessesofrido — e livre, e rico, com o largo mundo diante de si!

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O relógio do café deu dez horas. «Bem, vamos a isto», pensouEga.

De novo a tipóia bateu para a Rua da Prata. O Sr. Vilaça aindanão viera, o escrevente estava realmente pensando que o Sr. Vilaçafora ao Alfeite. E diante desta incerteza, de repente, Ega ficou denovo descoroçoado, sem coragem. Despediu a tipóia: com o embru-lho do cofre na mão foi andando pela Rua do Ouro, depois até aoRossio, parando distraidamente diante de um ourives, lendo aqui ealém a capa de um livro na vitrina dos livreiros. Pouco a pouco onegrume da véspera, um momento adelgaçado, recaía-lhe na almamais denso. Já não via as «libertações», nem as «compensações». Sósentia em torno de si, como flutuando no ar, aquele horror — Car-los a dormir com a irmã.

Voltou pela Rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria depedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu como Vilaça, que saía, atarefado, calçando as luvas.

— Homem, até que enfim!— Ah! era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha

paciência, que está o visconde de Torral à minha espera...Ega quase o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se de uma

coisa muito urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava daporta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negócio ede pressa.

— O amigo bem vê... Está o homem à espera! É um rendez-vouspara as onze!

Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto àface, tragicamente, que se tratava de Carlos, de um caso de vida oude morte! Então o Vilaça, num grande espanto, atravessou brusca-mente o escritório, fez entrar Ega num cubículo ao lado, estreitocomo um corredor, com um canapé de palhinha, uma mesa onde oslivros tinham pó, e um armário ao fundo. Fechou a porta, atirou ochapéu para a nuca:

— Então que é?Ega, com um gesto, indicou fora o escrevente que podia escutar.

O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao HotelPelicano, pedir ao senhor visconde do Torral a fineza de esperarmeia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma excla-mação ansiosa:

— Então que é?

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— É um horror, Vilaça, um grande horror... Nem eu sei poronde hei-de começar.

Vilaça, já muito pálido, pousou lentamente o guarda-chuvasobre a mesa.

— É duelo?— Não... É isto... Você sabia que o Carlos tinha relações com uma

Sr.a Mac Gren, que veio o Inverno passado a Portugal, ficou aí?...Uma senhora brasileira, mulher de um brasileiro, que passara

o Verão nos Olivais?... Sim, Vilaça sabia. Falara até nisso com oEusebiozinho.

— Ah, com o Eusébio?... Pois não é brasileira! É portuguesa, e éirmã dele!

Vilaça caiu para o canapé, batendo as mãos num assombro.— Irmã do Eusébio!— Qual do Eusébio, homem!... Irmã de Carlos!Vilaça ficara mudo, sem compreender, com os olhos terrivel-

mente arregalados para o outro, que se movia pelo cubículo, repe-tindo: «Irmã! irmã legítima!» Ega por fim sentou-se no canapé depalhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escritório, con-tou o seu encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdadeterrível estalara casualmente, numa palavra, à esquina doAliança... Mas quando falou dos papéis, entregues pela Monforte aoGuimarães, há tantos anos guardados, nunca reclamados, e que odemocrata agora, tão de repente, tão urgentemente, queria resti-tuir à família — Vilaça, até aí esmagado e como emparvecido, des-pertou, teve uma explosão:

— Aí há marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...— Apanhar dinheiro! Quem?— Quem!? — exclamou Vilaça de pé, arrebatadamente. — Essa

senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É que o amigo não percebe!Se aparecer uma irmã do Maia, legítima e autêntica, são quatro-centos contos e pico que cabem à irmã do Maia!...

Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forteimpressão daquela ideia inesperada que, a seu pesar, abalava oEga. Mas como o procurador, trémulo, voltava à grande soma dequatrocentos contos, lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega ter-minou por encolher os ombros:

— Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ela é incapaz, abso-lutamente incapaz, de semelhante intriga. Além disso, se é uma

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questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar comoirmã, desde que Carlos lhe prometera casar com ela?

Casar com ela! Vilaça erguia as mãos, não queria acreditar. Oquê! o Sr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa cria-tura amigada com um brasileiro!?... Santíssimo nome de Deus! Eatravés do assombro, recrescia-lhe a desconfiança, via aí um novofeito do Olho Vivo.

— Não senhor, Vilaça, não senhor! — insistiu Ega, já impa-ciente. — Se a questão é de documentos e se ela os tinha, verdadei-ros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir como irmão!

Vilaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terrorinvadia-o diante daquela grande casa, que era o seu orgulho, par-tida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como oEga, muito nervoso, lembrava que de resto a questão não era dedocumentos, nem de legalidade, nem de fortuna — o procuradorteve outro grito, com a face de novo alumiada:

— Espere, homem, há outra coisa!... Talvez ela seja filha do ita-liano!

— E então?... Vem a dar na mesma.— Alto lá! — berrou o procurador, batendo com o punho na

mesa. — Não tem direito à legítima do pai, e não apanha um realdesta casa!... Irra, aí é que está o ponto!

Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente!Esta era a filha de Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de atrazer ao colo, de lhe dar bonecas quando ela tinha sete anos, equando apenas havia quatro ou cinco anos que o italiano estiveraem Arroios, de cama, com uma chumbada. A filha desse morreraem Londres, pequenina.

Vilaça recaiu no canapé, sucumbido.— Quatrocentos contos, que bolada!Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal,

havia já uma forte suspeita. E desde logo não se podia deixar opobre Carlos, inocentemente, a chafurdar naquela sordidez. Erapois indispensável revelar tudo a Carlos, nessa noite...

— E você, Vilaça, é que tem de lho dizer. Vilaça deu um salto, que fez bater o canapé contra a parede.— Eu!?— Você, que é o procurador da casa!

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Que havia ali senão uma questão de filiação, portanto de legí-tima? A quem pertenciam esses detalhes legais senão ao procura-dor?

Vilaça murmurou com todo o sangue na face:— Homem, o amigo mete-me numa!...Não. Ega metia-o apenas naquilo em que o Vilaça, como procu-

rador, logicamente e profissionalmente devia estar.O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo!

Não era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que ele não sabianada! Que podia dizer ao Sr. Carlos da Maia? «O amigo Egaveio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães ontem ànoite no Loreto...» Não tinha a dizer mais nada...

— Pois diga isso.O outro encarou Ega com os olhos que chamejavam:— Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, é necessário ter

topete!Deu um puxão desesperado ao colete, foi bufando até ao fundo

do cubículo, onde esbarrou com o armário. Voltou, tornou a encararo Ega:

— Não se vai a um homem com uma coisa dessas, sem provas...Onde estão as provas?...

— Ó Vilaça, desculpe, você está obtuso... A que vim eu aquisenão trazer-lhe as provas, as que há, boas ou más, a história doGuimarães, essa caixa com os papéis da Monforte?...

Vilaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nasmãos, decifrando o mote do sinete: Pro Amore.

— Então abrimo-la?Já Ega puxara uma cadeira para a mesa. Vilaça cortou o papel,

gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E apareceu efectivamenteuma velha caixa de charutos, pregada com duas tachas, cheia depapéis, alguns em maços apertados por fitas, outros soltos dentrode sobrescritos abertos, que tinham o monograma da Monforte, sobuma coroa de marquês. Ega desembrulhou o primeiro maço. Eramcartas em alemão, que ele não percebia, datadas de Budapeste e deCarlsruhe.

— Bem, isto não nos diz nada... Adiante!Outro embrulho, a que Vilaça cuidadosamente desapertou o nó

cor-de-rosa, resguardava uma caixa oval, com a miniatura de umhomem de bigodes e suíças ruivas, entalado na alta gola dourada

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de uma farda branca. Vilaça achou a pintura «linda».— Algum oficial austríaco — rosnou Ega. — Outro amante... —

Ça marche.Iam tirando os papéis por ordem, com a ponta dos dedos, como

tocando em relíquias. Um largo envelope atulhado de contas demodistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profunda-mente o Vilaça — que percorria os itens, espantado dos preços, dasinfinitas invenções do luxo. Contas de seis mil francos! Um só ves-tido, dois mil francos!... Outro maço trouxe uma surpresa. Eramcartas de Maria Eduarda à mãe, escritas do convento, numa letraredonda e trabalhada como um desenho, com frasezinhas cheias degravidade devota, ditadas decerto pelas boas Irmãs; e nestas com-posições, virtuosas e frias como temas, o sincero coração da rapa-riga só transparecia nalguma florzinha, agora seca, pregada no altodo papel com um alfinete.

— Isto põe-se de parte — murmurou Vilaça.Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa,

alastrou os papéis. E entre cartas, outras contas, bilhetes de visita,um grande sobrescrito destacou com esta linha a tinta azul: Per-tence a minha filha Maria Eduarda. Foi Vilaça que lançou os olhos,rapidamente, à enorme folha de papel que ele continha, luxuosa edocumental, com o monograma de oiro sob a coroa de marquês.Quando o passou em silêncio para a mão do Ega, parecia sufocado,com todo o sangue nas orelhas.

Ega leu-o alto, devagar. Dizia:

Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu tambémme não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente,para o que possa vir a suceder, fazer aqui uma declaração que tepertence a ti, minha querida filha, e que só sabe o padre Talloux(Mr. l’abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roch) porque lho disse hádois anos, quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro queminha filha Maria Eduarda, que costuma assinar Maria Calzaski,por supor ser esse o nome de seu pai, é portuguesa e filha de meumarido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, tra-zendo-a comigo para Viena, depois para Paris, e que agora vive emcompanhia de Patrick Mac Gren, em Fontainebleau, com quem vaicasar. E o pai de meu marido era meu sogro Afonso da Maia, viúvo,que vivia em Benfica e também em Santa Olávia, ao pé do rio

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Douro. O que tudo se pode verificar em Lisboa, pois devem lá estaros papéis; e os meus erros, de que vejo agora as consequências, nãodevem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posição e for-tuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assino,no caso que o não possa fazer diante de um tabelião, o que tencionologo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deusnão permita, peço perdão a minha filha. E assino com o meu nomede casada — Maria Monforte da Maia.

Ega ficou a olhar para o Vilaça. O procurador só pôde murmu-rar, com as mãos cruzadas sobre a mesa:

— Que bolada! Que bolada!Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia

unicamente a entregar aquele documento a Carlos, sem comentá-rios. Mas o Vilaça coçava a cabeça, retomado por uma dúvida:

— Eu não sei se este papelinho faria fé em juízo...— Qual fé, qual juízo! — exclamou Ega violentamente. — É o

bastante para que ele não torne a dormir com ela!...Uma pancada tímida na porta do cubículo fê-lo estacar,

inquieto. Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou atra-vés da frincha:

— O Sr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho,quando eu entrei, perguntou pelo Sr. Vilaça.

Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrara o chapéu doVilaça. O procurador atirava às mãos ambas, para dentro de umagaveta, os papéis da Monforte.

— É talvez melhor dizer que não está — lembrou o escrevente.— Sim, que não está! — foi o grito abafado de ambos.Ficaram à escuta, ainda pálidos. O dog-cart de Carlos rolou na

calçada: os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-sede não terem mandado subir Carlos — e ali mesmo, sem outrasvacilações nem pieguices, corajosamente, contarem tudo, diantedaqueles papéis bem abertos. E estava saltado o barranco!

— Homem — dizia o Vilaça passando o lenço pela testa — ascoisas querem-se devagar, com método. É necessário preparar-se agente, respirar para dar bem o mergulho...

Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas.Os outros papéis da caixa perdiam o interesse, depois daquela con-fissão da Monforte. Só restava que Vilaça aparecesse à noite no

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Ramalhete, às oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos sair paraa Rua de S. Francisco.

— Mas o amigo há-de lá estar! — exclamou o procurador, jáaterrado.

Ega prometeu. Vilaça teve um pequeno suspiro. Depois, nopatamar, onde viera acompanhar o outro:

— Uma destas, uma destas!... E eu, ainda tão contente, a jan-tar no Ramalhete...

— E eu, com eles, na Rua de S. Francisco!... — Enfim, até à noite!— Até à noite.Ega não se atreveu nesse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar

diante de Carlos, a ver-lhe a alegria e a paz — sentindo aquelanegra desgraça que descia sobre ele à maneira que a noite descia.Foi pedir as sopas ao marquês, que desde o sarau se conservava emcasa, de garganta entrapada. Depois, às oito e meia, quando calcu-lou que Vilaça devia estar já no Ramalhete, deixou o marquês, quese enfronhara com o capelão numa partida de damas.

Aquele lindo dia, toldado de tarde, findara numa chuvinhamiúda que transia as ruas. Ega tomou uma tipóia. E parava noRamalhete, já terrivelmente nervoso, quando avistou Vilaça no por-tal, de guarda-chuva sob o braço, arregaçando as calças para sair.

— Então? — gritou-lhe o Ega.Vilaça abriu o guarda-chuva, para murmurar de baixo, mas em

segredo:— Não foi possível... Disse que tinha muita pressa, que não me

podia ouvir.Ega bateu o pé, desesperado:— Oh, homem!— Que quer o amigo? Havia de o agarrar à força? Ficou para

amanhã... Tenho de cá estar amanhã às onze horas.Ega galgou as escadas, rosnando entredentes: «Irra! Não saí-

mos desta!» Foi até ao escritório de Afonso. Mas não entrou. Atra-vés de uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto dasala aparecia, quente e cheio de conchego, no doce tom cor-de-rosada luz, caindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa dowhist: no sofá bordado a matiz, D. Diogo, murcho e mole, olhava olume, cofiando os bigodes. E, travadas nalguma questão, a voz doCraft, que perpassou de cachimbo na mão, e a voz mais lenta de

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Afonso, tranquilo na sua poltrona, misturavam-se, abafadas pelado Sequeira, que berrava furiosamente: «Mas se amanhã houvesseuma bernarda, esse exército com que os senhores querem acabar,por ser uma escola de vadiagem, é que lhes havia de guardar ascostas... É bom falar, ter muita filosofia! Mas quando elas chegam,se não há meia dúzia de baionetas prontas, então são as cólicas!...»

Ega foi dali aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nasserpentinas: um aroma errava, de água de Lubin e charuto: e oBaptista disse-lhe que o Sr. D. Carlos «saíra havia dez minutos».Fora para a Rua de S. Francisco! Ia lá dormir! Então enervado,com a longa e triste noite diante de si, Ega teve um apetite de seatordoar, dissipar numa excitação forte as ideias que o torturavam.Não despedira a tipóia, abalou para S. Carlos. E findou por ir cearao Augusto, com o Taveira e duas raparigas, a Paca e a CármenFilósofa, prodigalizando o champanhe. Às quatro da manhã estavabêbedo, estatelado sobre o sofá, gemendo sentimentalmente, sópara si, as estrofes de Musset à Malibran... O Taveira e a Paca,juntinhos na mesma cadeira, ele com o seu ar terno de chulo, elamuy caliente também, debicavam copinhos de gelatina. E a CármenFilósofa, empanturrada, desapertada, com o colete embrulhado jánum Diário de Notícias, repicava a faca na borda do prato, cantaro-lando de olhos perdidos nos bicos de gás:

Señor alcalde mayor, No prenda usted los ladrones...

Acordou ao outro dia às nove horas, ao lado da Cármen Filó-sofa, num quarto de grandes janelas rasgadas, por onde entravatoda a melancolia da escura manhã de chuva. E, enquanto nãovinha a tipóia fechada que a servente correra a chamar, o pobreEga, enojado, vexado, com a língua pastosa, os pés nus sobre otapete, reunindo o fato espalhado, tinha só uma ideia clara — fugirdali para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde sepurificasse de uma sensação viscosa de Cármen e de orgia que oarrepiava.

Esse banho lustral, foi tomá-lo ao Hotel Bragança, para seencontrar com Carlos e com Vilaça às onze horas, já lavado e pre-parado. Mas precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro,com um bilhete para o Baptista, voara a buscar ao Ramalhete:

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depois almoçou: e já batera meio-dia quando se apeou à porta parti-cular dos quartos de Carlos, com a roupa suja numa trouxa.

Justamente Baptista atravessava o patamar com camélias numaçafate.

— O Vilaça já veio? — perguntou-lhe Ega baixo, andando empontas de pés.

— O Sr. Vilaça já lá está dentro há bocado. Vossa Excelênciarecebeu a roupa branca? Eu também mandei um fato, porque nes-ses casos sempre dá mais frescura...

— Obrigado, Baptista, obrigado!E Ega pensava: «Bem, Carlos já sabe tudo, o barranco está pas-

sado!» Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletó com umalentidão cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coração, puxou oreposteiro de veludo. Na antecâmara pesava um silêncio; a chuvagrossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as árvoresdo jardim esfumadas na névoa. Ega levantou o outro reposteiro,que tinha bordadas as armas dos Maias.

— Ah! és tu? — exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de tra-balho, com uns papéis na mão.

Parecia ter conservado um ânimo viril e firme: apenas os olhoslhe rebrilhavam, com um fulgor seco, ansiosos e mais largos napalidez que o cobria. Vilaça, sentado defronte, passava vagarosa-mente pela testa, num movimento cansado, o lenço de seda daÍndia. Sobre a mesa alastravam-se os papéis da Monforte.

— Que diabo de embrulhada é esta, que me vem contar oVilaça? — rompeu Carlos, cruzando os braços diante do Ega, numavoz que apenas de leve tremia.

