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Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

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UM CRÍTICO NA PERIFERIADO CAPITALISMO: REFLEXÕESSOBRE A OBRA DE ROBERTO SCHWARZ

Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata (org .)

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Um crítico na periferia do capitalismoReflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

Organização

Maria Elisa Cevasco

Milton Ohata

B B M s g g

C o m p a n h i a D a s L e t r a s

Page 5: Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

Copyright © 2007 by Os Autores

CapaEliane Stephan

Preparação e assistência editorial Claudia Abeling

RevisãoAna M aria Barbosa

Valquíria Delia Pozza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz / organização Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata. — São Paulo : Companhia das Letras, 2007.

Bibliografia.ISBN 978-85-359-1081-0

1. Ensaios brasileiros 2. Literatura brasileira - História e crítica 3. Schwarz, Roberto, 1938 — Crítica e interpretação I. Cevasco, Maria Elisa. II Ohata, Milton.

07-6163 CDD-869.909

Índices para catálogo sistemático:1. Ensaístas brasileiros : Apreciação crítica 869.9092. Literatura brasileira : História e crítica 869.909

U007]Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SOHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32

04532-002 — Sào Paulo — SP

Telefone (11) 3707-3500

Fax (11) 3707-3501

www.companhiadasletras.com.br

Page 6: Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

Sumário

Apresentação — Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata .............................. 9

PARTEI— ANÁLISE DA O B R A ............................................................................................................... 11

Sobre Roberto Schwarz — Antonio Candido............................................. 13

Por que ninguém consegue entender Roberto Schwarz

nos Estados Unidos? — Neil Larsen ............................................................ 18

Olhares periféricos: a teoria estética de

Adorno no Brasil — Silvia L. López.............................................................. 22

Quem herda não furta — Leopoldo Waizbort ............................................ 33

Pressupostos, salvo engano, dos pressupostos,

salvo engano — Jorge de Almeida ................................................................ 44

O chão e as nuvens: ensaios de Roberto Schwarz

entre arte e ciência — Sergio Miceli ............................................................ 54

Para uso do próximo — Francisco Alam bert............................................. 66

Em busca do narrador: traços do pensamento do

jovem Schwarz— Luís Augusto Fischer....................................................... 78

Sobre Que horas são?— Marcelo C oelho ..................................................... 95

Complexo, moderno, nacional e negativo — Modesto Carone................ 108

Ao escritor as batatas — Airton Paschoa ..................................................... 117

Page 7: Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

Anatol Rosenfeld, figura de Roberto Schwarz — Priscila Figueiredo....... 12

Com Roberto Schwarz depois do telejornal —

Zulmira Ribeiro Tavares.................................................................................... ^3

PARTE II — QUESTÕES EM C O M U M ....................................................................................................... l47

Um crítico na periferia do capitalismo — Francisco de Oliveira ............. ^

A ruptura ontológica — Robert K u r z ............................................................. ^

A teoria da cisão de gêneros e a teoria crítica de Adorno —

Roswitha Scholz .................................................................................................. 168

Sobre Versos para 0 retrato de Honoré Daumier— D olf Oehler ............... ^

Brecht no cativeiro das forças produtivas — Iná Camargo Costa ........... ^

De relógios, bússolas e sextantes — Rodrigo Naves .................................... 200

O mundo tem as caras que pode ter — Ismail Xavier ................................ 212

Graciliano e a desordem — Ana Paula Pacheco .......................................... 226

O crítico e os arquitetos — Pedro Fiori A rantes ............................................ 241

O regime de Bacamarte — Laurindo Dias Minhoto .................................. 255

Dois mestres: crítica e psicanálise em M achado de Assis

e Roberto Schwarz — Tales A. M. AbySáber.................................................... 267

Ascensão à brasileira — Milton Ohata .......................................................... 290

Tropicália, pós-modernismo e a subsunção real do trabalho

sob o capital — Nicholas Brown ..................................................................... 295

PARTE III — DEPOIMENTOS ................................................................................... 311

Fernando Novais.................................................................................................. ^3

José Arthur Giannotti ........................................................................................ 320

Paul Singer........................................................................................................... 324

Roberto Schwarz, seminarista — Fernando Henrique Cardoso ............... 329

Ad Roberto Schwarz — Michel Löwy ........................................................... ^« • yK]Retoques a “A sereia desmistificada” — Bento Prado fr. ............................

Vilm aArêas........................................................................................................ ^349

Francisco A lvim ...................................................................................................

hso si es que no ou Três tristes tigres — José A h n in o ............................................

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N o tas..................................................................................................................... 363A gradecim entos................................................................................................... ..... 395

Obras de Roberto Schwarz ........................................................................... .....397

Sobre os autores e organizadores.......................................................................399

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Apresentação

Entre os dias 23 e 27 de agosto de 2004, um seminário reuniu intelectuais e escritores na Universidade de São Paulo para discutir a obra de Roberto Schwarz, avaliando sua contribuição crítica e seus desdobramentos. Na oca­sião, ficou claro que a força de sua ensaística — ponto de convergência do melhor marxismo brasileiro e do mais lúcido marxismo europeu — extravasa os limites da teoria literária e configura uma crítica original da ordem capita­lista contemporânea, no mesmo passo em que nela nos situa, a nós brasileiros. Ainda que não reproduza todo o programa do seminário,1 julgamos que este livro dá uma idéia fiel do evento. Além disso, outros colaboradores foram cha­mados a participar e o resultado, portanto, exigiu um modo diferente de orga­nizar as matérias.

Na primeira seção, reuniram-se textos cuja tônica é a análise da obra de Roberto Schwarz, seja como parte de uma ou mais tradições críticas, seja nas formas que assumiu no contato refletido com a cultura viva. Pela sua abrangên­cia e nitidez — como um mapa do território explorado por todos os demais ensaios e depoimentos — , abre a seção uma fala de Antonio Candido, mestre que definiu um padrão e um estilo de análise até então inéditos no Brasil, em que forma literária e processo social iluminam-se reciprocamente de maneira reve­ladora, no sentido forte da palavra. A seguir, um núcleo centrado nas correntes

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do marxismo em que se entronca a obra de Roberto Schwarz, notadamente a Escola de Frankfurt, bem como em sua aclimatação no Brasil, onde se destaca o grupo de jovens professores da usp que no final da década de 1950 se reuniu para ler minuciosamente O capital. A seção é concluída por textos que percorrem analiticamente os vários livros do autor e algumas de suas dimensões ainda pouco destacadas, como o caráter propriamente literário dos ensaios, incluindo ramificações na prosa de ficção e na poesia.

A segunda parte mostra que as idéias do autor das “idéias fora do lugar” correspondem a problemas substantivos da periferia do capitalismo, envol­vendo não só a arte, mas também áreas como a psicanálise, o urbanismo e o sis­tema prisional. Portanto, não se trata aqui de “influências” no sentido comezi­nho, mas de questões em comum que, aliás, exigem maneiras diferentes de se situar diante dos mais variados assuntos. Convivem nessa seção veteranos que continuam intelectualmente inquietos diante de novos problemas — como Francisco de Oliveira; críticos europeus que retomaram com proveito, e acerto, a herança frankfurtiana; e uma geração mais recente que se inspira na obra de Roberto Schwarz para abrir novos caminhos.

O tom predominante da terceira parte é mais pessoal, mas, descontadas as poucas anedotas, apenas na medida em que as subjetividades envolvidas com a presença intelectual de Roberto Schwarz traduziram-se em obras sem dúvida objetivamente significativas. Sem prejuízo do valor de seu conteúdo, espera-se que o leitor de hoje sinta neles algo da atmosfera calorosa dos dias do seminário. Contudo, a despeito das divisões adotadas, julgamos que os textos se comuni­cam e que este livro busca ser algo mais que mera coletânia. Procurou-se neste ponto seguir o espírito do ensaio como forma, praticado em alto grau por Roberto Schwarz. Assim, fica para o leitor o estímulo para uma interação mais viva com o conjunto, livre das compartimentações que no fundo refletem a ordem atual das coisas, às quais não escapa nem mesmo o pensamento.

Os organizadores

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PARTE I ANÁLISE DA OBRA

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Sobre Roberto Schwarzi

Antonio Candido

A minha agradável tarefa consiste apenas em dizer mais algumas palavras iniciais nesta semana de estudos sobre a obra de Roberto Schwarz, amigo que estimo e colega que admiro como a um dos críticos mais bem-dotados e mais ori­ginais que a literatura brasileira já teve. Por isso, não me cabe analisar os diver­sos aspectos dessa obra, objeto das análises e comentários que começarão daqui a pouco. Tocarei apenas em alguns traços gerais da fórmula intelectual de Roberto, que me parecem relevantes para se entender bem o que escreveu.

Todo crítico precisa fazer opções teóricas e opções práticas. No nível teó­rico é possível ser coerente e eficaz com certa facilidade, porque se trata de pro­por, sem compromisso imediato com o texto. No nível prático a coerência e a eficácia são mais difíceis, porque se trata de demonstrar, e aí surgem os afasta­mentos entre intenção e realização. Nada mais admirável, em nosso tempo cheio de teoria, do que o rigor conceituai de muitos críticos quando formulam os seus intuitos e as suas convicções. E nada mais melancólico do que vê-los fazer coisa diversa, não raro oposta, quando abordam concretamente os textos, como se houvesse uma vala comum na qual todos acabam caindo. A propósito, cito um dos divertidos “19 princípios para a crítica literária” formulados por Roberto Schwarz: “Começar sempre por uma declaração de método e pela des-

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qualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso)”.

A coerência é difícil e qualquer posição teórica importa em perdas, porque não é possível atender a todos os problemas suscitados por uma obra. Para sim­plificar, e para limitar-me a orientações do meu tempo já remoto de atividade universitária, tomo apenas dois exemplos: o do estruturalismo e o da crítica sociológica. Escolho-os por prudência, porque das correntes posteriores pouco ou nada sei.

O estruturalismo, apesar dos seus méritos, foi uma tendência que ocasio­nou perdas, na medida em que descarnou o texto a fim de desvendar o modelo, com uma espécie de atração pelo arquétipo universal supremamente abstrato, que no limite explicaria todos os textos. Ora, isso pode impedir a percepção do que há de peculiar, e portanto de essencial, em cada um. A crítica sociológica, por sua vez, e também apesar dos seus méritos, pode ser considerada igualmente uma tendência em boa parte causadora de perdas, embora em sentido oposto. De fato, ela corre o risco de descaracterizar o texto a fim de extrair o material bruto de realidade social que ele incorporou, como se no fundo tivesse certa nos­talgia do documento puro, supremamente concreto.

Talvez sejam menos mutiladoras as tendências que procuram diminuir ao máximo possível as perdas inevitáveis, por meio de um tratamento integrador. Pensando nas duas correntes mencionadas, e só nelas, seria menos parcial a crí­tica que reconhecesse a força explicadora dos modelos estruturais abstratos, reconhecendo ao mesmo tempo a singularidade dos textos e a sua relação com as características da situação social, de maneira a assegurar a percepção da sua diferença. E a diferença é aquilo que o texto possui de mais próprio, constituindo a sua razão de ser. Esse tipo de crítica procuraria, no caso dos exemplos escolhi­dos, elaborar dialeticamente modelo e documento, a fim de sublimá-los graças a uma leitura integrativa interessada no significado total.

Isso não é fácil e nem sempre o objetivo de integração recuperadora é alcançado, apesar das intenções. Mas o crítico que vai nesse rumo pode obter resultados geralmente menos parciais que os de outras tendências. E depois, como disse Victor Hugo, Deus abençoa o homem, não por ter encontrado, mas por ter procurado.

Penso que Roberto Schwarz pertence a essa linhagem, porque é capaz de situar-se de várias maneiras e em vários níveis dentro e fora do texto, percebendo

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tanto a sua autonomia como construção específica quanto a sua dependência como produto cultural, além de possuir a capacidade de elaborar o estilo ade­quado para sugerir esta posição. Ora, em literatura o estilo é quase tudo, pois a maneira de escrever configura o objeto, tornando-o não apenas inteligível, mas legítimo. Eu diria que Roberto construiu lentamente um estilo crítico revelador das suas posições, a partir de um olhar duplo, de dentro e de fora. E mais: que este duplo olhar talvez esteja ligado à sua história pessoal de brasileiro que é ao mes­mo tempo de fora e de dentro. A sua formação se deu no âmbito de dois idiomas, e ele precisou superar a tensão que o dividia entre ambos. Na “luta pela expres­são”, as etapas do seu êxito podem ser verificadas na conquista progressiva da cla­reza que vai dissolvendo as obscuridades, até alcançar uma densa nitidez. Ele não é um autor simples, sendo daqueles que requerem leituras muito atentas para serem plenamente compreendidos. Apesar de ter sido professor universitário desde sempre, nunca se dedicou à pesquisa propriamente dita, nem à erudição, nem às obras didáticas. É basicamente ensaísta, mas um ensaísta que modificou a crítica brasileira, na medida em que superou o tom de fluência jornalística, que foi sempre o nosso melhor modo de trabalhar, num país que só teve crítica uni­versitária depois que o ensino superior de literatura começou e deu os primeiros resultados, isto é, a partir do decênio de 1940. Roberto Schwarz não embarcou na tonalidade jornalística, nem aderiu aos tecnicismos que as nossas letras univer­sitárias adotaram freqüentemente com o alvoroço dos neófitos.

Para discernir as possíveis raízes do seu cunho singular, farei uma digres­são, que me parece esclarecedora, sobre certa dualidade inevitável dos intelec­tuais de países periféricos. Como as coisas hoje estão muito diferentes devido à chamada globalização, prefiro ficar na esfera do mundo em que me formei, lem­brando que nele havia uma diferença de natureza entre os intelectuais dos paí­ses novos de cultura ocidental e os intelectuais dos velhos países, bem definidos culturalmente, que eram as nossas fontes. Um intelectual europeu podia ser apenas ele, encasulado na sua língua e na sua civilização, só se reportando, fora delas, à tradição greco-latina. Mas um intelectual latino-americano tinha de ser ele e mais um outro. Esse outro era a quota de cultura européia da qual necessi­tava para se formar. O europeu poderia dizer, segundo o conceito famoso: “Eu sou eu e a minha circunstância”; mas o natural dos nossos países periféricos de cultura ocidental teria de dizer: “Eu sou eu e um outro”. A sua circunstância se confundia com a presença do outro, necessário e incrustado nele.

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Lembremos a propósito Joaquim Nabuco. Na sua autobiografia ele diz que escrevia moldando a frase sobre a língua francesa, porque esta lhe era intelec­tualmente mais espontânea que a portuguesa. E foi longe nessa direção, ao ponto de escrever em francês um drama em versos sobre problemas de patrio­tismo francês, e de ter sido tomado por autor francês por um dos críticos mais importantes daquele tempo, Émile Faguet, quando este resenhou o seu livro Pensées détachées.

Coisa parecida ocorreu nos Estados Unidos, país periférico que se tornou central e hoje serve de outro para muito eu. Mas no passado próximo, escritores norte-americanos foram viver e produzir na Europa, como Edith Wharton e Ezra Pound, outros se incorporaram à literatura inglesa, como Eliot e até certo ponto Henry James, chegando alguns a mudar de língua, como Vielé-Griffin, Stuart Merrill e Julien Green, cujos nomes são pronunciados à maneira francesa, porque fazem parte da literatura da França.

Cito esses casos extremos para acentuar que a nossa perspectiva é sempre de dentro e de fora. Roberto Schwarz não escapa à regra, mas tem a peculiari­dade de ser assim de maneira constitucional, porque teve desde sempre como próprias a língua e a cultura alternativas que precisamos adquirir com esforço. Isso lhe permite ver o Brasil como quem é de dentro e de fora por natureza, o que produz uma combinação sui generis de estranhamento e familiaridade, a qual deve ter contribuído para o cunho singular da sua lucidez analítica.

Essa dualidade corresponde à realidade do Brasil, país que só existe men­talmente como contraponto do eu e do outro, pois é feito de imigração e incor­poração. O que importa no plano individual e no plano coletivo é que as duas esferas se ajustem de maneira harmoniosa, e foi o que Roberto conseguiu no curso da sua formação e da sua produção.

Cada um de nós vive a seu modo a dualidade a que estou me referindo. Em Roberto, acho que a experiência orgânica de dois pólos nacionais, lingüísticos e culturais ajudou a incliná-lo para os temas e as idéias de oposição e contraste, quem sabe até favorecendo o pendor para o lado do marxismo, cheio do senti­mento dos antagonismos que estimulam e fundamentam o pensamento dialé­tico. E aí poderia estar uma das razões da sua maneira crítica, preocupada com as tensões entre a palavra e o seu objeto, na tentativa de descobrir até que ponto os textos são sublimação da circunstância e, portanto, de que maneira as cir­cunstâncias viram texto.

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Esse gosto pela tensão e o contraste leva-o a privilegiar as obras e os auto­res problemáticos, que além disso permitam apreender as modalidades de cor­relação com a vida social, porque ele é um crítico que recusa cortar os vínculos entre a palavra e o mundo. Nenhuma prova melhor que a de seus estudos reno­vadores sobre Machado de Assis, autor que parece ter esperado quase cem anos por um crítico dialético apto a dar conta do que há de muito mais profundo do que se pensava no teor de sua negatividade geradora de análise corrosiva, de aná­lise que vai além dos dramas do indivíduo para abranger o ritmo profundo das relações sociais. A fim de avaliar o que significam neste sentido as leituras machadianas de Roberto Schwarz, basta compará-las com os ensaios de mar­xismo convencional de Astrojildo Pereira. A sua sondagem refinada mostrou como a ironia, o sarcasmo, o senso dos contrastes, os paradoxos cheios de acidez da obra de Machado de Assis, que os críticos sempre abordaram do ângulo psi­cológico, devem ser vistos também como fermentos que desvendam a “máquina do mundo”, não apenas o indivíduo.

Mas tudo isso há de ser com certeza visto e revisto no correr desta semana, de maneira que vou ficando por aqui.

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Por que ninguém consegue entender Roberto Schwarz nos Estados Unidos?

Neil Lar sen

Há pouco tempo, fiz urna dedicatoria num livro meu antes de presenteá-lo a Roberto Schwarz. As palavras foram as seguintes: “Ao meu mestre na periferia do capitalismo”. Não foi exagero nenhum. Roberto é, a meu ver, simplesmente o crítico literário mais importante de hoje. Não escrevo uma palavra de crítica, nem dou aula, sem contar com a orientação prestada por obras dele como “As idéias fora do lugar”, “Cultura e política, 1964-1969”, “Nacional por subtração” e “Adequação nacional e originalidade crítica”.

Depois de redigir aquela dedicatória, porém, me dei conta de que nela havia uma ambigüidade, porque deixava como possibilidade a existência de outro mestre, um mestre do centro do capitalismo. E isso não foi o que queria dizer. Roberto é o meu mestre, só que, por casualidade, mestre que não ficava nem fica no centro do capitalismo— embora não sei se posso chamar São Paulo de periferia. Se não é centro propriamente dito, para mim, que moro numa Cali­fórnia que não é a de Schwarz, mas a de Schwarzenegger, viajar ao Brasil que é São Paulo dá uma sensação de ter subido um pouco na escala que vai da neobar- bárie até uma civilização pelo menos relativa. Tampouco queria dizer que Roberto é mestre porque fica numa das periferias do capitalismo. Acho que deve haver nesta relação entre inteligência dialética e meio periférico certo grau não

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imediato de necessidade, mas não é como se toda periferia estivesse em condi­ções de gerar tais inteligências.

Mas, então, qual seria esta relação de dialética e periferia, e qual, se houver alguma, a sua necessidade? Aproveito a questão para eliminar qualquer dúvida possível naquela dedicatória dizendo para Roberto que mestre é mestre e não é menos mestre por ficar numa periferia. Mas também aproveito para algumas reflexões mais gerais e soltas sobre estas questões. Como sei que Silvia López também vai falar sobre a relação Schwarz-dialética-Brasil, e em parte porque não tenho o conhecimento necessário do Brasil para realmente dar mais concre- tude a esta relação, vou colocar a questão de modo menos direto e que corres­ponde muito melhor à minha própria experiência: por que, com poucas exce­ções, ninguém consegue entender a obra de Roberto nos Estados Unidos?

A resposta tem várias dimensões. A primeira, e mais óbvia, é que a cultura crítico-teórica nos Estados Unidos sempre foi e segue sendo alérgica ao pensa­mento dialético em geral. O público brasileiro aqui talvez esteja pensando neste momento que no Brasil há a mesma alergia, mas acho que em meu país eles nem sabem que são alérgicos, depois de várias gerações de intelectuais norte-ameri­canos terem interiorizado um anticomunismo e um antimarxismo quase reli­giosos. A relativa popularidade de críticos como Fredric Jameson não deixa de ser excepcional e, entretanto, é também prova da regra, uma vez que o marxismo jamesoniano, que certamente entende de dialética, é de inspiração metodoló­gica estruturalista e althusseriana. O marxismo de Jameson, podemos dizer, é uma tematização da dialética, às vezes brilhante, mas que termina sempre em abstrações histórico-intelectuais. De todo modo, o conceito básico do pensa­mento dialético schwarziano — o conceito do social como forma objetiva que habita na obra literária desde dentro, conceito adorniano na sua inspiração — ainda não foi pensado por nenhum crítico norte-americano, nem mesmo sendo marxista. O fato de a teoria literária nos Estados Unidos ser ainda hoje uma rea­ção imediata contra o formalismo conservador do New Criticism — o que foi comentado pelo mesmo Roberto numa entrevista a Luiz Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura na revista Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) — pode explicar em parte a existência deste ponto cego em nossa consciência crítica, mas, então, de onde vem o New Criti­cism senão da mesma estrutura profunda histórico-ideológica que faz da forma sempre um universal abstrato, contraposto a um conteúdo imediato que é onde

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reside o social e o político? Por isso, creio, esta alergia à forma como forma so­cial, e por isso as obsessivas afinidades, quase dependência química, com a “ideologia francesa” de Foucault e Derrida nos Estados Unidos, seja na sua for­ma hermética e de mandarim típica dos anos 70; ou na sua forma populista nos cultural studies e identity politics dos 80, dos 90, e até hoje. Para pensar como — ou pensar com — Roberto Schwarz nos Estados Unidos seria preciso ir além dessa estrutura histórico-ideológica, ou pelo menos tomar consciência dela como problema.

De onde, então, esta predisposição quase genética contra a dialética de forma e conteúdo, sobretudo em relação à literatura e à cultura? A hegemonia do antimarxismo nos Estados Unidos, produto da Guerra Fria que agora, na época da “guerra contra o terror”, vai adquirindo uma dimensão ainda mais retrógrada e patológica, se esgota como explicação diante dos termos reais de uma ideologia que até pode ver no mesmo marxismo um argumento antidialé- tico. Olhemos só o exemplo do grande sucesso de Império de Michael Hardt e Antonio Negri, livro que levou a alergia à dialética (neste caso uma alergia deleu- ziana) a um grau de incoerência quase incrível, mas que foi chamado de — e durante um tempo, recebido como — , nas palavras de Jameson, “a primeira grande síntese teórica do século xxi”. (Sendo assim, ou o século xxi durará pouco, ou será o século com a síntese mais simplista que jamais existiu.)

A resposta aqui vai além dos limites da minha exposição, mas acho que a crí­tica dialética atual, desenvolvida na obra de Roberto, pode, de modo indireto, ser­vir de chave. Explico-me. A dialética de forma e conteúdo — o conceito de forma como, ao mesmo tempo, objetivo, social e estético — é trabalhada por Roberto sempre em relação íntima e rigorosa com uma obra— quer dizer, com um objeto— singular. Aqui a linha metodológica vai de Hegel e Marx até Adorno e Antonio Candido. A crítica aqui, quer dizer, é imanente à obra. Mas, se eu não estiver equi­vocado, é imanente a outro objeto também, que é, simplesmente, o Brasil mesmo como experiência histórica singular. Ou seja, Roberto Schwarz não só pensa a ques­tão social e emancipatória em relação direta e interna à obra como forma, mas tam­bém à nação como formação histórica. A dialética“machadiana” em que as mesmas formas inadequadas à sociedade em formação — as “idéias fora do lugar” — entram no plano do conteúdo de uma forma nova, mais abrangente e adequada, tem como um dos seus pólos constitutivos o Brasil mesmo como conteúdo deter- minado, quer dizer, como conteúdo formado, como forma histórica per se.

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É justamente esta relação interna, imanente, entre forma e experiência nacional que falta — que é o verdadeiro ponto cego — na consciência norte- americana. A tendência — que é quase regra — de pensar a forma só como abs­tração universal, até no pensamento mais radical nos Estados Unidos, é ao mes­mo tempo a tendência, a quase regra, de não pensar a nação como momento objetivo da obra literária, a ausência da nação como mediação entre forma lite­rária e conteúdo. A nação, para nós, é também uma abstração universal — em termos hegelianos uma “má infinitude”— não somente porque é assim a nossa ideologia dominante (a da “excepcionalidade americana”), mas porque, a meu ver, a nação como experiência histórica singular, capaz de ser formalizada den­tro da obra literária ou de cultura, não existe mais. O que existe em seu lugar é, por um lado, só ideologia, e por outro, só horror, só um vazio, uma ausência de conteúdo cultural ou esteticamente reconhecível. A “América” dos Estados Unidos em algum momento foi imanente às obras e formas literárias geradas dentro de nosso espaço histórico, mas não é mais. A hegemonia imperial, “pós- moderna” dos Estados Unidos não é só um fato político, um fato histórico- secular. É um fato também formal-estético. É um fato, por assim dizer, histó- rico-espiritual. Pensar a dialética forma-conteúdo em relação imanente à literatura e à cultura dos Estados Unidos só pode ser, paradoxalmente, um pen­sar de fora, é uma dialética ainda por pensar, uma dialética, neste sentido, nega­tiva. E é por isso, entre outras razões, que ninguém consegue entender a obra de Roberto nos Estados Unidos: é porque o lugar do Brasil, lugar essencial e estru­tural no seu pensamento dialético, não tem lugar análogo para nós— ou, se tem, é efetivamente vazio.

É possível, como sugere Francisco de Oliveira em seu texto, que o Brasil também esteja chegando a este ponto cego. Não sei bem, mas é um dos muitos e enormes méritos do pensamento de Roberto possibilitar a captação crítica de tais momentos históricos, e não somente no caso do Brasil. Pode ser que nin­guém entenda Roberto nos Estados Unidos— embora, nesse caso, não sei como explicaria o que estou fazendo neste momento — , mas pode ser que ninguém consiga entender dialeticamente os Estados Unidos senão pensando como Roberto.

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Olhares periféricos: a teoria estética de Adorno no Brasil1

Silvia L. López

I. AFI NIDADES ELE T IV AS : E S T É T I C A , G L O B A L IZ A Ç Ã O

E TEORIA CR ÍT IC A

A idéia de uma teoria crítica globalizada pode apresentar a nós, críticos da cultura, de modo bem dialético, tanto uma redundância quanto a possibilidade de uma importante rearticulação. Retoricamente, essa idéia chama a nossa aten­ção para o fato de que o compromisso com o entendimento global das produ­ções culturais está implícito na teoria crítica. E na medida em que a bagagem de uma análise crítico-teórica é, ou pelo menos tenta ser, um entendimento e uma teorização da cultura no âmbito do capitalismo (por definição um fenômeno global), podemos falar aqui de uma redundância. O modo como nos engajamos criticamente com os materiais culturais, produzidos em centros não-metropo- litanos do mundo, pode, de fato, exigir que comecemos a discutir as afinidades eletivas da teoria crítica e das culturas periféricas. Ou, em outras palavras, de­manda que sejamos capazes de lidar com a já mencionada redundância.

No caso específico deste texto, cujo foco é o crítico literário brasileiro Roberto Schwarz, o interesse será destacar a leitura que faz da importação do romance no Brasil, como uma das mais exemplares contribuições adornianas aos estudos do fenômeno literário na periferia do capitalismo. O fato de que Adorno não trabalhou com culturas periféricas e nem teve a intenção de teorizá-

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las não é problemático e nem irônico nesse caso. É simplesmente irrelevante. Dito de outro modo, o impulso crítico-teórico da Escola de Frankfurt se encaixa bem, pois pretende compreender a cultura dentro do fenômeno global do capi­talismo. O que está em questão é o entendimento dialético do fenômeno cultu­ral, que, por definição, encontra suas especificidades na historicidade de seus materiais, ou seja, na relação dialética entre o global e o local.

Antes de entrar no caso de Schwarz, farei uma breve digressão que pode aju­dar a explicar por que as afinidades particulares dos estudos sobra a estética da Escola de Frankfurt, em especial a Teoria estética de Adorno, e a sua relação com a crítica cultural em centros não-metropolitanos não têm sido levadas em conta no debate acadêmico norte-americano.2 Boa parte do problema se dá por uma falta de entendimento das dinâmicas históricas dos processos culturais na periferia do capitalismo. E aqui, se Fredric Jameson por um lado aponta Adorno como o repre­sentante do marxismo tardio e um pensador de nosso tempo, ele também é respon­sável por ter disseminado idéias pouco esclarecedoras e debates infindáveis, como os gerados a partir de sua hoje inaceitável afirmação de que “todos os textos do Ter­ceiro Mundo são necessariamente alegóricos...”.3 Talvez essa posição de Jameson, e os subseqüentes debates que a rodeiam, deva ser entendida dentro do contexto mais amplo da institucionalização dos estudos das “literaturas do Terceiro Mundo” nos Estados Unidos e nos diga mais sobre o status da instituição da literatura nessa parte do globo do que sobre os processos literários em todos os outros lugares.4

Não precisamos retomar aqui o famoso debate entre Fredric Jameson e Aijaz Ahmad, que, ao que tudo indica, já pertence ao passado. Entretanto, vale a pena lembrá-lo e ressituá-lo nesse momento em que os discursos da globaliza­ção e o bioconceito de “império” parecem conter todas as problemáticas cultu­rais. Em outras palavras, enquanto o debate entre Jameson e Ahmad não está mais em evidência, a dinâmica fundamental desse debate, suas conseqüências e a preocupação com o caráter global das análises culturais de hoje nos convidam a retomá-lo brevemente, ainda que apenas com objetivos heurísticos.

II. “ a L I T E R A T U R A DO T E R C E I R O m u n d o ” , W E L T L I T E R A T U R OU

L I T E R A T U R A ?5

Em sua polêmica com Jameson, Ahmad aponta que o termo“terceiro mun­do” não tem nenhum status teórico porque as questões que delimitam funda-

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mentalmente o problema da literatura — como as formações sociais e lingüís­ticas, as lutas políticas e ideológicas dentro da área de produção literária, a periodização, as instituições culturais etc. — não podem ser colocadas em tal nível de generalidade. Além de essa categoria “terceiro mundo” não ter status epistemológico, a tentativa de formulá-la é empiricamente infundada. À luz de problemas meramente empíricos para essa classificação, a visão de Jame­son do colonialismo e do imperialismo, como sendo a base para estabelecer a divisão entre “primeiro” e “terceiro” mundo, é tão problemática quanto aque­la. Seu mundo binário fica emaranhado numa política essencialista, em que a experiência diversa do colonialismo leva necessariamente a uma resposta nacionalista, como alternativa única dos países fora do centro e da formação ideológica pós-moderna de nações de “primeiro” mundo. O caráter de natu­reza binária que percorre a proposição de Jameson não apenas banaliza o pro­blema do nacionalismo no contexto periférico como também não esclarece nada sobre as diferenças entre as experiências do colonialismo e do imperia­lismo em diferentes partes do mundo. Os pressupostos gerais de Jameson sobre o nacionalismo levaram-no a acreditar na alegoria como forma princi­pal de expressão cultural no “Terceiro Mundo”. Como nota Ahmad, essa idéia só pode ser sustentada se não houver nenhum questionamento do modo como os escritores se relacionam com as instituições da cultura em seus con­textos específicos. A experiência real dos intelectuais não-metropolitanos, em sociedades altamente contraditórias, poderia, por exemplo, de fato inibir a capacidade de criar alegorias, ou evidenciar uma experiência de alienação e desolação mais profunda do que a de seus correspondentes pós-modernos nos centros metropolitanos ocidentais.

A presença de certas formas literárias em diferentes contextos culturais não depende de alguma qualidade essencial da experiência dos escritores. Ao con­trário, essas formas variam em relação direta com suas tradições e convenções institucionalizadas. Os escritores, dependendo das circunstâncias histórico- sociais, definem por sua vez o espaço institucional que eles próprios ocupam e a partir desse lugar escolhem, consciente ou inconscientemente, as formas.

Está claro que qualquer tentativa de traçar teorias globais sobre a produção literária, usando o conceito de “terceiro mundo”, está fadada ao fracasso. Entre­tanto, a alegação de Jameson sobre a problemática do nacionalismo no “Terceiro Mundo” merece consideração, pois a história de sua teorização fornece um boin

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exemplo de como a lógica da diferença tem sido celebrada em termos histórico- mundiais. As discussões sobre o nacionalismo no texto de Jameson comprovam precisamente como as classificações de “primeiro”/“terceiro” mundo se justifi­cam. Em outras palavras, as próprias condições de existência de tal dicotomia podem ser encontradas no tratamento histórico do problema da formação da nação e do nacionalismo que vem desde o Iluminismo.

Contra a hipóstase de Jameson de “literaturas de Terceiro Mundo” e, ape­sar das assertivas estratégicas que tal rubrica possa ter na política da academia norte-americana, a tarefa de articular um projeto de estudo de culturas nacio­nais sob as condições da modernidade é crucial para os intelectuais de lugares como a América Latina. Esse tipo de projeto permitiria uma negação da lógica da diferença que, no fim das contas, leva a uma classificação rígida dos produtos culturais das chamadas regiões menos desenvolvidas: leituras alegóricas da nação, anticanónicas, revolucionárias, anti-representacionais, emergentes etc. Isso poria em confronto o entendimento provinciano de que a modernidade daria suporte a esses esquemas de classificação, baseados numa espacialização do tempo. Entre a China e a África, a América Latina entra e sai com certa dose de ansiedade no texto de Jameson. Essa apreensão é sintomática justamente das diferenças históricas entre ela e os exemplos chineses e africanos discutidos pelo crítico. Diferenças baseadas nas configurações nacionais em que a literatura da América Latina tem sido produzida. A problemática nacional retorna aqui como uma vingança para punir a dimensão especulativa do modo de produção no qual Jameson está inscrito. A nação, como uma forma vazia e concomitante, e como realidade sociopolítica, continua sendo o local em que se inscreve a ins­tituição da literatura. Enquanto a reivindicação política do comparatismo se faz evidente na urgência de entender esta “outra” literatura, em um esforço de des- provincializar o leitor metropolitano, o efeito do distanciamento temporal é inevitável num texto que divide o mundo em três partes diferentes. Talvez a con­seqüência mais significativa do resultado dessa espacialização do tempo seja a produção de um leitor metropolitano soberano, numa infindável busca de jus­tificativas políticas para sua leitura dos objetos literários, partindo sempre da perspectiva privilegiada de sua própria construção desses objetos.

Esse problema estava no centro do debate entre Jameson e Ahmad e conti­nua a perturbar os debates atuais sobre o entendimento global da literatura. Tal­vez a exceção aqui seja a proposição de Franco Moretti de um estudo compara-

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tivo da forma do romance no mundo moderno, por meio de uma análise siste­mática do fenômeno de acumulação proveniente dos estudos de todas as partes do mundo. Infelizmente, Moretti avalia seu projeto como uma busca para elu­cidar a lei da evolução literária (uma lei cuja formulação Moretti atribui a Fre- dric Jameson). Nesse modelo, todos os romances de fora da Europa são o resul­tado do encontro de realidades sociais particulares que, quando expressas na forma da tradição ocidental, não se adequam completamente e acabam gerando variantes da forma européia. Essa é uma tese interessante baseada na noção de Weltliteratur que evita o déficit de concomitância temporal de outros posicio­namentos, mas a questão óbvia permanece, e, se nos permitirmos colocá-la de modo bastante explícito, perguntaríamos: o que mais poderia resultar do encontro de formas particularmente européias com realidades não-européias? O que mais poderia resultar de todos os intercâmbios dialéticos entre as formas globais e as realidades locais? A conclusão de Moretti cabe aqui como uma pre­missa para os estudos das mediações reais entre forma e realidade social, mas não como o ponto de chegada de uma lei evolutiva.

O sincronismo da modernidade vivenciada pela globalização do capita­lismo de monopólio, no fim do século xix, coloca o desafio de elaborar uma teo­ria diferenciada da modernidade, capaz de englobar o status da produção cultu­ral sob as condições da modernidade na periferia do mundo industrializado. Só através desse entendimento comparativo e diferencial é que a modernidade cul­tural européia pode ser mostrada como exceção, e não como regra no contexto global. No que tange às repercussões políticas, parece ser esta a motivação de Jameson; essa postura seria muito mais radical do que a marginalização da diversidade, que encontramos nas universidades norte-americanas, onde, atra­vés de visíveis compartimentações, como gênero e raça, uma forma “diferente” de conhecimento está sendo institucionalizada. Essa “diferença” e seu atual reco­nhecimento por meio de classificações como “literatura do Terceiro Mundo” (e este é apenas um exemplo) reinscrevem o racismo nas políticas da diferença. Talvez sejam o medo de pessoas e lugares demasiadamente contemporâneos e sincrónicos, a desautorização das relações do capital global e a negação do sta­tus de minoria da cultura do “Primeiro Mundo” que impeçam uma nova polí­tica na institucionalização de novos modos de entender os desenvolvimentos culturais modernos numa escala global.

Se levamos em conta a importância do entendimento crítico-teórico do

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capital como um fenômeno global e a relação dialética entre o global e o local, não nos deveria surpreender o fato de que uma posição muito mais radical e sofisticada do aparato dialético, como a apresentada por Adorno na Teoria esté­tica, seja mais frutífera entre críticos da periferia. Inserido dentro da tradição marxista de aspirações internacionais, sua busca por explicações não se baseia na problemática de serem críticos de “Terceiro Mundo”, ou “pós-coloniais”, ou o “outro” visto da vantajosa perspectiva norte-americana, mas sim na crença de que sua tradição, a mesma de Adorno, oferece modos de compreender a dialé­tica da forma cultural e a realidade social.

I I I . F O R M A C O M O E N I G M A S O C I A L C I F R A D O : A I M P O R T A Ç Ã O DO

R O M A N C E P A R A O B R A S I L 6

Os ensaios de Roberto Schwarz são difíceis de decifrar pela maneira que o crítico brasileiro tem de se situar em meio a sua tradição. Por um lado, como proeminente aluno de Antonio Candido, Schwarz sempre oferece uma leitura atualizada e engajada do trabalho do mestre, e sempre defende sua contribuição como o precursor do estudo social da forma. Por outro, para atualizar e revita­lizar as contribuições de Candido, Schwarz redimensiona os achados do profes­sor ao voltar-se para o desenvolvimento da estética marxista das últimas déca­das do século XX, especialmente como postos na Teoria estética de Adorno. Os seus conceitos fundamentais perpassam o trabalho crítico de Schwarz de modo orgânico e natural. Como um crítico de esquerda, ele constrói estratégias for­mais de escrita que lhe permitem legitimar a si próprio como um brasileiro que defende uma abordagem sócio-histórica da literatura, ao mesmo tempo ofere­cendo uma perspectiva da codificação social da forma literária que lhe permite tomar distância do debate estéril entre o realismo e o modernismo que Luiz Costa Lima, para dar um exemplo de um outro crítico literário brasileiro, insiste em trazer à tona. Segundo Schwarz:

A divisão imaginada por Costa Lima se poderia formular da maneira seguinte: de

um lado, no partido do atraso, a mímese da realidade histórica, ausência de inquie­

tação formal, redundância ideológica, ilusão da linguagem transparente, sem tra­

ção própria; de outro, no partido avançado, a produção literária do novo, a rup-

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tura antimimética, a consciência de eficácia especifica a linguagem, bem como o

desligamento da antena referencial.7

Em vez de repetir o debate dos anos 30 entre Lukács e Adorno, Schwarz engenhosamente desmantela as premissas de Costa Lima sobre o realismo e, conseqüentemente, mergulha numa exploração séria das últimas elaborações de Adorno sobre a mímese e a forma literária. Ao reenquadrar o debate e ofere­cer sua análise cuidadosa da obra madura de Machado de Assis, Schwarz dá uma contribuição única para nosso entendimento do modo como o enigma cifrado do referente social funciona. O conceito de impulso mimético em Adorno e em Schwarz recoloca a problemática de que a realidade social é interna ao objeto literário. O impulso mimético não seria a reflexão da realidade da qual Lukács falara, mas sim o repensar das dinâmicas da forma, justamente o que distingue a abordagem marxista da dos estudos literários formalistas. Ou, como bem co­loca Schwarz, o problema do formalismo foi ter, ironicamente, subestimado a própria forma literária.

Embora Schwarz já tenha mencionado a importância da Escola de Frank­furt para os nossos tempos, especialmente no ensaio “Um seminário de Marx”,8 em que conta um pouco de sua formação intelectual e pessoal, é no ensaio “Ade­quação nacional e originalidade crítica” que ele estabelece firmemente seu posi­cionamento quanto às formas literárias. Entre os princípios básicos de Adorno contidos no ensaio está a idéia de que a obra, em seu tempo histórico específico, decodifica a realidade e a devolve articulada por uma linguagem formal que revela as contradições de suas condições de produção. Contrastada com a teoria do realismo como reflexão, aqui a sociedade aparece encapsulada num aparato formal de desdobramento autônomo, cuja lógica escapa a comparações exter­nas. Um segundo conceito, o de constelação, elaborado tanto por Benjamin quanto por Adorno, aparece no ensaio para explicar as razões de não haver um único meio de captar a realidade ou, para contestar Lukács, o porquê de não haver receita para se escrever como Balzac: devemos encontrar dentro do texto as configurações ou as constelações que iluminem seu momento histórico. Como coloca Schwarz:

o golpe de vista para o parentesco histórico entre estruturas díspares é talvez a

faculdade mestra da crítica materialista, para a qual a literatura trabalha com

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matérias e configurações engendradas fora de seu terreno (em última análise), ma­térias e configurações que lhe emprestam a substância e qualificam o dinamismo. Repitamos que o objetivo desse tipo de imaginação não é a redução de uma estru­tura a outra, mas reflexão histórica sobre a constelação que elas formam. Estamos

na linha estereoscópica de Walter Benjamin, com a sua acuidade, por exemplo, para a importância do mecanismo do Mercado para a compleição da poesia de Baudelaire.9

A idéia de que a realidade social possa ser cifrada de modo efêmero, incons­ciente e caleidoscópico, distancia Schwarz de Lukács bem como do geneticismo de Goldmann, e deixa Costa Lima fora do debate. Também cala a especulação bizantina em torno da relação entre o original e a copia.

O grande mérito do trabalho de Roberto Schwarz está no fato de ter dedi­cado boa parte da sua produção ao estudo da codificação da vida social do Bra­sil escravocrata na obra de Machado de Assis. Como podemos explicar esses romances que não são representantes do que entendemos por realismo do século XIX, mas cujas inovações formais estão, ainda assim, diretamente rela­cionadas à realidade social brasileira? É aqui que o modo exemplar como Schwarz se apropria das premissas de Adorno, sobre a forma literária e sua his­toricidade, permite que o crítico elabore uma leitura convincente de como a função narrativa dos romances machadianos da segunda fase delineia, e não reflete, as contradições da elite brasileira. Em seu meticuloso estudo, Schwarz demonstra como as inovações formais de Machado de Assis operam no nível do narrador, cujo caráter volúvel, em vez de ser um fluxo narrativo, articula a posição subjetiva das elites brasileiras do final do século xix. É nessa articula­ção do ponto de vista narrativo que, de acordo com Schwarz, Machado de Assis atinge seu “realismo”, não no sentido tradicional do termo, mas como delinea­mento inconsciente da realidade social. O choque caracterizado pela importa­ção do liberalismo europeu, em um sistema econômico baseado na escravidão, teria produzido essa forma periférica do romance realista, que redefiniria tanto o realismo quanto o romance de um modo especificamente brasileiro. O que fica bem exemplificado nesses romances brasileiros é que a subjetividade não está reduzida ao plano lingüístico ou comunicativo, mas sim imbricada na forma constitutiva do romance, que vai além da descrição do que foi dito. O narrador tem uma função quanto a suas relações com outros personagens e

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quanto à estrutura da trama como enigma cifrado da articulação social da sub­jetividade. A volubilidade do narrador não é modesta, pois, segundo Schwarz, “ela abraça o mundo em sua extensão, e trabalha a fundo o plano das formas”. Schwarz diz que:

O traço marcante do romance Machado de Assis é a volubilidade do seu narrador.

Este não permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor,

muda de opinião, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Há um elemento

de complacência nesta disposição mercurial, bem com no virtuosismo retórico de

que ela depende para se realizar. Isto tem a ver com o desejo de atenção e reconhe­

cimento que sublinháramos atrás, ao analisar o texto, desejo decisivo para o nosso

raciocínio. Uma vez que este movimento subordina tudo o mais, pode-se ver nela

o princípio formal do livro.10

Para Schwarz, o caráter brasileiro de Machado de Assis não reside na extraordinária completude da observação local que ele entendia bem, nem se anula por seu discurso universal, que é um dos planos importantes da obra, mas baseia-se no fato de que essas duas dimensões estão presentes de modo com­plexo, simultâneo e negativo. É essa combinação dissonante que as relativiza e lhes confere um caráter histórico próprio. O que Schwarz elucida para nós vai além do funcionamento da forma-romance no Brasil do século xix (o que, em sua modéstia característica, é tudo que ele alega ter feito). Ele nos forneceu um poderoso modelo ilustrativo do que Adorno chama de “imaginação exata” e que nos mostra, de acordo com Shierry Weber Nicholsen, que a primazia do objeto é inseparável da confiança na experiência subjetiva genuína, e que a configura­ção é uma atividade do sujeito tanto quanto um elemento da forma.11

IV. g l o b a l i z a ç ã o : o c o m p l e x o , o M O D E R N O , o NACIONAL E o NEGATIVO

Deixe-me voltar à idéia aparentemente redundante da teoria crítica globa­lizada para demonstrar que a obra de Roberto Schwarz levanta a questão de como uma cultura, mesmo no momento da globalização, continua imbricada na experiência nacional que é moderna, complexa e negativa, e, sejam quais

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forem os efeitos do processo de globalização, essas experiências são mediadas por um idioma que, no caso da literatura, ainda guarda suas especificidades cul­turais, lingüísticas e nacionais, e dialoga com uma tradição específica herdada.

O entusiasmo que parece ter tomado as humanidades quanto às possibili­dades de uma política verdadeiramente global vai de encontro às realidades eco­nômicas da globalização e sua relação com o Estado-nação.12 A realidade econô­mica é que as corporações globais contam em larga medida com as estruturas domésticas do Estado, que esbarram nas fronteiras de governos individuais, que governam territórios delimitados por fronteiras, avançando a agenda doméstica e regulando as economias nacionais. Um Estado-nação coeso que regule o mer­cado livre parece ser essencial para o crescimento capitalista. Michael Mann13 já explicou esse fato de modo bastante convincente. Vou citá-lo na íntegra:

A teoria do “transnacionalismo desenfreado” foi desafiada nos últimos anos. O sis­

tema de economia internacional parece emergir com uma estrutura binária: o

transnacionalismo é muito mais pronunciado nas finanças do que no comércio e

na indústria... As bases nacionais de produção e troca parecem não ter diminuído.

Noventa por cento da produção global permanece no mercado doméstico. A

mudança da indústria manufatureira para o setor de serviços nas economias avan­

çadas agora está reforçando o local. Apesar de as importações manufatureiras do

“Sul” terem aumentado, elas ainda representam uma parcela ínfima do total de

bens manufaturados. Além disso, quase todas as chamadas “corporações multina­

cionais” surpreendentemente ainda pertencem aos países onde estão sediadas, e

suas matrizes e atividades de pesquisa e desenvolvimento ainda se concentram

neles... Padrões internacionais ainda são dominados pela geografia e pela tradição:

a maior parte do comércio e troca de propriedades ocorre entre vizinhos e aliacios

de longa data, como Inglaterra e Estados Unidos; os Países Baixos, a Dinamarca e

a Suécia continuam sendo as economias mais internacionalizadas; os Estados Uni- •

dos continuam basicamente nacionais; o Japão continua insulare o mais nacional de todos. As economias domésticas e as taxas de investimento correspondem a mais ou menos 75 por cento entre os países doocm:, indicando que o capital

externo não é tão internacionalmente móvel assim — embora essa correlação esteja agora caindo levemente. H as diferenças das taxas de juros reais entre os paí­ses são quase as mesmas de cem anos atrás. Na verdade, não sabemos se em muitos aspectos o capitalismo está mais transnacional do que já era antes de 1914, exceto

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pelo caso especial da formação da União Européia. Essa é difícilmente uma base

econômica na qual se possa fundamentar teorias muito generalizantes sobre o fim

do Estado-nação — ou, de fato, da emergência de urna sociedade “pós-moderna”.

Ainda assim, as instituições financeiras do capitalismo global diferem das que existiam no começo do século xx. O dinheiro corre pelo mundo com uma velocidade gratificante ao transnacionalista mais desenfreado. O que devemos enfatizar aqui é que enquanto essa é uma nova configuração das instituições financeiras, a pressão nos Estados vai no sentido de conformá-los ao capital mesmo que retenham algum controle aparente de seus territórios. Nesse con­texto, as discussões nas salas de aula das humanidades sobre o declínio do Estado-nação podem ser um tanto prematuras. A complicada intersecção entre os Estados e o capital financeiro em nossos dias anuncia a crise do modelo neo­liberal que deve deparar-se com um crescente aumento da desigualdade econô­mica, a incapacidade do Estado de consolidar a si próprio e de agir como prove­dor e patrocinador das instituições, sua ineficiência em controlar a corrupção, a impossibilidade de reconciliar os interesses transnacionais com os direitos domésticos, como recentemente testemunhamos no caso da Argentina. As pres­sões sobre os governos não são novidade. A novidade é a pressão que o colapso de uma “modernização retardatária” exerce na burguesia nacional, de acordo com o economista político Robert Kurz.14

As formas culturais, como a literatura, estão inscritas nessa interação com­plexa entre o capitalismo global e as respostas locais aos discursos da globaliza­ção, mediadas por formações lingüísticas específicas e nacionais. Talvez seja nesse contexto que — como demonstra o trabalho de Roberto Schwarz — um retorno a Adorno possa iluminar o funcionamento das formas estéticas e não ser tão anacrônico como se pensava, mas, ao contrário, bastante oportuno, se prestarmos atenção ao impacto que os olhares periféricos podem ter na tradi­ção crítica-teórica do próprio Adorno. É por isso que o herdeiro de Adorno não mora hoje em Frankfurt, mas em São Paulo.

Traduzido do inglês por Adriana Morelli Revisão técnica de Maria Augusta Fonseca

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Quem herda não furta

Leopoldo Waizbort

Querido Teddie, ou se éfilólogo, ou não...

Walter Benjamin

1. Com esta sessão do seminário, intitulada “Herança teórica”, membros de uma outra geração começam a participar dos debates: ontem ouvimos Antonio Candido, professor de Roberto Schwarz, e também seus amigos de seminário e geração. Não compartilhei das experiências deles e nasci quando já tinham lido Marx, Keynes e Hilferding, até o golpe já tinha sido dado. Des­taco esse elemento geracional para situar muito grosseiramente a maneira como tentarei falar do trabalho de Roberto Schwarz, pois sou de um tempo no qual até mesmo escrever em língua portuguesa já tinha se tornado uma difi­culdade, com a reforma dos anos 70, que vivenciei no primário. Há uma série de peculiaridades na história da Universidade de São Paulo que, tanto quanto entendo, permitiu uma experiência compartilhada das suas primeiras gera­ções, até a geração dos meus professores — nascida, digamos, na década de 1940 — e que já não atinge a minha geração, nascida com o golpe de 1964. As primeiras gerações foram o resultado de um anacronismo histórico muito rico — uma Ungleizeitigkeit, para utilizar um termo de ontem em outro con-

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texto — , o projeto de uma universidade moderna na periferia, no exato momento em que o projeto da universidade moderna ruía na Europa. Digo tudo isto, e além do mais muito rapidamente, porque creio que o aspecto pon­tual que vou destacar a seguir é muito revelador de uma experiência universi­tária e intelectual, nesta faculdade, que se explica ao menos em parte geracio- nalmente, e que no meu caso se revela na escolha de um ponto particular, talvez mesmo bizantino, para discutir algo do Machado de Assis interpretado e revelado por Roberto Schwarz.1

2. Em seu memorial para concurso na Unicamp, redigido, salvo engano,em 1990, Roberto Schwarz afirmou que seus estudos acerca dos “ajustes e desajus­tes entre a forma do romance moderno” e uma estrutura social moldada pelo sistema colonial — isto é, sobretudo o seu grande estudo sobre Machado de Assis, publicado em duas partes em 1977 e 1990 — são tributários de um amál­gama — e já digo: um poderoso e criativo amálgama — de quatro linhagens:

a. “A visão do romance brasileiro desenvolvida por Antonio Candido”.b. Os estudos marxistas dos integrantes do seminário de O capital (diga­

mos: atraso do país como parte integrante do sistema amplo de reprodução do capitalismo).

c. O modo como Lukács, Adorno e Benjamin conceberam o conceito de forma artística, com lastro social e histórico intrínseco.

d. E agora cito literalmente: “O procedimento expositivo de Erich Auer­bach, combinando análise de texto e explanação histórica”.2

3. Dessas quatro inspirações, as três primeiras são as mais conhecidas e reconhecidas:

a. O próprio Roberto Schwarz elaborou estudos importantíssimos sobre o primeiro ponto, que revelam a afinidade extraordinária que possui com a obra de Antonio Candido — a ponto de dois de seus artigos sobre seu professor cons­tituírem, em meu juízo, os textos mais significativos já escritos sobre Antonio Candido: “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’ ” e “Os sete fôlegos de um livro”. “Pressupostos” é um texto especialmente sugestivo porque grande parte do que diz acerca de Antonio Candido faz muito sentido para a própria elaboração crítica de Roberto Schwarz.

b. Roberto Schwarz também escreveu acerca da experiência do seminário

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de O capital, explicitando sua visão da importância dos estudos do grupo e da relevância para seu próprio trabalho.

c. A inspiração de Lukács, Benjamin e Adorno é um tópico recorrente, desde sempre revelado pelo autor (desde seu primeiro livro, nos anos 60), reite­rado nos enfoques adotados, sobretudo no conceito de “forma literária”, que nunca deixa de comparecer em seus estudos. No prefácio a Um mestre na perife­ria do capitalismo: Machado de Assis, o próprio Roberto Schwarz destacou sua inspiração na trinca mencionada.

d. A importância de Auerbach é, dentre aqueles quatro aspectos, a que menos despertou até agora atenção. Quero me deter nela.

4. Combinar análise de texto e explanação histórica: exatamente isto Auer­bach entendia por filologia, em uma construção disciplinar que estava referida de modo bastante enfático ao seu contexto histórico. No primeiro pós-guerra, inúmeros campos de conhecimento tentaram formular e reformular esse pro­blema; os desenvolvimentos posteriores definiram e classificaram de modos muito mais definidos e circunscritos tradições, vertentes ou linhagens que, vis­tos nos debates da época, comunicavam-se explícita e implicitamente. Na filo­sofia, no direito, nas filologías (clássica, românica e germânica), na teologia, na história da arte, na economia, na sociologia, na história, nos estudos literários encontramos tentativas bastante similares de formulação e encaminhamento desse problema (digamos: o teor histórico e social das formas culturais), sem­pre, é claro, pautado por seus objetos e problemas particulares. Os variados debates acerca do historismo — mesmo quando não assim denominados e mesmo quando não referidos às principais tomadas de posição — impregnam uma gama muito variada de autores e obras, nas quais se pode, sem grande esforço, situar tanto Lukács, Benjamin e Adorno, como Auerbach.3

Portanto, quero sugerir que a mencionada “interpretação histórico-socio- lógica das formas” não está muito distante da “combinação de análise de texto e explanação histórica”, embora não se confunda imediatamente com ela. Fer­nando Novais já enfatizou a legitimidade de uma identidade disciplinar para a história; os sociólogos prefeririam deslocar a questão de uma história discipli­nar para uma história do problema, lembrando um Max Weber que sabem de cor: interessa “menos a conexão objetiva das coisas do que a conexão cognitiva dos problemas”.4 De todo modo, pretendo apenas indicar essa questão, pois, a

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julgar pelo encaminhamento dado por Roberto Schwarz, há a preocupação em distinguir. Ou melhor: a preocupação genealógica, fundamental no que diz res­peito à herança, demarca vertentes, mas somente para, logo a seguir, figurá-las em uma outra e única coisa.

5. Vista sob a perspectiva dos anos 50/60, a obra de Auerbach oferecia solu­ção para certo impasse do New Criticism, que dominava amplamente os estu­dos literários na América do Norte e que também, sobretudo através de Afrânio Coutinho, tentava firmar reputação no Brasil. Naturalmente há um rico debate local sobre essa questão, no qual o crítico do Rio de Janeiro se embate com os paulistas — Antonio Candido e Sérgio Buarque — , certamente um tema signi­ficativo para os anos de formação de Roberto Schwarz e que deixo à investiga­ção de Francisco Alambert. De todo modo, quando Roberto Schwarz vai a Yale— e inclusive torna-se aluno de Wellek— , a desconfiança do New Criticism em relação à história, em relação à dimensão histórica como uma componente intrínseca da obra de arte literária, ainda prevalecia,5 e Auerbach, que falecera na mesma Yale havia cerca de cinco anos, oferecia uma resposta inigualável, e para alguns insuperável, ao New Criticism.

6. Todo o ganho da close reading poderia ser incorporado em uma leitura eminentemente histórica, mutatis mutandis repetindo, na América, um movi­mento que se operara exatamente naquele momento do primeiro pós-guerra na Europa: da filologia românica alemã de um Spitzer para uma historicização dos seus modos de análise — foi assim mesmo que o próprio Auerbach definiu sua diferença em relação à esse seu grande amigo-concorrente. Portanto, “análise de texto e explanação histórica” foram desde o início, desde seu doutoramento em 1921,o problema de Auerbach.6

7. Como Auerbach resolve, ou ao menos tenta resolver, essa cópula, e em que medida é possível alinhar ou desalinhar a obra de Roberto Schwarz à sua solução? Afora o manual que escreveu para seus alunos turcos no final da guerra, não se encontra em Auerbach explanação histórica que não derive da análise de texto; ou seja, a análise de texto, ao se realizar, mobiliza material histórico — que como que brota de dentro da obra em análise (lembrem-se do enfado de Julien Sorel, que Auerbach pinçou com precisão histórica micrológica) — , de sorte que o resultado é a cópula, na qual o texto, que é sempre o ponto de partida, oferece ele

r

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próprio, e ao mesmo tempo exige, a explanação histórica como condição da sua compreensão, por ser a dimensão histórica uma componente intrínseca do texto. De fato, no entender de Auerbach as duas coisas ligam-se com tal determinação que seria uma impropriedade falar do texto, e mais ainda tentar compreendê-lo, sem ao mesmo tempo não realizar em alguma medida a explanação histórica: o texto revela a história, e a história revela o texto. Uma espécie de determinação mútua, em meio à qual emerge o trabalho do filólogo. No caso de Auerbach, isto depende de sua compreensão de época enquanto totalidade e remete a sua solu­ção para os problemas do historismo. Isto não nos interessa hoje e apenas men­ciono a sua solução, pois o caso de Roberto Schwarz é diferente.

8. Em um seminário dedicado aos trabalhos de Roberto Schwarz, é desne­cessário reiterar em que medida seus estudos sobre Machado de Assis enraizam- se nessa unidade articulada pela cópula, isto é, em que ampla medida sua aná­lise de texto — por vezes a análise de uma simples expressão — exige e oferece explanação histórica ou, como já indica o subtítulo lukacsiano de Ao vencedoras batatas, a forma literária do romance novecentista articula-se ao processo social mais amplo da sociedade brasileira. Não há dúvida alguma de que isto pode e deve ser compreendido também naquela vertente indicada antes, a “análise his- tórico-sociológica das formas”, o que apenas dá mais uma volta na amarração densa da análise em tela. Este é um ponto importante: a análise de Roberto Schwarz conjugou de modo muito original algo que a história havia separado, essas duas linhagens que, enraizadas naquele pós-guerra, separaram-se em construções disciplinares e ideológicas bem distintas. Em favor de sua síntese, seja dito que o resultado incorpora, passo a passo, as duas pontas, de modo que me parece impossível, rigorosamente falando, falar delas em separado — a não ser rapidamente, como é o caso aqui.

9. Quero dar um exemplo: discutindo Balzac, Lukács afirmara que seu rea­lismo era um grande e verdadeiro Realismo (com “R” maiúsculo, como também escreve Roberto Schwarz) por figurar a “vida popular”, e essa vida popular possuía potência generalizadora e totalizadora— não dizia absolutamente respeito apenas aos “de baixo”. Em vista disso, Lukács pôde concluir que Balzac, superando certa pendência da forma clássica do romance histórico, fora capaz de figurar “o presente como história”. “O presente como história” significava, para Lukács, que Balzac

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retratava o seu tempo presente, compreendendo-o como um fenômeno intrinse­camente histórico, sendo capaz de deixar para trás todas as explicações baseadas em pontos de vistas particularistas.7 Balzac falava de seu presente, mas isto significava mobilizar toda a Revolução e a Restauração: o presente era história.

}á Auerbach destacava como, em Balzac, a vida política, social e econômica permeava desde a raiz aquilo que era figurado; tratava-se da vida contemporâ­nea dos homens vista como enraizada na totalidade da vida social, na realidade concreta do mundo no qual vivem. O presente, o domínio da vida cotidiana na qual mulheres e homens vivem, é compreendido como histórico. Como resul­tado, Auerbach formulou exatamente o mesmo que Lukács, ou seja, que em Bal­zac temos“o presente como história”, em contraposição aos moralismos de vária extração.8

10. No Machado de Assis de Roberto Schwarz temos uma problematização disso tudo e em diálogo com isso tudo.

a. Nas obras da primeira fase, Roberto Schwarz destacou como Machado de Assis opera um recuo do tempo presente, de forma que figura a sociedade de um modo já um pouco antiquado. Cito inclusive para que possamos fruir sua prosa muito particular, que aguarda estudo:

Assim, o dinheiro neste romance [Iaiá Garcia] não tem existência autônoma, e aparece direta e “naturalmente” vinculado ao poder paternalista, do qual é um apêndice não-contraditório. Uma solução que tem a relativa verdade que já vimos, e que do ponto de vista da unificação literária é vantaj osa— mas ao preço de recuar da sociedade contemporânea. Por mais rigorosa que seja a análise das relações paternalistas, a exclusão da esfera do dinheiro autônomo tem um efeito idealiza­dor, e dá aos conflitos deste livro uma dignidade antiga, que os outros, mais perse­guidos pelo dinheiro, não têm. Por outro lado, a idealização não parece forçada, e talvez se possa dizer que consiste simplesmente num modo um pouco velho de encarar a sociedade contemporânea, nos termos que foram próprios à sua fase anterior, quando a presença do dinheiro e da mercadoria no relacionamento pes­soal ainda seria menor — um modo de ver que decerto continuava muito genera­lizado e acatado, embora já não viesse a propósito, e representasse uma renúncia intelectual.9

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Isto é uma caracterização do realismo do primeiro Machado. Diferente, portanto, do “presente como história” assinalado por Auerbach e Lukács na Europa. Mas há um detalhe muito significativo, que vale destacar: é que, para Auerbach, o presente como história fora interpretado, em Mimesis, como que­bra da regra de separação dos estilos: no realismo de Balzac foi possível atribuir seriedade, profundidade, problematicidade e dramaticidade à vida simples e cotidiana de pessoas simples (todos os seus leitores se lembram da caracteriza­ção de Mme. Vauquer, uma dentre muitas).10 No romance de Balzac temos um máximo de seriedade, dramaticidade e problematicidade — aquilo que, para Auerbach, indica o teor realista— no registro da vida comum dos seres comuns: rompimento total da regra de separação dos estilos, o que é mais nobre, elevado e sublime encontra-se no baixo, simples, humilde e comum. Portanto, segundo Auerbach, o realismo europeu do século xix enterrava a regra da separação de estilos; segundo Roberto Schwarz, o realismo machadiano da primeira fase opera ainda com a evitação do baixo ou, mais precisamente, com a eleição dos assuntos decorosos, e não obstante rompe de um modo muito particular com a tal regra, na medida em que figura a vida popular, nos termos de Lukács, ou a totalidade da vida dos homens, nos termos de Auerbach. A eleição dos assuntos decorosos tinha uma potência que não possuía na Europa, onde seria mero moralismo; mas aqui, por conta da concretude do paternalismo— isto é, de um índice histórico específico — , possuía uma generalidade peculiar. Marcando a diferença: em Balzac temos, no entendimento de Auerbach, uma literatura na qual “são válidos todos os gêneros estilísticos e todos os níveis” e cujo escopo é o todo, “uma apresentação total da sociedade francesa no século xix”.11 No Machado da primeira fase, o princípio do decoro/paternalismo dá certa apre­sentação da sociedade brasileira, mas o faz preservando o estilo elevado.

O notável, portanto, é que no primeiro Machado temos uma manutenção da separação de estilos, mas não obstante uma espécie de figuração da totali­dade da vida contemporânea, pois que o decoro diz mais sobre a vida concreta dos homens do que o papel determinante do dinheiro (como era o caso na Europa). Ou, por outro lado: no grande realismo europeu a figuração da tota­lidade da vida concreta dos homens só podia se realizar através da figuração do papel central do dinheiro, o que não vale tal e qual na periferia, onde operam com atualidade formas arcaicas — sobretudo as relações paternalistas. Daí o romance da primeira fase estar às voltas com o oximoro do “obséquio impes-

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soai”, que Roberto Schwarz expõe à luz do dia na análise penetrante dos primei­ros romances.

b. Na obra da segunda fase, a generalidade opera no sentido exatamente invertido em relação a Lukács: não é o “de baixo” que realiza a generalidade, mas “o de cima”. O último parágrafo de Ao vencedor as batatas formulou essa ques­tão, e Um mestre na periferia do capitalismo tratou de demonstrá-la (nos termos anteriores: não há mais decoro algum; nos termos do livro de 1990: “a volubili­dade narrativa confere a generalidade da forma”).12

Como aprendemos com Auerbach, o realismo moderno, um resultado his­tórico, realiza-se na mistura de estilos, na possibilidade de livre exposição dos assuntos em vários níveis, e isto resulta na possibilidade de exposição da reali­dade como totalidade em movimento. Acho que Roberto Schwarz seguiu essa pista: na análise de Helena, mas sugerindo certa generalidade da questão, ele aponta a “diversidade estilística” que caracteriza a prosa machadiana, não dei­xando de sublinhar que se trata de “prosa realista”. Destacando a variedade esti­lística da prosa, pergunta por seu sentido; para ele, tal diversidade é “demonstra­ção de força e recurso literários”, o que significa, na sua pena e no seu argumento, processo social mediado na forma literária. Resultado: realismo peculiar de Machado de Assis. Ou, para ficarmos nos termos em que Antonio Candido for­mulou a questão: “desvenda a máquina do mundo, o ritmo profundo das rela­ções sociais”. Aí se anuncia o Machado da segunda fase, que Roberto Schwarz já indica em Ao vencedor as batatas:

levada mais longe e tratada em veia humorística, algo com o um desnível de frase a

frase, esta mesma diversidade ideológica e retórica será um ingrediente essencial

da prosa machadiana ulterior, em que a freqüentação alexandrina e mercurial de

todos os estilos acaba sendo o nosso único estilo autêntico, um achado literário em

que a salada intelectual do país encontra seu registro imortal. A coexistência indis­

criminada de maneiras, todas igualmente prezadas, desde que tratadas competen­

temente, é uma fatalidade de culturas dependentes como a nossa.13

Vale destacar, então, como Roberto Schwarz reconfigura formulações de Auerbach. Em primeiro lugar, trabalha no registro estilístico do filólogo, exami­nando a composição de frase a frase — basta lembrar a abertura de Um mestre,

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que segue o modelo de Mimesis. Em segundo lugar, a diversidade é modo de retomar a “mistura de estilos”, marcando que a possibilidade de um estilo autén­tico, isto é, a peculiaridade do realismo de Machado deriva do processo social; esta seria uma maneira como a leitura e inspiração auerbachiana é trazida ao registro do problema da forma. Por fim, e como outra face do precedente, a espe­cificidade é relacionada ao processo do desenvolvimento como um todo (desi­gual e combinado), donde chegamos às “culturas dependentes”. O que leva a perguntar se isto não veio a significar uma outra via de desenvolvimento do romance moderno, pois que chegamos à mistura de estilos por caminho próprio.

11. Referir-se a Erich Auerbach no que diz respeito ao “procedimento expo­sitivo” pode parecer remissão a um elemento superficial, talvez a um modelo con­sagrado em Mimesis, mas não é bem assim. O problema da exposição está no âmago mesmo do procedimento analítico e interpretativo, sobretudo a partir do momento em que se almeja uma forma de exposição que seja “dialética”: trata-se de expor o movimento do objeto, e isto se torna uma exigência difícil e complexa, pois a exposição só estará à altura do movimento se esse movimento revelar-se na própria exposição.14 Ora, se ao primeiro olhar o procedimento expositivo, ins­pirado em Auerbach, conjuga análise de texto e explanação histórica, um exame mais detido do texto indica que são precisamente esses dois elementos que pos­sibilitam e determinam a exposição. Falando um pouco esquematicamente: é a contraposição contínua de análise de texto e explanação histórica que oferece impulso e dá o andamento à exposição, de sorte que o texto é o resultado desse encadeamento. Mas, então, isto se atrela a outras dimensões apresentadas no “Memorial”, pois “a visão do romance brasileiro desenvolvida por Antonio Can­dido”, tal como compreendida por Roberto Schwarz— exposta por exemplo em seu texto “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’ ”— , baseia- se exatamente nesse mesmo encadeamento. E a compreensão de forma artística por aqueles “corifeus” do marxismo ocidental (para lembrar Merquior) baseia- se também nesse mesmo encadeamento. É claro que em maior ou menor grau, com ênfases variadas, recursos diversos e resultados particulares.

Como o próprio Roberto já indicou, Antonio Candido conjugou seu conhecimento do New Criticism e sua capacidade extraordinária para a leitura atenta da obra literária com o reconhecimento de sua historicidade de raiz, o que

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resultou em uma espécie de transfiguração do close reading âesistoricizado em uma compreensão histórica de estruturas literárias.1" Tal movimento é assom­brosamente similar ao que, anos antes, Auerbach havia realizado, quando so­mava à tradição de sua disciplina, a filologia românica alemã, uma preocupação com o teor histórico concreto das obras. Nos anos 30, decisivos para a definição de seu trabalho, chegou mesmo a formular o programa em termos de forma lite­rária, na qual se depositava a história; com isso, alinhava-se substancialmente à vertente Lukács-Benjamin-Adorno, embora por outra via. Em paralelo, Walter Benjamin tomava como tarefa dialetizar a filologia, tomando-a para si e trans­formando o método histórico em filológico.

Um interesse não menor do trabalho de Roberto Schwarz é evidenciar, em um arco de desenvolvimento histórico, como vertentes críticas aproximam-se e afastam-se ao longo do tempo, possuindo dinâmica histórica própria. Assim, se nos anos 30 o espaço que separava, digamos, um Walter Benjamin de um Erich Auerbach referia-se mais ao espaço social no qual procuravam situar-se e à dinâmica própria do campo intelectual, e menos às concepções de crítica literária ou filologia, a interpretação de Machado de Assis por Roberto reapro- xima essas figuras, reunifica uma dimensão cognitiva que a história desses autores e de suas recepções havia cindido, efetivando uma virtualidade desde sempre presente. Algo similar também pode ser dito com relação a Lukács e Adorno, por um lado, e Auerbach, por outro, no que diz respeito a uma concep­ção enfática e histórica de forma literária, que se revela sobretudo em textos menos conhecidos de Auerbach, que, em Mimesis, por razões que não vêm ao caso, excluiu ao máximo referências explícitas à questão, preferindo, tal como Roberto, relegar os fundamentos teóricos ao subsolo do texto e construir este mediante o movimento mesmo da análise — exatamente o nexo relativo à forma de exposição mencionada.

