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Um Ateu Garante Deus Existe

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  • Um ateu garante:

    Deus existeDeus existeas provas incontestveis de um filsofo que

    no acreditava em nada

    Antony Flewcom Roy Abraham Varghese

    MultiBrasil - www.multibrasil.net

  • Ttulo original There is a god: How the world's most notorious atheist changed his mind 2007 by Antony FlewCopyright da traduo Ediouro Publicaes S.A., 2008Copyright do "Prefcio" e "Apndice A - O 'Novo Atesmo':uma apreciao crtica de Dawkins, Dennet, Wolpert, Harris eStenger" 2007 by Roy Abraham Varghese.Copyright do "Apndice B - A auto-revelao de Deus na histria humana:dilogo com N. T. Wright sobre Jesus" by N. T. Wright.Publicado sob acordo com a Harper Collins Publishers.Capa Ana DobnImagem de capa Getty ImagesReviso Adriana Cristina BairradaEditorao eletrnica Dany Editora Ltda.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Flew, AntonyDeus existe: as provas incontestveis de um filsofo que no acreditava em nada / Antony Flew; traduo Vera Maria Marques Martins. So Paulo : Ediouro, 2008.Ttulo original: There is a God. ISBN 978-85-00-02354-51. Atesmo - Inglaterra - Biografia 2. Biografia espiritual 3. Flew, Antony, 1923 4. Filsofos - Inglaterra - Biografia I. Ttulo.08-02881 CDD-212.092

    ndice para catlogo sistemtico:1. Deus : Existncia : Filosofia da religio : Ateus : Converso : Biografia 212.092

    Todos os direitos reservados Ediouro Publicaes S.A.Rua: Nova Jerusalm, 345 - BonsucessoRio de Janeiro - RJ - CEP 21042-235Tel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8212 / 3882-8313www.ediouro.com.br

  • ndice

    Prefcio .............................................................................................. 5

    Introduo ....................................................................................... 17

    Primeira Parte ................................................................................. 20

    Minha negao do Divino .............................................................. 20

    1. A Criao de um ateu .................................................................... 20

    2. Para onde o argumento leva ........................................................... 34

    3. O atesmo calmamente examinado .................................................. 56

    Segunda Parte ................................................................................. 68

    Minha descoberta do Divino ........................................................... 68

    4. Uma peregrinao da razo ............................................................ 68

    5. Quem escreveu as leis da natureza? ................................................ 74

    6. O Universo sabia que amos chegar? ................................................ 86

    7. Como surgiu a vida? ...................................................................... 92

    8. Alguma coisa vem do nada? ............................................................ 99

    9. Abrindo espao para Deus ............................................................ 107

    10. Aberto onipotncia .................................................................. 112

    Apndices ...................................................................................... 115

    Apndice A ..................................................................................... 116

    Apndice B ..................................................................................... 131

  • PREFCIO

    "Famoso atesta agora acredita em Deus: um dos maiores atestas do mundo agora acredita em Deus, mais ou menos baseado em provas cientficas." Esse era o ttulo de uma matria da Associated Press publicada no dia 9 de novembro de 2004, que dizia: "Professor de filosofia ingls, um dos maiores defensores do atesmo h mais de meio sculo, mudou de idia. Ele agora acredita em Deus, mais ou menos baseado em provas cientficas, como afirma em um vdeo exibido na quinta-feira". Quase imediatamente, o anncio tornou-se um acontecimento da mdia, causando uma enxurrada de reportagens e comen-trios em todo o mundo, no rdio e na televiso, nos jornais e em sites da Internet. A matria ganhou tal fora que a Associated Press (AP) publicou dois anncios subseqentes relacionados ao original. O assunto da matria e de muita especulao posterior era o professor Antony Flew, autor de mais de trinta obras filosficas, que durante cinqenta anos defendeu os princpios do atesmo. Seu artigo, Theology and Falsification, apresentado em uma conferncia no Socratic Club da Universidade de Oxford, em 1950, presidida por C. S. Lewis, tornou-se a publicao filosfica mais reimpressa do ltimo sculo. E agora, pela primeira vez, ele faz um relato dos argumentos e das provas que o levaram a mudar de idia. Em certo sentido, este livro representa o resto daquela matria.

    Tive uma pequena participao na matria da AP porque ajudei a organizar o simpsio que resultou no vdeo em que Tony Flew anunciou o que ele mais tarde, com muito bom humor, chamou de sua "converso". Na verdade, desde 1985, eu ajudara a organizar diversas conferncias nas quais ele apresentava sua defesa do atesmo, de modo que esta obra , para mim pessoalmente, o fim de uma jornada iniciada duas dcadas atrs.

    De modo curioso, a reao dos colegas atestas de Flew matria da AP beirou a histeria. Um site dedicado ao atesmo deu a um correspondente a tarefa de fazer relatos mensais sobre o afastamento de Flew da verdadeira crena. Insultos e

  • caricaturas tornaram-se comuns na blogosfera livre-pensadora. As mesmas pessoas que reclamavam da Inquisio e da condenao de bruxas fogueira estavam agora entregando-se a sua prpria caa heresia. Os defensores da tolerncia no eram muito tolerantes. E, aparentemente, o dogmatismo, a incivili-dade, o fanatismo e a parania no so monoplio de zelotes religiosos.

    Mas turbas enfurecidas no podem reescrever a histria. E a posio de Flew na histria do atesmo transcende qualquer coisa que os atestas de hoje tm para oferecer.

    A IMPORTNCIA DE FLEW NA HISTRIA DO ATESMONo ser exagero dizer que, nos ltimos cem anos, nenhum

    filsofo conhecido desenvolveu uma explicao do atesmo to sistemtica, completa, original e influente quanto a encontrada nas obras antiteolgicas que Antony Flew escreveu durante cinqenta anos. Antes dele, as grandes apologias ao atesmo eram aquelas dos pensadores do Iluminismo, como David Hume e os filsofos alemes do sculo XIX: Arthur Schopenhauer, Ludwig Feuerbach e Friedrich Nietzsche.

    Mas o que dizer de Bertrand Russell que sustentava de modo nada plausvel que era tecnicamente agnstico, embora na prtica fosse atesta , de Sir Alfred Ayer, Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Martin Heidegger, todos eles atestas do sculo XX, bem antes de Flew comear a escrever? No caso de Russell, fica bastante bvio que ele no produziu nada alm de alguns panfletos polmicos sobre suas opinies cticas e seu desdm pela religio organizada. Suas obras, A filosofia entre a religio e a cincia e Por que no sou cristo, eram simples antologias de artigos. Ele no produziu nenhuma filosofia sistemtica da religio. Quando muito, chamou ateno para o problema do mal e procurou refutar argumentos tradicionais a favor da existncia de Deus, sem criar nenhum argumento prprio. Ayer, Sartre, Camus e Heidegger tm em comum o fato de se concentrarem na criao de uma maneira especfica de participao em discusses filosficas, cujo resultado era a negao de Deus. Eles tinham seus prprios sistemas de pensamento, dos quais o atesmo era um subproduto. Era preciso acreditar em seus

  • sistemas para acreditar em seu atesmo. O mesmo pode ser dito de niilistas posteriores como Richard Rorty e Jacques Derrida.

    Claro, importantes filsofos da gerao de Flew eram atestas, e W. V. O. Quine e Gilbert Ryle so exemplos bvios. No entanto, nenhum deles desenvolveu argumentos que ocupassem um livro todo para apoiar suas crenas pessoais. Por qu? Em muitos casos, os filsofos profissionais daquele tempo no gostavam de sujar as delicadas mos lidando com discusses to populares e at mesmo vulgares. Em outros casos, o motivo era a prudncia.

    Mais tarde, apareceram filsofos atestas que examinaram criticamente e rejeitaram os tradicionais argumentos a favor da existncia de Deus. A lista grande e vai de Paul Edwards, Wallace Matson, Kai Nielsen e Paul Kurtz at J. L. Mackie, Richard Gal e Michael Martin. Suas obras, porm, no mudaram a estrutura dessa discusso da maneira que fizeram as inovadoras publicaes de Flew.

    Em que reside a originalidade do atesmo de Flew? Em Theology and Falsification, God and Philosophy e The Presumption of Atheism, ele desenvolveu novos argumentos contra o tesmo que, de certa maneira, criaram um mapa para a posterior filosofia da religio. Em Theology and Falsification, ele levantou a questo de como afirmaes religiosas podem criar argumentos significativos, e sua muito citada expresso "morte por mil qualificaes" capta isso de modo notvel. Em God and Philosophy, ele afirma que nenhuma discusso sobre a existncia de Deus pode comear se no for estabelecida a coerncia do conceito de um esprito onipresente e onisciente. Em The Presumption of Atheism, ele defende que a carga da prova deve recair sobre o tesmo, e que o atesmo deve ser a posio padro. Ao longo do tempo, ele, naturalmente, analisou os argumentos que defendem a existncia de Deus, mas foi o fato de ter reinventado os quadros de referncia que mudou totalmente a natureza da discusso.

    No contexto de tudo o que foi comentado anteriormente, a recente rejeio de Flew ao atesmo foi, de maneira inegvel, um acontecimento histrico. Mas o que poucos sabem que, mesmo em seus tempos de atesta, Flew abrira, em certo sentido, a porta para um novo e revitalizado tesmo.

  • FLEW, O POSITIVISMO LGICO E O RENASCIMENTO DO TESMO RACIONAL

    Aqui est o paradoxo. Defendendo a legitimidade da discusso sobre alegaes teolgicas e desafiando os filsofos da religio a esclarecerem suas afirmaes, Flew facilitou o renascimento do tesmo racional na filosofia analtica aps os dias sombrios do positivismo lgico.

    O positivismo lgico, como alguns devem lembrar, foi a filosofia introduzida por um grupo europeu, chamado de Crculo de Viena, no incio da dcada de 1920, e que A. J. Ayer popularizou nos pases de lngua inglesa com seu livro Linguagem, verdade e lgica, publicado em 1936. De acordo com os positivistas lgicos, as nicas afirmaes significativas eram aquelas cuja verdade podia ser confirmada atravs de experincia racional, simplesmente em virtude de sua forma e do significado das palavras usadas. Assim, uma afirmao era considerada significativa se sua verdade ou falsidade pudessem ser comprovadas pela observao emprica por exemplo, estudo cientfico. As afirmaes da lgica e da matemtica pura eram tautologias, isto , eram verdadeiras por definio, simples modos de usarem-se smbolos que no expressavam nenhuma verdade a respeito do mundo. No havia mais nada que pudesse ser descoberto ou discutido coerentemente. O centro do positivismo lgico era o princpio da comprovao que estabelecia que a significao de uma proposio consiste de sua comprovao. Como resultado, as nicas afirmaes significativas eram aquelas usadas na cincia, na lgica ou na matemtica. Afirmaes de metafsica, religio, esttica e tica no tinham significao, literalmente, porque no podiam ser comprovadas por mtodos empricos. No eram vlidas, nem invlidas. Ayer disse que to absurdo ser atesta quanto testa, porque a afirmao "Deus existe" simplesmente no tem significado.