Ega balbuciou: — Eu não tive coragem de te dizer...— Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?Vilaça ergueu-se imediatamente. Ergueu-se com a pressa de

um galucho tímido que é rendido num posto arriscado, pediulicença, se não precisavam dele, para voltar ao escritório. Os ami-gos decerto preferiam conversar mais livremente. De resto, ali fica-vam os papéis da Sr.a D. Maria Monforte. E se ele fosse necessário,um recado encontrava-o na Rua da Prata ou em casa...

— E Vossa Excelência compreende — acrescentou ele, enro-lando nas mãos o lenço de seda — eu tomei a iniciativa de vir falar,

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por ser o meu dever, como amigo confidencial da casa... Foi essatambém a opinião do nosso Ega...

— Perfeitamente, Vilaça, obrigado! — acudiu Carlos. — Se fornecessário lá mando...

O procurador, com o lenço na mão, lançou em redor um olharlento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surpreen-dido. E Carlos seguia com impaciência os passos tímidos que eledava pelo quarto, procurando...

— Que é, homem?— O meu chapéu. Imaginei que o tinha posto aqui... Natural-

mente ficou lá fora... Bem, se for necessário alguma coisa...Mal ele saiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos,

Carlos fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega,caindo pesadamente numa cadeira:

— Dize lá!Ega, sentado no sofá, começou por contar o encontro com o Sr.

Guimarães, em baixo, no botequim da Trindade, depois de terfalado o Rufino. O homem queria explicações sobre a carta doDâmaso, sobre a bebedeira hereditária... Tudo se aclarara, ficandodaí entre eles um começo de familiaridade...

Mas o reposteiro mexeu de leve — e surdiu de novo a face doVilaça:

— Peço desculpa, mas é o meu chapéu... Não o acho, havia dejurar que o deixei aqui...

Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou também, portrás do sofá, no vão da janela. Carlos, desesperado, para findar, foiver entre os cortinados da cama. E Vilaça, escarlate, aflito, esqua-drinhava até a alcova do banho...

— Um sumiço assim! Enfim, talvez me esquecesse na antecâ-mara!... Vou ver outra vez... O que peço é desculpa.

Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando como Gui-marães, duas ou três vezes nos intervalos, lhe viera falar de coisasindiferentes, do sarau, de política, do papá Hugo, etc. Depois eleprocurara Carlos para irem um bocado ao Grémio. Terminara porsair com Cruges. E passavam defronte do Aliança...

Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a SuasExcelências:

— É o Sr. Vilaça que não acha o chapéu, diz que o deixou aqui...

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Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas,como para despedaçar o Baptista.

— Vai para o Diabo tu e o Sr. Vilaça!... Que saia sem chapéu!Dá-lhe um chapéu meu! Irra!

Baptista recuou, muito grave.— Vá, acaba lá! —exclamou Carlos, recaindo no assento, mais

pálido.E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrível conversa com

o Guimarães, desde o momento em que o homem, por acaso, já aodespedir-se, já ao estender-lhe a mão, falara da «irmã do Maia».Depois entregara-lhe os papéis da Monforte à porta do Hotel Paris,no Pelourinho...

— E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu pas-sei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Vilaça... Fui ao Vilaçacom a esperança sobretudo de ele saber algum facto, ter algumdocumento que atirasse por terra toda esta história do Guimarães...Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!

No curto silêncio que caiu, um chuveiro mais largo, alagando oarvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arreba-tadamente, numa revolta de todo o ser:

— E tu acreditas que isso seja possível? Acreditas que suceda aum homem como eu, como tu, numa rua de Lisboa? Encontro umamulher, olho para ela, conheço-a, durmo com ela e, entre todas asmulheres do mundo, essa justamente há-de ser minha irmã! Éimpossível... Não há Guimarães, não há papéis, não há documentosque me convençam!

E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhosno chão:

— Dize alguma coisa — gritou-lhe Carlos. Duvida também,homem, duvida comigo!... É extraordinário! Todos vocês acreditam,como se isto fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvessepor essa cidade fora senão irmãos a dormir juntos!

Ega murmurou:— Já ia sucedendo um caso assim, lá ao pé da quinta, em Celo-

rico...E nesse momento, sem que um rumor os prevenisse, Afonso da

Maia apareceu numa abertura do reposteiro, encostado à bengala,sorrindo todo com alguma ideia que decerto o divertia. Era ainda ochapéu do Vilaça.

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— Que diabo fizeram vocês ao chapéu do Vilaça? O pobrehomem andou por aí aflito... Teve de levar um chapéu meu.Caía-lhe pela cabeça abaixo enchumaçaram-lho com lenços...

Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Repa-rou na atarantação do Ega, cujos olhos mal se fixavam, fugindoansiosamente dele para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deuno quarto um passo lento:

— Que é isso, que têm vocês... Há alguma coisa?Então Carlos, no ardente egoísmo da sua paixão, sem pensar no

abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança queele, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, pos-suísse alguma certeza contrária a toda essa história do Guimarães,a todos esses papéis da Monforte — veio para ele, desabafou:

— Há uma coisa extraordinária, avô! O avô talvez saiba... Oavô deve saber alguma coisa que nos tire desta aflição!... Aqui está,em duas palavras. Eu conheço aí uma senhora que chegou há tem-pos a Lisboa, mora na Rua de S. Francisco. Agora, de repente, des-cobre-se que é minha irmã legítima!. .. Passou aí um homem que aconhecia, que tinha uns papéis... Os papéis aí estão. São cartas,uma declaração de minha mãe... Enfim, uma trapalhada, um mon-tão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foilevada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!

Afonso da Maia, que um tremor tomara, agarrou-se ummomento com força à bengala, caiu por fim pesadamente numa pol-trona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com umolhar esgazeado e mudo.

— Esse homem — exclamou Carlos — é um Guimarães, um tiodo Dâmaso... Falou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papéis...Conta tu ao avô, Ega, conta tu do começo!

Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa história. E findou pordizer que o importante, o decisivo ali era que esse homem, o Guima-rães, que não tinha interesse em mentir e só por acaso, puramentepor acaso, falara em tais coisas, conhecia essa senhora, desdepequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. Enunca a perdera de vista. Vira-a crescer em Paris, andara com elaao colo, dera-lhe bonecas. Visitara-a com a mãe no convento. Fre-quentara a casa que ela habitava em Fontainebleau, como casada...

— Enfim — interrompeu Carlos — viu-a ainda há dias, numacarruagem, comigo e com o Ega... Que lhe parece, avô?

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O velho murmurou, num grande esforço, como se as palavrassaindo lhe rasgassem o coração:

— Essa senhora, está claro, não sabe nada... Ega e Carlos, a um tempo, gritaram: «Não sabe nada!» Segundo

afirmava o Guimarães, a mãe escondera-lhe sempre a verdade. Elajulgava-se filha de um austríaco. Assinava-se ao princípio Cal-zaski...

Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papelna mão:

— Aqui tem o avô a declaração da minha mãe.O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta de entre

o colete, com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel deva-gar, empalidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; aofindar deixou cair sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam opapel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim vie-ram-lhe apagadas, morosas. Ele nada sabia... O que a Monforte aliassegurava, ele não o podia destruir... Essa senhora da Rua deS. Francisco era talvez, na verdade, sua neta... Não sabia mais...

E Carlos diante dele vergava os ombros, esmagado também soba certeza da sua desgraça. O avô, testemunha do passado, nadasabia! Aquela declaração, toda a história do Guimarães aí permane-ciam inteiras, irrefutáveis. Nada havia, nem memória de homem,nem documento escrito, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era,pois, sua irmã!... E um defronte do outro, o velho e o neto pareciamdobrados por uma mesma dor — nascida da mesma ideia.

Por fim Afonso ergueu-se fortemente encostado à bengala, foipousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhestocar, às cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois,lentamente, passando a mão pela testa:

— Nada mais sei... Sempre pensámos que essa criança tinhamorrido... Fizeram-se todas as pesquisas... Ela mesma disse quelhe tinha morrido a filha, mostrou já não sei a quem um retrato...

— Era outra mais nova, a filha do italiano disse o Ega. — OGuimarães falou-me nisso... Foi esta que viveu. Esta, que tinha jásete a oito anos, quando havia apenas quatro ou cinco que essesujeito italiano aparecera em Lisboa... Foi esta.

— Foi esta — murmurou o velho.Teve um gesto vago de resignação, acrescentou, depois de respi-

rar fortemente:

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— Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bomtornar a chamar o Vilaça... Talvez seja necessário que ele vá aParis... E antes de tudo precisamos sossegar. De resto não há aquimorte de homem... Não há aqui morte de homem!

A voz sumia-se-lhe, toda trémula. Estendeu a mão a Carlos,que lha beijou, sufocado; e o velho, puxando o neto para si,pousou-lhe os lábios na testa. Depois deu dois passos para a porta,tão lentos e incertos que Ega correu para ele:

— Tome Vossa Excelência o meu braço...Afonso apoiou-se nele, pesadamente. Atravessaram a antecâ-

mara silenciosa, onde a chuva contínua batia os vidros. Por detrásdeles caiu o grande reposteiro, com as armas dos Maias. E entãoAfonso, de repente, soltando o braço do Ega, murmurou-lhe junto àface, no desabafo de toda a sua dor:

— Eu sabia dessa mulher!... Vive na Rua de S. Francisco, pas-sou todo o Verão nos Olivais... É a amante dele!

Ega ainda balbuciou: «Não, não, Sr. Afonso da Maia!» Mas ovelho pôs o dedo nos lábios, indicou Carlos dentro, que podiaouvir... E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfimpor aquele implacável destino que, depois de o ter ferido na idadeda força com a desgraça do filho — o esmagava ao fim da velhicecom a desgraça do neto.

Ega enervado, exausto, voltou para o quarto — onde Carlosrecomeçara naquele agitado passeio que abalava o soalho, faziatilintar finamente os frascos de cristal sobre o mármore da console.Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros papéis daMonforte: cartas, um livrinho de marroquim com adresses, bilhetesde visita de membros do Jockey Club e de senadores do Império.Subitamente Carlos parou diante dele, apertando desesperada-mente as mãos:

— Estarem duas criaturas em pleno Céu, passar um quidam,um idiota, um Guimarães, dizer duas palavras, entregar unspapéis e quebrar para sempre duas existências!... Olha que isto éhorrível, Ega!

Ega arriscou uma consolação banal:— Era pior se ela morresse...— Pior porquê? — exclamou Carlos. — Se ela morresse, ou eu,

acabava o motivo desta paixão, restava a dor e a saudade, eraoutra coisa... Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e

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viva a paixão que nos unia!... Pois tu imaginas que por me viremprovar que ela é minha irmã, eu gosto menos dela do que gostavaontem, ou gosto de um modo diferente? Está claro que não! O meuamor não se vai de uma hora para a outra acomodar a novas cir-cunstâncias, e transformar-se em amizade... Nunca! Nem eu quero!

Era uma brutal revolta — o seu amor defendendo-se, não que-rendo morrer, só porque as revelações de um Guimarães e umacaixa de charutos cheia de papéis velhos o declaravam impossível,e lhe ordenavam que morresse!

Houve outro melancólico silêncio. Ega acendeu uma cigarette,foi-se enterrar ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita detoda aquela emoção, da noitada no Augusto, da estremunhadamanhã na alcova da Cármen. Todo o quarto ia entristecendo, à luzmais triste da tarde de Inverno que descia. Ega terminou por cer-rar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra exclamação de Car-los, que de novo, diante dele, apertava as mãos com desespero:

— E o pior ainda não é isto, Ega! O pior é que temos de lhedizer tudo, de lhe contar tudo, a ela!...

Ega já pensara nisso... E era necessário que se lhe dissesseimediatamente, sem hesitações.

— Vou-lhe eu mesmo contar tudo — murmurou Carlos.— Tu!?— Pois quem, então? Querias que fosse o Vilaça...Ega franziu a testa: — O que tu devias fazer era meter-te esta noite no comboio, e

partir para Santa Olávia. De lá contavas-lhe tudo. Estavas assimmais seguro.

Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro defadiga:

— Sim, talvez, amanhã, no comboio da noite... Já pensei nisso,era o melhor... Agora o que estou é muito cansado!

— Também eu — disse o Ega espreguiçando-se. — E já nãoadiantamos nada, atolamo-nos mais na confusão. O melhor é sere-nar... Eu vou-me estirar um bocado na cama.

— Até logo!Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu

imenso cansaço, bem depressa adormeceu. Acordou tarde a umrumor da porta. Era Carlos que entrava, raspando um fósforo.Anoitecera, em baixo tocava a campainha para o jantar.

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— Demais a mais esta maçada do jantar! — dizia Carlos acen-dendo as velas no toucador. — Não termos um pretexto para irmosfora, a uma taberna, conversar em sossego! Ainda por cima convi-dei ontem o Steinbroken.

Depois voltando-se:— Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?O outro saltara da cama, e diante do lavatório arregaçava as

mangas:— Eu te digo... Parece-me que teu avô desconfia... O caso

fez-lhe a impressão de uma catástrofe... E, se não suspeitasse o quehá, devia-lhe causar simplesmente a surpresa de quem descobreuma neta perdida.

Carlos teve um lento suspiro. Daí a um instante desciam para ojantar.

Em baixo encontraram, além de Steinbroken e de D. Diogo — oCraft, que viera «pedir as sopas». E em torno àquela mesa, semprealegre, coberta de flores e de luzes, uma melancolia flutuava nessatarde, através de uma conversa dormente sobre doenças — oSequeira que tinha reumatismo, o pobre marquês que piorara.

De resto Afonso, no escritório, queixara-se de uma forte dor decabeça, que justificava o seu ar consumido e pálido. Carlos, a quemSteinbroken achara «má cara», explicou também que passara umanoite abominável. Então Ega, para desanuviar o jantar, pediu aoamigo Steinbroken as suas impressões sobre o grande orador dosarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surpreendera-obastante saber que o Rufino era um político, um parlamentar...Aqueles gestos, o bocado da camisa a ver-se-lhe no estômago, apêra, a grenha, as botas, não lhe pareciam realmente de umhomem de Estado:

— Mais cependant, cependant... Dans ce genre là, dans le genresublime, dans le genre de Demosthènes, il m’a paru très fort... Oh,il m’a paru excessivemente fort!

— E você, Craft?Craft, no sarau, só gostara do Alencar. Ega encolheu violenta-

mente os ombros. Ora histórias! Nada podia haver mais cómico quea Democracia romântica do Alencar, aquela República meiga eloura, vestida de branco como Ofélia, orando no prado, sob o olharde Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excelente por sersincero. O que feria sempre, nas exibições da literatura portuguesa?

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A escandalosa falta de sinceridade. Ninguém, em verso ou prosa,parecia jamais acreditar naquilo que declamava com ardor, esmur-rando o peito. E assim fora na véspera. Nem o Rufino parecia acre-ditar na influência da religião; nem o homem da barba bicuda, noheroísmo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dosolhinhos bonitos, na bonitice dos olhinhos... Tudo contrafeito e pos-tiço! Com o Alencar, que diferença! Esse tinha uma fé real no quecantava, na fraternidade dos povos, no Cristo republicano, naDemocracia devota e coroada de estrelas...

— Já deve ser bem velho esse Alencar — observou D. Diogo,que rolava bolinhas de pão entre os longos dedos pálidos.

Carlos, ao lado, emergiu enfim do seu silêncio:— O Alencar deve ter bons cinquenta anos.Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar publicava

coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas vir-gens que seduzira...

— Há que anos, com efeito — murmurou lentamente Afonso —eu ouvi falar desse homem!

D. Diogo, que levara os lábios ao copo, voltou-se para Carlos:— O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram ínti-

mos, dessa roda distinguée de então. O Alencar ia muito a Arroioscom o pobre D. João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Eratudo uma fina-flor, e regulavam pela mesma idade... Já nada resta,já nada resta!

Carlos baixara os olhos: todos por acaso emudeceram: um ar detristeza passou entre as flores e as luzes, como vinda do fundodesse passado, cheio de sepulturas e dores.

— E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! — exclamou Ega, parasacudir aquela névoa.

Craft achava o fiasco justo. Para que fora ele dar Beethoven auma gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega não admi-tia esse desdém por Offenbach, umas das mais finas manifestaçõesmodernas do cepticismo e da ironia! Steinbroken acusou Offenbachde não saber contraponto. Durante um momento discutiu-semúsica. Ega acabou por sustentar que nada havia, em arte, tãobelo como o fado. E apelou para Afonso, para o despertar.

— Pois não é verdade, Sr. Afonso da Maia? Vossa Excelênciatambém é como eu, um dos fiéis ao fado, à nossa grande criaçãonacional.

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— Sim, com efeito — murmurou o velho, levando a mão à testa,como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. — Há muitapoesia no fado...

Craft, porém, atacava o fado, as malaguenhas, as peteneras,toda essa música meridional, que lhe parecia apenas um gargan-teado gemebundo, prolongado infinitamente, em ais de esterilidadee de preguiça. Ele, por exemplo, ouvira uma noite umamalaguenha, umas dessas famosas malaguenhas, cantada em per-feito estilo por uma senhora de Málaga. Era em Madrid, em casados Villa-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobrepiedra e sepultura, e rompe a gemer num gemido que não findava:Ã-ã-ã-ã-ã-ah... Pois senhores, ele aborrece-se, passa para outrasala, vê jogar todo um robber de whist, folheia um imenso álbum,discute a guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, láestava ainda a senhora, de cravos na trança e olhos no tecto, agemer o mesmo Ã-ã-ã-ãã-ah!...