Roberto Schwarz não “aplicou” nenhum desses autores, mas inspirou-se neles, transfigurando-os em uma moldagem peculiar de análise. “É preciso estu­dar o que acontece com os modelos europeus depois que eles passam pelo filtro das novas circunstâncias.”16Uma das coisas que ocorrem é que as novas circuns­tâncias permitiram realizar uma síntese teórica que, na Europa, nos anos 30, era tolhida por uma série de constrangimentos pessoais, intelectuais, políticos e ins­titucionais. Em meu juízo, o ponto de encontro mais depurado de todas essas vertentes que Roberto menciona em seu “Memorial” foi expresso por Antonio

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Candido, ao afirmar que mimesis é poiesis.17 Isto dá estatuto de autonomia à pro­dução literária, ao mesmo tempo em que a vincula à realidade concreta na qual vivem os homens. É este o problema enfrentado por Roberto Schwarz em sua interpretação de Machado de Assis; denominou-o, ao final de Um mestre na periferia do capitalismo— Machado de Assis, “mímese histórica”.

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Pressupostos, salvo engano, dos pressupostos, salvo engano

Jorge de Almeida

Os títulos enganam. Diante do anúncio de sua célebre palestra sobre lírica e sociedade, o próprio Theodor Adorno apressou-se em alertar os ouvintes de que não pretendia ali enfileirar considerações sociológicas sobre seu “frágil e delicado” objeto, antecipando-se à reação de parte do público, perplexo pela possível contaminação sugerida pela proximidade entre os dois termos do títu­lo, tomados em geral como excludentes.“Quem seria capaz de falar de lírica e so­ciedade, perguntarão, senão alguém totalmente desamparado pelas musas?”1 A pergunta irônica volta-se durante o ensaio contra o próprio público, já que Adorno mostra como a lírica moderna falaria justamente desse abandono, da tímida consciência de que o “sopro de amor” já não toca o coração dos homens, e por isso mesmo teria sido possível traduzir em versos o sofrimento que acom­panha toda “vida danificada”. Ninguém estaria a salvo do engano de quem havia entendido mal o título, e essa seria uma das primeiras lições da dialética, cujas musas adoram o crepúsculo.

Nesse mesmo sentido, o título proposto pela organização do colóquio para esta mesa, “O parâmetro frankfurtiano na obra de Roberto Schwarz”, é mais produtivo pelo que pode dar a entender do que pelo que de fato significa. A tarefa de “salvar o engano”, aqui, não deve ir apenas contra a expectativa de considerações gerais a respeito de um eventual “método schwarziano”, inspi-

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rado ou influenciado (tema caro à sociologia do conhecimento, que gostaria de localizar com precisão as musas de que tanto carece) pelos mestres de Frank­furt. O engano salva justamente os pressupostos do que está em jogo: a descon­fiança diante de qualquer método previamente definido, e portanto indiferente às contradições singulares do objeto. No caso de Schwarz, cujo objeto preferido é justamente um mestre atento à maneira como os “parâmetros europeus” gira­vam em falso por aqui (daí seu teor de verdade, tarefa que coube ao crítico des­vendar), qualquer reflexão sobre o modo como sua própria obra incorpora e redefine os principais temas da teoria crítica de Adorno e Benjamin (e os de autores que a ela se opuseram, trilhando entretanto um caminho paralelo, como Lukács e Brecht), envolve necessariamente uma desconfiança diante des­ses mesmos pressupostos, em uma época em que poucos resistem ao canto de sereia que afirma justamente o contrário, atraindo os leitores à aparente segu­rança, na verdade trágica, das eternas e incontestáveis discussões sobre meto­dologia. “Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualifica­ção das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso)”,2 já ponderava Schwarz no início da década de 1970, ironizando em seus “19 prin­cípios para a crítica literária” algo que, em seus próprios textos, buscava evitar, menos por uma questão de princípio do que pelo sentido que atribuía à prática da crítica literária.

Seria interessante, no entanto, saber o que teria acontecido se o jovem estu­dante de literatura e filosofia tivesse caminhado diretamente da periferia ao cen­tro, indo estudar com Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social, no iní­cio da década de 1960. Pelo que sei, Adorno o aceitou como orientando, depois de ler seu projeto de pesquisa (enviado por carta) sobre temas da crítica literá­ria materialista. Curiosamente, Adorno era na época praticamente um desco­nhecido nos debates da crítica internacional, e mesmo na Alemanha do pós- guerra sua obra ainda era pouco discutida. O “acaso objetivo” que levou o jovem estudante de literatura e filosofia, interessado pelo marxismo, a folhear com espanto o livro Dialética do esclarecimento, em uma livraria do centro de São Paulo, marcou o primeiro contato com uma corrente crítica que, materialista e de esquerda, colocava em questão as certezas da crítica marxista da cultura, nor­malmente curvada aos ditames do partido, em função do momento histórico. Na carta-resposta, Adorno anunciava inclusive que o tema de seu próximo curso, sobre estética (1961-62), sem dúvida interessaria ao orientando brasi-

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leiro. Mas a burocracia alemã foi lenta, e Schwarz resolveu aceitar outra bolsa, que o levaria à Universidade de Yale, para uma temporada de estudos que deu origem aos ensaios reunidos em A sereia c o desconfiado (1965). Nos Estados Unidos, Schwarz foi um importante divulgador da obra crítica de Adorno, até então ignorada pelos americanos, apesar dos textos sociológicos e musicais publicados durante o exílio. Na nota que acompanha a primeira tradução de um livro de Adorno para o inglês (a coletânea Prisms,' publicada com prefácio do próprio autor em 1967), os tradutores agradecem o auxílio do próprio Adorno, e também de sua mulher Gretei e dos professores Herbert Marcuse e Irving Wohlfahrt. E concluem: “Finally, a particular debt o f gratitude is due Roberto Schwarz, o f the University o f Sao Paolo (sic), who introduced us to the work o f Adorno and the Frankfurt School V

Reconhecidas as dívidas, buscaríamos em vão, contudo, ensaios de Schwarz sobre Adorno e outros teóricos dessa tradição crítica alemã. Levando a sério o “primado do objeto”, o debate com esses autores deixa de se estabelecer em um confronto abstrato de abordagens e sistemas, encontrando enfim seu lugar na crítica de obras específicas: dos clássicos da literatura brasileira e euro­péia aos problemas da vida cultural no capitalismo tardio. No entanto, justa­mente essa desconfiança em relação a discussões abstratas de método pode ter intenção teórica, quando se pensa no modo como esses autores foram incorpo­rados pela tradição crítica brasileira. Sabemos o quanto as obras dialéticas, desde Hegel, desconfiam dos prefácios, preferindo confiar ao leitor uma expo­sição do assunto. Mas é justamente no prefácio ao livro Um mestre na periferia do capitalismo (1990) que encontramos pistas do sentido mais adequado daque­les “pressupostos”. Nesse breve texto, Schwarz insere, quase como um agradeci­mento, a seguinte passagem: “Devo uma nota especial a Antonio Candido, de cujos livros e pontos de vista me impregnei muito, o que as notas de pé-de- página não têm como refletir. Meu trabalho seria impensável igualmente sem a tradição— contraditória— formulada por Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno, e sem a inspiração de Marx”.5 Ao contrário do que se possa pensar, não temos aqui uma declaração de método ou “explicitação da toada de filiações”. Os ter­mos importantes, e nos quais, salvo engano, está presente o parâmetro frankfur- tiano, para além da adoção de perspectivas e categorias de análise, são três: “tra­dição contraditória” dos quatros autores citados, “impregnação” do mestre nacional e “inspiração” marxista.

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De fato, uma “tradição contraditória”, pois todos conhecemos os acirrados debates entre Adorno, Benjamin, Lukács e Brecht, que nos apresentam visões muitas vezes opostas sobre a relação entre a crítica e prática política, o sentido das vanguardas e do modernismo, o poder emancipatório de novos meios e for­mas, para não mencionar o juízo crítico sobre obras e autores individuais, de Kafka a Thomas Mann, passando pelo próprio Brecht. É entretanto justo por assumir plenamente o caráter contraditório dessa tradição materialista que Schwarz se insere na tradição do que se costumou chamar, desde a década de 1930, de “teoria crítica”. Uma teoria que não tinha como objetivo a consolidação de um sistema, desconfiava da universalidade dos axiomas, recusava a simples separação entre sujeito e objeto, implodia a divisão acadêmica do trabalho inte­lectual, pensava sua atividade teórica como prática política e, finalmente, recu­sava a definição prévia de um “método”.

Os verbos estão no passado porque, no “centro do capitalismo”, essa tradi­ção não sobreviveu incólume, como nos mostra a história da recepção desses autores na Alemanha, onde as “novas gerações” abandonaram, orgulhosas, o espírito do ensaio crítico dialético, retornando a uma concepção sistemática de ciência e à busca da prescrição, mais ou menos evidente, de métodos de análise e interpretação da arte e da sociedade. Da “teoria da ação comunicativa” de Haber­mas à “teoria do reconhecimento” de Axel Honneth, a teoria crítica acabou sendo reformulada em teoria tradicional, o que não deixa de ter interesse para o crítico capaz de perceber nesse passo as marcas da história contemporânea.

Lembro isso apenas porque, quando da publicação do livro sobre Machado de Assis, não foram poucos os representantes nacionais dessas “novas gerações frankfurtianas” que acusaram Roberto Schwarz de falta de rigor. Eu era estu­dante de filosofia quando ouvi um professor reclamar do “ecletismo” do livro, da falta de distinção entre o sentido preciso de categorias adornianas, benja- minianas e lukacsianas, para não dizer da incorporação de Brecht, um autor eminentemente avesso à especulação filosófica. Outros colegas exaltavam ou criticavam, em suas leituras do livro, a vitória de Lukács sobre Adorno, ou la­mentavam a pouca importância dada a Benjamin, transformando o tradicional “Fla-Flu” do debate intelectual no Brasil (tema caro a Schwarz e a Paulo Aran­tes) num verdadeiro torneio, no qual Antonio Candido e Marx haviam caído nas primeiras rodadas. Do outro lado, no âmbito das letras, o interesse das idéias sobre Machado de Assis e a formação do romance brasileiro no século xix

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sucumbiam freqüentemente à busca pelo reconhecim ento de uma clara filiação

metodológica. Desatentos à equação proposta no livro, m uitos assumiam a pos­

tura iá lamentada pelo autor, no ensaio “Nacional por subtração”, publicado em

1986: “Nos vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao trânsito da

critica por im pressionism o, historiografia positivista, New C riticism am eri­

cano, estilística, marxismo, fenomenología, estruturalism o, pós-estruturalismo e agora teorias da recepção’? É com o se, acostum ados a essa frágil lógica de apro­

priação apressada, alguns de seus pares tivessem recon h ecid o na obra de

Schwarz um novo item (“frankfutianism o”, ou “sociologism o frankfurtiano”,

uma derivação do famigerado “sociologism o literário paulista”) nessa lista já

extensa, o que os dispensaria da autocrítica e da atenção ao objeto, diluindo os

argumentos no conforto da culpa com partilhada.

Mas qual o sentido da incorporação dessa “tradição contrad itória”, que

recusava a própria concepção de tradição, pois alicerçava suas contradições na

dinâmica da história contem porânea? De início , poderíam os responder que,

para Schwarz, essa “tradição” foi crucial não por ter apresentado respostas, mas

pelo modo com o identificava no detalhe de cada obra os problem as gerais que

o tempo impunha à literatura e às artes. A com plexidade do processo social, ao

ser reconhecida pela crítica, transform ava a contradição entre as diversas pers­

pectivas no fundamento da possibilidade de, justam ente por não abrir mão da

contradição, ilum inar adequadamente os problem as históricos sedimentados

nos seus ob jetos. Isso foi logo reconhecido por Schwarz, com o se vê neste trecho

de sua entrevista a Eva Corridor:

Mas, voltando à sua questão, agora eu prefiro buscar alguma complementariedade

entre Lukács, Beniamin e Adorno a descartar um ou dois deles. [...] O argumento

pode parecer salomónico, mas a verdade é que cada um deles tinha um enfoque dife­

rente. Um se volta para o desenvolvimento das forças produtivas, o outro para a alie­

nação, e o terceiro para a luta de classes. Os très aspectos ainda existem, todos muda­

ram tremendamente e não me parece produtivo escolher exclusivamente um lado.

Schwarz evita a batalha de bibliografias, sem entretanto cair no ecletismo,

pois se aferra ao objeto e suas contradições. A atenção aos problemas implica a

recusa ao método e, no caso da crítica, respeito pela singularidade do objeto, a obra artística em questão, que não pode ser tratada com o mero exemplo de teses

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já definidas ou como ilustração da aplicabilidade de categorias gerais. O reco­nhecimento do primado do objeto impõe a diferença específica da obra de Schwarz em relação à de outros que pretendem “aplicar” Adorno, Benjamin, Brecht ou Lukács, e mesmo Candido, perdendo assim de vista justamente aquilo que nos objetos contradiz e nega, de modo produtivo, as categorias dispostas previamente para a análise. Quando esse “primado do objeto”, na obra de Schwarz, é levado às últimas conseqüências, acaba colocando em questão, por uma especificidade adicional decorrente de sua inserção na “periferia do capi­talismo”, até mesmo alguns pressupostos da teoria crítica. Pois a recepção dessa tradição contraditória foi “preparada”, como diz Schwarz, pelo trabalho de Antonio Candido: isso foi fundamental, contribuindo até mesmo para a crítica do “frankfurtianismo” como método acadêmico. Em uma entrevista por oca­sião dos cem anos de Adorno, Roberto insiste nesse ponto: “Naqueles mesmos anos, Antonio Candido — de quem eu era aluno — estava elaborando uma noção materialista da forma literária, que ia no mesmo sentido”. Em seguida, mostra a diferença de tom e de ambição, de uma reflexão voltada para “o sentido e o destino da civilização burguesa como um todo” (a dos frankfurtianos) e de Candido, cujo objeto era “a peculiaridade da experiência brasileira, seja literá­ria, seja social”. Aqui, o contraponto é mais uma vez produtivo:

Ao assumir resolutamente o valor de uma experiência cultural de periferia, ao não abrir mão dela, Antonio Candido chegava a um resultado de peso, que de perifé­rico não tem nada: a universalidade das categorias dos países que nos servem de modelo não convence e a sua aplicação direta aos nossos é um equívoco.8

Por isso a ênfase no valor da prática do ensaísmo crítico como pressuposto da discussão teórica (o que ocorria também em Adorno e Lukács, embora alguns de seus leitores, embriagados pelo título de obras como “Teoria estética” e “Esté­tica”, tenham se aferrado apenas à trama dos conceitos, descartando como “meros exemplos” as inúmeras referências críticas a obras e autores da arte moderna e contemporânea, que justamente dão lastro e sentido à reflexão teórica). Esse cui­dado para não se perder nos meandros da teoria já estava presente em Antonio Candido, que lamentava, no prefácio à segunda edição da Formação da literatura brasileira, o quanto seus leitores haviam ficado presos à leitura da introdução:

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o que parece haver interessado realmente aos críticos e noticiaristas foi a introdu­

ção, pois quase apenas ela foi comentada, favorável ou desfavoravelmente. Esse

interesse pelo método talvez seja um sintoma de estarmos, no Brasil, preferindo

falar sobre a maneira de fazer crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer

efetivamente crítica, revolvendo a intimidade das obras e das circunstâncias que as

rodeiam .9

Em Schwarz, a “impregnação” da obra de Candido leva também a uma reflexão sobre o papel da teoria literária (matéria, diga-se de passagem, da qual ambos foram grandes professores):

É claro que temos de ler a teoria contemporânea para ficar em dia com o debate,

que é sempre significativo de alguma coisa. Mas adotar os seus termos sem mais

aquela, não. Muito pelo contrário, a verificação das conceituações atuais a partir

da nossa experiência histórica, a relativização e a crítica que podem resultar daí são

uma das contribuições que podemos dar de fato.10

Essas “contribuições”, derivadas da especificidade do processo social brasi­leiro, puderam ser reconhecidas com mais clareza a partir do ensaio que Schwarz dedicou a um dos textos fundamentais de Antonio Candido, no qual um ro­mance brasileiro, as Memórias de um sargento de milícias, justamente por escapar às categorias teóricas que supostamente lhe dariam sentido, como romance pica­resco ou de costumes, apontava para a peculiaridade e potencial crítico da repre­sentação literária no Brasil escravista do século xix (e a mesma dialética ilumina o modo como as contradições sociais se sedimentam na forma nos romances principais de Machado de Assis). No ensaio “Pressupostos, salvo engano, de‘Dia­lética da malandragem’ ”, a dialética deixa de ser mero objeto de especulação teó- rico-metodológica e é salva pelo ato crítico:

Em suma, a força de intervenção do programa dialético está aí, desde que ele seja

posto em prática de fato, e não fique em fórmulas rituais. No estudo de Antonio

Candido o ato crítico (a justificativa racional de um juízo literário) reune: uma

análise de composição, que renova a leitura do romance e o valoriza extraordina­

riamente; uma síntese original de conhecimentos dispersos a respeito do Brasil,

obtida á lu/ da heurística da unidade do livro; a descoberta, isto é, a identificação

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de uma grande linha que não figurava na historiografia literária do país, cujo mapa

este ensaio modifica; e a sondagem da cena contemporânea, a partir do modo de

ser social delineado nas Memórias."

Sobre a gênese, recepção e importância desse “sentimento da dialética”, que une Antonio Candido a Schwarz, pouco resta a dizer depois do brilhante livro de Paulo Arantes,12 que, fiel às intenções dos autores que toma como objeto, ainda por cima revolve o solo histórico e intelectual no qual brota esse senti­mento.

Os pressupostos dessa concepção de dialética também inserem Schwarz na “tradição contraditória” alemã, pois retomam um lema de matriz hegeliana (também estudada por Paulo Arantes de modo exemplar) que serve de epígrafe à Filosofia da nova música de Adorno, mas também ecoa na obra de Benjamin, Lukács e Brecht: “Pois na arte temos que ver, não através de um simples jogo agradável ou útil, mas através de um desdobramento da verdade”. Essa convic­ção de que as obras literárias e os fenômenos culturais podem (e devem) ser cri­ticados enquanto objetos de conhecimento causa um inegável mal-estar, tanto nos filósofos, que defendem o privilégio do contato (pessoal e íntimo) com a verdade, como naqueles teóricos da literatura que, de uma forma ou outra, se satisfazem com a visão da arte como um jogo elevado e historicamente legítimo, com regras próprias que devem ser, estas sim, o objeto de estudo da área.

Mas, se a arte é uma forma de conhecimento específica da realidade, perde muito de seu interesse quando é vista como simples repositório de um conheci­mento já avalizado pela história ou pelas ciências sociais, ou um exemplo do que já está dado de antemão. A verdade da obra literária, como nos demonstram os bons ensaios de interpretação dialética, talvez seja mais pergunta do que solu­ção, mais uma configuração expressiva de problemas do que um conjunto de respostas definitivas com intuito prático. Assumir a contradição que dá vida a essa tradição dialética é reconhecê-la como o próprio fundamento do teor de verdade presente nas obras, na medida em que se assume a historicidade tanto das categorias de interpretação quanto do material artístico configurado a cada momento. Isso lembra outra lição de Adorno: “O artista não é um criador. A época e a sociedade não o limitam de fora, mas sim na severa exigência de exati­dão que suas próprias tormações lhe impõem”.1' Tampouco o crítico pode se exi­mir desses limites, por isso a possibilidade da crítica imanente depende de sua

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capacidade de decifrar a história presente nas obras, não apenas em seus resul­tados e sucessos, mas também em suas fissuras, contradições e lacunas. Uma idéia sempre presente em Schwarz, desde a epígrafe adorniana de seu ensaio sobre O amanuense Belmiro: “Grandes obras são aquelas que têm sorte em seus pontos mais duvidosos”.14

Nesse sentido, assumir a contradição, marca principal do esforço dialético, é justamente não abrir mão da dúvida. Essa é uma das principais características da prosa ensaística de Schwarz, recheada de expressões como “salvo engano”, “seria possível” e teses e hipóteses que se iluminam mutuamente, pela negação recíproca. Essa questão do estilo é fundamental em todo pensador dialético, desde a célebre conversa entre Goethe e Hegel. Ora, como organizar o “espírito de contradição” torna-se assim um problema essencial, na medida em que não é possível, no bom ensaio, separar o conteúdo da forma de exposição. Calcado na dúvida produtiva, pois nascida do reconhecimento das contradições do objeto (que não são meramente lógicas, mas indício de conflitos sociais), Schwarz pretende sempre superar a rigidez da certeza abstrata e aistórica, valo­rizando a tentativa como o elemento essencial ao ensaio, sem recorrer a etimo­logias. Esse interesse histórico pelo eventual engano novamente o aproxima da perspectiva materialista de Adorno e Benjamin, que jamais negaram a historici­dade inerente a suas próprias formulações. Na nota de 1978 ao texto “Cultura e política, 1964-1969”, o prognóstico errado serve como contraponto crítico ao rumo tomado pela história brasileira: “Mas por que substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que podem não estar menos equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contemporâneos é sempre mais vivo”.15

E essa necessidade de se abrir ao engano, recolhendo suas raízes históricas (a análise da recepção de Dom Casmurro, em Duas meninas, é um exemplo desse esforço), reconfigura a questão da verdade como objetivo final da interpretação. A crítica imanente, como diz Adorno, exige o conhecimento que vai além do objeto, através do próprio objeto, ou seja, encontra a marca da sociedade como princípio estruturante e expressivo, não como mero tema ou escolha formal. A relação entre arte e sociedade nos ensaios de Schwarz não se pauta pela análise sociológica nem se limita ao comentário erudito, mas busca o desafio de pensar, a cada obra específica, o sentido da mediação. O que interessa não é apenas a idéia (quase banal, embora já uma heresia) de que as obras iluminam e se dei­xam iluminar pela realidade histórica, mas sim o fato de que o material configu-

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rado na obra (lembrando que o conceito de “material” engloba até mesmo o repertorio de formas dadas em determinada época) é ele mesmo histórico, e assim participa desde o início do processo social. Chegamos enfim à“inspiração marxista”, sempre presente, e um ato de resistência quando “o marxismo está em baixa e passa por uma ladainha”.16 Nesse sentido, a opção pela leitura materia­lista não tem nada de arbitrário, é sempre fundada no próprio texto, não em convicções externas. Os “pressupostos” da crítica literária de Schwarz não incluem a necessidade de comentar o mundo, para depois verificar como as con­tradições do processo social se inserem na obra. Muito pelo contrário, é o mundo que freqüentemente não está à altura de sua imagem nas obras, e nesse momento a ideologia é desmascarada, menos como farsa do que como tragédia. A obra literária, que dá forma ao conteúdo histórico, acaba por reconfigurar a experiência social ali presente, como vemos de maneira exemplar nos estudos sobre José de Alencar e os primeiros romances machadianos, que fazem parte de Ao vencedor as batatas. Daí o interesse contemporâneo da leitura dessas e de outras obras, algo que nunca passa desapercebido a Schwarz, sempre disposto a discutir a atualidade de seus objetos (e por vezes demonstrando isso de maneira paradoxal, como no engenhoso ensaio sobre a atualidade de Brecht).17

Para terminar: seriedade, espírito de esclarecimento, generosidade e inte­resse em superar especialização acadêmica, mais do que atributos de qualidade intelectual, constituem o esforço de toda uma vida, e aqui talvez fosse possível remeter ao próprio autor os comentários que ele tece sobre as dificuldades da dialética, no estudo de Antonio Candido:

Finalmente, mesmo deixando de parte o sistema dos interesses universitários, de

peso entretanto enorm e, a posição da dialética é difícil. A separação das esferas

não é só ideologia, é a própria estrutura do processo real. Assim, visar a integri­

dade do processo representa muito mais do que uma posição de método, é um

esforço de toda a vida para não se resignar à com partim entação que o próprio

processo impõe.18

Por sua obra e atitude, Roberto Schwarz se incorpora à tradição contradi­tória que ajudou a difundir e não se eximiu de criticar, inspirando todos aque­les que se interessam em enfrentar as questões fundamentais de nossa época: onde estamos e que horas são?

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O chão e as nuvens: ensaios de Roberto Schwarz entre arte e ciência

Sergio Miceli

O pensador, na verdade, nem sequer pensa,

mas sim faz de si mesmo o palco da experiência

intelectual, sem desemaranhá-la.

Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”

Este tremendo enovelamento condensa vertentes do projeto intelectual de Roberto Schwarz, ao enredar o autor na armação dos procedimentos de inteli­gibilidade de seus objetos. Quero tirar proveito deste comentário para realçar aquelas feições de sua prosa ensaística que melhor explicitam o partido delibe­rado de se demarcar em relação às formas analíticas correntes nas ciências sociais. Tal rumo trouxe perdas e ganhos: os ensaios fincaram uma ofensiva em flancos inesperados de aproximação dos objetos; os estudos sociológicos levan­taram poeira difícil de baixar.

Roberto elegeu o ensaio como o suporte por excelência de suas notas críti­cas, abrigando-se de propósito num gênero que lhe permitia destoar do ramer- rão positivista sem baratear o fôlego interpretativo. Em lugar de sentar praça como usuário de um registro resguardado por atavios cientificistas ou de um cultismo elevado, preferiu sujeitar suas energias às circunstâncias concernentes

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a cada objeto. Em vez de se valer de roncos de autoridade no intuito de reforçar a voz, prefere invocar os mestres diletos, daqui e de fora, em algum andamento plausível na leitura de obras artísticas.

Na prática, ele acomodou seu repertório às conveniências impostas pela notável variedade de interesses. Assim, poder-se-ia averiguar seu cardápio inter­pretativo por meio dos sinais de acolhimento ou recusa dos pontos cardeais da concepção adorniana do ensaio. Tal parâmetro enseja um sobrevôo enxuto dessa herança nos textos, ao permitir apreciá-los tanto por conta das estações de fatura analítica como, sobretudo, em face das marcas de distância e estranha­mento assumidas perante a ciência social coetânea.

Roberto reconfigurou o método frankfurtiano em algo tão seu a ponto de nunca precisar explicitá-lo à margem de sua prática intelectual— um feito inve­jável, em que raros se deram bem. Ora aplicou, com manha, certos dispositivos dessa postura, ora testou rumos pouco explorados, e até mesmo dissentiu de preceitos que o próprio Adorno — é forçoso admitir — raramente cumpria, como, por exemplo, a alardeada recusa de qualquer axiomática, declarada alto e bom som no texto e rechaçada na prática pelo mestre e seu admirador brasileiro.

Formado em ciências sociais num momento ascensional dessas discipli­nas, na periferia e na metrópole, retemperado pelo mestrado em letras no exte­rior, Roberto quis explorar uma trilha menos batida na crítica literária, quando a literatura deixara de constituir o nervo da cultura brasileira. Circundado por paradigmas e estilos de análise e interpretação divergentes — de um lado, cole­gas desejosos de atualizar os feitos da grande tradição crítica inaugurada pela geração de 1890 e renovada pelo Modernismo; de outro, um punhado de inte­lectuais inovadores empenhados em pôr à prova o acervo de instrumentos recém-incorporados — , ele foi plasmando uma dicção expressiva aplicada a materiais autóctones, mas norteado por acentos de ventilação cosmopolita — um cozido bem condimentado de marxismo com sensibilidade política — que pareciam não caber nos esquadros da crítica convencional. Talvez quisesse se livrar do jargão sociológico sem aderir ao linguajar dos letrados nas diversas tin­turas do humanismo abstrato ou fenomenológico.

As feições e o estatuto da linguagem adotada configuram um primeiro divisor entre os usuários da forma ensaio e os cientistas sociais afeitos a empre­gar formatos expressivos capazes de acomodar materiais e evidências de diver­sas procedências. Daí o circunlóquio imitativo constituir quase sempre a fór­

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mula mimética para o ensaísta se assenhorear do objeto de análise, podendo-se mensurar o vigor da empreitada pelos graus de liberdade assumidos em relação às exigências da paráfrase, ora enxertando emendas a fim de ampliar o escopo do objeto, ora destapando respiros por onde se incorporam à análise evidências de outro teor, externas ao texto ou à obra de arte em pauta, ora enfim juntando nexos de compreensão nos quais o ensaísta mobiliza seu cabedal pessoal de informações. O empenho em se viabilizar como um duplo especular do objeto, o qual vai sendo apreendido e revirado por flancos variados, enuncia-se como registro pessoal, intimação petulante, luz heurística, a que não faltam as creden­ciais de autoridade do intérprete. Tais procedimentos não ocorrem em textos redigidos pelos cientistas sociais, mesmo os daqueles menos reticentes a recur­sos expressivos e narrativos do ensaio.

Minhas considerações giram em torno dos volumes de ensaios A sereia e o desconfiado, O pai de família, Que horas são?e Seqüências brasileiras/ e no inte­rior deles priorizam a discussão dos alentados argumentos sobre a cultura bra­sileira.

Como se sabe, o texto de Adorno sobre o ensaio cita em nota, logo de saída, um trecho de Lukács em que qualifica os objetos do gênero como “algo já for­mado ou, na melhor das hipóteses, algo que já tenha existido”, de modo que “ele não destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que em algum momento já foram vivas”.2 Eis aí a súmula-roteiro de todo um ideário de trabalho intelectual, o qual privilegia o exame de obras prontas, de materiais expressivos tomados na integridade de lin­guagem autônoma, em detrimento das condições sociais que presidem à elabo­ração dessas obras. Essa concepção das obras de arte, apreendidas como formas dotadas de critérios de deciframento próprios, pode ser contrastada ao trata­mento eminentemente sociológico, o qual salienta o modus operandi que está na raiz da fatura desses bens simbólicos investidos de um estatuto sui generis de existência social. A postura internalista resiste a esforços do crítico empenhado em rastrear experiências externas às obras, como que obcecado pela clausura da estetização.

Nem preciso insistir no reconhecimento de que Roberto se mostrou um bocado ousado e criativo no arranjo sociológico peculiar com que foi costu­rando, a cada momento apoiado numa argumentação mais cerrada, os nexos entre processo social e forma literária. Talvez em resposta às bruscas oscilações

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dos juízos críticos a seu respeito, batendo o mais das vezes na tecla de suas tra­mas sociológicas, Roberto se viu instado a se valer de modulações mais suaves. Empenhou-se de pronto em consolidar o travo crítico arraigado na tessitura ideológica do autor ou da obra em exame; no correr do prolongado período de exegese dos romances de Machado de Assis, teve de dialogar com as tradições críticas em torno do cânon machadiano; nos últimos anos, numa conjuntura de baixa dos apelos formalistas, nem foi preciso insistir demasiado na originali­dade de seu enfoque.

Enquanto o ensaísta adota a postura de empatia apaixonada e incondicional para com as feições estéticas das obras, como se fosse possível resgatar do tecido de recursos estilísticos a serviço da mímese um modo único e singular de elã autoral, de magia artística, por assim dizer, o cientista social jamais lhe concede um esta­tuto a tal ponto estanque dos demais produtos da prática social, ainda que possa explorar o véu de encantamento que a envolve. A atividade literária ou artística é um trabalho socialmente construído, como qualquer outro, não lhe cabendo foros privilegiados de tratamento ou sequer um status especial de vigência.

O ensaísta ou crítico literário que se preza aspira à condição de escritor, de artífice de uma prosa original, fluente, macia, persuasiva, digna de merecer uma apreciação estética. O cientista social reclama o acerto de seu argumento, a den­sidade de conexões inesperadas mobilizadas pela trama interpretativa, o vigor documental de suas fontes, a força explicativa das evidências trazidas à baila, em suma, reitera a procedência de uma leitura historicamente situada em detri­mento do estilo inerente ao intérprete. Enquanto o sociólogo tenciona estabele­cer ligamentos entre dimensões distintas do mundo social, o ensaísta dá mostras de resguardo diante de outras instâncias pertinentes à inteligibilidade da vida cultural, recorrendo a tais subsídios apenas na medida do cabedal pessoal de informações e raramente lançando-se numa atividade sistemática de pesquisa.

Não se trata, óbvio, de optar por um dos itinerários, mas de avaliar qual deles logra mobilizar recursos para dar conta daqueles objetos culturais para os quais não basta apelar à autoridade do texto, qualquer que seja e a despeito da filiação doutrinária invocada. A frase-chave esclarecedora do descompasso entre o ensaísmo e a ciência social delimita o universo abrangido pelas respecti­vas pegadas hermenêuticas, nos termos de Adorno: “Nada se deixa extrair pela interpretação que já não tenha sido, ao mesmo tempo, introduzido pela inter­pretação”.3

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Muito embora nem mesmo Adorno implemente à risca tal projeto, tudo se passa como se o objeto da análise, o foco da atenção privilegiada, tivesse meios e a força social capaz de se impor ao intérprete, ao exigir dele uma atenção redo­brada às feições singulares do objeto. Adorno sugere esse movimento — e o faz de modo tão cristalino que não houve quem não entendesse o recado — ao sus­tentar a tese de que não existe método nas operações intelectuais do ensaísta, obrigado que está a se amoldar às exigências sempre diversas e peculiares de cada objeto. Dito de modo mais claro, o objeto como que teria meios de cobrar do intérprete que se afeiçoasse a tal ponto às suas constrições internas, aos matizes de sua existência — de gênese, de fatura, de linguagem — , que esse curtidor empático passaria a operar como um carbono sensível dos materiais inquiridos.

Pela promoção de materiais expressivos ao estatuto de formas auto-sufi­cientes, na acepção de filtros sensíveis de experiências sociais transfiguradas pelos recursos do agenciamento estético em obras de arte, merecedoras de um tratamento tendente à paráfrase paroxística, o ensaio intenta firmar credenciais heurísticas e mesmo estéticas ao desqualificar todo esforço de investigação como conducente ao protocolo rarefeito, aos padrões mumificados dos relató­rios, às paráfrases dos epígonos, às classes de semelhança fixadas em teses subs­critas por gente apagada.

Por seu turno, o ensaísta convencional tende a se socorrer do trabalho inte­lectual alheio, às vezes sem nomear por completo as fontes, como que se valendo de uma linha imaginária na divisão do trabalho: de um lado, experiências e evi­dências aquém do estatuto majestoso dos materiais artísticos; de outro, os feitos polissêmicos da elaboração estética, cuja qualidade somente ele teria meios de ajuizar. No limite, o ensaio opera com uma definição algo dessorada de historici­dade e, por conseguinte, com um esquema materialista inclinado a embaralhar os rastos do processo de determinação. E o ensaísta procede assim em virtude dos atrativos escolásticos da imanência, e não porque deseje minorar o vigor do enquadramento histórico. Na medida em que mal consegue disfarçar o rechaço à indagação mais demorada sobre a gênese, dispensa o trabalho miúdo de media­ções da mímese, o que lhe permite, em caso extremo, recuperar as representações artísticas como decalques quase irreconhecíveis das engrenagens sociais.

A obra de arte teria o condão de produzir um efeito de realidade e, ao mesmo tempo, de instaurar uma inteligibilidade complexa do mundo social que, em última análise, constitui seu referente. Em retrospecto, o lembrete de

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Lukács parece abrigar uma concepção hostil às ciências sociais ao sinalizar uma atitude intelectualista, um método de trabalho pouco afeito ao confronto de evidências de teores e procedências distintos, um elogio dos atributos artesanais do ofício intelectual, um universo de valores escolásticos em estado puro, con­trapondo aqueles poucos eleitos investidos desses inexplicáveis poderes de interpretação à maioria de destituídos dessas aptidões.

Estabelece-se assim uma linha imaginária de demarcação entre duas famí­lias de materiais procedentes da experiência social: de um lado, os produtos degradados do trabalho de simbolização, cujos efeitos de mímese são desprezí­veis por conta de sua precária alquimia; de outro, as obras de arte propriamente ditas, como que tendo o condão de reter numa economia complexa de transfor­mações internas a injunção das circunstâncias, as energias inventivas do artista criador, os rastos de seus ligamentos com o entorno histórico, a substância do desígnio interpretativo, sem falar dos inúmeros expedientes retóricos mobiliza­dos pelo ensaísta. O ensaísta quer recuperar a plenitude da experiência faiscante na obra de arte; o cientista social fabrica uma causalidade adequada com mate­riais históricos de procedência variada.

Pois bem, um traço chamativo nesses volumes é a volubilidade do ensaísta, mescla enfezada de várias personas: crítico literário um tanto arredio e mesmo rebelde às constrições comezinhas do ofício, reticente aos cânones de sua prática; sociólogo enrustido; ente político antenado. Nos termos da definição sartriana, dominante no início de sua carreira, um intelectual completo. Roberto se firmou como um crítico da cultura nos moldes da tradição ensaística alemã, o qual se movimenta com desenvoltura e ousadia entre as análises densas do crítico literá­rio de velha cepa, os comentários de filmes, de arte e arquitetura, as reminiscên­cias de caráter autobiográfico e os ensaios arrojados sobre cultura brasileira.

Tirante A sereia e o desconfiado, atravessado pela obsessão, de viés lukac- siano, em averiguar hiatos entre a coerência formal e o conteúdo ideológico das obras, e no qual apenas o ensaio sobre Fellini não trata de literatura, os demais volumes mencionados parecem se ajustar à receita da mistura bem dosada de objetos, gêneros e registros, numa variedade de fôlegos do ensaísta, na pele do crítico cáustico, no prumo do polemista e na fala confessional, quase sempre buscando adequar o enfoque ao veículo e à audiência. Essa diversidade de terre­nos de análise requer perspectivas inusitadas de tratamento, ao entranhar a dimensão reflexiva por uma auto-análise trabalhosa, pulsando em filigrana, ora

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incendiada pelas experiências afetivas, ora refreada em alusões e subentendidos, ora elidida em notas de rodapé e em esclarecimentos cifrados, num andamento interpretativo que baliza os materiais expressivos pelo giro de focos cruzados. No idioma de Frankfurt, aquela espontaneidade da fantasia subjetiva amaciada pela disciplina objetiva.

Ora, a implementação na íntegra do programa adorniano correria o risco de abrir mão de um espectro diversificado de condicionantes externos que não se deixam apreender, sem mais, apenas pela força, brio e engenhos do intérprete, por . mais apto e talentoso que seja. Os ensaios de Roberto se destacam pela pluralidade de recortes, de assuntos, de visadas — um livro, um romance, uma obra poética, uma tradição intelectual, uma análise crítica, uma corrente interpretativa — , podendo-se reconhecer uma escrita cada vez mais transada ao longo do tempo.

Em alguns poucos dentre os ensaios mais petulantes ele procede ao balanço de componentes de sua aprendizagem intelectual ao empreender a fixação pro­gressiva de um paradigma de análise, de um método de trabalho, de uma embo­cadura interpretativa, como bem o demonstram as acuradas análises de ensaios de Antonio Candido. Naqueles escritos pontuados pela reflexividade, Roberto encadeia reminiscências de figuras centrais em sua formação pessoal e intelec­tual, como no caso de Anatol Rosenfeld,4 para liberar situações e sentimentos de caráter afetivo, em vinhetas de tocante auto-análise. Sem esquecer o encaixe de textos semificcionais embebidos por notações autobiográficas, como o sacana “Utopia”, no qual relata uma fogosa cantada amorosa.5

Quero ressaltar essa costura autobiográfica como um dos componentes mais relevantes do procedimento ensaístico de Roberto, ao garantir meios de acesso ao trabalho propriamente reflexivo. Assim, por exemplo, basta lembrar o trecho em que ele alude, de leve, à distância do círculo familiar de imigrantes em relação à intelectualidade brasileira para se atinar quanto às razões de fundo que o instigaram a definir um projeto intelectual tão voluntarioso e dissonante dos gonzos estreitos de arte e ciência:

Também o dono da casa era judeu alemão, e combinava o piano com a representa­

ção de uma firma de relógios. Digo isso para indicar que era um ambiente de imi­

grantes, em que o progresso no domínio do português, bem como o acesso à inte­

lectualidade brasileira, eram problema.6

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Essas e outras características de sua peculiar inserção na sociedade brasi­leira — como a experiência de sentir-se prensado entre o alemão e o português, entre dois universos culturais de expressão e pensamento — me parecem bem mais esclarecedoras do feitio assumido por seu projeto intelectual do que a toada de filiações teóricas e sintonias militantes. Ao contrário de quem imagina poder se achegar ao projeto criativo pelo descarte da ganga bruta das circuns­tâncias, melhor levar a sério acicates e bloqueios que modelaram essa entrega apaixonada ao trabalho intelectual. Diria até que tal prontidão auto-reflexiva constitui um diferencial de peso quando se compara a produção ensaística de Roberto àquelas de outros contemporâneos, ciosos de resguardar sua lingua­gem expressiva no registro de uma impessoal (e inviável) terceira pessoa. Essas notações pessoais como que o predispõem a um trabalho de auto-análise indis­pensável e ao mesmo tempo permitem recuperar pegadas do plasma criativo em que o próprio autor se reconhece.

Ao contrário do que insinua Adorno ao esboçar uma espécie de caricatura da receita positivista, contrapondo o sujeito a qualquer objeto como um objeto de investigação, os ensaios de Roberto tematizam essa relação, dificultosa e pro­blemática, motivada do início ao fim por razões sociais que escapam ao controle do intérprete. Em meio à alternativa entre os pés no chão e a cabeça nas nuvens, não se trata nem de eliminar o sujeito, sendo preciso mobilizar com paixão a reflexividade como mediação no trabalho de conhecimento, nem de situar o objeto num limbo de objetividade. Por maior que seja o mergulho, nenhum ensaísta bem-sucedido desiste de contrapor as feições do objeto analisado a uma outra coisa. E justo nessa “outra coisa” aludida pelo texto adorniano palpita a tensão entre o ensaio e a ciência, desafio que tem de ser enfrentado de algum modo pelos praticantes dos gêneros, ora salientando os princípios formais das obras como resultantes do vínculo com o entorno histórico, como faz Roberto, ora investindo numa reconstrução de gênese sobredeterminada, que vem a constituir o modo característico de demonstração acionada pelo cientista social. A obra de arte seria um concentrado de múltiplas determinações, o que dispensa o apelo à “outra coisa” — vale dizer, a qualquer coisa externa a seu suporte expressivo. O cientista é estimulado a se interessar por quaisquer injun- ções ou condicionantes, podendo até mesmo conferir torque explicativo aos múltiplos arranjos dessa “outra coisa”.

Não obstante, a feição mais cativante e provocativa dos ensaios robertianos

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sobre cultura brasileira deriva do feitio muitíssimo macetado da argumentação, em que a profusão de costuras e mediações sobreleva de longe os eventuais dis- sensos de interpretação. Apesar de discordâncias quanto a evidências ou passos da demonstração, o ensaísta, nesses estouros de ambição, pretende conectar fei­ções características da sociedade brasileira às expressões culturais dessas expe­riências históricas, tais como se sedimentaram, em toda a sua complexidade, em obras literárias, em filmes, em experimentos como o tropicalismo.

Todavia, o desvendamento por inteiro dessas peças de resistência depende, de início, do atento rastreamento da herança assumida e recusada, a começar pelas fontes intelectuais e teóricas do autor: a dialética marxista nas perspecti­vas de seus mestres centro-europeus (Lukács) e frankfurtianos (Adorno, Benja­min, Marcuse) no domínio da atividade cultural. E se completa pelo registro das ausências eloqüentes, atendo-me aqui apenas ao domínio da sociologia. Salvo engano, Max Weber é citado apenas uma vez, e ainda assim um tanto estranha­mente, nomeado como representante de uma sociologia formalista alemã e merecendo em nota um elogio personalista enunciado por Marcuse.7 Trata-se de um juízo idêntico à leitura norte-americana de Weber, na contramão de como vem se dando a recepção contemporânea de seu legado, como fundador e praticante de uma sociologia nutrida por experiências históricas em perspectiva comparada, tal como se pode averiguar nos campos do direito, da religião, do poder e da economia, entre outros. A presença rebaixada de Weber é quase tão impressionante quanto a completa omissão dos principais sociólogos moder­nos e contemporâneos, a começar por Durkheim, Mauss e Elias até chegar à geração de Williams, Gofman, Bourdieu e Cicourel, para citar apenas aqueles pertinentes à crítica da cultura. As obras desses autores não ficam nada a dever às dos frankfurtianos.

Um dos motes do argumento robertiano consiste em sinalizar as tensões e contradições entre o “nacional” e o “estrangeiro”, entre o movimento social e os feitos estéticos, entre as pulsações ideológicas do movimento político, nos pla­nos nacional e internacional, e as respostas motivadas de intelectuais e artistas. Não obstante a parca atenção conferida às constrições sociais do trabalho inte­lectual, aos condicionantes que se impõem aos projetos criativos de intelectuais e artistas, tal lacuna acaba sendo bastante compensada pela reconstrução capri­chada de como sucedeu a formatação das obras analisadas. As análises se preo­cupam em compor um rosto autoral lastreado em muitos estribos, ou seja, é pela

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via do “narrador” do texto sob exame — Paulo Emilio, Eduardo Coutinho, Machado de Assis etc. — que Roberto procede a um apurado resgate do criador intelectual em ato, na prática do ofício, ao lidar com a tradição e abrir um cami­nho inesperado.

Em nota de abertura do ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, redigida para a sua publicação em livro em 1978, dez anos após a redação original, Roberto diz que “a análise social no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e expli­car uma experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico[,] de assumir literariamente, na medida de minhas forças, a atualidade de então”.8 Tal­vez se deva ler ao pé da letra esse esclarecimento, pois havia decerto alguma pre­tensão científica no quadro da conjuntura brasileira aí armado. Como o leitor logo se dá conta, não é pequena a medida das forças do ensaísta, embora se per­ceba menos o desígnio literário desse intento de radiografar a crise brasileira.

Não caberia, óbvio, tentar agora avaliar o grau de acerto interpretativo que o ensaio sequer almejava alcançar. Eis um texto privilegiado para se tomar o pulso dos procedimentos analíticos adotados pelo autor, a começar pelo recurso axial desse andamento, o de averiguar a concatenação estética entre forma expressiva e conteúdo ideológico, passo indispensável para que se possa ajuizar eventuais ganhos de artisticidade no interior do esquema histórico mais abrangente.9

Ao qualificar a hegemonia cultural da esquerda no pós-64, Roberto con­fina tal domínio ao âmbito estrito dos grupos responsáveis pela produção ideo­lógica, sem deixar de assinalar os sinais de duplicidade doutrinária: apenas o que fabricam para autoconsumo preserva o selo progressista; coisa bem distinta são os serviços prestados aos poderes públicos, ao capital privado e à indústria cul­tural. Aliás, o seu modo de qualificar a primazia teórica do Partido Comunista Brasileiro como que prenuncia uma das pontas da explicação do golpe militar de 64, na medida em que essa organização política se mostrou incapaz de esten­der a postura antiimperialista à identificação correta das forças reacionárias internas. Como diz Roberto, o p c b acreditou em suas alianças com o setor indus­trial avançado, mas a burguesia não acreditava nele, daí o “engano” no “centro da vida cultural brasileira de 1950 para cá”.“’

Logo adiante, insiste, “a deformação populista do marxismo” constituiu o cerne do arsenal ideológico de todos os presidentes entre 1945 e 1964, bem como impulsionou uma cultura comercial de esquerda e em poucos anos transfor-

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mou “a fisionomia editorial e artística do Brasil”11A par do raciocínio extrema­damente politicista, ao buscar equacionar as lutas sociais em termos do enfren- tamento entre setores dirigentes e organizações especializadas numa suposta divisão do trabalho de dominação, a exemplo do p c b e dos baluartes da direita, o texto jamais cogita de outras torças e interesses estruturais com impacto já então perceptível na cena cultural. Refiro-me à expansão do contingente de estudantes universitários, ao crescimento e diversificação do público consumi­dor de bens culturais e à pujança da nascente indústria cultural em quaisquer de suas frentes mais expansivas, entre as quais a publicidade, a televisão e os veícu­los da emergente imprensa segmentada (revistas e fascículos), para citar apenas alguns dentre os processos então em curso.

Na seqüência, tendo esboçado um sumário conciso das prioridades e enle- vos do que denomina “liga dos vencidos”, Roberto sugere que essa experiência regressiva serviu de matéria-prima ao movimento tropicalista e às encenações do Teatro Oficina. Nessa passagem, a despeito das preferências estéticas ou das inclinações políticas do analista, os embaraços do esquema analítico começam a atrapalhar. Em vez de buscar evidências acerca dessa geração emergente de artistas, ou de enxergar as constrições que lhes impunha a nova correlação de forças na indústria cultural, em passo acelerado de expansão, o intérprete con­trasta as formas técnicas mais avançadas, como a música eletrônica, em sintonia fina com tendências internacionais, aos materiais procedentes dessa reserva de imagens e emoções características do país patriarcal atrasado.

O enguiço da análise reside talvez na tentativa de transferir esquemas de análise literária para o exame de materiais expressivos de outra natureza e pro­cedência, aplicando-lhes uma categorização vizinha do “cômico pedante” de Schopenhauer, tão perceptível na invocação da imagem do cavalheiro de car­tola.12 Ao se perguntar sobre o lugar social do tropicalismo, prefere reiterar sua familiaridade com a moda internacional a se deter nas feições desses artistas: em sua maioria jovens universitários de classe média recém-chegados ao eixo Rio— São Paulo e não obstante dotados de um cabedal sofisticado para as circunstân­cias da crise naquele momento. Alguns desses traços estão nomeados de relance no texto, sem chegar a ser investidos de energia condicionante, decerto porque Roberto temia que essa conjunção de arcaico e moderno fosse o prenúncio maquiado de uma contra-revolução de índole fascista.

Já a estética da fome de Glauber merece um tratamento benigno, o que

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hoje reforça, ainda mais, a falta de uma indagação acerca das condições que teriam permitido a esses artistas assumir tão decididamente uma relação ima­ginária de identificação com o povo. Nesse trecho o ensaio se ressente de apli­car duas medidas de coerência respectivamente ao tropicalismo e à estética revolucionária. O primeiro faz jus a perguntas sobre a procedência de seus ma­teriais, sobre sua inserção mercantil, sobre seus fundamentos históricos, en­quanto a segunda parece extrair sua força do presente, dos interesses do movi­mento popular, e teria logrado independência perante o sistema econômico dominante, não se sabe ao certo por que caminhos.

Roberto não deixou de assinalar a perda de primazia da literatura e a im­portância crescente dos gêneros públicos de atividade cultural: o teatro, a músi­ca popular, o cinema e o jornalismo. Sua interpretação dos espetáculos monta­dos pelo Oficina se escora em critérios análogos àqueles empregados acerca do tropicalismo, os quais rendem mais desta feita por conta do feitio culto dos materiais expressivos mobilizados. Ao contrário da visada benfazeja ao caracte­rizar a estética da fome e seus artefatos para consumo, jamais perde de vista a consciência moral das classes dominantes como o eixo ideológico do espaço dramático da época. Aviva sua leitura desse naturalismo de choque, caricato e moralista — para usar seus termos — , pelo contraste com os procedimentos e resultados do modelo brechtiano ou então pela proximidade dos expedientes de comunicação acionados pela publicidade.

Embora discorde do teor conclusivo do texto, em especial de sua aprecia­ção do movimento cultural de esquerda como um surto tardio e carente de con­dições sociais, assinalo a força desse ensaio— bem como dos demais textos vol­tados para uma discussão abrangente da cultura brasileira — , que deriva do aguilhão com que se debruça sobre os materiais expressivos retidos em cada passo da análise. Evidenciam-se aí os trunfos de nosso homenageado: a insistên­cia em deslindar os registros de apreensão dos materiais, o esforço de reconhe­cimento das formas e da ganga ideológica, a persistente ambição de fornecer ao leitor um esquema generoso do contexto, o teste das reiteradas pautas de seu programa analítico no tocante às imbricações entre atraso e avanço, local e estrangeiro, nacional e internacional, material e ideal, história e arte, numa crí­tica da cultura aferrada à leitura inventiva das obras sem baixar a guarda em rela­ção aos veios submersos de sua circunstância. A história intelectual do Brasil contemporâneo é impensável sem a narrativa autocrítica de Roberto Schwarz.

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Para uso do próximo

Francisco Alambert

Em maio de 1958, Sérgio Milliet, então a maior autoridade ainda viva e atuante vinda do modernismo de 1922 e referência para a geração de Antonio Candido, recebeu efusivamente os primeiros poemas de um jovem estudante. O grande crítico talvez já estivesse velho, mas não era bobo e sabia melhor que ninguém em que ponto estavam os debates culturais, acompanhava de perto os jovens e, com intuição primorosa, viu no poeta que estreava uma novidade: “em meio à polêmica entre participantes, inclinados para a literatura sociali­zante, e concretistas, preocupados com novas formas de expressão pouco acessíveis ao grande número, surgem na geração que vem amadurecendo ao sol de seus anos, tendências que se filiam a correntes diversas”. Milliet nota também que o estreante leu atentamente “os Mário, os Bandeira e os Dru- monnd”, mas seu sarcasmo e sua capacidade reflexiva o colocavam em um ponto além deles. Para comprovar, cita um poema chamado “O crime do poeta”:

Ante o fracasso evidente do tempo do bloqueio continental e da razão arguta

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— O amor dói nas costelas range tios dentes morde as entranhas

Napoleão morde as costelas rilha os dentes dói nas entranhas

o mar sacode as costelas areia nos dentesressaca nas pedras de Sta. Helena

— ante o fracasso evidente do tempo do bloqueio continental e de qualquer argúcia o poeta perpetra uma violência verbal.

Ante este sarcasmo contra um tempo derrotado em seus bloqueios e ante esse poeta criminoso que clama a “violência verbal”, Milliet, empolgado mas cauteloso, pede tempo para saber se Roberto Schwarz, o jovem que surgia, é parte de uma nova geração de poetas pensadores ou se, mais que isso, constitui sozinho uma “exceção, continuando os demais na trilha dos predecessores ime­diatos”.1 É uma ótima questão, até hoje, essa que trata de predecessores e de ori­ginalidades. Agradeço a Sérgio Milliet a idéia de perseguir tanto essa originali­dade quanto o encam inham ento que Roberto Schwarz dá à “trilha de seus predecessores imediatos”.

Vou partir daqui, tomando literalmente o tema da herança teórica, especu­lando em torno desses motivos: o que herdou Schwarz para sua formação e como essa herança se perpetuou e derivou em descobertas de novidades que passam a ser incorporadas ao nosso patrim ônio intelectual e, nesse sentido, constituem a herança que o crítico nos deixa para além de seu próprio trabalho (ou como parte dele). Ou, se quiserem, como Roberto Schwarz nos ajuda a des­bloquear continentes.

Para isso, veremos de sobrevôo as fontes do trabalho do conceito de forma­ção nacional, herança de Antonio Candido, Paulo Emílio e do Seminário Marx;

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o aprendizado e a inversão das técnicas do New Criticism; o legado de Schwarz através de sua crítica histórica atual, da crise do desenvolvimentismo e de suas intervenções nos debates culturais a partir da introdução de novas vozes, como Paulo Lins (um escritor), Dolf Oehler (um crítico literário) e Robert Kurz (um crítico social radical). Afinal, nosso autor é isso tudo também. Ele é parte central de um processo onde a tomada de consciência histórica, aliada ao problema da forma artística e de sua situação no tempo, define a trajetória e o compromisso do intelectual — e é isso que repõe sempre sua atualidade e originalidade, como Milliet percebeu no então jovem poeta.

No momento em que Milliet e Schwarz escreviam vivia-se o auge do desen­volvimentismo, do afluxo internacional de idéias e mercadorias e, no campo da cultura, da radicalização de projetos intelectuais que vinham do modernismo e ganhavam força desde a revolução de 30. Em nosso capitalismo tardio, a socia­bilidade moderna parecia abrir continentes.2 Lá íamos nós, do quadro fixo do subdesenvolvimento para o espaço aberto das utopias do progresso. O bloqueio continental parecia furado mesmo e o espaço se abria. No terreno das artes visuais, o grande Hélio Oiticica, talvez a maior inteligência artística do período, também via a coisa assim:

toda a minha transição do quadro para o espaço começou em 1959. Havia eu então

chegado ao uso de poucas cores, ao branco principalmente, com duas cores dife­

renciadas, ou até os trabalhos em que usava uma só cor, pintada em uma ou duas

direções. Isto, a meu ver, não significava somente uma depuração externa, mas a

tomada de consciência do espaço como elemento totalmente ativo, insinuando-se,

aí, o conceito de tempo.3

Oiticica pensa um conceito de “espaço como elemento totalmente ativo”, anunciando também um tempo de transformações firmes, pensadas por um artista que, desde seu momento concreto, se via como sujeito histórico da trans­formação. Essa positividade audaciosa tem a ver com o mundo que criou Roberto Schwarz. O espaço nacional era o centro, o “elemento totalmente ativo” do projeto desenvolvimentista que as vanguardas intemacionalistas iam preen­chendo com particularidades e linhas de evolução próprias e às vezes muito ricas.

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Nesse espaço pleno de aberturas, Schwarz incorpora, com o marxismo mais avançado, o tempo como categoria histórica e formal e lhe dá conseqüências.

Vimos que Oiticica fala em “tomadas de consciência”, e era isso mesmo que a época esperava. E, aqui, os anos de 1958 e 1959 são datas-chave. No campo da visualidade plástica, a substituição de modelos por traços e caminhos próprios (pois é isso que o artista está nos apresentando) era um projeto que parecia viá­vel, e a arte brasileira também parecia chegar a resoluções e caminhos próprios, como a superação original da vanguarda neoconcreta consubstanciando um capítulo brasileiro na história da vanguarda artística mundial.

“Substituir” importações e modelos estéticos para a criação própria tam­bém não era um tema estranho a certas teorias econômicas do período. Os eco­nomistas ligados à “teoria da dependência” pensavam um caminho parecido para os saltos de desenvolvimento que a vida econômica da América Latina podia dar no contexto do surto desenvolvimentista. No mesmo ano em que Hélio Oiticica fazia sua transição do quadro fixo para o espaço/tempo, a arte na vida, Celso Furtado publicava seu estudo sobre a dependência econômica, o sentido de nosso “atraso” e os impasses de nosso (sub)desenvolvimento, a For­mação econômica do Brasil. Se Oiticica preparava a passagem das experiências concretistas para chegar aos par angolés, saindo da tela (e da galeria) para ganhar a vida (e a rua), economistas (de esquerda ou apenas desenvolvimentistas) tam­bém queriam a superação da dependência em nome da autonomia nacional criadora. Desbloqueio continental.

Foi também em 1959 que Antonio Candido tratou de reunir a experiência intelectual acumulada nas ciências sociais (com os olhos voltados para a idéia do “sentido da colonização”, de Caio Prado Jr., da situação “estamental” da vida política nacional, segundo Raymundo Faoro, bem como nas obras precursoras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda) e publicou seu trabalho semi­nal, a Formação da literatura brasileira. Nesse estudo, as mesmas preocupações em torno das idéias de “formação”, “superação”, “atraso”, desenvolvimento ou descompasso, eram aplicadas à análise cultural. Análise esta que, por outras for­mas e outra via, era feita pelos jovens cineastas que inauguravam o Cinema Novo, a partir das obras pioneiras de Nelson Pereira dos Santos e de Roberto Santos, cujas imagens da “fome” e da situação do mundo “subdesenvolvido”, com sua luz particular, eram articuladas com a linguagem da vanguarda cine­matográfica do pós-guerra e lançadas, com enorme sucesso, ao mundo todo.

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O mesmo poderia ser dito, e já o foi à exaustão, a respeito da Bossa Nova ou do projeto de Brasília. Foi em 1959 que João Gilberto lançou Chega de sau­dade, exercício no qual a estética de formação nacional e ao mesmo tempo intemacionalista da Bossa Nova mostrava sua capacidade de articular a in­corporação das influências externas modernizantes (a música erudita e de vanguarda européia e o jazz norte-americano em particular) com as formas de­puradas do samba urbano, da poesia concreta, do “canto-fala” diante do mi­crofone, agora usado como nunca antes o fora. Também em 1959 organizou-se nos barracos em obras da cidade modernista um congresso internacional, que tinha os modernistas Mário Pedrosa e Sérgio Milliet à frente, dedicado a dis­cutir o futuro das cidades a partir dessa nova experiência — e todos os impas­ses que ela trazia.

Nesse momento, o Brasil passava por seu período mais criativo, onde, de uma forma geral, pode-se dizer, como fez Roberto Schwarz em ensaio antoló­gico, que a esquerda tinha hegemonia nos setores de criação cultural.4 O Brasil não apenas aparecia como fonte criadora destacada no pós-guerra de uma “nova cultura” progressista e modernizante, geralmente à esquerda, como, jus­tamente por isso, passava a chamar atenção das forças contrárias a esse processo (que logo depois financiariam o golpe militar de 1964). Mas ali entre 1958 e 1959, até a Bienal da burguesia nova-rica de São Paulo (nesse momento guiada por grandes críticos e grandes artistas) parecia ser um acontecimento cultural, e não um mero evento “de massa”.5

Onde encontramos nosso autor nesse contexto? Ele nasceu na Áustria, veio criança ao Brasil. Perdeu o pai aos quinze anos. Ali, na metade dos anos 50, não é exagero dizer que parte de sua educação doméstica foi feita ao lado de Anatol Rosenfeld, que era amigo de sua família e passou a acompanhar seus estudos, enquanto nosso autor se preparava para a faculdade de ciências sociais, onde conhecerá Antonio Candido.

Já na USP, em 1958, no mesmo ano que Milliet saudava o aparecimento do jovem poeta, Schwarz vai participar do famoso Seminário Marx, iniciativa mul­tidisciplinar de um grupo de professores jovens, vindos das ciências sociais, da filosofia, da história e da economia, e também de alguns de seus alunos. Sobre o resultado dessa experiência, vale a pena ouvir um resumo feito pelo próprio Roberto, numa entrevista recente para a revista da Fapesp:

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Ao contrário do que diz meu amigo Giannotti, estudar Marx na época não era assi­

milar um clássico entre outros. Por um lado, tratava-se de apostar na reflexão crí­

tica sobre a sociedade contemporânea. Por outro, tomava-se distância da autori­

dade dos Partidos Comunistas na matéria, que promoviam uma compreensão

bisonha de Marx, imposta como um dogma. [...] Na iniciativa do seminário havia

algo de inusitado e também de precário, além de premonitório. Poucos sabiam ale­

mão, não tínhamos familiaridade com o contexto cultural de Marx, a bibliografia

moderna não estava disponível, para não dizer que estava desaparecida.[...] Até

certo ponto o despreparo foi uma vantagem, pois permitiu que enfrentássemos

com espírito livre as dificuldades que a experiência brasileira opunha aos esque­

mas marxistas.6

Essa herança recebida foi a base de onde partiu o jovem poeta, que já ia se tornando crítico, e também é a base de todo o seu legado. Dessa experiência, reti­rou a idéia de que era preciso sempre refletir sobre o desajuste como parte das desigualdades do desenvolvimento do capitalismo. Para ele, surgia aí o tema da reprodução moderna do atraso, o ponto de vista que percebe e analisa as formas sociais “atrasadas” como parte da reprodução da sociedade contemporânea. Enfim, a experiência própria das nações periféricas e a chave da diferença brasi­leira. Ou seja, o tema do progresso, dos desajustes e das formas culturais que lhe correspondem deixam evidentes os nexos que levaram às análises originais dos romances de Machado de Assis e ao tão polêmico e freqüentemente mal com­preendido ensaio sobre “As idéias fora do lugar”. Pois foi ali naqueles anos do desenvolvimentismo e de sua crítica que, como bem explicam Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello, surge a obsessão com a cópia: “forma reificada de consciência, acrescentemos, peculiar à periferia, onde é possível consumir sem produzir, gozar dos resultados materiais do capitalismo sem liquidar o pas­sado, sentir-se moderno mesmo vivendo numa sociedade atrasada”.7

Entre as leituras de Lukács em alemão, as leituras, aulas e amizade atenta de Anatol Rosenfeld e Antonio Candido, o contato com a vida intelectual dos alu­nos e dos jovens professores da Maria Antonia deu-se o meio mais direto no qual as idéias de nosso autor tomaram corpo. Mas isso também era uma herança de um momento imediatamente anterior. Penso naquele grupo dos anos 40 que o gênio desabusado de Oswald de Andrade apelidou de “chato boys”: o grupo Clima.8 Tomados por influxos criativos vindos indistintamente do abalo de 30,

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da modernização europeizante da metrópole paulistana, dos ventos socialistas, do debate crítico com os veteranos do Modernismo e com o aprendizado crite­rioso dos professores europeus, esse “grupo-geração” acabou por fazer da crítica de cultura avançada espaço fundamental para o engajamento intelectual. De certa forma, a poesia que Milliet (cujo “ato crítico” foi herdado pelos jovens de Clima segundo Antonio Candido) admirou já era fruto desse “espírito”.

Schwarz foi aluno de Antonio Candido no segundo ano de ciências sociais, em 1958, no último ano em que o mestre lecionou sociologia. Em seguida Can­dido rumaria para as letras, e o jovem Roberto o seguiria. Por sugestão do pro­fessor, o caminho do pupilo deveria ser terminar o curso de sociologia e fazer um mestrado em literatura comparada no exterior, para depois se tornar seu assis­tente na usp. Nessa época, além do poeta, o crítico estréia em jornais. No início dos anos 60, Schwarz vai aos Estados Unidos fazer um mestrado em teoria lite­rária e literatura comparada, na Universidade de Yale. Na volta, em 1963, começa a trabalhar na u s p .

Nos Estados Unidos ele vai estudar o New Criticism e as técnicas do close reading, o que, convenhamos, era inusitado para um jovem marxista — que nesse momento escrevia os ensaios de A sereia e o desconfiado. Pois era desse jeito mesmo que ia se formando o primeiro Roberto Schwarz: da influência de Anto­nio Candido, passando pela crítica norte-americana, pelas leituras de Lukács e pela noção de conjuntura marxista para a condição periférica inspirada pelo grupo do Seminário Marx— herança que o instrumentaliza para a aventura crí­tica de Machado de Assis. O esquema teórico ia se formando: o jovem pesquisa­dor percebe que a ironia de Machado deveria ser lida a partir de um close rea­ding combinado com a teoria do Brasil do Seminário Marx, ou seja, que a substância da ironia machadiana tinha a ver com a desfaçatez bem pensada que era a mistura brasileira de liberalismo e escravismo.

Se não me engano, tanto esse período quanto a questão da forma de apro­priação do New Criticism em Candido e Schwarz são campos ainda muito pouco pensados, tanto pela história literária quanto pela cultural. Não me aven­turo. Cito apenas o próprio Roberto, na entrevista já referida, segundo o qual a apropriação de Antonio Candido das técnicas do close reading e do New Criti­cism foi “um instrumento para fazer frente ao sociologismo e ao marxismo vul­gar correntes na esquerda brasileira dos anos 40”. E é justamente por isso que, ao contrário da mera apropriação da “técnica” (tal como em Afrânio Coutinho),

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Candido pôde reverter o potencial formalista e conservador desenvolvido pelos teóricos do sul dos Estados Unidos dessa corrente (que centrava a técnica de análise na busca dos elementos de ambigüidade, tensão e ironia do poema ou da narrativa), abrindo esses procedimentos através da “historicização das estrutu­ras, o que lhe permitiu uma sondagem de novo tipo da literatura e da sociedade brasileiras”. Ou seja, exatamente o que animará os estudos do nosso crítico.

No autor da Formação da literatura brasileira Schwarz perceberá o interlo­cutor nacional privilegiado para debater o problema teórico que mais lhe é caro: a relação dialética entre obra/história no contexto dependente ou “pós-colo- nial”. Schwarz percebe em Candido uma capacidade de visão “estereoscópica”, numa analogia com o procedimento semelhante utilizado por Walter Benjamin em seus estudos sobre Baudelaire. Nestes são privilegiadas as correspondências sociais entre a lírica e as figuras do submundo urbano ou os dramas do funcio­namento do mercado, percebendo aí que tais figuras e formas literárias estão marcadas por formas sociais que lhe são estruturantes. Nesta visão, trata-se de compreender a forma do conteúdo e o conteúdo da forma, em linguagem ben- jaminiana, dentro de uma constelação que exige do ensaísta a capacidade de “sair” do texto para perceber e recolher as correspondências soltas e fragmenta­das no tecido social.9

Mas se essa compreensão da forma artística como forma da história é uma herança, também é um legado. De um lado, porque em Schwarz essa compreen­são materialista da forma é sistematicamente utilizada e aprofundada desde setores que não eram parte direta do arsenal de Candido, como Lukács e a Escola de Frankfurt. E de outro, constitui-se num legado para nós a possibilidade de descobertas do autor, fundamentais tanto para a história social quanto para a crítica literária. Dou como exemplo uma das descobertas recentes de Roberto: a releitura promovida por Dolf Oehler justamente dos poemas de Baudelaire! Oehler propõe uma leitura que retoma a história social da França pós-derrota de 1848 como estruturante da forma poética baudelairiana, coisa que havia sido renegada, mesmo na vertente influente de Benjamin, seja pela teoria da “moder­nidade”, seja na história tradicional da literatura. Aqui, já começamos a falar em derrotas. Mas ainda é cedo para isso.

No momento em que, na virada da década de 1950 para 1960, o jovem Roberto toma aulas e se torna assistente de Candido, a questão do conceito de formação já era central. Sobre esse conceito, muito já foi escrito e muito ainda

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deverá ser pensado. Fiquemos por agora com a síntese precisa de Paulo Emílio, cujos trabalhos sobre cinema localizam-se no núcleo dessa tradição teórica, que será muito cara a toda a obra de Roberto Schwarz: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”."’ Hamletiano dilema, definição da con­tradição do intelectual (o teórico ou o artista) do mundo da economia depen­dente: “um certo sentimento íntimo de inadequação, esse o drama do intelec­tual brasileiro, situado entre duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura”, no dizer de Paulo Arantes."

Observemos que a presença de Paulo Emílio, num ponto qualquer entre Rosenfeld e Candido, foi decisiva na formação intelectual de Roberto Schwarz. De fato, fico tentado a usar para nosso autor a definição que Gilda de Mello e Souza usou para caracterizar a “paixão” de Paulo Emílio, a “paixão do con­creto”12 Penso que, no nosso caso, a imagem procede, mas engana. Porque em Roberto Schwarz não seria possível reter uma das implicações da descrição que Gilda faz de Paulo Emílio: o desapego por teorias, o gosto da “peritagem” ou da “fantasia”. Concretamente, o que filia o crítico literário e o crítico de cinema está em outro lugar, está em uma certa prosa.

Acho curioso que quando nosso homenageado refletiu sobre essa filiação, realçou no legado de Paulo Emílio seu estilo literário (que é também estilo crí­tico) em que “cada frase faz saltar e perfilar-se o espírito libertário do autor” Interessa aqui perceber que nesse estilo crítico inverte-se o papel banalizado pelas vanguardas de plantão, falando diretamente ao coração de nosso m o­mento histórico: “no momento em que o experimentalismo técnico parece rela­tivamente domesticado e recuperado, é no espírito crítico enquanto tal que se refugia a verdadeira modernidade, que paradoxalmente pode até se apoiar numa aparência de convencionalismo formal”.13 A prosa literária concisa de Paulo Emílio parece convencional, mas não é, em resumo. Isso é um critério que será incorporado em parte pela também concisa prosa crítica de Roberto Schwarz, mas também é um critério de análise crítica da literatura mais avan­çada, que ele saberá sempre localizar. Disto que ele herdou vem também o que ele nos lega.

