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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano , V. 17, p. 209 – 233, jan./jun. 2001. 209 UM CONCEITO OPERACIONAL DE MINORIAS* Raul Di Sergi Baylão Bacharel em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia, Bacharel em Direito e Espe- cialista em Direitos Humanos O termo minorias é conceituado na literatura jurídica e das Ciências Sociais de formas muito distintas, em conformidade com a filiação teórica dos autores e dos objetivos que eles pretendem atingir em suas obras. Po- rém, não nos deparamos aqui com um caso especial. Pelo contrário, nas assim chamadas ciências humanas raramente ocorre que uma expressão, designadora de um fenômeno considerado relevante pelos estudiosos, ve- nha a possuir um conteúdo semântico único e incontroverso. Dessa forma, sentimo-nos à vontade para construir um novo conceito de minorias cuja pretensão, ao lado de suas possíveis conseqüências teóricas, é servir direta- mente ao operador jurídico que se veja, no exercício de suas funções, dian- te de questões que digam respeito a grupos minoritários. Daí o título deste artigo. Assim, tal construção pretende apresentar, como seu produto final, um conceito de minorias que seja, por si, aplicável juridicamente. Em ou- tras palavras, um conceito que, ao referir-se a um caso concreto, implique na necessidade de uma solução jurídica. É o que veremos a seguir. 1. ORDEM VERSUS CONFLITO 1.1 A história do pensamento da civilização ocidental é comumente descrita como uma complexa mistura entre a filosofia clássica * O presente trabalho é parte da monografia final do I Curso de Especialização em Direitos Humanos, promovido pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Uni- versidade de Brasília e University of Essex, intitulada Direitos culturais coletivos: sua aplicação às co- munidades camponesas, do mesmo autor, 1º/2000.

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UM CONCEITO OPERACIONAL DE MINORIAS *

Raul Di Sergi BaylãoBacharel em Ciências Sociais com Habilitaçãoem Antropologia, Bacharel em Direito e Espe-cialista em Direitos Humanos

O termo minorias é conceituado na literatura jurídica e das CiênciasSociais de formas muito distintas, em conformidade com a filiação teóricados autores e dos objetivos que eles pretendem atingir em suas obras. Po-rém, não nos deparamos aqui com um caso especial. Pelo contrário, nasassim chamadas ciências humanas raramente ocorre que uma expressão,designadora de um fenômeno considerado relevante pelos estudiosos, ve-nha a possuir um conteúdo semântico único e incontroverso. Dessa forma,sentimo-nos à vontade para construir um novo conceito de minorias cujapretensão, ao lado de suas possíveis conseqüências teóricas, é servir direta-mente ao operador jurídico que se veja, no exercício de suas funções, dian-te de questões que digam respeito a grupos minoritários. Daí o título desteartigo.

Assim, tal construção pretende apresentar, como seu produto final,um conceito de minorias que seja, por si, aplicável juridicamente. Em ou-tras palavras, um conceito que, ao referir-se a um caso concreto, impliquena necessidade de uma solução jurídica. É o que veremos a seguir.

1. ORDEM VERSUS CONFLITO

1.1 A história do pensamento da civilização ocidental écomumente descrita como uma complexa mistura entre a filosofia clássica

* O presente trabalho é parte da monografia final do I Curso de Especialização em Direitos Humanos,promovido pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Uni-versidade de Brasília e University of Essex, intitulada Direitos culturais coletivos: sua aplicação às co-munidades camponesas, do mesmo autor, 1º/2000.

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grega, desenvolvida entre o séc. VI a.C. até aproximadamente o séc. IId.C., e elementos do judaísmo, incorporados a nossa tradição por via docristianismo. Assim, a filosofia grega – os filósofos pré-socráticos e, prin-cipalmente, Platão e Aristóteles – forneceu as matrizes das quais se nutre onosso pensamento especulativo. Um grande número de questões levanta-das por aqueles pensadores desafia, ainda hoje, o nosso intelecto, e, maisimportante, certas formulações desenvolvidas por eles continuam a nortearnossas indagações e delimitar as nossas formas de pensar.

Um desses casos, de extrema importância para as nossas teorias dasociedade, foi a discussão filosófica entre Parmênides de Eléia e Heráclitode Éfeso, e seus seguidores, no contexto da questão da natureza, isto é, doprincípio gerador de todas as coisas, do processo de formação e de ordemdo cosmos, do ciclo de gerações e dissoluções da realidade universal1 . Aessência do ser, ou seja, aquilo que subjaz a todas as coisas, é definidoantiteticamente por esses dois grandes filósofos. Heráclito2 acredita que arealidade do ser dá-se como desdobramento de opostos e harmonia de con-trários, o ser é fluxo incessante: “Tudo o que é contrário se concilia e dascousas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo é gerado por via decontraste.” Ele é considerado o fundador da dialética na tradição ocidentale é muito conhecido o seu dito de que não nos banhamos duas vezes naságuas do mesmo rio. Parmênides3 , por sua vez, pensa o ser como algoimutável, imóvel e completo em si mesmo:

“Além disso, é imóvel nos confins dos vínculos potente, semprincípio nem fim, pois o nascimento e a destruição têm sidorepelidos para bem longe, e a convicção verídica os tem recusa-do. E é sempre idêntico e, permanecendo no mesmo lugar, jazem si mesmo, e assim permanece sempre, constantemente, noseu lugar, pois uma rigorosa necessidade o conserva nos liamesdo limite, que o mantém firme por todas as partes”.

Essa discussão filosófica, tão abstrata e distante da vida concreta doshomens, à primeira vista, mostra-se, no entanto, de uma importância fun-

1 MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. 3. ed. São Paulo: Editora Mestre Jou. 1971, t.I, p. 31.2 MONDOLFO, op. cit., p. 47-49.3 MONDOLFO, op. cit., p. 85.

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damental para a vida desses mesmos homens, quando nos damos conta deque essas duas visões, a de um universo baseado, em última instância, emuma ordem imutável, e a de um universo cuja harmonia constrói-se a partirde elementos em perpétuo conflito, traçam os limites entre os quais serãoconstruídas as cosmovisões que se seguirão e, conseqüentemente, as teori-as da sociedade delas derivadas.