Todos riram. Ega protestou com ímpeto, já excitado. O Craftera um seco inglês, educado sobre o chato seio da Economia Polí-tica, incapaz de compreender todo o mundo de poesia que podiaconter um ai! Mas ele não falava das malaguenhas. Não estavaencarregado de defender a Espanha. Ela possuía, para convencerCraft e outros britânicos, bastante pilhéria e bastante navalha... Aquestão era o fado!

— Onde é que você tem ouvido o fado? Aí pelas salas, ao piano...Com efeito, assim, concordo, é chocho. Mas ouça-o você por três ouquatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bela Lua nocéu... Como nos Olivais este Verão, quando o marquês lá levou oVira-Vira! Lembras-te, Carlos?...

E estacou, como entalado, no arrependimento daquela memóriada Toca, que levianamente evocara. Carlos permanecera silencioso,com uma sombra na face. Craft ainda rosnou que, numa linda noitede luar, todos os sons no campo eram bonitos, mesmo o chiar dossapos. E de novo uma estranha desanimação amoleceu a sala; osescudeiros serviam os doces.

Então, no silêncio, D. Diogo disse pensativamente, com a suamajestade de leão saudoso que relembra um grande passado:

— Uma música também muito distinguée, antigamente, eramos Sinos do Mosteiro. Parecia mesmo que se estavam ouvindosinos... Já não há disso!

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O jantar terminava friamente. Steinbroken voltara àquela faltada família real no sarau, que desde a véspera o inquietava. Nin-guém ali se interessava pelo Paço. Depois, D. Diogo surdiu comuma velha e fastidiosa história sobre a infanta D. Isabel. Foi umalívio quando o escudeiro trouxe, em volta, a larga bacia de prata eo jarro de água perfumada.

Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft começa-ram uma partida «às cinquenta» e a quinze tostões, para interes-sar. Afonso e D. Diogo tinham recolhido ao escritório. Ega enter-rara-se no fundo de uma poltrona, com o Figaro. Mas bem depressadeixou escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos,que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Egaadormecido, e sumiu-se por trás do reposteiro.

Ia à Rua de S. Francisco.Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado num paletó de

peles, acabando o charuto. A noite clareara, com um crescente deLua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sob um nortefino.

Fora nessa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir falara Maria Eduarda — por um motivo supremo de dignidade e derazão, que ele descobrira e que repetia a si mesmo, incessante-mente, para se justificar. Nem ela nem ele eram duas criançasfrouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhesfosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Vilaça: mas duas pes-soas fortes, com o ânimo bastante resoluto, e o juízo bastanteseguro, para eles mesmos acharem o caminho da dignidade e darazão naquela catástrofe que lhes desmantelava a existência. Porisso ele, só ele, devia ir à Rua de S. Francisco.

Decerto era terrível tornar a vê-la naquela sala, quente aindado seu amor, agora que a sabia sua irmã... Mas porque não? Haviaacaso ali dois devotos, possuídos da preocupação do Demónio, espa-voridos pelo pecado em que se tinham atolado, ainda que incons-cientemente, ansiosos por irem esconder, no fundo de mosteirosdistantes, o horror carnal um do outro? Não! Necessitavam elesacaso pôr imediatamente entre si as compridas léguas que vão deLisboa a Santa Olávia, com receio de cair na antiga fragilidade, sede novo os seus olhos se encontrassem, brilhando com a antigachama? Não! Ambos tinham em si bastante força para enterrar o

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coração sob a razão, como sob uma fria e dura pedra, tão completa-mente que não lhe sentissem mais nem a revolta nem o choro. Eele podia desafogadamente voltar àquela sala, toda quente aindado seu amor.

De resto, que precisavam apelar para a razão, para a sua cora-gem de fortes?... Ele não ia revelar bruscamente toda a verdade aMaria Eduarda, dizer-lhe um adeus patético, um adeus de teatro,afrontar uma crise de paixão e dor. Pelo contrário! Toda essa tarde,através do seu próprio tormento, procurara ansiosamente um meiode adoçar e graduar àquela pobre criatura o horror da revelaçãoque lhe devia. E achara um por fim, bem complicado, bem cobarde!Mas quê! Era o único, o único que, por uma preparação lenta, cari-dosa, lhe pouparia uma dor fulminante e brutal. E esse meio justa-mente só era praticável indo ele, com toda a frieza, com todo oânimo, à Rua de S. Francisco.

Por isso ia — e ao longo do Aterro, retardando os passos, resu-mia, retocava esse plano, ensaiando mesmo consigo, baixo, pala-vras que lhe diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa— e contava-lhe que um negócio de casa, uma complicação de feito-res, o obrigava a partir para Santa Olávia daí a dias. E imediata-mente saía, com o pretexto de correr a casa do procurador. Podiamesmo ajuntar: «É um momento, não tardo, até já.» Uma coisa oinquietava. Se ela lhe desse um beijo?... Decidia então exagerar asua pressa, conservando o charuto na boca, sem mesmo pousar ochapéu... E saía. Não voltava. Pobre dela, coitada, que ia esperaraté tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!... Na noiteseguinte abalava para Santa Olávia com o Ega, deixando-lhe a elauma carta a anunciar que, infelizmente, por causa de um tele-grama, se vira forçado a partir nesse comboio. Podia mesmo ajun-tar: «Volto daqui a dois ou três dias...» E aí estava longe dela parasempre. De Santa Olávia escrevia-lhe logo, de um modo incerto econfuso, falando de documentos de família, inesperadamente desco-bertos, provando entre eles um parentesco chegado. Tudo isto atra-palhado, curto, «à pressa». Por fim, noutra carta, deixava escapartoda a verdade, mandava-lhe a declaração da mãe; e mostrando anecessidade de uma separação, enquanto se não esclarecessemtodas as dúvidas, pedia-lhe que partisse para Paris. Vilaça ficavaencarregado da questão de dinheiro, entregando-lhe logo, para aviagem, trezentas ou quatrocentas libras... Ah! tudo isto era bem

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complicado, bem cobarde! Mas só havia esse meio. E quem, senãoele, o podia tentar com caridade e com tacto?

E, entre o tumulto destes pensamentos, de repente achou-se naTravessa da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, atra-vés das cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o restoestava apagado — a janela do gabinete estreito onde ela se vestia,a varanda do quarto dela com os vasos de crisântemos.

E pouco a pouco, aquela fachada muda donde apenas saía, aum canto, uma claridade lânguida de alcova adormecida, foi-oestranhamente penetrando de inquietação e desconfiança. Era ummedo dessa penumbra mole que sentia lá dentro, toda cheia decalor e de perfume, em que havia jasmim. Não entrou; seguiu deva-gar pelo passeio fronteiro, pensando em certos detalhes da casa —o sofá largo e profundo com almofadas de seda, as rendas do touca-dor, o cortinado branco da cama dela... Depois parou diante dalarga barra de claridade que saía do portão do Grémio; e foi paralá, maquinalmente, atraído pela simplicidade e segurança daquelaentrada, lajeada de pedra, com grossos bicos de gás, sem penum-bras e sem perfumes.

Na sala, em baixo, ficou percorrendo, sem os compreender, ostelegramas soltos sobre a mesa. Um criado passou, ele pediuconhaque. Teles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com asmãos nos bolsos do paletó, deteve-se um momento para lhe pergun-tar se ia na terça-feira aos Gouvarinhos.

— Talvez — murmurou Carlos.— Então venha!... Eu ando a arrebanhar gente... São os anos do

Charlie, demais a mais. Cai lá o peso do mundo, e há ceia!O criado entrou com a bandeja — e Carlos, de pé junto da

mesa, remexendo o açúcar no copo, recordava, sem saber porquê,aquela tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhedera o primeiro beijo; revia o sofá onde ela caíra com um rumor desedas amarrotadas... Como tudo isto era já vago e remoto.

Apenas acabou o conhaque, saiu. Agora, caminhando rente dascasas, não via aquela fachada, que o perturbava, com sua claridadede alcova morrendo nos vidros. O portão ficara cerrado, o gás ardiano patamar. E subiu, sentindo mais, pela escada de pedra, as pan-cadas do coração que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio,disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fora encostar sobrea roupa — e a sala, com efeito, parecia abandonada por essa noite,

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com as serpentinas apagadas, o bordado ocioso e enrolado no seucesto, os livros num frio arranjo orlando a mesa, onde o candeeiroespalhava uma luz ténue, sob o abat-jour de renda amarela.

Carlos tirava as luvas, lentamente, retomado de novo por umainquietação ante aquele recolhimento adormecido. E de repenteRosa correu de dentro, rindo, pulando, com os cabelos soltos nosombros, os braços abertos para ele. Carlos levantou-a ao ar,dizendo como costumava: «Lá vem a cabrita...!»

Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os pezi-nhos atravessou-o a ideia de que aquela criança era sua sobrinha etinha o seu nome!... Largou-a, quase a deixou cair — assombradopara ela, como se pela vez primeira visse essa facezinha ebúrnea efina onde corria o seu sangue...

— Que estás tu a olhar para mim? — murmurou ela, recuandoe sorrindo, com as mãozinhas cruzadas atrás das saias que tufa-vam.

Ele não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e à sua perturbação mis-turava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filhade Madame Mac Gren, a quem ele contava histórias de Joanad’Arc, a quem balouçava na Toca sob as acácias em flor. Ela noentanto sorria mais, com um brilho nos dentinhos miúdos, uma ter-nura nos belos olhos azuis, vendo-o assim tão grave e tão mudo,pensando que ele ia brincar, fazer «voz de Carlos Magno». Tinha omesmo sorriso da mãe, com a mesma covinha no queixo. Carlos viunela, de repente, toda a graça de Maria, todo o encanto de Maria. Earrebatou-a de novo nos braços, tão violentamente, com beijos tãobruscos no cabelo e nas faces, que Rosa estrebuchou, assustada ecom um grito. Soltou-a logo, num receio de não ter sido casto...Depois, muito sério:

— Onde está a mamã?Rosa coçava o braço, com a testazinha franzida:— Apre!... Magoaste-me.Carlos passou-lhe pelos cabelos a mão que ainda tremia.— Vá, não sejas piegas, a mamã não gosta. Onde está ela?A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando

nos pulsos de Carlos, para que ele saltasse também.— A mamã foi deitar-se... Diz que está muito cansada, depois

chama-me a mim preguiçosa... Vá, salta também. Não sejasmono!...

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Nesse instante, no corredor, Miss Sara chamou:— Mademoiselle!...Rosa pôs o dedinho na boca cheia de riso:— Dize-lhe que não estou aqui! A ver... Para a fazer zangar!...

Dize!Miss Sara erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida,

sumida por trás de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se peque-nina. Teve um sorriso benévolo, murmurou: «Good night, sir.»Depois lembrou que eram quase nove e meia, mademoiselle tinhaestado um pouco constipada e devia recolher-se. Então Carlospuxou brandamente pelo braço de Rosa, acariciou-a ainda para queela obedecesse a Miss Sara.

Mas Rosa sacudia-o, indignada daquela traição.— Também nunca fazes nada!... Sensaborão! Pois olha, nem te

digo adeus!Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repelão à

governanta que sorria e lhe estendia a mão e pelo corredor rompeunum choro despeitado e perro. Miss Sara risonhamente desculpoumademoiselle. Era a constipação que a tornava impertinente. Masse fosse diante da mamã não fazia aquilo, não!

— Good night, sir.— Good night, Miss Sarah...Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o

pedaço de tapeçaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria sevestia. Aí, na escuridão, um brilho pálido de espelho tremia, batidopor um longo raio do candeeiro da rua. Muito de leve, empurrou aporta do quarto.

— Maria!... Estás a dormir?Não havia luz; mas o mesmo candeeiro da rua, através do

transparente erguido, tirava das trevas a brancura vaga do corti-nado que envolvia o leito. E foi daí que ela murmurou, mal acor-dada:

— Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horassão?

Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:— É tarde, e eu preciso sair já a procurar o Vilaça... Vinha

dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olávia, além de amanhã,por dois ou três dias...

Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.

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— Para Santa Olávia?... Ora essa, porquê? E assim de repente...Entra!... Vem cá!

Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentiao ranger mole do leito. E já todo aquele aroma dela que tão bemconhecia, esparso na sombra tépida, o envolvia, lhe entrava naalma com uma sedução inesperada de carícia nova, que o pertur-bava estranhamente. Mas ia balbuciando, insistindo na sua pressade encontrar essa noite o Vilaça.

— É uma maçada, por causa de uns feitores, de umas águas...Tocou no leito; e sentou-se muito à beira, numa fadiga que de

repente o enleara, lhe tirava a força para continuar essas invençõesde águas e de feitores, como se elas fossem montanhas de ferro amover.

O grande e belo corpo de Maria, embrulhado num roupãobranco de seda, movia-se, espreguiçava-se languidamente, sobre oleito brando.

— Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma pre-guiça... Mas então partires assim de repente!... Que seca! Dá cá amão!

Ele tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou umjoelho, a que percebia a forma e o calor suave, através da seda leve:e ali esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, num entorpeci-mento onde toda a vontade e toda a consciência se lhe fundiam,deixando-lhe apenas a sensação daquela pele quente e macia, ondea sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro decriança, fugiu dos lábios de Maria, morreu na sombra. Carlos sen-tiu a quentura de desejo que vinha dela, que o entontecia, terrívelcomo o bafo ardente de um abismo, escancarado na terra a seuspés. Ainda balbuciou: «Não, não...» Mas ela estendeu os braços,envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, num murmúrio que eracomo a continuação do suspiro, e em que o nome de querido sussur-rava e tremia. Sem resistência, como um corpo morto que um soproimpele, ele caiu-lhe sobre o seio. Os seus lábios secos acharam-secolados, num beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlosenlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, numa paixão enum desespero que fez tremer todo o leito.

A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltronaonde o cansaço o prostrara. Bocejando, estremunhado, arrastou ospassos até ao escritório de Afonso.

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Aí ardia um lume alegre, a que o «Reverendo Bonifácio» se dei-xava torrar, enrolado sobre a pele de urso. Afonso fazia a partida dewhist com Steinbroken e com o Vilaça: mas tão distraído, tão con-fuso, que já duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosnara que se ador de cabeça assim o estonteava, melhor seria findarem! QuandoEga apareceu, o velho levantou os olhos inquietos:

— O Carlos? Saiu?— Sim, creio que saiu com o Craft — disse o Ega. — Tinham

falado em ir ver o marquês.Vilaça, que baralhava com a sua lentidão meticulosa, deitou

também, para o Ega, um olhar curioso e vivo. Mas já D. Diogo batiacom os dedos no pano da mesa, resmungando: «Vamos lá, vamoslá... Não se ganha nada em saber dos outros!» Então Ega ficou alium momento, com bocejos vagos, seguindo o cair lento das cartas.Por fim, mole e secado, decidiu ir ler para a cama, hesitou pordiante das estantes, saiu com um velho número do Panorama.

Ao outro dia, à hora do almoço, entrou no quarto de Carlos. Eficou pasmado quando o Baptista — tristonho desde a véspera,farejando desgosto — lhe disse que Carlos fora para a Tapada,muito cedo, a cavalo...

— Ora essa!... E não deixou ordens nenhumas, não falou em irpara Santa Olávia?...

Baptista olhou Ega, espantado:— Para Santa Olávia!... Não senhor, não falou em semelhante

coisa. Mas deixou uma carta para Vossa Excelência ver. Creio que édo senhor marquês. E diz que lá aparecia depois, às seis... Acho queé jantar.

Num bilhete de visita, o marquês, com efeito, lembrava queesse dia era o seu «fausto natalício», e esperava Carlos e o Ega àsseis, para lhe ajudarem a comer a galinha de dieta.

— Bem, lá nos encontraremos — murmurou Ega, descendopara o jardim.

Aquilo parecia-lhe extraordinário! Carlos passeando a cavalo,Carlos jantando com o marquês, como se nada houvesse perturbadoa sua vida fácil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que ele, navéspera, fora à Rua de S. Francisco. Justos Céus! Que se teria lápassado? Subiu, ouvindo a sineta do almoço. O escudeiroanunciou-lhe que o Sr. Afonso da Maia tomara uma chávena de cháno quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira

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vez, no Ramalhete, Ega almoçou solitariamente na larga mesa,lendo a Gazeta Ilustrada.

De tarde, às seis, no quarto do marquês (que tinha o pescoçoenrolado numa boa de senhora, de pele de marta), encontrou Car-los, o Darque, o Craft, em torno de um rapaz gordo que tocava gui-tarra — enquanto ao lado o procurador do marquês, um belohomem de barba preta, se batia com o Teles numa partida dedamas.

— Viste o avô? — perguntou Carlos, quando Ega lhe estendeu amão.

— Não, almocei só.O jantar, daí a pouco, foi muito divertido, largamente regado

com os soberbos vinhos da casa. E ninguém decerto bebeu mais,ninguém riu mais do que Carlos, ressurgido, quase de repente, deuma desanimação sombria a uma alegria nervosa — que incomo-dava o Ega, sentindo nela um timbre falso e como um som de cris-tal rachado. O próprio Ega, por fim, à sobremesa, se excitou consi-deravelmente com um esplêndido Porto de 1815. Depois houve umbacará em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instanteos olhos ao relógio, teve uma sorte triunfante, uma «sorte decabrão», como a classificou Darque, indignado, ao trocar a suaúltima nota de vinte mil réis. À meia-noite, porém, inexoravel-mente, o procurador do marquês lembrou as ordens do médico, quemarcara esse limite «ao natalício». Foi então um enfiar de paletós,em debandada, por entre os queixumes do Darque e do Craft, quesaíam escorridos, sem sequer um troco para o americano.Fez-se-lhes uma subscrição de caridade, que eles recolheram noschapéus, rosnando bênçãos aos benfeitores.