Dou como exemplo deste legado e desta capacidade de descobrir origina­lidades literárias o caso do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins. Todos sabem

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que Roberto “descobriu” o livro, que leu ainda em suas primeiras provas e incen­tivou o autor a terminá-lo. Desde o início, Schwarz notou que o romance de Paulo Lins era sintomático de uma reorganização da sensibilidade crítica na produção literária (e cultural) contemporânea, e por isso era um acontecimento literário raro.

O romance de Lins apresenta o moderno universo da segregação social ñas condições brasileiras, o que poderia convidar a uma abordagem tradicional. Mas o romance não é “tradicional”, como também não era caduca a prosa de Paulo Emílio. Porém, a prosa de Cidade de Deus é de outra ordem. Trabalha a lin­guagem popular, misturando registros que vão do sensacionalismo jornalístico, da pesquisa antropológica, da linguagem dos marginais ou da brutalidade dos policiais até o lirismo e os esquemas cinematográficos. Em resumo: “o conheci­mento pormenorizado, sistematizado e refletido de um universo de relações, próximo da investigação científica, algo que poucos romances brasileiros têm. Enfim, é um mix poderoso, representativo, que desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso”, disse o crítico na entrevista já citada.

Por fim, um último exemplo nessa minha “dialética” entre formação e con­seqüências, entre herança e legado. Como procurei mostrar, o pensamento de Roberto é fruto de um momento de transformações e aberturas, de estabilidade aparente. Mas o aspecto “desenvolvimentista” que lhe precedeu e do qual tirou conseqüências não encerra ou engessa sua trajetória, como penso que fez com o legado de seus “inimigos” concretistas. No campo das artes visuais, para voltar à comparação que fiz com Hélio Oiticica, uma inteligência particular, que passava pelo olhar de Mário Pedrosa, permitiu o passo adiante do neoconcretismo. Já em Roberto Schwarz, as lições do Seminário Marx e o aprofundamento nos caminhos abertos por Antonio Candido legaram ao crítico o olho no presente histórico e suas transformações. E isso permitiu que ele nos legasse não apenas sua obra, mas abrisse nossos olhos para outras obras, que marcam a hora histó­rica (como a releitura da derrota revolucionário em Baudelaire, segundo Oeh­ler). Só que a nossa “hora”, que é a hora de Cidade de Deus, já não é mais aquela em que ele se formou. Aliás, quem sabe bem disso é ele próprio. O tempo do nacio- nal-desenvolvimentismo e de suas conquistas passou. Nosso “fim-de-século” está longe e diferente dos cinqüenta anos passados.

Naquele contexto “efervescente”, nas palavras de Schwarz, “surgia a cons­ciência de que a exploração de classe no plano interno e as grandes desigualda-

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des na ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era necessá­rio enxergar as duas em conjunto”. Mas desde meados dos anos 80, e isso é ainda ele quem diz, a utopia nacional-desenvolvimentista, especialmente no plano econômico, já havia feito água diante das transformações do capitalismo global do qual era parte ativa e dependente: “o ciclo chegou ao fim [...]. Nos anos 80 ficava claro que o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma idéia vazia, ou melhor, uma idéia para a qual não havia dinheiro”.14 Entramos então na era do desmonte (não à-toa, como notou Schwarz com perspicácia, é o momento em que o desconstrutivismo vira moda aqui), que o mundo fetichista da moeda, a moda dos“culturetes”e o desprezo cínico pelos destinos dos pobres promovido pela razão tucana são o mais terrível sintoma.15

No final do século xx ingressávamos na era da “estetização consumista das aspirações à comunidade nacional”, que já não articula “nenhum projeto cole­tivo de vida material”, e que passou “a flutuar publicitariamente no mercado” como “um estilo de vida simpático a consumir entre outros”.16 O texto que estou glosando chama-se “Fim de século”, mas bem poderia chamar-se “fim da picada”, porque, no final das contas, aprendemos que um processo emancipató- rio latente nos projetos mais progressistas da “cultura brasileira” parece ter se tornado isso mesmo: uma trilha estreita que o matagal contemporâneo ameaça fechar de vez.

Nesse ponto, agora “pós-tudo”, muitos pularam fora do barco, renegaram seu “passado”, sua “formação”. Sobretudo o marxismo passou a ser “passado”. A posição de Roberto Schwarz, nesse contexto de crise, é sintomática de suas heranças e de sua capacidade de articulação intelectual e política. Para ele, o marxismo não passou porque não é apenas uma “teoria” social (que teria se rea­lizado, e acabado, em alguma parte do mundo), mas efetivamente uma teoria crítica do capitalismo, uma forma privilegiada para se compreender as conexões e desconexões da sociedade contemporânea. Porém, dentro da crise atual, que também é a crise do marxismo, o aspecto messiânico da revolução operária foi inviabilizado, até segunda ordem. Por isso, “o marxismo como posição não crí­tica é parte da catástrofe”. Tratava-se, então, de repensar tanto o marxismo, sua posição crítica, quanto toda essa “catástrofe”.

No meu modo de ver, é isso que explica a descoberta de Roberto, “na van­guarda” do resto do mundo, da obra e das idéias polêmicas sobre o futuro (ou a falta dele) do capitalismo segundo o pensador alemão Robert Kurz e seu livro O

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colapso da modernização. Schwarz percebe na inversão proposta por Kurz do argumento tradicional da “vitória” do capitalismo sobre o sovietismo uma parte que nos toca: a nossa própria derrota, a derrocada final do desenvolvimentismo e seu ideal de progresso. Mas, mais que isso, a introdução do livro no Brasil visava impacto crítico direto: evidenciar “a caricata falta de horizonte em que o deslumbramento com o mercado vem encerrando a nossa intelligentsia”,17 ex- marxistas inclusive, em plena era do real forte, da globalização e do mundo que Fernando Henrique criou.

Creio que se pode usar para definir Roberto Schwarz aquilo que ele usou para definir Kurz: trata-se de um intelectual que, entre a herança e o legado, vive na boa promiscuidade entre “o jornalista, o filósofo, o economista, o historia­dor, o literato, o agitador etc. no interior do sujeito que busca fazer frente à expe­riência do tempo, por escrito e para uso do próximo”.18 Eis sua herança para nós, que lhe somos tão próximos.

Não sei bem por que, não me atrevo nem a tentar explicar, mas tudo isso me fez lembrar um outro poema de Roberto que o bravo, cansado e resistente Mil­liet também gostava. Um poema onde o tempo fracassa, mas alguma vida ainda pulsa na cidade: “O fracasso do tempo”

O tempo falha em seu mister de esponja.O mês é germinal com precaução.As formigas formigam. Lucidez sem que esmaeça o traço da gravura.Em madeira. Xilogravado. O tempo espatula incisões. O tempo falha.Não há gaveta; gaveta sou eu.Guardo em mim sem que o tempo se misture O tempo está ruim: chove.Sob um céu de guarda-chuvas, pulsa a cidade.

Felicidade, Roberto, felicidade ainda. Ficamos assim: o tempo não anda mesmo bom, mas você nos ajuda a desbloquear continentes.

EHT I— wct .,**rrnr:

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Em busca do narrador: traços do pensamento do jovem Schwarz

Luís Augusto Fischer

PRELIMINARES

Impossível começar a falar da obra de Roberto Schwarz sem assinalar a cen-

tralidade do seu trabalho na minha formação intelectual, o que, naturalmente,

não me livra de minhas limitações nem me exime da responsabilidade por

minhas opções, mas tampouco inculpa a ele.

Acresce que participo de um grupo de professores, pesquisadores e estu­

dantes de várias partes do país, que foi reunido em parte graças à mão de

Roberto Schwarz, a começar por um evento ocorrido em 1996, no Rio, na Uni­

versidade Federal do Rio de Janeiro. Era uma homenagem às quatro décadas de

publicação da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, e os orga­

nizadores contactaram Roberto, reconhecido aluno e discípulo de Candido.

Roberto não apenas aceitou o convite para o encontro como relacionou alguns

nomes que, segundo ele, podiam compor a reflexão sobre a obra seminal do pro­

fessor Candido. Daí por diante, os integrantes daquele evento continuaram a

reunir-se e a trabalhar na formação de um grupo de reflexão que hoje alcança

dimensão considerável, em seus quase dez anos.Nesse grupo, há gente mais qualificada que eu para o debate teórico como

este que aqui, no seminário sobre a obra de Roberto Schwarz, se esboça, mas

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calhou de estar eu nesta mesa. Não represento o grupo, nem tenho delegação para tal e tanto — e sou um orgulhoso conterrâneo de Raymundo Faoro, cuja principal contribuição para o debate brasileiro foi a de argüir a história da falta de representação das elites governantes, de forma que não poderia incorrer no equívoco de me imaginar representativo — ; mas vou tentar não fazer feio na conversa, em homenagem a eles todos.

Este trabalho tentará analisar de que modo Roberto Schwarz chegou até Ao vencedoras batatas, livro-chave de sua obra, ponto maduro de seu pensamento, publicado pela primeira vez em 1977. Tentaremos, em poucas palavras, enten­der o jovem Schwarz. Com a esperável desculpa do leitor, vai-se misturar um pouco de depoimento pessoal com uma tentativa de análise de alguns de seus procedimentos críticos eventualmente propondo alguma interpretação. Cum­pre lembrar, de todo modo, que esta breve comunicação não é um estudo aca­bado, mas um esboço, que espero que não seja aborrecido, muito menos que se­ja inepto. É uma tentativa parcial para enxergar o movimento do pensamento de RS antes de Ao vencedor as batatas, ou melhor, do pensamento de Roberto Schwarz em direção a Ao vencedor as batatas, que nós, aqui no futuro, sabemos que existiu, que existe, que foi feito, mas que lá por 1960 ninguém podia estimar com precisão como seria, nem mesmo se seria. É possível dizer de outra maneira, aproveitando já uma lição do próprio analisado: como toda construção teórica e crítica realmente relevante, a obra de Roberto Schwarz (a) nos impõe perceber que estamos diante de uma forma específica de pensar, que é singular para além de ser uma forma de organizar a tradição de que provém, e (b) permite, consi­deradas sua extensão e profundidade, distinguir uma história interna a ela, apontando momentos embrionários e outros maduros, enxergando projeto e realização, divisando enfim o processo interno.

A conhecida obsessão de Bento Santiago pode servir de termo de compara­ção: ele queria saber se a Capitu adulta da praia da Glória estava já dentro da menina de Matacavalos; este pequeno ensaio quer perguntar pela presença do Schwarz maduro, que nos anos 90 reinterpretou Dom Casmurro segundo a pauta da história social brasileira, nos trabalhos do jovem pensador em formação, que na virada dos anos 50 andou tenteando assuntos aparentemente tão afastados entre si quanto o Fausto, o romance puritano norte-americano e O Ateneu.

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Entrei na universidade como aluno em 1976, em Porto Alegre (o que anun­cia a condição periférica do ponto de vista destas notas) e, pouco tempo depois, ainda nos primeiros momentos de minha vida adulta, encontrei textos de Roberto Schwarz (o que dá pequena mas precisa notícia da circulação nacional da obra de nosso homenageado). Talvez a primeira leitura que fiz tenha sido a famosa carta dos “19 princípios da crítica literária” (publicados em O pai de família e outros estudos, de 1978), que deve ter chegado às minhas mãos por um colega e amigo, o sociólogo Carlos Winckler. (Nenhum professor recomendou a leitura de qualquer de seus textos, é certo.) Ali estava um respiradouro: mais que crítica, ironia crítica, um panfleto militante e surpreendentemente engra­çado, um profundo e radical comentário sobre o cenário intelectual no mundo das letras e humanidades, texto concebido, ao que parecia, para circular no ambiente acadêmico mesmo. Era ironia crítica e era uma construção engraçada, para o leitor que se colocasse no lado radical do debate; funcionava, retorica­mente, nas antípodas do modo de atuar das ironias e dos panfletos mais corren­tes de então, que tendiam a simplificar as coisas segundo uma mentalidade sim- plificadora, que reduzia tudo a uma oposição simples: nós contra eles, estudantes de esquerda contra o regime militar, democratas contra autoritários. A ditadura militar instalada em 64, e então ainda muito viva, induzia e de vez em quando obrigava a tal polarização, claro, e isso mais fazia crescer a surpresa com os “19 princípios”, o brechtiano panfleto que me apresentou ao ponto de vista de Roberto. Mas ao ler o texto a gente ria aquele riso que dá vertigem porque parece colocar em causa o próprio modo de pensar. Esse foi justamente o caso dos “19 princípios” para aquele jovem do fim dos anos 70: tratou-se de um riso radical­mente desalienante, para a época e creio que para agora, mais ainda se conside­rado o ambiente para o qual aponta sua flecha. Uma vez conhecida a carta-pan- fleto, o leitor honesto se obrigava a retomar as posições em confronto, para reavaliá-las dinamicamente.

O texto, logo abaixo do título já de si brincalhão, com o número quebrado a anunciar intenção paródica em relação aos conhecidos decálogos, começa com um matizamento que parece relativismo pós-moderno mas é um relatório sardónico sobre o estado do debate (“Acusar os críticos de mais de quarenta anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo, os minuciosos de forma-

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lismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio”), a dizer, entre muitas outras camadas de significação, que nem todo mundo de mais quarenta anos era necessariamente impressionista, e talvez mesmo o impressionismo pudesse ter alguma razão. Mais que isso, está ali a pose de justeza racional alegada pelo sujeito que ali toma a palavra, num desenho caricato que representa boa síntese de uma das mistificações em curso na época— o intelectual jovem que se achava com razão pelo mero fato de ser jovem e que, afinado com as restrições que a ditadura impunha, renegava avaliar o mérito das posições críticas, tomando-as pela rama para não pensar. Claro que isso é a leitura reconstruída agora, na sere­nidade relativa de quem já passou dos vinte anos, e mesmo dos quarenta. Mas vale a pena, porque, como vou tentar mostrar, Roberto Schwarz resumiu, por certo involuntariamente, três aspectos de sua prática crítica nessa frase irônica: não nesta ordem, e sempre em proporções desiguais e combinadas, ele de fato mostra seguir impressões, fazer sociologia e ser minucioso no exame da forma. Porque, ao contrário do intelectual caricaturado, ele trazia em sua prática crítica a marca analítica de quem entra no mérito das posições ao considerá-las, numa lição talvez mais relevante hoje do que então, para o mundo das letras.

No mesmo O pai de família, aprendi muito mais. Aquele conto de Kafka, “Tribulação de um pai de família”, tanto quanto o comentário de Schwarz sobre ele, me tirou do lugar em que eu estava para colocar-me em posição muito mais avançada na linha da compreensão crítica da literatura— e da sutileza na leitura. Trata-se de uma exemplar peça de crítica literária, de empenho analítico e desem­penho interpretativo, uma pequena aula de procedimentos para o estudo da lite­ratura. Assim também duas outras passagens do livro me deixaram pasmo, numa felicidade que era mais do que apenas intelectual, porque era existencial em sen­tido amplo: uma foi a inquietante pergunta estampada em “Notas sobre van­guarda e conformismo”, a propósito de uma análise sobre entrevistas com músi­cos feitas por Júlio Medaglia (“O vanguardista está na ponta de qual corrida?”), pergunta feita sobre e contra o desenho rápido e incisivo da cena daquele momento, em que, segundo Schwarz, “progresso técnico e conteúdo social rea­cionário podem andar juntos”. Minha leitura acontecia no fim do Milagre Eco­nômico e no início da retomada do movimento social e político contra a dita­dura, e isso diz muito sobre a força da pergunta para mim. A outra passagem foi igualmente impactante: no artigo “Cultura e política, 1964-1969”, alguns esque­mas, a abertura autocrítica, escrita em 1978, é ainda hoje entusiasmante:

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As páginas que seguem foram escritas entre 1969 e 1970. No principal, como o lei­

tor facilmente verá, o seu prognóstico estava errado, o que não as recomenda. De

resto acredito — até segunda ordem — que alguma coisa se aproveita. A tentação

de reescrever as passagens que a realidade e os anos desmentiram naturalmente

existe. Mas para que substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje,

que podem não estar menos equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contem­

porâneos é sempre mais vivo [...].

Era e é uma lição apreciável. Naquela conjuntura acadêmica, brilhava a estrela dos estruturalistas de segunda mão, apresentados como renovadores; mas ainda aparecia, meio apagada, a luz antiga dos velhos críticos impressionis­tas, em meio a algumas poucas velas de gente interessada em história ou socio­logia, que estava necessariamente do lado progressista naquele momento polí­tico, pelo mero interesse em buscar totalidade e identificar processo quando só tinham prestígio leituras parciais e tópicas. (Para ser justo, é preciso dizer tam­bém que esses pontos de vista trabalhavam ao lado de alguns professores e tra­dutores formados ainda na velha tradição filológica alemã, que em Porto Alegre havia, fruto lateral da fuga de europeus na Segunda Guerra.) Pois nesse quadro eu lia no texto de Roberto Schwarz uma maneira realmente nova de estudar lite­ratura: era possível ser de esquerda, sem jogar fora a boa tradição letrada, e com autocrítica! Isso queria dizer que era possível, na minha escala pessoal, ler lite­ratura com interesse e com crítica, ir à assembléia geral dos estudantes para der­rubar o regime, fazer passeata e cultivar dúvidas, tudo ao mesmo tempo.

Aquele momento, em que a ditadura começava a naufragar mas ainda demoraria, apresentava no mundo das letras algumas referências que vale a pena lembrar como balizas: além da vigência da moda estruturalista já mencio­nada, concebida e praticada de modo quase cem por cento acrítico, havia o con­texto de censura (imposta ou, não vamos esquecer, espontânea, dos que aderiam alegremente à lógica do regime) ao pensamento de esquerda e mesmo ao pen­samento materialista em geral; para quem se formava, a perspectiva era quase unicamente a do magistério, porque a pesquisa e a pós-graduação mal começa­vam a se organizar na universidade, oferecendo poucas chances de vida profis­sional para iniciantes, e mesmo para os professores da própria universidade federal, grande parte dos quais só alcançaria posição profissional razoável na virada dos anos 70 para os 80, e ainda, não custa lembrar, estando vedada outra

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possibilidade, a do trabalho em jornal, porque pouco tempo antes havia sido decretada a necessidade do diploma em jornalismo, aliás, comunicação social, para desempenhar um trabalho que antes era regularmente oxigenado por gente oriunda das áreas de letras, filosofia, direito. E tudo isso num momento de urgência para a ação política, que impunha a necessidade de descobrir os nexos entre teoria e prática, entre literatura e vida real.

Ainda falta um elemento nesta já longa definição de ponto de vista. Ao ven­cedor as batatas é o livro de Roberto Schwarz que eu mais li, ou o que mais vezes enfrentei, talvez porque ele me tenha sido tão importante como desvelamento e aprendizado quanto difícil como caminho analítico. Quer dizer: eu não sabia ler aquele texto, e aprendi a ler lendo-o. A abertura do texto se chama, como é notó­rio, “As idéias fora do lugar”, frase singela de altíssimo poder de impacto na his­tória da inteligência brasileira dos últimos trinta anos, nada menos. Diz o pri­meiro parágrafo: “Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão”.

É assustador o silogismo, pela clareza e pela justaposição sem meias-pala-

vras entre o debate científico e a história, assim como entre a história ocidental e a história brasileira. Claro que, vistas de hoje as coisas, ficou evidente que todas essas dimensões estão relacionadas, mas naquela altura não era óbvio, absoluta­mente. (Também não era fácil enfrentar no texto de Ao vencedor as batatas os parágrafos de dezenas de linhas, num andamento de filosofia alemã, com argu­mentação cerrada, sem tempo para o leitor brasileiro respirar.) Da mesma maneira, é de ver que foi necessário um árduo caminho analítico e argumenta­tivo para chegar à forma precisa e ultra-sintética da “volubilidade do narrador”, que depois de formulada permitiu entender Machado de Assis, e muito mais que ele em abstrato, o narrador em concreto, justamente a matéria-prima do traba­lho maduro de Schwarz, que nos ensinou a olhar para a estrutura narrativa mais que qualquer outro pensador no país, salvo, talvez, Candido. Mas definitiva­mente não era assim na hora em que essa síntese ainda não tinha aparecido.

Ao reler com alunos, ano passado, o sempre instigante Ao vencedoras bata­tas, a sensação de leitura que tive apareceu na forma de uma exclamação, que ocupou o meu pensamento por um breve e sólido momento: “A solidão deste

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cara...” pensei sobre Roberto Schwarz, ao alcançar mais uma vez as páginas finais. Sensação de que estava ali um Roald Amundsen chegando a uma região despovoada, árida, mas sensacional se vista do ângulo do visitante que a con­quistava. Há ali toda uma lição de rigor, que se reforça pela constante retomada da argumentação de Lukács, espinha dorsal do trabalho schwarziano, bem como há ali imagens sintéticas de grande alcance, daquelas capazes de iluminar enormemente o panorama analisado, como são, a propósito de laiá Garcia, observações do tipo “romance abafado”, ou “desencanto sem revolta”, ou o fla­grante da contradição insolúvel figurado na idéia de um “obséquio impessoal”. Dialética pouca não basta, e o texto vem para o presente da análise, ousada­mente, fotografando em 1977 o traço ideológico que Machado flagrava em seu tempo: “Algo de análogo aos militares nossos contemporâneos, que defendem o capitalismo, mas não gostam do lucro”. A conquista desse vasto território crítico deve ter sido dura.

A propósito do vilão Procópio Dias, em outro momento do mesmo livro, diz Schwarz que “o processo social estava unificando o que a ideologia e o estilo literário separavam”, e aqui está o salto em relação ao estado do debate brasileiro: o trabalho era uma análise minuciosa da literatura como poucas outras no pas­sado brasileiro (Raymundo Faoro, ultradetalhista como Schwarz, é contempo­râneo de Ao vencedor as batatas com seu Machado de Assis — A pirâmide e o tra­pézio, de 1974), mas estava enquadrado por uma teoria poderosa que colocava muita coisa em cena: era mais que o romance do primeiro Machado, era mais que Machado em sua totalidade, era mais que o romance brasileiro, e era tam­bém mais do que o Brasil do final do século xix; com o trabalho, o dado local e brasileiro aparecia visível, na prosa analítica, contra o pano de fundo do movi­mento geral do capitalismo. Para o leitor de 1977, certamente era muito difícil acompanhar tudo isso junto; e para o autor do estudo, como terá funcionado?

A minha resposta volta à idéia da enorme solidão. Era, é, a solidão do con­ceito. Solidão como todo pensador original experimenta, em qualquer solo; soli­dão quase absoluta, no mundo intelectual brasileiro em geral, e no mundo letrado brasileiro em particular. A solidão de quem alcançava a formulação ori­ginal de todo um quadro conceituai inédito, em meio a uma tradição intelectual e acadêmica francamente hostil ou, talvez pior, indiferente à ciência que Schwarz estava praticando. Ciência sobre matéria raramente submetida a aná­lise rigorosa, ciência pautada pela alta tradição marxista, ciência sem indife­

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rença para com a política e a dinâmica social. A situação é tal que fíco tentado ao trocadilho: assim como Antonio Candido e sua turma de amigos tinha uma reconhecida e declarada “paixão pelo concreto”, é possível dizer que Roberto Schwarz tem a rara paixão pelo abstrato, pelo conceito. Voltaremos a esse ponto, mais adiante.

(Tese paralela, que fica aqui apenas rabiscada: o pensamento crítico de Roberto Schwarz tende a manter acesa uma forte chama de energia analítica que transcende a aporia, que muitas vezes encerra e restringe o pensamento mate­rialista da esquerda paulista e uspiana. São Paulo produz pensamento e arte apo- rísticos: o Paulo Arantes de Extinção; o concretismo; Arnaldo Antunes; o filme de Sérgio Bianchi; Cronicamente inviável etc.; ao passo que o pensamento mate­rialista de esquerda noutras partes não necessariamente chega à aporia, como me parece ser o caso de Bourdieu ou Hobsbawm. Caberia examinar, para discu­tir a tese, alguns comentários de Schwarz em que aparece essa dinâmica entre crítica negativa levada a sério e a fundo, de um lado, e de outro a permanência de energia dialética: sua crítica ao filme Cabra marcado para morrer, seus artigos diretamente políticos ou de política cultural, seus comentários sobre a obra de Antonio Candido, entre outros.)

A SEREIA E O D ES C O N F IA D O

Vamos agora, finalmente, ao tema: encontrar na primeira parte da obra de Schwarz elementos embrionários de sua interpretação madura, a partir de Ao vencedor as batatas, aquela que matou a charada sobre a volubilidade do narra­dor machadiano. Para tal, vamos apreciar algumas marcas de A sereia e o descon­fiado, de 1965, o primeiro momento em que o pensamento de Roberto Schwarz se apresenta publicamente de maneira ampla na forma duradoura do livro. A investigação espera flagrar o movimento do jovem Schwarz em direção à matu­ridade de Ao vencedor as batatas.

Começando bem de fora para dentro, vale a pena registrar uma estranheza. O leitor de hoje se choca com o texto da contracapa, texto editorial, provavel­mente sem a mão do autor, mas de todo significativo para avaliar o clima da publicação:

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A despeito dos problemas culturais bastante graves que nos afligem como povo,

decorrentes de um estado sócio-económico injusto, anacrónico e destruidor, aqui

e ali começam a surgir — sobretudo no meio universitário mais jovem — indiví­

duos altamente capacitados para as análises críticas construtivas de todos os seto­

res da criação humana. Entre esses jovens exegetas, lúcidos e corajosos no romper

dos velhos tabus e no abrir de novos caminhos, situa-se Roberto Schwarz [...].

Os nexos entre crítica literária, universidade, esclarecimento e aggiorna- mento, juventude e tarefa construtiva do país novo e oprimido (em 1965, a ape­nas um ano do golpe) são, na opinião do editor do livro, evidentes e necessários. Por outro lado, o escrever um livro — e um livro de crítica exigente, que fatal­mente teria poucos leitores — estava inscrito entre as tarefas dignas para um cidadão, para o camarada, para o companheiro (mas ali pelo meio se diz que se trata de “críticas construtivas”, senha, talvez, para acalmar a tigrada da direita). Quem hoje se aventuraria a passar entre tais níveis assim positivamente, sem pedir desculpas pelo atropelo? A mudança social de lá para cá foi também a do progressivo e inexorável isolamento entre o mundo intelectual e a opinião pública, que caminhou lado a lado com a especialização acadêmica.

Depois, vem a surpresa com a orelha de apresentação, assinada por Lean­dro Konder. A primeira frase diz assim:

Por favor, leitor, não se deixe impressionar excessivamente com o fato de que o

ensaísta Roberto Schwarz fale de Mário de Andrade, de Grande sertão: veredas, do

Doktor Faustus de Thomas Mann, da Emilia Galotti de Lessing, do Ateneu de Raúl

Pompéia, de Franz Kafka, de Dostoiévski e do Pai Goriot com a mesma familiari­

dade e com a mesma tranqüila desenvoltura com que nós falaríamos de um amigo

íntimo ou de um irmão de criação.

Como assim? — pergunta o leitor de agora. Quer dizer que tem cabimento mobilizar a referência a amigo íntimo e a irmão de criação para falar de erudição por assim dizer orgânica? Quer dizer que os critérios do velho Brasil cordial e patriarcal precisavam (ou ao menos podiam) ser mobilizados para diminuir o pasmo do leitor potencial de Schwarz, em 1965? Para quem vive na sociedade brasileira urbana de hoje, quando os nexos de solidariedade social ou não exis­tem ou são bem outros do que os da antiga família senhorial, a orelha de Konder

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— amigo e admirador de Roberto, como ele um sujeito de esquerda desde sem­pre e até hoje — estarrece, pelo abismo que cava, involuntariamente, entre aquele mundo e o nosso, entre o colorido ar de família que envolvia a vida polí­tica e intelectual e o ar cinza do isolamento recíproco de hoje. (A vanguarda está na ponta de qual corrida?) Tudo considerado, o texto da contracapa e a orelha dão notícia de um horizonte de recepção muito diverso do nosso, bastante posi­tivo e até otimista, atravessado de nexos entre a esfera social e a intelectual das classes médias e altas, confortáveis e/ou cultas, em que a crítica de formação aca­dêmica mal começava a existir e em que, não esqueçamos, tinham força consi­derável, muito diversa da que conhecemos agora, o livro e a crítica de jornal, tudo isso num ambiente social demarcado, de um lado, pela tradicional família patriarcal e, de outro, pelo começo da profissionalização das letras na universi­

dade brasileira. Bem outro mundo.

A sereia e o desconfiado põe em tela de apreciação Kafka, Dostoiévski, Les­

sing, Hawthorne, Henry James, Malraux e Balzac, além de Thomas Mann, este

entrando como term o de comparação para um comentário sobre Grande sertão: veredas. De gente brasileira, além de Guimarães Rosa, entram na conta Mário de

Andrade, Clarice Lispector, Raul Pompéia e o Ateneu, mais Graça Aranha, apre­

ciado no artigo “A estrutura de Chanaan\ Não é todo o Realismo; mas o prin­

cipal da narrativa realista pode bem estar representado por estes autores, de­

monstração do apetite específico do jovem crítico. O caminho analítico vai se

debruçar sobre o romance, acima de todas as outras formas literárias, para colo­

car em linha literatura e sociedade, mas também autoria e recepção, Europa e

Brasil, sem nunca perder de vista os nexos entre os elementos de cada par, muito

menos desconhecendo as relações entre centro e periferia.Ao lado de suas várias e já saudadas virtudes, o livro apresenta duas limita­

ções interessantes de apreciar à distância de quatro décadas: primeiro, uma

constante remissão da retlexão a dimensões psicanalíticas ou psicológicas, que depois passariam a ser ilustres ausências do horizonte teórico do crítico; segundo, a relativa fragilidade do com entário sobre Grande sertão: veredas, romance que não alcança maior relevância na obra futura de Schwarz. Quanto ao primeiro caso, as referências são enormemente presentes no artigo sobre Cla­rice Lispector: lá estão termos com o gestalt (p. 25), consciência, pré-consciên-

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cia, psicologia associacionista, behaviourismo (p. 41). (Deve haver um enorme campo de trabalho no encontro entre o trabalho de Schwarz e o debate freu­diano e psicanalítico em geral.) Quanto ao segundo, a coisa talvez se explique por uma marca central da obra de Roberto Schwarz, que precisa ser assinalada aqui para poder enxergar os contornos de seu método e de seu caminho, e merece reflexão: seu ethos histórico é a cidade moderna, e essa é a ratio que ele esmiuça com destreza; nesse mundo e para esse mundo nasceram os principais teóricos e filósofos de sua família intelectual de escolha, de Marx a Adorno pas­sando por Lukács. Não existe campo ou sertão nesse mundo, assim como, avan­çando bastante uma conclusão, não existe em sua obra crítica o mundo interio­rano, rural, nem como experiência direta trazida ao plano da reflexão, nem como uma preocupação orgânica para o debate. Esta ausência parece ser sin­toma tópico de uma questão muito mais complexa e abrangente, por certo, por­que envolve mesmo o pensamento moderno de esquerda, em sentido amplo, afeito desde Marx a uma visada genérica sobre o mundo rural que o elimina do horizonte de preocupações, fundado na perspectiva de que lá está a vida atra­sada, porque ainda não reificada e não submetida à dominação plena do capital, de onde se conclui que lá está uma vida não merecedora da reflexão revolucio­nária. Por outro lado, vistas as coisas desde o meu ângulo, conscientemente peri­férico, é esta uma das marcas também do modo de pensar paulista, no plano da história da literatura brasileira, modo de pensar que implica o descarte mais ou menos liminar das questões envolvendo a literatura feita sobre a matéria rural, seja ela uma arte alta ou baixa, sertaneja, nortista ou sulina: sendo não-urbana, basta para deixar de ter interesse — este tem sido motivo suficiente para que tal arte quase não apareça sequer como problema. (Naturalmente, quem está falando aqui é um sujeito bronqueado com a hegemonia deste padrão de refle­xão no cenário universitário brasileiro.)

Desdobremos o parágrafo. Um dos argumentos apresentados pela fração acima mencionada da crítica materialista (um Raymond Williams fora, um Ángel Rama fora), para exclusivizar a cidade como o tema por excelência da lite­ratura que-vem-ao-caso, prevê uma relação diretamente proporcional entre, de um lado, a necessidade que a arte moderna tem de captar o novo e, de outro, a consciência de que tal novo está na ponta do processo; somente a arte capaz de flagrar e dar corpo e voz ao novo seria digna de figurar entre os elementos real­mente relevantes, porque ela estaria acompanhando a mudança; a ponta do pro­

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cesso deve estar, como se deduz do argumento marxista, necessariamente na cidade, sendo o mundo rural apenas um espaço a ser submetido às exigências do processo geral; isso quer dizer, por outro lado, que o chamado passo adiante esté­tico estaria sempre e necessariamente na ponta do novo, que é a ponta urbana e que é também, paradoxal mas organicamente, a ponta do percurso pela implan­tação da regra da mercadoria, que avança sobre as relações sociais pré-capitalis- tas, transformando-as, submetendo-as, reificando-as, e por isso, fica subenten­dido no argumento, tornando-as aptas para o estalo revolucionário. Ora, estando a ponta do processo sempre na cidade, eis aqui o motivo para que o ro­mance urbano seja a evidência maior e, no limite, única desse avanço rumo à finalização do processo, a submissão última de todas as relações sociais, in­cluindo naturalmente as estéticas, avanço que jamais poderia, então, estar con­figurado na arte ocupada com a matéria da vida rural, a qual será vista, por sua natureza, como ultrapassada, senão mesmo regressiva.1 Assim tem pensado a esquerda há um século e meio, mais ou menos.

Será mesmo assim? Ainda hoje? Sem pretender ir ao fundo do tema, que naturalmente está fora do alcance do comentário aqui exposto, é de consignar pelo menos duas evidências contrárias, que põem em xeque a equação do pará- grado anterior. Primeira: com a revolução tecnológica recente, a dos microcom­putadores, da manipulação genética e da internet, a supremacia da cidade naquele processo parece perder um tanto de sua força, já que é perfeitamente possível que a ponta científica e tecnológica (e social?) esteja numa cidadezinha de 2 mil habitantes, e que a ponta econômica esteja no agronegócio, lá no sertão irrigado; tal situação deslocaria a cidade do centro daquele processo, cuja des­crição até agora parece depender do modelo capitalista industrial clássico; e isso tudo pode significar que o novo histórico pode estar noutro lugar, ou pelo menos também noutro lugar, que não a cidade. Segunda: na história da literatura bra­sileira (e latino-americana, para não ir mais adiante) o passo adiante estético já teve dias de grande evidência e mesmo de excelência em relatos ficcionais sobre o mundo rural;2 sem ir mais longe, e tomando duas variáveis especificamente literárias para medir o avanço do passo— d problematização da posição do nar­rador e a capacidade de renovar a linguagem da língua em que é escrito o tex­to — , aí estão a obra de Simões Lopes Neto, de Graciliano Ramos e de Guima­rães Rosa. Como ficamos, então?

Ficamos em que no livro inicial de Roberto Schwarz, tipicamente, estão

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ausentes o mundo rural e a narrativa sobre ele tramada, mesmo que contemos com a presença de Grande sertão: veredas, que será lido quase exclusivamente em seus aspectos por assim dizer neutros quanto à referencialidade rural: aqui uma consideração sobre o aspecto dramático do relato, ali uma tentativa de algebri­zar o andamento sintático do texto, adiante uma comparação com a técnica pontilhista, depois toda uma aproximação com Thomas Mann. Vale ressaltar, porém, que nada disso está ou esteve vedado ao trabalho crítico, e, pelo contrá­rio, ajuda a enxergar o monumental romance de Rosa, ainda mais se lembrarmos que os dois ensaios de Schwarz sobre ele são de 1959 e 1960, quer dizer, a pou­quíssimo tempo do lançamento, em 1956, que como se sabe deixou embasba­cada e quase afásica a crítica.

Da mesma forma, e ampliando a observação, em A sereia e o desconfiado não há o Brasil como experiência social variada, como varejo, e sim o Brasil tal qual um conjunto dado como homogêneo e, não tão claramente quanto anos depois será, como parte específica do sistema-mundo, do capitalismo. Inexis- tem as tensões miúdas da vida brasileira, que acossam o crítico militante e o pro­fessor diário e são o ponto de apoio para a interpretação com vistas à ação polí­tica, que por sinal começava a ser exigida no tempo do lançamento do livro e seria obrigatória depois de 1968. Acossam e embaralham a percepção, poderia dizer o jovem Schwarz em sua correta defesa: expurgando a empiria bruta, aquilo que Jorge Luis Borges alguma vez chamou de “estilo incessante” da reali­dade, o crítico se aproximava das condições para a visada de conjunto, caminho para o conceito.

Mesmo nos comentários sobre poesia se pode ver, em A sereia e o descon­fiado, o modo conceitualizante de proceder. No primeiro artigo do livro, dedi­cado a analisar Mário de Andrade (tema de escolha aleatória? Obrigação loca­lista de pesquisador uspiano?), está lá o axioma científico, quer dizer, abstrato: “No discurso poético [...] a relação entre as camadas verbal e significativa deixa de ser arbitrária, ganha necessidade”, “A maneira de significar significa” (p. 14). Num dos ensaios sobre Grande sertão: veredas, apela-se a Sartre: “Estamos pró­ximos da conceituação de Sartre, na qual a palavra poética se distingue da comum por preterir a função utilitária e simbólica, transparente com vista ao mundo objetivo, em favor da opacidade, do ser símbolo e gozo dela mesma” (p.

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27). Duas páginas antes, depois de observar que “uma contagem que ninguém irá fazer [mas o analista parece ter feito] revelaria o predomínio, em Grande ser­tão: veredas, da oração coordenada sobre a subordinada”, Schwarz apresenta uma metáfora para tentar um conceito original que descreva a leitura a que a sintaxe obriga: “Poderíamos chamar de lançadeira [:] o discurso anuncia uma direção, lança uma gestalt que se sobrepõe à gramática e tem força para incorpo­rar, segundo a sua dinâmica de sentido, os segmentos mais diversos” (pp. 25,26). Já no texto sobre Clarice Lispector, como se fosse casualmente, associa um con­ceito filosófico à noção fluida de poesia: “Uma Joana, a que se conhece e inter­preta, habita as antecâmaras da poesia, da objetivação do espírito” (p. 41). Os exemplos poderiam ser m ultiplicados, mas já dá para perceber a rotina do esforço abstratizante, conceitualizante, curiosamente mais próximo de Sartre do que de Adorno. Ninguém era de ferro para resistir ao apelo do tempero exis­tencialista na sopa marxista da virada de 50 para 60.

EM BU SC A DO N A R R A D O R

“A letra escarlate e o puritanism o” nos dá outro aspecto das constantes metodológicas de Roberto Schwarz. Aqui, ao lado da já mencionada vontade

do conceito, se observa um andamento sempre dedutivo, regularmente dedu­tivo. A começar da primeiríssima frase: “Todo romance começa em meio da lin­guagem e das noções comuns. Passo a passo constrói pretextos singulares, no interior dos quais as palavras e as idéias adquirem e cristalizam certos aspectos,

enquanto excluem outros” Esta é a arrancada para uma reflexão sobre o ro­mance de Nathaniel Hawthorne, por sinal o mesmo que será tomado como termo de comparação num ensaio clássico de Antonio Candido, publicado anos depois.’ Começamos, então, pelo geral das primeiras frases acima repro­duzidas, e daí desceremos ao particular do caso romanesco. Este é o primeiro sentido do dedutivismo sistemático. O segundo aparece logo em seguida, quando o ensaio evoca um historiador, William Bradford, analista da emigra­ção dos puritanos ingleses para a América, a partir de cujas observações Schwarz caminha em direção ao romance — dedução da história para a litera­tura. E o terceiro passo é visível apenas em perspectiva mais ampla e pode ser chamado de dedução operada desde uma sociedade de contornos sociais níti-

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dos (o nordeste dos Estados Unidos) em direção a urna outra, de mediações sociais esfumaçadas (o Brasil escravista do Rio de Janeiro): aqui, Schwarz apre­senta com bom detalhe o nexo entre classe social, trajetória histórica e a men­talidade dos grupos, num caso por assim dizer exemplar de sociedade colonial, nos Estados Unidos; tempos depois, quando estudar Machado de Assis, vai como que refazer o caminho, lendo no romance as evidências daquelas media­ções sociais brasileiras, que não tinham sido detectadas nem descritas pela his­toriografia ou pela sociologia. Algo semelhante pode-se ler no ensaio que com­para o Doutor Fausto com Grande sertão: veredas, em que a análise caminha da sociedade central européia, estampada naquele romance, para a sociedade periférica brasileira, tal como apresentada neste.

Em pelo menos quatro momentos do livro Roberto Schwarz aponta já o narrador, a instância por assim dizer técnica do narrador, como o foco de seu interesse, ainda não formulado claramente, mas já central como ponto de refe­rência para a intuição. O mesmo narrador, como sabemos, será a pedra de toque da tese da volubilidade em Machado de Assis. No belo ensaio sobre O Ateneu, critica a visão de Mário de Andrade sobre o romance, em função de seu método, o do “biografismo crítico”, que “rouba ao romance de Raul Pompéia [...] uma das dimensões mais modernas, a superação do Realismo pela presença emotiva de um narrador ’ (grifo meu). Pode parecer pouco, mas não é: ao confrontar a leitura de Mário, Roberto estava também transcendendo o clichê crítico do tempo, que via em O Ateneu apenas um estilo, uma manha (de origem biográ­fica) narrativa, e não um caminho diverso na atitude realista. Assim, a coisa muda de tamanho.

Noutro ensaio, “A estrutura de Canaa” — Schwarz dá ao leitor de hoje a impressão de estar cercando o tema Machado de Assis, primeiro com Pompéia, agora com Graça Aranha— , observa que a estratégia do romance de idéias é mal­sucedida porque guarda um equívoco, na “incursão do autor no universo ficcio­nal”, no vocabulário e nos juízos que aparecem a cada tanto. Depois, contrasta tal engano com o acerto de Machado de Assis, que também é um metido, um intruso na ficção que monta, mas nele “a esfera das considerações do autor é ela mesma esteticamente organizada, enriquece as personagens em lugar de anulá- las”. Vistas as coisas desde o futuro, a observação permite ver um programa de ação analítica: demonstrar como é, na intimidade da linguagem e nos bastido­res da história, que funciona tal organização estética em Machado. Só que o

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termo de com paração deixará de ser Graça Aranha, para ser o grande romance

europeu.

No primeiro dos ensaios sobre Grande sertão: veredas, centrado na análise da fala ali exposta, também aparece uma pequena sucessão de observações, no limite inconclusas, sobre o papel e a significação do narrador no arranjo geral do romance. “Sem ser rigorosamente um monólogo, não chega a ser diálogo”, diz uma das primeiras passagens do texto. “A história, por um momento, dis­pensa o narrador, flui do simples contato verbal de suas figuras”, comenta em seguida — e aqui, pode-se observar anacrónicamente, faltava talvez a experiên­cia da leitura sociológica de um caso como o de Simões Lopes Neto, que neste particular é a matriz de Guimarães Rosa, inventando um narrador que dá a sen­sação de desaparecer em favor do causo que conta, mas permanecendo como fil­tro de todo o relato. Quando chegamos ao final do ensaio, percebemos que o analista não consegue ir muito adiante na argüição da posição e da relevância do narrador na estruturação do romance, ainda que tenha apontado um conjunto de traços pertinentes ao tema.

Mas é no já citado ensaio sobre A letra escarlate que o problema se apresenta realmente de corpo inteiro no campo de visão do analista. Schwarz leva seu raciocínio na direção de apontar os impasses do romance, no plano da trama e no da consciência dos personagens, e então aponta o tamanho do problema: “ Se não é resolvido em termos da trama, como não pode sê-lo, pois Hawthorne guar­da uma certa fidelidade ao curso real da história dos e e u u , deveria resolver-se pela crescente consciência crítica do narradory (grifo meu). Bingo! É mais um caso de romance gorado, como foi com Canaã, a servir de ponto de referência para entender, anos depois, os acertos do romance machadiano.

Estava, portanto, em processo de montagem o trabalho crítico de Roberto Schwarz. A notória busca do conceito era informada pela leitura dialética, que queria enxergar as regras da representação da experiência social (urbana) nas letras, quer dizer, no romance, visto de dentro da tradição realista. E o romance não era mais um problema de ordem mimética trivial; mais que a trama e o decalque da realidade, deveria entrar em causa a posição do narrador, lição aprendida em Lukács mas desdobrada para direções que o mestre não teria como prever, mas é claro que aprovaria.

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Como espero ter mostrado, A sereia e o desconfiado tem profundo signifi­cado no trabalho futuro de seu autor, como um passo inicial de um esforço que se estenderia pelas décadas seguintes, com um enorme ganho. Schwarz ensinou- nos a olhar para a estrutura narrativa talvez mais que qualquer outro intelectual brasileiro, com a possível exceção de seu professor Antonio Candido. E, se não me falha a observação, os dois mantêm relação claramente complementar, no horizonte brasileiro da análise da literatura: Candido, mais artesão e crítico lite­rário, tende a ser concreto e indutivo, centralizando o processo histórico na compreensão da literatura; Schwarz, mais cientista e filósofo, tende a ser abs­trato e dedutivo, centralizando o conceito no estudo da literatura. Um par rigo­rosamente dialético.

Para encerrar tomando mais uma lição com nosso homenageado, sir- vamo-nos de uma observação sua, uma de suas frases sintéticas de grande poder de iluminação — como ainda estes tempos aconteceu quando comentou Estorvo, o desconcertante romance de Chico Buarque: “Em poucas linhas o lei­tor sabe que está diante da lógica de uma forma”.4 No citado ensaio sobre A letra escarlate, escrito em 1963 (atenção para a data, anterior ao golpe), vai afirmar: “Se a ordem vigente manda ver a sua íntegra como sendo razão, a reflexão crí­tica pode emergir unicamente de uma oposição radical, que a questione inteira”. Era um comentário sobre as tarefas de Hawthorne, de resto incumpridas, mas serve como consigna geral do trabalho que vem desenvolvendo entre nós, num papel seminal que vale a pena reconhecer, para mais aprender.

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Sobre Que horas são?

Marcelo Coelho

Fazer um comentário mais detido sobre a obra de Roberto Schwarz é bas­tante difícil. Não há como fugir de sua influência; mas seria bastante esquisito se um texto de pretensão analítica terminasse involuntariamente imitando o autor analisado. Por outro lado, a agudeza crítica e a simplicidade pessoal de Roberto Schwarz tornariam inadequados os discursos puramente admirativos que tenho vontade de fazer. Neste artigo, pretendo concentrar-me em um ou dois temas presentes no livro Que horas são?1 que me parecem úteis para caracterizar seu pensamento.

Em “Nacional por subtração”, um dos ensaios da coletânea, Schwarz men­ciona o sentimento generalizado de que “a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar do zero. O apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da gera­ção anterior e a conseqüente descontinuidade da reflexão” (p. 30).

O seminário que deu origem ao presente livro não deixou de representar um feliz desmentido a essa percepção. Nele se reuniram representantes de várias gerações de intelectuais, de Antonio Candido a Pedro Arantes, seguindo uma vertente de preocupações que já vinha desde a obra dos modernistas de 1922, e que a esta altura podemos considerar bastante densa. Corresponde não só a questões teóricas e estéticas que foram se aprofundando ao longo do tempo, mas

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também a questões práticas e políticas que, apesar da grande ruptura que foi o golpe de 1964, continuam em pauta no país. Do ponto de vista institucional, também cabe lembrar que a criação da Universidade de São Paulo, na década de 30, teve um papel relevante no esforço de garantir, apesar dos pesares, a conti­nuidade dos debates teóricos e de método que têm mobilizado parcelas relevan­tes da intelectualidade brasileira.

Gostaria de abordar a forma com que o tema da continuidade, da perma­nência, se faz presente nos vários ensaios de Que horas são?, e de que modo con­ceitos opostos, como os de hiato, interrupção, ruptura, encontram lugar nas preocupações do autor.

A imagem da constância nos interesses intelectuais e políticos, de um pro­jeto que vai sendo conduzido ao longo das gerações, aparece em diversas passa­gens de Que horas são?, e com especial evidência no texto que Schwarz dedica a “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido. Verificamos assim que, estu­dando as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Candido identifica uma corrente literária que começara na colônia, com Grego­rio de Matos, e chegaria até Macunaíma e Serafim Ponte Grande, no século XX.

Vemos também que a própria obra de Antonio Candido viria a retomar um “esforço de interpretação da experiência brasileira” que tinha origens na crítica naturalista de Sílvio Romero, integrando-se, ademais, a uma outra tradição, a da “crítica de escritor”: e a este propósito Schwarz lembra autores como “Augusto Meyer, Mário de Andrade, Lúcia Miguel-Pereira, a cuja prosa admirável Anto­nio Candido dá continuidade” (p. 155).

Já no ensaio que citávamos anteriormente, “Nacional por subtração”, Schwarz referia-se à “estatura isolada de uns poucos escritores como Machado de Assis, Mário de Andrade, e hoje, Antonio Candido”, que souberam “retomar criticamente e em larga escala o trabalho dos predecessores”. Note-se ainda que “não se trata de continuidade pela continuidade, mas de constituição de um campo de problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica pró­prias, que recolha as forças em presença e solicite o passo adiante” (p. 31). Pode­mos reconhecer facilmente em Roberto Schwarz um desses escritores de “esta­tura isolada”. É certo, contudo, que a cultura brasileira contemporânea — por mérito também do próprio Schwarz — tem dedicado cada vez mais esforços no sentido de retomar questões do seu passado.

A busca da continuidade também aparece em “O fio da meada”, ensaio de

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Que horas são?a respeito de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Nesse filme, o diretor reencontra, depois de quase vinte anos de intervalo, as per­sonagens de um documentário sobre as lutas camponesas que rodava nos tem­pos do governo João Goulart. A filmagem se interrompera com a tomada do poder pelos militares. Entre as personagens envolvidas na luta camponesa, des­tacava-se uma mulher chamada Elisabete, que viria a entrar na clandestinidade. Em Cabra marcado para morrer, vemos Eduardo Coutinho procurando o para­deiro dessa militante, e o reencontro dos dois. “Metaforicamente, a heroína enfim reconhecida e o filme enfim realizado restabelecem a continuidade com o movimento popular anterior a 64, e desmentem a eternidade da ditadura, que não será o capítulo final”, diz Schwarz. “Nada é mais comovente do que reatar um fio rompido, completar um projeto truncado, reaver uma identidade per­dida, resistir ao terror e lhe sobreviver.” Mas se isso também poderia fazer parte de um enredo sentimental — como nota o crítico — , ocorre que no filme “sob as aparências do reencontro o que existe são os enigmas da situação nova, e os da antiga, que pedem reconsideração” (p. 72).

O próprio título do livro, Que horas são?y parece evocar de modo bem- humorado o intelectual, o teórico que se afastou do cotidiano, que se distanciou dos fatos ou passou por um momento de distração, e de repente “acorda”, dando-se conta de que um tempo transcorreu, que houve um lapso, uma inter­rupção entre a sua consciência e o curso regular das coisas. Cabe acertar o reló­gio, atualizar os assuntos que estavam colocados anteriormente, retomar seus compromissos. Mas podemos dizer que não é o autor, é a sociedade brasileira que depois de um período de imobilidade forçada vai ter de enfrentar questões antigas, defrontar-se, em configurações diversas, com problemas por longo tempo adiados. De modo que esse perguntador distraído é também, se quiser­mos, o cidadão impaciente, como que à espera de um trem que se atrasou demais. Ausência e urgência, desligamento e pressa, continuidade e sobressalto estão juntos nesse caso.

Referimo-nos à anedota que aparece logo no começo do livro, no texto “A carroça, o bonde e o poeta modernista”. Diz Schwarz:

A propósito da diferença entre a rigidez germânica e a folga dos vienenses, conta-

se que um alemão pergunta pelo horário de certo trem, e qual não é o seu estupor

quando o austríaco lhe responde que o dito cujo “tem o costume” de passar a hora

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tal. A graça está no abismo entre horário e costume, e indica a falta de naturalidade

de uns, e a desadaptação ao mundo moderno de outros, (p. 16)

Não cabe prosseguir expondo as idéias desse ensaio, magistral análise de um poema de Oswald de Andrade onde se narra o banalíssimo caso de uma car­roça movida a burro, que estaca em cima dos trilhos de bonde, na São Paulo dos anos 20. Retenha-se, para os fins desta exposição, a passagem do trem vienense.

Não só a continuidade, mas também o tema correlato da ruptura está pre­sente no livro de Schwarz. Ingressando nesse tópico, lembremos inicialmente uma outra cena, de outro texto do livro, na qual um passante também pede informações a um cidadão. O curto ensaio intitulado “Primeiros tempos de Anatol Rosenfeld no Brasil” começa assim:

Rosenfeld deixou a Alemanha durante os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936.

Cometera a imprudência de falar a um visitante que lhe havia pedido informações

na rua em inglês. Um agente à paisana achou estranha a conversa, pois era comum

na época os maus alemães difamarem o hitlerismo junto aos turistas, prejudi­

cando a imagem externa do país. O polícia entregou ao suspeito uma intimação

para comparecer à delegacia. Este, que era judeu e de esquerda, fugiu para a

Holanda, (p. 79)

Como na anedota entre o alemão e o vienense, também há nesse episódio— claro que sem nenhuma comicidade— um caso de desproporção: do pedido de informações na rua se passa ao exílio, e do “que horas são?” se passa a um “onde é que estamos?”, pergunta que na história do Anatol Rosenfeld se mostra de profundas conseqüências; obviamente, esta não é uma pergunta menos constitutiva para o autor de “As idéias fora do lugar”. Em vez de continuidade, é a sensação de ruptura, de interrupção, que se manifesta aqui.

Um pouco mais adiante, no mesmo ensaio, a idéia de suspensão, de estanca­mente de uma experiência— poderíamos falar ainda, para voltar ao poema sobre o bonde e a carroça de Oswald de Andrade, da sensação de atravancamento, de coisa atravessada bloqueando o caminho — , reaparece, junto com seus correlatos continuidade/desembaraço. É quando Schwarz cita um dos poemas de Anatol

Rosenfeld, escritos em alemão metrificado e rimado, que tratavam dos contrastes entre o estrangeiro e a paisagem dos trópicos. O poema se chama “Ônibus interes-

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tad uai" e nele“há um combate matutino e helénico entre a bruma e o sol”. Nos dois versos finais, “um japonês se esforça para dizer alguma coisa, e de repente deita a talar torrencialmente em seu idioma natal”. Existe a idéia de um impedimento, de algo que não prossegue adiante, de um obstáculo que em seguida é vencido— mas vencido na medida em que se recupera o passado.

O ensaio que estamos analisando é dos mais breves e concisos da coleção; justamente, interrompe-se de forma inesperada, com a descrição de alguns outros poemas de Rosenfeld. Cito o último parágrafo:

A situação mais animada está no soneto à Hetaira negra, em que um ranchinho de

pau-a-pique serve a uma negra pequenina e bonita para receber os seus visitantes.

Ela não tem acanhamento e só sem roupa fica à vontade. Acha branquíssimo o seu

cliente, e implora que ele lhe faça um filho claro. Quando deita não lembra de con­

siderações de salário. Seu am or é agoniado e bravo, empina-se, cheio de suspiros,

arrancos e gritos, e tem o poder do mato-virgem. Depois ela banha o seu visitante,

fala no filho branco e serve abacaxi, sapoti e suco de melancia (em alemão, Melone rima com Sohne, o filho claro, ao passo que sapoti rima com Schrie, os gritos que

ela dava), (pp. 81-2)

O texto termina aqui, de forma bastante dissonante, ao fim de parênteses que sugeririam uma continuação qualquer. Creio que o autor preferiu deixar o grito da negra ainda em suspenso, sendo que era um grito de prazer, embora “agoniado e bravo”. Podemos entender as imagens do grito e do filho como sinais de continuidade, de arranque, de desencadeamento, mas que o texto suspende; o autor emudece diante da perspectiva de prolongamento, de um grito que vem do “mato-virgem” e se projeta na expectativa do filho branco. Encapsulada nessa descrição, a palavra “mato-virgem” tem um quê de marioandradiano, como se a mestiçagem procurada pela negra com o alemão encontrasse no próprio texto de Schwarz um cruzamento literário entre Mário de Andrade, ou Antonio Can­dido,2 e Rosenfeld...

Seja como for, observe-se que havia sempre naqueles poemas uma espécie de dualidade: o soneto a Copacabana, diz Schwarz, é dividido em duas partes, assim como o poema sobre Recife, que termina também em cenas de sexo. Schwarz resume-os falando na “tensão entre o estrito da forma e o fascínio da

dissolução” (p. 81).

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Não seria exagero dizer que essa mesma figura,“o estrito da forma e o fas­cínio da dissolução” é que estava regendo a formulação anterior sobre o ale­mão e o vienense, na qual, como vimos, se explorava o contraste cômico entre “rigidez”e “folga”,“falta de naturalidade de uns e desadaptação ao mundo mo­derno de outros”. Teríamos, para retomar a análise daquele exemplo, um trem que para os vienenses“tem o costume” de passar naquele horário, e o trem que, para os alemães, segue o estipulado por escrito. No termo “costume” estamos às voltas com uma tradição, que admite exceções à regra, como imaginamos ser característico da cultura brasileira; já no horário da ferrovia alemã, esta­mos no pólo oposto, do rigor moderno da lei, onde uma regra terá de ser apli­cada sempre.

São estas, em certa medida, as mesmas relações que se dão entre a lingua­gem falada e a gramática da língua escrita. O tema, transposto para esta chave estilística, está muito presente no ensaísmo de Schwarz, desde seu primeiro livro, A sereia e o desconfiado.

No texto que estamos analisando, não deixa de ser estratégica a reminiscên­cia do autor a respeito do lugar onde Rosenfeld morava: o porão de uma casa em Pinheiros, pelo qual pagava aluguel barato: “Também o dono da casa era judeu alemão, e combinava o piano com a representação de uma firma de relógios. Digo isso para indicar que era um ambiente de imigrantes, em que o progresso no domínio do português, bem como o acesso à intelectualidade brasileira eram problema” (p. 80).

A fluência na língua falada e a rigidez mecânica dos relógios coexistem, mas provêm de universos distintos... A descrição da moradia de Rosenfeld, que Schwarz conheceu desde menino, merece aliás ser citada: “O porão dava para um quintalzinho, e a porta ficava embaixo da escada que subia para a cozinha. Ali Rosenfeld vivia enfurnado, entre a escrivaninha, a cama e os livros empilha­dos. Havia também algumas cadeiras de pau para amigos e visitas, que ele rece­bia com inexcedível civilidade” (ibid.).

Compare-se esse quadro ao trecho do mesmo ensaio, já citado, em que Schwarz reproduz a ambientação do soneto à Hetaira negra: “um ranchinho de pau-a-pique serve a uma negra pequenina e bonita para receber seus visitantes. Ela não tem acanhamento e só sem roupa fica à vontade” (p. 81).

É como se, de uma grande distância cultural e temporal, os dois persona­gens se revissem e trocassem acenos entre si, recolhidos em páginas contíguas do

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mesmo ensaio. O senso do contraste, todavia, permanece intenso e é o que dá vida, sabor e sotaque, se podemos assim dizer, à crítica schwarziana.

Tento explorar o tema de outro ângulo. Seria possível, por exemplo, traçar um paralelo entre aquelas duas figuras, a do alemão e do vienense — represen­tando a regra a ser seguida e o costume individual — com a observação de Sch­warz, citada acima, a respeito de Antonio Candido: o “rígido” e o “folgado” cor­responderiam, justamente, àquela crítica sociológica ou marxista estritamente funcional, de um lado, e, de outro, à crítica “de escritor”, impressionista... Se no caso de Antonio Candido essas duas tradições se integram, nos poemas de Ana­tol Rosenfeld veríamos um hiato entre esse “estrito da forma e o fascínio da dis­solução”, que permanecem incompatíveis. Estaríamos diante do uso estético do contraste entre idiomas, paisagens, referências que são de um estrangeiro no trópico; em suma, um problema de aclimatação.

Provavelmente, esse lado do descontínuo, do que é mais “cortado”, do ritmo quebrado, da irrupção, do enxerto, do transplante — e de seus efeitos ilu­minadores — , está presente na obra de Roberto Schwarz com tanta força quanto a preocupação com a continuidade, com o projeto, com a formação, o aprofun­damento e a reformulação dos problemas irresolvidos no passado.

Podemos dar mais um passo na análise, passando agora a uma observação relativa à forma, ao estilo do texto em Que horas são?, e provavelmente também visível nos outros livros do autor. Para fins de comparação, mencione-se aqui o exemplo de Theodor W. Adorno, ou melhor, as impressões que seu estilo cos­tuma ocasionar. Todo leitor de Adorno já terá sentido, sem dúvida, certa verti­gem no momento de citar um trecho de seus textos. Em geral seu raciocínio está muito encadeado, e quando nos aproximamos de isolar um trecho, logo em seguida o perdemos de vista; funde-se ao conjunto do argumento, e raras vezes se mostra individualizável. Os conceitos estão sempre em movimento, esca­pando ao intuito de fixá-los numa citação. Por mais adorniana que seja a inspi­ração de Roberto Schwarz, é bem diferente, nesse aspecto, a textura de seus ensaios: é comum, se abrirmos uma página ao acaso, que cada parágrafo pareça se sustentar sozinho; suas frases são eminentemente citáveis, e uma fórmula iso­lada não perde o vigor mesmo se tiver, mais tarde, de ser relativizada ou balan­ceada no conjunto.

Análogo efeito de interrupção, de espaçamento entre as frases, é o que Schwarz identifica no verso de Brecht, em outro ensaio do livro:

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De hábito, em literatura, a argumentação é tida como a menos artística das ativida­des. Entretanto, é nela que o verso de Brecht encontra os seus melhores efeitos, uma espécie de poesia da conduta inteligente [...] o ritmo da dicção é submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidade específica, a qual vai primar também sobre a musicalidade da palavra. Ou melhor, esta é metodicamente des­manchada, para que ressalte a outra, mais vinculada à apreensão intelectual. Na condução do verso ocorre algo da mesma ordem, através da valorização complexa

de sua pausa final, que é o resultado de um truque simples: Brecht não põe vírgula no fim da linha, o qual em conseqüência pode — mas não precisa — ter função de

virgular, dúvida esta que obriga sempre a um intervalo. E se de fato a pausa freqüen­

temente virgula a fala, às vezes ela separa palavras que logicamente estariam juntas,

ou, ainda, interrompe um raciocínio. A incerteza quanto à sua função cria algo

como um suspense de final de verso, que se desfaz e refaz quase que linha a linha, e

que é um elemento de desautomatização e de intelectualização da leitura, (p. 91)

Nos ensaios de Roberto Schwarz também há pausas muito marcadas, sem

que o conjunto do argumento se desarticule. Em “Nacional por subtração”, podemos notar como isto ocorre. Aí pela metade do texto, deparamo-nos com

um parágrafo resumindo toda a discussão anterior:

Em síntese, desde o século passado existe entre as pessoas educadas do Brasil — o

que é uma categoria social, mais do que um elogio — o sentimento de viverem

entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a reali­

dade local. Contudo, não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver de

modo mais autêntico. Aliás, esta renúncia não é pensável. Por outro lado, a destrui­ção filosófica da noção de cópia tampouco faz desaparecer o problema, (p. 39)

Esse trecho dava conta de vários movimentos elaborados desde o início do ensaio, em que havia, certamente, um jogo dialético, uma seqüência de negações— o nacionalismo está velho, mas o seu contrário, o internacionalismo, tam ­pouco é aceitável etc. Essas posições alternativas não se trocam indistintamente; estão em movimento. Mas na frase final há, digamos assim, uma “puxada de freio”, uma súbita conversão ao que é real, ao que é “irredutível”, inerente ao chão

material do aqui e do agora.Páginas antes, aliás, Schwarz discutia as posições de Silviano Santiago e

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Haroldo de Campos, afirmando que estes autores negavam a utilidade de con­ceitos como “copia” e “original”. “Por que dizer que o anterior prima sobre o pos­terior, o central sobre o periférico, a infra-estrutura económica sobre a vida cul­tural e assim por diante?” (p. 35) Schwarz contrapõe a isto um argumento que tem o mesmo aspecto de “puxada de freio” a que nos referíamos:

Resta ver se o rompimento conceituai com o primado da origem leva a equacionar

ou combater relações de subordinação efetiva... Contrariamente ao que aquela

análise faz supor, a quebra do deslumbramento cultural do subdesenvolvido não

afeta o fundamento da situação, que é prático, (p. 36)

É como se o chão material, aqui, impusesse uma parada numa possível dia­lética abstrata e interminável entre “centro e periferia”, “cópia e original”, “infra- estrutura e superestrutura”, e assim por diante.

Pois bem, depois daquele parágrafo sintetizando toda a discussão, em que se dizia que “a destruição filosófica da noção de cópia tampouco faz desapare­cer o problema”, o leitor sente, então, que houve uma pausa, e que o argumento vai ser retomado em outras bases. De fato, estávamos no meio do ensaio, e pode­mos ler em seguida: “Vista em perspectiva histórica, a questão talvez se descom­plique. Sílvio Romero tem excelentes observações a respeito, de mistura com vários absurdos” (p. 39).

A partir daí, Schwarz passa a analisar em detalhe um texto de Sílvio Romero, citando-o extensamente, desmontando sua argumentação e notando sua perti­nência ideológica. Sem prosseguir na citação, cabe apenas indicar uma possibili­dade de leitura. A passagem de Sílvio Romero poderia ser tomada como “apenas mais um exemplo” do “caso geral” a que o ensaio se refere. Minha sugestão, a res­peito deste e de outros momentos de Que horas são?, é que o exemplo, o trecho que Schwarz se dedica a analisar, assume função diversa. O exemplo não é apenas a ilustração de um caso, não é apenas o exemplar de uma espécie, como num zoo­lógico, se quisermos, uma girafa será apenas o exemplar da espécie das giratas. Não se trata de um caso que poderia ser indiferentemente escolhido entre vários outros, mas de algo que cumpre a função de transferir a análise para outro pata­mar, mais concreto.

O mesmo tipo de função, a mesma lógica no uso do exemplo, ocorre no ensaio sobre Oswald de Andrade, em que a análise do poema sobre a carroça e o

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bonde é precedida de uma caracterização geral dos problemas, das dualidades, dos prós e dos contras do “projeto pau-brasil”. Nas páginas iniciais do texto, já se tinha chegado a uma síntese abrangente desse projeto, quando Schwarz o carac­teriza como “um ufanismo crítico, por assim dizer” (p. 13). O efeito conclusivo da fórmula abre, entretanto, outro plano da discussão. O texto prossegue de modo muito schwarziano: “Isso posto, não basta circunscrever a matéria de um poeta para lhe definir a poesia”. Logo em seguida passamos à perspectiva oposta: “Contudo, o trabalho formal realizado pela poesia pau-brasil se pode analisar também noutra perspectiva, em função da matéria que trata de organizar”. O vaivém se interrompe, mais uma vez, numa “freada”, quando Schwarz anuncia: “Para concretizar, vejamos um poema tomado a ‘Postes da Light’” — iniciando assim a análise de um poema específico, que, vê-se logo, é tanto uma ilustração daquilo que o texto estava querendo mostrar, como também o caminho para o aprofundamento da discussão.

Poderíamos dizer que nos textos de Roberto Schwarz a relação entre o argumento geral e o exemplo não é de continuidade total, de indiferença, como um exemplar diante da espécie, de um caso diante da regra, mas que parece estar numa relação que é ao mesmo tempo de descontinuidade e pertinência; o caso mais semelhante desse tipo de relação, a meu ver, seria o que rege as relações entre teoria e prática. Isso significa, entre outras coisas, que há uma dimensão irredutível, algo de não-traduzível, de um plano para outro, ao mesmo tempo em que esses planos têm de se articular para se tornarem inteligíveis.3

Seria excessivo citar outros trechos em que isso acontece, mas vale notar que a irredutibilidade do indivíduo perante a regra é também o tema do ensaio sobre Paulo Emílio Salles Gomes, “A imaginação como elemento político”. Schwarz observa de que modo esse autor difere da tradição ortodoxa de esquerda, recu­sando-se a ver “as contingências da fantasia individual como resíduo pequeno- burguês a ser dissolvido” (p. 51). Em Paulo Emílio, o gosto pela extravagância, pela exceção à regra, está presente como antídoto à ladainha do marxismo oficial.

A presença desse resíduo, daquilo que é intraduzível para a linguagem da regra abstrata, daquilo que resiste a se encaixar num código prévio, é sem dúvida fundamental no mundo das “idéias fora do lugar”. Só de passagem, lembraria que estamos tratando dessa figura do concreto, do intraduzível, enquanto que no campo oposto, dos poetas concretistas— analisados por Schwarz em “Marco histórico”, polêmico ensaio sobre “Póstudo” de Haroldo de Campos — , é exata-

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mente a abstração desse “tudo” que é combatida. Parece claro que enquanto os concretistas se entregaram cada vez mais ao aperfeiçoamento das técnicas de... tradução poética, Roberto Schwarz se preocupou acima de tudo com o que há de intraduzível, com o problema do transplante difícil, de tudo o que há de descon­tínuo entre a regra geral e o caso particular, de tudo aquilo que é incapaz de pas­sar de um lado a outro com fluidez e indiferença.

Observe-se que o tema da passagem da teoria à prática também se manifes­tou, na tradição marxista e em especial na geração de Schwarz, na clássica polêmica a respeito de uma transição gradual ou revolucionária para o socialismo. Continui­dade e ruptura foram, também, outros nomes para o dilema entre reforma e revo­lução. O vigor das análises de Schwarz deve muito à pertinência política de que estão impregnados mesmo os seus procedimentos de estilo e método.

Se é assim, o modelo do ensaio do Roberto Schwarz é precisamente o oposto daquilo que acontece com o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, caracterizado deste modo pelo autor, em outro texto do livro:

Trata-se de um andamento sem correnteza central, mas repleto de acidentes de

percurso, já que todos os seus momentos estão sob o império do capricho, das

personagens quanto do narrador. É uma estranha conjunção, em que a vida é

cheia de satisfações, e vazia de sentido; em que a lógica dos momentos — impla­

cável e monótona como o próprio capricho, que está sistematizado — sublinha

o caráter incerto do conjunto. Ainda neste sentido, note-se que o romance é

incansavelmente espirituoso, e que no entanto seu efeito total é desolado e ter­

mina em nada, como fica dito em todas as letras no seu capítulo final, chamado

“Das negativas”, (p. 122)

Estamos diante de um autor que representa a mais brilhante negativa que se possa antepor a essas “Negativas” de Brás Cubas: a obra de Roberto Schwarz é uma obra em que o andamento tem, como poucas, uma correnteza central, e em que todas as interrupções ou mudanças de marcha e de assunto não se fazem sob o império do capricho, mas de uma necessidade — que é a da criação, da desco­berta, da novidade também.

Compare-se a caracterização de Brás Cubas com as seguintes observações de Schwarz sobre dois autores bem diferentes. Em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

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a virgulação muito freqüente cria uma segmentação desobrigada em face da gra­

mática, responsável apenas ante a necessidade descritiva. Os segmentos acumu­

lam-se, determinam progressivamente o seu objetivo; da seqüência nasce o sen­

tido da frase. Revelar o esqueleto gramatical, no caso, quando existe, não é o

primeiro passo da compreensão. Podemos afirmar mesmo, dado encontrarmos

frases irredutíveis ao esquema comum, serem estas as que devem orientar o nosso

modo de ler, por realizarem mais radicalmente a dicção do livro. Através de umas

tantas orações sem fio gramatical definível, fica instaurado um universo lingüís­

tico em que mesmo as proposições de uma lógica perfeita passam a pedir uma lei­

tura diversa, que poderíamos chamar de lançadeira. O discurso anuncia uma dire­

ção, lança uma gestalt que se sobrepõe à gramática e tem força para incorporar,

segundo a sua dinâmica de sentido, os segmentos mais diversos; estes não preci­

sam entrar em conexão gramatical explícita, podem simplesmente se acumular,

guardado seu modo de ser mais próprio; não é a sintaxe normativa que determina

seu posto, ainda quando com ela concordam; enquadram-se na configuração

(referentes, misturadamente, a dados sensíveis e emocionais), visando uma recria­

ção quanto possível integral da experiência. Trata-se de uma espécie de técnica

pontilhista.4

Um pouco com o se, dos diversos m ovim entos sociais e lutas isoladas no

território disperso do país, uma lógica mais ampla pudesse se identificar, sem

disciplinar-se entretanto sob as normas de um a direção central.