A história das idéias sobre a sociedade mostra, até o século XIX, umapredominância absoluta das teorias da ordem que, principalmente desdePlatão, assumem uma forma funcional, em que é recorrente a analogia comos organismos vivos e a necessidade de harmonia entre as suas partes, vi-sando, sempre, à conservação da forma que ela assume naquele momentohistórico. As teorias do conflito somente emergem com autoridade no sé-culo passado, com a obra de Karl Marx, e, a partir de então, vão repartircom as teorias da ordem a preferência dos estudiosos e teóricos das Ciênci-as Sociais, na busca do melhor instrumento para descrever e explicar associedades humanas.

1.2 O ponto básico é que essas duas visões dão origem a duasdistintas perspectivas, isto é, duas diferentes maneiras de se aproximar deuma questão ou de um problema. De uma forma mais rigorosa, o termo“perspectiva” pode ser descrito, quando aplicado à Sociologia, como umacomposição de três elementos4 :

1) uma abordagem sobre um tópico que determina o tipo de questõesque serão feitas sobre ele;

2) uma teoria, ou um conjunto de teorias, descrevendo o que se acre-dita ser a realidade daquele tópico, e

3) valores, explicitados ou não, concernentes a questões potencial-mente controvertidas relacionados com o tópico.

4 FARLEY, John E. Majority-minority relations. 3.ed. New Jersey : Prentice-Hall, Inc. 1995, p. 58. (Tradu-ção do autor).

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A perspectiva da ordem – também chamada de perspectivafuncionalista, estrutural funcionalismo, teoria do consenso, teoria do equi-líbrio ou teoria sistêmica – deve muito às teorias de Emile Durkheim, tendosido posteriormente desenvolvida por Talcott Parsons e numerosos outrossociólogos contemporâneos. Essa perspectiva, tal como a outra, não deveser vista como uma única, clara e unificada teoria, mas como um conjuntode teorias relacionadas que partilham certas premissas em comum, e quesão as seguintes5 :

1) a sociedade constitui-se de um determinado número de partesinterdependentes. Seu funcionamento depende da operação e coordenaçãodesses segmentos interdependentes. Por essa dependência, uma mudançaem qualquer ponto da sociedade terá impactos em outros lugares. Isso éespecialmente verdadeiro nas grandes, complexas e especializadas socie-dades modernas;

2) cada elemento da sociedade exerce alguma função para o sistemasocial: de alguma forma, eles respondem a alguma necessidade ou ofere-cem alguma contribuição para o funcionamento do sistema ou para mantê-lo coeso. Uma noção, que freqüentemente aparece de forma implícita, éque a sociedade usualmente tende a trabalhar para o maior benefício domaior número dos seus membros;

3) as sociedades tendem para a estabilidade e para o equilíbrio. Esseé o caso porque cada uma de suas partes está executando uma função (fa-zendo uma contribuição para o todo) e está inter-relacionada com as outraspartes. Uma mudança drástica em algum lugar seria usualmente disfuncionalpara o sistema como um todo (impedindo-o de prover suas necessidadesbásicas);

4) a sociedade tende para o consenso, ao menos com relação a certosvalores básicos. Esse consenso é necessário para a cooperação, a qual, porsua vez, é necessária porque as pessoas e grupos no sistema social depen-dem uns dos outros para prover suas necessidades básicas, e

5 FARLEY, op. cit., p. 60.

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5) consenso e estabilidade são desejáveis na sociedade (um julga-mento de valor), porque eles facilitam a cooperação necessária para proveras necessidades do indivíduos, dos grupos e do sistema como um todo.

A perspectiva do conflito, como dito acima, encontra sua formulaçãomoderna a partir dos trabalhos de Marx e continua sendo elaborada porsociólogos modernos como, por exemplo, C. Wright Mills, Ralf Dahrendorf,Jürgen Habermas e Robert Kurz. As premissas que caracterizam essa abor-dagem são as seguintes:

1) as sociedades tendem, naturalmente, para o conflito, isto é, estefaz parte de suas estruturas. Isto acontece porque recursos e poder são dis-tribuídos desigualmente, o que implica no fato de os diferentes grupos so-ciais terem interesses diversos e conflitantes;

2) porque os grupos que competem têm forças políticas diferencia-das, um grupo torna-se o dominante. Este grupo usa seu poder para quetodos, ou a maioria dos aspectos da estrutura social operem em seu benefí-cio. Como resultado, este grupo (normalmente pequeno com relação aotamanho total da população) controla uma parte desproporcional dos recur-sos tais como a riqueza ou o status social;

3) quando o consenso aparece na sociedade, ele é artificial e é poucoprovável que seja de longa duração. As causas usuais desse aparente con-senso são a coerção e a repressão exercidas pelo grupo dominante ou umaaceitação pelos grupos dominados de ideologias que não refletem seus in-teresses. Esse último fator ocorre quando os grupos dominantes exercemforte controle sobre as fontes de influência e formação da opinião pública.Em qualquer caso, falta estabilidade a esse consenso e ele não deve durarmuito, e

4) o conflito, e sua exteriorização, é desejável na sociedade, pois eletorna possível as mudanças sociais que podem levar a uma distribuiçãomais eqüitativa de riquezas e poder.

1.3 As teorias que tratam do tema dos fundamentos do Direitonas sociedades modernas, como não poderia deixar de ser, encontram-se,

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também, marcadas por essa divisão. Dessas fundamentações deriva-se sem-pre, explícita ou implicitamente, um telos acoplado ao sistema jurídico eque lhe confere um determinado papel no sistema social. Dessa forma,deparamo-nos com um amplo espectro de teorias, traduzindo diversas vi-sões do mundo, que vão desde aquelas que vêem no Direito um sistema denormas que objetivam, pura e simplesmente, a manutenção da ordem soci-al, quanto aquelas que acreditam que o espaço da juridicidade guarda auto-nomia suficiente para servir de instrumento para mudanças sociais.

2. SOCIEDADE E DIREITO NA OBRA DE HABERMAS

O nome de Jürgen Habermas está intimamente associado ao da Esco-la de Frankfurt. Com a morte dos seus fundadores – em especial, Adorno,Horkheimer e Marcuse – Habermas é considerado o último representanteda teoria crítica da sociedade. Nessa perspectiva, ele se filia, também, àvertente sociológica que definimos anteriormente como a perspectiva doconflito. Segundo ele, as sociedades modernas, devido ao elevado grau detensão entre a facticidade e a validade de seus sistemas normativos, carac-terizam-se como locais permanentes de conflitos, os quais devem ser solu-cionados não através do apelo a uma estabilização garantida por meios co-ercitivos, mas por uma permanente abertura para a mudança. Usando umaanalogia lingüística, pode-se dizer que, em sua teoria da sociedade, os con-flitos não são entendidos como meros “ruídos de comunicação”; pelo con-trário, são considerados elementos constitutivos dos próprios atos de co-municação.