    Hoje, muitas obras filosficas associam a abordagem de Flew no artigo Theology and Falsification ao tipo de ataque positivista lgico que Ayer fazia religio, porque ambos questionam a falta de significado das afirmaes religiosas. O problema com esse modo de pensar que no reflete, de maneira alguma, a compreenso que Flew tinha, ou tem agora, a

  • respeito do assunto. Na verdade, longe de apoiar a viso positivista da religio, Flew considerava seu artigo como o ltimo prego no caixo onde era enterrado aquele modo particular de se fazer filosofia.

    Numa apresentao que organizei em 1990 para co-memorar o quadragsimo aniversrio da publicao de Theology and Falsification, Flew declarou:

    Ainda no curso de graduao, eu j me sentia cada vez mais frustrado e exasperado pelos debates filosficos que pareciam nunca avanar, sempre voltando ao positivismo lgico to brilhantemente exposto em Linguagem, verdade e lgica. A inteno era a mesma, nesses dois artigos (as duas verses de Theology and Falsification, o artigo primeiramente apresentado no Socratic Club e depois publicado em University). Em vez de uma afirmao arrogante, de que tudo o que um crente diz deve ser desconsiderado a priori, como constituindo uma violao do supostamente sacrossanto princpio da comprovao aqui, curiosamente mantido como revelao secular , preferi oferecer um desafio mais restrito. Deixemos que os que crem falem por si mesmos, individual e separa-damente.

    O assunto retomado na obra atual, em que Flew volta a comentar a origem de seu aplaudido artigo:

    Durante meu ltimo semestre na Universidade de Oxford, a publicao do livro de A. J. Ayer, Lingua-gem, verdade e lgica, convenceu muitos scios do Socratic Club de que a heresia ayeriana do positivismo lgico o argumento de que todas as proposies religiosas so desprovidas de significao cognitiva tinha de ser refutada. O primeiro e nico artigo que li para o Socratic

  • Club, Theology and Falsification, ofereceu o que eu, na poca, considerava refutao suficiente. Eu acreditava que alcanara completa vitria e que no havia espao para mais discusses.

    Como qualquer histria da filosofia mostrar, o positivismo lgico de fato arruinou-se na dcada de 1950 por causa de suas inconsistncias internas. O prprio Sir Alfred Ayer, em uma contribuio que fez a uma antologia que editei, declarou: "O positivismo lgico morreu muito tempo atrs. Acho que uma grande parte de Linguagem, verdade e lgica no verdadeira. Penso que o livro est cheio de erros. Penso que foi um livro importante em seu tempo porque teve um tipo de efeito catrtico. Mas, analisando os detalhes, vejo que est cheio de erros que passei os ltimos cinqenta anos corrigindo ou tentando corrigir".

    Seja como for, a morte do positivismo lgico e as novas regras trazidas por Flew deram um novo impulso ao tesmo filosfico. Numerosas e importantes obras sobre o tesmo, na tradio analtica, tm sido escritas nas ltimas trs dcadas, por Richard Swinburne, Alvin Plantinga, Peter Geach, William P. Alston, George Mavrodes, Norman Kretzmann, James F. Ross, Peter Van Inwagen, Eleonore Stump, Brian Leftow, John Haldane e muitos outros. Dessas obras, no so poucas as que abordam assuntos como a falta de significao das afirmaes sobre Deus, a coerncia lgica dos atributos divinos, e indagam se acreditar em Deus uma qualidade inerente bsica precisamente os assuntos abordados por Flew na discusso que ele buscava estimular. A matria sobre a virada para o tesmo foi destaque na revista Time, em abril de 1980: "Numa silenciosa revoluo de pensamento e argumentos que dificilmente seria prevista apenas duas dcadas atrs, Deus est de volta. O mais intrigante que isso est acontecendo nos crculos intelectuais de filsofos acadmicos".

    O "Novo Atesmo", ou o positivismo trazido de volta luz dessa progresso histrica, a sbita apario do que

    tem sido chamado de "novo atesmo" de particular interesse. O ano do "novo atesmo" foi o de 2006 (o termo foi primeiramente

  • usado pela revista Wired em novembro desse mesmo ano). De Quebrando o encanto, de Daniel Dennett, e Deus: um delrio, de Richard Dawkins, o Six Impossible Things Before Breakfast, de Lewis Wolpert, The Comprehensible Cosmos, de Victor Stenger, e The End of Faith, de Sam Harris (publicado em 2004, cuja seqncia, Letter to a Christian Nation, saiu em 2006), os expoentes do tipo de atesmo "lembre com raiva" estavam em vigor. O importante, sobre esses livros, no foi seu nvel de argumentao que era, para usar de eufemismo, modesto , mas a ateno que receberam, tanto como best sellers, como uma "nova" matria descoberta pela mdia. A "matria" ainda foi ajudada pelo fato de que os autores eram loquazes e vigorosos, tanto quanto seus livros eram inflamados.

    O principal alvo desses livros , inquestionavelmente, a religio organizada de qualquer tipo, poca ou lugar. De modo paradoxal, os livros pareciam, eles prprios, sermes fundamentalistas. Os autores, na maioria, falavam como esses pregadores que nos ameaam com fogo e enxofre, alertando-nos a respeito do terrvel castigo que sofreremos se no nos arrependermos de nossas crenas obstinadas e suas prticas. No h lugar para ambigidade ou sutileza. preto e branco. Ou estamos com eles totalmente, ou com o inimigo. At mesmo pensadores respeitados, que expressam simpatia pelo outro lado, so denunciados como traidores. Os prprios "evangeliza-dores" so almas corajosas que pregam sua mensagem em face de iminente martrio.

    Mas como essas obras e seus autores encaixam-se na ampla discusso filosfica que tem havido sobre Deus nas ltimas dcadas? A resposta : no se encaixam.

    Em primeiro lugar, recusam-se a se ocupar dos reais pontos de debate na questo da existncia de Deus. Nenhum deles nem mesmo refere-se aos fundamentos centrais da proposio para uma realidade divina Dennett usa sete pginas para expor argumentos a favor da existncia de Deus, e Harris, nenhuma. No tratam do assunto das origens da racionalidade entrelaada no tecido do universo, da vida compreendida como ao autnoma, da conscincia, do pensamento conceituai e do ser. Dawkins fala das origens da vida e da conscincia como de "acontecimentos nicos", causados por um "inicial golpe de sorte". Wolpert escreve: "Tenho, propositalmente (!), evitado

  • qualquer discusso sobre conscincia, que ainda continua sendo pouco compreendida". A respeito da origem da conscincia, Dennett, um fisicalista contumaz, uma vez escreveu: "... e, ento, um milagre acontece". Nenhum desses autores apresenta nenhuma idia a respeito da razo de existir um universo "obediente s leis", que sustenta a vida e racionalmente acessvel.

    Em segundo lugar, eles parecem no perceber as idias falsas e os conceitos confusos que levaram ascenso e queda do positivismo lgico. Aqueles que ignoram os erros da histria tero de repeti-los em algum momento. E, em terceiro lugar, eles parecem desconhecer completamente a imensa coleo de obras sobre filosofia analtica da religio, ou os novos e sofisticados argumentos gerados no tesmo filosfico.

    Seria justo dizer que o "novo atesmo" nada menos que uma regresso filosofia positivista lgica, que foi repudiada at mesmo por seus mais ardentes proponentes. Na verdade, os "novos atestas", pode-se dizer, nem se elevam at o positivismo lgico. Os positivistas nunca foram ingnuos a ponto de sugerirem que Deus podia ser uma hiptese cientfica. Afirmavam que o conceito de Deus no tinha significao precisamente porque no era uma hiptese cientfica. Dawkins, por outro lado, sustenta que "a questo da presena ou ausncia de uma superinteligncia criadora inequivocamente cientfica". Esse o tipo de comentrio do qual dizemos que no nem mesmo errado! No Apndice A, procuro mostrar que nosso atual conhecimento de racionalidade, vida, conscincia, pensamento e ser vai contra qualquer forma de atesmo, at mesmo o mais novo.

    Mas duas coisas devem ser ditas aqui a respeito de certos comentrios de Dawkins, que so relevantes para este livro. Depois de escrever que Bertrand Russell era "um atesta exageradamente indiferente e por demais ansioso por desiludir-se, se a lgica parecesse exigir isso", acrescenta em uma nota de rodap: "Talvez estejamos vendo algo similar hoje, na tergiversao superdivulgada do filsofo Antony Flew, que anunciou, na velhice, que se converteu crena em algum tipo de divindade, provocando um frenesi de entusiasmada repetio na Internet. Por outro lado, Russell foi um grande filsofo. Russell ganhou o prmio Nobel". A pueril petulncia da comparao com

  • o "grande filsofo" Russell e a desrespeitosa referncia "velhice" de Flew so comuns nas epstolas de Dawkins aos iluminados. Mas o mais interessante aqui so as palavras que Dawkins escolheu, e pelas quais ele, de modo no muito inteligente, revela a maneira como sua mente funciona.

    "Tergiversar" tambm significa "virar as costas", ou "apostatar-se", de modo que o principal pecado de Flew foi apostatar-se da f de seus antecessores. O prprio Dawkins confessa, em outro de seus escritos, que sua viso atesta do universo baseada na f. Quando membros da Edge Foundation perguntaram-lhe: "Aquilo em que voc acredita verdadeiro, mesmo que no possa provar?", a isso Dawkins replicou: "Acredito que toda vida, toda inteligncia, toda criatividade e todo desgnio, em qualquer parte do universo, so produtos diretos ou indiretos da seleo natural de Darwin. Acontece que o desgnio chegou mais tarde ao universo, depois de um perodo de evoluo darwiniana. O desgnio no pode preceder a evoluo e, assim, no pode ser a base do universo". Na verdade, ento, a rejeio de Dawkins a uma suprema Inteligncia uma questo de crena sem prova. E como muitos outros, cujas crenas baseiam-se em f cega, ele no tolera que discordem delas ou as abandonem.