Na tipóia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permanece-ram muito tempo em silêncio, cada um enterrado ao seu canto,fumando. Foi já ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar:

— E então por fim?... Sempre vais para Santa Olávia, ou quefazes?

Carlos mexeu-se no escuro da tipóia. Depois, lentamente, comocheio de cansaço:

— Talvez vá amanhã... Ainda não disse nada, ainda não fiznada... Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, parareflectir... Não se pode agora falar com este barulho das rodas.

De novo cada um recaiu na sua mudez, ao seu canto.

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Em casa, subindo a escadinha forrada de veludo, Carlos decla-rou-se exausto e com uma intolerável dor de cabeça:

— Amanhã falamos, Ega... Boa noite, sim?— Até amanhã.Alta noite, Ega acordou com uma grande sede. Saltara da

cama, esvaziara a garrafa no toucador, quando julgou sentir porbaixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arre-piado, remergulhou nos lençóis. Mas espertara inteiramente, comuma ideia estranha, insensata, que o assaltara sem motivo, o agi-tava, lhe fazia palpitar o coração no grande silêncio da noite. Ouviuassim dar três horas. A porta de novo batera, depois uma janela:era decerto vento que se erguera. Não podia porém readormecer, àsvoltas, num terrível mal-estar, com aquela ideia cravada na imagi-nação que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiouum paletó, e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, des-ceu surdamente ao quarto de Carlos. Na antessala parou, tre-mendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperança de perceberalgum calmo rumor de respiração. O silêncio era pesado e pleno.Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos saíra.

Ele ficou a olhar estupidamente para aquela colcha lisa, com adobra do lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Bap-tista. E agora não duvidava. Carlos fora findar a noite à Rua deS. Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma ideia surgia atravésdo seu horror — fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunhadaquela incomparável infâmia!...

E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre Ega.Vexado, num terror de encontrar Carlos ou Afonso, levantou-secedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrão, foi almo-çar ao Tavares. De tarde, na Rua do Ouro, viu passar Carlos, quelevava no break o Cruges e o Taveira — arrebanhados certamentepara ele se não encontrar só à mesa com o avô. Ega jantou melan-colicamente no Universal. Só entrou no Ramalhete às nove horas, avestir-se para a soirée da Gouvarinho, que pela manhã no Loretoparara a carruagem para lhe lembrar «que era a festa do Charlie».E foi já de paletó, de claque na mão, que apareceu enfim na salinhaLuís XV onde Cruges tocava Chopin, e Carlos se instalara numapartida de bezigue com o Craft. Vinha saber se os amigos queriamalguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho...

— Diverte-te!

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— Sê fascinante!— Eu lá apareço para a ceia! — prometeu Taveira, estirado

numa poltrona com o Figaro.Eram duas horas da manhã quando Ega recolheu da soirée —

onde por fim se divertira numa desesperada flirtação com a baro-nesa de Alvim, que à ceia, depois do champanhe, vencida por tantagraça e tanta audácia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do quartode Carlos, acendendo a vela, Ega hesitou, mordido por uma curiosi-dade... Estaria lá? Mas teve vergonha daquela espionagem, esubiu, bem decidido, como na véspera, a fugir para Celorico. No seuquarto, diante do espelho, pôs cuidadosamente num copo as rosasda Alvim. E começava a despir-se, quando ouviu passos no negrocorredor, passos muito lentos, muito pesados, que se adiantavam,findaram à sua porta em suspensão e silêncio. Assustado, gritou:«Que é lá?» A porta rangeu. E apareceu Afonso da Maia, pálido,com um jaquetão sobre a camisa de dormir, e um castiçal onde avela ia morrendo. Não entrou. Numa voz enrouquecida, que tremia:

— O Carlos? esteve lá?Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não sabia...

Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provável queCarlos tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia.

O velho cerrara os olhos, como se desfalecesse, estendendo amão para se apoiar. Ega correu para ele:

— Não se aflija, Sr. Afonso da Maia!— Que queres então que faça? Onde está ele? Lá metido, com

essa mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci aisso, mas quis acabar esta angústia... E esteve lá ontem até demanhã, está lá a dormir neste instante... E foi para este horror queDeus me deixou viver até agora!

Teve um grande gesto de revolta e de dor. De novo os seus pas-sos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.

Ega ficou junto da porta, um momento estarrecido. Depoisfoi-se despindo devagar, decidido a dizer a Carlos, muito simples-mente, ao outro dia, antes de partir para Celorico, que a sua infâ-mia estava matando o avô, e o forçava a ele, seu melhor amigo, afugir para a não testemunhar por mais tempo.

Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou paracima da cama, às braçadas, a roupa que ia emalar. E durante meiahora, em mangas de camisa, lidou nesta tarefa, misturando aos

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seus pensamentos de cólera lembranças da soirée da véspera, cer-tos olhares da Alvim, certas esperanças que lhe tornavam saudosaa partida. Um alegre Sol dourava a varanda. Terminou por abrir avidraça, respirar, olhar o belo azul de Inverno. Lisboa ganhavatanto com aquele tempo! E já Celorico, a quinta, o padre Serafim,lhe estendiam de longe a sua sombra na alma. Ao baixar os olhosviu o dog-cart de Carlos atrelado com a Tunante, que escarvava acalçada animada pelo ar vivo. Era Carlos, decerto, que ia sair cedo— para não se encontrar com ele e com o avô!

Num receio de o não apanhar nesse dia, desceu correndo. Car-los aferrolhara-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro nãotugiu. Por fim Ega bateu, gritou através da porta, sem esconder asua irritação:

— Tem a bondade de escutar!... Então partes para Santa Olá-via, ou quê?

Depois de um instante, Carlos lançou de lá, entre um rumor deágua que caía:

— Não sei... Talvez... Logo te digo...O outro não se conteve mais:— É que se não pode ficar assim eternamente... Recebi uma

carta de minha mãe... E se não partes para Santa Olávia, eu voupara Celorico... É absurdo! Já estamos nisto há três dias!

E quase se arrependia já da sua violência, quando a voz de Car-los se arrastou de dentro, humilde e cansada, numa súplica:

— Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciência comigo. Eulogo te digo...

Numa daquelas súbitas emoções de nervoso, que o sacudiam —os olhos do Ega humedeceram. Balbuciou logo:

— Bem, bem! Eu falei alto por ser através da porta... Não hápressa!

E fugiu para o quarto, cheio só de compaixão e ternura, comuma grossa lágrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura emque o pobre Carlos se debatera, sob o despotismo de uma paixãoaté aí legítima, e que numa hora amarga se tornava de repentemonstruosa, sem nada perder do seu encanto e da sua intensi-dade... Humano e frágil, ele não pudera estacar naquele violentoimpulso de amor e de desejo, que o levava como num vendaval!Cedera, cedera, continua a rolar àqueles braços, que inocentementeo continuavam a chamar. E aí andava agora, aterrado, escorraçado,

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fugindo ocultamente de casa, passando o dia longe dos seus, numavadiagem trágica, como um excomungado que receia encontrarolhos puros onde sinta o horror do seu pecado... E ao lado, o pobreAfonso, sabendo tudo, morrendo daquela dor! Podia ele, hóspedequerido dos tempos alegres, partir, agora que uma onda de des-graça quebrara sobre essa casa, onde o acolhiam afeições mais lar-gas que na sua própria? Seria ignóbil! Tornou logo a desfazer amala; e, furioso no seu egoísmo com todas aquelas amarguras que oabalavam, arranjava outra vez a roupa dentro da cómoda, com amesma cólera com que a desmanchara, rosnando:

— Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!...Quando desceu, já vestido, Carlos desaparecera! Mas Baptista,

tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande des-gosto, deteve-o para lhe murmurar:

— Tinha Vossa Excelência razão... Partimos amanhã paraSanta Olávia e levamos roupa para muito tempo... Este Invernocomeça mal!

Nessa madrugada, às quatro horas, em plena escuridão, Carloscerrara de manso o portão da Rua de S. Francisco. E, mais pun-gente, apoderava-se dele, na frialdade da rua, o medo que já oroçara, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria ador-mecida — o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo que já navéspera o trouxera todo o dia por fora no dog-cart, findando por jan-tar lugubremente com o Cruges, escondido num gabinete doAugusto. Era medo do avô, medo do Ega, medo do Vilaça; medodaquela sineta do jantar que os chamava, os juntava; medo do seuquarto, onde a cada momento qualquer deles podia erguer o repos-teiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo... Tinhaagora a certeza que eles sabiam tudo. E mesmo que nessa noitefugisse para Santa Olávia, pondo entre si e Maria uma separaçãotão alta como o muro de um claustro, nunca mais do espírito daque-les homens, que eram os seus amigos melhores, sairia a memória ea dor da infâmia em que ele se despenhara. A sua vida moral estavaestragada... Então, para que partiria — abandonando a paixão, semque por isso encontrasse a paz? Não seria mais lógico calcar deses-peradamente todas as leis humanas e divinas, arrebatar para longeMaria na sua inocência, e para todo o sempre abismar-se nessecrime que se tornara a sua sombria partilha na Terra?

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Já assim pensara na véspera. Já assim pensara... Mas anteviraentão um outro horror, um supremo castigo, a esperá-lo na solidãoonde se sepultasse. Já lhe percebera mesmo a aproximação; já nou-tra noite recebera dele um arrepio; já nessa noite, deitado junto deMaria, que adormecera cansada, o pressentira, apoderando-se dele,com um primeiro frio de agonia.

Era, surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue mas já perceptí-vel, uma saciedade, uma repugnância por ela, desde que a sabia doseu sangue!... Uma repugnância material, carnal, à flor da pele,que passava com um arrepio. Fora primeiramente aquele aromaque a envolvia, flutuava entre os cortinados, lhe ficava a ele napele e no fato, o excitava tanto outrora, o impacientava tanto agora— que ainda na véspera se encharcara em água-de-colónia, para odissipar. Fora depois aquele corpo dela, adorado sempre como ummármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na reali-dade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazonabárbara, com todas as belezas copiosas do animal de prazer. Nosseus cabelos de um lustre tão macio, sentia agora inesperadamenteuma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda nessanoite o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta eciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços oenlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos túmidos deseiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chama que eratoda bestial. Mas, apenas o último suspiro lhe morria nos lábios, aícomeçava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, comum susto estranho: e imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundode uma infinita tristeza, esquecia-se pensando numa outra vidaque podia ter, longe dali, numa casa simples, toda aberta ao Sol,com sua mulher, legitimamente sua, flor de graça doméstica,pequenina, tímida, pudica, que não soltasse aqueles gritos lascivose não usasse aquele aroma tão quente! E desgraçadamente agora jánão duvidava... Se partisse com ela, seria para bem cedo se debaterno indizível horror de um nojo físico. E que lhe restaria então,morta a paixão que fora a desculpa do crime, ligado para sempre auma mulher que o enojava — e que era... Só lhe restava matar-se!

Mas, tendo por um só dia dormido com ela, na plena consciên-cia da consanguinidade que os separava, poderia recomeçar a vidatranquilamente? Ainda que possuísse frieza e força para apagardentro de si essa memória — ela não morreria no coração do avô, e

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do seu amigo. Aquele ascoroso segredo ficaria entre eles, estra-gando, maculando tudo. A existência doravante só lhe oferecia into-lerável amargor... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguémo pudesse aconselhar, o pudesse consolar! Quando chegou à portade casa, o seu desejo único era atirar-se aos pés de um padre, aospés de um santo, abrir-lhe as misérias do seu coração, implorar-lhea doçura da sua misericórdia! Mas ai! onde havia um santo?

Defronte do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam. Abriu deleve a porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo veludocor de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela, quando, atra-vés do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se moviano fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarãochegava, crescendo; passos lentos, pesados, pisavam surdamente otapete; a luz surgiu — e com ela o avô em mangas de camisa,lívido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, sufocado; e osdois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, caí-ram sobre ele, ficaram sobre ele, varando-o até às profundidades daalma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com acabeça branca a tremer, Afonso atravessou o patamar, onde a luzsobre o veludo espalhava um tom de sangue — e os seus passosperderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez maissumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!

Carlos entrou no quarto às escuras, tropeçou num sofá. E ali sedeixou cair, com a cabeça enterrada nos braços, sem pensar, semsentir, vendo o velho lívido passar, repassar diante dele como umlongo fantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a poucofoi-o tomando um cansaço, uma inércia, uma infinita lassidão davontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava — odesejo de interminavelmente repousar algures numa grande mudeze numa grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte.Ela seria a perfeita cura, o asilo seguro. Porque não iria ao seuencontro? Alguns grãos de láudano nessa noite e penetrava naabsoluta paz...

Ficou muito tempo embebendo-se nesta ideia, que lhe dava alí-vio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, vissediante dos seus passos abrir-se uma porta, donde saísse calor esilêncio. Um rumor, o chilrear de um pássaro na janela, fez-lhe sen-tir o Sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, numa imensamoleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no travesseiro

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para recair na doçura daquela inércia, que era um antegosto damorte, e não sentir nas horas que lhe restavam nenhuma luz,nenhuma coisa da Terra.

O Sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:— Ó Sr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jar-

dim, não dá acordo!...Carlos pulou do leito, enfiando um paletó que agarrara. Na

antecâmara, a governanta, debruçada no corrimão, gritava aflita:«Adiante, homem de Deus, ao pé da padaria, o senhor doutor Aze-vedo!» E um moço que corria, com que esbarrou no corredor, atirou,sem parar:

— Ao fundo, ao pé da cascata, Sr. D. Carlos, na mesa depedra!...

Afonso da Maia lá estava, nesse recanto do quintal, sob osramos do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre atosca mesa, com a face caída entre os braços. O chapéu desabadorolara para o chão; nas costas, com a gola erguida, conservava oseu velho capote azul. Em volta, nas folhas das camélias, nas áleasareadas, refulgia, cor de ouro, o Sol fino de Inverno. Por entre asconchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento.

Arrebatadamente, Carlos levantara-lhe a face, já rígida, cor decera, com os olhos cerrados, um fio de sangue aos cantos da longa barbade neve. Depois caiu de joelhos no chão húmido, sacudia-lhe as mãos,murmurando: «Ó avô! ó avô!» Correu ao tanque, borrifou-o de água:

— Chamem alguém! Chamem alguém!Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava

morto, já frio, aquele corpo que, mais velho que o século, resistiratão formidavelmente, como um grande roble, aos anos e aos venda-vais. Ali morrera solitariamente, já o Sol ia alto, naquela toscamesa de pedra onde deixara pender a cabeça cansada.

Quando Carlos se ergueu, Ega aparecia, esguedelhado, embru-lhado no robe-de-chambre. Carlos abraçou-se nele, tremendo todo,num choro despedaçado. Os criados em redor olhavam, aterrados.E a governanta, como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia comas mãos na cabeça: «Ai o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!»

Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o médico, o Dr. Aze-vedo, que felizmente encontrara na rua. Era um rapaz, apenassaído da Escola, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode

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muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um cumprimentoaos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a facelavada de lágrimas. Depois, tendo descalçado a luva, estudou todoo corpo de Afonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exage-rava, à medida que sentia em volta, mais ansiosos e atentos nele,todos aqueles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, pas-sando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos técni-cos... De resto, dizia, já o colega se teria compenetrado de que tudoinfelizmente findara. Ele sentia das veras da alma o desgosto... Separa alguma coisa fosse necessário, com o máximo prazer...

— Muito agradecido a Vossa Excelência — balbuciou Carlos.Ega, em chinelas, deu alguns passos com o senhor doutor Aze-

vedo, para lhe indicar a porta do jardim.Carlos, no entanto, ficara defronte do velho, sem chorar, per-

dido apenas no espanto daquele brusco fim! Imagens do avô, do avôvivo e forte, cachimbando ao canto do fogão, regando de manhã asroseiras, passavam-lhe na alma, em tropel, deixando-lha cada vezmais dorida e negra... E era então um desejo de findar também,encostar-se como ele àquela mesa de pedra, e sem outro esforço,nenhuma outra dor da vida, cair como ele na sempiterna paz. Umaréstia de Sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta deAfonso. No silêncio os pássaros, um momento espantados, tinhamrecomeçado a chalrar. Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braço:

— É necessário levá-lo para cima.Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços a

tremer, levantou o avô pelos ombros carinhosamente. Baptista cor-rera a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava ospés do velho. Através do jardim, do terraço cheio de Sol, do escritó-rio onde a sua poltrona esperava diante do lume aceso, foram-notransportando num silêncio só quebrado pelos passos dos criados,que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua per-turbação, ou o Ega, fraquejavam sob o peso do grande corpo. Agovernanta já estava no quarto de Afonso com uma colcha de sedapara estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E ali odepuseram, enfim, sobre as ramagens claras bordadas na sedaazul.

Ega acendera dois castiçais de prata: a governanta, de joelhos àbeira do leito, esfiava o rosário: e Mr. Antoine, com o seu barretebranco de cozinheiro na mão, ficara à porta, junto de um cesto que

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trouxera, cheio de camélias e palmas de estufa. Carlos, no entanto,movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, vol-tava a cada instante, numa derradeira e absurda esperança, palparas mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de veludilho, os seusgrossos sapatos brancos, Afonso parecia mais forte e maior, na suarigidez, sobre o leito estreito: entre o cabelo de neve cortado à esco-vinha e a longa barba desleixada, a pele ganhara um tom de mar-fim velho, onde as rugas tomavam a dureza de entalhaduras a cin-zel: as pálpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam coma consolada serenidade de quem enfim descansa; e ao deitarem-no,uma das mãos ficara-lhe aberta e posta sobre o coração, na simplese natural atitude de quem tanto pelo coração vivera!