Já em Três mulheres de três PPPês, de Paulo Emílio Salles Gomes, a frase

é sempre concebida de um fôlego só. O seu risco, a que se prende um quê de aven­

turoso, é de não chegar sem tropeços ao ponto final. É como se ela devesse, antes de

baixar ao papel, passar um teste de energia, fluidez e boa-sorte, que é um ideal de

vida tanto quanto de sintaxe. O seu gesto é oral, mas sem contemplação com as

comodidades de retórica que permitem ao orador ganhar tempo ou voltar atrás. A

sua lei é a da sucessão em ato e irreversível, em que a complexidade tem de se dis­

por sem deixar resto, o que muitas vezes é uma façanha. Uma exigência de total e

instantânea presença do espírito a si mesmo, exigência severa [...]. Quanto ao

ritmo, é talvez como alguém que apressa a fala pois vislumbra a seqüência que lhe

permite desenrolar o sentido inteiro da frase, sem esquecimentos, sem complica­

ções e sem acidentes gramaticais de percurso. A manifestação estilística mais

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saliente no caso está na parcimônia de vírgulas, tornadas dispensáveis pela clare/a

dos encadeamentos, ou melhor, engolidas pela aceleração da fluência causada pela

clareza e concentração mentais que presidem a esta dicção. É ela, a claridade inten­

sificada, o verdadeiro pré-requisito desse estilo [...]. O efeito de aceleração concen­

tra-se nas articulações: onde havia uma vírgula, para separar, e um conectivo, para

articular, resta só este último. Os dois momentos comprimem-se num só, além de

que os conectivos, sem o espaço algo inespecífico assegurado pela vírgula, são exi­

gidos de maneira mais estrita e diferenciada, e absorvidos no movimento do sen­

tido. Em lugar de sua função gramatical esquemática, de enquadramento, sempre

um pouco exterior ao que se passa na frase, afloram os seus valores lingüísticos

mais sutis, e com eles algo com o uma poesia dos encadeamentos. Note-se que a

gramática normativa não é desrespeitada, pelo contrário. Mas as suas responsabi­

lidades na sustentação do sentido ficam minoradas.5

“Total e instantânea presença do espírito a si mesmo”, “claridade intensifi­cada”, “sucessão em ato e irreversível”, “exigência severa”, “aflorar dos valores”,

“efeito de aceleração”... O vocabulário, aqui, lembra menos a guerrilha esparsa dos “rebeldes primitivos” de Guimarães Rosa e mais o kairós revolucionário em que o movimento organizado deveria desembocar. Que nos textos de Roberto Schwarz a sintaxe seja vista como metáfora da história (coletiva ou pessoal), em seu jogo entre liberdade e norma, não será sugestão descabida aos olhos de quem nos acompanhou ao longo desta análise. Também nos parece um traço peculiar à obra de Schwarz que a integração da linguagem coloquial ao código literário, aspecto marcante da estética m odernista, seja comparável à experiência do estrangeiro com a prática da língua e dos costumes nacionais — não menos do que a um projeto mais amplo de emancipação social. Aproximações desse tipo são, contudo, um tanto amplas e imprecisas. Ainda que o tema da permanência seja merecedor de toda a atenção, que isso não seja pretexto para prolongar

indefinidamente nosso comentário.

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Complexo, moderno, nacional e negativoSobre o ensaio de mesmo nome de Roberto Schwarz

Modesto Carone

Como o tema desta mesa é “Crítica literária em revista”, escolhi falar sobre o Machado de Assis de Roberto Schwarz, certamente o trabalho mais substan­tivo e original de tudo o que ele escreveu— que não é pouco. É importante lem­brar que o Machado do ensaísta é um, mas os escritos dele sobre o escritor são muitos, alcançando o auge na dupla Ao vencedor as batatas e Um mestre na peri­feria do capitalismo. Minha preferência pessoal vai para o segundo livro, cuja evolução segui de perto durante quinze anos de viagens entre São Paulo e Cam­pinas, cidade onde o autor e eu fomos colegas no departamento de teoria literá­ria da Unicamp. Para mim, essa preferência não diminui em nada o valor histó­rico e literário de Ao vencedor as batatas, cuja abertura — “As idéias fora do lugar”— causou impacto na época da ditadura ao ser publicada na revista Argu­mento, principalmente porque se tratava de uma argumentação insólita e pro­vocante da cultura brasileira e, entre outras coisas inusitadas para a época, afir­mava que no Brasil nem o fascismo, então em pleno vigor, era autóctone, e sim importado, o que sem dúvida feria os pruridos patrióticos dos nossos dirigentes de dragona. Para resumir a história, Ao vencedor as batatas marcou época em vários sentidos e ainda hoje faz parte da bibliografia avançada de Machado e da dialética do esclarecimento do país.

Mas como nem tudo é possível em tão pouco tempo, quero voltar minha

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atenção para algumas linhas de força de Um mestre na periferia do capitalismo tal como elas aparecem num ensaio publicado em 1981, no número 1 da revista Novos Estudos Cebrap, e recolhido no livro Que horas são?, editado em 1987 pela Companhia da Letras, que o autor generosamente dedicou a Marilene Carone e a mim.

Esse ensaio é um dos pontos altos da pródiga safra de Schwarz e se chama, como muitos aqui sabem, “Complexo, moderno, nacional e negativo”. Em meio a inúmeras qualificações, que espero ao menos sugerir, o trabalho não só cum­pre aquilo que promete — isto é, demonstra por que Machado é um escritor complexo, moderno, nacional e negativo — , como também, a meu ver, abre uma via real de acesso à compreensão plena de Um mestre na periferia do capitalismo e, por via de conseqüência, das Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que este livro analisa exaustivamente.

O texto que escolhi é bastante condensado e ágil, porque o ensaísta, para flagrar o escritor e sua obra, trabalha como um jongleur, o que não fica mal para um personagem manhoso, patético e circense como Brás Cubas, provavelmente um dos representantes mais estruturados da nossa classe dominante e ao que

tudo indica — é o que o ensaio faz crer — não apenas no período do Segundo Reinado. Tendo isso em vista, decidi ler este ensaio na chave do comentário, em alemão Kommentar (ou elucidação textual) e da paráfrase crítica, praticada num estilo insuperável por Antonio Candido em “Quatro esperas”, que hoje integra o volume O discurso e a cidade. Meu procedimento segue o texto de perto, repro­duz muitas formulações suas, adere à sua escrita e muitas vezes recua, faz analo­gias, mimetiza o que foi dito com o intuito de iluminar o objeto, tudo a seu modo— pelo menos neste caso — para não suprimir o que tem de subjetivo, embora talvez não o seja.

Por falar nisto, é útil, neste momento, abrir um curto parêntese sobre a escrita de Roberto. Ela é limpa, econômica, busca a exatidão, não usa punhos de renda nem faz concessões. A frase que a sustenta é aguda e certeira, pois diz tudo o que tem a dizer, se possível num único lance. Nesse sentido de algo fulminante, ela parece autônoma, mas é claro que não é, porque vai de encontro à próxima frase e transmite a esta sua carga de contenção e raciocínio. É freqüente que este processo de acumulação repercuta fundo no plano da argumentação, que tam­bém fica repleta, como se estivesse armazenando mais coisas do que faz supor, o que é a pura verdade. Engana-se, por isso, quem considera sem mais que ler o

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texto de Roberto é uma tarefa cômoda, ou que entendê-lo, uma façanha ao alcance de incautos. Não que ele seja um elitista, pois todos sabem que seu padrão de consciência é o oposto disso. Mas ninguém pode duvidar de que ele não faz da facilidade uma virtude de quem escreve e muito menos de quem pensa.

“Complexo, moderno, nacional e negativo” começa com uma observação de ordem formal, que será gradativamente ampliada, o que não torna o ensaísta um formalista, muito pelo contrário, porque para ele o momento social da obra faz parte de sua estética.

Logo na primeira frase, consta que “o aspecto menos estudado do romance machadiano é a composição”. Por que isso acontecia em relação à viga-mestra de uma obra-prima da prosa brasileira? Em parte — diz o nosso autor — porque as piruetas e intromissões do narrador fazem com que a composição pareça não ter lógica nem importância e em parte porque a crítica viu nela um ponto fraco. Para exemplificar, o ensaísta faz uma breve incursão na fortuna crítica das Memórias póstumas de Brás Cubas. Assim, Augusto Meyer, “autor das melhores páginas sobre Machado, sentiu nas abelhudices do narrador uma certa impo­tência para a narrativa realista de fôlego”, ao passo que para Otto Maria Car- peaux“o figurino inglês permite recobrir dificuldades de construção”

É notório que hoje em dia nada disso faz muito sentido, tratando-se de uma obra-de-arte consumada — e o ensaísta logo toma posição. “O argumento do presente artigo vai em direção oposta, e diz que há método nas manhas narrati­vas do romancista”— como aliás já sabíamos que há método até na loucura. No caso dos negaceios narrativos das Memórias, eles são “parte de uma composição rigorosa, que formaliza e expõe em suas conseqüências dinamismos decisivos da realidade brasileira”.

Neste ponto já se pode vislumbrar que o modo de argumentar de Schwarz tem uma arquitetura dramática, o que pode de certo modo explicar a lembrança de Hamlet neste contexto, além de trazer à luz um conselho de Henry James, alma irmã de Machado: “Dramatize! Dramatize!”

Isso posto, é transcrita uma passagem das Memórias póstumas, que o crítico considera o ponto de partida do seu trabalho. São as linhas finais do primeiro capítulo e a maior parte do segundo, onde o narrador explica por que morreu. O trecho é bastante conhecido, mas vale a pena refrescar a memória:

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Morri de uma pneumonia, mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que

uma idéia grandiosa e útil a causa da minha morte, é possível que o leitor me não

creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si

mesmo.

Capítulo li — O emplastro

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me

uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bra­

cejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer.

Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os bra­

ços e as pernas, até tomar a forma de um x: decifra-me ou devoro-te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um

emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humani­

dade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para

esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia não neguei aos amigos as vanta­

gens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos

e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso

confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos

jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas

três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do

arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse

defeito: fio, porém, que esse talento me hão de receber os hábeis. Assim, a minha

idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para

mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos:

— amor da glória.

Esta breve passagem é crucial para o trabalho de Roberto Schwarz. À

maneira de Auerbach, o trecho é submetido a um exame de fundo e forma para

a partir dele chegar à integridade artística do romance e ao seu lastro sócio-his-

tórico.A transcrição destas linhas, aliás, já é antecipada por notações críticas que,

na seqüência, vão reforçar o argum ento da análise. Diz, por exemplo, que a

comicidade do trecho “depende de uma disposição anômala das noções” e per­gunta: “Mas anômala em relação a quê?” Vai responder, então, que Machado

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rompe o horizonte de expectativas do leitor de romances europeus e que isso é uma originalidade artística, além da transposição de formas sociais peculiares. É neste ponto que o analista confirma a idéia de que no romance de Machado (como aliás em todas as obras literárias bem-sucedidas), form a e conteúdo nunca se separam, uma vez que aquilo que chamamos form a é na verdade conteúdo social sedimentado.

O desafio agora é tentar seguir a curva de argumentação do ensaio. Ela é

capaz, por sua aptidão intelectual, de dar conta de um romance por todos os títulos complexo. Fazendo uso do resumo, que logo vira interpretação, o

ensaísta diz que, na petição ao governo, Brás Cubas chama a atenção para os resultados cristãos do seu invento — o emplastro Brás Cubas — e aos amigos confessa que espera ter lucro.

Esclarecendo que não há nada de particular na confissão do personagem— uma vez que descobrir o cálculo atrás da fachada participa do movimento

geral do grande realismo europeu — , acrescenta no entanto que esse movimen­to deixa nítido o vínculo entre o romance realista e a ordem individualista que o capitalismo estava criando. Mas, conforme diz o crítico — seguindo aqui os passos de mais um mestre da suspeita — , essa não é a explicação final, porque depois dela vem outra, “mais esquisita”; ou seja: o motivo real de Brás Cubas era mesmo o gosto do cartaz, do desejo de ver o nome em letra de forma, e o cálculo de lucro, mera desculpa ou, se quiserem, uma racionalização no sentido psica- nalítico. A meu ver, é em momentos como esse que se torna manifesto o que estava latente, no melhor estilo freudiano.

A conclusão, porém, que esses dados oferecem à capacidade de síntese do ensaísta, é notável, e sua formulação tão forte que vale a pena citar à risca e por inteiro:

A Brás Cubas, o cálculo egoísta aparece como algo de socialmente estimável, que

se deve até apregoar, muito diverso do m otor oculto e sombrio da vida moderna,

a que nos habituou o romance realista europeu. Esta é uma primeira originalidade.

Acresce que o cálculo econômico não é um motivo real, e sim um álibi para outro

desejo mais secreto, menos sério e o mais verdadeiro de todos— o que é outra origi­

nalidade. Economia e cristianismo são frivolidades para ostentar, enquanto que a

sede de atenção e cartaz, que se diria frivolidade pura, é posta com o instância

última de validade.

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Aqui Freud assentiria com a cabeça — e Adorno também. Acontece que Memórias póstumas é um livro de ficção, e a construção deste tipo de prosa se sus­têm, como afirmam os guardiães do gênero, em certos ingredientes específicos e indispensáveis, como o herói, o narrador, a ação, o tempo e o lugar. Começando pelo fim, o lugar onde a obra se desenrola é o Rio de Janeiro do século xix; o tempo histórico, a época do Segundo Reinado; a ação, a vida movimentada e ociosa de Brás Cubas; e o narrador, o próprio herói, que acumula as duas funções (porque não era funcionário público). Nada disso, no entanto, leva por si só a uma con­clusão aproveitável. Pois é necessário pensar, em primeiro lugar (como o ensaio já antevira), na ordenação inesperada das causas. É ela que, segundo o ensaísta, domina o enredo, os caracteres, o assunto, o ritmo narrativo, a condução da frase, a mescla de estilos etc. É claro que aqui a complicação aumenta muito e ameaça englobar a totalidade do romance. Como afirma o ensaio, o escritor a explora com a lógica implacável das grandes obras. Seria o caso de entendê-la como sátira da realidade? Ou como ruptura precoce do romance realista?— é o que pergunta o crítico, mais uma vez dramatizando seu modo de argumentar.

A verdade, porém, como ele afirma, é que tudo nessas Memórias é extrava­gante. — Como assim? — perguntamos nós. — Porque, responde ele, os capri­chos do narrador volta e meia desrespeitam a verossimilhança e, apesar disso, o efeito de conjunto é de realismo, poderoso, além de desolador. — E a realidade mimetizada, qual é?— A explicação é que “a comédia de motivos de Brás Cubas apresenta muita semelhança com o clima ideológico do país, como nota quem tenha familiaridade com o século xix brasileiro”. Ou seja: para conhecer bem Machado é preciso saber história do Brasil, embora só isso não seja suficiente. No caso das Memórias, é até provável que Brás e Brasil sejam mais que uma ali­teração; talvez se trate de flores do mesmo ramo.

Mas voltando à passagem citada do início do romance, o ensaio deixou no cartucho outras duas perguntas: “Se há realidade nessa visão das coisas, por que a impressão amalucada? E caso se trate de extravagância, como explicar o efeito de realismo?”

A explicação investe agora na análise do narrador, cujo traço marcante é a volubilidade. Todos sabem que essa descrição fez carreira: o teste da leitura mos­tra que o narrador do romance de Machado — segundo o ensaísta — nunca per­manece igual a si mesmo, ou melhor: “muda de opinião, de assunto e de estilo quase que a cada frase”. Trata-se, em suma, de alguém irresponsável perante a

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palavra, inclusive a própria. Uma vez que o romance é narrado em primeira pes­soa — coisa de que um narcisista como Brás não poderia prescindir — , a obra se vê às voltas com viravoltas sobre viravoltas, que invariavelmente se acompa­nham de uma satisfação de amor-próprio para o narrador. Essa satisfação tem tudo a ver com aquele dese jo secreto já apontado. Esse desejo é decisivo para o ra­ciocínio desenvolvido no ensaio. Pois o vai-e-vem do narrador — formalização literária de um estado de coisas bem ladrilhado — subordina tudo o mais; é pos­sível ver nele, segundo Schwarz, o princípio formal do livro. A afirmação taxativa parece um ponto para o Brás Cubas que narra, mas não é: atrás dele, puxando os cordéis nos bastidores, está o artista cuja malícia o inventou e, à sua frente, na pri­meira fila da platéia, o crítico que interpreta um e desmascara o outro.

Podemos aqui retomar por um instanteo Henry James de A cena americana. Os modernos críticos norte-americanos perceberam o que os formalistas clás­sicos do passado não enxergaram porque estavam cegos pelo próprio método, ou seja: que a prática estética de James é simultaneamente política. A impressão que se tem é a de que isso cabe perfeitamente à arte de Machado.

Voltando ao ensaio, Schwarz dá mais uma volta no parafuso, pinçando de novo as frases citadas no início. Trata-se agora de desdobramentos sobre desdo­bramentos em relação ao que havia sido sugerido ou anunciado antes. O senti­mento que o leitor tem é de que o ensaísta está disposto a entender o romance de Machado até a morte (“zu Tode verstehen”, como diz Günther Anders no seu esplêndido trabalho sobre Kafka). Sem prejuízo da seriedade, esse carrossel de variaçõeslembra um pouco a famosa linha de ataque da seleção da Holanda numa das Copas do Mundo. Assim, ao comentar o símile circense de Brás em que as idéias se dependuram na mente e fazem cabriolas de volatim, afirma que a ima­gem não abona a independência do juízo humano— inclusive, é claro, do próprio Brás Cubas, que seja como for termina louco. Quanto à comicidade muito amar­rada do trecho, traço da prosa machadiana que à primeira vista é desagradável, diz que ela acaba se impondo como um achado capital, porque é “a reiteração delibe­rada de aspectos autoritários e malignos da volubilidade” já descrita.

A seguir, em seqüência acelerada (por acaso a de um carrossel?), o ensaísta observa que Brás Cubas posará como inventor, como cristão, como comerciante e como propagandista engenhoso do próprio nome. Essas transformações de personagem, de assuntos e de registro — é o que consta no ensaio — irão no mesmo ritmo até o fim do livro, e não há sentido em segui-las uma a uma. Mas o

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critico adverte que nessa série há mais que simples variedade, pois os seus termos resumem, à sua maneira, a totalidade do real à mercê dos caprichos do narrador.

Um pulo à frente e estamos (espero que em tempo) novamente diante do famoso narrador volúvel. Agora o caso parece diferente porque as sínteses par­ciais vieram crescendo pelas linhas e entrelinhas. Sendo assim, nesse momento do trabalho de Schwarz, a volubilidade do narrador “abraça o mundo em sua extensão e trabalha a fundo o plano das formas. Ela transcende a psicologia indi­vidual, tornando-se uma forma sem exceções, bem como um visão do mundo”.

É natural, para quem iniciou o trabalho preocupado com a composição do romance, aquilatar o esforço de construção do narrador volúvel, parente pró­ximo do narrador não-confiável de Henry James. Com todas as letras ele diz que essa forma pouco espontânea é uma proeza da engenharia estética de Machado. E reitera: “No resultado, a semelhança com a vida brasileira do século xix é

grande. É um exemplo da travação construtiva da mímese, ou por outra, da

complexidade dos requisitos formais do efeito realista”.Já que a compatibilidade entre a obra e a realidade histórica do país que a

viu nascer é mais uma vez afirmada, vale a pena buscar a explicação no próprio

ensaio. Ela aparece quase no fim do trabalho. A citação é antológica e longa, mas, no caso presente, iluminadora. Diz o seguinte:

As dificuldades da situação ideológica e moral da camada dirigente brasileira, e

especialmente da coroa, não costumam ser levadas em muita conta. O assunto

pode ser visto no livro notável de Joaquim Nabuco sobre O abolicionismo (1883).

Obrigados pelo seu papel de representação externa, esses dirigentes liberais de um

país de economia escrava diariamente tinham de pedir, para a sua pátria e para si

mesmos, o reconhecimentos do ‘mundo civilizado’, cujos princípios elementares,

entretanto, dada a realidade social, eles tinham de infringir com igual constância.

O crítico lembra, num mesmo passo, que a reconstrução sociológica desse

impasse e do seu efeito sobre a vida nas idéias são a plataforma das “idéias fora

do lugar”.A esta altura do ensaio, no entanto, ele quer “indicar o paralelo entre esse

movimento e a volubilidade narrativa vista nas Memórias póstumas ’ — e aqui retorna o engate entre o fato social e o recurso literário mobilizado por Machado.

Segundo o ensaísta, a volubilidade artística combina o despeito à norma

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burguesa e a ânsia de se afirmar como um membro dela; são dois pesos e duas medidas e, dada sua repetição, não se realiza sem desfaçatez. Assim sendo,

a lei da prosa machadiana seria algo como a miniaturização ou o diagrama do vai­

vém ideológico da classe dirigente brasileira, articulada com o mercado e o pro­

gresso internacionais, bem como a escravidão e o clientelismo locais. Um vaivém

que resume o vexame pátrio, mas não se esgota nele, pois diz respeito também à

história global de que o mesmo Brasil é parte efetiva, ainda que moralmente con­

denada: a ordem burguesa no seu todo não se pauta pela norma burguesa.

Nesse ponto, o código da arte machadiana é desvelado e posto a descoberto o seu verdadeiro caráter. Pois não se trata aqui de um simples parti pris, uma vez que, sendo imparcial, a obra de Machado vai mais longe. Na linha de raciocínio do ensaísta, “o mundo do arbítrio (que é o nosso), desqualificado pelo con­fronto com a norma burguesa e européia, é testemunha viva da relatividade desta”. É este movimento que leva aos assuntos centrais da literatura moderna, ligados justamente aos limites da civilização burguesa, que não cumpre o que promete e por isso enrola.

Enfim— afirma Schwarz — , a inferioridade pátria existe, mas o metro que a mede não é também inocente, embora hegemônico. A conclusão assume então um teor lapidar: “Trata-se de uma posição antimítica e duas vezes negativa, isenta de ufanismo conservador bem como de abdicação do juízo diante de Europa e progresso, uma posição racional e sem absolutos que em cem anos não envelheceu” (grifos meus).

E Brás Cubas, o personagem, como é que fica? Na verdade ele é o cruza­mento individual de tudo isso, ou melhor: a impressão digital de um estado de coisas desconcertante, em que “a vida é cheia de satisfação e vazia de sentido, e termina em nada”. Sua síntese é traçada pelo romancista no último capítulo do livro, o célebre “Das negativas”: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma cria­tura o legado da nossa miséria”. Nada mais disse nem lhe foi perguntado.

Na minha opinião, é aqui que está aplainado o caminho para a prosa exce­lente de Um mestre na periferia do capitalismo, um dos livros coroados (Segundo

Reinado...) da bibliografia machadiana — sem prejuízo de ser também um dos

trabalhos literários mais bem resolvidos de Roberto Schwarz, por sua vez um dos intérpretes da nossa cultura que faz muita diferença.

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i i f r j /c c j eB ib ii'' j:::i Eugênio QuUtm

Ao escritor as batatas

Airton Paschoa

— Por que Roberto Schwarz não quis se tornar escritor?Parece besta a questão, mas cumpre desdobrá-la, porque meditar um

pouco sobre o óbvio, ou o que aparenta sê-lo, sempre ajuda a iluminar nossa cegueira. E quando falo em escritor, pondero com cuidado o substantivo. Não se trata simplesmente de figurar na literatura brasileira, cuja pobreza, em que pese seu esplendor durante o século XX, sobretudo em sua primeira metade, aco­lhe de bom grado os pretendentes perseverantes. Não. Falo daqueles escritores brasileiros que podemos, sem vexame, exibir ao mundo. Quem conhece um pouco de sua poesia e de sua prosa sabe reconhecer quão notáveis eram suas possibilidades pessoais, a par da conjunção histórica francamente favorável. Seria demasiado apostar numa dobradinha brechtckettiana à moda brasileira, bem buliçosa, temperada de modernismo andradino? Não bastasse o Seminá­rio Marx, a mitológica Universidade de São Paulo da Maria Antón ia, o país da década de 60, “irreconhecivelmente inteligente”,1 não bastasse um senhor pre­ceptor (Anatol Rosenfeld, como se sabe, foi digno representante da alta cultura alemã) — o crítico desde o berço já se via às voltas com a literatura, lutando encarniçadamente pela expressão.

A questão, fazendo jus ao Mestre, tem muito de coletiva. Chico Alambert resgatou a saudação de Sérgio Milliet ao poeta nascente.2 Do mesmo modo

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penso que não sou apenas eu que alimento a dúvida. Certamente nos primór­

dios da carreira o crítico devia vir balançando bastante, tal e qual as ondas da

praia em que conheceu Chico Alvim. Como recordou neste mesmo seminário o

criador de Elefante, o crítico apresentou-se primeiro como poeta...

Poderão me dizer, evocando Paulo Emílio, ou mesmo Rodrigo Naves,que

isto acontece a todo homem de talento literário, o que é um modo gentil de dizer

que continua tonta a questão. Sim e não. O crítico de arte talvez venha a defron­

tar mais seriamente a questão, à medida que a sedução literária vier procriando

seus filhos. Quanto ao crítico de cinema, até onde posso enxergar, se não era um

Carpeaux,que podia ser o que bem entendesse, como asseverou certa feita Anto­

nio Candido, podia ser muitas coisas. Nesse caso não passaria a literatura de

outra das múltiplas facetas de uma personalidade exuberante, mais uma das

pérolas de um homem ricamente dotado. Não me parece esse o caso de Roberto

Schwarz. Se alguma tendência tivesse a exuberar-se, de conformidade com o

padrão pavão de nosso habitat artificial, quem sabe se sua personalidade não

embotou pela necessidade emigrante de se familiarizar, sem se descaracterizar,

com a nova cultura?

Neste ponto poderão me objetar que, por vício literário, faço ficção, e barata,

das coisas mais simples e casuais da vida. Isto pra não dizer que este sujeito de que

falo não existe, é pura projeção fantasmática, pois que crédito pode merecer um

escritor que convida o Mestre a uma homenagem à troisVA todos os meus críticos só posso responder singelamente: leiam-no, seus

poemas, seus contos, sua peça.4Uma vez lidos, retorna inevitavelmente a questão

e a necessidade de especulá-la: — Por que Roberto Schwarz não quis se tornar

escritor? Ou então, com vetor positivo: — Por que quis se tornar (apenas) crítico?

(A elipse grifada, a qual funda nossa perplexidade, quer indicar que, para

muito além de eventual juízo de valor pessoal, constitui este, juízo largamente

difundido.)

A alternativa, crítica ou literatura, era imperiosa, visto que ambas, no plano exigente de seu trabalho, são humanamente excludentes. É certo que, com a Modernidade, a literatura se tornou crítica... A verdade, entretanto, é que a novi­dade não facilitou em nada a nossa vida. Pelo contrário, não só não aboliu a dis­tinção, como ficou infinitamente mais árdua a tarefa de reflexão. (Quando se

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tenta seriamente aboli-la, na esteira da crítica literária literária, inaugurada pela dita pós-modernidade, o borrão, para ser polido, mal passa de adornice.)

Por que escolheu ele o caminho mais penoso, então, se sabia que nossa lite­ratura concede mais facilmente seus favores? Não nutria ambição literária, não cogitava, e se agitava por isso, “escrever para inscrever meu nome/ entre os mor­tos tranqüilos e famosos”?5 Por quê? Terá sido nosso crítico adorniano até nisto? Afinal, quem não reconhece em certas passagens da Minima moralia o grande lírico reprimido? Sufocar uma vocação que fala alto exige algum tipo de expli­cação, ou racionalização.

Provavelmente há várias razões, e nenhuma estrela-guia. Pensemos porém a constelação delas, nascida de depoimentos seus e alheios.

Não tivemos Auschwitz, desproporções à parte, mas tivemos o golpe de 64, o qual lhe abriu os olhos para a excelência da literatura machadiana,6 de cujo país ostentava uma cifra por decifrar. País machadiano?! A sensação de descoberta, para quem tem paixão intelectual, pode virar uma vida. E de fato deve tê-la revi­rado, porque seu programa de crítica persiste até hoje, felizmente.

De outro lado, quem sabe atenuando um pouco a nostalgia literária, a aven­tura crítica, para quem é de esquerda, representava também enorme desafio. Na melhor tradição marxista e frankfurtiana, convinha romper o monolito das grandes obras modernas, e isto mediante diálogo cavado, pois o terreno comum não estava à mostra. O ensaio crítico pressupunha ademais alcance político, dado que o diálogo devia interessar a todos. No horizonte elevado, pairava evi­dentemente a pólis universal, a cidade dos homens.

Em certo sentido, com perdão do psicologismo, a luta pela expressão topava agora campo fértil. O esforço de expressar o objeto era da mesma ordem do esforço artístico, de quem o construía. Eram outros os termos, mas também não estavam dados. Convinha criá-los... Esta outra descoberta, do ensaio como arte moderna — melhor dizendo talvez a vivência dela, sua prática escrita — , pode ter contribuído quem sabe para apaziguar em parte seu ânimo literário. E não adianta dizer que tal descoberta estava longe de constituir novidade... Se do ensaio como arte moderna a tradição marxista e frankfurtiana fornecia o hori­zonte, até exemplares, já não poderia fazer o mesmo com o caminho. Este, sob pena de ficar papagueando dialéticas, só podia ser absolutamente individual.

Dessa equivalência entre crítica e arte, não dá mostra apenas sua literatura ensaística, senão, sem que sintamos constrangimento de ordem nenhuma, a

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própria co-presença de ensaio e ficção na mesma obra. Os dois contos seus estão sintomaticamente alojados em livros de ensaios críticos. Se “Utopia” (quem nos dera dormir com a Aurora!), que é de 1972, não pode estar exatamente no cen­tro d ’O pai de família, deslocado que foi para a direita, o outro conto, “Contra o retrocesso”, fecha as Seqüências brasileiras, indigitando, emblemáticamente tal­vez, que é este mesmo o nosso destino histórico, pelo progresso cego, pela modernização sem trégua, até o fundo da pinguela, mas conservadora sempre.

Invertendo a proporção, achássemos um e outro ensaio em sua obra de fic­ção, suspeito que não a estranharíamos. A liga dos dois gêneros é cediça: a crí­tica. Liga aliás explosiva, que levará tempo, em hipótese otimista, para ser assi­milada. Para bem avaliá-la, basta ver a recepção genuinam ente brasileira ao “antídoto envenenado”7 à poesia envenenada de Dom Casmurro. Da gastrite acadêmica às diatribes de coluna, a condenação foi unânim e, chegando até a literatura do nosso Dalton Trevisan.8 Pensam que pensaram no outro lado da elite brasileira?, no lado menos brascubano mas quem sabe até mais sombrio de nossa gente fina?, na virada crítica que deflagrou o livro? Qual! Causou furor a simples menção, reposta em circulação, da improvável culpa ou inocência de Capitu... Curioso é que, em tempos de cinismo ilustrado, talvez pudessem, pres­tassem atenção, até achar irretocável o retrato de nossa gente casmurra. O que não poderiam mesmo suportar é a idéia do esclarecim ento de Capitu, de suas luzes próprias, do emprego da inteligência (às custas do Am or!) para melhorar de vida. Desse ponto de vista (de honra?), seria im inente, para povo tão brutal­mente sentimental, sua associação — de classe, claro, carnal e espiritual, com o outro calculista.

Ao mesmo tempo o ensaísta parece que pressentia a reação nacional, cor­dial até os dentes, no fecho de ouro de um de seus grandes livros, ao nomear a “cegueira histórica” de parte (sic) de nossa intelectualidade, “parente mais ou menos longínqua da desfaçatez que Machado imitavaV

Pensando bem, não seria um convite à crítica, irrecusável, o parentesco “mais ou menos” distante? Cá entre nós, não convida o gigante adormecido, em seu torpor semimilenar, a plantar atentados bolcheviques deste naipe? A quem possui inteligência inconformista, polêmica — em alto sentido — , não deixa de estimular a repercussão da crítica, mesmo que adversa, avessa, azeda, quando não oblíqua e dissimulada. Que outro gênero causaria hoje tanto alarido?

O fato é que, sobrevivendo no país da conciliação, por excelência, da má-

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conciliação, sua opção penosa pela crítica radical, sua renúncia à carreira literá­ria convencional, ultrapassa a mera exemplaridade moral, alcança a educação política. A própria duração do programa crítico, sua conversão em programa de vida, comporta bastante de antibrasileiro, de antivolúvel, naquele sentido que aprendemos com ele. Do mesmo modo, não cansa de apontar e apostar o ensaísta, a empreitada só adquire consistência histórica se frutificar, se se tornar

empresa coletiva.10 É como se a singularidade da trajetória em território nacio­nal contasse no fundo tanto com a socialização quanto com a individualização dos resultados.

Contudo, a singularidade da trajetória, do território, podia não ser só na­cional. Talvez só à crítica mesmo coubesse o poder de revelação que antes cou­

bera à literatura. Ademais, depois de tudo que foi dito, haveria ainda algo que

dizer literariamente? Depois, a literatura não estava acabando mesmo?

Em entrevista recente, o crítico afirma que podem, com efeito, agonizar as

condições históricas de vigência da arte moderna e de sua melhor crítica, con­

quanto acredite a um tempo que pode também surgir coisa nova.11 Sua mesma

obra, objeta-se com razão, seus próprios artigos sobre a literatura brasileira con­

temporânea e/ou recente infligem um claro desmentido à tese do “fim da litera­

tura” e da crítica dialética em particular, não é assim? Sim e não. Primeiro, que

muitos autores abordados prolongam a tradição moderna. Segundo, que

Cidade de Deus, pela suas origens sociais e intelectuais, seu tanto de ciência e arte

coletiva, sua tradição mediatizada pela indústria cultural, sua falta de acaba­

mento artístico etc.,12 configura decerto a boa nova literária, justificando o entu­

siasmo do crítico, a nova escrita que se anuncia, a ponto de concretizar em certa

medida o fim da literatura, como clássica e romanticamente a entendemos.

Dito de outro modo, a quem veio se nutrindo de Theodor Adorno e Anto­

nio Candido (uma aproximação que faria a delícia de Teodoro!) não pode esca­

par a centralidade da indústria cultural no mundo contemporâneo. Nos países

periféricos, então, em que a urbanização acelerada veio jogando as massas

rurais, antes de terem alcançado a independência literária, na arena mercado­

lógica renhidamente disputada pela mídia, a situação beira o impasse, para ser

otimista, seja pelo lado do público, cada vez mais diminuto, proporcional­mente falando, e de qualidade duvidosa, tomado que está pelo “folclore urbano” da “cultura massificada”,13 seja pelo lado do escritor, que ou morre de

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sede, quando teima em suas miragens, ou morre na praia, quando, curvado e

cansado, resolve pescar.O mais importante, porém, assinala Candido, é que o atraso não poupa os

escritores, obrigando-os a se virarem pra escrever algo de mais ou menos signi­ficativo. No contexto da dependência cultural, típica de ex-colõnias,sobressaem esteticamente apenas aqueles que refinaram as fórmulas européias, delas legiti­mamente se assenhoreando. Quando o refinamento se eleva ao estatuto de ori­ginalidade, a ponto de refluir sobre as culturas centrais, caso de Borges hoje (e de Machado em seu tempo, houvesse escrito em língua menos catacúmbica), desenha-se uma situação de “interdependência cultural”,14 favorável por dizer assim às trocas simbólicas em pé de igualdade. Dado que o estudo, verdadeira­mente magistral, data de 1969, os trinta e tantos anos que nos separam foram

consolidando a realidade negativa de base, que o texto problematiza admiravel­mente, mas cuja visada literária parece sinalizar, uma vez criadas as condições de superação do “subdesenvolvimento”, uma eventual saída positiva do dilema.

É portanto no novo contexto da “interdependência da indústria cultural”,

para ficar nos mesmos termos... prudentes? que se apuram as novidades literá­

rias.15 Não havendo mais modelos europeus nem nacionais (alguém hoje tem al­gum, antigo, sempiterno, atual que seja — que responda à grita infernal do nos­

so fim de feira?), a nova literatura, se vier a vingar, ou qualquer coisa que venha a

substituí-la, exige com certeza olhos astutos e abertos para reconhecê-la, e estabe­lecê-la, não como Literatura, certo, mas como algum tipo de arte literária.

(Eis de novo como entra nosso crítico, pois a estruturação, ou desestrutu- ração literária de Cidade de Deus só foi revelada pela crítica dialética de Roberto

Schwarz, coisa que lhe assegura, se serve de consolo, certa sobrevida...)Poderão me dizer, por fim, que largue de história, que tudo não passou de

cálculo. Não sendo besta nem nada, o Mestre, olhando ao redor e medindo-se

com os contemporâneos, único metro confiável inter vivos, adotou o rumo em que iria mais longe. Ainda aqui, aprendemos com ele, em seu ensaio sobre a obra maior de nosso maior escritor,16 que nem sempre é mesquinho o cálculo. Reco­nhecimento de si e reconhecimento dos outros, o cálculo significa, em última instância, reconhecimento da ordem social, sendo portanto sempre necessário, seja para mantê-la, seja para subvertê-la.

Isto, falemos à boca pequena, se o homem não foi, sim, senhor, um grande finório... No fim das contas, não existisse o crítico — deve ter cismado o h

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no — , existisse apenas o escritor, não estaria condenado a repetir o destino lite­rário de Machado, com direito até a fardão no panteão dos imortais, glorificado até a medula, sim, mas incompreendido sabe Deus por quantos séculos e mais séculos?

Entre a glória literária equívoca e a j usta fama crítica, quem sabe se não pas­sou algo dessa desordem de idéias na cabeça do escritor...

P.S.: Mas ele é... como dizem meus críticos, com reticência ou certa impa­ciência, conforme a ênfase. Nem sou eu a negá-lo, tanto que fecho o texto com a palavra. Mas ele é escritor do mesmo modo que A, B, C, D, reconhecidamente grandes críticos, não o são. E nesse caso de pouco serve falar do corte clássico da prosa de A, que escreve tão bem B (o que pode ser caso quase de beletrismo), que o acento de C ou o período de D... Arrombada a porteira, passamos todos que lidamos com as coisas literárias. A questão não é de estilo pessoal, não é questão de estilo, aliás. Dizer que alguém é escritor implica sempre certo risco, que pode ou não se confirmar. Quem o saberá? Tudo depende do tempo, do curso do mundo, dos homens e das mulheres que também escrevem. Ninguém de fato é escritor, a gente escreve, e com sorte vira escritor. Sem contar o mais importante, que não se vira escritor pelas mesmas razões. Quando afirmamos isso hoje, no fundo estamos insinuando que ali tem história suficiente para constituir Histó­ria, que existe ali alguma coisa que vibra, que ressoa, que depende da matéria tra­tada e ao mesmo tempo vai um pouco além dela. Por que não comecei pelo fim? Justamente por isso, porque começamos, para fugir das obviedades, a adentrar terreno tão movediço, tão indefinível, que a matéria, de tão intratável, ameaça­ria ficar ininteligível. Se tivesse conhecimento bastante, ou bastante presunção, quem sabe poderia dizer que entre o sentido inicial e o sentido final (inaugural?) da palavra — que fomos cavoucando até quase enterrá-la, que entre uma e outra e a mesma palavra — corre a história da literatura moderna, uma história a cuja agonia estamos assistindo, uns de tripa de fora, muitos, mais felizes talvez, de tripa forra. Mas este já é assunto do próprio escritor.

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Anatol Rosenfeld, figura de Roberto Schwarz

Priscila Figueiredo

O principal interesse do ensaio “Anatol Rosenfeld, um intelectual estran­geiro”, de 1974, talvez esteja em analisar a evolução da ironia para a mordacidade na relação com o mundo.1 Nessa evolução a circunstância brasileira não pesou pouco. É que a assimilação de Brecht (ou a passagem para a mordacidade) por esse intelectual é analisada aqui como um estágio por assim dizer natural da evo­lução de seu espírito, um porto a que sua consciência provavelmente chegaria, conforme o encaminhamento tenso de suas idéias e convicções mais enraizadas, mas para o que a experiência do golpe militar de 64 e do sobregolpe de 68 foi, não curiosamente, decisiva.

O texto relembra uma pessoa como constrói um conceito. Seria o caso de falar em digressão conceituai sobre Anatol Rosenfeld. Este, no entanto, ou por isso mesmo, fala à imaginação quase como um personagem de romance pode falar— e de um romance como mal pôde haver na literatura brasileira. Quando se diz em certa altura “Se não estou misturando lembranças”, a propósito da defesa que ele fez de Sartre, que tinha recusado o Nobel e com isso atraído sobre si críticas do mundo e da “Paulicéia”, não se trata tanto do escrúpulo da fideli­dade.2 A meu ver, é a autoconsciência de que o esforço para disciplinar a massa de lembranças, ou melhor, de achar uma ordem que lhes dê maior alcance, poderia acatar situações de outras pessoas desde que se prestassem a exemplifi-

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car a figura em questão. Terá sido mesmo Anatol quem, entre seus conhecidos, apoiou Sartre? O fato é que isso tem importância relativa. A questão mais rele­vante nesse caso, se não me engano, é a da verossimilhança. Anatol bem poderia ter feito isso e estaria de acordo com suas convicções. A tarefa aqui não é simples­mente recolher a esmo aspectos e anedotas biográficas, mas construir um lugar em que contingências e acasos adquiram maior irradiação. Nessa operação, a individualidade empírica, que ao menos tem de ser inspirada por certas inquie­tações e flagrada em circunstâncias históricas especiais, que desencadeariam algo como o seu destino, ganha um caráter por assim dizer típico, atravessado por contradições do tempo. Estas, contudo, são “descobertas” justamente pelo acesso de contradições que, à primeira vista, formariam apenas a peculiaridade da pessoa. O esquema armado pode apreender traços muito excêntricos (um exemplo é o “efeito filosófico” que emanava da figura de Rosenfeld) como estando em continuidade com processos mais abrangentes. O resultado não é o apagamento da singularidade, já que é à luz desta que se engendra o mesmo esquema que a investiga. Matéria vasta de um lado, concentrada numa persona­lidade bem achada,3 e esforço estruturante de outro, sugerido pelas determina­ções da própria matéria e personalidade que o autor soube ver. A memória se torna objetiva, mas não deixa de ser expressiva. Como espero mostrar, o afeto foi desencadeado pela ironia das coisas, em cujo centro veio estar um mestre que­rido, através do qual se pôde alcançar melhor... a ironia das coisas.

É dito que Anatol Rosenfeld era sarcástico em alemão, mas construtivo em português, além de paciente com as “burrices mais consolidadas e compactas”.4 Depois de trinta anos no Brasil, onde veio parar fugido da polícia hitlerista,5 ele permanecia cerimonioso como um visitante. Isso é explicado por sua posição social precária, de imigrante, e por uma característica de sua personalidade. Pois na ocultação de si mesmo se misturava o comportamento adaptativo e defen­sivo à capacidade de atenção para o outro, requisito para a vida filosófica que ele tanto prezava. O comentário a esse respeito mostra, como em outros trechos, muita percepção psicológica e moral:

Não falava quase de si, perguntava com gentileza e discrição, e era atencioso até o

ponto em que esta qualidade social, sempre apreciável, mudava de natureza, para

tornar-se um passo no movimento de conhecer. Uma civilidade muito diferente,

limpa de presunção e grà-finagem , que maravilhava ao primeiro encontro (a

V '.? .-'. . Jà 1 m b iih hm iíin v , a

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outros parecia “quadrada”) . A suspensão dos pressupostos próprios, que ele prati­

cava com método, era decerto uma forma de ocultação; mas acompanhava-se de

uma postura claramente receptiva e “desprevenida”, tam bém metódica, que con­

vidava o parceiro à reflexão. Era com o se o filósofo se pusesse entre parênteses, para

que o cidadão defronte virasse fenomenologista. E talvez o gosto tão legítimo de se

explicar e com unicar com o forasteiro — o alemão instruído e de óculos das histó­

rias de G. Rosa — também ajudasse. Enfim, contrariam ente ao que se diz, o forma­lismo pode ser propício à entrada em matéria: a maneira de Rosenfeld ocasionava

amores à primeira vista, e não raro despertava nas pessoas uma intensidade insus-

peitada, bem com o despertava em pessoas inesperadas [grifo m eu].6

Anatol Rosenfeld era formal, o que não o impedia, antes propiciava, que ele

entrasse em matéria. Com o uma obra literária que, por ser formalista, não é

necessariamente menos envolvida com a realidade. Isso se discute, por exemplo,

em “Didatismo e literatura”, que apresenta a tradução de um folheto leninista, de

autoria de uma certa Bertha Dunkel, especialista em juntar, à maneira de Brecht,

formalismo literário e didatismo político, pois “a melhor fala — a mais racional

— não se origina por necessidade nas mesmas áreas, sociais e temáticas, em que progride o trabalho político”.7 No caso de Rosenfeld, ocorre algo semelhante, de

espírito porém mais socrático que leninista, ao menos até certa altura de sua vida:

o gesto cerimonioso impõe disciplina a ele, que inicialmente sustenta o processo da interlocução, e lhe permite se ocultar (por ser imigrante ou por ser discreto ou por ser metódico) e proteger, ao mesmo tempo que faz emergir a objetividade da

matéria — e a subjetividade da pessoa em frente, esta por sua vez disciplinada no movimento de reflexão acionado e pedagogicamente encaminhado.

Em outro trecho, sua aversão às contingências do sujeito será problemati- zada por Roberto Schwarz. É dito que, procurando pôr em prática suas idéias, ele renunciou a muitas instituições burguesas:

Além de não se naturalizar, não casou, não m ontou casa, não teve profissão nem

emprego estável. Não queria se enterrar em nenhuma dessas especialidades, ainda

que ao preço de viver da mão para a boca— dava cursos privados e escrevia ensaios

— sem o consolo de acumular propriedades, sem a segurança de salário, aposen­

tadoria, Hospital do Servidor Público e outras vantagens.8

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Numa figura tão aventureira, só a compostura da gravata e dos gestos indi­cava que em algum aspecto a ordem vigente fora levada em conta. O seu negó­cio era trocar idéias (“É o caso de falar em sublimação filosófica de ambições sociais”). Provavelmente um esquisitão para alguns, para outros uma rara alti­vez e irredutibilidade ao mandamento comum. Contudo essa soberania obsti­nada tinha pontos cegos. O caráter avesso à concorrência e especialização disci­plinar, à separação entre lazer e trabalho, instituição e cotidiano, filosofia e crítica, também carregava reflexos da generalidade social a que presumiu esca­par. Em primeiro lugar, ele não criticava as instituições para as quais tinha vol­tado as costas, e a razão poderia estar tanto na consideração pelos amigos pro­fessores de universidade como na recusa em levar para a filosofía assuntos grosseiros. As reticências sobre a universidade — e portanto sobre os fantasmas do baixo mundo da dominação — acabam por atenuá-la numa forma em que apenas não pôde caber a prática integral de convicções íntimas. O acento se des­loca dos aspectos regressivos de certa estrutura social para a radicalidade do pro­jeto pessoal que conseguiu sobrepujá-la. O sujeito autocrático não se amola com o sistema, mas este fica intocado. Em segundo lugar, o que o desviava dessa polê­mica estava também na base de sua maneira de filosofar. Seu interlocutor, embora pudesse estar voltado para um tema do momento, era tomado em abs­trato — à maneira do que se dá no expressionismo e na fenomenología, lembra Schwarz, tendências que influenciaram Rosenfeld — , desligado de sua posição social determinada e de suas condições subjetivas. Ocorre que “estas no entanto são também objetivas e parte do processo real, além de responsáveis pela conti­nuidade na conformação do objeto”.9

Se lermos melhor, veremos que os relatos indicam bolas trocadas, isto é, ênfases. No primeiro caso, fala-se de algo como um subjetivismo inflexível, derivado de uma espécie de ansiedade claustrofóbica. A pessoa luta por se libertar e, nesse processo, afasta incondicionalmente a parte do mundo que mais a poderia submeter. Esse afastamento leva a uma diminuição da cons­ciência crítica, que depende para se constituir justamente de uma aderência prévia à realidade. No segundo, está em causa um objetivismo inflexível que também leva a déficits na apreensão do processo social. Se a limpeza de espe­cificidades individuais e empíricas é exigida na construção do conceito, este, uma vez cristalizado, perde a memória de sua ligação com os indivíduos, sobre cuja não-liberdade deveria falar. Anatol Rosenfeld ficava, nesse ponto como

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noutro, aquém da Teoria Crítica, que se colocará a tarefa, num de seus instan­tes mais dramáticos, “de ir além do conceito, através do conceito”.10 Conforme o depoimento de Roberto e o que imaginamos ao ler os artigos reunidos em livros como Texto/Contexto, Thomas Mann, p. ex., seu autor fazia muitas res­trições a Benjam in, Adorno, Lukács e mesmo Karl Kraus. Num primeiro momento, não é desprezível o estranhamento do leitor, mesmo que tenha sido confirmado em impressões antigas. Evidentemente não há dissociação em apreciar a teoria crítica e Anatol Rosenfeld. E isso sem precisar recorrer ao argumento de que é possível aprender com autores avessos ou indiferentes aos métodos que julgamos mais eficazes para chegar à verdade, às verdades, de que é possível mesmo admirá-los. Mas, no autor em questão, a relutância soa curiosa à vista do espírito comum, em fim de contas dialético e progressista, que os movia. Contudo o complexo quadro em que Roberto Schwarz situa essas dissensões, articulando-as com a pesquisa do caráter, bem como com as contradições reais subjacentes àquelas, repõe em outro patamar a matéria de nosso estranhamento, que é obrigado a ceder o lugar para um deus escreve certo por linhas tortas. O deus no caso é a peculiaridade dessa personalidade crítica, cujas linhas antiquadas, às quais era fiel desde a juventude, não deixavam curiosamente de refletir “as contingências do progressismo no mundo de cabeça para baixo”.11

De muitas maneiras se procura indicar como Rosenfeld, avesso a misturar reflexão filosófica e interesse pessoal, seu e dos outros, não deixava de entrar em matéria. Na maneira como dava aulas, na maneira como conversava, na maneira como escrevia. No primeiro caso, o preço pago era o diletantismo, que, como se ressalva, era da situação e não do professor, que tinha conhecimento seguro do assunto. Mas o que possibilitava o diletantismo também era razão de frescor e de uma noção mais viva da filosofia.12 Em suas aulas, expostas com gracinhas e sistematicidade e voltadas para um público eclético mas bem-disposto, também ele procurava ouvir. Sutilmente se empenhava em fazer do interlocutor, no caso o aluno, um fenomenólogo em ambiente caseiro e com chá da tarde. Com isso, não lhe desprezava os apartes e confusões, mas os acatava com disposição maiêutica, além de lhes reconhecer e mesmo estender o vínculo que por vezes ti vessem com assuntos mais imediatos. Apesar disso, adverte Schwarz, o profes­sor nunca se perdia nesse movimento e tinha clara para si a direção. Se esse for­mato era menos profissional em comparação com o da filosofia da u s p , tinha

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como resultado que a filosofía propriamente não se separava muito da vida, a qual impunha a ela e ao curso um pouco de sua dinâmica caótica.

De modo semelhante, sua crítica procurava manter na forma um coefi­ciente alto de disponibilidade. Tom ando com o exemplo o ensaio “Reflexões sobre o romance m oderno”, de que analisa o ponto de vista sobriamente enun­ciado, o de ser “flutuante com o um m óbile de C alder”, o autor observa o

seguinte: “Daí um efeito próprio aos escritos de Rosenfeld, sobretudo aos que interpretam a cultura contem porânea: são muito construídos, mas não em vista

de serem conclusivos. Sua posição não está nas teses que expõem, sempre com

recuo, como quem cita, mas na experiência real e às vezes contraditória que as

manda suspender, por meio umas das outras”.13 O preço que se paga nesse caso

é mencionado após uma discussão sobre os subentendidos desse ponto de vista,

discussão que ainda hoje tem interesse. Assim, é dito que o mestre adotava um

discurso a que não aderia.14 O conjunto de noções de que fazia uso remetia à

filosofia da cultura e à antropologia filosófica. A civilização burguesa era

apreendida através não de relações complexas com o capital e trabalho, mas de

esquemas mais inofensivos: trabalho/ócio, artesanato/alienação, sinceri­

dade/fingimento, reflexividade/ingenuidade, disciplina/caos etc. Numa passa­

gem estimulante pela, digamos, largueza de espírito, é investigada a curiosa efi­

cácia desses esquemas, cujo estatuto seria

hoje [ 1974] muito particular, pois, sendo abstrusos, pela singeleza de sua dialética,

são também atuais e críticos, pelo contato que guardam com a experiência ime­

diata, e fazem efeito alusivo, pelo seu parentesco com Marx e Freud, além de terem

valor pedagógico, pois obrigam a pensar a vida social como totalidade. É claro que

Rosenfeld não acreditava, por exemplo, com Schiller, que a educação estética tosse

a solução para os antagonismos da humanidade moderna, ou que estamos para os

gregos como a consciência dividida para a ingenuidade. Se expunha idéias desse

tipo, não o fazia a partir do universo delas. Sabia perfeitamente da psicanálise, do

capital, da luta de classes, da pesquisa empírica, que eram o seu clima efetivo; além

do que, era de esquerda.IS

Por se referirem a uma realidade menos mediada (ou a etapas passadas do capitalismo), embora já moderna e fraturada, e concentrarem em conseqüência disso um grau menor de relações, tais abstrações fazem o efeito de não serem tão

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abstratas quando reativadas em situação contemporânea, que precisamente as supera em dificuldade. Esse abstrato, uma velharia, pois teve seu poder de sín­tese sobrepujado pelo tempo, se torna quase coisa concreta entre outras, relati­vamente confundida à experiência, com relação à qual, no entanto, permanece ainda categoria. E o que lhe dá novo arranque reflexivo é justamente o fato de essa operacionalização não perder de vista o horizonte de psicanálise, luta de classes, capital, pesquisa empírica, conquanto seja descartado o discurso que lhes dá sustentação. O propósito, se entendo bem, é pegar a realidade por um flanco inesperado, situado na zona de passagem entre idealismo e materialismo, zona por assim dizer filosófico-econômica, na qual já encontraríamos alguns problemas modernos fundamentais, como a alienação. Esse discurso traz a van­tagem de ser delimitado, mero vestibular em comparação com o Capital, e pode, no entanto, iluminar brevemente o todo da sociedade pela força com que seus raios alusivos, porque ainda filosóficos, arremetem. Nesse ponto, já teríamos deixado a metafísica, mas não seria exato dizer que a nova teoria passou a rece­ber imediatamente todas as honras.

Sobre sua implicância com Adorno e Benjamin, bastante curiosa em vista

do marxismo heterodoxo destes em comparação com Lukács, de quem também dizia mal, o autor observa que justamente essa heterodoxia lhe parecia pesada, com toda a sua diligência expressiva em articular forma artística e forma social. De modo geral, a cientificidade de análises marxistas e psicanalíticas era para ele questionável e, aplicada aos estudos literários e filosóficos, dificilmente esca­pava de reducionismo:

na prática, suspeitava nela o desejo de massacre, de trazer para uma área de relativa

folga subjetiva a pressão dos conflitos sociais mais violentos. Outros dirão que a

dita folga é ideologia, mas de fato há qualquer coisa desproporcionada e antipoé-

tica — além de estéril e despótica — em invocar a todo m omento o complexo de

Édipo e a sociedade de classes para explicar a graça de um livro. [...] Neste sentido

Rosenfeld suspeitava toda a dialética, incluída a de Hegel, de ser um passepartout

dogm ático.'6

Na verdade, como é sublinhado um pouco adiante, trata-se de recusar não o método dialético, mas sua flexão mais assertiva, peremptória — que o mestree amigo pressentia até mesmo em autores tão atentos para o que, nos conceitos,

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vinha de ser a própria violência da ordem real infligida às singularidades. Se ele acatava o vínculo entre espírito e interesse, temia fazer disso uma camisa-de- força, que constrangesse o que, na arte, é sem compromisso. Nesse sentido, ele não abraçava por inteiro a crítica social. Convém notar que Schwarz não deixa de reconhecer a verdade dessa reivindicação e, se não leio mal, não identifica folga subjetiva necessariamente com ideologia. Ou supõe que construções muito dedutivas podem simplesmente reproduzir algo da cadência irretorquí- vel da opressão que gostariam de criticar. Nesse caso o dito desafogo pode não ser exatamente da subjetividade, mas do que o sistema social expeliu como inú­til, do que está fora daquela cadência inapelável. Algo como um odradek, “o impossível da ordem burguesa”, conforme a expressão do próprio autor sobre o estranho carretel que tanto incom oda o pai de família numa obra-prim a de Kafka.17 Nessa miniatura estaria encapsulada a gana de um terrorista.18 Em certa altura do continho, traduzido pelo crítico, diz-se que sua risada é daquelas que “só sem pulmões se produz”. A subjetividade não respira mais, embora esteja de pé. Sob esse aspecto, o instante de trégua na arte, a que a finalidade sem fim desse imprestável objeto alude, não é rigorosamente o da subjetividade ocupando espaço em toda a sua substância. Sua figura está muito comprometida.

Seja como for e voltando ao nosso personagem, o autor consente no pro­

testo de que a dialética, aplicada à análise da arte, pode jogar a água do banho junto com o bebê — este o próprio irredutível. No entanto adverte do mesmo modo que, se a perspectiva em questão pode dar a ver a complexidade de uma obra artística, não está a seu alcance esclarecer o motivo de seu interesse real. Isso requisitaria justam ente os term os recusados. Não há lugar nem tenho fôlego para investigar a pertinência do juízo de Rosenfeld sobre autores tão diferentes entre si, ou avaliar até que ponto a expressividade e a minúcia em alguns deles produz efeito despótico sobre o objeto estudado, ou interrogar como ele lidava com as diferentes acepções de dialética no trajeto de Hegel até Adorno. Isso nos desviaria do objeto deste artigo. A ênfase deve ser colocada no proveito que possa ter a exposição dessas contradições — às quais Roberto Schwarz dedica metade do ensaio — , às vezes aparentes, às vezes não, bem como sua subseqüente avaliação.

Vimos como na personalidade filosófica descrita o sent imento materialista era combinado a noções da filosofia da cultura. De maneira que um princípio como a teleología podia ter entrada, mas não seu otimismo: “a realidade era

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teleológica sim, mas resta ver para onde vai”.19 O desajuste entre letra e espírito, pertencentes a etapas históricas distintas, permitiria justamente uma folga (subjetiva?), por onde ambos se corrigiriam reciprocamente. Em presença de construções obsoletas e por isso singelas, as categorias inovadoras são postas em suspeição: no tempo de sua vigência, devem estar escondendo alguma coisa. 0 ponto é que a sensibilidade moderna e antidogmática nasce desconfiada da pre­tensão de verdade dos conceitos, especialmente os autorizados pela época, que podem se colar a ela como sua expressão natural. O marxismo também pôde se converter em ideologia, no sentido de ser a aparência de interesses bem funda­dos na União Soviética, por exemplo. Além do quê, o conceito pode desprezar, por sua própria natureza e prevenção, resíduos e dinamismos que apontariam para novas tendências da realidade. Entre seu conteúdo e sua pretensão de ver­dade vai um espaço que o temperamento irônico não despreza. No caso de Rosenfeld, a posição de esquerda não o fazia descartar a razão de ser dos esque­mas marxistas; mas ele preferia lançar mão de formas afins que eram contudo histórica-filosoficamente anteriores.20 O hiato entre uma epistemología atra­sada e o sentido para a historicidade é por onde sua crítica entrava em matéria, no caso, se aproximava do variado cotidiano com relação ao qual construções mais atualizadas e com pretensão de ciência pareceriam curiosamente distan­tes. Schwarz ainda acrescenta ao hiato mencionado (de que glosei os pressupos­tos e conseqüências) o humor e a falta de rodeios, as coisas ditas na lata, o que colabora para abaixar a voltagem da parte filosófica e chamar as coisas pelo nome — um nome menos encantado.

Como Mário de Andrade, em certo aspecto crítico de Freud e sobre quem escreveu um ensaio dos mais importantes para os estudos desse escritor, Rosen- feld também defendia a consideração da fachada. Os motivos “de fundo”, anti- civilizatórios, que apenas a lente da análise negativista distingue, não seriam visíveis ao olho menos especializado. Em muitos artigos seus é explícita a pers­pectiva que não quer se colocar muito acima do mero bom senso, o qual não dependeria necessariamente de injunções disciplinares. Num deles, mencio­nado pelo nosso autor, depois de relativizar a cientificidade da “psicologia pro­funda”, que ao longo do século veio a se dividir em tantas correntes dissonantes entre si, passa em revista a sua aplicação nem sempre criteriosa ao comentário de obras e, para isso, toma casos específicos, como uma discussão recente sobre o Édipo rei e um artigo de jornal sobre A bela da tarde, de Buñuel.21 O ensaísta

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propõe, para este último, outra análise, mais “superficial” e cujas vantagens são apresentadas em seguida, em caráter programático:

ela se baseia no “texto” manifesto do filme, sem recorrer a inferências apriorísticas provindas de uma teoria exterior à obra; ela manipula somente noções da nossa

cultura geral (incluindo alguns elementos corriqueiros da psicanálise) e se as ultrapassa um pouco [...] baseia-se em dados repetidos e insistentes do filme; ela é

suficientemente ampla para permitir a eventual inserção de interpretações psica-

nalíticas mais pormenorizadas; ela se afigura mais plausível ao público não espe­

cializado em teorias psicanalíticas [...]; ela tem alcance universal (o que valoriza

esteticamente a obra) por ultrapassar a suposição da anormalidade de Severina ou

por integrar esta possível anormalidade num contexto mais geral, mais “público”,

tornando-a, pois, mais relevante.22

Note-se que ele não despreza elementos daquela teoria, embora sejam os

corriqueiros. Estes constituem os que penetraram nossa rotina ou a visão de

qualquer “cidadão moderno, suficientemente sofisticado”.23 Busca-se preservar

uma noção de crítica de tecido muito aberto, que permite eventuais inserções,

contrapontos, e estes podem ser até as interpretações que ele mesmo evitaria

fazer. Ou seja, é uma noção que idealmente supõe situação pública, acessível a

outras vozes e graus de especialização e cultura, que a refutam, glosam, acrescen­

tam. Para se fazer entendida universalmente e ser posta em debate, toma dados

da cultura geral e apenas faz uso maior da erudição e da especialidade em pre­

sença de símbolos repetidos, que pediriam tratam ento mais aprofundado. A

relevância de uma crítica é vista sobretudo pelo seu grau de publicidade, pelo

grau com que estimula a discussão, e não pelo seu potencial em revelar motiva­

ções obscuras.Sem dúvida, comove esse ânim o tão dem ocrático, que em tudo quadra

com a fisionomia filosófica e moral descrita de Rosenfeld. Seu pluralismo — se é possível chamar esse espírito sob uma letra em geral tão apologética — não indicava hesitação, muito ao contrário. Quem ler seus textos nota a personali­dade forte que não idolatra o jargão nem definições prévias, a coragem de seu “materialismo peso-pesado”, que chama para a análise fatos muito comezinhos, difíceis de vir para a escrita de críticos de arte. A estratégia aqui não é abafar opi­niões, fingir que não ouve, mas provocar a manifestação de todas e convencê-las

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de que a própria pode ser mais razoável mediante o único meio democrático no caso, que é a argumentação. Sua riqueza depende de urbanidade, isto é, da quan­tidade de pontos de vista a que pôde estar aberta e que, urna vez interiorizados, podem ser negados, corrigidos, acrescentados. Os interlocutores recebem o reflexo de si mesmos, que está agora didaticamente emoldurado. Quem quiser que se olhe no espelho ou saia batendo os tacões. Por sua vez, a própria posição, submetida à ironização, perde muito de sua impostação e fica menos encantada em termos de dogmatismo. Como escreve Schwarz, essa consideração de pers­pectivas conflitantes, a atenção para os muitos lados de uma mesma coisa, a dis­tância em face dos argumentos são “momentos que falta à tradição marxista absorver”.24 Em 1974 essa recomendação poderia fazer mais sentido, à vista do marxismo oficial e de sociedades socialistas não democráticas. Hoje, o dogma­tismo na esquerda indica em geral a situação muito fragilizada, o pânico de ter perdido até mesmo a primazia em revelar interesses econômicos sob justifica­ções culturais. Ocorre que o mundo, como antes, continua de cabeça para baixo, se é que continua com as partes todas, e vai produzindo novas configurações do progressismo. Este, como outrora em Rosenfeld, pode se apresentar de maneira inesperada, “contra-intuitiva”, diria nosso autor, especialmente num contexto, como o do capitalismo atual, em que razões anti-sociais não necessariamente pedem fachada.

A disponibilidade e o “republicanismo” de Rosenfeld são faculdades que hoje ainda teriam beleza e direito de existência, pela desprevenção em que colo­cam a inteligência, sem o que o conhecimento fica comprometido. Sem menos­prezo de que hoje a concorrência e a especialização muito maiores — e, no caso especificamente brasileiro, as dificuldades históricas de constituir uma esfera pública democrática — lhes sejam um tanto recalcitrantes. Na verdade, seria o caso de interrogar se já o crítico não estaria tomando seus interlocutores um tanto em abstrato, desligando-os de interesses de cuja consideração não haveria como fugir, pois não deixariam de interferir na racionalidade do debate.25 Do mesmo modo que este pode ser afetado, virar barbárie mesmo, se não for con­cedido valor relativamente autônomo ao enunciado, visto apenas como desvio de motivações ocultas ou inconscientes. Para isso Rosenfeld também estava cha­mando a atenção, como mostra o artigo citado. Seja como for, o projeto crítico referido pôde contar em seu tempo com possibilidades mais efetivas que hoje. A comunicatividade de Rosenfeld não parecia ser meramente um traço pessoal;

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por certo ela se beneficiou do clima nacional-desenvolvimentista que tomava conta do país e pôde se exercer num órgão empenhado em civilizar como o Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, para o qual começou a escrever em 1956, a convite de Décio de Almeida Prado e por sugestão de Antonio Candido. Seu programa vinha compartilhar uma euforia comum quanto às chances de diálogo e ilustração, que na verdade já estavam se ampliando, por um breve excurso da história brasileira, para além dos limites oligárquico-burgueses. Sob o patrocínio da burguesia populista e do Partido Comunista, então em aliança, a cultura mais significativa do período rapidamente entrou em regime de poli- tização, articulando-se a setores até então excluídos de seu funcionamento e chegando por vezes a conseqüências não previstas pelos seus patrocinadores. Roberto Schwarz assim recorda e analisa esse interregno promissor: “O vento pré-revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacio­nalização de empresas americanas etc. O país estava irreconhecivelmente inte­ligente”, com as questões de uma cultura verdadeiramente democrática espo- cando em todo canto, “na mais alegre incompatibilidade com as formas e o prestígio da cultura burguesa”.26 Gêneros mais interventores tomavam o lugar da literatura, como o teatro, o cinema e a canção, e eram inventadas novas ins­tâncias de criação e debate, a exemplo dos Centros Populares de Cultura. O público visado era especialmente camponeses e operários, não propriamente leitores do Suplemento Cultural.

Rosenfeld acompanharia essa mudança, lastimavelmente provisória, de esfera pública, ou essa “Aufklärung popular”,27 interceptada em 64. Na verdade, o didatismo e o argumento em favor de uma linguagem relativamente desespe­cializada, que não diferenciasse tanto comentador e público, iam a favor da onda pré-revolucionária que começava a se alastrar. Sua disponibilidade e antipsico- logismo eram atributos muito distintivos seus, que vinham a calhar, porém, com demandas culturais objetivas. Nesse aspecto Roberto Schwarz pôde dizer, no fim do relato, que seu amigo, sempre dentro de sua maneira e “pela força das coisas”, se tornara brechtiano. Mas essa mudança não se deu sem uma transição lamentosa. Assim, é dito como fora doloroso para ele ouvir de Hans M. Enzens- berger, uma vez de passagem por São Paulo, em 1965, que Thomas Mann estava ultrapassado, que eram Brecht, Kraus e Benjamin os autores realmente contem­porâneos.

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No entanto, pela força das coisas ele próprio já fizera o mesmo itinerário. Nos últimos anos o seu autor central passara justamente a ser Brecht, cujo tea­tro e cujas teorias divulgara amplamente, em conferências e bons artigos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Intervenção e mordacidade vinham substituir a ironia. À fase marcada por Thomas Mann, pela ontologia de Hartmann e pela filosofia da cultura, seguia-se outra, centrada em Brecht, no teatro político e na crítica social. Sem que fosse otimista em relação ao socia­lismo, a guerra do Vietnã convencera Rosenfeld de que o imperialismo é o pior de tudo. Suponho que então, acuado, procurasse um discurso de explicação e combate.28

A experiência com o fascismo decerto estava na base de sua hipersensibili- dade ao que fosse coercitivo e ajudou a formar a índole irônica, desconfiada de toda impostação, inclusive no materialismo dialético. A alteração de ponto de vista ocorre ainda assim como evolução de convicções íntimas e da atenção para regressões mais profundas. Era preciso responder a elas de maneira agora dife­renciada. Impunha-se um gesto mais cortante, não reticente em relação ao ilu- minismo e sem nenhuma condescendência com energias irracionais. Estas já tinham sido suficientemente desrecalcadas pelo golpe militar. O Brasil pós-64 não era para brandas ironias. Tanto não era que, sugere o autor, traria definiti­vamente à tona o Anatol polêmico de língua materna, por mais de uma razão longamente reprimido em língua portuguesa. À vista disso, a mencionada evo­lução é também a consumação de um processo adaptativo. O clima de exceção fazia o judeu alemão, até então emigrado cauteloso mas também pacientemente civilizador, que fora obrigado a levar em conta o ambiente estrangeiro e com mil deficiências culturais, sentir-se finalmente em casa. A familiaridade não proce­dia apenas da familiaridade cada vez maior com a cultura brasileira e com o por­tuguês, mas também de uma familiaridade cada vez maior entre o totalitarismo político de cá e o experienciado na terra de origem. Ocorre que a mordacidade era dessublimada em termos renovados.

Contudo, como a filosofia, Anatol parecia chegar algo atrasado. Porque há um desnível entre sua nova posição, acirrada a partir de 68, e o processo real. Esse desnível confere também dignidade à figura, e é por isso que a descrição dessa guinada produz certa comicidade lírica. Roberto Schwarz diz na linha e mais ainda nas entrelinhas: ironia das coisas, quando a realidade já se tornara por demais materialista, quando as possibilidades de intervenção ficavam adiadas,

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Rosenfeld começava a se dizer marxista brecht iano. O tom é aqui elegíaco, o que já se evidenciava na primeira oração do texto: “Quando o Brasil reencontrou o seu futuro, em 1964 [...]”. Por um instante, o país saíra da órbita do destino, da repetição mítica. É para esse instante que está mobilizada parte da energia de O pai de família. Nele se aguarda, em vigília juvenil, o salto do artístico para o polí­tico. O folheto de Bertha Dunkel e a argumentação apaixonada em torno da prosa didático-política, se soam algo irônicas em 66, 68, é de auto-ironia, que tem o combustível da paixão — a mesma que suspende a vibração mais concei­tuai dos ensaios e nos insere no ambiente poético de “Utopia”, um continho marcusiano, em que o gesto erótico é um gesto de pensamento. Não há separa­ção. De um modo geral, porém, a aposta de que a arte e o cotidiano iriam se rela­cionar de maneira alterada se converteu numa efígie e esfriou. Busca-se analisar o salto falhado, a explosão que não houve, como o que se adivinha no rosto dos famintos em Os fuzis, de Ruy Guerra. Na face que o close-up não esclarece, diz o autor, não vemos história, mas opacidade.29 O político regrediu ao artístico, a uma presença densa, mas dificilmente decomponível. A idiossincrasia de Ana­tol Rosenfeld, cuja vida fora aqui submetida a uma força formalizadora, foi fazer o percurso contrário, do estético ao político. Ao termo ele curiosamente se tor­naria o “brasileiro que nem eu” de Mário de Andrade, usado como epígrafe do ensaio. No Brasil que voltara a se recolher à dimensão de inércia e destino, o estrangeiro concluía sua assimilação ao liberar aspectos ciosamente comprimi­dos até então, como o sarcasmo. Aspectos ora reforçados pela disposição em chamar pelo nome o imperialismo e a luta de classes. Mas nessa altura a morte já estava por perto.