    A respeito da abordagem de Dawkins a uma racionalidade como base do universo, o fsico John Barrow observou durante uma discusso entre os dois: "Seu problema com essas idias, Richard, que voc no cientista. Voc bilogo". Jlia Vittulo-Martin comenta que, para Barrow, a biologia era pouco mais do que um ramo da histria natural. "Bilogos", diz Barrow, "tm uma compreenso limitada, intuitiva do que complexidade. Esto presos a um conflito herdado do sculo XIX e interessam-se apenas por resultados, por aquilo em que uns superam os outros. Mas resultados no nos dizem quase nada a respeito das leis que governam o universo".

    Bertrand Russell parece ser o pai intelectual de Dawkins. Ele fala de como foi "inspirado, idade de mais ou menos dezesseis anos", pelo ensaio que Russell escreveu em 1925, No que acredito. Russell era oponente inabalvel da religio organizada, e isso fez dele um modelo para Harris e Dawkins que, estilisticamente, copiaram tambm sua propenso para o sarcasmo, o caricato, a zombaria e o exagero. Mas a rejeio de

  • Russell a Deus no foi motivada apenas por fatores intelectuais. Em My Father, Bertrand Russell, sua filha, Katharine Tait, escreve que ele no entrava em nenhuma discusso sria sobre a existncia de Deus: "Eu no podia nem mesmo falar com ele sobre religio". O desgosto de Russell por esse assunto era, aparentemente, causado pelo tipo de crentes religiosos que ele conhecera. "Gostaria de ter podido convencer meu pai de que eu encontrara o que ele estivera procurando, aquele algo inefvel pelo qual, por toda a vida, ele nunca deixou de ansiar. Eu gostaria de ter podido persuadi-lo de que a busca por Deus no precisa ser em vo. Mas era impossvel. Ele conhecera um nmero grande demais de cristos cegos, sombrios moralistas que tiravam a alegria da vida e perseguiam seus opositores. Nunca seria capaz de ver a verdade que eles escondiam."

    Tait, no entanto, acredita que toda a vida de Russell foi uma busca por Deus. "Em algum lugar, no fundo da mente de meu pai, nas profundezas de sua alma, havia um espao vazio, que um dia fora preenchido por Deus, e ele nunca encontrou alguma coisa que pudesse voltar a preench-lo." Ele tinha "a sensao de no ter lugar neste mundo". Em um trecho pungente, Russell uma vez escreveu: "Nada pode penetrar a solido do corao humano, a no ser a alta intensidade do tipo de amor que os mestres religiosos tm pregado". Teramos muita dificuldade para encontrar nos escritos de Dawkins qualquer coisa que mesmo remotamente se assemelhasse a essa frase.

    Voltando ao assunto da "tergiversao" de Flew, talvez nunca tenha ocorrido a Dawkins que um filsofo, grande ou menos conhecido, jovem ou velho, pudesse mudar de idia com base em evidncias. Ele ficaria desapontado ao descobrir que os filsofos so "por demais ansiosos por desiludirem-se, se a lgica parecer exigir isso", mas que so guiados pela lgica, no pelo medo da tergiversao.

    Russell, em particular, gostava tanto de tergiversar, que outro clebre filsofo ingls, C. D. Broad, uma vez disse: "Como todos sabemos, o sr. Russell produz um sistema diferente de filosofia a cada perodo de alguns anos". H outros exemplos de filsofos que mudaram de idia com base em evidncias. J observamos que Ayer repudiou o positivismo de sua juventude. Outro filsofo que passou por mudana radical foi J. N. Findlay, que argumentou no livro de Flew, de 1955, New Essays in

  • Philosophical Theology, que a existncia de Deus era uma teoria falsa, mas que depois voltou atrs em sua obra, publicada em 1970, Ascent to the Absolute. Nesse ltimo livro e nos seguintes, Findlay argumenta que razo, mente, inteligncia e vontade atingem seu ponto culminante em Deus, o que existe por si mesmo, a quem adorao e incondicional dedicao so devidas.

    O argumento da "velhice" que Dawkins usou se que se pode chamar a isso de argumento uma estranha variao da falcia ad hominem que no tem lugar no discurso civilizado. Pensadores autnticos avaliam argumentos e pesam as evidncias sem levar em conta a raa, o sexo ou a idade do proponente.

    Outro tema constante no livro de Dawkins, e em algumas obras de outros "novos atestas", a alegao de que nenhum cientista que vale o po que come acredita em Deus. Dawkins, por exemplo, perde-se em explicaes das declaraes de Einstein a respeito de Deus como referncias metafricas natureza. O prprio Einstein, diz Dawkins, era, na melhor das hipteses, atesta como ele e, na pior, pantesta. Mas essa interpretao de Einstein obviamente desonesta. Dawkins refere-se apenas a citaes que demonstram a averso de Einstein pela religio organizada e, deliberadamente, deixa de lado no s os comentrios de Einstein sobre sua crena em uma "mente superior" e em um "poder de raciocnio superior" em funcionamento nas leis da natureza, como tambm o fato de ele negar ser pantesta ou atesta. (Essa distoro deliberada retificada neste livro.)

    Mais recentemente, quando Stephen Hawking visitou Jerusalm, perguntaram-lhe se ele acreditava na existncia de Deus e, de acordo com o que foi divulgado, o famoso fsico terico respondeu: "Acredito na existncia de Deus, mas tambm que essa fora divina estabeleceu as leis da natureza e da fsica e depois disso no teve mais participao no controle do mundo". Claro, muitos outros grandes cientistas dos tempos modernos, como Heisenberg e Planck, acreditavam numa mente divina em termos racionais. Mas isso tambm foi eliminado da histria cientfica explicada por Dawkins.

    O fato que Dawkins pertence ao mesmo clube peculiar de escritores cientficos populares como Carl Sagan e Isaac Asimov, de uma gerao anterior. Esses autores populares viam-se no

  • apenas como escritores, mas como sumo sacerdotes. Assim como Dawkins, tomaram para si no s a tarefa de educar o pblico sobre as descobertas da cincia, como a de decidir o que os fiis cientficos tm permisso para acreditar quando se trata de assuntos metafsicos. Mas vamos esclarecer as coisas. Muitos dos grandes cientistas viam uma conexo direta entre seu trabalho cientfico e sua afirmao de que existe uma "mente superior", a Mente de Deus. Expliquem isso como quiserem, mas fato evidente que no se pode deixar que os autores populares, com suas pretenses, continuem disfarados. Sobre positivismo, Einstein de fato disse: "No sou positivista. O positivismo afirma que o que no pode ser observado no existe. Essa concepo cientificamente indefensvel, porque impossvel tornar vlidas afirmaes sobre o que as pessoas podem, ou no podem, observar. Seria preciso dizer que apenas o que observamos existe, o que obviamente falso".

    Se querem desencorajar a crena em Deus, os autores populares devem fornecer argumentos que sustentem suas opinies atestas. Os evangelizadores atestas de hoje nem tentam argumentar em defesa de suas idias. Em vez disso, voltam seus canhes para as conhecidas crueldades cometidas ao longo da histria das principais religies. Mas os excessos e as atrocidades da religio organizada no tm nenhuma relao com a questo da existncia de Deus, assim como a ameaa de proliferao nuclear no tem relao com a questo E = mc2.

    E ento, Deus existe? O que dizer dos argumentos de velhos e novos atestas? Que relao a cincia moderna tem com esse assunto? Por notvel coincidncia, neste momento da histria intelectual, quando o antigo positivismo voltou moda, o mesmo pensador que ajudou a destron-lo, meio sculo atrs, volta ao campo de batalha das idias para responder a essas perguntas.

  • INTRODUO

    Desde que minha "converso" ao desmo foi anunciada, sempre me pedem para falar dos fatores que me levaram a mudar de idia. Em alguns artigos e nesta nova introduo edio de 2005 de meu livro God and Philosophy, chamei ateno para obras recentes que so importantes para a atual discusso sobre Deus, mas no me estendi em novos comentrios sobre minhas opinies. E agora fui persuadido a apresentar aqui o que pode ser chamado de meu testamento final. Em resumo, como diz o ttulo, agora acredito que existe um Deus!

    O subttulo, As provas incontestveis de um filsofo que no acreditava em nada, no foi inveno minha. Mas eu o emprego com satisfao, porque a inveno e o uso de ttulos arriscados, mas atraentes, so para os Flew algo como uma tradio familiar. Meu pai, que era telogo, uma vez publicou uma coletnea de ensaios de sua autoria e de alguns de seus ex-alunos e deu a essa polmica brochura o ttulo paradoxal, embora perfeitamente apropriado e informativo, de The Catholicity of Protestantism. No que diz respeito forma e apresentao, se no doutrina, segui seu exemplo e publiquei artigos a que dei ttulos como Do-gooders Doing No Good? e Is PascaVs Wager the Only Safe Bet?.

    Preciso deixar uma coisa bem clara. Quando a notcia de que eu havia mudado de idia sobre Deus foi divulgada pela mdia e a ubqua Internet, alguns comentaristas foram rpidos em dizer que minha "converso" tinha algo que ver com minha idade avanada. Dizem que o medo torna a mente mais densa, e esses crticos concluram que foi a probabilidade de uma prxima entrada na vida aps a morte que provocou minha converso. bvio que essas pessoas no conheciam meus escritos sobre a inexistncia de uma vida aps a morte, nem minha atual opinio sobre o assunto. Durante mais de cinqenta anos, neguei no s a existncia de Deus, como tambm a de uma vida aps a morte. Minhas Palestras Gifford, na Universidade de St. Andrews, publicadas como The Logic of

  • Mortality, representam o clmax desse processo de pensamento. Essa uma rea a respeito da qual no mudei de idia. Na falta de uma revelao especial, uma possibilidade bem-representada neste livro pela contribuio de N. T. Wright, no me vejo "sobrevivendo" morte. Que fique registrado, ento, que quero que cessem todos esses rumores que me mostram fazendo a aposta de Pascal.

    Devo ainda salientar que esta no a primeira vez que "mudo de idia" sobre um assunto fundamental. Entre outras coisas, os leitores que conhecem minha vigorosa defesa de mercados livres podem ficar surpresos ao saber que j fui marxista. Entro em detalhes sobre esse assunto no segundo captulo deste livro. Alm disso, mais de duas dcadas atrs, rejeitei minha antiga opinio de que todas as escolhas humanas so determinadas exclusivamente por causas fsicas.