Carlos perdia-se nesta contemplação dolorosa. E o seu deses-pero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem queentre eles houvesse um adeus, uma doce palavra trocada. Nada!Apenas aquele olhar angustiado, quando passara com a vela acesana mão. Já então ele ia andando para a morte. O avô sabia tudo,disso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia na alma, comuma longa pancada repetida e lúgubre. O avô sabia tudo, dissomorrera!

Ega veio como um gesto indicar-lhe o estado em que estavam —ele de robe-de-chambre, Carlos com o paletó sobre a camisa de dor-mir:

— É necessário descer, é necessário vestir-nos.Carlos balbuciou:— Sim, vamo-nos vestir...Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Ele

caminhava como um sonâmbulo, passando o lenço devagar pelatesta e pela barba. E de repente, no corredor, apertando desespera-damente as mãos, outra vez coberto de lágrimas, num agoniadodesabafo de toda a sua culpa:

— Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quandoentrei! E passou, não me disse nada... Sabia tudo, foi isso que omatou!...

Ega arrastou-o, consolou-o, repelindo tal ideia. Que tolice! Oavô tinha quase oitenta anos, e uma doença de coração... Desde avolta de Santa Olávia, quantas vezes eles tinham falado nisso,aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado, comsemelhante imaginação!

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Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhospostos no chão:

— Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito istocomo um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me sómuito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga.Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigoviver, esmagado para sempre... O que me custa é que ele não metivesse dito adeus!

De novo as lágrimas lhe correram, mas lentas, mansamente,sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. Eassim o deixou a um canto do sofá, com o lenço sobre a face, numchoro contínuo e quieto, que lhe ia lavando, aliviando o coração, detodas as angústias confusas e sem nome, que nesses dias derradei-ros o traziam sufocado.

Ao meio-dia, em cima, Ega acabava de vestir-se, quando Vilaçalhe rompeu pelo quarto de braços abertos.

— Então como foi isto, como foi isto?Baptista mandara-o chamar pelo trintanário, mas o rapazola

pouco lhe soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlosabraçara-o, coitadinho, lavado em lágrimas, sem poder dizer nada,pedindo-lhe só para se entender em tudo com o Ega... E ali estava.

— Mas como foi, como foi, assim de repente?...Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Afonso de

manhã no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera oDr. Azevedo, mas tudo acabara!

Vilaça levou as mãos à cabeça:— Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa

mulher que aí apareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depoisdaquele abalo! Não foi mais nada! Foi isso!

Ega murmurava, deitando maquinalmente água-de-colónia nolenço:

— Sim, talvez, esse abalo, e oitenta anos, e poucas cautelas, euma doença de coração.

Falaram então do enterro, que devia ser simples como convinhaàquele homem simples. Para depositar o corpo, enquanto não fossetrasladado para Santa Olávia, Ega lembrara-se do jazigo do mar-quês.

Vilaça coçava o queixo, hesitando:— Eu também tenho um jazigo. Foi o próprio Sr. Afonso da

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Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Oraparece-me que por uns dias ficava lá perfeitamente. Assim não sepedia a ninguém, e eu tinha nisso muita honra...

Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, dehora, de chave do caixão. Por fim Vilaça, olhando o relógio,ergueu-se com um grande suspiro:

— Bem, vou dar esses tristes passos! E cá apareço logo, que oquero ver pela última vez, quando o tiverem vestido. Quem mehavia de dizer! Ainda anteontem a jogar com ele... Até lhe ganheitrês mil réis, coitadinho!

Uma onda de saudade sufocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado à

escrivaninha, diante de uma folha de papel. Imediatamenteergueu-se, arrojou a pena.

— Não posso!... Escreve-lhe tu aí, a ela, duas palavras.Em silêncio, Ega tomou a pena, redigiu um bilhete muito curto.

Dizia: «Minha senhora. O Sr. Afonso da Maia morreu esta madru-gada, de repente, com uma apoplexia. Vossa Excelência com-preende que, neste momento, Carlos nada mais pode do quepedir-me para eu transmitir a Vossa Excelência esta desgraçadanotícia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptistaentrava nesse momento, todo de preto, com o almoço numa ban-deja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanário com aquele bilhete àRua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o ombro do Ega:

— É bom não esquecer as fardas de luto para os criados...— O Sr. Vilaça já sabe.Tomaram chá à pressa em cima do tabuleiro. Depois Ega escre-

veu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos deAfonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com ocaixão, para amortalhar o corpo. Mas Carlos não permitiu quemãos mercenárias tocassem no avô. Foi ele e o Ega, ajudados peloBaptista, que, corajosamente, recalcando a emoção sob o dever, olavaram, o vestiram, o depuseram dentro do grande cofre de carva-lho, forrado de cetim claro, onde Carlos colocou uma miniatura desua avó Runa. À tarde, com o auxílio de Vilaça, que voltara «paradar o último olhar ao patrão», desceram-no ao escritório, que Eganão quisera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates,as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau-preto,conservava a sua feição austera de paz estudiosa. Somente, para

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depor o caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas porum pano de veludo negro que havia na casa, com as armas borda-das a oiro. Por cima, o Cristo de Rubens abria os braços, sobre avermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçais de prata.Largas palmas de estufa cruzavam-se à cabeceira do esquife, entreramos de camélias. E Ega acendeu um pouco de incenso em doisperfumadores de bronze.

À noite, o primeiro dos velhos amigos a aparecer foi D. Diogo,solene, de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, sópôde murmurar: «E tinha menos sete meses que eu!» O marquêsveio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flo-res. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado naRampa de Santos: e receberam a primeira surpresa ao ver fechadoo portão do Ramalhete. O último a chegar foi o Sequeira, que pas-sara o dia na quinta, e se abraçou em Carlos, depois no Craft aoacaso, entontecido, com uma lágrima nos olhos injectados, balbu-ciando: «Foi-se o companheiro de muitos anos. Também nãotardo!...»

E a noite de vigília e pêsames começou, lenta e silenciosa. Asdoze chamas das velas ardiam, muito altas, numa solenidade fune-rária. Os amigos trocavam algum murmúrio abafado, com as cadei-ras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exala-ção das flores, forçaram o Baptista a abrir uma das janelas do ter-raço. O céu estava cheio de estrelas. Um vento fino sussurrava nasramagens do jardim.

Já tarde, Sequeira, que não se movera de uma poltrona, com osbraços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o à sala de jantar, areconfortá-lo com um cálice de conhaque. Havia lá uma ceia fria,com vinhos e doces. E Craft veio também — com o Taveira, quesoubera a desgraça na redacção da Tarde, e correra quase sem jan-tar. Tomando um pouco de Bordéus, uma sanduíche, Sequeira rea-nimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quandoAfonso e ele eram novos. Mas emudeceu vendo aparecer Carlos,pálido e vagaroso como um sonâmbulo, que balbuciou: «Tomemalguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»

Mexeu num prato, deu uma volta à mesa, saiu. Assim vaga-mente foi até à antecâmara, onde todos os candelabros ardiam.Uma figura esguia e negra surgiu na escada. Dois braços enlaça-ram-no. Era o Alencar.

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— Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela

nave de um templo.Carlos, no entanto, deu ainda alguns passos pela antecâmara.

Ao canto de um divã ficara um grande cesto com uma coroa de flo-res, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria.Não lhe tocou, recolheu ao escritório. Alencar, diante do caixão,com a mão pousada no ombro do Ega, murmurava: «Foi-se umaalma de herói!»

As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fezservir café no bilhar. E aí, apenas recebeu a sua chávena, Alencar,cercado do Cruges, do Taveira, do Vilaça, rompeu a falar tambémdo passado, dos tempos brilhantes de Arroios, dos rapazes ardentesde então:

— Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente comoestes Maias, almas de leões, generosos, valentes!... Tudo parece irmorrendo neste desgraçado país!... Foi-se a faísca, foi-se a paixão...Afonso da Maia! Parece que o estou a ver, à janela do palácio emBenfica, com a sua grande gravata de cetim, aquela cara nobre deportuguês de outrora... E lá vai! E o meu pobre Pedro também...Caramba, até se me faz a alma negra!

Os olhos enevoavam-se-lhe, deu um imenso sorvo ao conhaque.Ega, depois de beber um gole de café, voltara ao escritório, onde

o cheiro de incenso espalhava uma melancolia de capela. D. Diogo,estirado no sofá, ressonava; Sequeira, defronte, dormitava também,descaído sobre os braços cruzados, com todo o sangue na face. Egadespertou-os de leve. Os dois velhos amigos, depois de um abraço aCarlos, partiram na mesma carruagem, com os charutos acesos. Osoutros, pouco a pouco, iam também abraçar Carlos, enfiavam ospaletós. O último a sair foi Alencar, que, no pátio, beijou o Ega,num impulso de emoção, lamentando ainda o passado, os compa-nheiros desaparecidos:

— O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente nova. Nãome deitem à margem! Senão, caramba, quando quiser fazer umavisita, tenho de ir ao cemitério. Adeus, não apanhes frio!

O enterro foi ao outro dia, à uma hora. O Ega, o marquês, oCraft, o Sequeira, levaram o caixão até à porta, seguidos pelo grupode amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, soleníssimo, degrã-cruz. O conde de Steinbroken, com o seu secretário, trazia na

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mão uma coroa de violetas. Na calçada estreita os trensapertavam-se, numa longa fila que subia, se perdia pelas outrasruas, pelas travessas: em todas as janelas do bairro se apinhavagente: os polícias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muitosimples, rodou, seguido por duas carruagens da casa, vazias, comas lanternas recobertas de longos véus de crepe que pendiam.Atrás, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convida-dos, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a friagemdo dia enevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupé. O cor-reio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E,sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto oportão do Ramalhete.

Quando o Ega voltou do cemitério encontrou Carlos no quarto,rasgando papéis, enquanto o Baptista, atarefado, de joelhos notapete, fechava uma mala de couro. E como Ega, pálido e arrepiadode frio, esfregava as mãos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas,lembrou que fossem para o fumoir, onde havia lume.

Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para oEga:

— Tens dúvida em lhe ir falar, a ela?— Não. Para quê?... Para lhe dizer o quê?— Tudo.Ega rolou numa poltrona para junto da chaminé, despertou as

brasas. E Carlos, ao lado, prosseguiu devagar, olhando o lume:— Além disso, desejo que ela parta, que parta já para Paris...

Seria absurdo ficar em Lisboa... Enquanto se não liquidar o que lhepertence, há-de-se-lhe estabelecer uma mesada, uma larga mesada...Vilaça vem daqui a bocado para falar desses detalhes... Em todo ocaso, amanhã, para ela partir, levas-lhe quinhentas libras.

Ega murmurou:— Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir lá o

Vilaça...— Não, pelo amor de Deus! Para que se há-de fazer corar a

pobre criatura diante do Vilaça?Houve um silêncio. Ambos olhavam a chama clara que bailava.— Custa-te muito, não é verdade, meu pobre Ega?...— Não... Começo a estar embotado. É fechar os olhos, tragar

mais essa má hora, e depois descansar. Quando voltas tu de SantaOlávia?

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Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão àRua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com ele a SantaOlávia. Mais tarde era necessário trasladar para lá o corpo do avô...

— E passado isso, vou viajar... Vou à América, vou ao Japão, voufazer esta coisa estúpida e sempre eficaz que se chama distrair...

Encolheu os ombros, foi devagar até à janela, onde morria pali-damente um raio de Sol na tarde que clareara. Depois, voltandopara o Ega, que de novo remexia os carvões:

— Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que venhas, Ega...Desejava bem, mas não me atrevo!

Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços paraCarlos, comovido:

— Atreve, que diabo... Porque não?— Então vem!Carlos pusera nisto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega, cor-

riam-lhe na face duas grandes lágrimas.Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olávia, precisava fazer

uma romagem à quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia poisarrancar à mãe algumas letras de crédito... E como Carlos preten-dia ter «bastante para o luxo de ambos», Ega atalhou muito sério:

— Não, não! Minha mãe também é rica. Uma viagem à Américae ao Japão são formas de educação. E a mamã tem o dever de com-pletar a minha educação. O que aceito, sim, é uma das tuas malasde couro.

Quando nessa noite, acompanhados pelo Vilaça, Carlos e Egachegaram à estação de Santa Apolónia, o comboio ia partir. Carlosmal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado —enquanto Baptista, abraçado às mantas de viagem, empurrado peloguarda, se içava desesperadamente para outra carruagem, entre osprotestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem imediatamenterolou. Carlos debruçou-se à portinhola, gritando ao Ega: «Mandaum telegrama amanhã a dizer o que houve!»

Recolhendo ao Ramalhete com o Vilaça, que ia nessa noite coli-gir e selar os papéis de Afonso da Maia, Ega falou logo nas qui-nhentas libras que ele devia entregar na manhã seguinte a MariaEduarda. Vilaça recebera, com efeito, essa ordem de Carlos. Masfrancamente, entre amigos, não lhe parecia excessiva a soma, parauma jornada? Além disso, Carlos falara em estabelecer a essasenhora uma mesada de quatro mil francos, cento e sessenta libras!

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Não achava também exagerado? Para uma mulher, uma simplesmulher...

Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal amuito mais...

— Sim, sim — resmungou o procurador. Mas tudo isso de lega-lidade tem ainda de ser muito estudado. Não falemos nisso. Eu nãogosto de falar nisso!...

Depois, como Ega aludia à fortuna que deixava Afonso da Maia— Vilaça deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portu-gal. Só o que viera da herança de Sebastião da Maia representavabem quinze contos de renda. As propriedades do Alentejo, com ostrabalhos que lá fizera o pai dele Vilaça, tinham triplicado de valor,Santa Olávia era uma despesa. Mas as quintas ao pé de Lamego,um condado.

— Há muito dinheiro! — exclamou ele com satisfação, batendono joelho do Ega. E isto, amigo, digam lá o que disserem, sempreconsola de tudo.

— Consola de muito, com efeito.Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pen-

sando no lar feliz e amável que ali houvera e que para sempre seapagara. Na antecâmara, os seus passos já lhe pareceram soar tris-temente, como os que se dão numa casa abandonada. Ainda erravaum vago cheiro de incenso e de fenol. No lustre do corredor haviauma luz só e dormente.

— Já anda aqui um ar de ruína, Vilaça.— Ruinazinha bem confortável, todavia! — murmurou o procu-

rador, dando um olhar às tapeçarias e aos divãs, e esfregando asmãos, arrepiado da friagem da noite.

Entraram no escritório de Afonso, onde durante um momentose ficaram aquecendo ao lume. O relógio Luís XV bateu finalmenteas nove horas — depois a toada argentina do seu minuete vibrouum instante e morreu. Vilaça preparou-se para começar a suatarefa. Ega declarou que ia para o quarto arranjar também a suapapelada, fazer a limpeza final de dois anos de mocidade...

Subiu. E pousara apenas a luz sobre a cómoda, quando sentiuao fundo, no silêncio do corredor, um gemido longo, desolado, deuma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabelos. Aquiloarrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos de Afonsoda Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada,

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cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corre-dor, com o castiçal na mão trémula.

Era o gato! Era o «Reverendo Bonifácio», que diante do quartode Afonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Egaescorraçou-o, furioso. O pobre «Bonifácio» fugiu, obeso e lento, coma cauda fofa a roçar o chão: mas voltou logo, e esgatanhando aporta, roçando-se pelas pernas do Ega, recomeçou a miar, numlamento agudo, saudoso como o de uma dor humana, chorando odono perdido que o acariciava no colo e que não tornara a aparecer.

Ega correu ao escritório a pedir ao Vilaça que dormisse essanoite no Ramalhete. O procurador acedeu, impressionado comaquele horror do gato a chorar. Deixara o montão de papéis sobre amesa, voltara a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-separa o Ega, que se sentara, ainda todo pálido, no sofá bordado amatiz, antigo lugar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:

— Há três anos, quando o Sr. Afonso me encomendou aqui asprimeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda,eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete. O Sr.Afonso da Maia riu de agouros e lendas... Pois fatais foram!

No dia seguinte, levando os papéis da Monforte e o dinheiro emletras e libras que Vilaça lhe entregara à porta do Banco de Portugal,Ega, com o coração aos pulos, mas decidido a ser forte, a afrontar acrise serenamente, subiu ao primeiro andar da Rua de S. Francisco.O Domingos, de gravata preta, movendo-se em pontas de pés, abriu oreposteiro da sala. E Ega pousara apenas sobre o sofá a velha caixade charutos da Monforte — quando Maria Eduarda entrou, pálida,toda coberta de negro, estendendo-lhe as mãos ambas.

— Então Carlos?Ega balbuciou:— Como Vossa Excelência pode imaginar, num momento des-

tes... Foi horrível, assim de surpresa...Uma lágrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ela não

conhecia o Sr. Afonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas sofriarealmente por sentir bem o sofrimento de Carlos... O que aquelerapaz estremecia o avô!

— Foi de repente, não?Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a coroa que ela

mandara. Contou os gemidos, a aflição do pobre «Bonifácio»...

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— E Carlos? — repetiu ela.— Carlos foi para Santa Olávia, minha senhora.Ela apertou as mãos, numa surpresa que a acabrunhava. Para

Santa Olávia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terrorempalidecia-a mais, diante daquela partida tão arrebatada, quaseparecida com um abandono. Terminou por murmurar, com um arde resignação e de confiança que não sentia:

— Sim, com efeito, nestes momentos não se pensa nos outros...Duas lágrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante desta

dor, tão humilde e tão muda, Ega ficou desconcertado. Durante uminstante, com os dedos trémulos no bigode, viu Maria chorar emsilêncio. Por fim ergueu-se, foi à janela, voltou, abriu os braçosdiante dela numa aflição:

— Não, não é isso, minha querida senhora! Há outra coisa, háainda outra coisa! Têm sido para nós dias terríveis! Têm sido diasde angústia...