Na evolução do pensamento habermasiano, considerado aqui o perí-odo entre as suas obras Teoria da ação comunicativa (1981) e Direito edemocracia: entre facticidade e validade (1992), o conceito de Direito pas-sa de um tema marginal para uma posição absolutamente central na teoriado discurso, o que não se apresenta como uma simples mudança de opção,mas implica numa reviravolta no modo de articular a fundamentação do

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Direito6 . Em seus trabalhos anteriores, e até a Teoria da ação comunicati-va, a medida de legitimidade do Direito, ou sua fundamentação, resolvia-sepor intermédio do apelo a uma esfera moral, à qual as questões jurídicasestariam submetidas. O problema seria então descobrir os fundamentos ra-cionais para as questões morais. Tal interpretação, todavia, sucumbiu dadaa sua percepção posterior da impossibilidade da moral em realizar satisfa-toriamente as tarefas de integração social7 .

Assim, em Direito e democracia: entre facticidade e validade,Habermas vai rejeitar aquela relação de dependência em favor de uma rela-ção de co-originaridade, em que o Direito passa a assumir o papel principalna resolução dos problemas de integração social. Nessa perspectiva, quaisserão as novas bases legitimadoras do Direito? Para responder a essa per-gunta, Habermas desenvolve nessa obra uma teoria discursiva do direito,na qual são expostas suas idéias a respeito do papel do Direito nas socieda-des modernas e das condições necessárias para que o seu papel normativoseja cumprido legitimamente.

Nesse percurso, interessa-nos, para o momento, a distinção entre açãocomunicativa e ação estratégica. A ação comunicativa seria aquela queprocura o entendimento mútuo, baseado em uma racionalidade discursivagarantida, por sua vez, pelas condições do que ele chama de situação lin-güística ideal. Porém, na medida em que a sociedade atual incorpora rela-ções de violência, a resolução de conflitos não pode se restringir a essamoldura discursiva. Ao lado da ação comunicativa, a ação estratégica con-tinua sendo necessária: aquela que visa, não ao entendimento mútuo, mas àcompetição pelo poder, travada entre grupos cujos interesses são tão anta-gônicos que não existem as condições mínimas para uma tematizaçãodiscursiva. No entanto, ações desse tipo devem ter como objetivo tendencialo advento de um estado de coisas em que todos os interessados possam,finalmente, participar de contextos discursivos.

6 MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos Livraria eEditora, 1999, p. 190.

7 MOREIRA, op. cit., p. 191.

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No entanto, não cabe nos limites deste artigo um aprofundamentomaior nas idéias habermasianas. Essa brevíssima incursão em seu pensa-mento tem, porém, a finalidade de demarcar o campo teórico que subjazaos conceitos que serão expostos a seguir.

3. MINORIAS

3.1. VIOLÊNCIA E OPRESSÃO

Como foi dito acima, as relações sociais podem estabelecer-se tendocomo base tanto as ações comunicativas, aquelas voltadas para o entendi-mento racional, quanto as ações estratégicas, que visam à competição pelopoder. Estas últimas, quando têm como objetivo último a satisfação dosinteresses de indivíduos ou de grupos particulares, devem ser coibidas pormeio da criação de normas jurídicas, que estabeleçam sanções para aquelesque delas se utilizarem, pois esse tipo de ação implica, quando de sua rea-lização, no estabelecimento de relações de violência entre os atores quedelas participam. No entanto, as relações de violência são uma constantenas sociedades modernas, ocorrendo não só nos interstícios do sistemanormativo, mas, também, em situações de existência de normas, o que sedeve à presença, nessas sociedades, de uma grande assimetria nas relaçõesde poder entre indivíduos e grupos sociais distintos. Como o sistema jurídi-co não é mais que um subsistema social, ele também é perpassado por essasrelações de poder, o que torna muitas vezes inefetiva a normatividade jurí-dica que proscreve determinadas ações.

Pode-se, então, agora, definir o que são essas relações de violênciacomo toda e qualquer relação social caracterizada pela imposição realizadapor um indivíduo ou grupo social a outro indivíduo ou grupo social contraa sua vontade ou natureza8 . Elas podem ser divididas em três tipos básicos:

8 VIANA, Nildo. Violência, conflito e controle. In: OLIVEIRA, Dijaci D. de et al. (orgs.). “50 anos depois:relações sociais e grupos socialmente segregados. Brasília. Movimento Nacional de Direitos Humanos”.1999. p. 224.

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1) violência econômica: aquela que visa à imposição de uma transfe-rência injustificada de valores econômicos, seja através da exploração dire-ta da força de trabalho, seja por meio da depreciação impositiva de bensdestinados ao mercado, ou por outro mecanismo qualquer de transferênciade renda;

2) violência simbólica: consiste na imposição de valores culturais eideológicos, o que pode acontecer tanto na forma de uma sutil dominaçãocultural e ideológica, quanto tomar a forma mais agressiva do preconcei-to, e

3) violência material: é a violência em sentido estrito, que se baseiana imposição da vontade pela ameaça ou pelo próprio uso da força física.

Essas relações, contudo, podem se estabelecer de muitas maneiras.Por exemplo, uma situação em que um indivíduo obriga outro, por inter-médio da ameaça do uso da força física, a lhe ceder o lugar em uma fila,caracteriza uma relação de violência. Outra situação, em que pessoas sãoexpulsas do local onde moravam há gerações por um indivíduo que preten-de deter os direitos de propriedade daquele lugar, caracteriza outro tipo derelação de violência. E os exemplos seriam enumeráveis. Porém, uma dis-tinção interessa: é aquela existente entre as relações que ocorrem fora oudentro da legalidade existente, de uma forma quase que institucionalizada,e aquelas que se dão de forma eventual, circunstante. Assim, ocorrem rela-ções sociais de violência que, ao se originarem das relações entre indivídu-os ou grupos entre os quais existe um grande desequilíbrio com relação àssuas possibilidades de acessarem com êxito as fontes do poder, adquiremum caráter de permanência e tendem a se perpetuar, mantidas as mesmascondições sociais que lhes deram origem. Dessa forma, queda caracteriza-do o fenômeno da opressão: a existência de relações de violência que, ocor-rendo dentro de um quadro de assimetria de poder entre os seus atores,tornam-se recorrentes e tendem a se perpetuar caso se mantenham as con-dições das quais elas se originaram.