    Como este livro trata do motivo de eu ter mudado de idia quanto existncia de Deus, apenas lgico que as pessoas perguntem em que eu acreditava antes da "mudana" e por qu. Os primeiros trs captulos tentam responder a essa pergunta, e os ltimos sete descrevem minha descoberta do Divino. Na preparao desses sete ltimos captulos, fui grandemente ajudado pelas discusses que tive com o professor Richard Swinburne e o professor Brian Leftow, o antigo e o atual ocupantes da cadeira Nolloth em Oxford.

    H dois apndices neste livro. O primeiro uma anlise do assim chamado novo atesmo de Richard Dawkins e outros, de autoria de Roy Abraham Varghese. O segundo um dilogo aberto sobre um assunto de grande interesse para a maioria dos que tm uma f religiosa: se h qualquer tipo de revelao divina na histria da humanidade, com ateno especfica ao que se diz sobre Jesus de Nazar. Com o objetivo de dar uma contribuio ao dilogo, o estudioso N. T. Wright, atual bispo de Durham, gentilmente ofereceu sua anlise do fato histrico que serve de base para a f em Jesus professada pelos testas cristos. Na verdade, preciso dizer que o argumento do bispo Wright , de longe, o melhor dos argumentos que j ouvi a favor da aceitao da f crist.

    Talvez alguma coisa deva ser dita sobre minha "fama" como atesta, a que o subttulo faz referncia. Meu primeiro trabalho antiteolgico foi o artigo de 1950, Theology and

  • Falsification. Esse artigo mais tarde foi reimpresso em New Essays in Philosofical Theology (1955), uma antologia que co-editei com Alasdair Maclntyre. New Essays foi uma tentativa de avaliar o impacto do que chamavam de "revoluo na filosofia" sobre assuntos teolgicos. Minha segunda obra importante foi God and Philosophy, publicada pela primeira vez em 1966 e novamente em 1975, 1984 e 2005. Na introduo da edio de 2005, Paul Kurtz, um dos lderes do atesmo em nossa poca e autor de Humanist Manifesto II, escreveu: "A editora Prometheus Books tem a grande satisfao de apresentar o que agora tornou-se um clssico da filosofia da religio". The Presumption of God foi publicado na Inglaterra em 1976 e nos Estados Unidos em 1984 com o ttulo de God, Freedom and Immortality. Outras obras relevantes foram Hume's Philosophy of Belief, Logic and Language (primeira e segunda sries), An Introduction to Western Phosophy: Ideas and Arguments from Plato to Sartre, Darwinian Evolution e The Logic of Mortality.

    de fato um paradoxo que meu primeiro argumento em favor do atesmo tenha sido originalmente apresentado em uma reunio do Socratic Club presidida por um dos maiores defensores do cristianismo do sculo passado, C. S. Lewis. Outro paradoxo que meu pai foi um dos autores e pregadores metodistas mais importantes da Inglaterra. E mais, no incio da carreira, eu no tinha nenhum especial interesse em me tornar filsofo profissional.

    Mas como todas as coisas boas, na verdade todas as coisas, sem exceo, devem ter um fim, acabarei minha introduo aqui. Deixarei que os leitores decidam o que pensar de minhas razes para mudar de idia na questo de Deus.

  • PRIMEIRA PARTEMINHA NEGAO DO DIVINO

    1. A Criao de um ateuNem sempre fui ateu. Comecei a vida de modo bastante

    religioso. Fui criado num lar cristo e estudei em uma escola particular crist. Na verdade, sou filho de um pregador do Evangelho.

    Meu pai era produto do Merton College, de Oxford, pastor da igreja metodista criada por Wesley, no da igreja da Inglaterra, que era a estabelecida. Embora ele dedicasse seu corao ao evangelismo e, como diriam os anglicanos, ao trabalho paroquial, a primeira lembrana que tenho dele como orientador de estudos do Novo Testamento na escola de teologia metodista de Cambridge. Mais tarde, ele sucedeu o diretor dessa escola e foi em Cambridge que se aposentou e faleceu. Alm de suas obrigaes acadmicas bsicas, meu pai assumiu a tarefa de representar a igreja metodista em vrias organizaes formadas por diferentes denominaes religiosas. Serviu tambm, durante um ano, como presidente da Conferncia Metodista e do Conselho Federal da Igreja Metodista Livre.

    Na infncia, eu me esforava para isolar ou identificar qualquer sinal de minhas posteriores convices atestas. Na juventude, estudei na Kingswood School em Bath, conhecida informalmente com K. S., que era, e felizmente ainda , um internato pblico uma instituio de um tipo que, em qualquer outro pas de lngua inglesa, seria descrita, de modo paradoxal, como internato particular, A escola foi criada por John Wesley, fundador da igreja metodista, para a educao de rapazes, filhos de pastores. A escola Queenswood foi fundada um sculo mais tarde para, de maneira apropriadamente igualitria, educar moas, filhas de pastores metodistas.

  • Entrei na Kingswood como cristo consciencioso, se no entusiasmado. Nunca pude entender o sentido da adorao e, no sendo nada musical, no gostava, muito menos participava, do cntico de hinos. Nunca li nada da literatura religiosa com o mesmo entusiasmo com que lia livros sobre poltica, histria, cincias ou quase todos os outros assuntos. Ir capela ou igreja, recitar oraes e praticar outros atos religiosos eram, para mim, quase apenas deveres cansativos. Nunca senti o mais leve desejo de me comunicar com Deus.

    Por que tive, desde que posso me lembrar, desinteresse pelas questes e prticas religiosas que formavam o mundo de meu pai, no sei dizer. No me lembro, simplesmente, de ter sentido qualquer interesse ou entusiasmo por elas. Penso tambm que nunca senti a mente enlevada, nem "meu corao estranhamente aquecido", para usar a famosa frase de Wesley, no estudo dos ensinamentos cristos ou na prtica da adorao. Se minha juvenil falta de entusiasmo pela religio era uma cau-sa, ou um efeito ou ambos , quem poder dizer? Mas posso dizer que, qualquer f que eu pudesse ter quando entrei na escola Kingswood, se acabara quando sa de l.

    UMA TEORIA DA REGRESSODisseram-me que o Barna Group, uma importante or-

    ganizao crista de censo demogrfico, concluiu, atravs de seus levantamentos, que aquilo em que acreditamos quando temos treze anos ser no que acreditaremos ao morrer. Seja essa concluso correta ou no, sei que as crenas que formei no incio da adolescncia permaneceram comigo pela maior parte de minha vida adulta.

    No me lembro precisamente de como e quando a mudana comeou. Mas com certeza, como acontece com qualquer pessoa que pensa, mltiplos fatores combinaram-se para criar minhas convices. Um desses fatores foi o que Immanuel Kant definiu como "uma nsia da mente no imprpria sabedoria" e que, acredito, eu tinha em comum com meu pai. Tanto ele como eu estvamos dispostos a seguir o caminho da "sabedoria" como Kant a descreveu: " a sabedoria que tem o mrito de selecionar, entre os inumerveis problemas que se apresentam, aqueles cuja soluo importante para a huma-

  • nidade". As convices crists de meu pai persuadiram-no de que no podia haver nada mais "importante para a humanidade" do que a explicao, a propagao e a implantao dos ensinamentos do Novo Testamento, sejam eles realmente quais forem. Minha jornada intelectual levou-me em uma direo diferente, claro, mas que no foi menos marcada pela nsia da mente que ele e eu compartilhvamos.

    Tambm me lembro de que meu pai, em mais de uma ocasio, me disse que um estudioso da Bblia, quando em dvida sobre determinado conceito do Velho Testamento, no tenta encontrar uma resposta apenas refletindo sobre ele, mas que coleta o maior nmero possvel de dados dentro do contexto, usando os exemplos contemporneos disponveis desse conceito. Essa abordagem explicada por ele formou, de muitas maneiras, a base de minhas primeiras exploraes intelectuais e de uma que ainda no abandonei porque aprendi a coletar e examinar, dentro de um contexto, todas as informaes importantes sobre certo assunto. Pode ser irnico, mas foi o ambiente familiar em que fui criado que, talvez, instilou em mim o entusiasmo pela investigao crtica que um dia me levaria a rejeitar a f de meu pai.

    A FACE DO MALEu disse, em alguns de meus ltimos escritos atestas, que

    cheguei concluso de que Deus no existe, rpido demais, facilmente demais e por razes que, mais tarde, me pareceram erradas. Reconsiderei longamente e repetidas vezes essa concluso negativa, mas depois, por quase setenta anos, nunca encontrei base suficiente para garantir qualquer mudana fundamental. Uma das razes para minha converso ao atesmo foi o problema do mal.

    Todos os anos, no vero, meu pai levava minha me e a mim para uma viagem de frias ao estrangeiro. Embora isso no fosse possvel para algum que ganhava salrio de pastor, para meu pai era, porque ele passava o incio do vero trabalhando na banca examinadora para o certificado de escola superior e era pago por isso. Outra vantagem era que nossas viagens ficavam mais baratas porque meu pai era fluente em alemo por ter estudado teologia durante dois anos na Universidade de

  • Marburg antes da Primeira Guerra e, assim, levava-nos sempre Alemanha e por uma ou duas vezes levou-nos Frana sem precisar gastar dinheiro com um agente de viagens. Por vrias vezes, foi escolhido para representar o metodismo em conferncias teolgicas internacionais e sempre levou minha me e a mim, seu nico filho, como convidados no participantes.

    Fui fortemente influenciado por essas viagens a outros pases nos anos antes da Segunda Guerra Mundial e me lembro claramente das faixas e cartazes exibidos fora dos limites de vilas, avisando: "No queremos judeus aqui". Lembro que vi, na entrada de uma biblioteca pblica, cartazes que diziam: "O regulamento desta instituio probe o emprstimo de livros a judeus". Uma noite assisti ao desfile de dez mil soldados, usando uniformes marrons, que atravessavam a Bavria. Nossas viagens expuseram-me a esquadres da Waffen-SS, com seus homens vestidos de preto e exibindo no quepe uma caveira sobre dois ossos cruzados.

    Tais experincias desenharam o cenrio de minha ju-ventude e, para mim, assim como para muitos outros, apresentaram um desafio inevitvel a respeito da existncia de um todo-poderoso Deus de amor. No sei avaliar at que ponto elas influenciaram meu pensamento, mas, no mnimo, despertaram em mim a percepo que me acompanhou durante toda a vida do mal duplo do anti-semitismo e do totalitarismo.