A força de gravidade do golpe militar se revelava, no trajeto em questão, um ponto de aplicação a partir do qual a personalidade ganhava impulso para mor­der. Mas este não chegava a ser um empuxo arquimediano. Evidentemente as forças não tinham módulos iguais. Na verdade, é preciso rever o que dissemos: também nesse caso o salto foi interrompido, a explosão não aconteceu. A dife­rença é que desta vez o tempo era mais fraco.

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Com Roberto Schwarz depois do telejornal

Zulmira Ribeiro Tavares

Soube alguma coisa a respeito de Roberto, penso que em fins dos anos 50,

começo dos 60. Certo amigo me havia falado dele, posteriormente lera trabalhos

seus no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, comentava-se com entu­

siasmo a sua análise de 8 V2 de Fellini publicada no Suplemento, enxergava-o

aqui e ali em vários lugares nos quais se ia, como o Instituto Goethe (então cha­

mado Casa de Goethe), ou na entrada do cine Majestic, do Teatro de Arena, em

algum bar da rua Augusta. Curiosa é a memória: só recordo de fato, com preci­são, o Goethe e o cine Majestic, mas tenho a impressão difusa que passava por ele em vários outros pontos da cidade.

Em 1964, ou 65, fui apresentada a Roberto em casa de Gita e Jacó Guinsburg. Havia começado, a partir de 64, a seguir os cursos de filosofia que nela ocorriam, dados por Anatol Rosenfeld. Nessa época Roberto já não participava deles. Estu­dava-se Kant, e certo dia Roberto lá foi para traduzir do alemão um trecho de Crí­tica da faculdade de julgar, suponho, pois era disso que se tratava. Anatol deve ter sentido algum escrúpulo em fazer ele mesmo a tradução, já que a intimidade que tinha com o português não era a mesma que a de Roberto. O episódio foi breve e, para mim, impessoal. Roberto chegou, cumprimentou, sorriu, traduziu.

Continuei lendo o que havia dele para ler, quando então saiu seu livro A sereia e 0 desconfiado,' trazendo-me, além das análises publicadas no Suple-

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mento Literário, também ensaios sobre literatura estrangeira, dos quais tomei conhecimento com igual curiosidade e gosto. Já não consigo precisar se foi na mesma ocasião que li “Tribulação do pai de família” — análise e tradução do conto de Kafka, ou posteriormente, quando o trabalho apareceu em livro,2 bem mais tarde. Da história do pequeno implausível ser chamado Odradek, respon­sável pelos tormentos do pai de família, atraiu-me fortemente não apenas a interpretação que Roberto dela faz, como a sua tradução do alemão, língua que de resto desconheço, por me parecer conseguir modular “internalizando-a”, por assim dizer, no português, a condição simultânea de estranheza e familiaridade trazida pelo conto. Exemplifico apenas com um trecho em que se diz de Odra­dek quando este ri, ao falar sobre a localização indeterminada de sua residência: “mas é uma risada, como só sem pulmões se produz” (grifo meu). Também não sei exatamente quando tive em mãos o seu livro de poesia Corações veteranos, no qual, entre os poemas ali reunidos, um em especial, de meia página, impres­siona-me muito desde então, e sobre o qual irei me estender adiante. Detenho- me aqui apenas nos dois pequenos textos por marcarem, de forma diversa, a ori­ginalidade e força que já descobria em seus primeiros trabalhos, uma sinalização para esse conjunto mais antigo, assim como para o encaminhamento de sua obra posterior. Também por iluminarem a lembrança do período em que o conheci, ainda que de muitos do conjunto devo ter feito a leitura mais tarde, depois de sua partida forçada para a França.

Pois um dia Roberto não foi mais visto na entrada do cine Majestic, do Arena, da Casa de Goethe, em parte alguma ele estava.

Anatol Rosenfeld trouxe-me a notícia esclarecedora. Àquela hora Rober­to já se encontrava em Paris, tendo atravessado conhecida fronteira para sair do Brasil. Houve um complemento à informação transmitida com gravidade mas sem a exclusão de certo tom conspiratório e algum humor. Pois na oca­sião da partida havia ocorrido uma troca de sobretudos entre os dois amigos. Por certo o de Anatol estaria mais de acordo com o clima europeu. Contudo, talvez o que ficara consigo fosse de melhor qualidade, ou mais a seu gosto. Para quem aprecia aventuras, ou gosta de reiventar o passado com tinturas amenas, pode-se ainda aventar a hipótese de que o motivo fora a cor. Ele teria atraves­sado a fronteira a pé confundido-se com as sombras da noite graças ao novo sobretudo.

Dessa forma Roberto submergiu dentro de um sobretudo que não era o seu

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para descobrir-se a salvo do outro lado das coisas do mundo. E assim, por um bom tempo não o vi mais. Quanto aos escritos, não os perdi de vista.

Seguem transcrição e comentário sobre o poema de Corações veteranos

Depois do tele jornal

Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim, também as mãos, são da irmã que envelhece noutro continente. Está aqui desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 num campo francês, em 41 passou para um quartel em Casablanca, perdeu a mãe em Buchenwald e costurou seis dias por semana, 25 anos, numa fábrica de roupas no Bronx. Sem entender acena ao sobrinho do Brasil— onde as coisas vão mal— a cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do pla­neta. — Sei que você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar que sou uma velha. Mas às vezes acredito nalgum defeito genético do homem. Senão por que esse gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto isso, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção — a lepra do mundo, me entenda bem! A lepra do mundo — nos acabam de trabalho, desemprego, guerra ou loucura.

A base biográfica real do poema é facilmente identificável para quem conhece um pouco da vida de Roberto; porém a percepção de sua qualidade incomum em nada depende do reconhecimento dos fatos que lhe teriam dado origem.

O perfil das duas irmãs que sobreviveram ao nazismo emigrando separa­das para duas Américas, a do Norte e a do Sul, perpassa a breve duração do texto, ainda que o motivo igual — a perseguição nazista— que teria levado a irmã do Sul a também abandonar a pátria, surja apenas como alusão, e sua história de vida não aflore.

O poema se inicia na primeira pessoa com uma explicação dada três vezes pelo sobrinho à tia, a irmã do Norte, sobre a manobra legal aplicada contra negros americanos ativistas. A ela segue-se a apresentação suscinta daquela a quem se dirige o narrador, assinalada por datas, localidades,e por fim pelos mui-

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tos anos de exercício na atividade que lhe garantiu a sobrevivência longe da pátria. Com o simples arrolamento, sem nenhum comentário, de momentos de um processo emigratorio, a velha expressão, “os fatos falam por si”, ressurge oportuna e nova em razão do caráter de cada situação apresentada, animada da mesma pungência que por vezes sentimos diante de esbatidas cenas sublinha­das pelas legendas de certos filmes documentais, e que arrastam consigo a pas­sagem (e fuga) de tempos opressivos na história dos homens. Já o desejo de esclarecimento a outro, do que teria ocorrido contra negros ativistas, indica juízo de valor, crítica e empenho, ainda que, ao contrário dos fatos referidos no percurso de uma emigração, seu conteúdo (a natureza da manobra legal obstru- tora) não seja fornecido ao leitor. Imbricam-se porém ambos nos seus vários aspectos comuns: o preconceito expandido em políticas e ações governamen­tais, a violência de Estado, a cidadania perdida ou rebaixada— o que infunde ao conjunto forte imperativo moral.

Observado de ângulo diverso, o (eu)“Explico” da primeira pessoa abre-se para outros sentidos e situações ao se tomar conhecimento do motivo pelo qual por três vezes a mesma explicação é dada. Pois com o conhecimento da surdez da interlocutora chega ao leitor uma ordem de associações em que o pessoal se inter­põe ao geral, em que uma irmã é trazida a primeiro plano pela outra nos traços comuns de família, no comum envelhecimento e cansaço. Fundem-se assim— e interceptam a suscinta biografia ordenada e numerada — as trajetórias das duas emigrações separadas por tão vastas terras e águas. Toma-se consciência das irmãs e da distância que as separa no exato momento em que a distância se anula.

Quem narra reconhece na interlocutora a “tia”, e coloca por momentos o seu “eu” distanciado de si, ao lado dela no mesmo plano de cena ao mencionar, durante a conversa que se realiza, o “aceno”de cabeça que esta faz ao “sobrinho do Brasil”.

A indicação de onde reside o sobrinho visitante acentua por sua vez a noção de brevidade e distância na visita que se realiza, de permanência incerta, de uma troca afetiva provisória enquanto diálogo vivo. Em que talvez não seja infun­dado destacar certa manifestação antecipada de saudades por vidas que já se afastam, com seus sinais de perdas trazidos a comentário nos traços de uma identidade comum.

Desse modo, no poema, os pequenos movimentos narrativos de afasta­mento e aproximação ocorrem em vários planos, deslocando ainda a própria

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estrutura da interlocução ao misturar um pouco a primeira e a terceira pessoa como indicado atrás, ou ao ziguezaguear levemente com a informação: a mãe do visitante vem subentendida, apenas como a irmã da tia “que envelhece em outro continente”.

Há uma forma dominante contudo, a do diálogo, que organiza o conjunto e a ele submete a instância narrativa. O título do poema — na verdade a sua pri­meira linha — , destacado no alto, reforça no episódio que se inicia a condição do presente, dando lugar — com a cena que se oferece como em um pequeno palco— às duas figuras, uma ao lado da outra, sobrinho e tia, depois do telejornal

O sobrinho quer esclarecer à tia o que ambos acabaram de ver na televisão. Porém, o aceno de cabeça com que a tia comenta o que lhe é explicado é o do desencanto, da impaciência e desamparo diante do mundo com suas lutas “infindáveis”. Ela não entende, pois que surda também à eventual esperança que talvez lhe queira incutir o sobrinho em sua persistência didática.

Mas é de seu seu desentendimento que arranca sua fala, carregada da elo­qüência que inexiste no espaço narrativo de onde nasce, e tampouco pertence à configuração “real” do poema. A fala corta o poema em dois momentos justa­postos, o narrativo, anterior, e o dramatúrgico, com que se encerra. É única no texto, tem a força de uma entrada em cena. É feroz, um jorro, ainda que se inicie branda, lamentosa. A tia admite que possa ser desacreditada pelo sobrinho pelas coisas que diz, por ser quem as articula uma velha, mas mostra que sabe dos assuntos do mundo, e bem (que a muitos experimentou, e bem). Seu temor passa pelo que possa haver de inamovível no homem, o que possa nele ser natu­reza; fala em genética, mas se firma nos desmandos do capital. E sua última for­mulação sobre “os donos da vida” (outros assim o dizem), em verdade os“donos dos meios de produção” (dela é o termo) termina com uma afirmativa sem volta e que clama pela atenção absoluta, sem desvio (“me entenda bem”), em uma imagem crua e bruta sobre os beneficiários da expropriação. A afirmação é rei­terada ao sobrinho como o foi a explicação do sobrinho a ela, porém não como didática, chega-lhe como invectiva: A lepra do inundo.

Acredito que o poema cause forte impressão a qualquer um que o leia. Pos­sivelmente a sua apreciação imediata se deva à exata conjunção dos afetos, juí­zos e memórias que o animam e constituem o substrato de sua forma; na qual o político, o social e o pessoal são ajustados um pelo outro,ombro a ombro, porém cada um com o seu momento próprio de luz.

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Recuando do poema para a provável circunstância que lhe deu origem — a experiência vivida por Roberto em Nova York em uma visita à tia, e a lem­brança do que ali ocorreu, do que conversaram (a fala da tia, forte e desesperan­çada talvez fixada com pouca ou nenhuma modificação) — sou levada à lem­brança de sua mãe— a irmã da tia residente no Brasil— apenas alusiva no texto, mas de certa forma a ele integrada em uma correspondência de mútua identifi­cação entre figuras familiares. Refiro-me à bióloga Käthe Schwarz, que vim a conhecer quando Roberto já se encontrava em Paris, quando eu própria mal o conhecia.

Ao recordá-la pela via do poema, realizo mais uma vez o que é bem conhe­cido dos amigos de Roberto, a importância dela em sua vida, sua inteligência e integridade. Em seqüência me vem à lembrança certa visita que a ela fiz uns tem­pos antes de sua morte. Mostrou-se então, como em outras vezes, animada e com o gosto pela troca de idéias, ainda que a muita idade lhe houvesse trazido grandes limitações.

Porém as próprias restrições físicas assim como a velhice é que lhe teriam aberto um espaço diverso na existência, uma ordem diferente de lazer que a teria levado a se aproximar das coisas suas e do mundo de um ângulo pouco usual. Espaço que, pactuando com as horas noturnas, mas distante do onírico, em cer­tas noites de vigília passaram a povoar seu quarto com cenas do passado, frag­mentos de memórias predominantemente visuais. Pequenos quadros ilumina­dos com grande nitidez, dos quais fora participante e nos quais na ocasião que os vivera não lhe haviam então mostrado muita coisa. Disso me falou na visita a que me refiro. E de como então lhe voltavam com sua significação esclarecida. Referia-se, penso, a um campo maior que o abarcado simplesmente por eles. Não apenas os compreendia. Ela por fim compreendia. Episódios tão simples: o médico do marido, Johann Schwarz, morto prematuramente, aproximando-se. A bordo de um navio ela acena para o filho no cais, vai em viagem de trabalho para a outra América. É noite nessa outra América, e eis que se encerra mais um encontro de biólogos. É noite ainda, ela se dirige para o local onde se hospeda. No Brasil, outra vez. Cartas que chegam. Respondidas. Não.

Seu relato me foi feito sem ênfase. O que tinha a dizer vinha de um jeito sim­ples, interessado, não colorido por emoção aparente. Por vezes apenas um leve, levíssimo suspiro, contudo usual nela, assim meio de aceitação, certo desapon­tamento quem sabe, como se tanta vida não coubesse em uma vida só. Falou-me

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movida pelo que tinha a revelar, contudo sempre de forma branda, ainda que precisa, tal como discorria sobre plantas, quando recordava seus tempos no Ins­tituto Biológico. Sorria enquanto falava. Constatava.

Voltei a pensar naquela visita que fiz à mãe de Roberto ao reler mais uma vez o poema cuja origem teria sido a visita de Roberto à tia. As duas visitas apro­ximaram-se para mim talvez por ter sido possível reconhecer em ambas a natu­reza do estético como resultante de um obstinado esforço para o conhecimento. No poema, a visita surge como resolução de forma, que não desatende, antes arrasta consigo, acelerando-o e integrando-o, o movimento do vivido. Já na visita a Käthe Schwarz a percepção vem apenas como indicador de tal processo em um depoimento realmente digno de nota, a partir de imagens só então recu­peradas em seu peso original; quando a prática de vida que as gerou já se apaga, tal como no correr da noite as notícias do dia, depois do telejornal.

Parte de Corações veteranos se prende à permanência de Roberto em Paris na época da ditadura militar no Brasil e aos que lá estiveram por motivo seme­lhante. O título dado ao volume — deslocado do poema “Ulisses”: “A esperança posta num bonito salário,/corações veteranos.// Este vale de lágrimas. Estes pínca­ros de merda — passa então a recobrir a variada experiência parisiense dos exi­lados brasileiros, porém sem qualificá-la como no poema de que faz parte, em que possivelmente a esperança resultante da experiência de oposição ao regime, de ímpeto transformador, afinal uma odisséia de recorte modesto, traduziria com melancolia, ironia e humor, o prosseguimento do período de exilio, ou o seu termo.

Observa-se ainda em Corações veteranos-, em particular no poema “Depois do telejornal”, certas escolhas que a meu ver iluminam aspectos de sua crítica literária, como: a fala colhida sem arranjo, (alguma desconfiança da rima),4 a datação histórica, o fragmento biográfico ou autobiográfico, registros que tam­bém têm parte, assim julgo, com sua análise do melhor cinema brasileiro, parti­cularmente o documentário. Reconhecidos na configuração de sua poesia, manifestam-se em sua produção crítica com outro perfil por meio da complexa rede de articulações que a mobiliza, submetida como sempre à matéria do real.

Em uma situação até certo ponto aproximada, pois que de igual modo des­taca correspondências na diferença, diria, remetendo-me uma vez mais ao texto

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“Depois do telejornal”, que a experiência de o reler, hoje, a mim se ofereceu tam­bém como uma possibilidade de vir a pensar a natureza do estético para além de s u a produção consciente.

É ainda do volume Corações veteranos o poema “Canções do exílio”, que assinala, com um acolhedor lirismo de viés, em doze blocos de poucas linhas, fla­grantes fotográficos, filosóficos, noticiaristas, itinerantes, meditabundos etc. aqui e ali costurados por um eu que mal se dá a conhecer. No bloco 10, o Brasil dos extensos trabalhos de Roberto já se anuncia com a graça de um pequeno selo posto em circulação por uma boa causa. Em que sentimento e distância se alter­nam, e o contraditório tem nele valor de raiz:

10

Vejo num globo terrestre deportaria de hotel a familiar cara larga e torta do Brasil simpática, geografia não é história

Observação: Tendo Roberto lido o presente texto, perguntei a ele se o epi­sódio dos sobretudos trocados estava correto. Respondeu-me que não se tratava de sobretudos, e sim de capas de chuva. A troca ocorrera porque o de Anatol Rosenfeld seria mais “dobrável”. Fiquei bastante surpreendida com o engano, contudo deixei que permanecessem, os sobretudos. Pois entendi que esses, ao lado da difusa sensação da onipresença de Roberto em certo circuito cultural da cidade — e tão “reais” quanto — , contribuíram para fixar o modo como as pri­meiras impressões de seu trabalho, atuação e amizades chegaram até mim.

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P A R T E II Q U E S T Õ E S E M C O M U M

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Um crítico na periferia do capitalismo

Francisco de Oliveira

Quero começar de forma bastante convencional: agradecer a Roberto pelo que ele é, pela sua enorme simpatia, pelo bom humor permanente, pela acolhe­dora e franca gargalhada, incomum entre académicos — mas quase regra na turma da pizza — , pela sua capacidade de valorizar o trabalho de outros, entre os quais me incluo, e também pela recusa ao jeitinho brasileiro de, sob o pretexto da amizade, às vezes meramente expressão corporativa sem nenhum afeto real, evitar a crítica, substituindo-a pelo compadrio. Talvez o ensaio “Discutindo com Alfredo Bosi” em Seqüências brasileiras seja o melhor exemplo.

Meu segundo agradecimento vai na linha de ter-me resgatado Machado de Assis, lido nos tempos de ginásio como um clássico da língua, para aprendermos a escrever corretamente, mas nunca o revelador irônico do lado mais obscuro da sociedade brasileira. Ainda que tenha custado mais trabalho, pois depois disso todos fomos obrigados a reler Machado, para agora entendê-lo. Mas com que ampliado prazer!

Não necessito bajular Roberto, pois na nossa relação o favor, a regra básica da sociabilidade brasileira que ele descobriu no nosso clássico, que antecipava Sérgio Buarque de Holanda, não tem lugar. Mas devo dizer que o Ornitorrinco muito deve a ele. Em “Fim de século”, ensaio que está em Seqüências brasileiras, o animal está lá. A discussão do desmanche influenciou nosso grupo de estudos

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do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania ( c e n e d i c ) , que o tomou como ponto de fuga de nosso projeto de pesquisa junto à Fundação de Amparo à Pes­quisa do Estado de São Paulo ( f a p e s p ) , com o pomposo título de “O pensamento nas rupturas da política”. Nosso primeiro objetivo foi o de reconhecer, no mesmo andamento, os pontos de negação/superação da ordem anterior ao neo- liberalismo e a insuficiência dos paradigmas sociológicos para interpretá-los. Nos termos de Roberto, e permitindo-me fazer um trocadilho com seu seminal ensaio original sobre Machado, um lugar fora de idéias, o Brasil desmanchado, e “idéias fora de lugar”, o neoliberalismo na periferia.

A Crítica à razão dualista é contemporânea de “As idéias fora do lugar”, mas eu não conhecia o trabalho de Roberto que, até onde sei, apareceu pela primeira vez na velha Estudos CEBRAP n2 3, de janeiro de 1973. Mas felizmente caminhá­vamos paralelamente, se é que não estou forçando a barra. Não que eu queira reivindicar a estatura literária do texto de Roberto, mas as afinidades são eviden­tes: o propósito de desvendar, no meu caso, a peculiaridade da forma capitalista no Brasil, ou de como o liberalismo transitava pelo favor, o tema de Roberto. Isto é, a industrialização se fazia usando o latifúndio como suporte, ao tempo em que as cidades viravam acampamentos de posseiros, nossas imensas e feias periferias urbanas, e a União Democrática Nacional, repetindo Bentinho, retorizava os direitos civis enquanto batia às portas dos quartéis para impedi-los.Já em 0 ornitorrinco as afinidades são eletivas, para usar o termo de Weber tomado emprestado de Goethe — segundo dizem os mais letrados — , maiores e mais explícitas e reconhecidas, embora a qualidade literária do texto não seja lá grande coisa.

O c e n e d i c , o centro de pesquisas de que participo, que mais parece uma tribo de Asterix, transformou “Fim de século” no seu programa de pesquisa. Tra­tamos de mapear os “desmanches” da ordem “getulista” — como o dizem seus adversários pela direita, Fernando Henrique Cardoso e Lula — que a luta social, o conflito de classes, para chamá-lo pelo seu nome clássico, havia transformado em direitos do trabalho, eixo central da modernização da sociedade brasileira e referência principal do cálculo econômico burguês. De cambulhada, o que se destruía eram principalmente os novos direitos, enquanto o cálculo econômico se subordinava agora aos preços internacionais, o que tornava anacrônico tam­bém regular o preço do trabalho.

Talvez essa seja a diferença marcante entre o que o título de nossa m e sa “o

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progresso antigamente” diz e o progresso contem poraneam ente: o trabalho e

seus direitos com o eixo central da estruturação da sociedade. O que nos atualiza

do ponto de vista de nossa inserção internacional, pois é em grandes linhas o que

se passa no capitalismo contem porâneo. Parece um simples problema de onde

referenciar o cálculo económ ico, mas de fato vai mais longe: retira da sociedade

o poder de determinar os parâm etros da própria exploração da força de traba­

lho e junto com isso o poder de contestá-los. A própria acum ulação de capital já

não é uma equação interna que dependa fundam entalm ente da taxa de lucro

dos capitais: ela extroverteu-se definitivamente, o que torna, tam bém , o poder

de classe das burguesias internas um sim ulacro. E retira a autonom ia, a escolha

das decisões. Esse ornitorrinco é um animal sem ética.

Na globalização, a periferia resolve-se num a dialética negativa, rebaixando

os termos das contradições. Veja-se o que acontece com as cidades: o mutirão

não é a resolução do problem a da habitação, mas sua impossibilidade de, pela

mercadoria, resolvê-la, o que acaba rebaixando ainda mais o próprio estatuto da

força de trabalho. E os m utirões transform aram -se de solução precária, não-

mercantil, para política pública governam ental: agora, sob a capa da “cordiali­

dade” da “com unidade” — outra im postação na boca de sociólogos e urbanis­

tas — o Estado se desresponsabiliza, os produtores dos m ateriais necessários

para a “auto”construção lucram . Os exemplos poderiam estender-se ao infinito.

Trata-se de um impasse: os problemas só podem ser atacados pela negativa, e em

sendo assim, ele se agrava. Um a espécie de nó de m arinheiro: quanto mais per­

feito, mais ele aperta.

Se o subdesenvolvimento era uma com binação em que o novo da acum u­

lação de capital utilizava o velho com o seu suporte, negando a dualidade de

linhas paralelas que nunca se encontravam , mas com uma inegável predom i­

nância, pelo menos tendencial, das novas formas da acum ulação sobre as preté­

ritas quase-capitalistas, o que se deu até os fins dos anos 70 com o crescimento

do assalariamento, a nova situação caracteriza-se pelo oposto: as novas formas

da acumulação de capital produzem o velho, mais que suportadas por ele. O

explosivo aumento da produtividade do trabalho que produz a intensificação

interna da mais-valia relativa traz de volta a mais-valia absoluta. O capital glo­

bal paira sobredeterm inando as duas formas: ele impõe a informatização da

produção de mercadorias e serviços e os motoboys que atualizam, sobre Yama­

has e Hondas, o putting out louco e assassino das corridas que é a nova modali-

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dade do trabalho doméstico. Encontrada (?) a causação, a aceleração da infor­matização pode dar fim ao putting out assassino, o que indicaria a saída. É o oposto que sucede: a informatização, isto é, a acumulação de capital em sua nova forma técnica, produz novas levas de trabalho totalmente desqualificado. É o que se constata: neste ano da graça de 2004,1,2 milhão de novos postos de tra­balho foram criados, predominantemente de baixa remuneração. E a educação que era o vetor da ascensão social perdeu sua eficácia: nos concursos públicos e mesmo na competição por empregos privados, o número de gente com forma­ção de nível superior é também ascendente, para realizar tarefas sem nenhuma qualificação. O paradoxo não é que o trabalho desqualificado esteja na ponta do processo de acumulação; é o contrário que se passa, mas esse processo de acu­mulação, longe de dispensar aquele trabalho desqualificado, aproveita-o nas margens, justamente para prover bens e serviços de consumo às faixas mais bai­xas de renda. Não há população marginal, como pensou José Nun.

Não sei se haverá possibilidade literária de unificar num mesmo anda­mento essa colagem, quase frankesteiniana, de elementos díspares, pedaços de corpos mutilados. Não sei se já há na praça esse autor: talvez justamente Paulo Lins, revelado por Roberto, seja uma primeira aproximação. Não sou capaz de dizer se ele produziu uma forma literária que é a própria condensação da maté­ria real, uma forma violenta como o real, tal como Machado criou uma forma volúvel que era a própria volubilidade da classe dominante escravocrata, na interpretação de Roberto. Não sei se prosseguirá a construção de um sistema, de uma “formação” da literatura nacional, porque praticamente já não há nação. Não sei se a própria forma literária não desaparecerá, numa fragmentação infi­nita. Mas sabemos a quem pedir essa decifração: estamos diante dele, salve Roberto!

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A ruptura ontológicaAntes do início de uma outra história mundial

Robert Kurz

O debate sobre a globalização parece ter chegado a uma situação de esgo­

tamento. A causa disso não é, no entanto, o fato de que o processo social subja­

cente tenha se esgotado — ele está apenas em seu começo. São as idéias resultan­

tes da interpretação que perderam o fôlego antes da hora. A corporação dos

economistas e dentistas políticos já escreveu bibliotecas inteiras a respeito da

explosão das fronteiras das economias nacionais provocada pela globalização

do capital e da conseqüente diluição do campo de atuação do Estado nacional e

da regulação política. Mas as conseqüências desse reconhecimento ficaram de

fora. Quanto mais nitidamente a análise demonstra que nação e política se tor­

nam obsoletos, tanto mais atávico se revela o discurso político e teórico aos con­

ceitos de política e nação. Na mesma dimensão, tornam-se débeis e suspeitos os

conceitos de superação.O dilema parece consistir no fato de que não há alternativas imanentes para

esses conceitos, porque estas alternativas representam condições basilares da

ontologia moderna capitalista, da mesma forma que os conceitos de trabalho, capital e mercado. Isto é, elas representam suas próprias categorias. Se se entende que a ontologia é determinada não antropológicamente ou trans-his- toricamente, mas sim historicam ente, então define-se um campo histórico determinado através dos conceitos ou categorias ontológicas da sociabilidade

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em termos marxistas: uma forma de sociedade ou um modo de vida e de produ­ção. O sistema moderno de produção de mercadoria consiste em uma ontolo­gia histórica desse tipo.

No interior desse campo existem freqüentemente alternativas e discussões que se movimentam sempre nas mesmas categorias históricas e ontológicas. A crítica e a superação dessas categorias parecem impensáveis. Assim, é possível inclusive criticar determinada política e substituí-la por outra; mas no interior da ontologia moderna é impossível criticar a política em si mesma e colocar em seu lugar um outro modo cie regulação social. Para isso não se criou ainda con­ceito algum. Está disponível apenas o conteúdo determinado respectivo, mas não a forma categorial ou o modo de todos os conteúdos. O mesmo vale para as categorias de nação, Estado, direito, trabalho, dinheiro e mercado, e também de indivíduo, sujeito, relações de gênero (masculinidade e feminilidade social). Freqüentemente, a estas formas categoriais podem ser atribuídas especificida­des conteudísticas diferentes; no entanto, a categoria própria ou o modo social correspondente não está jamais à disposição.

Os métodos e recursos disponíveis da moderna ciência social não dão mais conta do reconhecimento analítico de que o processo de globalização torna nação e política obsoletos. Não se trata mais — como até agora— da substitui­ção de um conteúdo que se torna obsoleto por um novo conteúdo na mesma forma social, como a substituição de uma constelação política dominante por outra; por exemplo, a superação do poderio mundial exercido pelos Estados Unidos por um novo bloco de poder euro-asiático ou a política econômica neo­liberal pelo retorno ao paradigma keynesiano. Mais do que isso, a globalização questiona o modo político e a forma nacional em si mesmos.

Com isso, a análise corrente afirma mais do que sabe; involuntariamente ela tangencia, de forma geral, o limite da ontologia moderna mediante a visão da perda da capacidade de regulação do Estado nacional e da política. Quando cai uma categoria, caem todas as demais como peças de dominó. Pois a forma­ção histórica do sistema moderno de produção de mercadorias pode apenas existir como um contexto categorial, no qual uma condição básica pressupõe uma outra e as diversas categorias determinam-se mutuamente.

Não se trata também de que a perda de competência da política deixe a eco­nomia desassistida ou permita que ela transcorra sem freio; ao contrário, a polí­tica se constitui no meio de regulação do sistema moderno de produção de mer­

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cadoria, que não pode funcionar economicamente sem esta regulação. Mesmo a globalização, que explode os limites nacionais e destrói a política como forma de regulação, é condicionada, por sua vez, pelo fato de que o “trabalho abstrato” (Marx), como forma da atividade humana produtiva e geradora de valor e da mais-valia, é substituído gradualmente pelo capital material. A conseqüente “desvalorização do valor” obriga o managements racionalização transnacional da produção. Na mesma medida em que o capital material, operacionalizado cientificamente, substitui o trabalho, o capital é “de-substancializado” e a “valo- ração do valor” (Marx) chega a limites históricos; a “desvalorização” de nação e política é tão-somente uma conseqüência deste processo. Mas, uma vez diluída a estrutura categorial das formas de produção, reprodução e regulação, tornam- se obsoletas também as formas da individualidade, do sujeito e de sua determi­nação androcêntrica de gênero.

O que parece ser em um primeiro momento uma crise particular da polí­tica e de seus limites nacionais é na verdade uma crise da ontologia moderna. Uma tal crise categorial exige como resposta uma crítica categorial. Mas para isso não há nenhuma representação ou conceito. Até o presente, toda crítica era imanente em suas categorias, relacionava-se apenas a conteúdos determinados, e não a formas e modos ontológicos do sistema moderno de produção de mer­cadorias. Daí a paralisia atual do pensamento teórico e da ação prática. A admi­nistração planetária da crise ontológica não pode pôr fim à diluição em barbá­rie da sociedade mundial definida nos termos capitalistas. Ao contrário, ela própria se torna parte desta barbárie.

Seria necessário uma ruptura ontológica, diante da qual se omite todavia o discurso global, mesmo aquele da esquerda radical. Em seu lugar predominam idéias regressivas que gostariam de inverter o movimento da roda da história para evitar essa quase impensável ruptura ontológica. Enquanto os hardliners da administração da crise querem suprimir da maioria da humanidade sua con­dição própria de vida, a maior parte dos críticos da globalização esconde-se idealmente no passado analisando-a apenas superficialmente: retrocedem aos paradigmas de nação, política e regulação keynesiana, que se tornaram reacio­nários, ou então distanciam-se ainda mais nos ideais de uma sociedade agrária transfigurada. Uma parte integral desta tendência regressiva é o desatino reli­gioso que grassa em todos os círculos culturais e ultrapassa todas as manifesta­ções comparáveis nos fragmentos da história da modernização.

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Para formular novamente um pensamento claro e questionar a ontologia como tal seria necessário entender essa ontologia como historicamente deter­minada. Pois apenas assim torna-se possível voltar o pensamento na direção de sua superação. As categorias do sistema moderno de produção de mercadoria dos séculos XVI a xvm passaram a ser consideradas óbvias e apriorísticas. A crise ontológica atual do século xxi pode ser apenas controlada quando a história da formação destas categorias for não apenas iluminada em detalhe, mas também fundamentalmente reavaliada.

Essa tarefa é, contudo, bloqueada por um aparelhamento ideal, que é tão constitutivo para a modernidade como o contexto categorial de sua reprodução social. O fundamento deste aparelhamento ideal e ideológico em seu caráter ontologicamente afirmativo é constituído pe\a filosofia do esclarecimento. Todas as modernas teorias são igualmente oriundas desta raiz: o liberalismo, o mar­xismo, assim como as tendências burguesas e reacionárias contrárias ao esclare­cimento e à modernidade. Por esta razão, todas elas são igualmente incapazes de formular a crítica categorial e realizar a ruptura ontológica necessária.

As oposições entre liberalismo, marxismo e conservadorismo, outrora mundialmente inquietantes, baseavam-se sempre em determinados conteúdos sociais, políticos, jurídicos ou ideológicos, mas nunca em formas categoriais e no modo ontológico de sociabilidade. Neste sentido, liberais, marxistas e conserva­dores ou radicais de direita podiam ser igualmente “patriotas”, “políticos”, “sujei­tos”, “universalistas androcêntricos”, e “homens de Estado”, amantes do “traba­lho”, do “direito” ou das “finanças”. Diferenciavam-se respectivamente apenas através de nuances conteudísticas. Em razão de seu embasamento conjunto no pensamento do esclarecimento, as ideologias da história da modernização apa­rentemente opostas revelam-se na crise da ontologia moderna como um apare­lhamento total ideológico no sentido de uma persistência conjunta e a qualquer preço nesta mesma ontologia.

A constatação que cintila ocasionalmente no discurso pós-moderno desde os anos 80, de que as ideologias de esquerda, direita e liberal teriam se tornado livremente elegíveis, evidencia o fundamento oculto que lhes é comum. Da mesma forma, o neoliberalismo apoderou-se hoje como ideolo­gia de crise do espectro político total de maneira suprapartidária com varia­ções mínimas. O pensamento pós-moderno teria se dado conta dessa livre ele­gibilidade apenas na forma fenomenológica e superficial, sem questionar

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criticamente a subjacente ontologia da modernidade. Em lugar disso, deseja- se driblar o enfrentamento do problema ontológico rejeitando-se todas as teo­rias relativas a ele como pretensões dogmáticas e totalitárias — como se o pro­blema fosse apenas teórico e não representasse a realidade da forma social de reprodução. Desta maneira, as categorias basilares do sistema de produção de mercadorias não são absolutamente criticadas, mas apenas tiradas de foco sem que se possa, contudo, escapar delas na prática social. A pós-modernidade mostra-se assim como uma parte integral do aparelhamento ideológico total e, da mesma forma, uma derivação da filosofia do esclarecimento, apesar de afirmações em contrário.

O pensamento do esclarecimento, explicitamente, fundou, formulou, con­solidou e legitimou ideologicamente as categorias da ontologia moderna que repontavam antes do século xviii. Por isso, a ruptura ontológica necessária pre­cisa ser acompanhada da crítica radical do esclarecimento e de todas as suas derivações da história da filosofia, da teoria e da ideologia. Ao rejeitar-se o fun­damento, rejeita-se também todo o resto. Exatamente nisso consiste a ruptura ontológica.

As categorias de trabalho, valor, mercadoria, mercado, a organização do Estado e política, direito, universalismo androcêntrico, sujeito e individuali­dade abstrata não foram elaboradas apenas no esclarecimento como conceitos de reflexão de uma ontologia da modernidade criados em processos históricos cegos; o esclarecimento colocou-os em contexto lógico e histórico, no qual eles se tornariam incontestáveis.

As formações sociais agrárias anteriores possuíam também sua própria ontologia histórica; o antigo Egito e a Mesopotâmia, da mesma maneira que a Antiguidade greco-romana, o império chinês, a cultura islâmica e a Idade Média cristã. Mas todas essas ontologias eram de certa maneira auto-suficientes; elas eram definidas em si mesmas, não precisavam medir-se com nenhuma outra ontologia e não se submetiam à pressão de se justificar. Havia relacionamento com culturas externas da mesma época; estes “outros” foram definidos normal­mente como “bárbaros”, “incrédulos” ou “pagãos”. Mas essas definições não se submetiam a nenhuma sistematização histórico-filosófica e representavam somente limitações acessórias.

O sistema moderno de produção de mercadoria, ao contrário, precisava fundar duplamente sua ontologia diferenciando-se de maneira reflexiva das

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sociedades agrárias pré-m odernas. “Reflexivo” não possui aqui uma acepção

“crítica” mas sim o sentido da legitimação de si mesma. A filosofia do esclareci­m ento destacou a obrigatoriedade da justificativa de um novo anseio de sub­

m issão e uso indevido dos indivíduos que ultrapassava todas as ontologias

vigentes até então. As exigências monstruosas colocadas pelo capitalismo, que

objetiva transform ar o processo de vida imediatamente em uma função de sua

lógica de valoração, não poderiam mais fundar-se em uma junção circunstan­

cial de tradições.De um lado, era necessário dar à ontologia especificamente nova a digni­

dade de uma relação natural objetiva. Isto é, era necessário transformar explici­

tamente uma ontologia histórica em uma ontologia trans-histórica e antropo­

lógica— simplesmente humana. Por outro lado, disso resultou a necessidade de

se estabelecer uma relação lógica entre a ontologia m oderna — então trans-his-

toricam ente fundamentada — e todas as form ações históricas anteriores acres­

cidas das culturas contem porâneas não capitalistas (ainda predominantemente

agrárias).

O resultado não poderia ter sido outro, senão im prim ir em todo o passado

a m arca da inferioridade. Isso não representava apenas um a nova visão do

m undo, mas sim um a revalorização de todos os valores. Nas sociedades agrárias,

os hom ens com preendiam -se com o filhos de seus pais não apenas no sentido

ontogenético, mas tam bém no sentido filogenético e histórico-social. Os mais

velhos eram celebrados da mesma form a com o os antepassados e os heróis míti­

cos do passado. A época de ouro localizava-se no passado e não no futuro; o

“ótim o” insuperável era a mítica “prim eira vez”, e não o “resultado final” de um

processo de desempenho.

A filosofia da história desenvolvida no esclarecimento refletia a visão do

m undo não de m aneira crítica, mas colocando-a de ponta-cabeça. Contempla­

vam -se então os antepassados e os“homens primevos” no início da espécie como

os filhos menores, histórico-filogenéticos, que atingiam a maioridade apenas na

ontologia moderna. Todas as situações pregressas pareciam inicialmente "equí­

vocos” da humanidade; transformavam-se então em estágios imperfeitos e ima­

turos da modernidade, que, por sua vez, passava a representar o ápice e o fim de um processo de amadurecimento — o “fim da história” no sentido ontológico. História foi então definida pela primeira vez com o “evolução” a partir de termas

simples ou ontologias para formas mais elevadas e melhores — como “pro-

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gresso”do primitivo até o verdadeiro ser humano da modernidade produtora de mercadoria.

De um lado, as categorias ontológicas da modernidade especificamente históricas foram representadas como se tivessem estado presentes desde sem­pre. Mesmo o conceito de ontologia foi usado como sinônimo para fatos antro­pológicos trans-históricos ou não-históricos. Por isso não se podia mais ques­tionar outras ontologias históricas no decorrer da história, bem como determinar suas especificidades. Ao invés disso, o esclarecimento projetou suas modernas categorias, por ele mesmo constituídas e legitimadas, em todo pas­sado e em todo futuro. Os limites eram dados pelas perguntas: como eram o “trabalho”, a “nação”, a “política”, o “valor”, o “mercado”, o “direito”, o “sujeito” etc. no antigo Egito, entre os celtas ou na Idade Média cristã; ou, ao contrário, que aspecto terão as mesmas categorias no futuro e como serão modificadas? Ao assumir essa caracterização da modernidade nos termos da ontologia, o marxismo pôde, em certo sentido, apenas adjetivar sua “alternativa socialista” como mera nuança conteudística ou regulação no interior da mesma forma social e histórica.

Por outro lado, as sociedades do passado surgiam nessa projeção como categorialmente imperfeitas. O que na verdade eram outras ontologias histó­ricas foi tipificado como “imaturo” em termos categoriais; como ontologias modernas ainda não suficientemente “desenvolvidas” e necessariamente des­figuradas. Também todas as sociedades contemporâneas, ainda não — ou não completamente — compreendidas pela ontologia moderna, foram adaptadas ao mesmo esquema; elas eram vistas como “subdesenvolvidas”, “imaturas” e “inferiores”. A filosofia da história assim construída no esclarecimento serviu essencialmente como ideologia legitimadora da colonização interna e externa. Em nome dessa filosofia da história e seus esquemas, a submissão da sociedade ao sistema de “valoração do valor” — e também de seu respectivo “trabalho abstrato” com todas as exigências intoleráveis e disciplinamentos — pôde ser propagada como historicamente necessária e como parte de uma mudança para melhor.

O conceito de “bárbaros”, emprestado das altas culturas agrárias, surgiu como definição pejorativa da humanidade antiga ou contemporânea, não-capi- talista; “barbárie” é entendida como sinônimo de uma cidadania incipiente no sentido da circulação capitalista (subjetividade de mercado e forma de direito)

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e, com isso, submissão incipiente à moderna ontologia. Não temos ainda nenhum outro conceito à disposição para caracterizar circunstâncias na socie­dade que são destrutivas, violentas e desestabilizadoras do contexto social. Marx já usara criticamente o conceito de “barbárie” ao relacioná-lo tanto à história da formação do sistema de produção de mercadoria mesmo na “acumulação ori­ginal” quanto à história da desagregação da modernidade nas crises capitalistas. A ruptura com a ontologia moderna, que hoje se apresenta, leva-nos, para além de Marx, a determinar como barbárie e a destruir a partir do fundamento o núcleo da máquina social capitalista, o “trabalho abstrato” e sua composição de disciplinamento interior e administração humana equivocadamente entendida como “civilização”.

Essa tarefa da ruptura ontológica é, todavia, complexa e de difícil percep­ção, uma vez que a filosofia da história que foi produzida pelo esclarecimento legitima-se de maneira paradoxal não apenas afirmativamente, mas também criticamente. O aparelhamento ideológico fundado pelo esclarecimento blo­queia a ruptura ontológica necessária exatamente por ter convivido com esse paradoxo. A crítica liberal-burguesa referiu-se sempre a circunstâncias sociais que impediam a imposição da ontologia moderna. Tanto no sentido da coloni­zação interna quanto no da externa, tratava-se dos resíduos deixados pelas for­mações agrárias. Entre estes resíduos estavam não apenas as antigas relações de dominação na forma de dependências pessoais, mas também determinadas condições de vida que significavam atritos para os anseios modernos do “traba­lho abstrato”. Desta forma, foi extinta a maioria dos feriados religiosos para pro­porcionar um caminho livre para a transformação do tempo de vida em tempo funcional da valoração do capital.

O esclarecimento criticava as formas passadas de dependência pessoal apenas para legitimar novas formas de dependência coisificada do “trabalho abstrato”, do mercado e do Estado. Simultaneamente, essa crítica comportava traços repressivos porque estava ligada à propaganda da assiduidade abs­trata, disciplina e submissão às novas demandas do capitalismo, além de des­truir, conjuntamente com a antiga forma de dominação, conquistas humanas universais das relações agrárias. Fundamentalmente, substituiu-se apenas um mal antigo por um novo, em parte ainda pior que aquele. Apesar disso, foi possível para a ideologia liberal do esclarecim ento celebrar as relações modernas ainda nascentes como libertação do fardo feudal e representar a si

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mesma como quem leva a luz às obscuras crendices da Idade Média. A violên­cia feudal era denunciada, enquanto o “trabalho abstrato” da modern idde era imposto aos homens com violência sem precedentes, como expressou Marx. O conceito de crítica, em geral, foi identificado pelo liberalismo do esclareci­mento com a crítica da sociedade agrária, enquanto a modernidade capita­lista, com suas atrocidades, fulgurava como “progresso”, ainda que na vida real ela representasse para a grande massa dos homens coisa muito distinta: uma regressão.

No decorrer do século xix tardio e, mais ainda, no século xx, o conceito de crítica deslocou-se cada vez mais para as relações capitalistas internas, depois que a sociedade agrária praticamente afundou com suas estruturas de depen­

dência pessoal. Não se tratava naturalmente da moderna ontologia e suas cate­

gorias, mas apenas da superação de velhos conteúdos e estruturas através de novas estruturas, baseadas ainda sobre os mesmos fundamentos ontológicos. O

sistema de produção de mercadoria, isto é o capitalismo, não é em sua essência

uma situação estática, mas sim um processo dinâmico de transformação e

desenvolvimento permanentes; mas é também um processo que ocorre sempre

do mesmo modo e nas mesmas categorias formais. É uma luta constante entre

o novo e o velho, mas sempre restrita a princípios novos e velhos dentro do pró­

prio capitalismo. Para o conceito liberal da crítica, o princípio capitalista antigo

entra em jogo no lugar do princípio ontológico antigo, ou seja, no lugar das rela­

ções sociais agrárias feudais que se tornaram irreais. A ruptura ontológica entre

a pré-modernidade e a modernidade foi substituída através da permanente rup­

tura estrutural no interior da modernidade e de sua própria ontologia. Este pro­cesso da dinâmica interna é etiquetado com o selo da “modernização”. Em nome

de uma “modernização da modernidade”, a crítica liberal foi formulada desde

então em suas próprias categorias.O processo de “modernização” permanente nas categorias ontológicas da

própria modernidade experimenta uma legitimação adicional através de uma crítica contrária, complementar e imanente, que se legitima de forma romântica ou reacionária. O “velho” pretensamente bom é conjurado contra o “novo” nefasto, sem que a ontologia moderna, todavia, seja submetida minimamente à crítica. Não se trata com isso sequer de uma defesa da ontologia pré-moderna vigente na sociedade agrária. Mais que tudo, o movimento reacionário ou con-

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servador da antimodernidade é igualmente uma invenção da modernidade e uma derivação do próprio esclarecimento.

Trata-se de uma crítica burguesa ao modo de vida burguês, que desde o fim do século XVIII está carregada com imagens de uma sociedade agrária idealizada e com um sistema de valores pseudofeudais — semelhante ao liberalismo con­trário, que é carregado com os ideais e o sistema de valores da circulação capita­lista (“liberdade”do sujeito autônomo integrado ao mercado etc.). Mas os ideais pseudo-agrários foram formulados desde o início nas categorias da ontologia moderna, e não contra ela. Elas não tinham nada a ver com as ontologias pré-mo- dernas reais; elas eram estranhas a estas. Da mesma forma que o romantismo auxiliou no nascimento da moderna individualidade abstrata, o conservado­rismo e suas versões mais radicais do pensamento reacionário tornaram-se pro­pagandistas do nacionalismo moderno e de sua legitimação etno-ideológica racista e anti-semita. No éthos do trabalho protestante e no darwinismo social existia sempre uma reciprocidade de conservadores e reacionários com o libe­ralismo que remonta às raízes comuns no pensamento do esclarecimento.

Quanto mais empalidecia a referência do pensamento conservador e rea­cionário à idealizada sociedade agrária, mais nítido precisava ser seu posiciona­mento no interior da moderna ontologia e de sua dinâmica. Neste contexto, a corrente romântica e reacionária seguiu o mesmo caminho do liberalismo, mas emitindo sinais contrários. De um lado, a crítica liberal, como protetora de um novo capitalismo, defendia uma permanente “modernização da modernidade” nas relações internas do capitalismo; de outro, a crítica reacionária e conserva­dora, protetora do velho capitalismo, respondia denunciando o sentimento de desmoralização e de desagregação produzido pelo novo capitalismo.

Uma vez que esta polaridade imanente marcava, todavia, o mesmo campo ontológico, sua oposição imanente formava ao mesmo tempo uma blindagem deste campo contra uma possível metacrítica. A partir das demandas intolerá­veis aos seres humanos, do mal-estar e do potencial destrutivo do sistema moderno de produção criava-se uma tensão sempre crescente que podia ser permanentemente conduzida ou desviada para a movimentação interna da oposição entre progresso e reação, entre liberalismo e conservadorismo. A des- trutividade da modernidade deveria ser salva pelo último impulso de “moder­nização” (“progresso”), ou, ao contrário, domesticada pelo atavismo à situação presente da modernidade dirigido contra sua própria dinâmica (“conservado-

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rismo” ou “reação ’). E exatamente por isso bloqueava-se a crítica da ontologia social e histórica subjacente a esta oposição.

A oposição interna à burguesia representada ora pelo liberalismo, ora pelo conservadorismo ou pela reação romântica, não se constituía, contudo, no único bloqueio a uma crítica da ontologia moderna. Antes disso, desenvolveu- se uma segunda onda de crítica no interior desta ontologia que se sobrepôs à pri­meira. A segunda onda foi sustentada, de um lado, pelo movimento de trabalha­dores e, de outro, pelos movimentos de libertação na periferia do mercado mundial, dos quais fazem parte a revolução russa e os movimentos e regimes anticolonialistas. Em todos estes movimentos históricos foi elaborada oficial­mente uma crítica fundamental ao capitalismo que se articulava em muitos aspectos mediante o recurso à teoria marxista. No entanto, também esta segunda onda limitou-se fundamentalmente à moderna ontologia do sistema de produção de mercadoria e, com isso, às suas categorias; a retomada de Marx restringiu-se à observação dos componentes desta ontologia retidos pelo pró­prio Marx, enquanto ficaram emudecidos ou foram ignorados todos os demais momentos de sua teoria que iam além disso.

A razão para o fenômeno histórico desta segunda onda da crítica, que se sobrepôs à oposição no interior da burguesia, deve ser buscada no problema designado pela teoria da história e pelas ciências sociais como unão-simultanei­dade histórica”. A ontologia moderna não se desenvolveu estrutural ou geogra­ficamente de maneira uniforme, mas sim em surtos descontínuos.

Nos países do Ocidente que deram origem ao sistema de produção de mercadoria, apenas algumas categorias foram elaboradas, enquanto outras permaneceram “subdesenvolvidas”. Trata-se da formação do sujeito moder­no, da individualidade abstrata e das conseqüentes formas de direito e polí­tica. O esclarecimento e o liberalismo não puderam elaborar estas categorias como abstratas e gerais, igualmente legítimas para todos os membros da socie­dade. O universalismo, formulado primeiramente de maneira teórica, rom- peu-se,em seguida, face aos estratos sociais; a todo custo, iluministas e liberais queriam localizar “o homem” da ontologia moderna apenas na elite mascu­lina. A massa de assalariados e assalariadas era submetida inclusive à disci­plina do “trabalho abstrato”, mas ficava à margem do território ontológico do ponto de vista jurídico e político. Para que a ontologia moderna pudesse ser concluída objetivamente e não pessoalmente, ela precisava ser generalizada.

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Apenas com a integração política e jurídica era possível tornar perfeita a sub­missão categorial do homem.

A partir dessa constelação, o movimento dos trabalhadores no Ocidente assumiu a função específica da “modernização da modernidade”, que consistia na luta pelo reconhecimento de assalariados e assalariadas como sujeitos inte­grais dentro do direito, da política e na participação no Estado (direito de voto, liberdade de coalizão e de assembléia). Com isso bloqueou-se a crítica catego­rial também por esse flanco. Em vez da ruptura ontológica, o movimento dos trabalhadores deu preferência à finalização da ontologia moderna. Ele assumiu em parte o papel do liberalismo na medida em que universalizou determinadas categorias modernas. O liberalismo mostrara-se incapaz disso e revelou, em certo sentido, um aspecto conservador. Conseqüentemente, o movimento dos trabalhadores acusou o liberalismo de traição a seus próprios ideais e assumiu ele próprio os ideologemas essenciais do esclarecimento, incluindo-se aqueles próprios à ética protestante do trabalho.

A moderna ontologia do sistema de produção de mercadoria inclui, no entanto, determinada relação de gênero. Todos os momentos da vida e da repro­dução, sejam materiais, psicossociais ou simbólico-culturais, assumem uma conotação simbólica e são na prática delegados às mulheres mediante todos os desenvolvimentos históricos e internos a esta ontologia. O reconhecimento das assalariadas — e, em geral, das mulheres — na sociedade burguesa como sujei­tos no sistema jurídico e na vida política— negado pela maioria dos filósofos do esclarecimento — possuía validade restrita mesmo após a segunda onda da crí­tica imanente: de um lado, elas se movimentam nas esferas oficiais da sociedade, mas, ao mesmo tempo, mantêm uma perna “do lado de fora” porque precisam representar os momentos de cisão e não integrados de maneira sistêmica. Neste sentido, a ontologia moderna não se constitui em uma totalidade fechada, mas sim em uma totalidade rompida e contraditória em si mesma, mediada pela “relação de cisão” manifestada nas relações de gênero (Roswitha Scholz). Para corresponder à relação estrutural de cisão no contexto da ontologia moderna, o reconhecimento burguês das mulheres deve ser mantido de forma imperfeita e incompleta. O indivíduo íntegro, abstratamente definido, é, na realidade, dotado de masculinidade, da mesma forma que o universalismo abstrato é androcêntrico exatamente por isso.

Fm grandes dimensões repetiu-se a dialética afirmativa do reconheci*

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mento burguês aos movimentos da periferia pela independência nacional e par­ticipação autônoma no mercado mundial. Neste caso, a crítica do capitalismo se baseou essencialmente na estrutura da dependência colonialista e pós-colonia- lista em relação aos países ocidentais mais desenvolvidos, mas não nas categorias sociais básicas. Aqui também se tratava de um reconhecimento perfeitamente assentado na ontologia moderna, mas não em sua crítica e em sua superação. Desta forma, tanto a revolução russa como a chinesa e os posteriores movimen­tos de libertação no hemisfério sul assumiram uma função no âmbito da “modernização da modernidade”, que consistia na formação recuperadora de economias e Estados nacionais na periferia. Conseqüentemente, também este movimento histórico precisava estar baseado nas idealizadas categorias da modernidade e em sua legitimação através do esclarecimento, mantendo-se preso, portanto, ao universalismo androcêntrico.

A não-simultaneidade no seio da moderna ontologia produziu um declive do desenvolvimento em termos geográficos ou no próprio interior da socie­dade, que reclamava um posicionamento tanto da crítica aparentemente radi­cal como da crítica liberal e do esclarecimento. O movimento dos trabalhadores dos países ocidentais, as revoluções do Leste e os movimentos de libertação do hemisfério sul representam apenas variantes distintas de uma “modernização recuperadora” no contexto dessa desigualdade. Tratava-se de ascender ao sis­tema de produção de mercadoria, e não de sair dessa ontologia histórica. Essa opção podia ser positivamente ocupada pelas noções de “progresso” e “desen­volvimento”, enquanto o sistema mundial como um todo dava espaço para uma subseqüente “modernização da modernidade”.

Este espaço para o desenvolvimento não existe mais. Na terceira revolução industrial, a ontologia moderna depara-se com limites históricos. Tornam-se obsoletas mesmo as categorias nas quais transcorreu o processo total de moder­nização, como mostram com clareza o “trabalho”, a nação e a política. Com isso expirou também a não-simultaneidade no interior do sistema de produção de mercadoria. Mas isso ocorreu não porque todas as sociedades deste mundo teriam alcançado o mais alto nível de desenvolvimento moderno ou porque tenham sido nivelados os declives ou, ainda, porque tenha sido alcançada uma positiva simultaneidade planetária em níveis equivalentes. A não-simultanei- dade expirou em razão do fato de que o sistema de produção de mercadoria esta­ria afundado na crise ontológica. Tanto faz o nível de desenvolvimento alean-

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çado pelas sociedades em particular: todas elas são apanhadas em mesma me­

dida pela crise ontológica ou categorial.As diferentes sociedades encontram -se ainda em situações totalmente

diversas nos planos material, social, político etc. Muitos países estão apenas nos primórdios do “desenvolvimento” moderno; outros estão empacados a meio caminho. Mas o declive não mobiliza nenhuma dinâmica adicional de “moder­nização reparadora”. Fie gera, ao contrário, uma dinâmica da barbárie. A crise ontológica produz uma simultaneidade negativa, uma “decadência em termos mundiais” das categorias modernas, que transcorre sucessivamente sob condi­ções inalteradas de desigualdade. Não existe volta para a antiga sociedade agrá­ria, mas, uma vez ocorrido, o desenvolvimento nas formas ontológicas moder­nas passa a ser desmontado. Indústrias inteiras são paralisadas; continentes inteiros são deixados à própria sorte; e, mesmo nos países centrais do Ocidente,

a crise crescente passa a ser apenas administrada sem perspectiva de mudanças.Por toda parte e em todos os níveis da esgotada ontologia capitalista, a crise

atinge não apenas as categorias capitalistas, mas tam bém a relação de cisão determinada pelas questões de gênero. As relações de gênero ficam também

“fora de controle”; torna-se frágil a identidade masculina da subjetividade com­

pleta e unidimensional de trabalho abstrato, direito, política etc. Ela se decom­põe em uma situação de “selvageria” (Roswitha Scholz), que se torna compo­nente integral da tendência à barbárie e libera novos potenciais de violência

gratuita contra mulheres. A barbárie não pode mais ser estancada através de um

mero e já fracassado reconhecimento imanente das mulheres: isso só seria pos­sível mediante a ruptura ontológica com a totalidade do campo histórico da mo­dernidade capitalista, na qual é imanente a relação de cisão determinada pelas questões de gênero.

Em todo lugar, a mesma crise ontológica paralisa a crítica ainda mais do que antes. A crítica socialista ao capitalismo, imanente em suas categorias e afir­mativa ontologicamente, possui paradigmas oriundos da não-simultaneidade; ela está tão profundamente enraizada que nada mais pode ser pensado. A reite­ração fantasmagórica de suas concepções cai no vazio porque não é alcançado o nível exigido da crítica categorial e da abrangente ruptura ontológica. De certa maneira, tornaram-se conjuntamente reacionários o liberalismo, o conserva­dorism o e o m arxismo tradicional. As ideologias da modernização decom­põem -se e m isturam -se umas às outras. Esclarecim ento e contra-esclareci-

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mento tornam-se idênticos. Hoje existem comunistas anti-semitas e liberais racistas, iluministas conservadores, socialistas radicais de mercado e utopistas

sexistas e machistas. Os m ovim entos sociais recentes m ostram -se até agora impotentes diante dos problemas da crítica ontológica e da simultaneidade

negativa. Apesar de serem distintos os pressupostos herdados do passado, estes problemas podem ser formulados e solucionados apenas por uma sociedade

planetária.

Traduzido do alemão por Marcos Branda Lacerda

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A teoria da cisão de gêneros e a teoria crítica de Adorno

Roswitha Scholz

Nos anos 90, o feminismo académico foi dominado por teorias pós-estru- turalistas. Diferentemente dos anos 70 e 80, princípios marxistas foram margi­nalizados. Naquele momento estabeleceu-se um retorno a concepções cultura- listas no lugar de se buscar uma compreensão da totalidade que estivesse em condições de explicar desenvolvimentos recentes, como a queda do socialismo real. A situação mudou novamente. Em face de mais um acirramento das con­dições econômicas e da crescente importância assumida pela “questão social”, aumentou também o interesse por uma crítica da “economia política”. Mas, com isso, o sexismo, assim como o racismo, correm o risco de ser reduzidos neste novo contexto apenas a “contradições secundárias”.

Neste trabalho gostaria de abordar alguns momentos centrais da teoria da cisão de valor que desenvolvi como contraconceito no contexto intelectual da época culturalista dos anos 90. Essa teoria associa-se, de um lado, ao mais recente desenvolvimento da crítica de valor contida na teoria marxista e, de outro, à teoria crítica de Adorno. No meu ponto de vista, Adorno forneceu vários argumentos para uma crítica do androcentrismo que precisam ser modi­ficados e trazidos para o contexto da contemporaneidade. Trata-se, a seguir, apenas de alguns aspectos da ligação entre a teoria da cisão de valor e a teoria crí­tica de Adorno. Essa crítica não se resolve em apenas dez páginas; o próprio

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Adorno destacou em relação a Hegel que uma teoria dialética não se deixa apre­sentar em poucas linhas.

Em minha argumentação ficará claro o significado fundamental da relação de gêneros no sistema patriarcal de produção de mercadoria. A relação de gêne­ros não pode ser degradada, de maneira alguma, a uma contradição secundária, como ocorre habitualmente nas teorias tradicionais, incluindo-se o marxismo. Na cisão de valor que afirmo, trata-se antes de um princípio formal central da socialização estabelecida pela união de capitalismo e patriarcado. Gostaria de oferecer um esboço do que se deve entender com este conceito, para então abor­dar mais precisamente a ligação que se estabelece com a teoria crítica de Adorno. Antecipo que tocarei apenas de passagem nas diferenças com outras teorias femi­nistas desenvolvidas na Alemanha, também associadas às idéias deste pensador.

1. Em consonância com o desenvolvimento da teoria crítica marxista, e diferentemente das teorias marxistas tradicionais, a teoria da cisão de valor parte do princípio que não a apropriação jurídico-subjetiva da mais-valia, mas mais fundamentalmente o próprio valor como relação social do trabalho abs­trato — isto é, o fetichismo da mercadoria — se transforma no escândalo da socialização capitalista. A crítica da mais-valia, não reduzida à “apropriação pri­

vada”, mas tomada como crítica de um “sujeito automático” que objetiva a si mesmo (M arx), precisa tornar seu objeto a forma de valor enquanto tal. No meu entender não é suficiente essa determinação (negativa) de um princípio formal de sociedade. Pois, de acordo com a teoria da cisão de valor, precisam ser consi­deradas igualmente tanto as atividades reprodutivas femininas quanto os senti­mentos associados a isto, as particularidades, as posições, que, como se acredita, são dissociadas do valor. As atividades reprodutivas da mulher, a educação dos filhos, os afazeres domésticos e mesmo o “amor”, tomado como momento da re­produção de conotação feminina, possuem outra forma e qualidade do que o trabalho abstrato da economia de produção; estas atividades não podem ser abarcadas pelo conceito de trabalho. Trata-se nelas, por exemplo, de perder tempo, ao invés de ganhar tempo como na esfera do trabalho abstrato realizado para o mercado.

Se se elege como ponto de partida uma estrutura do tipo: vida privada = mulher, vida pública = homem, isso não quer dizer que o patriarcado “se esta­belece” apenas na esfera privada. É bom lembrar, por exemplo, que mulheres

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não eram responsáveis apenas pelos momentos divididos da reprodução, mas eram também profissionalmente ativas na esfera do trabalho abstrato. Masa cisão de valor ocorre também no setor profissional, uma vez que mulheres rece­bem em média menos do que homens, possuem menos chances de ascensão profissional etc. A estrutura da cisão de valor caracteriza portanto toda a socie­dade em todas as esferas e setores.

O valor e sua cisão relacionam-se entre si de forma dialética. Não existe uma relação hierárquica entre eles; ambos nascem separadamente, um está contido no outro e, com isso, a compreensão da cisão dispensa o emprego de categorias econômicas. Desta forma, a cisão de valor pode ser entendida como uma lógica sobrejacente que se propaga pelas categorias internas estabelecidas na forma de mercadoria. Neste sentido, a cisão de valor implica também uma relação psicos­social específica: determinadas características, posicionamentos e sentimentos (sensualidade, afetividade, fraqueza de caráter e baixo poder de compreensão etc.) são menosprezados, projetados “na mulher” e separados do sujeito mascu­lino, construído, por sua vez, como racional, forte, detentor da capacidade de rea­lização e imposição etc. Conseqüentemente, é necessário considerar também a dimensão psicossocial e simbólico-cultural no tocante à estrutura da relação de cisão: com isso, o sistema patriarcal de produção de mercadoria deve ser enten­dido como um modelo civilizatório, e não apenas com o um sistema econômico.

Nesse contexto, a cisão de valor representa igualmente uma metateoria, uma vez que não se pode partir do princípio que a ela correspondem imediata­mente os indivíduos masculinos e fem ininos em piricam ente determinados. Homens e mulheres não se integram a esta estrutura numa relação de um para um, nem podem dispensar as respectivas designações.

Como um princípio formal da sociedade, a cisão de valor está submetida também à transformação histórica da mesma maneira que o próprio valor; ela deve ser pensada como um processo histórico. Verifica-se aí que as modernas concepções de gênero e as formas de existência correspondentes a elas surgiram, de um lado, apenas no contexto da institucionalização do “trabalho abstrato” para o mercado e, de outro, do divergente trabalho doméstico. Nas eras pré- modernas não existia a mulher como dona-de-casa, assim como não existia o homem como provedor de família. De maneira geral, é necessário constatar que as concepções culturais de masculinidade e feminilidade podem variar enorme­mente fora do contexto moderno ocidental e não apresentam traços unitários.

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Na pós-modernidade, a estrutura da cisão mostra uma face diversa daquela da modernidade “clássica”. A tradicional família nuclear desintegrou-se e com ela diluíram-se também as modernas relações de gêneros vigentes até hoje. Em muitos aspectos, mulheres são colocadas em igualdade com os homens pelo menos nos países ocidentais (por exemplo, na questão da formação educacio­nal). Ao contrário do antigo ideal da mulher do lar, as mulheres, então indivi­dualizadas, são vistas como “duplamente socializadas”;1 elas são responsáveis, portanto, por família e profissão. No entanto — ou conseqüentemente — , ao contrário dos homens, elas continuam sendo primariamente responsáveis pelas atividades reprodutivas cindidas, continuam recebendo salário inferior ao dos homens, possuem ainda menores chances de ascensão etc. Portanto, com a era da globalização temos de lidar não com a superação do patriarcado, mas apenas com seu declínio à selvageria, uma vez que as instituições do trabalho e da famí­lia diluem-se cada vez mais na crise do sistema de produção de mercadorias sem que outras formas de reprodução sejam colocadas em seu lugar.

Para uma grande parte da população— também nos assim chamados países desenvolvidos — isto significa que a mulher precisa viver sob condições que são conhecidas pelo menos parcialmente nas favelas dos países do Terceiro Mundo: mulheres são responsáveis igualmente pelo sustento e pela vida (ou sobrevivên­cia). De maneira crescente, elas são integradas ao mercado mundial sem terem a chance de garantir a própria existência. Elas educam os filhos apenas com a ajuda de parentes e vizinhos do sexo feminino. Os homens vão e vêm, saltam de emprego em emprego e de mulher em mulher, para a qual elas têm eventualmente que pro­ver sustento (em princípio, o contrário é também possível). Com a precariedade crescente das condições de trabalho e a erosão das relações tradicionais de família, o homem não possui mais a função de provedor da família. No entanto, não desa­pareceu de maneira alguma o modelo hierárquico da relação de gêneros.2 Apesar de todas as diferenças que é preciso ter em conta, hoje isso é mundialmente válido.

2. Na Dialética do esclarecimento, Horkheimer e Adorno oferecem algu­mas possibilidades de adesão à teoria da cisão de valor. Algumas citações dei­xam isso claro:

A humanidade precisou praticar crueldades contra si mesma até que fosse criado

o Eu, de caráter humano idêntico, objetivamente determinado; e algo disso

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repete-se ainda na infância [...]. Quem deseja o êxito não pode dar ouvidos à

sedução do irrecuperável; e conseguirá alcançá-lo apenas quando ignorá-la de

fato. A sociedade sempre cuidou para que isso acontecesse. Despertos e concen­

trados, todos aqueles que trabalham têm que olhar para trás e deixar intocado o

que ficara de lado. Ainda com mais esforço eles precisam aferrar-se à sublimação

da pulsão que pressiona para a dispersão. Assim tornam-se práticos.'

Como é sabido, Horkheimer e Adorno remontam através da Odisséia até a Antiguidade: Ulisses deixa-se amarrar ao mastro para resistir ao som das sereias. Considero problemática esta regressão histórica de longo alcance e leio a Dialé­tica do esclarecimento mais como uma expressão em primeira linha da história da constituição da sociedade moderna capitalista e da subjetividade moderna, na qual a teoria marxista é associada implicitamente à psicanálise.

A meu ver, Andrea Maihofer expressa-se corretamente com respeito a isso:

Fenômenos independentes entre si, como a produção de mercadoria capitalista, a

racionalidade instrumental, a dominação da natureza, a dominação patriarcal e

burguesa, a subjetividade “masculina” etc., passam a ser vistos em um contexto

estreito e integrado de surgimento e reprodução. Ao contrário do que se supõe fre­

qüentemente, isso não é pensado no sentido de um contexto dedutivo econômico

simples e monocausal, segundo o qual tudo tem a ver com tudo, já que afinal tudo

é a forma funcional de manifestação do “ser” nos termos da economia.4

A relação com a teoria da cisão de valor é aqui evidente. O sujeito (mascu­lino) fragmenta suas pulsões e emoções; ele precisa ser controlado e contido. Com isso passa a existir uma dialética entre dominação e submissão ou auto- submissão.

Ao mesmo tempo, Horkheimer e Adorno reconstroem o discurso patriar­cal e capitalista de gênero; eles não repetem simplesmente os estereótipos bur­gueses de gênero, mas representam sua constituição de maneira crítica. Implici­tamente levam em consideração também o nível simbólico-cultural. Eles não entendem o capitalismo patriarcal como um modelo civilizatório redutível à economia. No entanto, não chegam à representação fundamental e à crítica da relação de cisão de valor como seu núcleo constitutivo. Suas observações sobre a relação de gêneros possuem em primeira linha um caráter descritivo.

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Neste contexto, torna-se problemático que o princípio de troca em Adorno tem validade como “fato fundamental” da sociedade da modernidade, e não o valor, o trabalho abstrato, como relação de produção — para não falar na cisão de valor como relação de reprodução mais abrangente. Pode-se verificar em Horkheimer e Adorno uma abreviação do recurso teórico da circulação, sobre o qual não posso aqui me estender. Certamente eles recorrem, muito menos que o marxismo tradicional, à categoria social de classe que, para eles, representa apenas um epifenómeno da troca.

Horkheimer e Adorno descrevem o que acontece então com “a mulher” da seguinte maneira: “Como representante da natureza, a mulher tornou-se na sociedade burguesa a imagem enigmática da acomodação e impotência. Ela espelha para a dominação a mentira fútil que coloca a superação da natureza no lugar de irmanar-se com ela”.5

Para Horkheimer e Adorno tratava-se na Dialética do esclarecimento, em face do nazismo, da seguinte questão: “Por que a humanidade afunda em uma nova modalidade de barbárie em lugar de assumir uma condição realmente humana?”.6 Para eles, a superação do capitalismo tornou-se desde então funda­mentalmente impossível. A célebre imagem da “garrafa lançada ao mar” signi­fica a mesma coisa.7

Como filhos de seu tempo, Horkheimer e Adorno não podem ainda vis­lumbrar novos processos de barbárie no bojo do “colapso da modernização”;8 eles não possuem os meios de chegar ao diagnóstico de um “declínio à selvage- ria do patriarcado” no decorrer da pós-modernidade.