Outra coisa!?... Ela esperava, com os olhos largos sobre o Ega, aalma toda suspensa.

Ega respirou fortemente:— Vossa Excelência lembra-se de um Guimarães, que vive em

Paris, um tio do Dâmaso?Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.— Esse Guimarães era muito conhecido da mãe de Vossa Exce-

lência, não é verdade?Ela teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega

hesitava ainda, com a face arrepanhada e branca, num embaraçoque o dilacerava:

— Eu falo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assimme pediu... Deus sabe o que me custa!... E é horrível, nem sei poronde hei-de começar...

Ela juntou as mãos, numa súplica, numa angústia:— Pelo amor de Deus!E nesse instante, muito sossegadamente, Rosa erguia uma

ponta do reposteiro, com Niniche ao lado e a sua boneca nos braços.A mãe teve um grito impaciente:

— Vai lá para dentro! deixa-me!Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos

de repente cheios de água. O reposteiro caiu, do fundo do corredorveio um grande choro magoado.

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Então Ega teve um só desejo, o desesperado desejo de findar.— Vossa Excelência conhece a letra de sua mãe, não é ver-

dade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaração dela a seu res-peito... Esse Guimarães é que tinha este documento, com outrospapéis que ela lhe entregou em 71, nas vésperas da guerra... Eleconservou-os até agora, e queria restituir-lhos, mas não sabia ondeVossa Excelência vivia. Viu-a há dias numa carruagem, comigo ecom o Carlos... Foi ao pé do Aterro, Vossa Excelência develembrar-se, defronte do alfaiate, quando vínhamos da Toca... Poisbem! O Guimarães veio imediatamente ao procurador dos Maias,deu-lhe esses papéis, para que os entregasse a Vossa Excelência...E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos,quando se entreviu que Vossa Excelência era parenta de Carlos, eparenta muito chegada.

Atabalhoara esta história de pé, quase de um fôlego, com brus-cos gestos de nervoso. Ela mal compreendia, lívida, num indefinidoterror. Só pôde murmurar muito debilmente: «Mas...» E de novoemudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega, que,debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charu-tos da Monforte. Por fim voltou para ela com um papel na mão,atropelando as palavras numa debandada:

— A mãe de Vossa Excelência nunca lho disse... Havia ummotivo muito grave... Ela tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido...Digo isto assim brutalmente, perdoe-me Vossa Excelência, mas nãoé o momento de atenuar as coisas... Aqui está! Vossa Excelênciaconhece a letra de sua mãe. É dela esta letra, não é verdade?

— É! — exclamou Maria, indo arrebatar o papel.— Perdão! — gritou Ega, retirando-lho violentamente. — Eu

sou um estranho! E Vossa Excelência não se pode inteirar de tudoisto enquanto eu não sair daqui.

Fora uma inspiração providencial, que o salvava de testemu-nhar o choque terrível, o horror das coisas que ela ia saber. E insis-tiu. Deixava-lhe ali todos os papéis que eram de sua mãe. Ela leria,quando ele saísse, compreenderia a realidade atroz... Depois,tirando do bolso os dois pesados rolos de libras, o sobrescrito quecontinha a letra sobre Paris, pôs tudo em cima da mesa, com adeclaração da Monforte.

— Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que VossaExcelência deve fazer já, é partir para Paris. Vossa Excelência tem

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direito, como sua filha há-de ter, a uma parte da fortuna destafamília dos Maias, que agora é a sua... Neste maço que lhe deixoestá uma letra sobre Paris para as despesas imediatas... O procu-rador de Carlos tomou já um vagão-salão. Quando Vossa Excelên-cia decidir partir, peço-lhe que mande um recado ao Ramalhete,para eu estar na gare... Creio que é tudo. E agora devo deixá-la...

Agarrara rapidamente o chapéu, veio tomar-lhe a mão inerte e fria:— Tudo é uma fatalidade! Vossa Excelência é nova, ainda lhe

resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolá-la de tudo...Nem lhe sei dizer mais nada!

Sufocado, beijou-lhe a mão que ela lhe abandonou, sem cons-ciência e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lividezparada de um mármore. E fugiu.

— Ao telégrafo! — gritou em baixo ao cocheiro.Foi só na Rua do Ouro que começou a serenar, tirando o cha-

péu, respirando largamente. E ia então repetindo a si mesmo todasas consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova eformosa; o seu pecado fora inconsciente; o tempo acalma toda a dor;e em breve, já resignada, encontrar-se-ia com uma família séria,uma larga fortuna, nesse amável Paris, onde uns lindos olhos, comalgumas notas de mil francos, têm sempre um reinado seguro...

— É uma situação de viúva bonita e rica — terminou ele pordizer alto no coupé. Há pior na vida.

Ao sair do telégrafo despediu a tipóia. Por aquela luz consoladorado dia de Inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longacarta que prometera a Carlos. Vilaça já lá estava instalado, com umboné de veludilho na cabeça, emaçando ainda os papéis de Afonso,liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumavam junto dolume, na sala Luís XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora,em baixo, num carruagem, procurava o Sr. Ega. Foi um terror. Imagi-naram logo Maria, alguma resolução desesperada. Vilaça ainda teve aesperança de ela trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, sal-vasse da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie numa tipóia depraça, abafada numa grande ulster, com uma carta de madame.

À luz da lanterna, Ega abriu o envelope, que trazia apenas umcartão branco, com estas palavras a lápis: «Decidi partir amanhãpara Paris.»

Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora.Galgou logo as escadas: e seguido de Vilaça, que ficara na antecâ-

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mara à espreita, correu ao escritório de Afonso, a escrever a Maria.Num papel tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre baga-gens) que o vagão-salão estava tomado até Paris, e que ele teria ahonra de a ver em Santa Apolónia. Depois, ao fazer o sobrescrito,ficou com a pena no ar, num embaraço. Devia pôr «Madame MacGren» ou «D. Maria Eduarda da Maia»? Vilaça achava preferível oantigo nome, porque ela legalmente ainda não era Maia. Mas, diziao Ega atrapalhado, também já não era Mac Gren...

— Acabou-se! — Vai sem nome. Imagina-se que foi esqueci-mento...

Levou assim a carta, dentro do sobrescrito em branco. Melanieguardou-a no regalo. E, debruçada à portinhola, entristecendo avoz, desejou saber, da parte de madame, onde estava enterrado oavô do senhor...

Ega ficou com o monóculo sobre ela, sem sentir bem se aquelacuriosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu umaindicação. Era nos Prazeres, à direita, ao fundo, onde havia umanjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelojazigo dos senhores Vilaças.

— Merci, monsieur, bien le bonsoir.— Bonsoir, Melanie!No dia seguinte, na estação de Santa Apolónia, Ega, que viera

cedo com o Vilaça, acabava de despachar a sua bagagem para oDouro, quando avistou Maria, que entrava trazendo Rosa pela mão.Vinha toda envolta numa grande peliça escura, com um véu dobrado,espesso como uma máscara: e a mesma gaze de luto escondia o rosto-zinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sara,numa ulster clara de quadrados, sobraçava um maço de livros. Atráso Domingos, com os olhos muito vermelhos, segurava um rolo demantas, ao lado de Melanie carregada de preto, que levava Ninicheao colo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, emsilêncio, ao vagão-salão, que tinha todas as cortinas cerradas. Juntodo estribo ela tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.

— Ainda nos vemos no Entroncamento — murmurou Ega. —Eu sigo também para o Norte.

Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao ver sumir-senaquela carruagem de luxo, fechada, misteriosa, uma senhora queparecia tão bela, de ar tão triste, coberta de negro. E apenas Egafechou a portinhola, o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas,rompeu de entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:

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— Quem é?Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cair no ouvido,

já muito adiante, tragicamente:— Cleópatra!O político, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...» Ega abalara.

Junto do seu compartimento, Vilaça esperava, ainda deslumbradocom aquela figura de Maria Eduarda, tão melancólica e nobre.Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.

— Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bela mulher!Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba praça!

O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com umlenço de cores sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal deContas, ainda furioso, vendo o Ega à portinhola, atirou-lhe de lado,disfarçadamente, um gesto obsceno.

No Entroncamento, Ega veio bater nos vidros do salão, que seconservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia.Miss Sara lia a um canto, com a cabeça na almofada. E Ninicheassustada ladrou.

— Quer tomar alguma coisa, minha senhora?— Não, obrigada...Ficaram calados, enquanto Ega, com o pé no estribo, tirava lenta-

mente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, deva-gar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos.Adiante a máquina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavamem frente do salão, com olhares curiosos e já lânguidos para aquelamagnífica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua peliça negra.

— Vai para o Porto? — murmurou ela.— Para Santa Olávia...— Ah!Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:— Adeus!Ela apertou-lhe a mão com muita força, em silêncio, sufocada.Ega atravessou devagar, por entre soldados de capote enrolado

a tiracolo, que corriam a beber à cantina. À porta do bufetevoltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braçonum lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida,viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à por-tinhola daquele vagão que para sempre a levava.

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SEMANAS depois, nos primeiros dias do ano novo, a GazetaIlustrada trazia na sua coluna do High Life esta notícia: «O dis-tinto e brilhante sportman, o Sr. Carlos da Maia, e o nosso amigo ecolaborador João da Ega, partiram ontem para Londres, dondeseguirão em breve para a América do Norte, devendo daí prolongara sua interessante viagem até ao Japão. Numerosos amigos forama bordo do Tamar despedir-se dos simpáticos touristes. Vimos entreoutros os senhores ministros da Finlândia e seu secretário, o mar-quês de Sousela, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Gui-lherme Craft, Teles da Gama, Cruges, Taveira, Vilaça, generalSequeira, o glorioso poeta Tomás de Alencar, etc., etc. O nossoamigo e colaborador João da Ega fez-nos, no último shake-hands, apromessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressõesdo Japão, esse delicioso país donde nos vem o Sol e a moda. É umaboa nova para todos os que prezam a observação e o espírito. Aurevoir!»

Depois destas linhas afectuosas (em que o Alencar colaborara)as primeiras notícias dos «viajantes» vieram, numa carta do Egapara o Vilaça, de Nova Iorque. Era curta, toda de negócios. Mas eleajuntava um pós-escrito com o título de Informações gerais para osamigos. Contava aí a medonha travessia desde Liverpool, a persis-tente tristeza de Carlos, Nova Iorque coberta de neve sob um Solrutilante. E acrescentava ainda: «Está-se apossando de nós aembriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo

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Capítulo XVIII

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até que cansem as nossas tristezas. Planeamos ir a Pequim, passara Grande Muralha, atravessar a Ásia Central, o oásis de Merv,Khiva, e penetrar na Rússia; daí, pela Arménia e pela Síria, descerao Egipto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Atenas,lançar sobre a Acrópole uma saudação a Minerva; passar a Nápo-les; dar um olhar à Argélia e a Marrocos; e cair enfim ao compridoem Santa Olávia lá para os meados de 79, a descansar os membrosfatigados. Não escrevinho mais porque é tarde, e vamos à Óperaver a Patti no Barbeiro. Larga distribuição de abraços a todos osamigos queridos.»

Vilaça copiou este parágrafo, e trazia-o na carteira para mostraraos fiéis amigos do Ramalhete. Todos aprovaram, com admiração,tão belas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquelavastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam cá!»

Mas, passado ano e meio, num lindo dia de Março, Ega reapa-receu no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplêndido, mais forte,mais trigueiro, soberbo de verve, num alto apuro de toilette, cheiode histórias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arteou poesia que não fosse do Japão ou da China, e anunciando umgrande livro, o «seu livro», sob este título grave de crónica heróica— Jornadas da Ásia.

— E Carlos?...— Magnífico! Instalado em Paris, num delicioso apartamento

dos Campos Elísios, fazendo a vida larga de um príncipe artista daRenascença...

Ao Vilaça, porém, que sabia os segredos, Ega confessou queCarlos ficara ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu faetonte noBois — mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada enegra, a memória da «semana terrível».

— Todavia os anos vão passando, Vilaça — acrescentou ele. —E com os anos, a não ser a China, tudo na Terra passa...

E esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadu-receram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.

Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, acasa de um amigo seu de Paris, o marquês de Vila Medina. E dessapropriedade dos Vila Medina, chamada La Soledad, escreveu paraLisboa ao Ega anunciando que, depois de um exílio de quase dezanos, resolvera vir ao velho Portugal, ver as árvores de Santa Oláviae as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidável nova,

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que assombraria o bom Ega: e se ele já ardia em curiosidade, queviesse ao seu encontro com o Vilaça, comer o porco a Santa Olávia.

«Vai casar!», pensou Ega.Havia três anos (desde a sua última estada em Paris) que ele

não via Carlos. Infelizmente não pôde correr a Santa Olávia, retidonum quarto do Bragança com uma angina, desde uma ceia prodi-giosamente divertida com que celebrara no Silva a noite de Reis.Vilaça, porém, levou a Carlos para Santa Olávia uma carta em queo Ega, contando a sua angina, lhe suplicava que se não retardassecom o porco nesses penhascos do Douro, e que voasse à grandecapital a trazer a grande nova.

Com efeito, Carlos pouco se demorou em Resende. E numaluminosa e macia manhã de Janeiro de 1887, os dois amigos, enfimjuntos, almoçavam num salão do Hotel Bragança, com as duasjanelas abertas para o rio.

Ega, já curado, radiante, numa excitação que não se calmava,alagando-se de café, entalava a cada instante o monóculo paraadmirar Carlos e a sua «imutabilidade».

— Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra defadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arrasa. Olha paramim, olha para isto!

Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado donariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva,uma calva que começara havia dois anos, alastrara, já reluzia noalto.

— Olha este horror! A ciência para tudo acha um remédio,menos para a calva! Transformam-se as civilizações, a calva fica!...Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?

— É a ociosidade — lembrou Carlos rindo.— A ociosidade!... E tu, então?De resto, que podia ele fazer neste país?... Quando voltara de

França, ultimamente, pensara em entrar na diplomacia. Para issosempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava noseu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflec-tira. Por fim, em que consistia a diplomacia portuguesa? Numaoutra forma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o senti-mento constante da própria insignificância. Antes o Chiado!

E como Carlos lembrava a política, ocupação dos inúteis, Egatrovejou. A política! Isso tornara-se moralmente e fisicamente

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nojento, desde que o negócio atacara o constitucionalismo comouma filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, quefaziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeirospor trás lhes puxavam pelos cordéis... Ainda assim podiam serbonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Aí é queestava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não selavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinária, que empaís algum sucedia, nem na Roménia, nem na Bulgária! Os três ouquatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem for,largamente, excluem a maioria dos políticos. E porquê? Porque assenhoras têm nojo!

— Olha o Gouvarinho! Vê lá se ele recebe às terças-feiras osseus correligionários...

Carlos, que sorria, encantado com aquela veia acerba do Ega,saltou na cadeira:

— É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A con-

dessa herdara uns sessenta contos de uma tia excêntrica que viviaa Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempreàs terças-feiras. Mas sofria uma doença qualquer, grave, no fígadoou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrívelflor de pruderie... Ele, o Gouvarinho, aí continuava, palrador, escre-vinhador, politicote, empertigadote, já grisalho, duas vezes minis-tro, e coberto de grã-cruzes...

— Tu não os viste em Paris, ultimamente?— Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham par-

tido na véspera para Vichy...A porta abriu-se, um brado cavo ressoou:— Até que enfim, meu rapaz!— Oh, Alencar! — gritou Carlos, atirando o charuto.E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos

ombros, e um beijo ruidoso o beijo paternal do Alencar, que tremia,comovido. Ega arrastara uma cadeira, berrava pelo escudeiro:

— Que tomas tu, Tomás? Conhaque? Curaçau? Em todo o casocafé! Mais café! Muito forte, para o Sr. Alencar!

O poeta, no entanto, abismado na contemplação de Carlos, agar-rara-o pelas mãos com um sorriso largo, que lhe descobria os dentesmais estragados. Achava-o magnífico, varão soberbo, honra daraça... Ah! Paris, com o seu espírito, a sua vida ardente, conserva...

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— E Lisboa arrasa! — acudiu Ega. — Já cá tive essa frase. Vá,abanca, aí tens o cafezinho e a bebida!

Mas Carlos agora também contemplava o Alencar. Eparecia-lhe mais bonito, mais poético, com a sua grenha inspiradae toda branca, e aquelas rugas fundas na face morena, cavadascomo sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...

— Estás típico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e paraa estátua!...

O poeta sorria, passando os dedos com complacência pelos lon-gos bigodes românticos, que a idade embranquecera e o cigarroamarelara. Que diabo, algumas compensações havia de ter avelhice!... Em todo o caso o estômago não era mau, e conservava-se,caramba, filhos, um bocado de coração.

— O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cadavez pior! Mas acabou-se... A gente queixa-se sempre do seu país, éhábito humano. Já Horácio se queixava. E vocês, inteligências supe-riores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem falar, éclaro, na queda da República, naquele desabamento das velhas ins-tituições... Enfim, deixemos lá os Romanos! Que está ali naquelagarrafa? Chablis... Não desgosto, no Outono, com as ostras. Pois válá o Chablis. E à tua chegada, meu Carlos! E à tua, meu João, e queDeus vos dê as glórias que mereceis, meus rapazes!...