    UM LUGAR IMENSAMENTE ANIMADOCrescer, como eu cresci, nas dcadas de 1930 e 1940, num

    lar metodista era estar em Cambridge mas no ser de Cambridge. Para comear, a teologia no era, naquele tempo, aceita ali como a "rainha das cincias", como acontecia em outras instituies. Uma escola para a formao de ministros religiosos no tinha nenhuma relevncia. Como resultado, nunca me identifiquei com Cambridge, embora meu pai se sentisse muito vontade ali. Seja como for, a partir de 1936, quando fui para o internato, eu quase nunca ia a Cambridge durante o perodo de aulas.

    Na minha poca, Kingswood era um lugar extremamente animado, dirigido por um homem que merecia ser considerado

  • um excelente diretor de escola. No ano anterior a minha ida para l, Kingswood colocara mais alunos em cursos de Oxford e Cambridge do que qualquer outra escola. Alm disso, nossa vivacidade juvenil no era confinada sala de aula e ao laboratrio.

    Ningum deveria se surpreender pelo fato de que, naquele ambiente agitado, eu comeasse a questionar a f de meus antepassados, uma f a que nunca me sentira emocionalmente ligado. poca em que cheguei sexta srie superior em K. S. equivalente dcima segunda srie nos Estados Unidos e ltimo ano do Ensino Mdio no Brasil eu discutia com colegas mais adiantados, argumentando que a idia de um Deus onipotente, e ao mesmo tempo perfeitamente bom, era incompatvel com o mal e as imperfeies do mundo. O habitual sermo de domingo nunca continha nenhuma referncia vida futura, fosse no cu, fosse no inferno. Quando o diretor A. B. Sackett era o pregador, o que no acontecia com freqncia, sua mensagem era sempre de exaltao s maravilhas da natureza. De qualquer modo, quando completei quinze anos, eu rejeitara a tese de que o universo fora criado por um Deus todo-poderoso, de infinita bondade.

    Algum pode perguntar se nunca pensei em consultar meu pai pastor sobre minhas dvidas a respeito da existncia de Deus. Nunca. Pelo bem da paz domstica e, principalmente para poupar meu pai, tentei, o mais que pude, esconder da famlia minha converso irreligiosa. Pelo que sei, consegui fazer isso durante muitos anos.

    Mas em janeiro de 1946, quando eu ia completar vinte e trs anos, espalhou-se a notcia e chegou at meus pais de que eu me tornara ateu, que no acreditava em uma vida aps a morte e que era pouco provvel que voltasse atrs. To completa e firme foi minha mudana que, em minha casa, concluram que qualquer discusso sobre o assunto seria em vo. No entanto, hoje, mais de meio sculo depois, sei que meu pai ficaria imensamente feliz por eu ter a opinio que tenho agora sobre a existncia de Deus, at porque ele veria nisso uma grande ajuda causa da igreja crist.

  • UMA OXFORD DIFERENTEAos dezoito anos, fui da Kingswood para a Universidade de

    Oxford, onde cheguei no trimestre de inverno de janeiro a maro de 1942. A Segunda Guerra Mundial ia em meio e, num dos primeiros dias como estudante de graduao, passei por um exame de sade e oficialmente recrutado pela RAF Real Fora Area. Naqueles tempos de guerra, quase todos os estudantes fisicamente saudveis passavam um dia da semana numa organizao de servio. No meu caso, essa organizao era o esquadro areo da Universidade de Oxford.

    Esse servio militar, prestado em regime de meio perodo durante um ano e perodo integral dali por diante, no era combatente. Inclua aprender um pouco de japons, na escola de estudos orientais, e africano, da Universidade de Londres e, depois, interceptar e decifrar sinais da fora area japonesa no parque Bletchley. Aps a rendio do Japo, trabalhei, enquanto esperava pela desmobilizao, como tradutor de sinais interceptados do recentemente criado exrcito de ocupao francs no que naquele tempo era a Alemanha Ocidental.

    Quando retornei ao estudo em tempo integral na Universidade de Oxford, no incio de janeiro de 1946, onde faria meus exames finais no vero de 1947, encontrei tudo muito diferente. Oxford parecia uma instituio muito mais interessante do que aquela que eu deixara quase trs anos antes. Havia uma maior variedade de opes, tanto para carreiras de tempo de paz, como militares. Eu estava me preparando para os exames finais na Honors School of Literae Humaniores, e algumas das aulas sobre a histria da Grcia clssica eram dadas por veteranos de guerra que haviam sido ativos no auxlio resistncia grega, tanto em Creta como no continente, o que tornava as aulas mais romnticas e estimulantes para a platia de estudantes de graduao.

    No vero de 1947, ento, fiz meus exames finais. Para minha surpresa e alegria, fui agraciado com um "First" a expresso no Reino Unido para "primeira classe", que designa o aluno que passa nos exames de graduao com louvor. Voltei, ento, para John Mabbott, meu orientador em St. John's College. Disse a ele que desistira de minha meta anterior de trabalhar para conseguir um segundo diploma de graduao na ento recentemente criada escola de filosofia e psicologia. Agora, eu

  • pretendia comear a trabalhar para obter um diploma de ps-graduao em filosofia.

    CRESCIMENTO FILOSFICOMabbott conseguiu que eu me matriculasse no curso de

    ps-graduao em filosofia sob a superviso de Gilbert Ryle, que, ento, era o professor de filosofia metafsica da Universidade de Oxford. Ryle, no segundo semestre do ano letivo de 1947-1948, era o mais antigo dos trs catedrticos de filosofia.

    Foi s muitos anos mais tarde que, lendo o cativante livro de Mabbott, Oxford Memories, soube que ele e Ryle eram amigos desde quando haviam se conhecido em Oxford. Se eu estivesse em uma escola diferente e se um orientador diferente me perguntasse qual dos trs supervisores profissionais preferia, eu certamente teria escolhido Henry Price por causa do interesse que ns dois tnhamos pelo que agora chamado de parapsicologia, mas que naquele tempo ainda chamavam de pesquisa psquica. Em conseqncia, meu primeiro livro recebeu o ttulo de A New Approach to Psychical Research, e Price e eu nos tornamos conferencistas sobre pesquisa psquica. Estou certo, porm, de que eu no teria ganhado o prmio universitrio de filosofia, num ano que foi excepcionalmente duro, se meu orientador nos estudos de ps-graduao fosse Henry Price, porque passaramos tempo demais conversando sobre os interesses que tnhamos em comum.

    Depois de devotar o ano acadmico de 1948 aos estudos para conseguir meu diploma de ps-graduao em filosofia, sob a orientao de Ryle, foi que ganhei o prmio mencionado acima, o John Locke de filosofia mental. Fui ento indicado para ser o que seria chamado de professor estagirio em qualquer outra escola da Oxford que no a Christ Church, cujo vocabulrio dizia que eu me tornara um aluno estagirio.

    Durante o ano em que lecionei na Oxford, a doutrina do conhecido filsofo austraco Ludwig Wittgenstein, cuja abordagem da filosofia influenciaria a minha, entrou em Oxford. Os princpios dessa doutrina, todavia, que ele mais tarde publicou em seus O livro azul, O livro castanho e Lectures on Mathematics, chegaram na forma de transcries de palestras datilografadas, acompanhadas de cartas de Wittgenstein,

  • informando para quem elas deviam, ou no, ser mostradas. Um colega e eu tivemos a idia de, sem quebrar a promessa feita a Wittgenstein, produzir cpias de todas as suas palestras disponveis em Oxford, de modo que todos que quisessem pudessem l-las.

    Essa finalidade til uso aqui o vocabulrio dos filsofos morais daquele perodo foi alcanada porque, primeiro, perguntamos a todos os que sabamos que estavam filosofando ativamente em Oxford, se eles tinham cpias das palestras de Wittgenstein e, em caso positivo, quais eram. Naquele tempo, muito antes das fotocopiadoras, descobrimos e contratamos um datilografo para fazer cpias suficientes para atender demanda. (Mal sabamos que a circulao dessas cpias apenas entre membros de um grupo exclusivo que jurou manter segredo levaria os de fora a comentar que Wittgenstein, in-dubitavelmente um filsofo genial, comportava-se como um charlato, fingindo ser um gnio!)

    Fra durante uma visita de Wittgenstein a Cambridge que Ryle o conhecera. Uma amizade se desenvolvera entre eles e, em 1930 ou 1931, Ryle persuadira Wittgenstein a acompanh-lo a p em uma excurso pela regio dos lagos ingleses. Ryle nunca publicou nenhum relato dessa excurso, nem do que aprendera com Wittgenstein, ou a respeito dele. Mas foi a partir dessa viagem que Ryle comeou a servir de intermedirio entre Wittgenstein e o que os filsofos chamam de "mundo exterior".

    A necessidade dessa mediao revela-se no registro de uma conversa entre Wittgenstein, que era judeu, e suas irms, logo depois que os soldados de Hitler tomaram a ustria. Ele disse s irms que, devido estreita conexo deles com as "mais importantes famlias" do antigo regime, nem ele, nem elas estavam em perigo. Quando, mais tarde, tornei-me professor de filosofia, relutei em contar a meus alunos que Wittgenstein, a quem eu e muitos de meus colegas considervamos um gnio filosfico, se iludia demais quando se tratava de questes prticas.

    Vi Wittgenstein em ao, pessoalmente, pelo menos uma vez. Isso foi no meu tempo de estudante de graduao, quando ele visitou a Jowett Society. O tema da palestra era "Cogito, ergo sum", inspirado obviamente pela famosa afirmao do filsofo francs Ren Descartes, "Penso, logo existo". O salo estava

  • lotado. A platia no perdia uma nica palavra do grande homem. Mas, agora, s o que me lembro de seus comentrios que eles no tinham nenhuma relao com o tema que fora anunciado. Ento, quando Wittgenstein acabou de falar, o pro-fessor emrito, H. A. Prichard, levantou-se. Com evidente exasperao, perguntou o que "herr Wittgenstein" parece que o doutor em Cambridge no era reconhecido em Oxford! "pensava a respeito de Cogito ergo sum". Wittgenstein respondeu, batendo na testa com o dedo indicador da mo direita: "Cogito ergo sum. Uma frase muito peculiar". Naquele momento pensei, e ainda penso, que a rplica mais adequada resposta de Wittgenstein seria a adaptao de uma legenda em um dos desenhos humorsticos de James Thurber em Men, Women and Dogs: "Talvez voc no tenha charme, Lily, mas enigmtica".