Certamente, vêem com ceticismo a crescente profissionalização da mulher em marcha já em seu tempo e falam neste contexto de uma “dissociação do amor”.9 Mas aqui também se mostra uma diferença em relação à minha crítica da cisão de valor: a esfera fragmentada, a família não é refúgio algum, não é nenhuma “outra instância” positiva, como parece ser para Horkheimer e Adorno, mas sim um componente imanente do patriarcado da produção de mercadorias.

3. Mas então seria possível objetar que hoje não existe mais a relação de gêneros em sua versão dualista clássico-moderna da forma como Horkheimer e Adorno a conheciam. A clássica submissão da mulher não existe mais. Mulhe­res se tornaram “pequenos seres autônomos”,10 que, em princípio, necessitam impor-se por si próprias. Na visão de alguns, o patriarcado acabou enquanto

■ fâh n iu

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estrutura fundamental da sociedade, embora ainda se verifiquem desvantagens relativas à condição da mulher.

Contudo, a teoria de cisão de valor não se tornou irrelevante com estas transformações empírico-históricas; ela assume a posição de Adorno manifes­tada em seus seminários de introdução à sociologia:

que de um lado está o essencial... o interesse nas regras segundo as quais a socie­dade se orienta — sobretudo nas regras que expressam a razão das coisas terem ocorrido da forma como ocorreram [... ]; que estas regras são então modificadas e possuem validade apenas da maneira com que elas realmente existem; e que, em um terceiro estágio, a tarefa da sociologia é conceituar teoricamente, a partir da * essência, os desvios entre essência e aparência, ou então possuir a coragem de fato de sacrificar e não propagar mesmo dialeticamente conceitos essenciais ou regras de validade geral que são simplesmente incompatíveis com os fenômenos."

O que isto significa no contexto da crítica da cisão de valor, um contexto que 3 Adorno não tinha diante de si? Da perspectiva da teoria da cisão é decisivo insistir t no sentido de uma dialética de essência e aparência e não se deixar desviar equivo­cadamente para o diagnóstico do “fim do patriarcado” através de fatos empirica­mente verificáveis, como a individualização pós-moderna de mulheres como “duplamente socializadas”. Mais do que isso, a cisão de valor tem que ser definida ainda como um princípio formal da totalidade social em um novo momento his­tórico; ela continua sendo constitutiva, já que não foi nunca superada positiva­mente, e segue alastrando-se sobre a reprodução. Para dizer mais uma vez, isso abrange em novas configurações pós-modernas a dimensão material, psicossocial e cultural-simbólica e, portanto, também todas as esferas e setores da sociedade.Por conseguinte, as recentes transformações empíricas da relação de gêneros pre­cisam ser entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da cisão de valor.

Com isso, sobretudo o desenvolvimento da força produtiva e a dinâmica do mercado, baseados eles mesmos na cisão de valor, solapam seus próprios pres­supostos porque provocam o distanciamento das mulheres de seu papel tradi­cional; conseqüentemente, no bojo dos processos de individualização desperta­se em suas consciências a já existente “dupla socialização”. Assim, a partir dos anos 50, um número cada vez maior de mulheres da classe média na República Federal da Alemanha é absorvido pelo setor produtivo; a formação intelectual de mulheres nesse meio-tempo iguala-se à dos homens — em razão, entre ou-

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tras coisas, dos processos de racionalização do serviço dom éstico; observa-se ainda que um núm ero crescente de mães passou a exercer atividades profissio­nais e que se tornou possível o p lanejam ento da m aternidade em razão dos meios anticoncepcionais e tc .12 Em suma: existe já há m uito tem po a tendência

para a forte integração das m ulheres na sociedade “oficial” que no patriarcado

da produção de m ercadorias possui conotação m asculina.

Apesar disso, ao contrário dos hom ens, as mulheres continuam responsá­

veis pela vida d om éstica e pelos filhos nas cond ições m odificadas da pós-

modernidade; continuam raram ente próxim as das alavancas do poder na esfera

pública; recebem na média salários inferiores aos dos hom ens etc. Não se chega

portanto a uma superação, m as apenas a um a alteração da estrutura da cisão de

valor: a “dupla socialização” ganha um a nova qualidade. Mulheres não são mais,

como no passado, objetivam ente apenas “duplam ente socializadas”; sob as sel­

vagens condições de crise do patriarcado, elas não se fixam mais ao m odelo da

vivência m eram ente m aternal e dom éstica.

4. Colocado desta form a, é notável a validade da seguinte avaliação de H or­

kheimer e Adorno feita na D ialética do esclarecim ento sobre a essência da socie­

dade de hoje. Trago aqui esta avaliação para então passar às premissas epistem o­

lógicas da crítica da cisão de valor no sentido de um a lógica da identidade:

Como dominador, o homem nega à mulher a dignidade de sua individuação. Ela

é, socialmente, o exemplo da espécie, representante de seu gênero e, por isso, uma

vez totalmente contida na lógica masculina, simboliza a natureza, o substrato de

uma irrevogável subsunção ideal, de uma irrevogável submissão real. A fêmea,

enquanto suposto ser da natureza, é um produto da história que a desnatura.11

Para H orkheim er e A dorno, foi a razão instrum ental, a lógica da identi­

dade, que culm inou com o exterm ínio do “ou tro” no nazismo. Eles abordam a

lógica da identidade p red om in an te fu ndam entalm ente em con ju nto com a

dominação da natureza no contexto do princípio de troca.

Baseada nos alicerces do pensam ento adorniano, a crítica da cisão de valor

requer para si a crítica da lógica da identidade — a crítica portanto de um pensa­

mento dedutivo que procura estabelecer a ordem de cima para baixo e submeter

a uma lógica ú n i c a o que é especial, contingente, diferente e incerto. No meu

ponto de vista, a forma de pensar da lógica da identidade não corresponde apenas

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à troca, ou melhor: ao valor. Pois não é decisivo simplesmente que o denomina­dor comum, preterindo-se as qualidades, seja a média social da força de trabalho ou o trabalho abstrato que em certo sentido está por trás da forma de equivalên­cia, mas sim que esta, por sua vez, tem novamente a necessidade de limitar e con­siderar inferior o que possui conotação feminina, isto é, a atividade doméstica, as coisas sensuais, afetivas, diferentes, contraditórias e intangíveis.

Contudo, a cisão do feminino não corresponde totalmente ao conceito do não-idêntico formulado por Adorno; em vez disso, essa cisão representa a face escura do valor. A cisão do feminino e m g e r a l torna-se uma pré-condição para que sejam desprezadas a vida leiga, a coisa cientificamente indefinível, contin­gente, e as coisas que tenham sido pouco relevantes nos setores da modernidade de conotação masculina, na ciência, na economia e na política. Tornou-se repre­sentativo um pensamento classificatório que não consegue ver a qualidade essencial, “a coisa em si”, e que não possui por isso a capacidade de perceber ou tolerar diferenças, rupturas, ambivalências etc.

Para a crítica da relação de cisão, isso significa ter em conta o fato de que a cisão de valor, como princípio formal da sociedade no interior do patriarcado, possui uma história não localizada em esferas definidas (pública ou privada) e que não se deixa definir com o instrumental marxista tradicional. Esta estrutura complexa não se manifesta da mesma maneira em todas as partes; ela não pos­sui caráter ontológico e transcultural. Formulado de outra maneira: em uma teoria adequada da cisão de valor trata-se de mostrar seus próprios limites; isto se constitui no mais íntimo objetivo de seus procedimentos. Nesse sentido, trata- se também de apontar, em concordância com Adorno, que os homens e mulhe­res empiricamente determinados não dispensam por completo definições rela­tivas a gênero, mas também não se deixam absorver totalmente por elas.

5. Ao contrário, os distintos níveis (por exemplo material, psicossocial, cul- tural-simbólico) e setores (público, privado etc.) relacionam-se entre si. No entanto, em face da sua objetiva e estreita relação com o nível da cisão de valor, acredito que eles podem ser também considerados uma totalidade da qual a sociedade é constituída em sua essência. Estes setores, momentos e níveis se tor­nam a face real desta totalidade. Portanto, o que Adorno postula em seu discurso sobre a sociologia tem validade também para a teoria da cisão de valor:

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O que se designa como cooperação interdisciplinar não abarca a sociologia. Em

sua prática trata-se de descobrir as formas de mediação das categorias ordenadas

por assunto e implicadas umas nas outras. Ela tem como alvo o efeito imanente de

reciprocidade que se estabelece entre os elementos elaborados separadamente pela

economia, historia, psicología [ .. . ] em relativa independência; ela procura resti­

tuir cientificamente a unidade social implicada nestes elementos e que foi sacrifi­

cada através da ciência, mas não apenas através dela.14

Ou então, para fazer referência a uma outra passagem de Minima moralia: “Por não ser inteiramente preciso, o pensamento deve visar além de si mesmo”.15

No sentido da cisão de valor, totalidade representa sempre uma totalidade fragmentada e rompida; uma totalidade não idêntica a si mesma. Não se trata com isso de uma visão conjunta, interdisciplinar, do tipo eclético: os momentos diversificados necessitam ser relacionados desde o início nos termos de sua essência e no sentido da cisão de valor como um princípio formal da sociedade. Isso posto, vale ressaltar mais uma vez que a categoria da cisão de valor conhece sua limitação; ela não se coloca de forma absoluta em nome de um nível gene­ralizante; e, com isso, se ocupa certamente de reconhecer a verdade própria a ní­veis “particulares”. Ela descarta também um esquema do tipo base-superestru- tura. São constitutivos da estrutura da cisão de valor os níveis psicossocial e simbólico-cultural da mesma forma que o nível material.

6. Conseqüentemente, ao contrário da forma como acontece em algumas teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, diferenças não devem ser colocadas abstratamente, seja na teoria crítica de Adorno, seja em seu desenvolvimento subseqüente através da teoria da cisão de valor. Da mesma maneira que uma concepção tradicional de ideologia, aquelas teorias reproduzem apenas a má realidade pós-moderna e capitalista, em vez de “conceituá-la”.

Na pós-modernidade, a estrutura da cisão de valor passa novamente por uma transformação para além de sua forma clássica mediante um processo de decomposição. Como já demonstrei, ela perde seus marcos institucionais; em face do agravamento crescente da situação econômica, realiza-se aquele proces­so de declínio em selvageria do patriarcado referido acima. Por analogia, modi­fica-se na pós-modernidade a formação de conceitos (pelo menos daqueles que fazem furor em determinado momento). Isso ocorre não apenas no feminismo

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que se mostra sensível às teorias pós-modernas. Os conceitos se tornam leves, fúteis e sugestivos. Na Alemanha fala-se muito de conceitos que são agrupados como palavras de ordem do tipo “sociedade de risco”, “sociedade de aventura”, “sociedade multiopcional” etc. A maioria destes conceitos move-se apenas em nível fenomenológico e oscila livremente do ponto de vista metódico e metodo­lógico. Florescem as contingências, ambivalencias e contradições; tudo parece construído e se torna tão-somente um produto da linguagem, do discurso, da mídia etc. Precisamente um tipo de esquerda pós-marxista dos anos 90 sentia um prazer especial em idealizações desse tipo.

Com a individualização pós-moderna, a dissolução da família e de associa­ções nacionais em grupos familiares parciais, tribalismos etc., surge, em uma teoria correta, a tendência para o retrocesso. Isto é, as teorias implicadas naque­les conceitos possuem bons argumentos, que, em muitos aspectos, terminam por legitimar a diferença. Torna-se claro que não existe apenas uma ligação entre “lógica da identidade e violência”16 e um “desenvolvimento por abstração”, co­mo disse certa vez Gudrun-Axeli Knapp. Na verdade, existe também algo como um “desenvolvimento por concreção”, uma vez que se insiste mesmo abstrata­mente nas diferenças. No nível da sociedade real, estas formas de pensar corres­pondem às múltiplas guerras civis em todo planeta de matizes supostamente étnicos, mas também à acirrada luta competitiva entre indivíduos pós-moder- nos submetidos à jogatina capitalista. O recurso do não-idêntico, da contradi­ção, da ambivalência, diferença etc. tornou-se afirmativo há muito tempo; ele provém de forma livre e solta sobretudo de teorias pós-modernas, sem estabe­lecer relação com um conceito, uma regra geral, uma essência social (negativa e ainda a ser superada), como ocorria ainda com Adorno.

7. Contra as tendências antifilosóficas, pós-modernas e pós-estruturalistas,sustento, portanto, que a realidade social em sua dimensão mundial só pode serabarcada mediante um pensamento contemporâneo, especulativo em termos filo­sóficos e que caminhe na direção de uma crítica radical da relação de cisão de valorcomo estrutura fundamental da sociedade. No front contra o positivismo em gerale as teorias positivistas do sistema representadas, por exemplo, no funcionalismoestrutural deTalcott Parsons, Adorno compreensivelmente insistiu no não-idên­tico em relação à lógica da identidade face ao entorpecimento da sociedade dosanos 50. Com isso, ele alimentou inadvertidamente o carnaval de escolhas da pós-

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modernidade nascente. Esta, no entanto, baseia-se na diferença aparente, sem representar criticamente sua ligação com a lógica da identidade e sem desenvolver um conceito sobre a relação de essência negativa e aparência da sociedade.

Uma teoria crítica modificada, que reflita sobre a cisão de valor como um princípio formal da sociedade, carece de tematizar ainda hoje a possibilidade de transformação social. No tempo das condições “flexibilizadas” e, também, das novas identidades obrigatórias “flexibilizadas”, que têm seu modelo na “dupla socialização” das mulheres, deveria tratar-se da possibilidade de sair da “falsa pos­

sibilidade” — isto é, do aparente arbítrio no interior da relação fetichista não-

superada e sua estrutura fundamental de cisão de valor. Seria necessário colocar

em foco a necessidade da ruptura radical com esta relação estrutural essencial. No

patriarcado de hoje, no qual todas as possibilidades parecem possíveis de fato (a

mudança de sexo, a manipulação sem limites do setor midiático, a quase absoluta

interferência nos fundamentos da “natureza” através da tecnologia genética), seria

apenas afirmativo, como sempre, indicar a mera “possibilidade da possibilidade”,

apesar— ou talvez precisamente em razão — das áridas perspectivas da crise.

Se houvesse, pois, uma liberdade de escolha aos indivíduos pós-modernos

— e poderíamos falar neste sentido de uma “dialética pós-moderna da indivi­

dualização”— , então deveria tratar-se da negação da liberdade falsa e repressiva

no processo atual de degradação social do patriarcado de produção de merca­

dorias. Recorrendo-se novamente a Adorno, tratar-se-ia de “se conscientizar da

natureza no interior do sujeito”.

8. No máximo desde a mudança do milênio e levando-se em consideração

a forma não-superada da cisão de valor, torna-se claro que um mundo sem fron­

teiras, na pespectiva pós-m oderna, é um fantasma em vários aspectos. Isso se torna cada vez mais evidente na maneira com o decorre o “colapso da moderni­

zação” e na crise econômica crescente, portanto no i nterior da própria ‘‘segunda

natureza”. A conseqüência disso, no entanto, não se manifesta na conscientiza­ção de que a cisão de valor e as relações assimétricas de gêneros constituem-se na essência da sociedade (mundial). Mais do que isso, o sexismo, o racismo e o anti-semitismo passam a ser vistos com o contradições secundárias no pensa­mento teórico e na ação prática. Precisamente esta tendência de descuidar da insuperável relação hierárquica dos gêneros revela a força sorrateira do patriar­cado, pretensamente acabado, em sua faceta mais degradada.

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O valor central da cisão de géneros como princípio formativo social e das relações correspondentes de gênero não significa que ela pode ser alçada à con­dição de contradição principal. Em conformidade com as idéias de Adorno, a teoria da cisão de valor não se coloca em minhas considerações, de maneira geral, como a “lógica do Uno”. Em sua crítica da lógica da identidade, essa teoria mantém-se fiel a si mesma e pode apenas resistir se ela própria for relativizada— ou mesmo desmentida — onde for necessário. Isto significa também que é preciso que a teoria da cisão de gêneros garanta um lugar teoricamente equiva­lente para outras formas da discriminação social.

Formulado de outra maneira: exatamente por relativizar-se e, ao mesmo tempo, definir sua importância, trata-se de insistir no conceito de cisão de valor como princípio essencial da sociedade. Isso vai no caminho contrário da regres­são vulgar, materialista e androcêntrica da primeira década do novo milênio. A cisão é um conceito que contradiz a idéia de um mundo pensado como sem- fronteiras. Não posso aqui, no entanto, abordar questões como esta, que podem parecer herméticas em alguns de seus aspectos.

9. Relativamente à teoria crítica de Adorno, é necessário que a teoria da cisão de valor constate que Adorno reconheceu o problema da forma social diferen­temente do marxismo tradicional. Não obstante, a problemática da forma no tocante às relações de gênero limita-se em sua teoria a um caráter descritivo. Ao mesmo tempo, ele resistiu à tentação do marxismo voltado para o movimento operário e, em certa medida, atinou intuitivamente que o nível da forma social não se resume sociologicamente a relações de classe.

Mas, no nível da troca, Adorno ficou de tal maneira a meio caminho que não chegou a vislumbrar explicitamente o valor como condição de produção e a cisão de valor como forma fundamental da reprodução. Em uma maneira pre­ferencialmente descritiva no tocante à relação de gênero, a teoria crítica de Hork­heimer e Adorno entende equivocadamente a circulação como relação social fundamental. Não obstante, ela reconstrói uma ligação da forma social com a relação de gênero que se estabelece como um pressuposto decisivo para a com­preensão teórica das relações sociais no sentido do desenvolvimento ulterior da teoria da cisão de valor.

Traduzido do alemão por Marcos Branda Lacerda

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S o b re Versos para o retrato de Honoré Daumier

Este de quem te esboço o vulto

E que, com sua arte ferina,

Rir de nós mesmos nos ensina,

É um sábio ao qual se deve o culto.

Ele é um satírico, um bufão

Mas a energia com a qual

Nos pinta as seqüelas do Mal

Prova-lhe o imenso coração.

0 seu sorriso não revela

De Melmoth o trejeito abjectoSob a feroz tocha de Alecto

Que os queima, mas também nos gela.

No riso destes, da alegria

Não há senão um travo amargo;O seu, que se abre franco e largo,De uma alma nobre se irradia

iià t - fciaí M i

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Este é certamente o poema mais conhecido sobre o grande caricaturista Daumier e, ao mesmo tempo, um dos menos observados de As flores do mal. Mais exatamente: do pequeno suplemento que o editor de Baudelaire, Poulet- Malassis, publicou em Bruxelas em 1866 (local de impressão fictício: Amsterdã) sob o título Marginália com uma tiragem de 260 exemplares e que lhe valeu mais uma condenação pela justiça francesa por “ultraje à moral pública e religiosa e também aos bons costumes”. Em 1868, o tribunal correcional da cidade de Lille condenou o editor, que fugira do império, a um ano de prisão e ao pagamento de uma multa de quinhentos francos; o poeta não pôde ser punido porque fale­cera no ano anterior.

Entretanto, a homenagem a Daumier não é uma exceção na coleção que abriga os Poemas condenados. Ela é exemplo único na obra de Baudelaire em geral. É possível dizer que se trata de um poema circunstancial, de encomenda, escrito em tempo mínimo pelo poeta em seu exílio em Bruxelas para seu amigo Champfleury. As palavras são lançadas sobre o papel; os versos soam levemente hesitantes com exceção da penúltima estrofe — um tipo de cacofonia tão leve que não nos traz nada à mente, ou, pelo menos, nada de ruim. O poema foi con­cebido primeiro para integrar a História da caricatura moderna como extensão poética para uma peça de crítica de arte — para uma obra que poderia suplan­tar os ensaios de Baudelaire sobre caricatura que estavam para ser publicados em forma de livro. Em uma leitura mais atenta nota-se que este portrait de Dau­mier representa uma crítica de Baudelaire à sua própria teoria do riso e da cari­catura; Baudelaire assinala qualidades presentes tanto na obra do amigo quanto em sua própria personalidade que lhe pareciam incompatíveis com o gênero da caricatura. Apoiando-se, sem dúvida, na teologia cristã, Baudelaire assinalou em seu ensaio Sobre a essência do riso a ligação do riso com o pecado, com o satanismo natural e indefectível de todo ser humano, que se manifesta em risadas, explode convulsivamente e que representaria o meio da caricatura mais providencial e mais pertinente de todos. A “severidade de estilo e pensa­mento”, que Baudelaire admira nos grandes pensadores do catolicismo, foi empregada por ele próprio na crítica dos fenômenos sociais e estéticos de sua época e também da caricatura. A respeito desta última, ele diz em um trecho de seu escrito (que lembra, aliás, a marcha elegante de um poema em prosa) que ela deveria ser incompreensível para um ser inocente — como Virgínia, do conto “Paulo e Virgínia”, do abade de Saint-Pierre. Ele imagina como seria se

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Virgínia viesse a Paris e lá, no coração da civilização, se defrontasse no Palais Royal com uma caricatura. Com o seu code oblique, seu sistema de rupturas e suas segundas intenções, a caricatura dispensa a compreensão intuitiva de corações singelos. A confrontação de uma alma inocente com a caricatura é encenada como um novo pecado nessa passagem de Sobre a essência do riso: a caricatura como fruto da árvore do saber que o artista satânico oferece aos nobres selvagens. Entende-se como a concepção de caricatura em Baudelaire corresponde àquela da arte e da poética modernas? Faz lembrar apenas a antí­tese saudável-corrupta da arte antiga e moderna desenvolvida no poema “Amo a recordação daqueles tempos nus” ou as satânicas e histéricas instruções de lei­tura do “Epígrafe para um livro condenado”:

Se não herdaste o dom hipnótico De Satã, o astuto decano Irias ler-me por engano,Ou me terias por neurótico.2

O elogio a Daumier representa portanto uma revisão da própria poética de

Baudelaire, na medida em que declara subitamente compatíveis certas qualida­des que em outros momentos de sua trajetória seriam mutuamente excluden- tes: sutileza da arte e da alegria, energia satírica e beleza do coração, riso e sabe­doria. Ferina — diz o segundo verso — seria essa arte; mas ao mesmo tempo — assim dá a entender — imediatamente compreensível, conquanto nos ensina a rir de nós mesmos. O pensamento é uma abreviatura do paradoxo com o qual

Baudelaire iniciou suas reflexões sobre o riso e a comicidade na arte: “Fato es­tranho e realmente digno de atenção foi a introdução desse elemento impal­

pável que é o belo mesmo nas obras destinadas a representar para o homem sua própria feiúra moral e física! E, fato não menos misterioso, esse espetáculo lamentável desperta nele uma hilaridade imortal e incorrigível”/ Uma abrevia­tura, entretanto, que desloca a interação entre caricatura e público do nível satâ­nico para o humano — ou humanístico.

A sutileza de Daumier não exige de seu leitor que freqüente a escola do diabo. E o riso que lhe é provocado é também escassamente demoníaco. Um sábio não ri, ou pelo menos en tremblant, não com temor e má consciência, como expresso no ensaio sobre o riso. Aqui, o riso é um sinal de sabedoria, por­

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que testemunha a capacidade do homem de se colocar acima de sua própria tolice, ou da tolice do mundo. Implicitamente, Daumier é considerado um mes­tre da filosofia, um tipo diferente de Sócrates, com o qual ele tem em comum não o demônio, mas sim o nariz arrebitado. Esta associação implícita aproxima-se de uma outra que determina claramente o movimento de todo poema: a associação entre o caricaturista Daumier e aquele que o homenageia, o poeta de As flores do mal cujo desejo é bem semelhante àquele que ele atribui a Daumier e à carica­tura: nos pinta as seqüelas do Mal No provocativo poema em prosa “Aniquilemos os pobres”, que pode ter sido escrito ao mesmo tempo que nosso poema, Baude­laire compara-se explicitamente com Sócrates. Trata-se aí, todavia, de um Sócra­tes ainda adepto do Satanás do ciclo “Revolta” e que simula uma satânica teolo­gia da libertação ao espancar um pobre mendigo para motivá-lo a reagir.

Daumier não sabe ou não quer saber coisa alguma a respeito de tal refina­mento satânico. A exaltação poética de Baudelaire dá razão a ele ao tomar par­tido em favor da ingenuidade do caricaturista, sem evocar nenhuma de suas obras em particular e contra a própria concepção “negra” da crítica social assen­tada na tradição da école satanique. O seu riso é definido como uma careta, co­mo uma caricatura do riso libertador, da alegria inocente— portanto não como uma fatalidade antropológica, mas um fenômeno estético da época. A terceira estrofe retrata, com leveza apenas, a circunstância de que Baudelaire se identi­fica profundamente com o riso satânico de Melmoth, assim como iguala sua pena ao archote de Alecto; ele as retrata simulando falar como um leitor e decla­rando em nome dos leitores uma arte como aterrorizante, sobre a qual ele, como um de seus mais modernos representantes, sentira provavelmente a mesma coisa. (Em seu O idiota da família, Sartre transformou o programa desta poética— O Heautontimoroumenos— em conceito abrangente para toda e — segundo ele — suspeita geração dos modernos pós-1848.) De fato, a terceira estrofe da homenagem a Daumier é uma súmula da autocrítica propugnada em O Heau­tontimoroumenos.

Não sou acaso um falso acorde

Nessa divina sinfonia

Graças à voraz Ironia

Que me sacode e que me morde?

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Eu sou a faca e o talho atroz!Eu sou o rosto e a bofetada!Eu sou a roda e a mão crispada, Eu sou a vítima e o algoz!4

Pode-se perguntar se os poemas dos pobres do Spleen de Paris — Aniquile­mos os pobres!— representam tentativas de romper com a fatalidade da ambiva­lência ou de conduzir a uma energia emancipatória. Tendo a acreditar nesta hipótese. Mas resta sempre um momento da auto-admoestação nessas poesias que há muito ameaça não sua consistência, mas seu efeito, uma vez que sua per­cepção limita-se apenas aos iniciados. Chama a atenção o modo como Baude­laire se identifica com os pobres, com os fracos, os sofredores, os excluídos, os famintos etc. Daumier, ao contrário, mesmo quando representa a miséria, reco­nhece a força de sua gente pobre, sua capacidade para o exercício de uma ativi­

dade, sua dignidade. Também engendra cenários sutis para o encontro entre o rico e o pobre, mas nunca além da experiência, como Baudelaire. Ele ataca asser­

tivamente a burguesia que nega ao pobre o que lhe pertence, seja a justiça ou a

esmola. “Olhamos, compreendemos”, escreveu certa vez Baudelaire sobre a cla­

reza das litografias de Daumier. Segundo uma anedota, em uma visita ao Lou­

vre, Daumier revelou seu encanto por uma tela de Murilo, na qual se via um

jovem pedinte corcunda; com seu indefectível sorriso, Daumier assinalou o que

lhe parecia uma lição de vida: a expressão de alegria daquele jovem que nada

possuía além dela mesma. O poema de Baudelaire dedicado a Daumier corro­

bora esta “saudável” visão de mundo e esboça implicitamente um novo pro­grama para a caricatura a partir de Daumier. A perseguição e punição do mau

realizam-se sob a égide da alegria. O mau é “desmascarado”, mas “sem rancor e sem amargura”, com bonhomie, com benevolência, no lugar do ódio da inconci- liação que quer fixar o outro apenas mediante sua alteridade. No ensaio sobre

caricaturistas, Baudelaire enfatizou esse aspecto da personalidade de Daumier: “Ele [...] freqüentemente se recusou a abordar certos temas satíricos muito belos

e muito violentos porque isso, dizia, ia além dos limites do cômico e podia terir

a consciência do gênero humano”.Melmoth era apátrida, Baudelaire via-se como um desterrado, como um

degradado; Daumier, filho de um vidraceiro e casado com uma costureira, per­maneceu em contato com o povo, sem precisar praticar os tensos exageros inte­

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lectuais a respeito do povo, dos quais Baudelaire — mas também Herzen, Flau­bert ou Heine — passou a zombar com razão por volta de 1848.

É inaudito para Baudelaire o elogio dirigido a um artista — e sobretudo a um artista da arte moderna — em razão da “beleza de seu coração”. Esse elogio é mais do que da boca para fora; ele é indicio de que a arte moderna poderia superar o pecado civilizatório e buscar o humor da sabedoria, o riso da benevo­lência soberana, não apenas deixando de renunciar à energia satírica, mas, ao contrário, para fortalelecé-laainda mais. Visto desta forma, nosso poema— que com sua aparente discrição foi banido nas monografias sobre Daumier — con­tém uma alternativa para a interpretação da história da arte como um museu da melancolia. Essa alternativa encontra sua forma mais concisa no poema “Os faróis”. Alguns poemas da última fase, como o verdadeiramente animado poe­ma em prosa “Os bons cães” — baseado no início em Lawrence Sterne e que, longe do sentimentalismo, faz pensar nas imagens do mercado anual de Dau­mier — , prestam testemunho de que havia uma tendência em Baudelaire de abjurar os métodos da écolesataniquee se deixar inspirar pela grande arte popu­lar republicana de um Daumier, sem, no entanto, abrir mão do que para ele per­manece indispensável: o estilo e a grande retórica, com certeza não necessaria­mente aquela de Satã, mas sim a dos clássicos latinos.

Traduzido do alemão por Marcos Branda Lacerda

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Brecht no cativeiro das forças produtivas

Iná Camargo Costa

As fúrias do interesse privado são as paixões mais violentas, mesquinhas

e odiosas do coração humano.

Marx, O capital

O capitalismo não morrerá de morte natural: ele precisa ser morto.

Para isso é preciso que a luta de classes apareça como uma categoria

natural. Então a humanidade será o objetivo da luta de classes.

Brecht, O processo de três vinténs

CRISE ESTÉTICA E TEÓ RICA

Para explicar que o cinema deveria ser objeto de estudos comparados com

o teatro, Eisenstein argumenta que só é possível dominar a metodologia especí­

fica do cinema através da comparação crítica com formas primitivas mais bási­

cas do espetáculo.1 Neste texto de 1932, o professor está pensando nas conheci­

das objeções que, com o outros veteranos do cinema mudo, fazia aos adeptos do

teatro enlatado no qual patinavam os filmes sonoros, pois ainda estavam longe

do horizonte os desenvolvimentos técnicos que libertariam câmeras e atores da

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prisão imposta pelos executivos dos estúdios submetidos à precariedade técnica dos primeiros microfones.

Mas não era só para explicar que teatro não é cinema ou que bom cinema não é meramente teatro filmado que Eisenstein fazia estudos comparados de teatro, cinema e também de literatura. Ele queria que seus alunos entendessem o cinema como o último rebento da família multissecular do show business, pois achava que sem entender como se deu a industrialização das artes do espetáculo (a maneira conservadora de referir o processo de submissão destas forças pro­dutivas às determinações do capital), nenhuma discussão sobre cinema tem fôlego. Afinal, ele definira cinema como “muitas sociedades anônimas, muito giro de capital, muitas estrelas, muitos dramas”.2

As experiências alemãs de Brecht com esses novos meios de produção3 tam­bém apontam para a mesma necessidade, e seus relatos avançam reflexões obri­gatórias para interessados nas relações entre teatro e cinema. O Processo de três vinténs dá conta do confronto com a empresa que filmou sua Ópera de três vin­téns (direção de Pabst) e os escritos sobre Kuhle Wampe dão conta de uma tenta­tiva, ainda hoje atual, de fazer cinema independente que acabou, por isso mesmo, tropeçando nos obstáculos da distribuição e da censura. Em ambos os casos, Brecht entendeu que participara de dois reveladores experimentos sociológicos e por isso registrou suas reflexões a respeito, pois, ao que tudo indica, percebeu que topara com uma espécie de limite da comédia ideológica do século xx.4

UMA DEMANDA BARATA

Restringindo um processo que consumiu cerca de trinta anos aos fatos que o delimitam— da descoberta do cinema como um ramo lucrativo do show busi­ness em 1895 até o seu controle monopolístico pelo capital financeiro em 1926- 29 — , pode-se dizer que, quando venderam os direitos autorais da Ópera de três vinténs ao estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical enlatado, a última palavra em matéria de novidade cinematográfica, inaugurada oficialmente em 1927, testes de mercado à parte, com o filme da Warner Brothers O cantor de jazz. Quando da assinatura do contrato com a Nero Filmes, em 21 de maio de 1930, talvez nossos artistas não soubessem ainda5 que a corrida pelo controle do mercado cinematográfico mundial estava prestes a se

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decidir por uma espécie de empate técnico: o mundo ficou dividido nesse mesmo ano, em acordo firmado em Paris, entre americanos e alemães que deti­nham o monopólio das patentes padronizadas dos equipamentos necessários à filmagem e exibição de filmes sonoros. Parte do mercado europeu ficou com os alemães, menos a União Soviética, que ficou para os americanos, assim como os Estados Unidos.6 E o padrão americano de produtividade estabeleceu que filmar peças musicais de sucesso era sinônimo de lucros seguros. Também fazia parte da receita americana, após os experimentos franceses, produzir filmes que cor­respondessem tão fielmente quanto possível ao espetáculo teatral, mesmo com alguma “perda de qualidade”, compreensível e aceitável em se tratando de “pro­duto cultural industrializado” (é só ver o caráter abertamente apologético das campanhas de publicidade da época).

A idéia de fazer teatro enlatado para concorrer diretamente com o produto

mais prestigiado do show business foi lançada na França por americanos radica­dos em Paris (os irmãos Lafitte), enredados até o pescoço com a indústria cultu­

ral (jornal e editoras).7 No ano de 1908 eles realizaram a dupla proeza de lançar

um filme com o elenco da Comédia Francesa e, com ele, o gênero “filme de arte”

que desde então é marca comercial. Do ponto de vista mercadológico, a opera­ção significou conquistar para este produto a “classe A”, ou o segmento mais abo­

nado dos consumidores que até então o desprezavam como “coisa de pobre”,

além de trazer para o trabalho nas fábricas a mais alta categoria de trabalhado­res da hierarquia teatral, como Sarah Bernhardt. A partir desse ano, os fabrican­

tes de filmes americanos começaram a assediar os elencos teatrais dos principais

centros produtores (Nova York, Chicago e depois Los Angeles, uma das razões

da migração do cinema para Hollywood), numa longa campanha que só termi­

nou com a vitória da indústria depois da introdução do cinema sonoro. Mas os americanos nunca perderam tempo com essa história de “filme de arte”: seu jogo sempre foi explicitamente assumido como um problema de mercado.

Para um profissional do teatro alemão como Brecht, o caráter reacionário dessa segmentação mercadológica era muito claro: ao mesmo tempo em que rifara o público popular* inicial dos curtas-metragens mudos, o teatro enlatado de longa-metragem, ainda mudo (a definição negociada do padrão para cerca de uma hora e meia de duração data dos últimos anos da década de 1910), conquis­tara o público de classe média requentando os “clássicos” do drama burguês do século xix* e submetendo o amplo repertório técnico já desenvolvido pelos

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cineastas pioneiros à camisa-de-força das exigências e convenções atualizadas daquele drama que, nas práticas teatrais da República de Weimar, estavam devi­damente enterradas, como a própria Ópera de três vinténs testemunha. A intro­dução do filme sonoro apenas completou a operação estético-ideológica Cpara não dizer nada do golpe econômico), radicalizando o problema já instalado nas pantomimas dramáticas.

Essa convicção está por trás de pelo menos um aspecto do mal-entendido presente nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero Filmes,10 que pode ser assim resumido: a companhia cinematográfica estava interessada em somente enlatar a peça, que fora um dos maiores sucessos de bilheteria do tea­tro alemão nos anos de 1928 e 1929, enquanto Brecht, que sabia o que fizera no teatro mas ainda não conhecia o terreno onde estava pisando, acreditou no que diziam as cláusulas relativas a seu direito de adaptação do texto porque achou que a empresa estivesse interessada em fazer do filme um experimento equiva­lente ao realizado no palco. Ele confessa abertamente esta ingenuidade, que demorou um pouco para entender.

Para Brecht, tal experimento começava pela adaptação do texto por ele mesmo, o autor. Não que acreditasse, como rezava o contrato, em propriedade das idéias, mas por acreditar em fidelidade a seu material. Como explicou, se o filme, com as técnicas de que dispunha, não desenvolvesse os materiais que na peça ficaram apenas pressupostos, o resultado, por mais que se aproximasse do ocorrido no palco, ficaria aquém do seu potencial e assim configuraria (como ele acha que aconteceu) um retrocesso artístico. Simplificando bastante a história, digamos que a certa altura ele estava alegremente redigindo o seu roteiro11 quando soube que as filmagens já tinham começado. Dirigiu-se ao local do crime e nem ao menos lhe permitiram ver o que estava acontecendo: foi impe­dido de entrar no estúdio. Abriu um processo contra a empresa e descobriu que, ao contrário do que pensava, na opinião do tribunal e/edescumprira várias cláu­sulas. Para começar, dificultara o trabalho da empresa desde o início, insistindo, por exemplo, em permanecer no sul da França, onde se encontrava, em vez de seguir para Berlim, onde ficava a empresa, para tratar das negociações; um recal­citrante, enfim. Mais grave que isso: mesmo sabendo que a empresa já alugara os estúdios e contratara o elenco, não apresentara a primeira sinopse dentro do prazo estipulado. Por essas e muitas outras, o tribunal concluiu que a empresa

exercia o seu direito ao fazer o que fez: contratar outros escritores e fazer o que

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bem entendesse com o texto “original” (desde que mantivesse a idéia básica).12 Por estes motivos, a primeira sentença foi contra ele. Recorrendo dela, acabou chegando a um acordo pelo qual foi modestamente indenizado.

Não é possível reconstituir agora todas as lições que Brecht aprendeu no processo como um todo, mas vale a pena reproduzir algumas observações cujas conseqüências continuam presentes como um desafio para quem ainda se inte­ressa por teatro. A mais importante: o Processo de três vinténs demonstra até que ponto avançou a transformação de valores intelectuais em mercadoria.13 O pró­prio sistema legal faz parte disso, pois a justiça espera atrás de portas que só se abrem com dinheiro.

O objetivo do processo, já que o artista não tinha dinheiro para abrir as por­tas da justiça, passou a ser o de desenvolver na prática uma crítica de maior alcance às idéias liberais sobre arte no capitalismo. Através dele foi possível demonstrar que a justiça do Estado burguês não hesita em violar suas próprias leis quando está em jogo a proteção dos interesses financeiros do capital. Todos sabem que a lei assegura a inviolabilidade da propriedade intelectual. Mas a vali­dade dessa propriedade é restringida por suas conseqüências econômicas. Quando se trata de cinema, o risco é tão grande que a expectativa de lucro na produção da mercadoria pesa mais que o direito do escritor à sua propriedade imaterial (às suas idéias).14

O cinema só se interessa pela arte se tiver garantias de que terá condição de a violar. E não adianta dizer que a arte não precisa do cinema, pois, sem ele, quem se dedica às artes do espetáculo está privado dos meios de produção ao mesmo tempo em que se vê forçado a falar por meio de aparatos cada vez mais comple­xos, sem os quais nos expressamos através de meios cada vez menos adequados. Independente do gosto geral, as velhas formas (inclusive as impressas) são afe­tadas pelos novos meios e não sobreviverão imunes a eles. O avanço tecnológico sobre a produção literária é irreversível.15

No caso do teatro, é ainda mais evidente o impacto do cinema e é preciso tirar dele as conseqüências avançadas. O tratamento que o cinema dá ao ator, por exemplo, é muito instrutivo. Como nesse meio o personagem é visto de fora, o ator de cinema só interessa segundo a sua função. Qualquer motivação inte­rior é excluída; a vida interior do personagem nunca fornece a causa principal da ação e raramente seu principal resultado. Isto no cinema mudo. Já o cinema sonoro, que depende do grande estúdio, além de jogar esta forma de arte nas

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convenções (vida interior etc., tudo através do diálogo dramático) que o meio tornou ultrapassadas, é ao mesmo tempo o processo em que os produtores (auto­res, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de produção; sinaliza, por­tanto, a proletarização dos produtores. Uma vez transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema, se quiserem fazer arte, e não mercadoria, encontrarão na peça didática um método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos verdadeiros produtores, tema que Wal­ter Benjamin desenvolverá em seguida16 e ao qual retornaremos.

Como o trabalhador manual, o trabalhador intelectual (categoria em que estão os artistas) só tem a sua força de trabalho a oferecer no mercado. Ele éa sua força de trabalho e nada mais que isso. Assim como o trabalhador manual, ele pre­cisa cada vez mais que os meios de produção explorem a sua força de trabalho, por­que a produção intelectual vai ficando cada vez mais “técnica”.17 Aliás, intelectuais e artistas, mesmo sob condições de trabalho ignominiosas, se consideram livres das determinações às quais se submetem os trabalhadores manuais porque enten­dem por liberdade a livre concorrência, e a liberdade a que aspiram é a livre con­corrência na venda das suas opiniões, conhecimentos e habilidades técnicas.18 Eles nem ao menos admitem ser chamados de trabalhadores intelectuais, pois se vêem como empreendedores, ou como pequenos burgueses. Dentre estes há ainda os que acreditam na liberdade de renunciar aos novos instrumentos de trabalho, mas esta é uma liberdade que se exerce fora do processo produtivo, pois não existem mais ciência nem arte livres da influência da moderna indústria: ciência e arte serão mercadorias como um todo ou não existirão.

Nas mãos dos produtores executivos (impostos às companhias cinemato­gráficas pelo capital financeiro para proteger seus investimentos), gerenciado­res que só precisam entender de cálculos e de administração de pessoal, e mani­pulados por diretores que, no domínio da arte e da tecnologia, têm o raciocínio de uma ostra (para produzir o já conhecido — a mercadoria), as possibilidades que os novos meios de produção disponibilizam simplesmente não podem ser exploradas. Isto porque produtores e diretores se puseram a fazer “arte” no sen­tido definido pelos irmãos Lafitte. Se os executivos do cinema não estivessem a serviço do capital, mas genuinamente interessados (como alguns pioneiros) no desenvolvimento das forças produtivas da própria indústria que administram, bastaria que manejassem como cientistas os “seus” meios de produção. Nesta

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hipótese, eles entenderiam que câmeras, trilhos, microfones, luzes etc. servem para documentar o comportamento visível, mostrar acontecimentos simultâ­neos, interações humanas dos mais variados tipos. E como o simples documen­tar por si só não revela a reificação das relações humanas, é ainda preciso anali­sar as suas manifestações e, a partir dos documentos produzidos e analisados, construir as imagens, inventar, criar algo que necessariamente vai aparecer como artificial à luz das convenções (dramáticas) que pautam a produção e a crítica cinematográfica. Enfim, é preciso criar uma nova idéia de arte para efeti­vamente desenvolver a força produtiva da indústria cinematográfica, que se encontra aprisionada.

A libertação da força produtiva do cinema depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros produtores, que são os artistas e os técni­cos (todas aquelas especialidades que aparecem nos créditos finais dos filmes). 0 mesmo vale para os demais meios de produção intelectual, pois todos estão presos nas garras do capital. Não é demais insistir: o modelo é a peça didática que não tem sentido se os meios de produção não estiverem sob o controle dos envolvidos. Meios de produção, no caso do cinema, desde os anos 20 significam também meios de distribuição e exibição, como demonstram os seguidos desas­tres da produção independente.

FETICHISMO DA T E C N O L O G I A

A experiência do filme Kuhle Wampe mostrou a Brecht e demais produto­res independentes que o papel determinante dos interesses do capital tem maior alcance do que normalmente supõem os artistas. Distribuidores, por exemplo, controlam o conteúdo dos filmes num grau que é subestimado até mesmo nos círculos profissionais. Não querem problemas de censura e muito menos de bilheteria,19 e por isso determinam cortes de cenas ou seqüências em filmes prontos sem a menor cerimônia. No entanto, observa Brecht, os críticos profis­sionais, aos quais chama metafísicos da cultura, só denunciam o papel nefasto dos distribuidores que “identificam demandas” porque acreditam que estes usurparam uma função que seria sua — a de escolher a coisa certa para o con­sumidor. Estes naturalmente se esquecem de que, em aliança com os distribui­dores, trabalham as empresas de propaganda, onde estão os “físicos” do gosto do

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público.20 Por certo nem físicos nem metafísicos entendem o que seja este gosto do público, mas, como a própria hierarquia do cinema demonstra, não é o conheci­mento de alguma coisa que torna alguém capaz de a explorar e, como sabem os lei­tores de Simmel, está cientificamente demonstrado que, em questão de mercado cultural, a “média” sempre está muito próxima do nível mais baixo. Os metafísi­cos da cultura jamais se rebaixariam a estudar, por exemplo, o valor social do sen­timentalismo que tanto os desgosta e, mesmo se o quisessem, não dispõem do conhecimento e da metodologia necessários a tal tipo de pesquisa. Pelas mesmas razões, jamais compreenderão que certo tipo de humor, e sua grosseria especial, não apenas é produto de condições materiais, mas ainda é um meio de produção.

A luta dos intelectuais progressistas contra a mercantilização da arte, da ciên­cia e da cultura é baseada na premissa de que as massas e os intelectuais que se ven­dem não sabem quais são os seus interesses. Mas as massas têm menos interesses estéticos que interesses políticos, e por isso a sugestão de Schiller, de fazer da ques­tão estética (científica, cultural) uma questão política, nunca foi tão necessária como hoje. É preciso entender que o mau gosto das massas está mais profunda­mente enraizado na realidade que o bom gosto dos intelectuais, pois o gosto do público é expressão de interesses sociais e não mudará por meio de melhores fil­mes, mas pela mudança das circunstâncias que determinam o nível desses filmes.

Por outro lado, os que acreditam que o fato de ser mercadoria não afeta um filme não têm idéia do poder modificador da mercadoria. Só os que fecham os olhos para o enorme poder revolucionário que tudo arrasta para a circulação de mercadorias, sem deixar nada de fora, podem supor que obras de arte, de qual­quer gênero, ficariam excluídas. Há muito tempo o próprio processo de comu­nicação nada mais é que ligar tudo e todos na forma de mercadorias.

A chamada crítica cinematográfica inventou uma fórmula funcional para colocar o pior tipo de lixo no mercado. Ela reza que um filme pode ser regressivo no conteúdo e progressista na forma. Pois bem: a referência à qualidade, inde­pendentemente do significado, é regressiva.21 Marx já disse que a forma só é boa quando é a forma do conteúdo. Em seu fetichismo tecnológico, a propaganda do cinema (o verdadeiro nome do que passa por crítica) confunde a habilidade de mostrar as coisas de maneira apetitosa com desenvolvimento tecnológico. Há uma dialética do desenvolvimento tecnológico — com perdas e danos incalcu­láveis — que passa despercebida porque ninguém se pergunta se é verdade que os filmes precisam continuar fazendo a mesma coisa que o romance e o teatro

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faziam no século xix. A síntese desta relação com a tecnologia é a idéia de que tudo pode ser perdoado se for “bem-feito” (critério forjado pelos empresários do teatro francês do início do século xix).22

A tecnologia do cinema serve para criar alguma coisa a partir do nada. Por nada entenda-se um monte de idéias triviais, observações imprecisas, proposi­ções inexatas e asserções indemonstráveis. Nem sempre este nada foi nada; nas­ceu de alguma coisa. Por exemplo, de romances que continham uma série de observações precisas, afirmações exatas e proposições demonstráveis. A come­çar pela receita americana de roteirização (baseada na receita da “peça bem- feita”), que foi definida em meados dos anos 10, quando começaram a ser feitos os longas-metragens, a tecnologia cinematográfica necessária para criar algu­ma coisa a partir de nada primeiro foi obrigada a criar esse nada a partir de al­guma coisa. Este é o segredo da adaptação de uma obra literária.23 Esta é uma prática da qual a tecnologia não pode ser afastada: ela não pode ser útil para criar alguma coisa a partir de alguma coisa. É, portanto, a tecnologia que realiza os truques, porque não é arte, e sim truque, transformar uma porção de lixo em sobremesa apetitosa. Mas, quando mudar a função social do cinema, todas as grandes realizações da “técnica” serão jogadas no aterro sanitário.

À MARGEM DA VIDA R E A L

Assim como foi feito com o Processo de três vinténs, da experiência do filme Kuhle Wampe serão destacadas algumas observações gerais, a começar pela ten­tativa de, através da produção independente, assegurar a liberdade artística. Com as lições do primeiro processo, agora os produtores trataram de garantir a sua condição de proprietários dos direitos autorais em sentido legal. Isto lhes custou o direito à remuneração habitual, mas foram conquistadas liberdades que de outra forma não seriam factíveis. O grupo dos produtores era formado por dois roteiristas, um diretor, um compositor, um administrador e um advo­gado. A primeira lição, que custou muito trabalho, foi a de que a organização é parte essencial da obra de arte. Esta organização só foi possível porque a obra como um todo era política e por isso contou com o apoio militante de outras organizações políticas, inclusive um grupo de teatro de agitprop.

Terminado o filme (o que não se deu sem enormes percalços), seus produ-

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mft

tores descobriram mais alguns critérios de mercado. Primeiro, que filmes artisti­camente válidos são comercialmente perniciosos porque estragam o gosto do público, aprimorando-o. De qualquer modo, eles não são mesmo comerciais e, se o fossem, o distribuidor capitalista assumiria o risco desse perigoso aprimora­mento do gosto por motivos ligados à concorrência — do mesmo modo que se arrisca ao comercializar propaganda comunista. O segundo critério, o da relação entre novidade e valor comercial, revelou que um filme comunista não tem mais valor comercial porque o comunismo não é mais uma ameaça ao público bur­guês. Ele não desperta mais interesse.24 O terceiro, ainda mais relevante: uma empresa só se dispôs a comercializar Kuhle Wampe depois que atores, roteiristas, produtores e diretor abriram mão de seus cachês (leia-se: a mercadoria foi doada ao distribuidor). Fim de romance: o filme teve exibição restrita em Berlim, Paris e Moscou e, com o advento do regime nazista, não se falou mais no assunto.

O fato de investidores do mercado cinematográfico não acreditarem mais na ameaça comunista não correspondia necessariamente à opinião dos administra­dores do Estado, sobretudo os funcionários da polícia. Submetido à censura, o filme foi proibido basicamente por dois problemas. Primeiro, porque mostra como certos grupos da classe trabalhadora se acomodam e seguem passivamente para o brejo. O censor entendeu este ponto como um ataque à social-democracia, o que era proibido por lei, assim como ataques à Igreja e a qualquer instituição que apoiasse o Estado. O segundo diz respeito à trajetória de um jovem desempregado que, vítima dos cortes nos programas de assistência aos jovens, comete suicídio logo no início do filme. O censor entendeu este tópico como um ataque ao presi­dente que recentemente assinara alguns decretos emergenciais e vinha sendo acu­sado de insuficiente preocupação com o bem-estar dos trabalhadores.

Como os produtores recorreram da decisão, foi-lhes concedida uma au­diência, na qual o censor apresentou, entre outros, o seguinte argumento instru­tivo: o problema é o modo como vocês mostram o suicídio desse trabalhador desempregado. Esse modo não está de acordo com o interesse geral que defendo por dever de ofício. Lamento, mas tenho que fazer uma censura de caráter esté­tico: este trabalho não é inteiramente humano. Vocês não criaram uma pessoa, mas um tipo. Seu desempregado não é um indivíduo real, uma pessoa de carne e osso, distinta de qualquer outra, com suas preocupações particulares, alegrias particulares, seu destino particular. Ele é apresentado de modo muito superfi­cial. Sabe-se muito pouco a respeito dele e, no entanto, as conseqüências são de

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natureza política, o que me obriga a ser contra a liberação do filme. Ele está afir­mando que o suicidio é típico, que não é simplesmente a ação deste ou daquele indivíduo com disposição patológica, mas o destino de toda uma classe social. Seu ponto de vista é o de que a sociedade induz os jovens ao suicídio negando- lhes a possibilidade de trabalhar. Para agravar o mal feito, vocês ainda indicam o que devem fazer os desempregados para mudar a situação, não se compor­tando como artistas. Ninguém os impediria de mostrar o destino chocante de um indivíduo. Mas este suicídio nem ao menos é um gesto impulsivo. O público não terá o desejo de impedi-lo, o que seria uma reação adequada a uma apresen­tação artística, humana, compassiva. O personagem se mata como se estivesse demonstrando o jeito de descascar um pepino!

É bom lembrar que a mesma censura havia liberado, uma semana antes, um filme nazista chamado Mudança de destino, que certamente devia ser em grau máximo uma apresentação artística, humana e compassiva. Mais impor­tante do que este registro en passant, entretanto, é a aproximação que Brecht faz entre os argumentos do censor e os dos críticos de cinema, inclusive os comu­nistas (o periódico Rote Fahne, por exemplo, criticou a “representação equivo­cada” do proletariado, além de reclamar da ausência de palavras de ordem).

Por sua impressionante atualidade, vale a pena encerrar este levantamento de tópicos com as observações de Brecht sobre a prática mais ampla da censura que passa por crítica. Para entender como ela funciona, diz nosso autor, deve-se concebê-la como um processo esquizofrênico pequeno-burguês com a seguinte estrutura: eu me digo que eu preciso me reprimir. O pequeno-burguês sabe que não pode digerir tudo o que come. Os que censuram filmes por razões de gosto pertencem a estratos sociais que ignoram seus próprios interesses políticos. Vivem uma situação impossível porque teriam que ser capazes de desejar a arte política, não por razões artísticas, mas por razões políticas, pois não há argumen­tos estéticos contra a censura política. Para começar, eles teriam que estar em condições de apreender criticamente a situação político-cultural dos consumi­dores de arte, que é a deles próprios, em vez de criticar apenas o gosto sintomá­tico “dessa gente”,25 pois sabem que é quase impossível situar-se acima da pequena burguesia, para a qual essencialmente os filmes são feitos.

Estes pequenos burgueses lamentam o rumo que as coisas da “cultura” tomaram. Melhor do que lamentar, é entender como funciona a realidade e compreender no que já aconteceu quais são as tendências revolucionárias e

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quais as reacionárias. Para isso, é preciso assumir uma perspectiva ativa e parti­cipante, de parte interessada num campo de forças opostas, pois o sistema social é radicalmente antagonístico e não se dá a conhecer aos que adotam a perspec­tiva “objetiva” e “desinteressada”, cara à imprensa liberal.26

PROLETARIZAÇÃO DOS ARTISTAS E I N T E L E C T U A I S

Com vistas às conseqüências políticas destes experimentos, que já estão mais ou menos indicadas, é útil lembrar, de preferência por extenso, o que Marx dizia na Ideologia alemã:

os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensa­

mentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa

dada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelec­tual está submetido igualmente à classe dominante.17

Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, uma consciência, e é em conseqüência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como pro­dutores de idéias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamen­tos da sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes da sua época.

Para o que nos interessa, os experimentos de Brecht são da ordem do traba­lho coletivo, do qual seria preciso tirar as conseqüências teóricas, o que não fa­zem os intelectuais, como seria do seu dever, porque estão submetidos às exigên­cias da produção espiritual determinada pela classe dominante e desprovidos dos meios de produção espiritual. Para começar, porque não se dão conta de que participam de um coletivo. O crítico de jornal, por exemplo, compartilha as opi­niões dos demais jornalistas e participa do desenvolvimento da opinião como um todo. Aqui funciona um coletivo que torna irreconhecível a opinião indivi­dual. O cinema, como todo mundo sabe, só existe enquanto trabalho coletivo.

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Mas na indústria cinematográfica, ao contrário da produção independente, “coletivo” não é o que habitualmente se supõe. Sempre há quem define, quem decide. A engrenagem funciona como uma espécie de caricatura da divisão do conhecimento: um técnico filma porque o diretor não tem a menor idéia de como operar uma câmera, outro faz a montagem porque o operador da câmera não tem idéia do filme como um todo, e alguém escreve o roteiro porque o público tem preguiça de fazê-lo. É por isso que interessa tornar irreconhecível a contribuição individual. No capitalismo, a idéia de coletivo exclui o público e a partir dele é criado um falso coletivo.

Um filme é produzido coletivamente e no entanto é percebido como obra de arte antes que o conceito de arte tenha incorporado o conceito de trabalho coletivo. Uma economia planificada — a da ditadura do mercado— já se esta­beleceu na produção da arte sem que o conceito de arte tenha se livrado do valor que a ideologia dominante atribui à personalidade, liberdade individual e superstições conexas. O cinema como trabalho coletivo permite que se perce­bam essas inconsistências ideológicas: a cultura burguesa não é o que ela pensa sobre as práticas burguesas, e a distância que separa esta cultura de suas práticas pode ser calculada pela espessura de um fio de cabelo.

Não será cultivando o que Walter Benjamin chamou “teologia da arte” — a doutrina da arte pura — que artistas e intelectuais encontrarão respostas às perguntas por seu papel e o da arte na sociedade capitalista. Estas serão encon­tradas na luta por um lugar na produção, o que equivale a dizer na luta pela liber­tação das forças produtivas (porque artistas e intelectuais desempregados, como todas as demais categorias de trabalhadores, também configuram desper­dício de forças produtivas).

O papel da produção, ou, mais exatamente, o constante crescimento deste papel,é decisivo em grau máximo porque ele revoluciona todo comportamento e todas as idéias. Justiça, liberdade, personagem, tudo se tornou função da pro­dução; são suas variáveis. Nenhum ato cognitivo é mais possível fora do processo de produção. É preciso produzir para conhecer, e produção significa estar no pro­cesso de produção. Até o lugar do revolucionário e o da revolução é o processo de produção. Um exemplo simples (do filme Kuhle Wampe) ilustra este teorema dementar, na revolução o desempregado tem um papel surpreendentemente pequeno, mas deste papel menor emerge de imediato um papel de protagonista quando o desemprego começa a ameaçar seriamente a produção.

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De relógios, bússolas e sextantesPerguntas a Roberto Schwarz

Rodrigo Naves

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Não é tarefa simples identificar a maneira pela qual o trabalho de outros autores influenciam aquilo que fazemos. Há escritores que admiramos por vir­tudes pontuais: a argumentação honesta, o respeito às posições alheias, o reco­nhecimento das próprias limitações. Existem outros com quem às vezes pouco concordamos mas que procedem de maneira exemplar em aspectos da vida pública e com quem sempre se pode aprender. Os intelectuais que formulam métodos e amplas alternativas por vezes encantam pelas possibilidades que nos fazem vislumbrar e pelas novas perspectivas, sobretudo quando logram fazer dos procedimentos metodológicos uma via concreta de desvendamento de objetos singulares. Sem falar daqueles com quem simpatizamos sem razões pre­cisas, embora suspeitemos que seja mais que capricho aquilo que nos move. Mas o pior vem depois, se é que há sucessão e ordem nesse território vasto e pouco demarcado. Porque acontece muitas vezes de trairmos o espírito de um pensa­mento justamente quando queríamos honrá-lo. Ocorre aqui o que sucede em muitas obras artísticas: personagens que não acertam o passo com o tambor que eles mesmos percutem.

Dito isso, o leitor me perdoe se também eu errar o passo. Afinal, isso tem lá

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a sua graça, sobretudo para quem não troca as pernas e sabe marcar bem o tempo forte. Não sou uma pessoa muito sistemática— ao menos nos meus estu­dos. E talvez por instinto de defesa acredito que o mais proveitoso das leituras sejam aqueles sedimentos que elas depositam aos poucos e que constituem uma espécie de ritmo que incorporamos de outros autores, mais que seus achados pontuais. Em relação à obra de Roberto Schwarz, noto algo dessa ordem, ainda que seus interesses se voltem para áreas diferentes da minha. Se não me engano, uma única vez nosso autor escreveu sobre artes visuais. Acrescente-se a isso um contato pessoal relativamente estreito — sobretudo durante os anos em que editei a revista Novos Estudos CEBRAP, de 1987 a 1995, da qual Roberto era e é membro do conselho editorial — e as coisas se tornam ainda menos cristalinas, pois tenho para mim que aprendi tanto nas conversas com Roberto quanto na leitura de seus textos. E como entre um autor e seus textos quase sempre há alguma descontinuidade, restituir a origem das influências é tarefa ingrata.

Penso que em suas análises — principalmente as que se detêm na obra de maturidade de Machado de Assis— ele põe em ação uma noção deforma das mais produtivas que conheço e que para mim abriu muitos caminhos. Há nela um sen­tido quase musical, uma capacidade admirável de detectar as modulações mais decisivas de um romance ou poema. No entanto, talvez o aspecto decididamente musical de suas interpretações surja no momento de encontrar passagens entre as formas literárias e as formas sociais. Como numa fuga, as diferentes vozes ten- sionam e norteiam umas às outras, com antecipações e entrecruzamentos que desautorizam as reduções rombudas de superestrutura a infra-estrutura. Desse modo, tornam-se possíveis relações muito esclarecedoras entre os trabalhos de arte e outras esferas da experiência social, sem que ambos abdiquem de suas par­ticularidades. Para esse ponto de vista, a singularidade de uma obra de arte não está em supor um isolamento altivo e vão, e sim na capacidade de estabelecer tal­vez o mais complexo nexo com a realidade, adquirindo assim uma dimensão crí­tica e uma identidade que derivam justamente dessa disponibilidade para aqui­lo que lhe é alheio.

Poucos autores brasileiros se detiveram tanto sobre o país quanto Roberto Schwarz. Para ele, porém, as particularidade nacionais nascem de uma dinâmica que sempre nos leva para além de nossas fronteiras. O que nos diferencia diz res­peito à maneira como nossa história nos inseriu na dinâmica do capitalismo internacional, com tudo que essa vinculação tem de perverso e vantajoso. Por­

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tanto, nossas particularidades necessariamente prescindem de um ideal nacio­nal pleno e auto-suficiente. Assim armado, o país que se desenha nos textos de Roberto Schwarz é um país menos dado a adesões incontidas, como queriam os nacionalismos. Tem no entanto as vantagens de ser mais múltiplo e surpreen­dente, o que possibilita outros encantos e aproximações.

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Muitas das reflexões de Roberto Schwarz foram de grande utilidade para o desenvolvimento das análises que publiquei em A form a difícil — ensaios sobre arte brasileira, de 1996. No entanto, penso que certas particularidades das artes visuais me conduziram a conclusões que talvez sirvam para acrescentar algumas indagações ao pensamento desenvolvido por Roberto. Trata-se realmente de entendê-las como interrogações, e não como certezas dissimuladas.

Em meu livro, procurei mostrar como Debret foi o primeiro artista estran­geiro a pôr em questão as formas que norteavam sua pintura, quando, no Bra­sil, se vê diante da contingência de representar uma outra realidade. Debret havia sido educado na politizada tradição neoclássica francesa, e um de seus mestres — Jacques-Louis David, também seu primo — foi o líder dessa escola que teve papel de destaque na Revolução Francesa. Tudo na estética neoclássica da França aspirava ao estatuto de exemplo e de heroísmo. Sua temática, baseada em geral em acontecimentos da república romana e em episódios da história de Esparta, tentava associar as lutas francesas a uma longa tradição republicana e igualitária e impulsionar o ânimo guerreiro dos contemporâneos. E para que esse esforço se cumprisse elegiam-se certos fatos históricos — o juramento dos Horácios, Brutus que manda executar os filhos que conspiraram contra a repú­blica, os poucos guerreiros de Leónidas que tentam deter os persas nas Termo­pilas — que pudessem se mostrar como guia para a ação no presente. Neles, homens e mulheres punham suas vidas em jogo na defesa de ideais generosos e justos.

De par com isso, também as formas neoclássicas deveriam revelar a capa­cidade de submeter instintos, paixões e sentimentos àquela vontade imperiosa que se conduzia segundo princípios altruístas. Tanto no delineamento das figu­ras individuais quanto nas composições, tratava-se de encontrar ordenações

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rigorosas que correspondessem à determinação revolucionária. Temas e formas se reuniriam assim num conjunto duplamente exemplar que servisse de guia e estímulo aos revolucionários franceses.

Os poucos trabalhos neoclássicos de Debret que conhecemos confirmam seu interesse por essas questões. Em 1816, com a derrota definitiva de Napoleão e as dificuldades crescentes criadas pela restauração bourbônica, Debret parte para o Brasil, acompanhado de vários outros artistas e artesãos franceses, com a missão de criar uma Escola de Belas-Artes no Rio de Janeiro. Aqui, o artista encontra uma realidade social praticamente oposta àquela que fizera ruir as bases do Antigo Regime. Num centro urbano acanhado, uma família real fugida de Portugal reinava sobre uma população fortemente estratificada, cuja econo­mia se assentava na escravidão. Debret realiza no Rio vários trabalhos oficiais que envolveram da concepção de festas régias à realização de esboços para a ban­deira e os brasões do Império. Mas era-lhe evidente que representar o país nos moldes heróicos do neoclassicismo supunha um falseamento radical das condi­ções do país.

Nas várias aquarelas que realiza no Brasil — que servirão de guia para as litografias que executa ao voltar para a França, em 1831, e que comporão os três volumes de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil— , o artista procura encontrar novas formas que dessem conta de uma experiência bem diferente da que conhecera na França. Os desenhos sobre situações urbanas do Rio de Janeiro — sobretudo as dezenas de aquarelas representando negros de ganho durante o trabalho — foram aqueles em que Debret conseguiu realizar os novos temas com um traço, um colorido e estruturas originais e convincentes.

Neles, Debret abdicava dos contornos marcados e das composições rigoro­sas do neoclassicismo. As personagens da vida carioca nasciam de traços tatean- tes e irregulares e, no seu conjunto, armavam composições simples e de pouca força de estruturação, que em parte — mas só em parte — deviam sua singeleza às preocupações documentais do artista. A precariedade da vida na colônia era revelada na própria maneira de circunscrever os corpos e de dispô-los no espaço. Por vezes, tem-se mesmo a sensação de que negros, negras e até brancos e brancas mal conseguem se opor ao espaço que os envolve, e se esforçam para conter uma pressão que os ameaça.

Sem dúvida, os desenhos brasileiros de Debret traziam ganhos para a arte que se fazia no país, bem como para a compreensão do Brasil. O artista francês

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conseguiu simultaneamente privilegiar um tema — a escravidão e seus desdo­bramentos — que poucas vezes alcançara o destaque dado por ele, bem como uma forma de realizá-lo que elucidava visualmente essa presença ambígua dos escravos urbanos no país, numerosos e ativos em vários setores e no entanto quase totalmente impossibilitados de determinar suas vidas e os destinos do país, embora marcassem indelevelmente a constituição moral e a existência eco­nômica de todos os habitantes livres do Rio de Janeiro.

No entanto me parece indiscutível que o resultado artístico dos esforços de Debret deixa a desejar. E seria apequenar muito a compreensão das coisas atri­buirmos seus limites apenas a uma suposta falta de talento. Alguma coisa na abordagem de Debret o impediu de ver na realidade brasileira a profunda vio­lência que Goya — um contemporâneo de Debret — soube revelar acerca da realidade espanhola, por mais que a diferença entre ambas as sociedades ajude a explicar parte das divergências entre eles. Nas gravuras, desenhos e pinturas de Goya a violência não poupava nada nem ninguém. Como uma força autô­noma e incontrolada, ela dominava todos os aspectos da vida, ao mesmo tempo em que, em sua vertiginosa dinâmica, abria espaço para uma visão esclarece­dora e terrífica.1

Penso que boa parte das limitações de Debret se deve a sua educação neo­clássica, ainda que a forma que desenvolve no Brasil a ponha de lado em muitos aspectos. Quero dizer com isso que a própria concepção de arte do neoclassi­cismo francês atrapalhava os esforços de Debret. Por um lado, para David e seus seguidores a violência histórica podia até conduzir a desfechos trágicos — Bru­tus que manda matar seus filhos ou Marat assassinado por Charlotte Corday, a quem procurava ajudar. No entanto, sempre deixava margem para o reconheci­mento do gesto heróico a servir de modelo. Ou seja: algo sempre se mantinha imune à violência, e não por acaso as formas neoclássicas resguardavam a idea­lidade do que não fora maculado pela violência generalizada. Mesmo tomando o partido dos transgressores, a arte não devia transgredir, funcionando como padrão de normalidade em meio à tempestade.

Por outro lado, a própria ambição do neoclassicismo francês tolhia-lhe os movimentos. Ao ver-se como vanguarda estética, moral e política — sua arte entendida como antecipação do ideal de união harmônica entre felicidade e virtude2 — , ele ambicionava uma inserção ampla na opinião pública, um reco­nhecimento que praticamente o impedia de afastar-se dos padrões aceitos e

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radicalizar naquilo que lhe era específico: a arte. Não estranha portanto que algumas décadas depois o neoclassicismo tenha se tornado o padrão da acade- micização da arte.

A politização do neoclassicismo francês certamente contou muito para a mudança brasileira de Debret. Acredito porém que a “política artística” neoclás­sica tolheu-lhe os movimentos, sobretudo se a pensarmos em relação à dinâ­mica social brasileira. Sem exemplos sociais em que se amparar — nem senho­res nem escravos nem brancos pobres e livres lembravam os bravos cidadãos franceses — e sem enfrentamentos sociais reais que mobilizassem sua vocação política, restou-lhe a possibilidade de uma arte no mesmo nível dos aconteci­mentos: uma arte em que o realismo limitava-se ao reconhecimento de uma situação de fato, com toda a fragilidade da impotência, já que para ele a própria arte não poderia ser entendida como força. Para fazer um trocadilho com a idéia de Roberto Schwarz sobre o liberalismo no Brasil, o problema de Debret era o de estar no lugar demais, impossibilitado inclusive de identificar no país uma dinâmica de qualquer natureza.

Os romances da maturidade de Machado de Assis aparecem meio século depois do retorno de Debret à França. Não só o país mudara como o escritor bra­sileiro olhava essa nova realidade de um ponto de vista mais favorável à com­preensão do que via. A superioridade de Machado de Assis em relação ao fran­cês em boa medida deriva dessa capacidade de compreender como processo uma situação que a Debret se mostrava inapreensível em sua dinâmica. E quanto a isso as análises de Roberto Schwarz me parecem insuperáveis.

À sua maneira, Machado de Assis mostrava a sociedade brasileira como Goya expusera a sociedade espanhola da passagem do século xvni para o xix. Os desmandos nascidos do estranho convívio entre liberalismo e escravidão permeavam todos os momentos da experiência social brasileira — sua moral, política, costumes, economia, cultura. Não espanta portanto que o narrador volúvel que mimetiza e revela essa dinâmica perversa incorpore um ponto de vista de classe dominante. Não há aqui dúvidas sobre a generalidade e a cruel­dade desse sistema, e portanto são os de cima os mais aptos a contar a história. Ninguém ficava fora desse movimento e de seus desdobramentos, nem mesmo o amor sincero, o zelo materno ou a devoção católica. Tudo isso aprendemos com Roberto Schwarz, e poucas vezes a análise de uma obra de arte conduziu tão longe.

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A pergunta que coloco é a seguinte: não seria possível vislumbrar algum termo comum entre as soluções de Debret e de Machado de Assis? Ou ainda: essa dinâmica de classes brasileira extremamente singular e sem perspectivas de superação, uma vez que o trabalho era reproduzido externamente ao país — pela escravidão, de inicio, e posteriormente pelos imigrantes europeus, como mostrou Luiz Felipe de Alencastro em vários textos, principalmente em O trato dos viventes— e que os pobres livres viviam sob as asas do favor, não deixou mar­cas “negativas” na literatura de Machado de Assis, para além da tristeza crescente de suas obras (e que corre junto com o estreitamento das possibilidades)?

Um amigo, o crítico de arte Alberto Tassinari, certa vez começou, meio de brincadeira, uma história da metafísica feita na forma de aforismos. Por ser uma história da metafísica, suas sentenças giravam com razão em torno do verbo “ser”. Tales de Mileto: “é uma água...” Parmênides: “é!” Hegel: “é e não é, né?” Essas tiradas me vieram à mente porque nelas Hegel aparece bem nacionalizado, meio à maneira do nosso modernismo literário. A “superação” da oposição dia­lética, no aforismo de Alberto, se dava por uma petição afetiva, em que a intimi­dade com a língua (“né?”) revelaria a tentativa, no plano social, de resolver as coisas por um arranjo gaiato— a desfaçatez de classe de Roberto Schwarz — , em que a transigência com a norma culta equivaleria à desqualificação do oponente social e à tentativa de trazê-lo para o seu lado por um aceno paternal repleto de bons sentimentos. Em sociologia costuma-se designar esse procedimento de “modernização conservadora”. Voltando à pergunta: não haveria na obra madura de Machado de Assis vestígios dessa dialética malparada, não apenas no sentido de revelar-lhe a natureza, mas também no sentido de, ainda que margi­nalmente, reiterá-la?