Bebeu. Rosnou: «Bom Chablis, bouquet fino.» E acabou porabancar, ruidosamente, sacudindo para trás a juba branca.

— Este Tomás! — exclamava Ega, pousando-lhe a mão noombro com carinho. — Não há outro, é único! O bom Deus fê-lonum dia de grande verve, e depois quebrou a forma.

Ora, histórias!, murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bonscomo ele. A humanidade viera toda do mesmo barro, como preten-dia a Bíblia ou do mesmo macaco, como afirmava o Darwin...

— Que, lá essas coisas de evolução, origem das espécies, desen-volvimento da célula, cá por mim... Está claro, o Darwin, oLamarck, o Spencer, o Claude Bernard, o Littré, tudo isso, é gentede primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Há uns poucos de mil anosque o homem prova, sublimemente, que tem alma!

— Toma o cafezinho, Tomás! — aconselhou o Ega,empurrando-lhe a chávena. — Toma o cafezinho!

— Obrigado!... E é verdade, João, lá dei a tua boneca à pequena.Começou logo a beijá-la, a embalá-la, com aquele profundo instinto

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de mãe, aquele quid divino... É uma sobrinhita minha, meu Carlos.Ficou sem mãe, coitadinha, lá a tenho, lá vou tratando de fazer delauma mulher... Hás-de vê-la. Quero que vocês lá vão jantar um dia,para vos dar umas perdizes à espanhola... Tu demoras-te, Carlos?

— Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de arda pátria.

— Tens razão, meu rapaz! — exclamou o poeta, puxando a gar-rafa do conhaque. Isto ainda não é tão mau como se diz... Olha tupara isso, para esse céu, para esse rio, homem!

— Com efeito, é encantador!Todos três, durante um momento, pasmaram para a incompará-

vel beleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céu,esplendidamente coberto de Sol.

— E versos? — exclamou de repente Carlos, voltando-se para opoeta. — Abandonaste a língua divina?

Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a línguadivina? O novo Portugal só compreendia a língua da libra, damassa. Agora, filho, tudo eram sindicatos!

— Mas ainda às vezes me passa uma coisa cá por dentro, ovelho homem estremece... Tu não viste nos jornais?... Está claro,não lês cá esses trapos que por aí chamam gazetas... Pois veio aíuma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu ta digo, se me lembrar...

Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou a estrofenum tom de lamento:

Luz d’esperança, luz d’amor, Que vento vos desfolhou? Que a alma que vos seguia Nunca mais vos encontrou!

Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino»! E opoeta, aquecendo, já comovido, esboçou um movimento de asa que foge:

Minh’alma em tempos d’outrora, Quando nascia o luar, Como um rouxinol que acorda Punha-se logo a cantar. Pensamentos eram flores, Que a aragem lenta de Maio...

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— O Sr. Cruges! — anunciou o criado, entreabrindo a porta.Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado num

paletó claro, abandonou-se à efusão de Carlos, balbuciando:— Eu só ontem é que soube. Queria-te ir esperar, mas não me

acordaram...— Então continua o mesmo desleixo? — exclamava Carlos, ale-

gremente. — Nunca te acordam?Cruges encolhia os ombros, muito vermelho, acanhado, depois

daquela longa separação. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se aolado, enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com onariz mais agudo, a grenha caindo mais crespa sobre a gola do paletó.

— E deixa-me dar-te os parabéns! Lá soube pelos jornais otriunfo, a linda ópera cómica, a Flor de Sevilha...

— De Granada! — acudiu o maestro. — Sim, uma coisita paraaí, não desgostaram.

— Uma beleza! — gritou Alencar, enchendo outro copo de conha-que. — Uma música toda do Sul, cheia de luz, cheirando a laran-jeira... Mas já lhe tenho dito: «Deixa lá a opereta, rapaz, voa maisalto, faz uma grande sinfonia histórica!» Ainda há dias lhe dei umaideia. A partida de D. Sebastião para a África. Cantos de marinhei-ros, atabales, o choro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual,põe-se-me lá com castanholas... Enfim, acabou-se, tem muitotalento, e é como se fosse meu filho, porque me sujou muita calça!...

Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fimconfessou a Carlos que não se podia demorar, tinha um rendez-vous...

— De amor?— Não... É o Barradas que me anda a tirar o retrato a óleo.— Com a lira na mão?— Não — respondeu o maestro, muito sério. — Com a batuta...

E estou de casaca.E desabotoou o paletó, mostrou-se em todo o seu esplendor, com

dois corais no peitilho da camisa, e a batuta de marfim metida naabertura do colete.

— Estás magnífico! — afirmou Carlos. — Então outra coisa,vem cá jantar logo. Alencar, tu também, hem? Quero ouvir essesbelos versos com sossego... Às seis, em ponto, sem falhar. Tenho umjantarinho à portuguesa que encomendei de manhã, com cozido,arroz de forno, grão-de-bico, etc., para matar saudades...

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Alencar lançou um gesto imenso de desdém. Nunca o cozinheirodo Bragança, francelhote miserável, estaria à altura desses nobrespetiscos do velho Portugal. Enfim, acabou-se. Seria pontual às seis,para uma grande saúde ao seu Carlos!

— Vocês vão sair, rapazes?Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então ele

partia com o maestro. O seu caminho ficava também para o lado doBarradas... Moço de talento, esse Barradas... Um pouco pardo decor, tudo por acabar, esborratado, mas uma bela ponta de faísca.

— E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, quecorpo! E não era só o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrifício!.... Jánão há disso, já lá vai tudo. Enfim, acabou-se, às seis!

— Às seis, em ponto, sem falhar!Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charu-

tos. E daí a pouco Carlos e Ega seguiam também pela Rua doTesouro Velho, de braço dado, muito lentamente.

Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Egaconhecera, havia quatro anos, quando lá passara um tão alegreInverno nos apartamentos de Carlos. E a surpresa do Ega, a cadanome evocado, era o curto brilho, o fim brusco de toda essa moci-dade estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a MarieBlond? Gorda, emburguesada, casada com um fabricante de velasde estearina. O polaco, o louro? Fugido, desaparecido. Mr. deMenant, esse Don Juan? Subprefeito no departamento do Doubs. Eo rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... Eoutros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!

— Pois tudo somado, menino — observou Ega — esta nossavidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente prefe-rível.

Estavam no Loreto; e Carlos parara, olhando, reentrando naintimidade daquele velho coração da capital. Nada mudara. Amesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste deCamões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brasões eclesiásti-cos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Aliança conser-vava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo Sol dourava o lajedo;batedores de chapéu à faia fustigavam as pilecas; três varinas, decanastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e ágeis na plenaluz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina

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defronte, na Havanesa, fumavam também outros vadios, de sobre-casaca, politicando.

— Isto é horrível, quando se vem de fora! — exclamou Carlos.— Não é a cidade, é a gente. Uma gente feiíssima, encardida,molenga, reles, amarelada, acabrunhada!...

— Todavia Lisboa faz diferença — afirmou Ega, muito sério. —Oh, faz muita diferença! Hás-de ver a Avenida... Antes do Rama-lhete vamos dar uma volta à Avenida.

Foram descendo o Chiado. Do outro lado, os toldos das lojasestendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhe-cia, encostados às mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dezanos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas,tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos,rente das mesmas ombreiras, com colarinhos à moda. Depois,diante da Livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no braço de Carlos:

— Olha quem ali está, à porta do Baltreschi!Era o Dâmaso. O Dâmaso, barrigudo, nédio, mais pesado, de

flor ao peito, mamando um grande charuto, e pasmaceando, com oar regaladamente embrutecido de um ruminante farto e feliz. Aoavistar também os seus dois velhos amigos que desciam, teve ummovimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria. Mas, insen-sivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com amão aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbraseara.

— Olá, por cá!... Que grande surpresa!Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo também, indiferente

e esquecido.— É verdade, Dâmaso... Como vai isso?— Por aqui, nesta sensaboria... E então com demora?— Umas semanas.— Estás no Ramalhete?— No Bragança. Mas não te incomodes, eu ando sempre por fora.— Pois sim senhor!... Eu também estive em Paris, há três

meses, no Continental...— Ah!... Bem, estimei ver-te, até sempre!— Adeus, rapazes. Tu estás bom, Carlos, estás com boa cara!— É dos teus olhos, Dâmaso.E nos olhos do Dâmaso, com efeito, parecia reviver a antiga

admiração, arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe portrás a sobrecasaca, o chapéu, o andar, como no tempo em que o

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Maia era para ele o tipo supremo do seu querido chique, «uma des-sas coisas que só se vêem lá fora...»

— Sabes que o nosso Dâmaso casou? — disse o Ega um poucoadiante, travando outra vez do braço de Carlos.

E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Dâmaso! Casado!?...Sim, casado com uma filha dos condes de Águeda, uma gente arrui-nada, com um rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a maisnova. E o óptimo Dâmaso, verdadeira sorte grande para aquela dis-tinta família, pagava agora os vestidos das mais velhas.

— É bonita?— Sim, bonitinha... Faz aí a felicidade de um rapazote simpá-

tico, chamado Barroso.— O quê, o Dâmaso, coitado!...— Sim, coitado, coitadinho, coitadíssimo... Mas como vês, imen-

samente ditoso, até tem engordado com a perfídia! Carlos parara. Olhava, pasmado, para as varandas extraordi-

nárias de um primeiro andar, recobertas, como em dia de procissão,de sanefas de pano vermelho onde se entrelaçavam monogramas. Eia indagar quando, de entre um grupo que estacionava ao portaldesse prédio festivo, um rapaz de ar estouvado, com a face imberbecheia de espinhas carnais, atravessou rapidamente a rua para gri-tar ao Ega, sufocado de riso:

— Se você for depressa ainda a encontra aí abaixo! Corra!— Quem?— A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no cha-

péu... Vá depressa... O João Eliseu meteu-lhe a bengala entre aspernas, ia-a fazendo estatelar no chão, foi uma cena... Vá depressa,homem!

Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho —onde todos, já calados, com uma curiosidade de província, examina-vam aquele homem de tão alta elegância que acompanhava o Ega,e que nenhum conhecia. E Ega, no entanto, explicava a Carlos asvarandas e o grupo:

— São rapazes do Turf. É um clube novo, o antigo Jockey daTravessa da Palha. Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gentemuito simpática... E como vês estão sempre assim preparados, comsanefas e tudo, para se acaso passar por aí o Senhor dos Passos.

Depois, descendo para a Rua Nova do Almada, contou o caso daAdosinda. Fora no Silva, havia duas semanas, estando ele a cear

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com rapazes depois de S. Carlos, que lhes aparecera essa mulherinverosímil, vestida de vermelho, carregando insensatamente nosrr, metendo rr em todas as palavras, e perguntando pelo senhorvirrsconde... Qual virrsconde? Ela não sabia bem. Erra um virrs-conde que encontrrarra no Crroliseu. Senta-se, oferecem-lhe cham-panhe, e D. Adosinda começa a revelar-se um ser prodigioso. Fala-vam de política, do Ministério e do deficit. D. Adosinda declara logoque conhece muito bem o deficit, e que é um belo rapaz... O deficitbelo rapaz — imensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclamaque já fora com ele a Sintra, que é um perfeito cavalheiro, e empre-gado no banco inglês... O deficit empregado no banco inglês — gri-tos, uivos, urros! E não cessou esta gargalhada contínua, estron-dosa, frenética, até às cinco da manhã, em que D. Adosinda forarifada e saíra ao Teles!... Noite soberba!

— Com efeito — disse Carlos rindo — é uma orgia grandiosa,lembra Heliogábalo e o conde de Orsay...

Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde haviamelhor, na Europa, em qualquer civilização? Sempre queria verque se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladorabanalidade do Grand-Treize, ou em Londres, naquela correcta emaçuda sensaboria do Bristol!. O que ainda tornava a vida tolerá-vel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homemrequintado já não ri — sorri regeladamente, lividamente. Só nósaqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse domsupremo, essa coisa bendita e consoladora — a barrigada de riso!...

— Que diabo estás tu a olhar?Era o consultório, o antigo consultório de Carlos — onde agora,

pela tabuleta, parecia existir um pequeno atelier de modista. Entãobruscamente os dois amigos recaíram nas recordações do passado.Que estúpidas horas Carlos ali arrastara, com a Revista dos DoisMundos, na espera vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegriasdo trabalho!... E a manhã em que o Ega lá aparecera com a suaesplêndida peliça, preparando-se para transformar, num sóInverno, todo o velho e rotineiro Portugal!

— Em que tudo ficou!— Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te daquela

noite em que o pobre marquês queria levar ao consultório a Paca,para utilizar enfim o divã, móvel de serralho?...

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Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre marquês! Foraumas das suas fortes impressões, nesses últimos anos — aquelamorte do marquês, sabida de repente ao almoço, numa banal notíciade jornal!... E através do Rossio, andando mais devagar, recordavamoutros desaparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que aca-bara hidrópica; o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bomSequeira, morto uma noite numa tipóia, ao sair dos cavalinhos...

— E outra coisa — perguntou Ega. — Tens visto o Craft emLondres?

— Tenho — disse Carlos. — Arranjou uma casa muito bonita aopé de Richmond... Mas está muito avelhado, queixa-se muito dofígado. E, desgraçadamente, carrega de mais nos álcoois. É pena!

Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o Ega,tinha agora por cima mais dez anos de Secretaria e de Chiado. Massempre apurado, já um bocado grisalho, metido continuamente comalguma espanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmu-rando todas as tardes na Havanesa, com um ar doce e contente:«Isto é um país perdido!» Enfim, um bom tipozinho de lisboeta fino.

— E a besta do Steinbroken?— Ministro em Atenas — exclamou Carlos — entre as ruínas

clássicas!E esta ideia do Steinbroken na velha Grécia divertiu-os infini-

tamente. Ega imaginava já o bom Steinbroken, teso nos seus altoscolarinhos, afirmando a respeito de Sócrates, com prudência: «Oh,il est très fort, il est excessivement fort!» Ou ainda, a propósito dabatalha das Termópilas, rosnando, com medo de se comprometer:«C’est très grave, c’est excessivement grave!» Valia a pena ir à Gré-cia para ver!

Subitamente, Ega parou:— Ora aí tens tu essa Avenida! Hem?... Já não é mau!Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio

Público, pacato e frondoso — um obelisco, com borrões de bronze nopedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz deInverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidosdo Sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolasde sabão suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desi-guais, os pesados prédios, lisos e aprumados, repintados de fresco,com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pátiosde pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chu-

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pavam o cigarro: e aqueles dois hirtos renques de casas ajanotadaslembravam a Carlos as famílias que outrora se imobilizavam emfilas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindoa Banda, com casimiras e sedas, no catitismo domingueiro. Todo olajedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia naaragem a sua folhavam pálida e rara. E ao fundo a colina verde,salpicada de árvores, os terrenos de Vale de Pereiro, punham umbrusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato —que partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com ofôlego curto, entre montões de cascalho.

Mas um ar lavado e largo circulava; o Sol dourava a caliça; adivina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava. E osdois amigos sentaram-se num banco, junto de uma verdura queorlava a água de um tanque esverdinhada e mole.

Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com floresna lapela, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas denegro. Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não conhe-cia. Por vezes Ega murmurava um olá! acenava com a bengala. Eeles iam, repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito, comomal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu própriochique. Carlos pasmava. Que faziam ali, às horas de trabalho,aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Ape-nas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e xale,tomava o Sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donasde casa de hóspedes, arejavam um cãozinho felpudo. O que atraíapois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantavaeram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente com-pridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas ereviradas como proas de barcos varinos...

— Isto é fantástico, Ega!Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples

forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-sepor ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, àD. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal deci-dira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, semcarácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda virmodelos do estrangeiro — modelos de ideias, de calças, de costu-mes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o senti-mento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de

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parecer muito moderno e muito civilizado — exagera o modelo,deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veiode fora era levemente estreito na ponta — imediatamente o janotaestica-o e aguça-o, até ao bico de alfinete. Por seu lado, o escritor lêuma página de Goncourt ou de Verlaine, em estilo preciso e cinze-lado — imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobrefrase, até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez, olegislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução —imediatamente põe, no programa dos exames de primeiras letras, ametafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmática, acrítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudopor aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o ora-dor até ao fotógrafo, desde o jurisconsulto até ao sportman... É oque sucede com os pretos já corrompidos de São Tomé, que vêem oseuropeus de lunetas — e imaginam que nisso consiste ser civilizadoe ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso ede brancura, acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras,defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de tanga, denariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço deequilibrarem todos estes vidros — para serem imensamente civili-zados e imensamente brancos...

Carlos ria:— De modo que isto está cada vez pior... — Medonho! É de um reles, de um postiço! Sobretudo postiço!

Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pãoque comemos!

Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, num gestolento:

— Resta aquilo, que é genuíno...E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da

Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas ressequidase tisnadas do Sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos,as igrejas, as atarracadas vivendas eclesiásticas, lembrando o fradepingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão,irmandades de opa atulhando os adros, erva-doce juncando as ruas,tremoço e fava-rica apregoada às esquinas, e foguetes no ar em lou-vor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a misé-ria da sua muralha, era o Castelo, sórdido e tarimbeiro, dondeoutrora, ao som do hino tocado em fagotes, descia a tropa de calça

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branca a fazer a bernarda! E abrigados por ele, no escuro bairro deS. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosaspara a barra, enormes brasões nas paredes rachadas, onde, entre amaledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias,caquéctica e caturra, a velha Lisboa fidalga!