    ENTRANDO EM CONFLITO COM LEWISDurante meu tempo como estudante de ps-graduao sob

    a orientao de Gilbert Ryle, descobri que ele tinha por princpio sempre responder de modo direto, frente a frente com a outra pessoa, a qualquer objeo feita a suas opinies filosficas. Suponho, embora ele nunca tenha me dito isso e pelo que sei, a ningum mais que ele obedecia ordem que Plato, em A Repblica, atribuiu a Scrates: "Devemos seguir o argumento at onde ele nos levar". Entre outras coisas, esse princpio requer que cada objeo seja feita diretamente de uma pessoa a outra, e deve tambm ser debatida diretamente entre as duas. um princpio que eu prprio tentei seguir durante toda minha vida longa e amplamente polmica.

    Esse princpio socrtico inspirava o Socratic Club, um grupo que era, realmente, o centro do que ainda havia de vida intelectual em Oxford no tempo da guerra. O clube era um frum onde aconteciam acalorados debates entre atestas e cristos, e eu participava regularmente das reunies. De 1942 a 1954, seu presidente foi o famoso escritor cristo, C. S. Lewis. Os membros do clube reuniam-se toda segunda-feira noite durante os meses de aulas no Junior Commom Room do St. Hilda College. Em seu prefcio primeira edio do Socratic Digest, Lewis citou a exortao de Scrates para "seguirmos o argumento aonde ele

  • nos levar". Observou que aquela "arena especialmente devotada ao conflito entre cristos e descrentes era uma novidade".

    Muitos dos maiores atestas em Oxford entraram em conflito com Lewis e seus companheiros cristos. O mais famoso encontro foi um debate em fevereiro de 1948, entre Lewis e Elizabeth Anscombe, que levou Lewis a revisar o terceiro captulo de seu livro Milagres. Eu ainda lembro que, no fim do debate, sa do clube com alguns amigos e fomos andando logo atrs de Elizabeth Anscombe e seu grupo. Ela e seus amigos estavam exultantes. Logo frente deles, C. S. Lewis andava rapidamente, como se tivesse pressa de refugiar-se em seus aposentos no Magdalen College, logo alm da ponte que estvamos todos atravessando.

    Embora muitos tenham achado que Lewis ficara per-manentemente desencorajado pelo resultado desse debate, a prpria Elizabeth pensava de modo diferente. "A reunio do Socratic Club, na qual li meu artigo", ela escreveu mais tarde, "foi descrita, por vrios dos amigos dele, como uma experincia horrvel e chocante que o perturbou imensamente. Mas nem o dr. Havard que convidou Lewis e a mim para um jantar, algumas semanas depois , nem o professor Jack Bennett lembravam-se de ter notado tal perturbao. Estou inclinada a interpretar os curiosos comentrios feitos por alguns dos amigos de Lewis como um exemplo interessante do fenmeno chamado projeo".

    Lewis foi, certamente, o mais eficiente defensor do cristianismo da segunda metade do sculo XX. Quando a BBC, recentemente, perguntou-me se eu refutara completamente a defesa crist de Lewis, respondi: "No. Eu apenas no acreditava que havia razo suficiente para acreditar nela. Mas, claro, quando mais tarde comecei a pensar em coisas teolgicas, pareceu-me que a defesa da revelao crist muito forte para quem acredita em revelao".

    DESENVOLVIMENTO ALTAMENTE POSITIVODurante meu ltimo semestre em Oxford, a publicao do

    livro de A. J. Ayer, Linguagem, verdade e lgica convencera muitos membros do Socratic Club de que a heresia do positivismo lgico afirmao de que todas as proposies

  • religiosas no tm significao cognitivo precisava ser refutada. O primeiro e nico artigo que li no Socratic Club, Theology and Falsification, provou o que eu, na poca, considerava refutao suficiente. Eu acreditava que alcanara total vitria e que no havia mais espao para discusso.

    Foi tambm em Oxford que conheci Annis Donnison, que seria minha esposa. Fomos apresentados pela irm dela numa reunio social do Labor Club. Depois de ser apresentado a Annis*, no prestei ateno a mais ningum naquela noite. No fim da reunio, combinei com Annis de nos encontrarmos novamente, e aquela foi a primeira vez que marquei um encontro com uma moa. Minha condio social, naquele tempo, era muito diferente da dela. Eu estava lecionando na Christ Church, uma instituio s para homens, e ela era uma estudante de primeiro ano da Sommerville, uma escola para mulheres que, como todas as instituies femininas da Oxford, simplesmente expulsava uma aluna que "cometesse casamento".

    Minha futura sogra ficou compreensivelmente preocupada pelo fato de a filha namorar um homem que, alm de estar academicamente mais adiantado, era bem mais velho. Ento, falou com o filho, e ele lhe disse que eu "estava apaixonado, ou algo assim" e que ficaria arrasado se fosse impedido de continuar o namoro. Eu sempre achei que meu cunhado apenas queria que sua irm mais jovem tivesse a liberdade de conduzir a prpria vida, porque sabia que ela era sensata e que no tomaria nenhuma deciso precipitada.

    Embora eu j houvesse abandonado a f de meus pais metodistas h muito tempo, pensei no que aprendera com eles. Nunca sequer tentei seduzir Annis antes do casamento, acreditando que tal comportamento sempre moralmente errado. Do mesmo modo, sendo filho de professor, nunca pensei em induzir minha namorada a casar-se comigo antes de se formar.

    Deixei oficialmente de ser professor no efetivado na Christ Church, em Oxford, no final de setembro de 1950, e comecei a trabalhar como professor de filosofia moral na Universidade de

    * Antony Flew e Annis Donnison casaram-se em 28 de junho de 1952. (N. da T.)

  • Aberdeen, na Esccia, no primeiro dia de outubro daquele mesmo ano.

    DEIXANDO OXFORD PARA TRSNos anos que passei em Aberdeen, participei de vrias

    entrevistas e trs ou quatro discusses radiofnicas, patrocinadas pelo programa recm-iniciado e militante da cultura, o Third Programme da BBC, alm de servir de sujeito em vrias experincias psicolgicas. Em Aberdeen, as grandes atraes eram a amabilidade de quase todas as pessoas com quem travvamos conhecimento, a fora e a variedade do movimento da educao adulta, o prprio fato de estarmos numa cidade da Esccia, algo novo para ns, e de podermos andar ao longo da costa e pelas montanhas Cairngorms. Penso que nunca deixamos de nos juntar aos membros do Cairngorm Club em suas excurses mensais a essas montanhas.

    No vero de 1954, fui de Aberdeen para a Inglaterra fazendo antes uma viagem Amrica do Norte , para me tornar professor de filosofia na University College of North Staffordshire, que mais tarde tornou-se a Universidade de Keele. Nos dezessete anos em que estive l, a Keele foi, no Reino Unido, a instituio que mais se aproximava das escolas de artes liberais dos Estados Unidos, como a Oberlin e a Swarthmore. Muito rapidamente, devotei-me Keele, s me afastando quando ela comeou, devagar, mas inexoravelmente, a perder sua distino.

    Depois de passar o ano acadmico de 1970-1971 como professor visitante nos Estados Unidos, demiti-me da que ento j se tornara a Universidade de Keele. Meu sucessor foi Richard Swinburne. Em janeiro de 1972, mudei-me para a Universidade de Calgary em Alberta, Canad. Minha inteno era a de me estabelecer ali. No entanto, em maio de 1973, depois de apenas trs semestres em Calgary, transferi-me para a Universidade de Reading, onde fiquei at o final de 1982.

    Antes de requerer e conseguir a aposentadoria antecipada da Reading, eu havia sido contratado para lecionar um semestre por ano na Universidade York, em Toronto, durante os restantes seis anos de minha normal vida acadmica. Na metade desse perodo, porm, demiti-me de York a fim de aceitar um convite

  • do Social Philosophy and Policy Center da Universidade Estadual Bowling Green, em Ohio, para servir, durante os trs anos seguintes, como Distinguished Research Fellow (Ilustre Colega Pesquisador). Aps esse tempo, o convite foi estendido para mais trs anos. Depois, ento, eu finalmente me aposentei e voltei para Reading, onde resido at hoje.

    Esse resumo do que foi minha carreira no esclarece por que me tornei filsofo. Dado meu interesse por filosofia na Kingswood, pode parecer que eu havia decidido ser filsofo profissional muito antes de ir para Oxford. Mas, na verdade, naquele tempo eu mal sabia que existiam tais criaturas. Mesmo nos meses que passei em Oxford, antes de ser convocado pela RAF, meu contato com a filosofia no passava das reunies do Socratic Club. O que mais me interessava, alm de meus estudos, era a poltica. Esse interesse ainda continuou depois de janeiro de 1946, quando filosofia passou a ser uma das matrias de meu curso.

    S comecei a ver a remota possibilidade de uma carreira em filosofia alguns meses antes de meus exames finais, em dezembro de 1947. Se meu medo de ser colocado na Segunda Classe se concretizasse, eu teria estudado para fazer os exames uma segunda vez, tendo psicologia como rea de concentrao, na nova escola de filosofia, psicologia e fisiologia. Mas, como isso no aconteceu, comecei a trabalhar no igualmente novo curso de ps-graduao em filosofia, sob a orientao de Gilbert Ryle. Foi s nas ltimas semanas de 1949, depois de ser indicado para um estgio na Christ Church, que estabeleci o curso de minha carreira e queimei as pontes atrs de mim , recusando uma oferta para trabalhar na Administrative Class of the Home Civil Service (Diviso Administrativa do Servio Civil Nacional), uma escolha da qual me arrependi at que recebi a oferta da Universidade de Aberdeen.

    Nos prximos dois captulos, tento explicar com detalhes o caso que constru, ao longo dos anos, contra a existncia de Deus. Comeo por discorrer sobre meio sculo de argumentos atestas que juntei e desenvolvi e, ento, no terceiro captulo, descrevo as vrias reviravoltas em minha filosofia, que podem ser acompanhadas por meio de meus freqentes debates sobre o assunto do atesmo.

  • Espero que, com isso tudo, fique evidente, como eu disse tantas vezes no passado, que meu interesse pela religio nunca foi nada mais do que prudente, moral ou simplesmente curioso. Digo prudente porque, se existe um Deus, ou deuses, que se envolvem nos assuntos humanos, seria uma imprudncia louca no tentar, ao mximo possvel, ficar ao lado direito deles. Digo que meu interesse moral porque devo me dar por feliz por ter encontrado aquilo a que Matthew Arnold uma vez se referiu como "o Eterno, no ns, leva retido". E digo que um interesse curioso porque qualquer pessoa com tendncia cientfica deve querer descobrir tudo o que possvel saber sobre determinado assunto. Mesmo assim, pode ser que ningum se surpreenda mais do eu me surpreendi quando notei que, depois de tantos anos de explorao do Divino, eu abandonara a negao para dedicar-me descoberta.