Uma dimensão em relação à qual Roberto Schwarz tem algumas hipóteses, embora considere ser necessária uma investigação mais aprofundada, diz res­peito à recepção da obra de Machado de Assis,3 ao quase nenhum reconheci­mento, pelos contemporâneos, do teor ácido de seus textos: “O fato é que nin­guém notou. A construção do Machado de Assis, extremamente crítica, não foi notada enquanto tal nesse período”.4 Ora, talvez alguma coisa no próprio texto de Machado de Assis contribuísse para isso. Daqui para a frente passo a cami­nhar num terreno com o qual tenho realmente pouca intimidade e por isso peço que minhas interrogações sejam mesmo tomadas enquanto tais.

Se considerarmos, por exemplo, as Memórias póstumas de Brás Cubas, creio

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poder formular um pouco melhor minha dúvidas. De saída, chama a atenção no romance a recorrente referência do narrador ao “leitor”. Escrito na primeira pes­soa, o texto parece querer manter um contato direto e constante “com as cinco ou dez pessoas que me lêem”, e para isso constantemente cutuca o leitor com o cotovelo, como para mantê-lo desperto e não deixá-lo dispersar-se, como aliás faz o narrador o tempo todo: “porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...” (capítulo l x x i ) . Esse expediente condiz plenamente com o tom informal do texto — o que exige uma formalização lite­rária muito refinada — , um movimento de quem escreve como se cochichasse ao ouvido de um amigo suas venturas e desventuras. Sem dúvida, a história de Brás Cubas tem momentos densos, passagens em que a vida despreocupada do narrador esbarra — mas não propriamente produz — em situações quase trá­gicas: a história de dona Plácida, as infelicidades de Eugênia (“a Vênus Manca”, “a flor da moita”) ou o triste fim de Marcela. No geral, porém, a história de Brás Cubas tem muito de miolo de pote, dessas conversas de pouco assunto que envolvem aventuras de solteiros, infidelidades conjugais, “sede de nomeada” de pouca conseqüência— se comparadas às de personagens de Balzac ou Stendhal, por exemplo — e muita digressão. Que esse conjunto tão dado à conversa mole seja esclarecedor do que ia pelo país, Roberto Schwarz mostrou admiravel­mente. Mas não teria proporcionado também um tirico pela culatra, que ape­nas uma nova conjuntura social e cultural soube consertar, a partir das análises, na década de 60, de Helen Caldwell e posteriormente com as interpretações de lohn Gledson e do próprio Roberto?

A combinação de conversa fiada, trama insossa, cumplicidade com o leitor e informalidade talvez ajude a entender por que os contemporâneos de Ma­chado de Assis não viram em sua prosa a dimensão crítica que hoje nos parece mais clara, embora me pareça um exagero aproximá-lo de Beckett, como faz Susan Sontag. O tom menor do romance mimetizaria em parte o que procurava criticar: construía-se nele uma atmosfera de intimidade em que a hipocrisia da convivência de liberalismo e escravidão poderia ser evocada como se sugere um juízo maldoso sobre alguém que tratamos dignamente em público. Nesse sen­tido, a prosa de Machado de Assis ganhava em desenvoltura. Mas talvez de certa

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maneira ajudasse a naturalizar provisoriamente um comportamento conside­rado comum.

Ainda que não conheça quase nada sobre a recepção de obras como as de Dostoiévski, Tolstói ou Kafka, me parece pouco provável que elas proporcionas­sem a adesão que a obra de Machado de Assis proporcionou a seus contempo­râneos. Resumidamente, o que procuro formular é o seguinte: embora a arte de Machado de Assis seja incomparavelmente maior que a de Debret, não haveria em ambas essa recusa de entender a arte como força desagregadora, como movi­mento de ruptura que em sua própria forma configurasse um impulso capaz de pôr mais diretamente em xeque a “conciliação de classes” dominante no país?

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Penso que essa questão tenha relevância no âmbito da cultura brasileira porque poucas vezes no país a arte foi pensada de maneira potente e diferencia- dora, com o que não me refiro a uma arte desvairada ou aristocratizante, e sim a obras que em todos os seus aspectos consiga se diferenciar criticamente das demais experiências, o que supõe um conhecimento refinado da realidade. Nesse sentido, as artes acabam reiterando uma dificuldade da própria sociedade brasileira, ela também pouco vigorosa em sua capacidade de organização e dife­renciação social. Talvez essa dimensão acanhada tenha mais vigência nas artes visuais — ao menos até fins da década de 50 — , o que enviesaria o meu raciocí­nio. Mas não estou certo disso.

No mesmo livro mencionado atrás, também analisava o que me parecia o melhor da produção de Volpi e Guignard, certamente dois de nossos maiores pintores. Em ambos — e por diferentes razões — reconhecia uma timidez for­mal renitente. Em sua pintura haveria uma certa resistência em trazer as cores decididamente à superfície das telas, e seus tons esmaecidos e relutantes davam às obras uma lentidão perceptiva, uma configuração morosa que abrandava sua aparência final. E as formas toscas e muito manuais associavam os trabalhos a uma tradição pictórica longínqua e algo artesanal.

Tanto em Guignard quanto em Volpi a experiência de suas pinturas reme­tia a um passado em que talvez fosse possível vislumbrar uma utopia alheia às violências da industrialização. A convivência, nessas obras, de uma habilidade

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artesanal requintadíssima e de passagens de cor sutis conferia ao trabalho artís­tico um estatuto diferenciador e arcaico. Dificilmente elas logravam conquistar para si um presente razoavelmente estável, uma situação em que suas linhas e cores interrogassem as demais ordenações do mundo. Idealmente, as pinturas de Guignard e Volpi nos remetiam a um passado em que esse tipo de fazer encon­traria todo o seu sentido, além de, talvez, poder regenerar nosso presente por meio de uma pedagogia alheia a qualquer desespero, já que se dispunha de todo o tempo do mundo. O fato é que tudo em suas pinturas dificulta uma experiên­cia forte, que proporcionasse o confronto entre formas tradicionais e a busca de uma ruptura com elas.

Aqui, talvez haja realmente alguma divergência entre mim e Roberto, no tocante à compreensão do alcance dos trabalhos de arte. Ainda que me equivo­que, tenho a impressão de que, para Roberto Schwarz, a grandeza de Machado de Assis — e também de outros autores analisados e privilegiados por ele — reside sobretudo em sua sutilíssima e aguda capacidade de revelação dos pro­cessos sociais mais decisivos do Brasil do século xix e que, dada sua profundi­dade, de alguma maneira ainda persistem no nosso modo de convivência. Não tenho dúvidas quanto à verdade dessa análise. No entanto, não sou da opinião de que, necessariamente, o movimento de análise de um texto deva acentuar principalmente a igual capacidade de análise de um romance, poema ou qual­quer obra de arte em relação à realidade. Quero dizer com isso que muitas vezes o trabalho de arte não faz apenas esse movimento remissivo — de retorno às bases de que ele surge.

Muito provavelmente Roberto Schwarz está correto em sua análise de Machado de Assis. Como porém tentei mostrar atrás talvez seja possível detec­tar um limite na obra de Machado de Assis justamente por se deter nesse movi­mento de elucidação da realidade.

Tentarei ser mais claro. A meu ver, boa parte das melhores obras visuais modernas tem uma dimensão prospectiva forte. Restaria saber se isso caracteriza apenas essas obras, o que receio não ser verdade. Diante de um grande Matisse ou Picasso, faz parte da experiência das obras uma espécie de abertura para diante, a experiência de novas possibilidades que, a meu ver, são fundamentais para compreender a emoção despertada por esses trabalhos. Uma tela cubista de Picasso não é apenas a revelação de que somos atravessados por todos os lados por forças que tornam ilusórias a antiga identidade do sujeito, de origem

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renascentista. O reconhecimento dessa pressão do “fundo”— o mercado, as for­ças mundanas, os outros etc. — não se limita a constatar com tristeza o fim de uma identidade que os tempos modernos puseram por terra. A própria estra­nheza da forma picassiana e sua enorme capacidade de produção revelam rego­zijo nesse esfacelamento. Esses corpos fragmentados apontam uma nova dispo­nibilidade para o mundo, a constatação de novas possibilidades que têm também uma dimensão positiva, e não apenas a evidente intensificação da sen­sualidade e do erotismo.

As deformações posteriores ao primeiro cubismo mostram o quanto essa nova atração pelo mundo põe inclusive de lado os corpos entendidos homoge­neamente. Corpos, coisas e natureza se atraem reciprocamente. E nesse movi­mento de atração desdobram-se em busca uns dos outros, movidos por uma dinâmica que lhes toma totalmente, conformando sua aparência. E tudo parece se apresentar em todas as dimensões — donde o uso de padronagens para mos­trar os vários aspectos dos seres se assemelhar às estratégias animais na pluma­gem ou nas peles para trazer à tona os impulsos — , pois estão em contato estreito com múltiplas camadas da existência.

Com Matisse, contudo, esse viés talvez se mostre ainda mais intenso. Se considerarmos suas várias pinturas em que prevalecem arabescos, padronagens e estampas sobre as telas, veremos que aquilo que superficialmente seria apenas decorativismo guarda uma dimensão altamente emancipadora. Nessas telas, Matisse consegue, ao mesmo tempo, uma multiplicidade poucas vezes alcan­çada na história da arte — o efeito de estilhaçamento da realidade proporcio­nado pelos arabescos — e uma maneira muito inovadora de obter uma unidade formal. Nessas pinturas, a identidade (ou unidade) não se obtém pela submis­são da multiplicidade dos estímulos a uma estrutura que as subsume. Ao con­trário, é a própria multiplicidade que estilhaça as formações preestabelecidas e serve como princípio unificador das telas. Nada mais distante das relações em que normalmente somos formados, e de fato não estranha que algo assim nos emocione. A admirável alegria da pintura de Matisse vem dessa entrega arris­cada e total à diversidade do mundo sensível, sem que ele abra mão de encontrar aí a possibilidade de um novo modo de ordenar as relações.

Picasso e Matisse — os exemplos poderiam ser outros e muitos — certa­mente não operam apenas com uma espécie de utopia sem base real. O que faz a sua grandeza artística vem de uma compreensão refinadíssima das condições

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históricas em que nos movemos e da capacidade de revertê-las por meio de urna experiência real não apenas imaginária, ainda que nos limites da arte. Hoje em dia, quando uma nova conjuntura social e um novo trabalho crítico proporcio­naram interpretações enriquecedoras da obra de Machado de Assis, não seria possível observar também nela aspectos dessa dimensão emancipadora, em que a ironia e a mordacidade revelariam a soberania possível no Brasil de fins do

século xix?A meu ver, a arte opera como uma força social, e penso que quase todos nós

já experimentamos a potência dessa força num ou noutro contexto, com todas as suas conseqüências. Argan dizia que a arte moderna seria inconcebível sem a idéia de revolução. Tudo bem. Mas, num outro nível, creio que também a idéia de revolução não teria a dimensão que teve (ou talvez ainda tenha) sem a arte moderna, por mais que ambas— arte moderna e revolução— não tenham con­vivido bem no mesmo espaço político-institucional.

Talvez me equivoque, mas creio que a Roberto Schwarz interessa principal­mente a dimensão explicativa e reveladora da arte em relação à realidade, dei­xando de lado — ou colocando num segundo plano — o que chamei dimensão prospectiva da arte. Não quero com isso formular uma teoria geral da arte, mes­mo porque estou apenas apresentando uma versão ligeiramente pessoal de uma concepção afirmada por vários pensadores. Continuamos a não poder prescin­dir das análises particulares. Mas penso que não conseguimos produzir muitas grandes obras de arte porque o Brasil pede de nós o que podemos — uma espé­cie de movimento contido que não destoe muito da maneira como nos organi­zamos socialmente. E às vezes é preciso mais. Roberto Schwarz que o diga.

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O mundo tem as caras que pode ter

Ismail Xavier

Hoje é freqüente o uso da noção de Guy Debord, “sociedade do espetáculo”, nem sempre considerando as implicações aí presentes no que se refere ao estado do capitalismo e ao regime da mercadoria, mas certamente com a intenção de reconhecer o aspecto sistemático, não incidental, da transformação de todas as esferas da experiência em imagem. O objetivo é quase sempre apontar as formas como se dissolvem os conteúdos de experiência em favor de relações sociais mol­dadas à comunicação e à velocidade dos efeitos. O mundo ajustado à publicidade é interpelativo na disputa de espaço diante da concorrência, e se todos viramos “produtos”, é geral o anseio de se fazer imagem, adquirir um certificado de exis­tência social a partir do privilégio ontológico de ter uma câmera apontada para si e alcançar os “quinze minutos de fama” segundo a irônica fórmula de Andy Warhol. Dentro desta dinâmica de relações pautada pelo fetiche da imagem como certificado de identidade, os que trabalham com cinema e vídeo já estão habituados a ressaltar o “efeito câmera” como elemento estruturante de certas situações em que é inevitável o pequeno (ou grande) teatro social onde cada qual assume um papel — ou imagem, como se ressalta hoje, dada a ênfase assumida pelo que se faz para os olhos na t v , no cinema, no vídeo doméstico, na foto, no

cartaz, na capa da revista. Resumindo,

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a câmera de cinema representa um estágio novo da técnica, faz pressentir modali­dades novas de convívio. Mobiliza impulsos como aquele que faz um torcedor sal­tar, para que os telespectadores da cidade tomem conhecimento de sua cara. Não que ele ache isto bonito, mas quer ser visto. A câmera de cinema tem um poder curioso, que é preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de serem o que são. Diante do olho impessoal, ao mesmo tempo que universal pelo alcance, mostram- se trejeitos e intimidades que normalmente se escondem com cuidado. O que é ver­gonha ou handicap visto por poucos, ganha dignidade de patrimônio nacional quando o público são todos.

Ou ainda: “O olho cinematográfico é um confessionário especial: quem ouve não é um padre autoritário, mas a nação em seus momentos de curiosidade e lazer: tudo que diverte merece absolvição, i.é, licença”.

As citações acima não foram extraídas de um texto recente de suposto lei­tor de Debord, nem de um ensaio sobre o reality show ou qualquer outro pro­

grama atual de TV; são passagens da análise que Roberto Schwarz fez de 8 V2 , de Federico Fellini, num artigo publicado em 1965.10 filme deu ensejo a uma aná­lise do problema da imagem no mundo contemporâneo pela qual o crítico con­

duzia uma argumentação hoje reiterada pelos que analisam a mídia, tal como eu mesmo fiz na abertura deste artigo. Há, de imediato, o senso da atualidade des­

tas linhas, embora estejam apoiando a leitura de um filme de ficção realizado em 1962, cujo valor, entre outros aspectos, foi sua capacidade de evidenciar a força social do “efeito-câmera” exposta numa situação imaginária.

Neste sentido, tomo aqui a pergunta “que horas são?”— mote deste encon­tro — como um convite para, a partir de uma referência ao que está na ordem do dia, comentar passagens como estas do trabalho de Roberto Schwarz que contêm observações de grande interesse para a discussão do papel das imagens na socie­dade moderna, não apenas quando tematiza a ansiedade exibicionista alimen­tada pela câmera, mas também quando explora, em outras direções, a relação entre 0 efeito câmera e a questão da fisionomia, tão complexa em toda a tradição do retrato, seja em passagens de romance e ou como gênero da pintura. No caso da análise da fisionomia, o crítico coloca em pauta o que, na experiência do cinema, não é apenas manipulação e tirania em face das nossas vulnerabilidades, mas 0 que é força expressiva, uma potência genuína de nos dar acesso ao que esclarece o sentido de certas relações — que têm ancoragem histórica — através

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do que se cristaliza e “faz figura” no rosto de um personagem (termo entendido aqui num sentido lato, que inclui qualquer pessoa tornada imagem impressa em suporte, feita disponível para o olhar e reolhar).

Meu objetivo é recapitular um par de questões em torno da fisionomia, res­saltar uma operação recorrente do crítico diante das imagens, sem condições para estabelecer o arco maior de articulações aí presentes se considerarmos seus ensaios sobre literatura e o que de correlato neles se revela no tratamento dos tex­tos. Fica o registro de que há um rico terreno a explorar neste vai-e-vem entre palavra e imagem, literatura e cinema, que envolve questões de método, digamos assim, mas estará aqui mais referenciado à sensibilidade particular do ensaísta.

Focalizo a crítica de Roberto Schwarz dedicada aos filmes, e me atenho a três artigos. Dois deles foram escritos em pleno apogeu do cinema moderno — o citado sobre 8 V2 e outro sobre Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, também publi­cado na Revista Civilização Brasileira, em 1966, quando esta era o principal vetor de opinião da esquerda em confronto com o regime militar recém-instalado.2 0 terceiro foi publicado na Folha de S.Paulo, em 1985, e analisa Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, filme que trouxe uma síntese da experiência do Cinema Novo, como que encerrando um ciclo, e se afirmou como notável documento desse momento de dissolução do regime militar a que a geração de Coutinho e de Roberto fizera oposição durante os seus vinte anos.3 O traço comum aos três ensaios é a procura do que, nos filmes, constitui a marca indelével do contemporâneo e permite problematizar o estatuto da imagem no tecido de relações de poder em cada um dos contextos sociais postos em foco.

No artigo sobre 8 V2, o crítico analisa a reposição dos impasses na vida do pro­tagonista da história: Guido, o cineasta em crise. De começo a fim, nós o acompa­nhamos a superpor suas memórias de infância e suas fantasias de onipotência masculina aos dilemas que enfrenta no presente diante da enorme pressão de que é alvo, seja a dos produtores (ele não apresenta soluções que permitam iniciar as filmagens), seja a de sua mulher (ele não dá fim às triangulações amorosas para ela inaceitáveis). Todos exigem decisões que ele não consegue tomar, e o impasse dá ensejo à exposição, em imagem, de sua vida interior, um dos palcos do drama. O tema central da análise de Roberto é a tensão existente entre a experiência dos per­sonagens tal como eles a percebem e a comentam em sua dimensão privada — notadamente Guido — e a dimensão pública de tal experiência, derivada na natu­reza específica do terreno em que o protagonista conduz o seu trabalho. “A profis­

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são de Guido é o contexto indispensável de 8 Vr. em contato com a industria do cinema, os problemas tradicionais do artista e do intelectual tomam feição nova e piorada.” A questão psicológica do menino que persiste no adulto, bem como a lida do artista com uma fixação infantil, são temas que propiciam o recuo a um clichê; mas o crítico esclarece: uO alcance maior do tema, entretanto, implícito, está na arti­culação de sua banalidade com a industria, que lhe dá potência”. Há, de um lado, a perspicácia de Guido (o que sabe ver); de outro, “o exibicionismo que sua profissão suscita”. No meio do caminho, desfila a galeria de tipos ansiosos por alcançar um lugar no universo das imagens, ter um papel no filme, tornar-se “personagens suas” ou simplesmente aparecer. Assim, as crueldades e fraquezas do cineasta, em si pequenas, “são monumentalizadas pela posse privada da engrenagem social”, uma vez que a idiossincrasia pessoal e o afã de autenticidade subjetiva mostram o seu lado prepotente, a tirania implicada no trato de atores, atrizes e entourage, que devem se ajustar à concepção do diretor ou a seus caprichos. Em síntese, “há des­compasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo que as rege”. A virtude de 8 V2 é expor este mecanismo ao mobilizar o olhar do cinema e instalar a diferença entre o modo de Guido se ver e o “nosso modo de vê-lo vendo”. Neste movimento, há a engrenagem da produção— o dinheiro, os problemas materiais, a imprensa espiã— e há o perfil das condutas diante da atração particular da ima­gem: 0 exibicionismo, a feição infantil da reação de todos diante do aparelho.

Se Fellini observa o mundo burguês e, através do que é específico ao cine­ma, torna grotesco seu refinamento e urbanidade, Os fuzis, de Ruy Guerra tra­balha outro tipo de tensão entre o olhar da câmera e o mundo. Estaremos em outro contexto social: “Assim como nos leva à savana, para ver leão, o cinema pode nos levar ao Nordeste, para ver retirantes. A indústria dispõe do mundo e também da sua imagem”. O cinema, como antes a fotografia, torna patente a assimetria de poderes nesse misto de proximidade e distância gerado pela téc­nica. Se 0 foco é a natureza, a constelação de forças é clara: “o espectador é mem­bro protegido da civilização, e o leão, que é de luz, esteve na mira da câmera como poderia ter estado na mira de um fuzil”. Se há humanos na tela, instala-se uma contradição mais delicada entre tal distância real, de espaço e de poder, e a continuidade psicológica. A simpatia com o sofrimento do flagelado faz perder 0 nexo efetivo da exploração que nos une separando, “cancela a natureza polí­tica do problema”. Continuando o argumento, Roberto nos diz que a compai­xão é resposta anacrônica, e quem evidencia isto é a própria técnica do cinema,

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que redefine os termos da representação. “É preciso encontrar sentimentos à altura do cinema, do estágio técnico de que ele é sinal.” O crítico repõe aqui o movimento da análise de 8 Vi, onde a questão era mostrar como a nova técnica da imagem deixava nítido o descompasso entre a moldura individual de certos sentimentos e sua efetiva significação no jogo de poderes mediado pela técnica. E avança o diagnóstico na caracterização das virtudes de Os fuzis diante do con­flito social extremo que focaliza: um grupo de retirantes famintos chega na pequena cidade, ocupa a praça e assusta o dono do armazém local, que chama a polícia militar para se proteger; soldados e retirantes vivem um período de inér­cia, uns vigiando, outros ali numa postura para nós enigmática— haverá explo­são? por que esta imobilidade? até quando?

Enquanto leva o impasse dramático à saturação, o filme separa as duas for­ças em confronto de modo radical, fazendo de um dos pólos a exclusiva seara dos que têm feição humana e vivem experiências que podemos ler, dada a semelhança de códigos, e do outro o lugar de uma alteridade na fronteira do humano, que parece regida por códigos que não compreendemos. Apoiado na técnica de base do cinema, Ruy Guerra faz com que a dialética de identidade e estranhamento, referida a nós, seja figurada na própria textura e composição das imagens. Há o estilo documental usado na filmagem dos que vivem a seca e a pobreza, e há o filme de enredo que envolve a trama psicológica dos portadores dos fuzis e dos condu­tores dos caminhões. De um lado, a feição opaca dos miseráveis diz bem o quanto “para aquém da transformação não há humanidade possível”— estamos longe da compaixão. De outro, a trama dos soldados, que representam o citadino, toma-se a esfera exclusiva de conflitos que se desdobram, pois os homens de farda são iguais a nós na individuação— têm propósitos, expressam o desejo ou o tédio. Há um isomorfismo entre esta descontinuidade de estilo e o tema do filme: “O ator está para o figurante como o citadino e a civilização técnica estão para o flagelado, como a possibilidade está para a miséria pré-traçada, como o enredo está para a inércia. É desta codificação que resulta a eficácia visual de Os fuzis".

O mérito decisivo de Os fuzis se expressa, portanto, na forma. Há, inclusive, clara afinidade entre o caminho de Ruy Guerra e certas soluções e rupturas encontradas em Brecht (Roberto Schwarz cita um artigo de Louis Althusser sobre o teatro de Brecht como referência para a sua análise). O procedimento constante do crítico é trazer a primeiro plano o problema dos meios de produ­ção, no caso o “dispositivo cinematográfico”,4 acentuando o seu efeito na inter­

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pretação da experiência, notadamente seu poder de revelar o que está pressu­posto, e tem dimensão política, nos dados formais da obra em sua relação com a realidade visada.

Examinando o artigo sobre Cabra marcado, vemos que, também aí, o movimento central é mostrar de que modo as condições de produção impri­mem uma inflexão especial ao projeto, desde a origem marcado por um pecu­liar imbricamento entre a história do país e a filmagem, de modo a prover um lastro forte para a aliança desejada entre as pessoas localizadas à frente e atrás da câmera. Trata-se novamente do Nordeste e de camponeses pobres, mas estamos numa situação que afasta de imediato o problema da simpatia do observador distante (que Ruy Guerra resolveu do modo descrito), pois o filme se faz de uma interação efetiva, continuada. O cineasta e seus personagens têm uma história comum: esta começa na parceria vivida no projeto original e nas filmagens de antes do golpe de 1964, se adensa na vivência comum da repressão, quando o filme foi interrompido, e se renova, em outros termos, na experiência do reen­contro em 1981, quando Coutinho retoma o projeto, recupera as imagens que sobreviveram aos acidentes de percurso e sai em busca dos amigos, da viúva e dos filhos de Pedro Teixeira, o líder camponês assassinado cuja luta política era o centro da história a contar.

Na primeira tentativa de filmar Cabra marcado, o procedimento envolvia o que hoje seria chamado de docudrama: reencenação dos fatos pelos próprios sujeitos que o viveram, ou seja, a família e os companheiros de Pedro Teixeira, um deles fazendo o papel do líder assassinado. Isto acarretava assumir uma estrutura dramática de tipo “ficcional” em que a expressão “baseado em fatos reais” estaria em registro fora do convencional, embora estivesse correndo os riscos de uma esquematização pedagógica que, conforme se vê nas imagens que sobreviveram à repressão, é compensada pela modéstia dos meios de produção que imprime uma feição especial a rostos e gestos que, do contrário, poderiam adquirir um tom de idealização do mundo do trabalho tal como se vê nos homens de mármore de certa arte militante seduzida pelo monumental.

Na retomada do projeto, a opção de Coutinho foi a de condensar seus anos de experiência como documentarista e registrar os caminhos do reencontro com os camponeses agora dispersos e vivendo novas circunstâncias. O cineasta usa o método da entrevista, de modo a tornar explícita a busca e suas conseqüên­cias, fazendo dela o seu assunto e de si próprio um dos protagonistas. Quase

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sempre — em especial, na primeira seqüência em que vemos a projeção do material remanescente do projeto antigo para um grupo dos que dele haviam participado— o que deflagra a conversa é a observação das imagens do passado. Documentos da aliança, estopins da memória, elas evidenciam, por outro lado, o contraste entre o passado e o presente, e as tensões a trabalhar nessa recapitu­lação que vem lançar novas interrogações, pois é outra a conjuntura.

No seu artigo, Roberto destaca o significado estético e político das duas cir­cunstâncias, a do primeiro encontro entre o jovem cineasta ligado ao c p c e os companheiros de Pedro Teixeira, e a do segundo, ressaltando a diferença — que o próprio filme expõe — entre as formas de sociabilidade presentes nos dois momentos. E ressalta: estes momentos estão separados, não só pelas mudanças políticas, mas também pelo enorme avanço da mercantilização das relações de trabalho e, em particular, da produção cultural. Em termos da questão do “dis­positivo”, a diferença se apresenta da forma seguinte:

Da primeira vez, em 1962, tratava-se do encontro entre os movimentos estudantil e

camponês, através do cinema, num momento de radicalização política nacional. O

que estava em jogo era o futuro do país, e as pessoas só mediatamente seriam o pro­

blema. Agora trata-se da obstinação e solidariedade de um indivíduo, armado de

uma câmera, que em condições de degelo político ajuda outra pessoa a voltar à exis­

tência legal, o que além do mais lhe permite completar o antigo filme. O que está em

jogo é o resgate de existências e projetos até segunda ordem individuais, ou melhor,

não tão individuais assim, já que o resgate se opera dentro da órbita do cinema, o que

introduz um novo aspecto de poder, de grande significado. Onde em 62 havia a rede­

finição do cinema e, por extensão, da produção cultural no quadro do realinha-

mento das alianças de classe no país, está agora a potência social da filmagem (“O

senhor é da Globo?”), entrando pela vida das pessoas — nesse caso para bem.

Dentro do apontamento “nesse caso para bem”, interessa a Roberto carac­terizar de que modo as entrevistas, embora tragam o festival de misérias, emo­ções fortes e reconhecimentos típicos do melodrama, escapam de tal armadura convencional justamente em função da aliança e da história partilhada, fatores que imprimem nova inflexão a momentos lacrimosos que, em outras circuns­tâncias, poderiam resultar em mais um exemplo de exploração e voyeurismo produzido pelo aparato do cinema. A potência da filmagem aqui adensa as rela-

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ções,ese resta alguma ambigüidade, esta não é do cineasta, mas da situação, cheia de contrapontos amargos ao lado bem-sucedido do reencontro. Há o filme que se completa, sendo totalmente outro, e há Elisabete, esta mulher que recupera a sua identidade social e emerge de vinte anos de clandestinidade numa situação em que se evidenciam seus movimentos de reencaminhar-se como sujeito diante da nova conjuntura.

A estrutura de relações entre o passado e o presente é complexa, e a atenção ao narrativo-dramático (o percurso de Coutinho e o dos camponeses rumo à convergência que, em verdade, repõem as perguntas) não satisfaz se não estiver articulada à análise do efeito-câmera, ou seja, daquilo que se condensa neste artigo com a expressão “potência social da filmagem”, a forma mais pregnante de Cabra marcado sinalizar a diferença entre o Brasil de 1962-64 e o de 1981-84.

Esta atenção ao que, na experiência heteróclita de um filme, envolve a pró­pria natureza da cinematografia como instrumento de registro e de questiona- £

mento das condutas sinaliza um forte diálogo do crítico com as formulações de 3 . Walter Benjamin na sua análise das relações entre avanço técnico e formas da % sensibilidade. No entanto, o dado original, nestes artigos, é mostrar como isto

— que muitos julgam “em princípio” saber — acontece em cada situação con­

creta, de modo que vemos ganhar corpo e determinação um dos postulados

benjaminianos: o cinema libera o inconsciente ótico da humanidade. Este não é o inconsciente da psicanálise nem as pulsões em pauta na terapia, mas uma rea­tivação do poder analítico do olhar e da percepção do detalhe que nos dá nova força na relação com a aparência e a fisionomia das coisas. O que estas análises

concretas nos mostram é que tais pressupostos fazem sentido, embora o tempo os tenha submetido a novo exame, pois certas formulações que tiveram seu mérito e sentido nos anos 1920-30, porque expressão de uma descoberta, ou recuperação do espanto diante do mundo, passaram a ser motivo da crítica de quem viveu momentos seguintes da cultura do cinema e não viu realizadas na prática as promessas reiteradas pelos que saudaram a nova técnica. O que a pro­dução de imagens nos mostrou, no século xx, foi a ambivalência do dispositivo técnico e o fato de que, em cada conjuntura, conviveram práticas impulsiona­das por concepções distintas, sem que nenhuma tenha, talvez, alcançado abso­luto êxito ou evitado as contradições e brechas que levam à produção de efeitos em princípio opostos aos desejados. A contradição ou, pelo menos, certa gama de efeitos imprevistos tem sido a condição efetiva da produção de imagens, seja

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na prática voltada para o desmascaramento das condutas e para a liberação de novos modos de percepção, seja na prática voltada para a rentabilização do cli­chê e para as simulações mais canhestras de espontaneidade.

A potência da filmagem tem sentido variável conforme tempo e lugar, como as próprias análises de Roberto indicam. Podemos acrescentar: também conforme o empenho e o projeto, a vontade de transformação ou o confor­mismo. A própria conjuntura que vivemos tem sido palco de oposições já bas­tante discutidas, que contrapõem uma radicalização da cultura do “sensacio­nal”, com todas as implicações mercantis, ao trabalho de cineastas que buscam justamente pôr em dúvida este mundo visível “sob medida” que se apresenta como disposição natural das coisas. Coutinho é o cineasta que tem, em seus fil­mes mais recentes, se pautado pela construção do espaço da entrevista como combate ao clichê, dentro de uma constelação de experimentos em que o docu­mentário contemporâneo interroga, novamente, o papel do dispositivo cine­matográfico na criação das situações. Desta forma, aposta na renovação da potência da imagem como acesso ao mundo, fora da rede de simulações, num movimento que remete ao cinema moderno, este mesmo que se fez o objeto por excelência da análise de Roberto nos três artigos aqui em foco. Após os tempos mais vigorosos das vanguardas históricas e sua lida com a nova arte nos anos 20, foi o cinema moderno dos anos 60 que recuperou com toda a força este senso forte do registro do instante, a criação de um nexo entre câmera e mundo que não depende das (não se subordina às) exigências do que há de convencional nu­ma fórmula dramática. Buscou dar ensejo ao surpreendente, ao não previsto, à irrupção do gesto ou do olhar inesperado, montando experiências em que não se tratava de desqualificar o mundo visível como aparência necessariamente enganosa, mas sim de interrogá-lo com o novo olhar do cinema. Torná-lo objeto de dúvida, por certo, mas também de revelações, quando uma fisionomia con­densa todo um estado de coisas, ou de intermitências, hesitações que ganham novo sentido, como evidencia a análise aqui citada de 8 lá.

A seu modo, o documentário contemporâneo quer repor este processo num momento mais delicado de avanço da imagem-espetáculo, de modo a esta­belecer nova rodada de conflitos com o universo visual administrado pela in­dústria dos meios de comunicação. Faz um movimento de contracorrente, nada ingênuo, de renovar a crença na imagem como espaço de indagação e pesquisa, um corpo-a-corpo com a experiência capaz de esclarecer o sentido destas inte-

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rações entre o sujeito e o aparato. Deve definir, portanto, outro tempo para que se possa “ver” a evolução de um rosto, as hesitações de um gesto sem fundo musi­cal superlativo, sem estarmos atropelados pela velocidade dos estímulos, de modo a tornar visível a imagem além do clichê. Seu intuito é reter a fisionomia, a fala, o estilo, o modo de cada um se portar diante da câmera e do cineasta pre­sente, recuperando posturas que teóricos dos anos 20 diriam mais compatíveis (inexoráveis a longo prazo?) com a técnica cinematográfica, encaminhando uma aposta que foi renovada por autores como Walter Benjamin que, na década seguinte, formulou de modo mais preciso o sentido dessa historicidade da per­cepção implicada nas propostas da vanguarda.

Em seu momento inicial, voltada para o elogio da velocidade, da simulta­neidade, do choque e da nova “inteligência” pressuposta pela nova tecnologia da imagem, esta constelação de idéias positivadoras do cinema per se debateu-se, ao longo do tempo, com o outro lado da moeda: a apropriação de tais virtudes por forças contrárias ao potencial emancipador da nova imagem — incluída, por exemplo, a relação do cinema com a propaganda fascista. E viveu uma história mais complexa em que aprendeu a valorizar os atos de “puxar o freio”, encontrar outro tempo da imagem, articular apontamentos, observações do mundo feitas de uma interação menos agressiva entre o conteúdo da experiência e o modo de registrá-la. Foi a prática do cinema articulada com tais reflexões sobre tempo e montagem — dentro de uma óptica que não descartou a duração e os efeitos da retenção do plano — que alcançou novos efeitos fisionômicos capazes de crista­lizar um diagnóstico social, este que críticos como Roberto capturam na suces­são de imagens desenhadas por um rosto porque submetido ao escrutínio da câmera. Em resumo, se as formas do efeito-câmera dependem de cada circuns­tância e projeto, não foi por acaso que a sintonia entre o crítico e a originalidade da obra (“potência da filmagem”) ocorreu em casos como o de Fellini, Ruy Guerra e Coutinho (como poderia se dar diante de um filme de Antonioni).

Quando o crítico equaciona e explora com lucidez a questão do disposi­tivo, ele pode aprofundar a questão do estilo e repor a questão do realismo em outros termos, não exclusivamente narrativo-dramáticos, ou a partir de uma forma engessada. Este é o avanço alcançado quando se incorpora a análise dos meios de produção — históricos em sua natureza — como elementos constitu­tivos dos efeitos de sentido. Isto, no caso do cinema, significa levar em conta o seu nexo peculiar com o mundo trazido pelo registro fotoquímico, um fator que

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potencializa o efeito indiciai da fisionomia, alcança certa dimensão analítica no enquadramento de um rosto, desde que a duração do plano permita a captura de micromovimentos, avanços, hesitações. É bastante complexo este encontro entre câmera e objeto, esta captura do instante, do efêmero, do instável, como desde o início do século xx insistiram os teóricos. Há que se observar sempre os dois pólos da equação, repor as perguntas: quem filma? como filma? como reage quem está na mira da câmera?— pois não se trata de supor uma verdade lá inerte à espera da descoberta como na ciência positiva. O rosto não compõe uma ana­tomia sujeita à medida e à inscrição num tipo fixo, com inclinações e caráter determinado; a expressão fisionômica opera aqui como cristalização de relações sociais; tem história e se insere em contextos específicos, como bem evidenciam Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche.5

Estes autores, ao analisar a história do rosto como o lugar, ao mesmo tempo, mais íntimo e mais exterior (social) do sujeito, dirigem a sua indagação a um período associado à formação da subjetividade moderna, séculos xvi a xix, e muito do que observam ao considerar os protocolos de expressão e dissimulação na vida cotidiana se articula com o desenvolvimento do retrato na pintura e no romance, em particular com aquela conexão entre o sentido geral e o detalhe visível que nos foi ensinada pelos escritores. O seu percurso torna evidente os exageros que mar­caram os primeiros teóricos do cinema quando acentuaram uma suposta oposição radical entre o visual e o literário. Béla Balász, por exemplo, ao exaltar a nova téc­nica da imagem como o retorno do “homem visível” e a inauguração de um novo campo de fisionomias, faz justa celebração do poder analítico do close-up como emergência de uma nova face visível dos homens, mas deixa implícita a idéia de um renascimento que teria como pano de fundo uma visão redutora da constelação cultural do livro impresso— esta seria o lugar de uma atrofia generalizada do olhar, hipótese que a própria literatura anterior ao século do cinema desautoriza.6 O que, de fato, se instala, com a fotografia e o cinema, é uma nova interação entre o visual e o literário marcada pelo novo estatuto da imagem num contexto cultural em que as técnicas de registro e de reprodução engendram um ponto de inflexão na histó­ria do rosto, do olhar e da sensibilidade. Tal história não se inaugura ex abrupto no final do século xix, como bem mostram as análises que tomam a fisionomia em sua dimensão cultural e histórica, quando cenografia, rosto humano e condição social mostram as suas conexões mais efetivas.7

A expressão fisionômica interessa, portanto, não como objeto de uma taxo-

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nomia própria aos estudos de caráter (de Lavater aos delírios positivistas), mas como marca visível de uma rede de relações entre corpo e sociedade. Neste sen­tido, ela taz parte da história dos homens de um modo muito especial, pois o rosto se taz signo pelo modo como anuncia ou recusa uma expressão singular ou um processo de individuação que se associa à “civilidade”, esta mesma que os rostos dos camponeses em Os fuzis parecem negar diante de nossa óptica particular armada pelo cinema. Como observei, a fisionomia faz sentido, não apenas como imagem de uma disposição momentânea e sentimentos correlatos, mas como um condensado que envolve uma história acumulada cujas marcas podem com­por uma forma resistente ao olhar da câmera ou procurar a sintonia com ele. Quando opaca, ela pode, por esta condição mesma, tornar-se figura novamente, quando o crítico lê em sua textura a natureza própria de uma situação dramática, o caráter social deste semblante da inércia (não explosão) que se opõe ao mundo em que há psicologia em cada rosto, senso de justiça. No filme de Ruy Guerra, há a trama, o conflito de base, a construção de uma descontinuidade não resolvida entre os dois mundos (o do camponês e do citadino); e há também, como crista­lização desta rede de relações, uma certa forma de o rosto se fazer presente na tela. Tal forma aguça a percepção e torna visível os valores e condições materiais que fundamentam esta descontinuidade: “No filme de enredo, que é de nosso mundo, presenciamos a opressão e o seu custo moral; o close-up é da m á-fé. No filme da miséria, pressentimos a conflagração e sua afinidade com a lucidez. O close-up é abstruso, e não fosse assim seria terrível” (grifos meus).

No filme de Coutinho, é outra a situação que preside o encontro entre câmera e camponeses, pois valem a história partilhada e a simpatia mútua como lastro da interação. Situação que permite, por exemplo, a Elisabete superar a reticência ini­cial e entregar-se com mais desenvoltura ao diálogo, liberando sua loquacidade e, ponto que interessa aqui, sua expressão corporal, fisionomia. Ausentes os que estão“do outro lado”, cria-se o espaço da confiança entre os parceiros que, embora em situações de classe distintas, reconhecem o inimigo comum. Nesta atmosfera solidária, de empatia e de diferença, o rosto de Elisabete compõe figura, resu­mindo o que está implicado, como história social, neste reencontro:

Quando tala na violência do latifúndio, Elisabete vira para baixo os cantos da boca,

um gesto por assim dizer admirativo, de que estão ausentes as desgraças pessoais,

o medo e mesmo o cSdio. É com o uma espécie de objetividade, de consideração

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pelo vulto dos estragos e das maldades de que ele é capaz. É com o se fosse uma fera

descom unal, ou outra calam idade enorm e, com que é preciso contar, e cuja

dimensão é melhor reconhecer. Um saber tácito, de quem viu a onça, sem propa­

ganda ou doutrina, que dá urna rara versão da luta de classes, limpa de oficialismo

de esquerda. Há muitos anos, vendo uma fotografia do enterro de Neruda, logo

depois da queda de Allende, julguei perceber uma coisa semelhante no rosto aca­

brunhado dos presentes.

O decisivo nesta imagem de Elisabete, tal com o descrita, não é propria­

mente a expressão do sentimento per se, mas o que a circunstância permite aí

notar como emergência de um novo rosto que, com o form a de individuação, é

distinto da fisionom ia dos citadinos que portam a câm era, diferença que se

afirm a agora num a chave oposta à dos close-ups abstrusos. Tão reveladora

quanto estes, a expressão dela é, no entanto, totalm ente dialógica, e se mostra em

compasso com a dimensão pública do olhar arm ado que o cinem a lhe dirige,

não havendo tensões entre a potência de exposição própria ao cinema e a forma

com o se compõe a sua fisionomia.

O filme de Fellini, na percepção de Roberto, traz essa marca de uma emer­

gência que, histórica em sua natureza, encontraria no cinem a a sua face visível,

dado o teor da relação entre a técnica (o olhar da câm era) e a experiência dos

homens. No m ovim ento final de seu ensaio, a questão da fisionom ia vem con­

densar em imagem a constelação de problemas discutidos, ao longo do artigo,

em torno dos com portam entos burgueses que se desmascaram em sua obsoles­

cência diante das form as de exposição públicas criadas pelo cinem a, eviden­

ciando um descompasso entre a m oral, o pleito de autenticidade e as sinaliza­

ções vindas dos corpos, em especial o que de revelador se expressa nos trejeitos

de rosto que não valem aí apenas com o expressão orgânica (fisiológica) de uma

interioridade em seu sentido isolado, mas com o imagem do que põe esta subje­

tividade em relação com o seu contexto de m odo a com por a fisionomia de um

tipo social datado, seja a do intelectual angustiado, seja a da esposa moderna,

esta desconfortável com suas próprias reações que correspondem a uma con­

venção que sabe mentirosa e de que se julgava livre.A descrição final dos rostos de Clara e de Guido os evidencia como o decal­

que de um tempo, expressão de um novo tipo social construído pela história:

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Nasce um tipo novo de fisionomia, correspondente específico desta constelação: a

fisionomia do intelectual, do homem cônscio e cioso de suas contradições. Tanto

que sei, foi posta na tela por Fellini e Antonioni pela primeira vez. O rosto é desgas­

tado, mas não pelo esforço físico, de modo que guarda traços juvenis, que não são

felizes; é livre e expressivo por instantes, embora em geral pareça preso, não pela

estupidez, mas pela consciência logo maníaca de suas próprias contradições; há fra­

queza, mas não apodrecimento, pois o esforço de buscar a verdade, de viver a vida

mais ou menos certa, é constante. Dirigida contra Guido, mas também contra si

mesma, a mistura tensa de desprezo, piedade e fúria foma um rictus espantoso à

volta da boca de Luisa. O seu rosto doído, consciente e destrutivo é um emblema,

tão verdadeiro para o filme quanto o sorriso de Guido, generoso, complacente e

depressivo. O mundo tem as caras que pode ter.

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Graciliano e a desordem

Ana Paula Pacheco

Por questão de altura não farei elogios ao mestre que no final do evento em

sua homenagem, com a alegre simpatia de sempre, afirmava não desejar ouvir

seu nome por pelo menos uma semana.

Minha intenção aqui é enfocar dois romances de Graciliano Ramos de uma

perspectiva que encare de modo sistêmico (conform e a vocação que é delas)

descobertas críticas de Roberto Schwarz e de Antonio Candido. É a partir do que

o homenageado mostrou sobre um deslocamento central feito pelo romance de

Machado de Assis e a partir da dialética da ordem e da desordem que Candido

descobriu no romance de Manuel Antonio de Almeida que gostaria de voltar a

Angústia, passando antes, em cronologia invertida, por Vidas secas. Para isso será

necessário retomar brevemente alguns pontos de ensaios conhecidos.

Como se sabe, e nisto reside uma de suas dificuldades, refletir sobre roman­

ces brasileiros supõe como trabalho de análise interrogar modos de pensar as

teorias do romance, que, implicando em alguma medida também a nossa litera­

tura, tiveram como eixo proposições que são decorrência histórico-estética do

centro burguês. Numa perspectiva da história literária, inicialmente seria pre­

ciso pensar na importação de certa maneira de conceber o “gênero” na Europa

( incluindo-se a importação de temas) para tratar de questões que aqui não esta­

vam sendo vividas historicamente do mesmo modo. Há uma anedota curiosa,

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citada por Roberto Schwarz em “Crise e literatura”1 que mostra como Alencar, enquanto imitava formas européias, percebia diferenças. O escritor cria uma correspondência com uma leitora fictícia: numa carta ela reclama da falta de grandeza das personagens de Senhora; como autor, de outro lado, Alencar res­ponde que foi proposital, que quisera fazer um retrato do “tamanho flumi­nense” de nossos dramas humanos. O tipo de herói do romance romântico europeu no contexto brasileiro pareceria “gigante de pedra”. (A questão afinal não será bem de tamanho, mas de documento: contraste entre personagens e conflitos imitados, e outros, locais. Roberto, a propósito, lembra que a situação brasileira apresenta com relação ao centro diferenças internas à ordem capita­lista moderna, portanto não é algo menos, no sentido de um padrão moderno a ser alcançado, embora o país ocupasse, como ocupa hoje em plena “globaliza­ção”, posição diminuída.)

Um problema surge para o escritor brasileiro quando se trata de pensar a empresa heróica do sujeito no mundo, mas ele o trata em termos de proporção (nossos heróis são menores que os de lá), o que faz de Senhora um romance sem “gigantes de pedra”, ainda que cheio de artifícios em nosso contexto histórico- cultural. Para os artifícios, basta lembrar que Aurélia compra um marido — o dinheiro, mediação universal da vida moderna, ensaia tomar a cena — , e o escri­tor, buscando corrigir a lente de aumento posta no “tamanho fluminense” de nossa realidade (em que vigiam os casamentos arranjados, mas sem que o dinheiro viesse a ser o nexo fundamental das relações sociais brasileiras), faz Sei­xas apaixonar-se por ela; as humilhações decorrentes do negócio serão as linhas tortas por meio das quais se endireitará seu caráter para o final romântico. Em termos estruturais, o que é artificioso revela a preocupação de encaixar, no modelo, padrões brasileiros: Alencar coloca no centro de seu livro enredo e per­sonagens à européia; nas bordas, componentes do mando, do favor, dos arran­jos privados marcam presença, sem serem decisivos para o andamento do enredo. Ou ainda: o que parece (e é) artifício configura também um impasse, cuja força mimética chega a caracterizar contradições da vida nacional, embora o faça de maneira justaposta.

Estudando Machado de Assis, o crítico repassa a estrutura básica do romance modelar francês: nos de Balzac, por exemplo, há uma personagem que quer realizar os ideais da sociedade burguesa, que são também os seus como indivíduo; ocorre que tais ideais chocam-se com a realidade do dinheiro e do

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poder, e a personagem vê malograr a realização de seus sonhos (malogro tangí­vel, por exemplo, no trajeto de Lucien de Rubempré, n’As ilusões perdidas, que, entretanto, como lembramos, depois “muda de sonhos”). Ora, uma vez que a ordem burguesa fundada na impessoalidade foi aqui ideologia de segundo grau, o estranhamento entre indivíduo e sociedade não estava absolutamente dado no Brasil do século xix — relações escravistas e de favor imprimiam a marca da pessoalidade ao capitalismo. Assim, o eixo do romance brasileiro que esteve atento a certo sentimento íntimo do país e do tempo não poderia ser, naquele momento, o dinheiro ou os ideais burgueses; foi antes uma percepção singular das relações de pessoalidade, na versão do favor (numa sociedade liberal, capi­talista e escravocrata) que deu a Machado de Assis seu núcleo formal, como mostrou Roberto.

Entretanto, o romance brasileiro anterior a Machado não foi só a imitação “diminuta” (fraturada ou não, o que faz a diferença e dá lugar de destaque a Alencar), pelo viés da classe dominante, daquilo que se produzia na Europa. Por vezes ecoou mais fundo, dando representação a um modo de se constituir, ou de não se constituir, nosso sujeito, e de se dar, ou não, sua demanda de sentido. Ana­lisando Memórias de um sargento de milícias, Antonio Candido aponta para um aspecto não desligado da pessoalidade, mas uma das conseqüências dela: a “dia­lética da malandragem”, princípio que regeria o livro, e que se engasta num prin­cípio estrutural mais amplo, a “dialética da ordem e da desordem”.

A hipótese a testar é a de que esse princípio estrutural poderia ser estendido a outros romances brasileiros que compreendem impasses da formação de nossa identidade pública, sem que esteja necessariamente presente a “malan­dragem”, no sentido de uma figura local do “trickster”.2 A reposição de um modelo de normatização da sociedade, cujo ritmo parece inscrito na literatura, envolve, no caso, momentos históricos diversos e, portanto, diferentes nuances das tensões e da reversibilidade entre ordem e desordem. Envolve também, como não poderia deixar de ser, diferentes horizontes do olhar crítico.

Na “Dialética da malandragem”, a idéia de uma integração entre ordem e desordem, não apenas como atitude muito brasileira de “tolerância corrosiva”, mas também como suspensão de conflitos históricos, sob a ótica popular-fol- clórica, dá-se como dialética ficcional (num universo sem culpa, diz Candido, “entrevemos o contorno de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis”). Naquele momento, segundo pareceu ao crítico, com algum potencial utópico:

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haveria uma possibilidade, inscrita no ethos da cultura brasileira, de superação daquela dialética incompleta entre os dois pólos (assim indica a aposta histó- rico-ideológica no final).3 Posteriormente, leituras equivocadas fizeram desse texto de 1970 pretexto para uma aposta generalizada na “carnavalização” da desordem do país, pervertendo o que era visto como tensão: uma ordem desor­deira e uma desordem que criava alguma brecha na sociedade figurada em Memórias de um sargento. Também nesse sentido, retomar o assunto num autor em que a malandragem não está em foco talvez seja proveitoso.

Voltando então ao fio que procurávamos traçar:Candido mostrou, entre outras coisas, que na construção literária de

Manuel Antonio de Almeida são representados, em chave cômica, e remetendo ao “tempo do Rei”, aspectos da relação de equivalências e contaminações recí­procas entre ordem e desordem na sociedade brasileira da primeira metade do xix. Mesclando representação de formas sociais brasileiras e estilização do fol­clore que tematiza a astúcia popular-malandra, o livro configura aspectos do destino dos homens livres brancos pobres na sociedade escravocrata— quando a mistura de ordem e desordem, por um lado contingência dessa camada opri­mida, podia, entretanto, garantir-lhe certa mobilidade.4

Com Machado de Assis (sobretudo em Brás Cubas), o plano alegre da ma­landragem,5 presente em Manuel Antonio, reverte-se na explicitação de sua lei cínica: a estratégia irônica da composição revela insistentemente a infração à lei como regra social brasileira. Vale observar que a tonalidade, de cômica, passa a galhofeira.

Se tal regra não se modificou substancialmente durante nosso processo histórico e de algum modo continuou presente na representação literária sob diversos ângulos e tônicas (vide Serafim Ponte Grande e Macunaíma, vide a representação do exército como instituição bárbara em Euciides da Cunha, a reperspectivação do conceito de ordem em Lima Barreto, entre outros), a obra de Graciliano Ramos nos propõe a retomada do problema tanto pelo viés da lei cínica do poder (tal qual se entrevê em São Bernardo), como, salvo erro — em resposta a um novo momento histórico e em outro espaço social — , pela invia­bilidade da perspectiva malandra nas camadas intermediárias e baixas da socie­dade, o que nos interessará aqui. Na ficção de Graciliano persistem o reveza­mento e a equiparação entre ordem e desordem, em diferentes classes sociais, mas como estagnação e violência, o que nos levaria a pensar suas tensões como

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as de um outro estágio daquela dialética. Negatividade a ser especificada, por enquanto como uma primeira aproximação do problema. Vejamos.

Em Vidas secas, de 1938, os materiais históricos — o Nordeste dos anos 1930, submetido ao influxo da industrialização nacional que atraiu contingen­tes populacionais do campo para a cidade; o assolamento das familias pobres, causado pela seca— problematizam a grandeza inerente à estrutura do“gênero” romance, numa economia literária reduzida. São poucos os acontecimentos, poucas as palavras das personagens e o que se mostra de seus pensamentos; o enfoque multisseletivo não altera (nem para Baleia) a circunscrição das preocu­pações — comida, sonho de uma vida melhor, viagem próxima (exceção talvez para o “inferno” que ocupa a curiosidade do menino; haverá lugar pior?). Por

questão de verossimilhança, nada aqui se assemelha ao “herói problemático num mundo degradado”.

A história é bastante conhecida: Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos são retirantes da seca nordestina, pessoas famintas que, trabalhando em sítio alheio, cuidando de gado alheio e arcando com os prejuízos, lutam para suprir, mal, as necessidades mais básicas. Acuada pela pobreza, a família vive uma exis­tência errante, à margem e sem ferir a ordem. Tornam-se, entretanto, fugitivos, na expressão usada pelo narrador, a cada vez que o trabalho, “livre”, é impossi­bilitado (pois, com a seca, não há mais bois de que cuidar).

Fabiano busca a si mesmo refletindo sobre seu estado material, sobre sua dignidade de homem. A falta de nome para muita coisa que o cerca e os entraves do pensamento dão a medida do esforço e da dificuldade de perceber os meca­nismos sociais que o subjugam. Dão também a medida do esforço e da impos­sibilidade de constituir-se como sujeito — em tais condições, dizer “eu” é uma ousadia a ser imediatamente emendada: “Fabiano, você é um bicho”.

Visto que a busca de si mesmo não encontra seu objeto, a proposição mais ampla é entender como se dá a demanda de sentido. É o percurso desse “como” que parece implicar uma dialética de ordem e desordem, visível, no caso, mais à tona da composição. O andamento cíclico no qual a ordem desordeira final­mente se impõe passa pela interpenetração das duas instâncias, na mente de Fabiano e no balé que se estabelece no mato, longe da polícia, entre este e o sol­dado amarelo. No mato, ao desmando que reina no vilarejo responderia uma

desordem ordenadora em sentido bastante particular: a violência faria daquele

que não é sujeito de direitos, um hipotético sujeito de fato. Mas tudo é contradi-

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(¿ño nos pensam entos de Fabiano, de m odo que acom panhá-los é freqüentar

esse terreno resvaladiço.

No capítulo “Cadeia”, Fabiano é preso por xingar a mãe do soldado amarelo enquanto este lhe pisava com força nos pés porque Fabiano não se despedira após o jogo de trinta-e-um. O soldado manda que“faça lombo”; Fabiano se ajoelha, uma lâmina de facão bate em seu peito, outra nas costas. O interesse da cena não está só nos abusos da “autoridade”, sem peias, mas sobretudo na refração que causam em Fabiano, acostumado aos desmandos dos donos da ordem. Entre consolar os com­panheiros e lembrar o modo como tudo funciona, a contradição se instala:

Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia,

dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as

violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüen­

tavam cipó de boi oferecia consolações: — “ Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita”.6 [p. 37; grifos meus em todas as passagens]

Em seguida, Fabiano desconfia de que o soldado amarelo não seja governo. “Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar”, e imagina o amarelo ten­tando impor seu mando a um cangaceiro na caatinga. Então percebe-se um sujeito dentro da ordem, o que não lhe vale nada.

No capítulo “O soldado amarelo”, Fabiano o reencontra um ano depois, na caatinga, longe do braço da lei. Distraído pelo caminho, cortando o mato, chega involuntariamente a lâmina do facão rente à cabeça do soldado, que agora treme. Numa seqüência de oscilações em que a ordem pesa e ao mesmo tempo não pode estar ali (no mato, num soldado trêmulo), a virilidade de Fabiano ganha pulso enquanto ele, irritado, constata não ser capaz de tocar num fio de cabelo daquele homem que “ganhava dinheiro para maltratar as criaturas ino­fensivas”. A emergência do impulso violento e o reconhecimento da incapaci­dade de vingar-se criam a dança narrativa extremamente tensa: “Irritou-se. Por que seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não via?” (p. 129); “Fabiano pregou nele os olhos ensan­güentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas” (p. 129); “O soldado encolhia-se, por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas pal­mas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de inconsciência [...] Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impo-

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tente fo i tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo” (p. 130). Refreando o impulso, a idéia de um su jeito poderoso, homem do governo, volta de modo grotesco, enquanto o amarelo se esconde: “Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior...” (p. 130). Vendo, contudo, a fraqueza do soldado, as contradições se impõem mais uma vez — no compasso do orgu­lho ferido — , e novamente contra si mesmo:

Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não

entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do

governo não é desfeita, e Fabiano até sentia orgulho ao recordar-se da aventura.

Mas aquilo... [...] Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha

receio de empregar tipos direitos, [p. 131]

Como se nota, nesse momento os “tipos direitos” seriam aqueles cuja vio­lência não arrefece em circunstância alguma. A ordem, ainda que feita de arbi­trariedades, teria de ser mais forte do que ele: “Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que o outro” (p. 132). O espelho da violência seria o que lhe resta para a afirmação da identidade.

A prospecção das forças (arrefecidas) vai até o final do capítulo, quando tudo volta ao normal: “Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o sol­dado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. — ‘Governo é governo.’ Tirou o chapéu de couro, cur­vou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo” (p. 134).

É patente a simetria oposta entre Fabiano e o soldado amarelo: a ordem desordeira subsiste apoiada naqueles que não querem confusão (ou não conse­guem levá-la a cabo) e se contêm — “acanalhados e ordeiros”— , o que justifica, ironicamente, que sejam desprezados pela ordem. Nesse sentido é interessante que sua primeira fantasia seja imaginar o soldado diante de um cangaceiro, na caatinga.7 Só a afirmação pessoal violenta, segundo a lei do “olho por olho”, pode­ria tornar um indivíduo que não existe publicamente num homem para os outros e, então, para si mesmo e para os seus: “Dormiria com a mulher, sosse­gado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente” (p. 133).

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O impulso é quimérico, não representa nenhuma alteração nem na cons­ciencia nem nas possibilidades de reação por parte de Fabiano. Sem prejuízo do balé na caatinga, nada se move de seu lugar social naturalizado. Como indicou Antonio Candido num texto sobre os cinqüenta anos de Vidas secas* a organiza­ção do livro dá-se em segmentos, e não em fragmentos— provavelmente porque não se trata da experiência do herói do romance que, fragmentária, impossibilita a decantação, e sim da configuração literária de algo ainda mais problemático: uma vida segmentada, sempre por recomeçar.

Como a lei nada lhe garante efetivamente, como os proprietários locais não se responsabilizam pela violência da natureza árida, e como Fabiano não é um “desordeiro”, a ordem, no livro, repõe ad infinitum o fundamento na miserabi- lidade. O ângulo narrativo, na medida do seu silêncio, reitera essa percepção que Fabiano tivera, confuso, diante do soldado no mato, mas mostra o ciclo vicioso em grande angular no final, quando região e cidade grande se unem.9

Ordem fundada na exclusão — desordem máxima — , num contexto de absoluta precariedade de direitos, ao passo que (retomando nosso ponto de referência) à desordem malandra presente nas Memórias de um sargento de milí­cias substitui-se uma idéia de desordem vingativa, como miragem projetada pelo desejo de Fabiano.

Se em Vidas secas, pela ótica de Fabiano, há deslizamento da ordem para a desordem — reversível conforme o medo de ver-se sem uma lei maior do que suas fraquezas — , em Angústia temos um quadro mais amplo de inversões e inte­gração entre os dois pólos, resultando praticamente na indistinção de ambos.

Até pela diferença de universo social, neste livro de 1936 o escritor fran­queou com mais liberdade a consciência do protagonista, flagrando de modo radical (talvez inclusive porque menos depurado) tal limite de indistinção entre ordem e desordem, sedimentado no mais fundo da subjetividade.

Em Angústia a perspectiva é mediada, e desfigurada, pela “introspecção”: trata-se das notas de um personagem ainda não completamente restabelecido de um surto psicótico.10 Após trinta dias na cama, sofrendo alucinações, Luís da Silva tenta recompor a trajetória que o levou a matar, com as próprias mãos e uma corda, Julião Tavares, sujeito ainda presente nas visões persecutórias desse narrador-protagonista.

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O crime tem como causa próxima o fato de Julião ter lhe roubado a noiva, Marina, uma vizinha muito bela e fútil, suscetível ao brilho do ouro. A história se passa em Maceió, quando o protagonista tem 35 anos. Funcionário público de classe média baixa, Luís da Silva mora de aluguel com a empregada, Vitória, numa casa cheia de ratos. Mesmo trabalhando à noite num jornal, que despreza, e pegando outros serviços pífios depois da repartição, contrai dívidas para satis­fazer os caprichos de Marina. A moça, contudo, comove-se pouco com os seus esforços e não pensa duas vezes quando o rico Julião, recente “amigo” de Luís da Silva, também mostra interesse em agradá-la. Não tanto o ciúme, mas o ódio ressentido do ex-noivo diante do novo namorado inescrupuloso, que sempre teve tudo fácil, por herança, move-o a fantasiar repetidamente o assassinato do concorrente, levado a termo quando Julião deixa Marina, grávida dele, por um novo bem, “menos gasto”.

Esse centro do entrecho — do momento em que Luís da Silva avista Marina se mexendo entre as roseiras do quintal ao lado até o namoro e a perda progres­siva da noiva para o herdeiro da Tavares & Cia., seguindo-se o adensamento e a consecução da idéia fixa de matá-lo — é contado por alguém dividido entre o sujeito maledicente, crítico, porém adequado à ordem, e outro, desordeiro,“inci­vilizado” (como pensa serem os cangaceiros), que aflorou em si. A conjuminân- cia entre ordem e desordem, em Angústia, traz a imagem trágica da cisão de um sujeito que já não se reconhece, e cuja violência é o extremo da própria desordem interna que aflora ligada ao senso de uma ordem que não se cumpre no mundo.

Esse senso de uma ordem que não se cumpre cria, entretanto, reações dúbias e um modo dúbio de lidar com apropria exclusão. Tudo que procura é manter uma vida digna, o que, todavia, depende de muita subserviência na repartição onde trabalha. Despreza os políticos locais, o que não o impede de defendê-los em artigos de encomenda, que escreve como ghost writer. Discorda veementemente das injustiças, é solidário com os miseráveis, mas chega, num momento em que sente pela primeira vez o autocontrole ameaçado por impul­sos que Marina desperta nele, a concordar que uma ordem autoritária pudesse melhorar alguma coisa: o diretor da repartição lhe diz que necessitavam de um governo forte, porque “o povo andava de rédea solta”. Luís da Silva concorda: “E o que eu digo, doutor. Um governo duro. E que reconheça os valores”. Vendo a cena em retrospecto, após o surto, lembra que naquele tempo ele se considerava

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valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim valor. O aluguel da casa estava

pago. Andava em todas as ruas sem precisar dobrar esquinas. Por uma diferença de

dois votos, tinha deixado de ser eleito secretário da Associação Alagoana de

Imprensa. Quinhentos mil-réis de ordenado. Com alguns ganchos, embirava uns

setecentos. Podia até casar. Casar ou amigar-me com uma criatura sensata, amante da ordem. Nada de melindrosas pintadas.11 [p. 39]

Flerta com a ordem, critica os abusos estabelecidos. Discutindo com os amigos, Moisés e Pimentel, discorda da possibilidade de revolução operária no Brasil (“História! Essa porcaria não endireita. [...] Quem vai fazer revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem. E os camponeses votam com o governo, gostam do vigário”, p. 49), mas confessa desejar que Moisés o convença de que não tem razão e que seu Ivo, o amigo bêbado e miserável, se revolte.

Nesse sentido vale lembrar que, até conhecer Marina, Luís da Silva era, como diz, um “homem de ocupações marcadas pelo regulamento” e que, tam­bém segundo ele, Julião Tavares veio perturbar a vida “cheia de obrigações cace­tes”, medíocre e ordenada, que há tempos levava. O drama amoroso é uma espé­cie de detonador — as injustiças de Marina com ele, de Julião com Marina — que torna insuportável a consciência da inversão de valores no mundo que o cerca, e o faz passar do lado da ordem, que ele sempre viu arbitrária e iníqua, mas que talvez pudesse lhe dar algum valor, para a desordem. Assim, é a consciência perturbada que se torna capaz de expor de modo flagrante, conforme avança­mos com ela rumo ao crime, a desordem máxima (a ordem perversa, regulari­zada) com a qual normalmente se convive. Aquilo que o protagonista antes via de modo crítico e frio — muitas vezes no compasso de sua própria adequação ao estabelecido — torna-se premente após o assassinato, quando temos um mundo despertado, fruto de alucinações e mais real. (Veja-se a abertura do livro, em que, ainda fraco, Luís da Silva tem a impressão de que os vagabundos “cres­ceram muito” e que, aproximando-se dele “não vão gemer peditórios: vão gri­tar, exigir...”;12 ou a visão que tem de pessoas na vitrine de uma livraria, “pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se”).

Em delírio febril, após matar Julião, Luís da Silva formula para si mesmo, no único momento em que denega o crime, a percepção de que há causas maio­res que determinaram sua ira e o ato impulsivo: “Senti-me vítima de uma grande

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injustiça e tive desejo de chorar. Vieram-me lágrimas, que esmaguei. [...] — Não fui eu. Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas as minhas mãos são fra­cas, e nunca realizo o que imagino” (p. 240).

A desordem mental do protagonista vai de par, todo o tempo, com a inver­são de valores apontada no quadro social, o que se faz presente também nas per­sonagens secundárias: falta de escrúpulos que garante boa vida, correção de bra­ços dados com um destino medíocre ou até mesmo miserável. Nesse sentido, ressaltam, por contraste, as figuras de Julião Tavares, cujo mérito pessoal é uni­camente ser herdeiro da firma Tavares & Cia., e a da prostituta doente que não quer cobrar de Luís da Silva as duas horas gastas com ele, porque não transaram. Ressalta também o orgulho que Julião tem do pai, “um talento notável” porque juntou dinheiro.

No que concerne aos “pequenos desvios”, vale lembrar o caso da vizinha espanhola, dona Mercedes, que parece uma artista de cinema aos olhos de Marina: casada na terra natal, dona Mercedes manda dinheiro para o marido, o que não a impede de ser amigada em segredo divulgado pelo bairro com um “personagem oficial que lhe entra em casa alta noite”. Não é difícil adivinhar de onde vem o capital enviado ao marido, já que ela passa os dias “olhando-se ao espelho e polindo as unhas, metida num peignoir de seda”. Desvio de verbas que, aparentemente, não tem por que incomodar ninguém ali, a não ser o próprio Luís da Silva, que teme o espelho em que Marina se mira. Não se trata, entre­tanto, apenas de uma cisma moralista; o oficial é “um caloteiro”, deve “os cabe­los da cabeça”, mas, aproveitando-se da imagem pública, constrange os peque­nos cobradores, seduz os grandes, dá festas e coloca automóveis à disposição da amásia. O fato não vem isolado; faz parte, como se disse, de um fio de inversões, uma “desordem estabelecida”, em que se fazem vistas grossas mesmo a um suposto crime de abuso sexual, praticado pelo pai das vítimas. É o que todos, à exceção de Luís da Silva, desconfiam que acontece na casa de outro vizinho, ape­lidado de Lobisomem pelo bairro, que mantém as três filhas moças aprisiona­das em casa. A vizinhança fala mal, mas nenhuma providência é tomada, por­que interessa a fofoca, não a denúncia. Desordens também praticadas em esfera pública, à socapa, em nome de fins ordeiros: pontuando o contexto de opressão, o narrador observa: “Muitos crimes depois da revolução de 30. Valeria a pena escrever isto?” í p. 101).

A narração, concentrada na subjetividade, revela assim algo objetivo — os

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dramas do sujeito, não com o exceção, e sim com o parte de uma dinâmica social estabelecida. Salta aos olhos do leitor, nesse sentido, que a comparação com o passado patriarcal aumente à medida que Luís da Silva se sente mais e mais per­turbado. Também nesse âmbito o protagonista oscila entre o ódio aos podero­sos — o avô patriarca se parece com Julião Tavares — e o desejo de ter poder

como eles. A lembrança de um a cobra que um dia se enroscara no pescoço do

avô mistura-se simbolicamente à idéia de enforcar Julião com a corda dada por

seu Ivo (“boa para arm ar rede”); mas, quando se sente inerme, o desejo de matar

o avô dá lugar ao desejo de m andar matar, com o fazia o avô — Trajano Pereira

de Aquino Cavalcante e Silva. Em seguida, vem a constatação da impotência —

a falta de “muque”, a capacidade crítica mal utilizada — a que o reduziu seu des­

tino histórico:

Conheci Trajano decadente, excedendo-se na pinga e já sem prestígio para armar

cabroeira e ameaçar a cadeia da vila. Mas os cangaceiros ainda se descobriam

quando o avistavam... Se o velho quisesse extinguir um proprietário vizinho, cha­

maria José Baía, o camarada risonho que me vinha contar histórias de onças no

copiar... [...] Lembrava-me disso e apalpava com desgosto os meus muques reduzi­

dos. Que miséria! Escrevendo constantemente, o espinhaço doído, as ventas em

cima do papel, lá se foram toda a força e todo o ânimo. De que me servia aquela ver-

biagem? — “Escreva assim, seu Luís”. Seu Luís obedecia.— “Escreva assado, seu Luís”.