Dada a extrema complexidade das relações sociais nas sociedadesmodernas, é evidente a dificuldade que se tem em descrever a priori as

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condições gerais que tornam possível a ocorrência da opressão. No en-tanto, esse conceito torna-se de fácil operacionalização quando aplicadoà análise de casos concretos, principalmente quando se atenta para as suasconseqüências, que são a subordinação – e em casos extremos a exclusão– social, econômica, cultural e/ou política do indivíduo ou grupo oprimi-do.

3.2 GRUPOS SOCIALMENTE OPRIMIDOS

Definida como uma relação, a opressão descreve uma interação entredois sujeitos, dos quais um é o oprimido e o outro é o opressor. Como setrata de uma relação condicionada por uma estrutura social que existeconcretamente em um determinado local e num dado momento histórico,chamar-se-á aos grupos que se encontram na situação de subordinação degrupos socialmente oprimidos. Nesse sentido, o termo “socialmente” re-afirma a idéia de que tais relações não dizem respeito à permanência doque é ontológico, mas à transitoriedade do que é social e, portanto, histó-rico.

Os grupos socialmente oprimidos, conceito importante enquanto ca-tegoria analítica, podem ser divididos em dois outros grandes grupos que,estes sim, trazem em si uma grande importância enquanto conceitosoperacionais. Tal divisão leva em conta a medida do envolvimento dessesgrupos com a totalidade do sistema social, isto é, em que sentido eles sãoessenciais para a caracterização e manutenção das estruturas mais profun-das daquela formação social em particular. E como uma hipotética resolu-ção dos conflitos concernentes aos diferentes grupos afetaria os fundamen-tos dessa formação social. Assim, obtém-se os dois seguintes grupos: asclasses sociais subordinadas e as minorias.

As classes sociais subordinadas são aqueles grupos sociais cuja exis-tência é parte constituinte da estrutura das sociedades modernas e a soluçãopara o problema de sua opressão pelas classes sociais dominantes passa poruma transformação radical da estrutura social. As relações de classe sãoobjetos de estudo de uma tradição teórica que se inicia com Marx, e não seincluem nos limites deste trabalho.

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As minorias, por seu lado, abrigam aqueles grupos socialmente opri-midos, para os quais a eliminação das relações de violência a que estãosubmetidos não implica, necessariamente, em uma transformação que trans-borde os limites estruturais da ordem sócio-econômica vigente. A essênciada definição, como veremos adiante, é uma relação de opressão que temcomo causa primeira um fenômeno específico, distinto da existência deuma sociedade de classes. Em outras palavras, a relação oprimido/opres-sor, ainda que guardando uma similaridade com a estrutura de opressãocaracterística das sociedade de classes, deve o seu aparecimento a outrosfatores que não a existência daquelas classes: os grupos minoritários sãodistintos das classes sociais subordinadas das sociedades modernas. Passa-se então à sua caracterização.

3.3 MINORIAS

Nas sociedades humanas, os indivíduos podem ser descritos comoelementos resultantes de uma intersecção de inúmeros conjuntos, cadaqual com uma característica definidora. Assim, um ser humano específi-co poderia ser inteiramente caracterizado pela sua inserção em um núme-ro suficiente de conjuntos. Por exemplo: sexo feminino, brasileira, pro-fessora, moradora de Brasília, católica, casada, mãe, sindicalizada, trintae dois anos, cabelos negros, apêndice extraído etc., até que se alcance onúmero de características necessárias para definir aquele indivíduo emparticular.

Desta forma, cada indivíduo insere-se em um número infindável deconjuntos, o que torna possível a definição de qualquer ser humano comopertencente a uma minoria qualquer, desde que esse conceito tenha comofundamento a comparação numérica entre conjuntos. No entanto, a inser-ção em muitos desses conjuntos não traz ao indivíduo nenhuma vantagemou desvantagem na vida social. Como conseqüência, são sociologicamenteirrelevantes. O que interessa ao conhecimento sociológico é a identificaçãoe o exame daqueles grupos que conferem aos seus integrantes um handicap,positivo ou negativo, e que se encontram em oposição a outros grupos quetomam, então, o sinal oposto sob a luz de uma determinada relação.

O conceito de minoria que será desenvolvido aqui, como se infere

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das seções anteriores, não é numérico, ou seja, não pretende revelar umarelação numérica entre o número de elementos de grupos de uma dada so-ciedade; pelo contrário, em muitos casos os grupos considerados minoritáriospoderão constituir-se em uma maioria numérica. A definição baseia-se,então, nas relações de violência econômica, simbólica e material que seestabelecem, historicamente, entre dois grupos, relações estas que caracte-rizarão a opressão de um grupo por outro. Assim, os termos “maioria” e“minoria” descrevem, em última análise, uma situação de distribuição de-sigual de poder político entre grupos sociais distintos que coexistem dentrode uma mesma unidade política – um país ou uma parte de um país.

Mais especificamente, uma minoria é um grupo que, dentro de umadeterminada estrutura social, se distingue de um outro grupo por diferençasde língua, costumes, organização social, etnia, sexo, religião, etc. (seja umou uma combinação destes fatores). Esta distinção original é a causa, pormotivos que variam em cada caso, de sua posição subordinada dentro deuma estrutura de poder que produz sempre o mesmo efeito: a sua exclusão,total ou parcial, da participação na vida social, a sua exploração econômicapelo grupo opressor e o fato de serem objeto de preconceito e discrimina-ção. Ao termo mais geral – minoria – se acrescenta um adjetivo correspon-dente a essa distinção original e temos então minorias étnicas, religiosas,de gênero, raciais, etc.

Secundariamente, outras características gerais definidoras de umaminoria podem se fazer presentes: tratamento ou status diferenciado, im-posto pelo grupo dominante, e a manutenção de limites – inclusivos, exclu-sivos ou ambos – que mantêm o grupo separado dos demais.