  • 2. Para onde o argumento levaQuando Alice passou atravs do espelho, na famosa histria

    de Lewis Carroll, encontrou uma rainha que alegava ter "cento e um anos, cinco meses e um dia".

    No posso acreditar! exclamou Alice. No pode? replicou a Rainha em tom de comiserao.

    Tente novamente. Respire fundo e feche os olhos.Alice riu. No adianta tentar. Ningum pode acreditar em coisas

    impossveis. Presumo que voc no tenha muita prtica comentou

    a Rainha. Quando eu tinha sua idade, sempre fazia isso por uma hora e meia todos os dias. s vezes, chegava a acreditar em seis coisas impossveis antes do caf da manh.

    Devo simpatizar com Alice. Tivesse eu imaginado o rumo que minha vida e meus estudos tomariam mesmo depois que comecei a estudar filosofia sob a orientao de Gilbert Ryle , certamente consideraria tudo improvvel, se no impossvel.

    Quando publiquei Theology and Falsification, dificilmente eu teria imaginado que, no prximo meio sculo, publicaria cerca de trinta e cinco livros sobre uma grande variedade de tpicos filosficos. Embora eu seja mais conhecido pelo que escrevo sobre a questo da existncia de Deus, essa no foi, de modo algum, minha nica rea de interesse. No decorrer dos anos, escrevi sobre temas que vo de filosofia lingstica a lgica, de filosofia moral, social e poltica a filosofia da cincia, de parapsicologia e educao ao debate do determinismo do livre-arbtrio e idia da vida aps a morte.

    Mas, apesar de ter me tornado atesta idade de quinze anos, e tambm ter desenvolvido vrios interesses filosficos e semifilosficos enquanto estudava na escola Kingswood, passaram-se anos at que minhas opinies filosficas amadurecessem e se solidificassem. E quando isso aconteceu, eu chegara aos princpios orientadores que no s governam o

  • que escrevo e penso como acabaram por ditar uma mudana dramtica: passei do atesmo para o tesmo.

    PRIMEIRAS EXPLORAES... E SITUAES EMBARAOSASAlgumas de minhas idias filosficas tomaram forma antes

    de minha ida para a escola Kingswood. Quando me matriculei, j era comunista professo e continuei um ferrenho socialista de esquerda at o incio da dcada de 1950, quando me desliguei do Partido Trabalhista, o movimento ingls historicamente esquerdista.

    O que realmente me impediu de me filiar ao Partido Comunista ingls, como fizeram muitos de meus colegas da Kingswood, foi seu comportamento depois do pacto alemo-sovitico de 1939, quando eu ainda era adolescente. Obedecendo s instrues de Moscou, essa organizao servil e traioeira comeou a denunciar a guerra contra a Alemanha nacional-socialista nazista como "imperialista" e que, portanto, nada tinha que ver com o povo ingls. Essas denncias continuaram at 1940, enquanto o pas sofria a ameaa de uma invaso. Essa chamada guerra imperialista, porm, de repente tornou-se uma "guerra progressiva, do povo" do ponto de vista dos comunistas , quando as foras alems invadiram a Unio Sovitica. Nos anos seguintes, fiquei cada vez mais crtico quanto teoria e prtica do comunismo, com sua tese de que a histria dirigida por leis semelhantes quelas das cincias fsicas.

    Durante esse perodo, como muitos de meus contem-porneos em Kingswood, descobri os escritos explicativos de C. E. M. Joad. Naquele tempo, Joad, autor de cerca de setenta e cinco livros, era o filsofo mais conhecido do pblico britnico por suas palestras radiofnicas sobre assuntos filosficos e seu estilo literrio. Em parte, foi lendo Joad que descobri vrios livros que eram best sellers, mas, como aprendi depois, lamentavelmente no confiveis sobre pesquisa psquica, o estudo que agora mais conhecido como parapsicologia.

    Suponho que muitos de ns, quando envelhecemos, recordamos nossa juventude com um misto de nostalgia e embarao. Acredito que essa emoo bastante comum. Todavia, nem todos ns temos a m sorte de ver nossas

  • situaes embaraosas registradas e, pior, publicadas. E esse o meu caso.

    Meu interesse pela parapsicologia causou a publicao, em 1953, de meu primeiro livro, dolorosamente mal-escrito. Em 1951, eu escrevera e divulgara pelo rdio duas palestras, atacando as populares apresentaes de supostos fenmenos parapsicolgicos. Isso me valeu um convite de uma editora para escrever um livro sobre o assunto e, na arrogncia da juventude, escrevi A New Approach to Psychical Research.

    O livro tanto tratava dos fatos duvidosos como dos problemas filosficos da parapsicologia. Espero que certos defeitos estilsticos desse livro me sejam perdoados, porque foram, em parte, causados pelo fato de a editora querer que fosse escrito no estilo de um ensaio frvolo. Houve, entretanto, falhas mais substanciais. No lado emprico, eu aceitava o desde ento desacreditado trabalho experimental de S. G. Soal, matemtico e pesquisador da Universidade de Londres. No lado filosfico, ainda no compreendera a total importncia, para a parapsicologia, do tipo de argumento esboado pelo filsofo escocs David Hume em Inquiry. Dcadas mais tarde, compilei uma srie de artigos em um livro que considero mais satisfatrio do que qualquer outro disponvel sobre o assunto, intitulado Readings in the Philosophical Problems of Parapsychology Em minhas contribuies para essa compilao, resumi o que aprendera, nos anos decorridos entre um livro e outro, a respeito da soluo desses problemas.

    NOVOS INTERESSESDois outros interesses filosficos surgiram dos populares

    escritos cientficos que li em minha juventude. O primeiro dizia respeito sugesto de que a biologia evolucionria poderia oferecer uma garantia de progresso, feita de maneira especialmente forte, em Essays of a Biologist, de Julian Huxley, que se dedicou a essa idia com crescente desespero pelo resto da vida. Em Time, the Refreshing River e em History Is on Our Side, Joseph Needham combinou essa sugesto com uma marxista filosofia da histria, uma doutrina sobre as leis naturais do inexorvel desenvolvimento histrico. Assim, os marxistas acreditavam que existem leis universais, como a inevitabilidade

  • da luta de classes controlando o desenvolvimento das sociedades. De certo modo, foi para refutar essa literatura que, na dcada de 1960, quando me pediram para colaborar com a srie de publicaes New Studies in Ethics, aceitei escrever um ensaio, Evolutionary Ethics. Essa tambm foi, em parte, a razo de eu escrever Darwinian Evolution, quando me convidaram para colaborar com uma srie sobre os movimentos e as idias do incio da dcada de 1980. Nesse ltimo livro, procurei demonstrar que o prestgio do darwinismo tem sido usado para sustentar outras idias e crenas sem base slida, como a idia de que a teoria de Darwin garantia de progresso humano.

    Meu segundo interesse filosfico, despertado pela popular literatura cientfica, era tentar extrair, do desenvolvimento da fsica no sculo XX, concluses do tipo do neo-berkelianismo, que pertence escola de filosofia chamada idealismo. Os idealistas acreditam que toda realidade fsica puramente mental, e que s a mente e seu contedo existem. Os principais livros sobre o assunto so os de Sir James Jeans e Sir Arthur Eddington. Foi Susan Stebbing, com seu Philosophy and the Physicists, quem me ensinou a abrir caminho para fora dessa selva.

    Anos mais tarde, em An Introduction to Western Philosophy, eu tentaria demonstrar que tal idealismo era fatal para a cincia. Citei uma passagem de Mind, Perception and Science, do ilustre neurologista ingls W. Russell Brain, adequadamente chamado de Lord Brain (Lord Crebro), que observou que os neurologistas so geralmente idealistas que acreditam que o ato de perceber um objeto apenas um acontecimento no crebro do sujeito. Tambm citei o argumento de Bertrand Russell de que "a percepo no d o conhecimento imediato de um objeto fsico". Se isso for verdade, eu disse, ento no existe percepo. E como os cientistas dependem da observao direta para a justificativa de suas descobertas, essa concluso necessariamente enfraquece as concluses das quais ela se deriva. Em resumo, essa opinio remove a base de toda a inferncia cientfica. Contra isso, argumentei que, na percepo consciente normal, tenho de ter, obrigatoriamente, uma experincia sensorial de acordo por exemplo, ouo e vejo um martelo enterrando um prego na madeira , e que, quando digo que alguma coisa foi realmente percebida, ento essa coisa, no

  • caso o martelo batendo no prego, tem de ter sido parte da causa dessa minha experincia.

    NOVOS INSIGHTS EM FILOSOFIADurante os anos em que estudei em Oxford, de 1946 a

    1950, uma nova maneira de fazer filosofia, que alguns chamavam de "revoluo", estava no apogeu. Nos meus quatro anos e meio nessa universidade dois como estudante de graduao, um de ps-graduao e um ano e meio como estagirio no Christ Church College , saturei-me com essa "nova filosofia", que seus muitos inimigos descreviam como "lingstica", ou "linguagem comum". As figuras filosficas dominantes em Oxford, naquele tempo, eram Giibert Ryle e John Austin. Como eu j disse, Ryle era meu orientador no curso de ps-graduao, mas s passei a ter mais contato com Austin depois de meu estgio em Christ Church, quando me tornei freqentador regular de suas agora famosas "discusses de manhs de sbado", que ele conduzia em seus aposentos na Oxford, para discutir o progresso da cincia.

    Essa filosofia de Oxford, das dcadas de 1940 e 1950, deu-me novos e valiosos insights que ainda hoje considero vlidos. Talvez o mais importante e de mais ampla abrangncia desses insights seja o de que devemos estar, de modo constante e lcido, conscientes de que toda filosofia como pesquisa conceitual deve preocupar-se com o uso correto das palavras. No podemos ter acesso a conceitos a no ser atravs do estudo do uso da linguagem e, assim, o uso das palavras pelas quais esses conceitos so expressos. Esse insight me lembra dos estudiosos bblicos aqueles, como j mencionei, que meu pai usou como exemplo , que estudam um determinado conceito do Velho Testamento examinando, dentro do maior nmero possvel de contextos, todos os usos disponveis da palavra hebraica mais relevante.