Ega olhou um momento, pensativo:— Sim, com efeito, é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão

sebento! Não sabe a gente para onde se há-de voltar... E se nos vol-tamos para nós mesmos, ainda pior!

E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:— Espera... Olha quem aí vem!Era uma vitória, bem posta e correcta, avançando com lentidão

e estilo, ao trote estepado de duas éguas inglesas. Mas foi um desa-pontamento. Vinha lá somente um rapaz muito louro, de uma bran-cura de camélia, com uma penugem no beiço, languidamente recos-tado. Fez um aceno ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vitó-ria passou.

— Não conheces?Carlos procurava, com uma recordação.— O teu antigo doente! O Charlie!O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquilo

o fazia velho!... E era bonitinho!— Sim, muito bonitinho. Tem aí uma amizade com um velho,

anda sempre com um velho... Mas ele vinha decerto com a mãe,estou convencido que ela ficou por aí a passear a pé. Vamos nósver?

Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avista-ram logo foi o Eusebiozinho. Parecia mais fúnebre, mais tísico,dando o braço a uma senhora muito forte, muito corada, que esta-lava num vestido de seda cor de pinhão. Iam devagar, tomando oSol. E o Eusébio nem os viu, descaído e molengo, seguindo com asgrossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.

— Aquela aventesma é a mulher — contou Ega. — Depois devárias paixões em lupanares, o nosso Eusébio teve este namoro. Opai da criatura, que é dono de um prego, apanhou-o uma noite naescada com ela a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obriga-ram-no a casar. E desapareceu, não o tornei a ver... Diz que amulher que o derreia à pancada.

— Deus a conserve!

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— Ámen!E então Carlos, que recordava a coça no Eusébio, o caso da Cor-

neta, quis saber do Palma Cavalão. Ainda desonrava o Universocom a sua presença, esse benemérito? Ainda o desonrava, disse oEga. Somente deixara a literatura, tornara-se o factótum do Car-neiro, o que fora ministro; levava-lhe a espanhola ao teatro pelobraço; e era um bom empenho em política.

— Ainda há-de ser deputado — acrescentou Ega. — E, da formaque as coisas vão, ainda há-de ser ministro... E está-se fazendotarde, Carlinhos. Vamos nós tomar esta tipóia e abalar para oRamalhete?

Eram quatro horas, o Sol curto de Inverno tinha já um tompálido.

Tomaram a tipóia. No Rossio, Alencar, que passava, que os viu,parou, sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos excla-mou, com uma surpresa que já o assaltara essa manhã no Bra-gança:

— Ouve cá, Ega! Tu agora pareces íntimo do Alencar! Quetransformação foi essa?

Ega confessou que realmente agora apreciava imensamente oAlencar. Em primeiro lugar, no meio desta Lisboa toda postiça,Alencar permanecia o único português genuíno. Depois, através dacontagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. Alémdisso, havia nele lealdade, bondade, generosidade. O seu comporta-mento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortesia, melhoresmaneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal aoseu feitio lírico. E por fim, no estado a que descambara a litera-tura, a versalhada do Alencar tomava relevo pela correcção, pelasimplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo, umbardo infinitamente estimável.

— E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegámos! Não há nada,com efeito, que caracterize melhor a pavorosa decadência de Portu-gal, nos últimos trinta anos, do que este simples facto: tão profun-damente tem baixado o carácter e o talento, que de repente o nossovelho Tomás, o homem da Flor de Martírio, o Alencar de Alenquer,aparece com as proporções de um génio e de um justo.

Ainda falavam de Portugal e dos seus males, quando a tipóiaparou. Com que comoção Carlos avistou a fachada severa do Rama-lhete, as janelinhas abrigadas à beira do telhado, o grande ramo de

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girassóis fazendo painel no lugar do escudo de armas! Ao ruído dacarruagem, Vilaça — apareceu à porta, calçando luvas amarelas.Estava mais gordo o Vilaça e tudo na sua pessoa, desde o chapéunovo até ao castão de prata da bengala, revelava a sua importânciacomo administrador, quase directo senhor, durante o longo desterrode Carlos, daquela vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardi-neiro, um velho, que ali vivia com a mulher e o filho, guardando ocasarão deserto. Depois felicitou-se de ver enfim os dois amigosjuntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no ombro de Car-los:

— Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolónia, fuitomar um banho ao Central e não me deitei. Olhe que é umagrande comodidade, o tal sleeping-car! Ah, lá isso, em progresso, onosso Portugal já não está atrás de ninguém!... E Vossa Excelênciaagora precisa de mim?

— Não, obrigado, Vilaça. Vamos dar uma volta pelas salas... Vájantar connosco. Às seis! Mas às seis em ponto, que há petiscosespeciais.

E os dois amigos atravessaram o peristilo. Ainda lá se conserva-vam os bancos feudais de carvalho lavrado, solenes como coros decatedral. Em cima, porém, a antecâmara entristecia, toda despida,sem um móvel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros.Tapeçarias orientais que pendiam como numa tenda, pratos mouris-cos de reflexos de cobre, a estátua da Friorenta rindo e arrepiando-se,na sua nudez de mármore, ao meter o pezinho na água — tudoornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões api-nhavam-se a um canto, prontos a embarcar, levando as melhoresfaianças da Toca. Depois, no amplo corredor, sem tapete, os seus pas-sos soaram como num claustro abandonado. Nos quadros devotos, deum tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, umombro descarnado de eremita, a mancha lívida de uma caveira. Umafriagem regelava. Ega levantara a gola do paletó.

No salão nobre os móveis de brocado, cor de musgo, estavamembrulhados em lençóis de algodão, como amortalhados, exalandoum cheiro de múmia a terebintina e cânfora. E no chão, na tela deConstable, encostada à parede, a condessa de Runa, erguendo o seuvestido escarlate de caçadora inglesa, parecia ir dar um passo, sairdo caixilho dourado, para partir também, consumar a dispersão dasua raça...

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— Vamos embora — exclamou Ega. — Isto está lúgubre!...Mas Carlos, pálido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Aí,

que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente acu-mulados, na confusão das artes e dos séculos, como num armazém debricabraque, todos os móveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão,dominando tudo na sua majestade arquitectural, erguia-se o famosoarmário do tempo da Liga Hanseática, com os seus Martes armados,as portas lavradas, os quatro Evangelistas pregando aos cantos,envoltos nessas roupagens violentas que um vento de profecia pareciaagitar. E Carlos imediatamente descobriu um desastre na cornija, nosdois faunos que entre troféus agrícolas tocavam ao desafio. Um par-tira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucólica...

— Que brutos! — exclamou ele furioso, ferido no seu amor dacoisa de arte. — Um móvel destes!...

Trepou a uma cadeira, para examinar os estragos. E Ega, noentanto, errava entre os outros móveis, cofres nupciais, contadoresespanhóis, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegrecasa dos Olivais que tinham ornado, as belas noites de cavaco, osjantares, os foguetes atirados em honra de Leónidas... Como tudopassara! De repente deu com o pé numa caixa de chapéu semtampa, atulhada de coisas velhas — um véu, luvas desirmanadas,uma meia de seda, fitas, flores artificiais. Eram objectos de Maria,achados nalgum canto da Toca, para ali atirados, no momento de seesvaziar a casa! E, coisa lamentável, entre estes restos dela, mistu-rados como na promiscuidade de um lixo, aparecia uma chinela develudo bordada a matiz, uma velha chinela de Afonso da Maia! Egaescondeu a caixa, rapidamente, debaixo de um pedaço solto detapeçaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo asmãos, ainda indignado, Ega apressou aquela peregrinação, que lheestragava a alegria do dia.

— Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!Mas deviam atravessar ainda a memória mais triste, o escritó-

rio de Afonso da Maia. A fechadura estava perra. No esforço deabrir, a mão de Carlos tremia. E Ega, comovido também, revia todaa sala tal como outrora, com os seus candeeiros Carcel dando umtom cor-de-rosa, o lume crepitando, o «Reverendo Bonifácio» sobrea pele de urso, e Afonso na sua velha poltrona, de casaco de veludo,sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão. A portacedeu: e toda a emoção de repente findou, na grotesca, absurda sur-

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presa de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, sufocadospelo cheiro acre de um pó vago que lhes picava os olhos, os eston-teava. Fora o Vilaça, que, seguindo uma receita de almanaque,fizera espalhar, às mãos-cheias, sobre os móveis, sobre os lençóisque os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! Eestrangulados, sem ver, sob uma névoa de lágrimas, os dois conti-nuavam, um defronte do outro, em espirros aflitivos que os desen-gonçavam.

Carlos, por fim, conseguiu abrir largamente as duas portadasde uma janela. No terraço morria um resto de Sol. E, revivendo umpouco ao ar puro, ali ficaram de pé, calados, limpando os olhos,sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.

— Que infernal invenção! — exclamou Carlos, indignado.Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçara, batera contra um

sofá, coçava a canela:— Estúpida coisa! E que bordoada que eu dei!...Voltou a olhar para a sala, onde todos os móveis desapareciam

sob os largos sudários brancos. E reconheceu que tropeçara naantiga almofada de veludo do velho «Bonifácio». Pobre «Bonifácio»!Que fora feito dele?

Carlos, que se sentara no parapeito baixo do terraço, entre osvasos sem flor, contou o fim do «Reverendo Bonifácio». Morrera emSanta Olávia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Vilaça,com uma ideia poética, a única da sua vida de procurador,mandara-lhe fazer um mausoléu, uma simples pedra de mármorebranco, sob uma roseira, debaixo das janelas do quarto do avô.

Ega sentara-se também no parapeito, ambos se esqueceramnum silêncio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na suanudez de Inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, quejá ninguém ama: uma ferrugem verde, de humidade, cobria os gros-sos membros da Vénus Citereia; o cipreste e o cedro envelheciamjuntos, como dois amigos num ermo; e mais lento corria o prantozi-nho da cascata, esfiado saudosamente, gota a gota, na bacia demármore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinhanas cantarias dos dois altos prédios, a curta paisagem do Rama-lhete, um pedaço de Tejo e monte, tomavam naquele fim de tardeum tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado,preparado para a vaga, ia descendo, desaparecendo logo, como jádevorado pelo mar incerto; no alto da colina o moinho parara, tran-

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sido na larga friagem do ar; e nas janelas das casas, à beira daágua, um raio de Sol morria, lentamente sumido, esvaído na pri-meira cinza do crepúsculo, como um resto de esperança numa faceque se anuvia.

Então, naquela mudez de soledade e de abandono, Ega, com osolhos para o longe, murmurou devagar:

— Mas tu desse casamento não tinhas a menor indicação, amenor suspeita?

— Nenhuma... Soube-o de repente pela carta dela em Sevilha.E era esta a formidável nova anunciada por Carlos, a nova que

ele logo contara de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abra-ços, em Santa Apolónia. Maria Eduarda ia casar.

Assim o anunciara ela a Carlos numa carta muito simples, queele recebera na quinta dos Vila Medina. Ia casar. E não parecia seruma resolução tomada arrebatadamente, sob um impulso do cora-ção; mas antes um propósito lento, longamente amadurecido. Elaaludia nessa carta a ter «pensado muito, reflectido muito...» Deresto o noivo devia ir perto dos cinquenta anos. E Carlos, portanto,via ali a união de dois seres desiludidos da vida, maltratados porela, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo umno outro qualidades sérias de coração e de espírito, punham emcomum o seu resto de calor, de alegria e de coragem, para afrontarjuntos a velhice...

— Que idade tem ela?Carlos pensava que ela devia ter quarenta e um ou quarenta e

dois anos. Ela dizia na carta «sou apenas mais nova que o meunoivo seis anos e três meses». Ele chamava-se Mr. de Trelain. E eraevidentemente um homem de espírito largo, desembaraçado de pre-juízos, de uma benevolência quase misericordiosa, porque quiseraMaria, conhecendo bem os seus erros.

— Sabe tudo? — exclamou Ega, que saltara do parapeito.— Tudo, não. Ela diz que Mr. de Trelain conhecia do seu pas-

sado «todos aqueles erros em que ela caíra inconscientemente». Istodá a entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faztarde, e quero ainda ver os meus quartos.

Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados, pela áleaonde cresciam outrora as roseiras de Afonso. Sob as duas olaiasainda existia o banco de cortiça; Maria sentara-se ali, na sua visitaao Ramalhete, a atar num ramo flores que ia levar como relíquia.

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Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida, que ainda floriasolitariamente.

— Ela continua a viver em Orléans, não é verdade?Sim, disse Carlos, vivia ao pé de Orléans, numa quinta que lá

comprara, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arre-dores algum pequeno château. Ela chamava-lhe «vizinho». E eranaturalmente um gentilhomme campagnard, de família séria, comfortuna...

— Ela só tem o que tu lhe dás, está claro.— Creio que te mandei contar tudo isso — murmurou Carlos.

— Enfim, ela recusou-se a receber parte alguma da sua herança...E o Vilaça arranjou as coisas por meio de uma doação que lhe fiz,correspondente a doze contos de réis de renda...

— É bonito. Ela falava de Rosa na carta?— Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher. — E bem linda!Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jar-

dim aos quartos de Carlos. Com a mão na porta da vidraça, Egaparou ainda, numa derradeira curiosidade:

— E que efeito te fez isso?Carlos acendia o charuto. Depois, atirando o fósforo por cima

da varandinha de ferro, onde uma trepadeira se enlaçava:— Um efeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ela

morresse, morrendo com ela todo o passado, e agora renascesse soboutra forma. Já não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, umasenhora francesa. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido,enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixarmemória... Foi o efeito que me fez.

— Tu nunca encontraste em Paris o Sr. Guimarães?— Nunca. Naturalmente morreu.Entraram no quarto. Vilaça, na suposição de Carlos vir para o

Ramalhete, mandara-o preparar; e todo ele regelava — com o már-more das cómodas espanejado e vazio, uma vela intacta num casti-çal solitário, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito semcortinados. Carlos pousou o chapéu e a bengala em cima da suaantiga mesa de trabalho. Depois, como dando um resumo:

— E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noi-tes, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim... Pen-sei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente,

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como uma conclusão lógica. Por fim, dez anos passaram, e aquiestou outra vez...

Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas colunas decarvalho lavrado, deu um jeito ao bigode, concluiu, sorrindo melan-colicamente:

— E mais gordo!Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo:— Lembras-te quando apareci aqui uma noite, numa agonia,

vestido de Mefistófeles? Então Carlos teve um grito. E a Raquel, é verdade! A Raquel?

Que era feito da Raquel, esse lírio de Israel?Ega encolheu os ombros:— Para aí anda, estuporada...Carlos murmurou: «Coitada!» E foi tudo o que disseram sobre a

grande paixão romântica do Ega.Carlos, no entanto, fora examinar, junto da janela, um quadro

que pousava no chão, para ali esquecido e voltado para a parede.Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas decamurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e pálidaque o tempo amarelara mais. Colocou-o em cima de uma cómoda. Eatirando-lhe uma leve sacudidela com o lenço:

— Não há nada que me faça mais pena, do que não ter umretrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.

Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrara, se,nesses últimos anos, ele não tivera a ideia, o vago desejo de voltarpara Portugal...

Carlos considerou Ega com espanto. Para quê? Para arrastar ospassos tristes desde o Grémio até à Casa Havanesa? Não! Paris erao único lugar da Terra congénere com o tipo definitivo em que elese fixara: «o homem rico que vive bem». Passeio a cavalo no Bois;almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clubecom os jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite aComédie Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tirosàs lebres no Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas,certo interesse pela ciência, o bricabraque, e uma pouca de blague.Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.

— E aqui tens tu uma existência de homem! Em dez anos nãome tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faetontena estrada da Saint-Cloud... Vim no Figaro.

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Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:— Falhámos a vida, menino! — Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha.

Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeoucom a imaginação. Diz-se: «Vou ser assim, porque a beleza está emser assim.» E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, comodizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.

Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar asluvas.

O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de Inverno.Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas develudo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferru-gem, a panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deuum longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penum-bra tomava um aspecto mais carregado de residência eclesiástica,com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, asgrades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempredesabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando dobraço do Ega:

— É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que meparece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera real-mente daquilo que dá sabor e relevo à vida — a paixão.

— Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velhaideia de romântico, meu Ega!

— E que somos nós? — exclamou Ega. — Que temos nós sidodesde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indiví-duos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e nãopela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram maisfelizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nuncadela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos,hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...

— Creio que não — disse o Ega. — Por fora, à vista, são descon-soladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsola-dos. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensatoou sem sabor...

— Resumo: não vale a pena viver...

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— Depende inteiramente do estômago! — atalhou Ega.Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria

da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e queagora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar enada recear... Não se abandonar a uma esperança — nem a umdesapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tran-quilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agres-tes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de maté-ria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondoaté reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não terapetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se con-vencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo oesforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa algumana Terra porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eccle-siastes, em desilusão e poeira.

— Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna comoa dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera,para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava opasso... Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, queé o único que se deve ter na vida.

— Nem eu! — acudiu Carlos com uma convicção decisiva.E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de San-

tos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles,certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessemjamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam oAterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largogesto de contrariedade:

— Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite!Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande pratode paio com ervilhas.

E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esque-cido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu terinesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeirosacesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!

— Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estaremno Bragança, pontualmente, às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...

— Espera! exclamou Ega. — Lá vem um americano, ainda oapanhamos.

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— Ainda o apanhamos!Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que

arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cor-tava a face:

— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Aomenos assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito,não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisaalguma.

Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro,

nem para o poder...A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara.

E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:— Ainda o apanhamos!— Ainda o apanhamos!De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o

americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamentepela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade doluar que subia.

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