O fenômeno das minorias é próprio de sociedades complexas – quese constituem politicamente, na atualidade, sob a forma do Estado-nação –caracterizadas pela existência de um elevado grau de diferenciação social,cujas causas tanto podem se dever ao desenvolvimento interno de uma in-tensa divisão do trabalho social, com todas as suas conseqüências, ou afatores históricos que condicionam sua formação, ou à presença desses doiselementos. No primeiro caso, temos uma sociedade original que, devido aum processo de mudança social diferencia-se de forma a gerar o apareci-

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mento de novos papéis sociais, de novas relações de poder entre seus mem-bros, sejam elas relações de classe, de gênero, de idade, ou outras quais-quer. O importante é que esses novos papéis são, todos eles, parte integran-te da nova configuração social, que não pode eliminá-los pelo risco do seupróprio desaparecimento. Com relação ao segundo caso, queremos descre-ver as formas de constituição de uma sociedade política que, ou se originacomo uma união, forçada ou espontânea, de sociedades já existentes e dife-renciadas, seja por fatores étnicos, religiosos, lingüísticos etc., ou, no trans-correr do seu desenvolvimento histórico, vê o surgimento de novos grupossociais, tão diferenciados que quase se constituem em novas sociedades.Nesses casos, as relações de violência, dando-se entre duas formações so-ciais que poderiam, na maioria dos casos, subsistirem independentementeuma da outra, podem, no seu limite, chegar à exclusão, física ou cultural,da parte mais fraca. Em qualquer de suas formas, esse processo conduz,sempre, à constituição de um grupo hegemônico, o qual define as caracte-rísticas sociais, econômicas e culturais dominantes, e as conseqüentes for-mações sociais subordinadas.

Na formação do Estado brasileiro, por exemplo, tem-se a dupla ocor-rência das situações consideradas acima:

1) uma união forçada de sociedades originalmente diferenciadas: aspopulações pré-colombianas, o elemento europeu, que se tornou dominan-te, e o elemento africano; e

2) uma evolução no tempo que, como será mostrado adiante, ocasio-nou o surgimento do que definimos, seguindo Redfield, como “sociedades-parciais”.

Iremos, então, fazer uma distinção, no interior do conceito de “mino-rias”, entre grupos socialmente vulneráveis e grupos socialmente ameaça-dos, isto é, entre os grupos minoritários cuja situação na estrutura dasociedade política pode, em uma situação limite, permitir a sua exclusãofísica ou cultural e os que não estão submetidos a essa ameaça. Àquelesque são parte estrutural da formação social dominante e cuja exclusão ame-açaria a existência da própria sociedade, chamaremos de socialmente vul-

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neráveis; os que, por se constituírem de forma marginal à formação socialdominante, correm o risco de serem eliminados, física ou culturalmente, dasociedade política, denominaremos de socialmente ameaçados.

Ambos os grupos dividem-se, por sua vez, em subgrupos que são,eles próprios, as minorias que tratamos de forma concreta, isto é, aquelasque têm não somente uma existência conceitual, mas que se constituem dosatores que, no mundo real, sofrem os efeitos de todas as formas de opressãoexistentes nas sociedades humanas. Essa divisão, que será apresentada aseguir, não pretende ser exaustiva; como se trata de um aspecto da realidadesocial, novas relações de violência podem surgir, ou, se já existentes, vir a seridentificadas e, conseqüentemente, novas minorias virão à luz.

3.4 GRUPOS SOCIALMENTE VULNERÁVEIS

Os grupos socialmente vulneráveis sofrem os efeitos de relações deviolência que se estabelecem a partir do momento em que uma determina-da característica, partilhada por seus membros, é tomada como negativapelo grupo que se lhes opõe. O grupo dominante naquela relação, a partir,evidentemente, de uma posição fática inicial de força, retira efeitos práti-cos – a realização de seus interesses particulares – de sua própria constru-ção ideológica, dado que esta se dá em um nível simbólico e com o objetivode mascarar a experiência concreta da dominação.

Os grupos socialmente vulneráveis podem, então, ser classificados em:

1) minorias de gênero: a característica relacionada é o sexo e o grupooprimido são as mulheres;

2) minorias etárias: a característica relacionada é a faixa etária e osgrupos oprimidos são as crianças, os adolescentes e os idosos;

3) minorias raciais: a característica relacionada são os sinaisfenotípicos dos indivíduos dos grupos. No Brasil, a opressão racial dirige-se contra os negros;

4) pessoas portadoras de deficiência: a característica relacionada é

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qualquer deficiência física ou mental e os grupos oprimidos são os indiví-duos portadores dessas deficiências;

5) homossexuais: a característica relacionada é a orientação sexual eos grupos oprimidos são os homossexuais do sexo masculino e do sexofeminino;

6) pessoas portadoras de doenças: a característica relacionada é a ocor-rência de doenças estigmatizadas socialmente, como, por exemplo, a leprae a AIDS; os grupos oprimidos são os portadores de tais doenças;

7) minorias religiosas: a característica relacionada é a profissão de féreligiosa e os grupos oprimidos são os seguidores de uma determinada religião.

3.5 GRUPOS SOCIALMENTE AMEAÇADOS

As relações de violência que incidem sobre esses grupos têm suaorigem na própria situação de alteridade em que eles se encontram frente àformação social dominante. Referidos por esta como marginais, periféri-cos, arcaicos, atrasados, eles são vistos como “o outro”: confusos, estra-nhos e, se não perigosos, um obstáculo a ser afastado. Assim, as constru-ções ideológicas do grupo dominante são muito mais complexas e difíceisde serem desconstruídas, o que torna a opressão, muitas vezes, dificilmenteperceptível, mesmo para os indivíduos que a sofrem.

A complexidade dessa situação e sua importância para este trabalhoexigem que a descrição dos seus subgrupos seja feita de uma forma maisaprofundada e abrangente. É o que será feito a seguir.

3.6 GRUPOS SOCIALMENTE AMEAÇADOS: MINORIASÉTNICAS

Se é fácil definir conceitualmente vários tipos de minorias, certamenteisso não se aplica ao conceito de minoria étnica, baseado que está no con-troverso conceito de etnia, que tem sido um termo dos mais usados no con-texto das ciências sociais, mas, inexplicavelmente, ou por causa de sua

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ambigüidade mesma, nunca recebeu uma conceituação mais elaborada.

O termo “etnia” é empregado, em geral, na literatura antropológicapara designar um grupo social que se diferencia, em determinadas condi-ções, de outros grupos por sua especificidade cultural, sendo usado, emmuitos casos, como sinônimo de “grupo étnico”.