    Por mais empolgante que fosse, por mais que tivesse influenciado meu rumo filosfico naquele tempo, essa "nova filosofia" no era assim to nova, nem necessariamente to estreita como s vezes parecia. A "revoluo" envolvia a concentrao da ateno na gramtica conceitual, o uso de conceitos em linguagem comum, um estudo que ajudaria a

  • eliminar muitos dos aparentes problemas da filosofia. Um desses problemas era decidir se podamos alcanar conhecimento atravs da percepo do mundo "externo" logicamente pblico. Esse problema foi formulado pela primeira vez no sculo XVII por Descartes, e mais tarde aceito sem questionamento pela maioria de seus grandes sucessores, entre eles Locke, Berkeley, Hume e Kant. Essa "nova filosofia", entretanto, rejeitava esse problema de ceticismo cartesiano, rejeitando seu ponto de partida, isto , que uma pessoa era um sujeito abstrato que tinha apenas experincia privada. Essa crena estava em desarmonia com a suposio, em nossa linguagem normal, de que pela percepo que conhecemos tanto o mundo fsico, como outras pessoas. Mas, com eu disse, isso no era completamente novo. O Plato que escreveu Teaetetus e o Aristteles da tica a Nicmano se sentiriam perfeitamente vontade nos seminrios dirigidos por Ryle e Austin.

    PROGRESSO NA FILOSOFIAAntes de deixar Oxford, entreguei ao editor algum material

    para a coleo intitulada Logic and Language, volume I. O primeiro volume foi publicado em 1951, o segundo em 1953, ambos com uma breve introduo escrita por mim. Assim, logo depois de assumir meu cargo de professor na Universidade de Aberdeen, peguei-me agindo, na Esccia, como porta-voz no nomeado, mas, a despeito disso, reconhecido, da "filosofia lingstica de Oxford". Quando o Scots Philosophy Club, que reunia todos os que ensinavam filosofia na Esccia, lanou uma nova revista, The Philosophical Quarterly, uma das primeiras edies continha um ataque a essa escola de Oxford. O editor pediu-me para responder ao ataque. O resultado, Philosophy and Language, mais tarde tornou-se, em uma forma modificada, o captulo introdutrio de uma terceira coleo de artigos intitulada Essays in Conceptual Analysis. Um crtico do lado ingls, Michael Dummett, descreveu o movimento como "o culto linguagem comum" e, de modo curioso, observou que uma pessoa, para ser admitida nessa escola, "aparentemente depen-dia da indicao do professor Flew".

    Alguns praticantes da nova filosofia poucos, devo dizer devotavam-se a pesquisas triviais, esotricas e inteis. Reagi contra essa trivialidade e essa inutilidade com um artigo que

  • escrevi e li no B. Phil. Club intitulado O assunto que importa. Argumentei que tanto era possvel como desejvel nos concentrarmos em problemas que at mesmo leigos sem instruo filosfica pudessem achar interessantes e importantes, em vez de desperdiarmos tempo e esforo numa luta filosfica que era o mesmo que dar murros no ar. E disse isso sem abandonar os insights obtidos em Oxford, na verdade, me beneficiando com eles.

    Compreendi, como escreveria em An Introduction to Western Philosophy, que a filosofia pode progredir, apesar da geral falta de consenso. Essa falta de consenso, em filosofia, no , por si s, evidncia suficiente de que o assunto no faz progresso. A tentativa de mostrar que no pode haver entendimento filosfico simplesmente argumentando que sempre h algum que no se deixar convencer um engano que foi cometido at por grandes filsofos como Bertrand Russell. Chamei a isso de desculpa do tipo "mas sempre haver algum que no concordar". Depois, h o argumento de que em filosofia nunca possvel provar a uma pessoa que estamos certos e que ela est errada. Mas a pea que falta nesse argumento a distino entre produzir uma prova e convencer uma pessoa. Uma pessoa pode ser persuadida por um argumento abominvel e no se deixar convencer por um outro, perfeitamente aceitvel.

    O progresso na filosofia diferente do progresso na cincia, mas isso no significa que seja impossvel. Na filosofia, focaliza-se a natureza essencial do argumento dedutivo; faz-se a distino entre as questes sobre a validade ou invalidade de argumentos e as questes sobre a verdade ou falsidade de suas premissas ou sua concluso; indica-se o uso estrito do termo "engano" e identificam-se e elucidam-se tais enganos como uma desculpa do tipo "mas sempre haver algum que no concordar". Assim que essas coisas so alcanadas com um raciocnio melhor e mais eficincia, o progresso acontece, mesmo que o consenso e a persuaso no sejam completos.

    PRESTANDO MAIS ATENO AO ATESMOO Socratic Club de C. S. Lewis entrou em grande atividade

    durante o tempo em que a nova filosofia causou furor, e o

  • princpio socrtico, de seguir o argumento at onde ele nos levar, tornou-se um princpio orientador no desenvolvimento, refinamento e, s vezes, contrrio a minhas prprias idias filosficas. Foi tambm nas reunies do Socratic Club que os filsofos "lingsticos", acusados de banalizar uma disciplina que j fora profunda, comearam a explorar as questes que Kant to conhecidamente distinguiu como as trs maiores da filosofia: Deus, liberdade e imortalidade. Minha contribuio a essas discusses naquele frum foi um artigo intitulado Theology and Falsification.

    Como tenho dito, as razes pelas quais abracei o atesmo idade de quinze anos eram obviamente inadequadas. Foram construdas sobre o que mais tarde descrevi como "duas insistncias juvenis": 1) o problema do mal foi a refutao definitiva existncia de um Deus todo-poderoso e amoroso, e 2) a "defesa do livre-arbtrio" no eximia o Criador da responsabilidade pelos evidentes males da criao. Mas desde meu tempo de escola, eu dera muito mais ateno s razes a favor ou contrrias s concluses atestas. Meu primeiro passo nessa investigao foi Theology and Falsification.

    Esse artigo foi apresentado pela primeira vez no vero de 1950 no Socratic Club, em Oxford, e depois publicado em outubro do mesmo ano em um efmero jornal da turma de graduao chamado University. A primeira reimpresso apareceu em 1955 em New Essays in Philosophical Theology, que publiquei em conjunto com Alasdair Maclntire e que foi uma substancial coleo de contribuies filosofia da religio, do ponto de vista da nova filosofia. Na poca, o Times Literary Supplement descreveu o livro como "possuidor de uma certa pureza virginal".

    O principal objetivo de Theology and Falsification era esclarecer a natureza das afirmaes feitas por crentes religiosos. Perguntei: os processos de qualificao que cercam as hipteses filosficas so to numerosos que causam sua morte por mil qualificaes? Se fazemos uma afirmao, ela significativa apenas se exclui certas coisas. Por exemplo, a afirmao de que a Terra um globo exclui a possibilidade de ela ser plana. E, embora possa parecer plana, essa aparente contradio pode ser explicada pelo grande tamanho do planeta, pela perspectiva da qual a estamos observando, e assim por

  • diante. Ento, uma vez que acrescentamos qualificaes apropriadas, a afirmao pode ser satisfatoriamente harmoniza-da com os fenmenos que parecem contradiz-la. Mas se os fenmenos contraditrios e as qualificaes associadas continuam a multiplicar-se, a prpria afirmao torna-se suspeita.

    Se dizemos que Deus nos ama, devemos perguntar quais fenmenos essa afirmao exclui. bvio que a existncia da dor e do sofrimento emerge como um problema para tal afirmao. Os testas dizem que, com as qualificaes adequadas, pode-se conciliar esses fenmenos com a existncia e o amor de Deus. Mas, ento, surge outra questo: por que simplesmente no conclumos que Deus no nos ama? Parece que os testas no permitem que qualquer fenmeno pese contra a afirmao de que Deus nos ama. Isso significaria que nada pesa a favor tambm. Na verdade, torna-se uma afirmao vazia. Conclu que "uma boa, ousada hiptese pode ter uma morte lenta, por mil qualificaes".

    Embora minha inteno ao levantar essas questes parea clara, muitas vezes ouvi a reclamao de que eu estava expondo minhas opinies sobre a significao ou, mais freqentemente, a falta de significao de toda a linguagem religiosa. Houve tambm quem dissesse que eu estava apelando explicitamente para o notrio princpio da verificao do antigo Crculo de Viena dos positivistas lgicos, de que apenas as afirmaes que podiam ser verificadas pelo uso de mtodos cientficos eram significativas, e me apoiando nele.

    Mas o fato que eu nunca mantive nenhuma tese abrangente sobre a significao ou a falta de significao de toda a linguagem religiosa. Meu principal objetivo em Theology and Falsification era dar um pouco de sabor ao inspido dilogo entre o positivismo lgico e a religio crist, e estabelecer uma discusso entre a crena e a descrena a respeito de pontos diferentes e mais produtivos. Eu no estava oferecendo uma doutrina sobre toda a crena religiosa ou sobre toda a linguagem religiosa. No estava dizendo que as afirmaes da crena religiosa no tinham significao. Apenas desafiei os crentes religiosos a explicar como suas afirmaes deviam ser compreendidas, especialmente luz de informaes conflitantes.

  • APRENDENDO COM A DIVERGNCIAO artigo provocou numerosas reaes, algumas das quais

    apareceram dcadas mais tarde, e muitas ajudaram-me a reforar e s vezes a corrigir minhas opinies. A reao mais radical talvez tenha sido a primeira, de R. M. Hare, que mais tarde ocuparia o posto de professor de filosofia moral em Oxford. Hare sugeriu que as declaraes religiosas deviam ser interpretadas no como afirmaes, mas como expresses que chamou de "blik"', uma palavra inventada por ele algo como uma abordagem geral ou uma atitude geral. Blik, de acordo com ele, simplesmente uma interpretao de nossa experincia cuja veracidade ou falsidade no podem ser provadas. Pelo que sei, Hare nunca desenvolveu essa idia em forma impressa, mas uma que no agradaria os crentes religiosos porque nega qualquer base racional para a crena.

    Na primeira discusso sobre o artigo, Basil Mitchell, que mais tarde sucedeu C. S. Lewis na presidncia do Socratic Club, disse que havia algo estranho em minha apresentao do caso dos telogos. Declaraes teolgicas devem ser asseres e, para haver asseres, preciso que haja alguma coisa que pese contra sua verdade. Ele salientou que os telogos no negam isso, que o problema teolgico do mal surgiu precisamente porque a existncia da dor parece pesar contra a verdade de que Deus ama a humanidade. A resposta deles tem sido a defesa do livre-arbtrio. Mas Mitchell admitiu que os crentes religiosos sempre correm o perigo de converter suas asseres em frmulas vazias de significado.

    No Faith and Logic de Mitchell, o filsofo I. M. Crombie, conhecido por sua obra sobre Plato, tratou o assunto de modo muito mais extenso. Testas acreditam num mistrio alm da experincia, disse Crombie, mas acrescentando que detectava traos