Para muitas pessoas, entretanto, a noção de etnia supõe uma basebiológica, isto é, um grupo com características raciais próprias. Atualmen-te, porém, o termo “raça” foi eliminado do vocabulário das ciências sociaispor seu conteúdo biológico. Isso ocorreu, a princípio, muito mais por ra-zões de ordem ética e política do que científica: os excessos do racismo quecontaminaram o conceito científico de raça9 . Nos últimos anos, porém,estudos realizados sobre a diversidade gênica de populações de várias par-tes do mundo, retiraram deste conceito também os seus fundamentospretensamente científicos. Assim, etnia tem uma base social e cultural e, talcomo grupo étnico, não comporta uma definição fundamentada em carac-terísticas físicas.

Uma definição de grupo étnico deve incluir dois aspectos importan-tes: é um grupo cujos membros possuem uma identidade distintiva atribu-ída, e sua distintividade como grupo quase sempre tem por base uma cultu-ra, origem e história comuns. Nos estudos mais recentes, o principal crité-rio para a definição de um grupo étnico é a identidade étnica, calcada, porsua vez, na noção de etnicidade, que pode ser definida objetivamente comoa condição de pertencer a um grupo étnico. A etnicidade reflete as tendên-cias positivas de identificação e inclusão num grupo étnico, sendo possívelvê-la como uma qualidade da qual se participa, e que expressa a ênfase naatribuição de membro do grupo étnico. Qualquer que seja, porém, o con-ceito de grupo étnico, sempre se pressupõe a existência de um grupo quefaz parte de uma população maior, interagindo com pessoas de outras cole-tividades dentro de um sistema social envolvente. Etnicidade, portanto, supõe

9 BOURDON, Raymond, BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de Sociologia. São Paulo : Ed.Ática S.A., 1993. p. 436.

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a interação de grupos étnicos diferentes num contexto social comum. O usodo conceito não teria sentido nos casos em que as diferenças étnicas nãotêm importância. As diferenças entre chineses e indianos, consideradasdentro de seus respectivos países, são nacionais e não étnicas. Mas quandogrupos de imigrantes chineses e indianos interagem numa terra estrangeiracomo chineses e indianos, podem ser referidos como grupos étnicos.Etnicidade é essencialmente uma forma de interação de grupos culturaisque operam num contexto social comum10.

Um outro ponto de vista, é aquele que pode ser resumido pela defini-ção de Breton11, segundo a qual o grupo étnico se define como um grupo deindivíduos unidos por um complexo de caracteres comuns – antropológi-cos, lingüísticos, político-históricos etc. – cuja associação constitui um sis-tema próprio, uma estrutura essencialmente cultural: uma cultura. Nesteaspecto, o grupo étnico é a comunidade unida por uma cultura particular.

Seja qual for a definição considerada, pode-se citar, no Brasil, comoexemplos de minorias étnicas, as populações pré-colombianas, ou seja, ospovos indígenas e as comunidade ciganas. As comunidades camponesasnão compartilham daquela autonomia cultural, em sentido amplo, caracte-rística dos grupos étnicos. Como se procurará mostrar, quando de sua defi-nição, as comunidades camponesas repartem com as formações sociaisdominantes uma base cultural comum – como, por exemplo, a língua –tendo sofrido, apenas, um processo de diferenciação que as coloca na con-dição de sociedades-parciais.

Usam-se, também, as expressões minorias nacionais e minorias lin-güísticas, com o mesmo significado.

3.7 GRUPOS SOCIALMENTE AMEAÇADOS: MINORIAS LOCAIS

10 BOURDON, Raymond, BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de Sociologia. São Paulo : Ed.Ática S.A., 1993. p. 530.

11 BRETON, Roland J.L. Las etnias. Barcelona : Oikos-Tau, S.A., 1983. p. 12-13.

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3.7.1 POPULAÇÕES TRADICIONAIS E COMUNIDADESCAMPONESAS: ALGUMAS DEFINIÇÕES

I - INTRODUÇÃO

Os Estados modernos apresentam-se sob uma grande diversidade deformas de organização política, econômica e social. Apesar de todos teremse constituído tendo em vista um mesmo modelo, o Estado-nação, a tradu-ção desse conceito, sob o influxo das tradições culturais mais diversas, ge-rou uma infinidade de relações diferenciadas entre os seus elementos prin-cipais: povo, território e governo. A história – longa, complexa e contro-versa – desses processos não interessa aos propósitos deste trabalho, massim o fato de que essa diversidade guarda uma característica em comum: acomplexidade dos seus sistemas sociais. Isso significa que as sociedadescontemporâneas manifestam um alto grau de diferenciação social, econô-mica e cultural, apresentando-se, quase sempre, clivadas por divisões entreclasses sociais, etnias, grupos nacionais, grupos religiosos, etc.

A sociedade brasileira não foge a esse padrão. Na exposição que sesegue, será caracterizado um tipo especial de diferenciação, que ocorre noBrasil, o qual diz respeito à coexistência, em uma sociedade política, degrupos sociais, que, apesar de terem uma mesma origem, a ocupação euro-péia do território que hoje é o Brasil, desenvolveram-se de maneira diversae apresentam relações muito especiais entre si.

II - POPULAÇÕES TRADICIONAIS

A expressão populações tradicionais refere-se aos grupospopulacionais existentes, presentemente, em alguns Estados nacionais, quese caracterizam por possuir um modo de produção diferente do modo deprodução capitalista, dominante nas sociedades nacionais modernas. Taisgrupos participam, de forma marginal, de um sistema econômico maisamplo, seja ele local ou nacional, enquanto produtores de mercadorias mas,e isto é fundamental, não produzem somente mercadorias. Parte expressivade sua produção destina-se a seu auto-consumo ou, em outras palavras,

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destina-se a sua subsistência. Os excedentes de sua produção que levamao mercado, ou, em alguns casos, produção realizada já com vistas aomercado, têm como objetivo suprir sua demanda por bens que não podemproduzir.

Além dessas características econômicas, as populações tradicionaisdistinguem-se também, tanto entre si quanto da população do resto do país,por desenvolverem organizações sociais próprias e por uma produção cul-tural distintiva de cada grupo. Assim, elas não são um todo homogêneo;pelo contrário, apresentam, em seus aspectos sócio-culturais, uma diversi-dade que, infelizmente, vai se tornando cada vez mais rara devido à intensapressão que sofrem por parte da formação social, que domina politicamen-te o Estado-nação que as envolve. A exteriorização mais visível dessa do-minação é a espoliação que sofrem do bem mais fundamental para a suareprodução física e simbólica: a terra. Pois é no campo que essas popula-ções se desenvolveram e onde tentam sobreviver.

As populações tradicionais existentes no Brasil lutam, há séculos,contra esse movimento de expansão das fronteiras do capital, que invade ocampo e, ao tratar a terra como mais uma mercadoria, entra em choque,material e ideológico, com as formações sociais tradicionais, que têm naterra, como referido acima, o elemento central para sua sobrevivência. Aviolência contra elas manifesta-se, entre outras formas, no não-reconheci-mento dos seus direitos de propriedade da terra que ocupam, direitos estesdefinidos segundo os costumes e os interesses da sociedade dominante,assim como em uma visão preconceituosa e estereotipada dos elementos desua cultura e do seu modo de vida, considerados, sempre, segundo essaperspectiva, “atrasados”, “primitivos” e, portanto, obstáculos ao “verda-deiro progresso social”.

III - COMUNIDADES CAMPONESAS

No Brasil, pode-se dividir as populações tradicionais em dois gran-des grupos: os povos indígenas e as comunidades camponesas. Quanto aospovos indígenas, em uma breve definição, são considerados como tais aque-les descendentes dos povos e nações pré-colombianas; as comunidades cam-

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ponesas são definidas a seguir.

Em primeiro lugar, existe uma comunidade onde quer que os mem-bros de qualquer grupo social, pequeno ou grande, vivam juntos e de modotal que partilhem, não deste ou daquele interesse, mas das condições bási-cas de uma vida em comum. O que a caracteriza é que a vida de alguémpode ser totalmente vivida dentro dela. O critério básico da comunidade,portanto, está em que todas as relações sociais de alguém podem ser encon-tradas dentro dela. Diz-se que uma comunidade é essencialmente “ligadaao solo”, quando seus indivíduos vivem permanentemente numa dada área,têm consciência de pertencer tanto ao grupo como ao lugar e funcionamconjuntamente nos principais assuntos da vida. Os seus membros têm cons-ciência das necessidades dos indivíduos dentro e fora de seu grupo imedia-to e tendem a cooperar estreitamente12. Assim, pode-se definir a comuni-dade camponesa como aquela comunidade “ligada ao solo” formada porcamponeses.

O camponês, por sua vez, pode ser conceituado, e esta é uma formamuito encontrada nos livros de Ciências Sociais, como o cultivador quetrabalha a terra, opondo-o àquele que dirige o empreendimento rural. Aqui,o conceito é estendido a todos os cultivadores que, através do seu trabalhoe do de sua família, dedicam-se a plantar e transferir os excedentes de suacolheita aos que não trabalham a terra. Porém, uma conceituação defendidapor alguns antropólogos, e que será adotada aqui, amplia o conceito anteri-or e define o camponês como um produtor que se define por oposição aonão produtor, não importando se planta a terra, se colhe os frutos da flores-ta, ou se pesca nos rios ou no mar13.

No parágrafo anterior conceituou-se o camponês pela descrição desua atividade. Não menos importante é a descrição de suas relações com ocentro do poder político, ou seja, sua forma de inserção na sociedade polí-tica. É certo que, a princípio, pode-se defini-lo em oposição à cidade. Esta,

12 FERNANDES, Florestan (comp.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, meto-dológicos e de aplicação. São Paulo : Ed. Nacional e Ed. da USP, 1973. p. 38-39.

13 MOURA, Margarida M. Camponeses. São Paulo : Ed Ática S.A., 1986. p. 8.

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por sua característica de sede do poder político, subordina os trabalhadoresda terra. Porém, nela não se encontram somente as classes dominantes, masali estão representados, em grande número, os seus oprimidos. Por essarazão, não é a cidade, em si, que, por oposição, define o campo e seushabitantes, mas o Estado. Este dispõe de instrumentos de natureza jurídicae política que disciplinam o camponês na obrigação de pagar impostos, naobediência a códigos escritos que impõem uma verdade legal à proprieda-de da terra, ao matrimônio e ao contrato, garantindo o fluxo contínuo eestável das rendas dos camponeses às classes rurais e urbanas com poderpolítico e econômico14.

Desse modo, pode-se diferenciar as comunidades camponesas dascomunidades primitivas em que seus membros são, também, cultivadoresda terra, mas não canalizam excedentes para não trabalhadores. Esses po-vos são agricultores, mas não são camponeses. Assim, torna-se, também,mais fácil a distinção entre camponês e trabalhador rural proletarizado. Este,desapossado da terra e de seus instrumentos de trabalho, dos meios de pro-dução, em suma, não mais dispõe da autonomia social mínima doscultivadores, fundada no controle costumeiro ou jurídico da terra15.

Pode-se afirmar que, em qualquer tempo e lugar, a posição do cam-ponês é marcada pela subordinação aos “donos da terra” e do poder, quedele extraem diferentes tipos de renda: renda em produto, renda em traba-lho, renda em dinheiro16.

Essa subordinação, ao lado de uma certa autonomia na sua forma deorganização sócio-cultural, está na base de um conceito desenvolvido porRobert Redfield17, o de “sociedades-parciais”. Em síntese, isso quer dizerque as comunidades camponesas constituem-se quase como sociedades comuma estrutura social completa. Elas podem ser vistas como um sistema decostumes e instituições, que conferem a seus membros papéis sociais pró-

14 MOURA, Margarida M. Ob. cit. . p. 9-10.15 Idem.16 Ibidem.17 REDFIELD, R. Peasant society and culture. Chicago : The University of Chicago Press, 1971. Cap. II.

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prios, mas que não podem se circunscrever apenas aos limites da comuni-dade. As relações com a sociedade envolvente tornam impossível a suadescrição sem que se leve em conta a sua inserção em um sistema maisamplo: o complexo regional, o estado nacional.

Segundo Queiroz18, as populações e culturas tradicionais não indíge-nas são, de uma forma geral, consideradas “camponesas” e são fruto deintensa miscigenação entre o branco colonizador, a população indígenanativa e o escravo negro. Elas incluem os “caiçaras” que habitam o litoralde São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná; os “caipiras”, dos estados do sul; oshabitantes de rios e várzeas do Norte e Nordeste (os varjeiros); as comuni-dades pantaneiras e ribeirinhas do Pantanal Matogrossense; os pescadoresartesanais, como os jangadeiros do litoral nordestino; as comunidades depequenos produtores litorâneos açoreanos de Santa Catarina, etc. São po-pulações de pequenos produtores que se constituíram no período colonial,freqüentemente nos interstícios da monocultura e de outros ciclos econô-micos. Com isolamento relativo, essas populações desenvolveram modosde vida particulares que envolvem uma grande dependência dos ciclos natu-rais, um profundo conhecimento dos ciclos biológicos e dos recursos natu-rais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e até uma linguagem espe-cífica, com sotaques e inúmeras palavras de origem indígena e negra.

IV - TIPOS DE COMUNIDADES CAMPONESAS

Como todas as comunidades camponesas praticam a agricultura, ain-da que apenas aquela de subsistência, pode-se usar para diferenciá-las, en-tão, o tipo de atividade econômica com a qual se inserem no mercado, istoé, aquela atividade que as caracteriza enquanto produtores de mercadorias.Utilizando esse critério, obtêm-se os três grupos seguintes:

1) comunidades camponesas “clássicas”: aquelas cuja atividade eco-nômica que gera excedentes é a agricultura;

2) comunidades extrativistas: aquelas cujos excedentes são produtos

18 QUEIROZ, M.I.P. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petró-polis : Vozes; São Paulo : EDUSP, 1973. p. 11.

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da coleta de frutos das florestas; os exemplos mais conhecidos são os serin-gueiros, coletores da borracha, e os castanheiros, coletores de castanhas;

3) comunidades de pescadores: seu principal produto de troca são osfrutos dos rios ou dos mares.

3.7.2 MINORIAS LOCAIS

A caracterização das comunidades camponesas, levada a cabo nosparágrafos precedentes, mostrou como estas se constituem no contexto deuma situação de subordinação, descrita por meio de sua identificação como tipo sociológico do “camponês”. Esta situação subordinada, por sua vez,não expressa nada mais que o somatório das relações de violência econô-mica, simbólica e material, da qual eles participam enquanto pólo oprimi-do. Conseqüentemente, consoante a definição de minorias desenvolvidanas seções anteriores deste capítulo, podemos afirmar que as comunidadescamponesas são um tipo de minorias. Por outro lado, enquanto sociedades-parciais, ou seja, enquanto elementos que compõem a sociedade política,mas não participam estruturalmente da formação social dominante, pelocontrário, ocorrem ao seu lado, podemos identificá-las como grupos soci-almente ameaçados. Porém, como exposto no item anterior, elas não seenquadram no tipo “minorias étnicas”. Quais seriam, então, os elementosque dão origem à opressão a que elas estão submetidas ou, em outras pala-vras, quais são as bases fáticas que as caracterizam como um tipo especialde grupos minoritários?

Como visto acima, cada minoria possui uma característica que res-ponde pela especificidade das relações de violência das quais elas partici-pam. No caso das minorias de gênero, o sexo feminino; no caso das mino-rias etárias, a idade; no caso das minorias étnicas, a etnia, e assim por dian-te. Para as comunidades camponesas essa característica serão as relaçõeslocais que se estabelecem entre elas e a parte da sociedade dominante coma qual elas se relacionam diretamente. Essas relações originam-se, é certo,de sua condição de camponeses. Esse conceito, no entanto, por sua ampli-tude teórica, ao referir-se a uma condição universal que abrange popula-ções muito diversas entre si, necessita de uma complementação para tor-

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nar-se aplicável a casos concretos. E essa é dada pela construção de umsistema de relações que descreva, circunscrevendo-a à realidade local, atotalidade das relações econômicas, culturais e políticas entre os dois pólosdaquela relação de opressão: a comunidade camponesa local e a sociedadedominante local. Assim, a chave é o conceito de localidade, que não tomacomo referência apenas a localização no espaço, mas sim, e mais importan-te, como aquelas relações se estabelecem, e tomam sua forma específica,sob o caráter de uma estrutura social autônoma.

Esse corte, efetuado na complexidade das relações totais que se con-sumam dentro do espaço político do Estado-nação, permite a descrição dasrelações específicas de violência de que participam, por exemplo, uma co-munidade camponesa extrativista do Pará e uma comunidade camponesapescadora do Espírito Santo. As condições históricas de formação das co-munidades camponesas levaram ao aparecimento de inúmeras formas dis-tintas de organização social, e a um grande número de formas de inserçãosocial local, o que não permite uma única descrição das relações de violên-cia, ou seja, das formas de opressão a que aquelas comunidades estão sub-metidas.

Assim, denomina-se de minorias locais o tipo especial de grupos so-cialmente ameaçados que caracterizam as relações de violência que opri-mem as comunidades camponesas.

4. CONCLUSÃO

A opressão, enquanto manifestação da existência de relações de vio-lência entre um indivíduo ou grupo social e outro indivíduo ou outro gruposocial, é um fenômeno que não é tolerado nas sociedades modernas, aomenos no espaço teórico de suas normas éticas e jurídicas. Como conse-qüência, à constatação de sua ocorrência em um caso concreto, deve se-guir-se o devido remédio legal que a estanque e repare os seus efeitos dele-térios. Assim, com relação à argumentação desenvolvida no corpo desteartigo, parece claro que a definição de minorias aqui tratada traz em si umaoperacionalidade jurídica, do momento em que traz à luz o cerne daquelas

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relações, a ocorrência de relações de violência.

Outrossim, ela também nos revela que nem todas as situações de opres-são têm o mesmo significado. A distinção efetuada entre grupos social-mente vulneráveis e grupos socialmente ameaçados apresenta uma conse-qüência – e uma advertência – muito importante: a diferença fundamentalexistente entre eles, ou seja, a possibilidade ou não de sua exclusão físicaou cultural exige que o grau, e a qualidade, da proteção legal a eles dirigidaseja diferenciada. Por exemplo, uma proteção baseada em ações afirmati-vas pode ser suficiente para que se rompa o círculo das relações de violên-cia a que estão submetidos os integrantes de um grupo socialmente vulne-rável, mas será, certamente, insuficiente enquanto instrumento de tutela dotipo especial de direitos concernentes aos grupos socialmente ameaçados.Para esses, o sujeito de direito é a própria coletividade, não os indivíduosque a compõem; no caso dos grupos socialmente vulneráveis, apesar daproteção dirigir-se, indiscriminadamente, a todos os componentes do gru-po, estes são, individualmente, os sujeitos de direito.

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