Seu Luís arrumava no papel as idéias e os interesses dos outros... [pp. 155-6]

A passagem da ordem à desordem, no caso de Luís da Silva, não se dá pro­

priamente com o confronto que ensaiasse, na revolta, um terceiro term o, nem se

dá nos m esm os term os do avô, que criava, com sangue, a própria ordem no

domínio do m ando rural, chegando a abrir a cadeia quando prendiam um de

seus homens, ou ainda, nos term os de julião Tavares, herdeiro rico,“acionista da

ordem”.13 A labilidade vantajosa entre ordem e desordem na sociedade represen­tada pelo livro é uni privilegio de elasse ijue não diz respeito ao setor médio da socie­d a d e conform ado e ordeiro, nem aos atos individuais de desordem que o sis­

tema penitenciário mira e pode apreender.M Por uma questão de limite declasse,

Luís da Silva — neto pobre de uma aristocracia decadente, que conheceu a m en­

dicância tentando a vida de poeta na cidade grande e se estabeleceu em emprego

público desim portante, numa capital deslocada dos centros do país — apenas

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passa de um pólo a outro. Experimenta, de um pólo a outro, a indistinção. Sinto­

maticamente, quando pensa em praticar o crime e, medindo conseqüências, conclui que a vida na prisão não seria pior do que a que tinha livre, Luís da Silva

lembra o passado histórico do Brasil escravocrata pelo lado dos oprimidos,

identificando-se a eles e não ao avô Trajano:

A corda áspera ia-se amaciando por causa do suor das minhas mãos. E as mãos tre­

miam. O chicote do feitor num avô negro, há duzentos anos, a emboscada dos

brancos a outro avô, caboclo, em tempo mais remoto... Estudava-me ao espelho

[...]. Procurava os vestígios das duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a

vida amarga... [p. 172]

Embora de origens e condições muito diferentes, um momento aproxima

Fabiano e Luís da Silva. É a um passo do crime (com o Fabiano, que entretanto

não o realiza) que o protagonista de Angústia se sente um homem a ser respei­

tado pelo inimigo. Luís da Silva segue Julião Tavares, que vai à casa da nova

amante, num subúrbio. Depois de se deitar com ela, Julião sai no escuro, rumo

à cidade, perto das duas horas da madrugada. Enquanto o segue, as lembranças

do avô patriarca, dos cangaceiros seus amigos, de José Baía, mão de sangue do

velho, adensam-se. Ao mesmo tempo, as humilhações de tantos anos presenti-

ficam-se, e os móveis mais imediatos do crime encontram outros:

Era preciso que alguma coisa prevenisse Julião Tavares e o afastasse dali. Ao mesmo

tempo encolerizei-me por ele estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eu não era nada? Não bastavam as humilhações recebidas em público? No relógio ofi­cial, nas ruas, nos cafés, virava-me as costas. Eu era um cachorro, um ninguém. [...] Mas ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali era um homem. [p. 209]

E, instantes depois, ao apertar a corda contra o pescoço de Julião Tavares, Luís da Silva experimenta, como assassino, um clarão revelador:

Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta

convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me o

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coração. [...] Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido deque só me podia mexer pela vontade dos outros, [p. 210]

Como se pode notar, o crime é o único ato de afirmação da vontade em sua vida. É ali que pensa constituir-se como sujeito, para si mesmo e para o inimigo prestes a morrer. Diante do círculo infernal, fica a percepção regressiva de que o surto psicótico da personagem casa bem com seu senso crítico. À ordem bárbara corresponde a desordem da consciência narrativa, que tem, todavia, poder ordenador, na medida em que desperta para a crítica do mundo invertido. Ainda assim, ou melhor, por isso mesmo, o horizonte de Luís da Silva é de barbárie, um estado de coisas em que já não é possível distinguir valores autênticos15 ou crer numa desordem transfiguradora, contra a ordem vigente: “Inútil esperar una­nimidade. Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos” (p. 172).

Seria preciso ressaltar por fim a peculiar dinâmica do narrador na compo­sição de Angústia. Se Fabiano não pode divisar com clareza a desordem estabe­lecida — e afinal ainda confia na possibilidade de ter um lugar melhor dentro da ordem, educando os filhos na cidade grande, sonho a que, como sabemos, o ângulo narrativo não adere — , a clareza com que o protagonista de Angústia percebe a barbárie que o cerca é fruto de um despregamento maior com relação às preocupações mais imediatas de sobrevivência — aquelas que ocupam Fabiano quase todo o tempo. Mas não é só fruto dessa liberdade maior; o ângulo crítico despertado em Luís da Silva (como vimos, presente desde que ele está assentado num cotidiano medíocre, mas que só modifica suas ações no limiar do surto) tem um fundamento muito particular. O narrador-protagonista sai de seu município sertanejo, onde não lhe sobrou herança do poderio patriarcal, tenta a vida literária na cidade (depois acaba vendendo, avulsas, para pessoas com pouco gosto, as páginas do péssimo livro de poesia que escreveu) e, em Maceió, procura conseguir um pistolão que lhe garanta boa vida num emprego público. Não consegue a ascensão via apadrinhamento e é esquecido numa repartição pública, como subordinado:

Mais tarde, já aqui em Maceió, gastando sola pelas repartições, indignidades, cur­

vaturas, mentiras, na caça ao pistolão. [...]

Afinal, para se livrarem de mim, atiraram-me este osso que vou roendo com ódio.

jl

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— Chegue cedo amanhã, seu Luís.

E eu chego.

— Informe lá, seu Luís.

E eu informo. Como sou diferente do meu avô! [p. 27]

É pela ótica do ressentimento, daquele que ficou de fora do mundo do favor, que Luís da Silva passa a enxergar, com alguma clareza crítica, as engrenagens da ordem iníqua. Graciliano deixa ver, portanto, algo da evolução histórica de um narrador cínico, num setor intermediário da sociedade— que aqui não tem a des­façatez da classe que comanda e faz da ordem o que bem quer. Esse narrador, que só é crítico porque não participou de privilégios, também passou a sentir, na própria pele, as injustiças da ordem que o excluiu desses privilégios, tornando- o ordeiro e, depois, um desordeiro igualmente insignificante. É o ressentimento, ironicamente, que o faz, sob um fundamento cínico, um narrador confiável.

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O crítico e os arquitetos

Pedro Fiori Arantes

Roberto Schwarz foi um dos primeiros críticos no Brasil a perceber nos

impasses da arquitetura um problema central da vida cultural e social do país.1 Como observou numa ocasião,

o mix de reflexões com que o arquiteto de esquerda se debate, envolvendo estética,

tecnologia, luta de classes voluntária e involuntária, finança, corrupção, política,

demagogia, especulação imobiliária, planejamento, cegueira, enganação grossa,

utopia etc., tem uma relevância notável e, a despeito da grossura escancarada, ou

por causa dela, ele é com o que o modelo para um debate estético realmente vivo.2

O diálogo entre o crítico e os arquitetos, apesar de pouco conhecido, moti­

vou novas interpretações da trajetória da arquitetura e do urbanismo modernos

no Brasil, que viraram do avesso as versões laudatorias e oficiais. Reconstituirei aqui um pouco a história desse diálogo e, para isso, retomarei as “conversas” entre

Roberto e seus dois principais interlocutores-arquitetos — Sérgio Ferro, nos anos 60 e, mais recentemente, nos anos 90, Ermínia Maricato — , para depois per­correr algumas das questões lançadas por seus últimos textos, que têm estimu­lado novas formulações sobre as cidades brasileiras em sua fase“pós-catástrofe”.

Creio poder afirmar que foi o contato freqüente, logo após o golpe de 1964,

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com Sérgio Ferro — discípulo dissidente de Vilanova Artigas — , que despertou Roberto para a importância da crítica da arquitetura no esquema que armava para a compreensão literaria e cultural do Brasil. Tal influência se deu, sobre­tudo, graças a um texto de Sérgio publicado no primeiro número da revista Teo­ria e Prática, de agosto de 1967, chamado “Arquitetura nova”.3

Sérgio Ferro era colega de Roberto no grupo que editava a Teoria e Prática e no coletivo mais amplo que compunha a “segunda geração” do Seminário Marx.4 Iniciado às vésperas do golpe mas transcorrendo nos anos seguintes, o segundo seminário esteve permeado pelas tensões próprias a um novo “engaja­mento”, num momento de crise profunda e radicalização política, de reversão da euforia desenvolvimentista e muita desconfiança quanto ao “progresso” das forças produtivas. Foi influenciado pelas revoluções chinesa e cubana, pela con­denação do sistema soviético por Trotski, pelo existencialismo sartreano, pela teoria crítica de Frankfurt e pelas novas análises do subdesenvolvimento— com André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Caio Prado Jr. e Régis Debray.5 Ape­sar de não ter formulado uma proposta própria de interpretação do Brasil, o segundo grupo assumiu, nesse contexto radicalizado, uma perspectiva crítica mais atenta às relações de produção, à dinâmica da luta de classes e ao fetichismo da mercadoria. Não por acaso voltou-se mais diretamente à ação política, inclu­sive com a participação de alguns de seus integrantes na luta armada.

O argumento central de Sérgio Ferro em “Arquitetura nova”, e que será expandido por Roberto para os outros domínios da cultura brasileira, consiste em investigar por que, após o golpe de 1964, a celebrada arquitetura moderna brasileira não só se desfigura como se conforma à nova situação — de maneira dramática no caso da chamada “Escola paulista”, cuja floração tardia desabro­cha em pleno regime militar. Sérgio constata o evidente “mal-estar” numa arquitetura que, naquele momento adverso, teimava ainda em conferir aparên­cia de ordem racional a um objeto — a residência burguesa — do qual todos reconheciam a insignificância, bem como a flagrante irracionalidade da enco­menda individual, quando confrontada com as soluções de massa que se faziam, de fato, necessárias. Sérgio investiga também o paradoxo com especial habili­dade quando descreve os disparates que transpareciam nas “estruturas” arqui­tetônicas de então. Tanto seu conteúdo — a promessa de desenvolvimento que anteriormente enunciavam — quanto sua lógica constitutiva passavam a sofrer deformações e desvios, escorregando para uma “racionalidade mentirosa”, para

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"gestos ilusionistas em nome do didatismo" acossados pela urgência de cam u­

flar seu próprio esvaziamento.No ensaio “Cultura e política (1964-1969 )’’ publicado em 1970 na revista

Temps Modernes, Roberto retoma a interpretação de Sérgio e a insere numa ana­

lise mais ampla e sistemática. O critico reconhece no descolamento temporal desse momento especialmente criativo da esquerda — resultado de energias

acumuladas durante duas décadas de democratizacão — uma decorrência do

contato interrompido com as massas, e estende o argumento de Sérgio Ferro

para os demais cam pos da cultura oposicionista no Brasil — verificando o

mesmo descompasso no teatro, na música e no cinema. O rompimento das pon­

tes entre o movimento cultural e o cam po popular ocorreu, entretanto, como

um avanço contraditório nas forças produtivas artísticas. Com o explica

Roberto, associando formas radicais a conteúdos anacrônicos (com o é muito

evidente no caso do tropicalismo, mas também da arquitetura paulista de casas

burguesas) e ajustando obras socialm ente explosivas ao consum o de um

público ao qual não se destinavam originalmente — a classe média universitá­

ria radicalizada daquele m om ento, na platéia do Arena ou cliente das casas de

arquiteto — , os experimentos culturais da esquerda mudavam completamente

de sentido. Fenômeno que Roberto Schwarz descreve com o um imenso repre-

samento cultural e político produzido pelo golpe de 1964 — traduzindo-se no

impasse de uma forma artística que seguiu adiante num contexto truncado no

qual progressivamente foi sendo desautorizada pela situação histórica.

Depois da luta armada, prisão e tortura, Sérgio Ferro, ao desembarcar exi­

lado na França em 1972, redige um program a de ensino encom endado pela

École d’Architecture de Grenoble, na qual passaria a ser professor. Esse pro-

grama-manifesto, intitulado “Reflexões para uma política na arquitetura”,'' irá

inspirar outro ensaio de Roberto Schwarz, “O progresso antigamente”." Neste

texto, o crítico realiza um balanço da trajetória da arquitetura moderna brasi­

leira, a partir de uma coletânea de textos de arquitetos e críticos modernos

publicada em 1980, em Arte em Revista n 14 — coletânea que principiava com o

célebre manifesto m odernista de Gregori Warchavchik, passava por Lúcio Costa, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Oscar Niemeyer e Vilanova Arti­gas e se encerrava com o texto dissonante de Sérgio Ferro.

Roberto Schwarz interpreta o conjunto dos textos como uma narrativa das promessas e da crise da arquitetura moderna no país e, sobretudo, da crise da pró­

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pria “noção de progresso”— da qual a arquitetura é uma das manifestações mais evidentes ou, ao menos, mais visíveis, em seu descompasso entre a evolução das forças produtivas locais e aquela demandada pela arquitetura moderna interna­cional. O crítico descreve a sucessão de promessas não realizadas (ou cumpridas pelo avesso) que expressam a incompatibilidade ou incapacidade da arquitetura brasileira em associar-se à moderna produção industrial de massa. Traça, enfim, um quadro notável, com a perplexidade de quem examina a distância os parado­xos de um campo da cultura e da economia que se formou modernizando o atraso.

O texto de Sérgio que encerra a coletânea de Arte em Revista funciona como uma verdadeira pá de cal sobre o projeto moderno e abre uma nova e desconcer­tante chave de ação-interpretação: colocar em evidência a contradição (escanca­rada em Brasília) entre as pretensões progressistas do desenho moderno e as con­dições arcaicas de execução nos canteiros de obra. Sérgio define, ali, um programa de crítica marxista da arquitetura, de análise das “relações pouco nítidas entre a arquitetura, a produção e o consumo da construção”. Diante de um processo que é de “produção de mercadorias”, torna-se “impossível a confiança ingênua numa racionalidade de conteúdo exclusivamente arquitetural”. Assim sendo, a “crise” na arquitetura não teria como ser resolvida apenas no âmbito cultural (do desenho) e só uma nova forma de produzir (no canteiro) poderia indicar novos caminhos.

Sérgio Ferro inicia naquele momento sua crítica “suicida” à profissão, ilu­minando o canteiro — até então mantido em zona de sombra — ao verificar como nele o desenho exercia seu comando despótico, impondo aos trabalhado­res um desígnio que lhes era completamente exterior (ou seja, um “projeto” que se reificava em “destino”, na expressão de Argan). Mais que isso, Sérgio também analisa como a construção civil, ainda sob a forma atrasada da manufatura, e por isso mesmo, atuava como enorme manancial de extração de mais-valia, alimen­tando os setores modernos da economia — grandes canteiros de obras, disper­sos ou concentrados, sempre estiveram por trás dos ciclos de crescimento do país no século xx. Ora, essa virada de perspectiva rompeu a aura de nossas obras- mestras modernistas consagradas e revelou-as como verdadeiros “acintes”, na expressão de Roberto. Enquanto para os arquitetos modernos (como Lúcio Costa) o atraso e a injustiça social é que barravam a expansão do racionalismo arquitetônico, Roberto nota que Sérgio interpreta o fenômeno pelo lado oposto. Ao olhar para o canteiro como imenso reservatório de extração de mais-valia e para a separação hierárquica da divisão técnica do trabalho, que conferia ao

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arquiteto um estatuto privilegiado e de comando, Sérgio percebe que a própria arquitetura moderna — e no limite, o próprio capitalismo periférico — reitera (a seu favor) as condições de atraso que prometia superar.

De forma mais ampla, Sérgio sustenta que, enquanto o processo produtivo não fosse objeto de reflexão e transformação em um sentido emancipador, a crença imperturbável na positividade do progresso, tal como exprimiam os modernos, iria reiterar a cada canteiro novos episódios de retrocesso e violência social. Em resumo, diz Roberto, “à luz das realidades do canteiro, a imagem da arquitetura moderna mudou: ela agora aparece como a irracionalidade encar­nada”. A aposta nos desdobramentos positivos do desenvolvimento das forças produtivas (no sentido de um salto qualitativo, revolucionário) se fez, entre­tanto, em todo o mundo, e especialmente na periferia (veja-se também a capital do Punjab, Chandigarh, projetada por Le Corbusier no início dos anos 50), sob formas atrasadas de produção e mesmo tirando partido dessa condição.

De todos os intelectuais que participaram da segunda geração do Seminá­rio Marx, parece indiscutível e mesmo inusitado que, entre filósofos, historia­dores e sociólogos, justamente um arquiteto tenha tido maior afinidade teórica com Roberto. Os dois procuraram na “dialética negativa” o antídoto à exacer­bada positividade dos teóricos do desenvolvimento, do Partidão e mesmo da geração uspiana do primeiro Seminário Marx. Sérgio Ferro, em seu mais conhe­cido ensaio, “O canteiro e o desenho” (1976), iniciado nos anos do seminário,8 faz implacável crítica ao desenho, ao fetiche da mercadoria e à alienação do tra­balho no canteiro, ao mesmo tempo que expressa profunda desconfiança na evolução linear das forças produtivas — especialmente como era entendida pelo Partido Comunista Brasileiro e, no caso dos arquitetos, pelo mestre Vila- nova Artigas.

Contudo, se a “negatividade” em Roberto Schwarz e Sérgio Ferro permitira a ambos uma produção teórica incomum no marxismo desenvolvimentista brasileiro, no caso do crítico isso não significou, evidentemente, o mesmo fim de linha que para o arquiteto. Sérgio, enredado numa prática que só pode ser positiva— a construção — e que, naquele momento, não tinha mais como ante­ver um encontro progressista com as massas, afastava-se crescentemente do exercício da profissão. Ele e seus dois companheiros de reflexão e trabalho, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, forçados a procurar soluções para o problema da habitação popular e a ensaiar as possibilidades de canteiros de obra autoge-

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ridos na restrita produção de casas para parentes e amigos, em geral professores universitários, batiam nos mesmos limites denunciados no texto “Arquitetura nova”: o despropósito de uma arquitetura vendida a retalho sob a forma de encomenda privada. Esse fim de linha levou-os à luta armada e a formas alter­nativas de resistência e invenção, no teatro, na crítica e na pintura (ou ainda na arquitetura, no caso de Rodrigo).9

Avançando um pouco no tempo, para a geração de arquitetos que se seguiu à de Sérgio Ferro, e cuja prática foi definida não pelo fechamento de perspectivas produzido pelo golpe, mas pela abertura e redemocratização do país, vamos encontrar uma nova fase do diálogo entre o crítico e os arquitetos. Na verdade, trata-se de uma conseqüência não esperada da obra de Roberto Schwarz, mas muito plausível, que irá servir de inspiração para uma nova inter­pretação da urbanização brasileira, tal como foi formulada especialmente por Ermínia Maricato.

Como estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Ermínia organizava uma revista refratária à hegemonia do desenho na escola, chamada O e que tinha em Sérgio uma espécie de pai intelectual oculto (já na clan­destinidade e depois exilado). Durante o período em que militou nas comuni­dades de base e em grupos organizados na periferia de São Paulo, Ermínia orientou sua atividade pedagógica e de pesquisa como professora da f a u para o problema da “autoconstrução” da moradia popular nas periferias da cidade, procurando desenvolver a interpretação de Sérgio Ferro e Francisco de Oliveira sobre o tema.10 Entretanto, a partir de seu doutorado,11 redigido no início dos anos 80, a autoconstrução e a produção da residência individual familiar — temas de livro organizado por Ermínia em 197912— perdiam para ela a centra- lidade na compreensão do problema urbano brasileiro. A pesquisa de Ermínia, apoiada na nova sociologia francesa13 e em outro teórico do canteiro, Nilton Vargas, indicava que o atraso na construção civil era sobretudo proveniente de uma prevalência dos ganhos imobiliários captados pelos proprietários de terra em detrimento dos ganhos decorrentes da atividade produtiva. Ou seja, uma predominância do rentismo sobre a produção, da renda da terra sobre a extra­ção de mais-valia no canteiro. Por isso, Ermínia passa a considerar que não ape­nas a forma de organização do capital na construção civil deva ser analisada e criticada — passo dado por Sérgio — , mas especialmente os suportes e circui­tos de acumulação do capital imobiliário no espaço urbano (ou seja, terra,

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incorporação, finanças e regulação pública). Os entraves ao acesso à terra e ao financiamento público por grande parcela da população brasileira são temas que enfrenta tanto na sua produção crítica quanto na administração pública, como urbanista do Partido dos Trabalhadores.

De Sérgio Ferro a Ermínia Maricato, dos anos 60 aos 90, do Seminário Marx ao Partido dos Trabalhadores governando grandes cidades, a conversa entre o crítico e os arquitetos muda, assim, de foco: da arquitetura e do canteiro ao processo de urbanização, num momento em que as conseqüências negativas do crescimento acelerado das cidades brasileiras pareciam assumir proporções irremediáveis — ao mesmo tempo em que a esquerda chegava ao seu comando.

Em dois de seus principais textos, Ermínia Maricato faz referências diretas ao trabalho de Roberto: no livro Metrópole na periferia áo capitalismo (1996) — escrito a partir de sua experiência como secretária de Habitação e Desenvolvi­mento Urbano na primeira gestão do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo (1989-92) — , paráfrase do “mestre na periferia”, e, mais recente­mente, com título sugerido por Francisco de Oliveira, “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”.14

No primeiro caso, a alusão ao título do livro de Roberto dedicado às Memó­rias póstumas de Brás Cubas não é mero acidente: em se tratando da produção capitalista do ambiente construído, metrópole e periferia também não podem, em princípio, andar juntas. São mesmo pares opostos, cuja junção, feita por Ermínia Maricato para explicar as contradições da nossa urbanização, já indica o fundo falso por trás da fachada modernizadora que o urbanismo sempre emprestou ao nosso atraso:15 de Pereira Passos a Brasília, da Barra da Tijuca à Marginal Pinheiros.

Segundo Ermínia Maricato, metrópole na periferia é tanto uma imensa concentração de riqueza como de pobreza, balizada e definida em suas frontei­ras sociais e espaciais por uma espécie de apartheid entre proprietários e não- proprietários promovido pela cláusula pétrea do estatuto da terra, em nosso pacto de dominação entre classes proprietárias “atrasadas” e “modernas”. Neste caso, o curto-circuito machadiano exposto por Roberto ganha dimensão pró­pria enquanto prisma revelador dos paradoxos da nossa urbanização.

O movimento geral do argumento de Ermínia é também devedor de Roberto na forma como este analisa a articulação entre norma e infração — questão abordada por outros autores, como o próprio Antonio Candido em

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“Dialética da malandragem”, mas que foi desenvolvida e aplicada de forma mais sistemática por Roberto Schwarz, como chave interpretativa do Brasil.

Ermínia, à procura da raiz da “ordern invertida” da urbanização brasileira, encontra na Lei de Terras, de 1850, o elemento decisivo. Essa lei estabeleceu o

espaço como mercadoria, no momento exato em que se proibia, definitivamente, o tráfico de escravos — ou seja, promoveu a transição do valor “tesouro” da pro­priedade dos escravos para a propriedade da terra. Nessas circunstanciase terra cercada, que se compra e vende, torna-se inacessível à quase totalidade de

homens livres e recém-libertos. Daí o surgimento de uma massa desterrada,que nunca teve lugar nas cidades brasileiras e que recorreu muitas vezes ao expediente da invasão — consentido por um Estado que se desresponsabilizava assim desuas atribuições na garantia dos direitos da imensa maioria da população. O que é “permitido” invadir, entretanto, são apenas os trechos da cidade que não inte­ressam ao mercado imobiliário: as periferias distantes, as beiras de córregos, I‘lí encostas e áreas de proteção ambiental. A ilegalidade e desordem consentidas são,

desse modo, parte intrínseca da formação urbana brasileira, por assim dizer her- i^si dadas pela parcela dos que vivem sob essa condição: “eu era e sou ilegal”.16 ^

Do ponto de vista da acumulação capitalista, Ermínia verifica que concen- io d

tração e desigualdade fundiária têm como um dos seus motores de promoção mo de ganhos a “aplicação seletiva da lei” — que estabelece uma espécie de renda i gf diferencial da terra própria às cidades da periferia do capitalismo. O Estado, ao ' r> atuar como poder arbitrário nesta aplicação seletiva, é responsável por um cparadoxo, no qual a norma passa a se apresentar com o exceção e a exceção, como norma. Isto é, a cidade legal, altamente regulada (mesmo que “flexibili­zada”), passou no Brasil a ser minoritária, diante de uma imensa cidade ilegal, “oculta” aos arquitetos e urbanistas, que se tornou a regra. Tal constatação é explosiva: uma vez que a norma foi engolida pela exceção, está em xeque todo o esforço de racionalidade normativa e o cerne das “idéias” do urbanismo moderno — o que pode ser visto com muito mais clareza justamente aqui, na periferia do capitalismo.

Na dialética entre ordem e desordem urbana, Ermínia reconhece a ilegali­dade tanto na população moradora dos loteamentos clandestinos e favelas quanto na ação seletiva do próprio Estado. A “contravenção sistemática” é, assim, a regra tanto na cidade legal como ilegal, de um lado praticada pela des­façatez da classe dominante abrindo lugar para seus negócios e negociatas; de

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outro, impondo à massa sobrante mecanismos extralegais compensatórios, com sua habitual carga de violência e tolerância extorsiva.

Noutro texto,“As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”, Ermínia con­tinua o diálogo com Roberto, agora sob a perspectiva de uma história do plane­jamento urbano no Brasil. Novamente, o mesmo paradoxo salta aos olhos: a his­tória do urbanismo em nosso país, um urbanismo que foi altamente normativo e inspirado na matriz dos países centrais, é uma história que manteve parte das cidades brasileiras fora das idéias, fora do planejamento— e, evidentemente, do campo dos direitos.

Segundo Ermínia, o urbanismo brasileiro não teria compromisso com a totalidade da realidade concreta, mas com uma ordem que diz respeito apenas a parte da cidade — e da sociedade. Para a cidade ilegal não há planos, nem ordem. Aliás, ela não é conhecida sequer em suas dimensões e características — por isso trata-se de um “lugar fora das idéias”. A disparidade entre a sociedade brasileira e as idéias do urbanismo moderno tem, assim, uma originalidade: estas não descreviam a existência da maioria da população ocupando as bordas (e mesmo o coração encortiçado) das cidades brasileiras. Enquanto na Europa o urbanismo moderno, de Haussman a Le Corbusier, encobria as aparências— a exploração e segregação do trabalho — , aqui adquiria uma feição original: não reconhecia sequer a existência da população que não teve como se alojar nas cidades segundo regras modernas e higiênicas.

O lugar fora das idéias é, assim, a periferia da metrópole na periferia do capitalismo — periferia entendida não como pólo dual, mas como toda expe­riência urbana que se dá à margem e sob consentimento do Estado e que parti­cipa, ao fim, do desenvolvimento desigual e combinado.

O melhor exemplo do impasse descrito por Ermínia (mas não citado nominalmente por ela) é novamente Brasília. Neste caso, o que está em questão não é o descompasso entre formas arquitetônicas modernas e canteiro de obras atrasado e violento — ponto em que se deteve Sérgio Ferro — , mas a impossibi­lidade de os construtores da capital nela residirem após o término das obras. O Plano Piloto simplesmente não previa um “lugar” para os “candangos” — não havia sequer uma diretriz para a habitação de interesse social. Os trabalhadores, por isso, tiveram que ser removidos da capital e mantidos em acampamentos de obra, as famigeradas “cidades-satélites”. Tais pseudocidades talvez sejam a expressão mais cabal do lugar fora das idéias, enquanto, simultaneamente,

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foram produto (mais uma vez, pelo avesso) do urbanismo moderno — mesmo na nossa vertente mais culta e esclarecida, a de Lúcio Costa.

Por fim, o Roberto mais atual, de Seqüências brasileirase do “Fim de século” em particular, ainda precisa ser refratado pelo prisma dos arquitetos. O que seria a metrópole “Fim de século”, ou a metrópole “no país do Elefante”, ou, nos ter­mos de Francisco de Oliveira, a metrópole “Ornitorrinco” ou, ainda, a metró­pole em “Estado de Sítio”, na expressão de Paulo Arantes? Considero que esse deva ser o nosso programa atual de pesquisa, debate e intervenção.

Vou tentar aqui, ainda que limitadamente, dar um passo além do ponto em que Ermínia dialoga com o Roberto machadiano. Isso porque o Roberto de Seqüências brasileiras nos estimula a procurar hipóteses para a compreensão da cidade brasileira num contexto de encerramento do ciclo desenvolvimentista, de construção interrompida, de colapso da modernização. Ou seja, uma metrópole cujo padrão de reprodução dos pobres tem mudado qualitativamente— o fenô­meno da “neofavela”, do crime organizado e das novas igrejas, por exemplo— e cuja ponta globalizada cada vez mais se financeiriza, com a ação dos fundos de pensão associados ao mercado imobiliário de alto padrão17 e financiamentos internacionais do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvi­mento, que exigem da ação pública um cálculo de mercado, enquanto vêm na informalidade virtude e exemplo de solução dos problemas sociais (uma espécie de autogestão da crise, na qual “ajuda-se os pobres a ajudarem-se a si mesmos”).18

O ponto de partida, afirma o crítico em “Fim de século”, é descrever o que a crise do “nacionalismo desenvolvimentista” produziu nas nossas cidades. Um ciclo que chegou ao fim e deitou por terra um conjunto impressionante de ilu­sões (entre elas, Brasília, novamente...). Tal ciclo, explica Roberto, na verdade não se completou e provou ser ilusório: não era “nem desenvolvimento nem nacional”. O motor da industrialização estava nas empresas multinacionais, e os esforços de integração da sociedade brasileira resultaram num quase apartheid, visível em nossas cidades. O desenvolvimentismo arrancou populações de seu enquadramento antigo e, de certo modo, liberou-as para o processo “titânico” de industrialização nacional, que não teve prosseguimento. Revolveu a socie­dade de cima a baixo, e sua falência abriu um período específico novo — com conseqüências importantes nas cidades.

A partir do final dos anos 70 o Brasil passou a viver um processo de“urba- nização-sem-crescimento”,19 o que produziu um quadro novo de problemas.

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O setor informal passou de exceção a regra, os assentamentos irregulares e favelas também, o mesmo a respeito do crime organizado, das máfias urbanas do transporte e do lixo etc. Os novos condenados da terra, já sem ter para onde ir (trancados ñas periferias das grandes cidades), encontram-se em situação nova: a de “ex-proletários virtuais, disponíveis para a criminalidade e toda sorte de fanatismos”.20

Roberto afirma, resumindo a interpretação de Robert Kurz, que “o capital começa a perder a faculdade de explorar o trabalho. O que era o trunfo compe­titivo do Terceiro Mundo passou a ser sua assombração: trabalhadores sem saúde, sem educação, quase sem poder aquisitivo que não têm mais para onde voltar”. Por sua vez, “a impossibilidade crescente, para os países atrasados, de se incorporarem enquanto nações e de modo socialmente coeso ao progresso do capitalismo”, de que fala Roberto em “Fim de século”, tem figurações impressio­nantes nas nossas cidades hoje. Na expressão de Mike Davis, um “planeta de favelas” (planet o f slums) habitado por um “proletariado mundial informal”.

Ao mesmo tempo, não são mais as favelas tradicionais — que eram o lugar da cultura popular, do malandro, do samba — que ocupam o morro hoje, mas as “neofavelas”, comandadas pela guerra particular entre traficantes e a polícia violenta e corrupta. Essa a “neodialética da malandragem” que movimenta a narrativa de Paulo Lins em Cidade de Deus. A opção pelo crime (e não mais pela malandragem) contra a “vida de otário” é exposta numa sentença de Lins, citada por Roberto, quando um traficante declara: “Virar otário na construção civil, jamais” — com o que concordaría Sérgio Ferro.

A órbita limitada da narrativa de Paulo Lins, como um “mundo fechado” em Cidade de Deus, na expressão de Roberto, é a manifestação de uma espécie muito local de apartheid— que encontrou uma encarnação contundente de seu significado quando o vice-governador do Rio de Janeiro, não por acaso um arquiteto, propôs a construção de um muro em torno da favela da Rocinha. Por sua vez, quando a neofavela é “urbanizada” e “civilizada” pela ação do Estado, os arquitetos instalam novos ícones para a reconstrução de uma identidade e uma sociabilidade popular perdidas (às vezes de forma literal, com totens em áreas planejadas de lazer), ação que, nesse contexto, é evidentemente limitada, senão

demagógica.21As cenas fora da Cidade de Deus, como lembra Roberto, se passam igual­

mente noutro mundo fechado: o dos presídios. Atrás de grades de ferro ou em

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favelas e conjuntos habitacionais segregados, os pobres da metrópole “Fim de século” estão isolados em circuitos políticos e sociais próprios, ainda que par­cialmente integrados às novas modalidades precarizadas de circulação de mer­cadorias e serviços pessoais para as elites. Um fenômeno que exige interpreta­ções novas, para além do que já foi dito sobre informalidade, exército industrial de reserva e marginalidade.”

O Brasil que temos pela frente é um outro país, com uma economia que não agrega quase nenhum valor às cadeias produtivas mundiais, que não emprega mais, com mobilidade social descendente, com multidões de pobres concentra­das em grandes cidades ingovernáveis e sem alternativas dentro do sistema atual. Uma sociedade, enfim, produtora de medo e violência e cujos membros nunca viveram em situações tão desiguais e com interesses tão conflitantes. Numa palavra: somos hoje uma formação social literalmente monstruosa. Francisco de Oliveira comparou-nos a um ornitorrinco — um bicho incon­gruente, encalhado na encruzilhada de uma evolução que seguiu adiante.23 A metáfora zoomórfica sugere uma sociedade que perdeu a capacidade de escolha e por isso tornou-se a encarnação de uma “evolução truncada”.

Nas cidades, essa figuração é impressionante.24 De um lado, ao invés de combater o déficit habitacional, arremedos de urbanização de favelas e progra­mas de assistência e auxílio internacional— programas ditos transitórios que se tornam permanentes, a focalização que substitui definitivamente o que poderia ser (e em alguns casos chegou a ser) uma política universal.25 De outro, os con­domínios fechados e os clusters de negócios (também fechados) pretendem encarnar a totalidade da cidade — na verdade, são as parcelas da cidade “que interessam”, onde giram o capital financeiro e o capital imobiliário, cada vez mais associados pela intermediação dos fundos de pensão e fundos de investi­mento, quando não da lavagem de dinheiro. Ao mesmo tempo, são territórios que, ao estarem (frágilmente) conectados aos negócios transnacionais, podem ser desativados em função do deslocamento de empresas para outras cidades.* A competição passa a nortear o planejamento urbano, agora dito “estratégico”e calcado nos modelos gerenciais, que colocam a “cidade à venda”.27

Por sua vez, a gestão urbana promovida e financiada pelos organismos internacionais, como o Banco Mundial e o b i d , tem estimulado uma forma de ação pública cada vez mais terceirizada e dirigida pelo cálculo das taxas de retorno. Isso quer dizer: cada investimento público deixa de ser avaliado

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segundo suas conseqüências cie bem-estar social para cumprir uma rentabili­dade mínima, equivalente, ao menos, ao custo de empréstimo do capital. Na lógica do full cost recovery aplicada aos serviços públicos, se o usuário não puder pagar, azar o dele — permanecerá desconectado.28

Os beneficiários da cidade-negócio rodeada pelo planeta de favelas, entre­tanto, vivem atrás de guaritas e blindagens de todos os tipos — os espaços dos integrados na globalização são verdadeiros “enclaves fortificados”.29 Os carros blindados, condomínios fechados, shopping centers, centros culturais, edifícios de escritório “inteligentes” são os novos guetos pós-m odernos da minoria incluída nos negócios locais das empresas transnacionais.

Talvez se possa afirmar que nossas metrópoles são, ao mesmo tempo, o ponto de chegada do “sentido da formação” de sociedades como abrasileira e do

“colapso da modernização” em escala global. As afinidades entre ambos os pro­

cessos não são casuais, pois a gigantesca concentração de riquezas e o descarte de grandes parcelas da população pela nova ordem capitalista reeditam a fratura

social própria de sociedades que foram colônias escravistas. São Paulo, en­quanto metrópole “Fim de século”, “ornitorrínquica” ou em “estado de sítio”

reafirma nossa posição, na expressão de Roberto, de que “estamos (desde sem­pre) na vanguarda da desintegração”.

É com essa situação aparentemente sem saída que se defrontam hoje todos os que lutam por transformações, entre eles, com sua teimosa positividade, os

arquitetos de esquerda. Para nós, a dialética negativa, que faz avançar a reflexão crítica, não pode significar um fim de linha à intervenção e transformação da realidade — ao contrário, deve impulsioná-la. Aliás, é esta contradição entre teoria e prática que fecunda a práxis. Sérgio Ferro, Ermínia Maricato, entre outros arquitetos, e parte das novas gerações (minoritária, é verdade) associam à tarefa da crítica a realização permanente de ações experimentais — sem dúvida recheadas de ambigüidades e com o horizonte rebaixado de quem passa da teoria à prática— no âmbito das macropol íticas e da gestão dos fundos públi­cos, de laboratórios de pesquisa e projeto, em canteiro de obras autogeridos e nas iniciativas junto aos movimentos de sem-teto e sem-terra.

Em todas essas iniciativas, Roberto Schwarz permanece — e deveria ser ainda mais reconhecido — como uma das grandes referências intelectuais para os arquitetos de esquerda no Brasil. Com a habilidade de propor sempre novas e pertinentes questões, o crítico acaba flagrando, a cada novo passo, nossas

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infindáveis contradições. Como afirma, “a diversidade, o peso e a incongruên­cia atroz dos fatores que o debate dos arquitetos ambiciona harmonizar, natu­ralmente sem conseguir, são algo único”. Mas como bom professor, não deixa de estimular para que sigamos adiante, afirmando que a arquitetura “é o campo em que a discussão estética de nosso tempo encontra, ou poderia encontrar, a sua expressão mais densa e propícia”.30

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O regime de Bacamarte

Laurindo Dias Minhoto

Mas, quanto à nossa gente, se tem traseiro épara ser chicoteado.1

Dostoiévski

Lembrando o coro puxado no final da peça A lata de lixo da história, que

pelas tantas assim se entoa: “dependendo da ocasião, fomos lobos ou baratas, já

não somos nada disso, hoje somos democratas”,2, talvez se pudesse dizer, for­

çando um pouco a nota, que a globalização nos empurra vertiginosamente para

uma variação bem contemporânea e específica do “regime de Bacamarte”, ou

seja, aquele em que, dentro da ordem formalmente democrática, três quartos da

população encontram-se atrás das grades.

Com efeito, em parte não desprezível das democracias bem cristalizadas do

Ocidente, Estados Unidos na ponta, setores significativos da população estão

sendo progressivamente desinvestidos da soberania popular e excluídos dos

processos que tradicionalmente conferiram legitimidade à representação polí­tica, graças à disseminação do chamado encarceramento em massa.

Configurando-se em ritmo acelerado como a nova meca do presente Gulag planetário, a democracia constitucional norte-americana encabeça o ranking

mundial do encarceramento, com uma acachapante taxa de setecentos detentos

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por 100 mil habitantes, desbancando tradicionais competidores da corrida car­cerária, como a Federação Russa (635), o paraíso fiscal das ilhas Cayman (seis­centos), a África do Sul pós-apartheid (405) e Botsuana (quatrocentos). No­te-se que segundo a última previsão do Ministério da Justiça, mantido o atual ritmo de expansão do sistema penitenciário brasileiro, a nossa população carce­rária saltaria dos atuais 300 mil para algo como 500 mil detentos já em 2007.

O encarceramento em massa surge nos Estados Unidos na virada dos anos 70 para os 80. Segundo um conhecido estudioso desse processo, trata-se de um evento sem precedentes na história das nações que compõem o núcleo duro da modernidade ocidental. Em primeiro lugar, ele se caracteriza pelo fato bruto da abrangência da população prisional e da magnitude da taxa de aprisionamento, nos Estados Unidos beirando os 2 milhões de detentos. Em segundo lugar, pode- se dizer que a política do encarceramento se torna política de encarceramento em massa quando a prisão deixa de funcionar apenas como mecanismo de con­tenção do indivíduo transgressor e passa a operar fundamentalmente como mecanismo de contenção de estratos populacionais, como é o caso particular­mente dos jovens negros norte-americanos.3

Constituem alguns dos efeitos perversos e mais conhecidos do encarcera­mento em massa: o agravamento do déficit público; a realocação do fundo público da área social (saúde, educação, habitação) para o sistema de justiça cri­minal; a rotinização da experiência prisional e a colonização da cultura comu­nitária pela cultura da prisão; o efeito criminógeno do cárcere, tendo em vista as altas taxas de reincidência que propicia; a destituição do direito de voto de par­celas significativas da população; o reforço e o agravamento das divisões sociais tendo em vista o caráter enviesado das práticas punitivas (constelação aliás de que faz parte a elaboração discursiva do estereótipo underclass).

Diante da magnitude da mudança, não parece de todo exagerada a consta­tação, reiterada por inúmeros analistas, de que o discurso jurídico-penal, bem como as práticas de combate ao crime e à violência característicos da moderni­dade, e que durante o século xx foram aos poucos se cristalizando no modo con­creto de operação das instituições que compõem o sistema de justiça criminal, encontram-se hoje em progressivo estado catatônico.

A título meramente indicativo, e portanto sem nenhuma pretensão totali­zadora, vale a pena mencionar algumas das principais linhas de força que atual­

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mente tendem a informar a reconfiguração de alto a baixo das estratégias con­temporâneas de controle penal no âmbito do capitalismo globalizado:

1.0 ressurgimento da pena privativa de liberdade como estratégia privile­giada de prevenção e combate ao crime, o declínio vertiginoso do ideal reabili- tativo que figurou no centro das estratégias de controle social dos Estados de Bem-Estar Social na maior parte do século XX e a valorização das funções retri­butiva e meramente incapacitadora do cárcere;

2.0 deslocamento do foco criminológico do sujeito ativo para o sujeito pas­sivo da conduta delituosa e o correspondente apelo de um discurso de vitimiza- ção social;

3. a dramatização e a encenação do problema da criminalidade, espeta- cularizado pelos meios de comunicação, abrindo o campo das políticas de combate à violência para a sedução das medidas de caráter eleiçoeiro e das per­cepções maniqueístas — do tipo “ou se está com a vítima ou se está com o ban­dido” — , o que obviamente leva a um achatamento do horizonte de comple­xidade que informa o problema da violência contemporânea;

4. a emergência de um novo senso comum penal que opera pela conversão do discurso de combate à violência numa espécie de arena de expressão e voca­

lização do medo, da ansiedade, do ressentimento e da intolerância social;5. a substituição da imagem welfarista do criminoso, isto é, a de um sujeito

vulnerável em termos económicos, sociais e psicológicos, a ser devidamente “tratado” e reintegrado ao convívio social, pela imagem marcial do criminoso, um inimigo a ser abatido, um bárbaro irrecuperável, the super predator,

6. a reorientação do pensamento criminológico na direção das teorias da escolha racional, segundo as quais o crime tem menos a ver com o lugar ocupado pelo sujeito na estrutural social do que com a ausência de mecanismos adequa­dos de controle; nesses termos, o criminoso é concebido como um ator racional que age com base num cálculo de oportunidades a partir de uma lógica de ava­liação dos custos e dos benefícios da sua conduta;

7. a institucionalização de um viés econômico tanto na formulação das políticas penais, quanto na percepção social do desvio, o que leva as atuais estra­tégias de controle a concentrarem-se especialmente naqueles setores da popu­lação percebidos como potencial fonte de risco, a serem devidamente identifi­cados, classificados e monitorados com base em técnicas de gestão atuarial;

8. a emergência de uma nova forma de Estado, que ja foi chamada de Estado

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Distrito Policial, que se vai erigindo nos países centrais sobre os escombros do Estado do Bem-Estar Social, e que opera pela ampliação e pelo reforço da esfera da lei e da ordem como contrapartida da redução do Estado na esfera social;

9. o baralhamento das fronteiras entre a esfera publica e a esfera privada de controle social, o que tende a pôr em xeque o monopólio estatal do uso legítimo da força: de um lado, na direção do envolvimento da comunidade, do cidadão e da empresa na gestão do problema da violência, e, de outro, na direção da mer- cantilização das estratégias de controle social, da formação de uma indústria do combate à criminalidade e da conversão dos serviços de segurança, policia­mento e carceragem em mercadoria;

10. por último, e não menos importante, verifica-se hoje uma tendência crescente à desdiferenciação funcional entre os sistemas penal, político e econô­mico, à medida que a racionalidade jurídica do primeiro vem cada vez mais sendo permeada e pautada pela racionalidade do poder e do dinheiro, um movi­mento claramente regressivo se comparado às tendências de diferenciação fun­cional que, na perspectiva de determinadas leituras sociológicas, informaram o advento da sociedade moderna.4

O abandono progressivo da ideologia da reabilitação, a valorização da fun- ção meramente incapacitadora do cárcere e a guinada rumo à aposta na expan­são da esfera prisional parecem se articular estruturalmente à transformação contemporânea da prisão numa autêntica fábrica de exclusão social. Com a pro­gressiva exaustão da estrutura socioeconómica fordista — produção em massa, pleno emprego, a grande fábrica, a relativa estabilidade da vida organizacional— que conferia lastro histórico-social às estratégias disciplinares de controle e à ideologia da reabilitação, o confinamento tende a se configurar como uma alter­nativa ao emprego, uma estratégia de neutralização dos setores populacionais que se tornam descartáveis aos olhos do sistema produtivo e para os quais não há mais trabalho ao qual se reintegrar.5

Ao que tudo indica, o disparate está em que a prisão se expande hoje no mesmo passo em que se vão exaurindo progressivamente as suas bases moder­nas de justificação. Desse modo, abre-se o caminho para que técnicas de gestão eficiente do novo gulagtomem o lugar dos ideais de justiça e de reinserção social do apenado.

É certo que a promessa radicalmente moderna de constituição da penali­dade como uma esfera autônoma — no âmbito da qual a pena privativa de liber­

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dade tem sido formulada e concebida a partir de um cálculo jurídico estrito entre o crim e e o castigo, com fundamento nos princípios da autonomia do

sujeito e da proporcionalidade entre delitos e penas, e em que o sujeito da puni­

ção é figurado abstratam ente com o senhor do seu próprio destino, e, nessa

medida, responsável por seus atos — não pôde se realizar plenamente em ter­

mos históricos, quando mais não seja porque floresceu e se desenvolveu em

meio a contradições objetivas, com o a que se verifica entre os desideratos da

punição propriamente dita (dimensão autônoma da pena, tomada como um

fim em si) e da reforma (dimensão heterônoma da pena, tomada como um ser para outro).

Entretanto, é preciso que se sublinhe que apenas como campo de tensão

entre o fim em si e o ser para outro é que a penalidade moderna pôde se apresen­

tar com o form a jurídica internamente vinculada ao ideal democrático. Com

efeito, é som ente dessa perspectiva que o ato de punir poderia significar, no

mesmo passo contraditório, a restauração e o reforço do contrato social de um

lado e a reabilitação do apenado de outro, seja pela afirmação da racionalidade

do sujeito que infringe a norm a, seja pelo reconhecimento da sua “menoridade

social” (ou hipossuficiência), tendo em vista as técnicas de tratamento subja­

centes às distintas estratégias de reforma. Pelo lado do fim em si, a pena deveria

funcionar com o medida de justiça, de maneira a incluir no sistema carcerário o

criminoso que, em term os abstratos, livremente optou por se excluir do con­

trato; pelo lado do ser para outro, a pena deveria funcionar como medida de tra­

tamento, de maneira a possibilitar a reinclusão terapêutica do excluído do con­

trato na sociedade.Hoje, porém, a alta volatilidade financeira, as estratégias de reengenharia e

downsizing, o desemprego tecnológico, a feminização e precarização do trabalho

( minimum-wage “hamburger-flipping' jobs), os fluxos migratorios desestabiliza­dores, a desconstituição de direitos,o neodarwinismo social e o dramático aumen­

to das desigualdades de renda, riqueza e poder, para nomear alguns dos conheci­dos e devastadores efeitos do capitalismo turbinado, constituem combustível altamente inflamável à conversão do controle dos novos párias em big business.

Com efeito, nas abarrotadas prisões contemporâneas,“a população poten­cialmente perigosa é apartada e alojada sob controle completo como matéria- prima para o mesmo complexo industrial que a tornou supérflua fora da grades. Matéria-prima para controle ou, se se preferir, consumidores cativos dos servi­

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ços da indústria do controle”.'' Fazer um fast buck às custas da “mais-população” devidamente descartada do novo jogo econômico que estrutura o capitalismo global parece constituir precisamente a lógica que preside à instauração con­temporânea de um autêntico complexo comercial sociopunitivo.

Nessa medida, verifique-se também que a prisão tende a se redefinir como instituição ancilar ao processo de molecularização da guerra civil contemporâ­nea, que, segundo o fino diagnóstico elaborado por H. M. Enzensberger,7disse­mina a barbárie na exata medida em que a econom ia global fecha as portas a um

contingente significativo da população, converte a atuação errática do aparato

repressivo dos Estados nacionais numa espécie de estado de exceção perma­nente e assinala a ruptura do monopólio estatal do uso legítimo da força. Nas

palavras do autor, os participantes da nova guerra civil molecular

começam a se parecer mais e mais uns com os outros tanto no seu comportamento

quanto nas suas atitudes morais. Nas zonas de guerra das grandes cidades, a polícia e

o exército atuam como qualquer outro bando armado. Unidades antiterroristas ope­

ram políticas preventivas na linha do “atire para m atar” e viciados em droga e crimi­

nosos eventuais enfrentam-se com esquadrões da m orte que constituem a imagem

especular de seus supostos oponentes. O lumpemproletariado coexiste com uma cor­

respondente lumpemburguesia que na escolha de meios mimetiza o inimigo.8

É certo que essa caracterização do contexto central, realizada pelo crítico

alemão, pode desconcertar, quando mais não seja pela surpreendente seme­lhança que guarda com uma paisagem bem nossa conhecida, em que o controle

social se exerce historicamente pela via dos meios bárbaros dirigidos de modo preferencial aos de baixo. Com efeito, o que se vai verificando é que algumas das

velhas e arquiconhecidas variações do “prende e arrebenta” — e que entre nós afirmou-se como autêntica política de Estado — hoje estão fazendo figura de novo paradigma penal securitário; em realidade, novíssima reedição em ritmo intensificado das tradicionais técnicas policialescas do “chute no traseiro” ou dos “testículos quebrados”, ao menos na dicção nem tão elegante de alguns dos protagonistas da nova doxa punitiva.9

Vistas as coisas dessa perspectiva, a prisão que se vai erigindo sobre os escombros da penalidade de bem-estar social pode apontar para a emergência de uma nova figura jurídico-penal, ou seja, um novo animal a compartilhar do

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mesmo estranho ar de família do ornitorrinco em que se vai transformando o país neste momento histórico,"’ monstrengo que parece se alimentar precisa­mente do cam po de forças sociais que favorece a instauração do complexo comercial sociopunitivo a que já se fez referência.

E é aqui precisamente que a obra de nosso autor parece ganhar indiscutível potencial analítico de iluminação. Com efeito, o sentido da crítica materialista desenvolvida por Roberto Schwarz, ao revelar-nos aparte que nos coube no pro­

cesso social de modernização, permite, atendo-se de modo bem fundado na nota

específica, o com entário crítico recíproco entre formação social central e forma­ção social periférica.

Passo então a indicar sumariamente apenas alguns dos mecanismos que

compõem o esquema crítico de Roberto Schwarz e que parecem responder pelo

alcance extraordinário que esse esquema adquire na cena contemporânea.

O E S Q U E M A C R I T I C O M A C H A D I A N O

O primeiro m ecanism o tem a ver com a decifração e a incorporação do

esquema crítico machadiano, que consiste mais ou menos no seguinte anda­mento duplo: de um lado, o mapeamento do descompasso (“as idéias fora do

lugar” propriamente ditas) — ou seja, nas palavras do crítico, a ênfase na

com édia local das presunções de civilidade e progresso, qualificadas e desqualifica­

das pelo pé na escravidão e nas relações conexas: o Brasil de fato não é a Inglaterra

[é bom que se diga, continua não sendo, mesmo depois do vendaval thatcherista];

de outro, invertendo a direção da crítica, temos a revelação do caráter apenas for­

mal dos indicadores da modernidade, inesperadamente compatíveis com as chagas

da ex-colônia, a cuja cam ada europeizante fornecem o álibi das aparências."

Nota-se, portanto, que o efeito satírico é também ele duplamente orien­tado, na medida em que repousa “na distância que separa as realidades brasilei­ras da norma burguesa européia” e, ao mesmo tempo, “na elasticidade com que a civilização burguesa se acomoda à barbárie, a qual parecia condenar e que lhe é menos estranha do que parece”.12

Em entrevista recentemente publicada na revista Novos Estudos CEBRAP,

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nosso autor qualifica o sentido e o alcance da nota específica, lida e interpretada à luz desse esquema crítico machadiano, nos seguintes termos: “as escolas e as formas não dizem a mesma coisa em casa e fora de casa, onde aliás também podem estar em casa, mas de outro modo”.13

Na mesma linha, qualifica também o sentido do itinerário da pesquisa pelo lugar comum das “idéias fora do lugar” — topos de parte significativa do pensa­mento social brasileiro — , que, aliás, salvo engano, estão e não estão fora do lugar, como já estamos percebendo. Trocando em miúdos: o que parece ter movido o nosso crítico foi a pesquisa pela razão de ser da aparência de as idéias estarem fora do lugar, a bem da verdade e para empregar a fórmula clássica, aparência social­mente necessária ou bem fundada à luz do descompasso já apontado, ou seja, da suposta incompatibilidade entre o cânone moderno e o chão histórico recalci­trante em que deveria incidir, travejado pela iniqüidade social escandalosa.

Vejamos como o próprio autor nos descreve esse passo decisivo:

com o me deixei guiar pelo sistema das ironias machadianas, bem como das análi­

ses novas que Fernando Henrique, Fernando Novais, Maria Sylvia e Octavio Ianni

na época estavam desenvolvendo, fui levado a inverter as ênfases e a acentuar não

a incompatibilidade, mas a compatibilidade — naturalmente extravagante —

entre escravidão, civilização burguesa e capitalismo.14

Aqui se trata, salvo melhor juízo, também de um esforço por renovar e revi­gorar a finíssima tradição teórica da crítica da ideologia de inspiração marxista- frankfurtiana, especialmente nas feições que lhe conferiram Adorno e Benja­min, seja pela ênfase na centralidade da crítica imanente, presente no primeiro— aquela em que, como salientou Antonio Candido, o crítico, ao se mover no plano interno da obra, é capaz de nele divisar a “máquina do mundo”, e que, como se sabe, mas não custa insistir, espanta o sociologismo na medida em que toma o fenômeno estético como forma, a um tempo princípio de ordenação da obra e princípio de estruturação do real — , seja pela concepção desabusada de progresso presente no segundo, de que dá nota a magnífica alegoria do anjo da história tal como interpretado por Benjamin o célebre quadro de Paul Klee.

Um a crítica da ideologia que opera pela especificação acurada da marcha

particu lar que a dialética do esclarecim ento assum e entre nós, ou seja, trata-se

de m o strar co m o a civilização, à medida que se vai realizando, assenta as bases,

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no mesmo passo, para a sua reversão em barbárie, processo que tem como pano de fundo o desenvolvimento combinado e desigual da totalidade histórico- social que o configura.

A F O R Ç A DO N E G A T I V O

É precisamente dessa constelação que decorre o segundo mecanismo, que estou chamando de “a força do negativo”. Na hora presente, que se caracteriza em primeiro lugar pela crise do welfare no centro e pela exaustão histórica do

nacional-desenvolvimentismo entre nós, ou seja, pela aberta dinâmica de regressão que se verifica nos países ditos avançados, de um lado, e ao menos até segunda ordem, pela interrupção do árduo processo de construção nacional — de que nos fala Celso Furtado e que recebeu instigante tratamento teórico da

parte de Francisco de Oliveira no ensaio sobre o ornitorrinco — e, em segundo lugar, pela simultaneidade do tempo histórico, dada pela marcha da reestrutu­ração do capitalismo global, de que nos falou Robert Kurz no seu texto, em que se verifica, digamos, uma reversão pela qual o Terceiro Mundo funciona, até

certo ponto, como espécie de laboratório e farol para o Primeiro, mas nem por isso, note-se bem, a dinâmica desigual dada pela divisão internacional do traba­lho é posta em questão, é precisamente nessa nossa hora histórica que a ênfase no negativo do processo civilizatório parece conferir potência analítica inco- mum à crítica que tem sido praticada com maestria por Roberto Schwarz.

Assim é que o autor nos mostra como baralham-se as iniquidades do moderno de há pouco e as i niqíiidades produzidas pelo moderno de hoje: “a con­tinuação do tráfico negreiro faz os mecanismos anti-sociais do mercado colo­nial persistirem por um largo momento no interior da nação independente, à qual imprimem as feições bárbaras, que, por sua vez, agora, antes de se terem extinguido, já estão ressurgindo com força”.'

Atina, como poucos, para o fato de que, noves fora as discussões sobre os novos modelos regulatórios de que constituem exemplo as agências setoriais recém-implantadas entre nós, e a aqui transponho uma expressão que percorreo livro do Paulo Lins, na verdade,“o bicho tá solto, soltinho da silva”, ao menos no sentido sublinhado na seguinte passagem elucidativa de “Contra o retrocesso”:

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A mercantilização é a tendência de nosso tempo. Entendo que estão comerciali­zando o espaço sideral e submetendo ao regime de propriedade privada a fórmula dos genes, em detrimento do Brasil. “Entendo” é maneira de dizer, pois imagino que até poupadores mais atualizados do que eu não meçam o alcance desta mar­cha. Em linha com ela, o arrendamento da Rua Central, a terceirização da primeira missa, nos dias úteis, e a próxima privatização da pinguela podem mesmo ser os episódios finais de um processo que se completa e não deixa nada de fora.1'’

E dessa ferina percepção retira as devidas conseqüências para o ex-país ou semipaís atuais, também no que respeita ao material apresentado na primeira parte deste trabalho:

O desenvolvimentismo arrancou populações a seu enquadramento antigo, de certo modo as liberando, para as reenquadrar num processo às vezes titânico de industrialização nacional, ao qual a certa altura, ante as novas condições de con­corrência econômica, não pôde dar prosseguimento. Já sem terem para onde vol­tar, essas populações se encontram numa condição histórica nova, de sujeitos monetários sem dinheiro, ou de ex-proletários virtuais [conhecidas fórmulas de Robert Kurz], disponíveis para a criminalidade e toda sorte de fanatismos.17

A D E S A U T O R I Z A Ç Ã O R E C Í P R O C A

Em linha com o esquema crítico machadiano identificado por nosso autor e com a força do negativo que atravessa todo o seu esforço de teorização como uma espécie de fio vermelho é que me parece afirmar-se o terceiro meca­nismo a ser brevemente destacado, qual seja, o verdadeiro achado da desauto­rização recíproca entre o universal e o particular, o local e o global, a norma e a nota específica.

Assim é que a peculiaridade que assume a dialética do esclarecimento entre nós parece repousar justamente em que a vigência, ainda que parcial, do cânone importado encontra o seu lugar e, nessa medida, se de um lado o cânone desau­toriza a barbárie local, de outro é o próprio cânone que é posto na berlinda pela refuncionalização, no âmbito do andamento moderno da sociedade, daqueles traços mesmos que em tese ele deveria ter extirpado. Como se sabe, trata-se do

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coroa mento cie um esforço reflexivo coletivo cuja trajetória intelectual é recu­perada em “Um seminário de Marx”.18

Para voltar ao tema da gestão da violência no capitalismo global, no que diz respeito às propostas contemporâneas de privatização do sistema penitenciário, como suposta saída para a crise das nossas prisões, como procurei mostrar em outro lugar,19 bem se poderia estar diante de uma desautorização desse tipo, ou seja, entre o privado tomado como signo de máxima eficiência na esteira da eco­nomia global e o privado tomado como índice de uma sociabilidade autoritária, em que, às costas da norma jurídica abstrata, corre à solta o que Maria Sylvia chamou muito apropriadamente de “código do sertão”.

Desse modo, os nós que parecem atar o longo percurso histórico que vai do caso de justiça privada referido no capítulo “Herança rural” de Raízes do Brasil até a imagem recente do garoto de rua literalmente trancafiado, pelo segurança da

empresa, numa geladeira de supermercado, onde supostamente teria praticado um furto, poderiam ser desatados à luz do movimento dessa desautorização.

Desautorização que poderia também nos fazer ver com maior distância a propagação do conceito de risco na teoria social contemporânea, que hoje se

constitui não por acaso no mantra de uma sociedade cada vez mais siderada pelo

problema das inseguranças, agora, aliás, em marcha de reindividualização, ao

passarmos da lógica do welfare para a nova lógica do self-care. Na sociedade do

risco, viver nunca foi tão perigoso, notadamente no que diz respeito à sorte dos

setores mais desfavorecidos da população, e que o digam os nossos mendigos.O que parece decisivo é que a aposta irracional na corrida carcerária con­

temporânea pode ser criticada, com vantagem, do ponto de vista do bárbaro

padrão de controle penal que se constitui em regra de funcionamento de socie­

dades marginais com o a brasileira. Nessa medida, refazer o percurso da parte que

nos coube no processo de modernização pode muito bem significar, no mesmo

passo, a desautorização da marcha que o progresso hoje assume no centro.

Desse prisma, algumas de nossas taras mais célebres podem muito bem

estar se convertendo, na constelação histórica em que estamos metidos, em

desafios inesperadamente contemporâneos para as sociedades que nos servi­

ram de inspiração, dentre elas o caráter visivelmente autoritário da sociabili­

dade, as práticas justiceiras do Estado ilegal ( the minilcof /<m\ na boa fórmula de

Paulo Sérgio Pinheiro), a legitimação do “código do sertão que corre às costasI da abstração jurídica, a cordialidade truculenta dos agentes da lei, sem falar na

t/

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“imundície de contrários” e na polarização social que abrem o caminho para o advento das novas cidades globais forjadas no espelho das nossas velhas e autên­ticas gathed communities.

Para falar como o crítico, ao que tudo indica voltamos à vanguarda, só que agora da desintegração, bem entendido. Na esteira da gestão policial da miséria e da globalização contemporânea do regime de Bacamarte, quem sabe podere­mos, finalmente, importar com sucesso a última geração do un rule of law, da qual, a rigor, jamais conseguimos abrir mão.

Num movimento análogo ao que poderia ser visto como a viagem redonda do ciclo de violência que se tem abatido sobre nós, retomo o ponto de partida e mais uma vez refiro na boa companhia de nosso autor outra passagem do coro entoado em “A lata de lixo da história”, agora revestido de revigorada efetividade, aqui e alhures:

Sendo embora modernistas,Vai ser tudo à moda antiga,Muita lei epouco susto,Pau no Paulo epau no Augusto.

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Dois mestres: crítica e psicanálise em Machado de Assis e Roberto Schwarz

Tales A. M. Ab’Sáber

para Elisa Bracher

Em 1880 a psicanálise não existia. Por àquele tempo Sigmund Freud era ape­

nas um estudante de medicina promissor, no alto dos seus 24 anos, ocupado com

seus exames finais na atualizada,1 e no entanto periférica, Universidade de Viena.

No mesmo ano, um médico vienense mais velho, Josef Breuer, iniciava um

estranho tratam ento com certa jovem paciente. A moça se apresentava ao mun­

do em estado deplorável, tomada por paralisias, um tanto de afasia, um tipo de

anorexia, bastante confusão e, com o se fosse possível, ainda um conjunto muito

amplo e criativo de outros sintomas. Nada disso impedia que Berthá Pappe-

nheim fosse considerada por todos, inclusive por seu destacado médico, uma

jovem brilhante. Aquele foi o primeiro trabalho clínico sistemático com a histe­

ria, uma grande histeria, com o com um acento francês, provavelmente seria dito

à época. A moça, então com 21 anos, muito interessante, ficaria mundialmente

conhecida no século xx por ser uma das precursoras do método famoso que

também ajudou a criar e com o seu nome de ficção: Anna O.Com o se sabe, tal experiência foi levada, em sua faceta mais importante,

pela eficácia de um processo de transformação fundado na troca de palavras

entre a doente e o médico. Pela primeira vez a linguagem e a presença viva apa-

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reciam no centro da consciência científica moderna como operadores profun­dos da vida subjetiva, no plano do fundamento do que se pode pensar, sentir ou viver. Reconhecia-se como, em uma relação, a linguagem estava articulada à ordem mesma de estruturação da própria experiência. Apenas quinze anos depois, incitado pelo neurologista já não tão jovem Sigmund Freud, e em parce­ria com ele, Josef Breuer2 faria o relato público daquela experiência clínica, ato original de todo um campo que, com o tempo, chegaria a totalizar algo da vida ideológica ocidental.

Este mínimo dado ■— da fragilidade ainda potencial da psicanálise, pratica­mente inexistente à época— ressalta um pouco mais a radicalidade e a amplitude de escopo da incrível viravolta ocorrida na literatura de Machado de Assis naquele mesmo ano de 1880, no Brasil pós-colonial e escravista de então. Como aprendemos, em certa medida crítica foi Roberto Schwarz quem nos proporcio­nou a avaliação das conseqüências desse importante gesto simbólico que, para muitos, e desde Antonio Candido, completava o movimento da formação, no sentido forte do termo, de uma experiência literária autônoma que chegasse a ser produzida entre nós.3 Como Schwarz lembra sempre, não deixa de ser muito sig­nificativa a atualidade machadiana ao seu tempo, ainda mais se considerado o inusitado do caso. Diante do rebaixamento geral das aspirações e das práticas sociais de seu meio, é radical e espantosa a conquista de Machado de Assis do outro lado de sua própria moeda: o grande contexto crítico moderno no qual ele se instalou a partir do golpe mortal de Memórias póstumas de Brás Cubas.

A revelação deste caso singular de modernidade crítica periférica é fruto de uma longa acumulação de trabalhos e percepções pontuais,4 mas se torna ple­namente visível a partir do trabalho de Roberto Schwarz, que se constituiu em uma rara sintonia com a dimensão mais radical de seu próprio objeto. Também tão importante, e parte da mesma matéria, é o fato de que, encarada desde hoje do ponto de vista do trabalho teórico de Schwarz, tal atualidade machadiana ain­da faça grande efeito — com estragos e consertos — em muitas ordens tidas como neutras e estabilizadas na operação da vida cultural e das relações huma­nas de nossa própria época. O alcance crítico de tal construção é amplo e, ao seu modo histórico particular, ainda ensaia os primeiros passos em vários dos cam­pos teóricos e políticos que de fato implica.

É sensível, por exemplo, para citarmos apenas uma região da vida contem­porânea a Machado de Assis, que sua matéria ficcional tem, de forma problemá-

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tica e renovadora, claros efeitos psicanalíticos. Refíro-me aqui,em síntese, à con­figuração de seus personagens principais nos livros da chamada segunda fase, a partir do princípio de relações infernais e surpreendentes traçadas entre o sen­tido caprichoso das coisas e a norma moderna semi-estrangeira que as mede, e também das relações gerais submetidas à ordem de alguma primazia qualquer, entre o indivíduo e o seu outro. Sem o prejuízo de um anacronismo, e para evi­tar qualquer anacronismo ao contrário, o que sabemos a partir de Roberto Schwarz é que a teoria materialista do sujeito que aparece em Machado de Assis configura, na época da mais elementar origem da psicanálise, quando sob todos os aspectos ela apenas engatinhava, uma radical e completa visão de seu outro his­tórico,, quase invertida em relação à estruturação psíquica e ideológica central que a disciplina freudiana originalmente consagrou. Como veremos, os ele­mentos que compunham o modo de pôr o sujeito próprio do mundo burguês clássico, pensados a partir de então com certa equação pela disciplina freudiana, se tornam insólitos e contingentes, perdendo o lastro da universalidade, diante

da outra forma de operar a vida concebida por Machado de Assis a partir da ex­periência histórica brasileira do mesmo século xx.

A relação não é inútil para a psicanálise,5 que tem a ganhar em toda a sua

extensão de teoria com a avaliação do estranho e concreto outro sujeito macha­diano, dado na forma de organização da prosa, descrito desde a periferia do campo dos valores ocidentais centrais, em um mundo onde estes tinham e não tinham vigência. E mais ainda: para a psicanálise, este trabalho machadiano de nomeação de um certo outro também tem o valor epistemológico de pôr em ope­ração um outro método de acesso à vida simbólica, muito diferente das abstra­ções transcendentais a partir da clínica, próprias à construção original da disci­plina. Este método de fato fundou uma form a , inteiramente inventada pelo escritor pós-romântico brasileiro, quase sem referências anteriores,'' para dar notícia de seu estranho e espetacularmente irresponsável problema.7 De resto, é bom acentuarmos que tal estranho nos é muito comum. Ele poderia ser pensado como simplesmente concretamente familiar.

Para atinarmos mais profundamente com as dimensões desta criação machadiana, do ponto de vista da psicanálise, é preciso que se reflita sobre algu­mas questões de princípio. Como é sabido, em seu espaço social original a disci­plina freudiana se desenvolveu concentrada em sua ordem própria de razões, de fundo científico positivo, materialista e biologizante, herdeira de uma poética

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expressiva de caráter físico-matemático, tendo o horizonte real do iluminismo e da cidadania liberal burguesa européia com o quadro mais amplo de inscrição, fundo simbólico geral em relação ao qual a disciplina desenvolveria seu especí­fico desenho dos sujeitos. Foi deste horizonte mais amplo de marcas simbóli­cas socialmente constituídas, e de suas texturas imaginárias correspondentes,

que o trabalho freudiano destacou o seu outro sujeito, fudamentalmente em

contradição, de fato, uma espécie de contradição indireta, interiorizada, do

indivíduo consigo mesmo. Esta novidade histórica, grande construção do

tempo, o sujeito do inconsciente freudiano, guarda em si — literalmente —

todos os elementos anteriores que dizem respeito ao campo simbólico e ideo­lógico de sua cultura específica, e habitam o próprio sujeito da análise como

força e representação. Podemos lem brar a respeito, por exemplo, como tal

campo está presente e é evidente, com o trilha significante, no próprio sonhar

freudiano, que é também um grande processo de avaliação da tensão entre o

indivíduo e a cultura de sua época.8

A partir da nova nomeação psicanalítica passa-se a reconhecer tal campo

ideológico e simbólico iluminista-liberal como um fundo falso, diante da radi-

calidade outra do desejo e do sexual no humano, mundo de sentido novo tra­

zido à consciência do tempo pela nova disciplina. Neste processo de criação sim­bólica da disciplina, a estabilidade das novas categorias críticas propostas por

Freud ao sujeito, coisas como recalque, pulsões sexuais, inconsciente, defesas, ego, superego, narcisismo, é verdadeiramente notável, pela precisão identitária das

próprias nomeações, em certa densidade conceituai que realiza com firmeza o

significante teórico. É sempre possível pensarmos que estas categorias estão elas mesmas em alguma contradição com o próprio objeto escorregadio e às avessas

que elas desenham, evocando, de um modo surpreendente, na própria poética

do conceito, o campo científico e racional pós-kantiano que foi o seu: o da crí­tica, discriminatória, própria de certa imagem universal da razão. Muitos anos após a origem do seu próprio sistema teórico, já no início da década de 20, Freud chegaria a pensar através de categorias mais abertamente paraconscientes,como seria, por exemplo, o seu conceito-limite e algo poético áepulsão de morte, reme­tido ao trabalho posterior das futuras gerações de analistas.

Em relação às específicas dissociações da vida brasileira, nação recente que— naquele momento avançado da autocrítica burguesa* que foi a criação da psi­canálise — ainda estava plenamente instalada no uso e no abuso de uma merca-

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doria m uito especial, o corpo do escravo,10 a descoberta central freudiana, mate­

rialista a seu m odo, de um sujeito que não é idêntico a si mesmo, parece muito

alinhada com a ordem geral das coisas m achadianas. Mas, simultaneamente,

com o veremos, o desvio do sujeito que se deriva, segundo Roberto Schwarz, da

form a de M emórias póstumas de Brás Cubas é ainda de um a outra ordenação, ou

melhor, de um a outra form a de desordem, do que aquele descrito pela psicaná­

lise original, sua contem porânea.

Am bas as form as sim bólicas, contem porâneas porém posicionadas em

lugares distintos de um a ordem global com um , a m achadiana e a freudiana,

afastavam o sujeito das ilusões de consciência e estabilidade próprias à norm a

burguesa geral. Todavia, tais criadores de um a avaliação que punha os seus

m undos am plam ente em xeque, um na form a da ciência positiva que se revertia

na dialética própria à psicanálise, outro na da arte crítica e inventiva, desde a

periferia do sistema das trocas globais, configuraram as suas próprias modali­

dades formais de m odo que elas tam bém se afastavam entre si, em algum grau

im portante. C om o verem os, o problem a da oscilação sem limites machadiana

não é o m esm o do inconsciente burguês e suas form ações de compromisso, mas,

antes, trata-se m esm o de um a espécie particular, tropical, culta, e sem culpa, de

seu negativo.

Pois o que aprendem os com o M achado de Assis pensado por Roberto

Schwarz é que no m esm o m ovim ento histórico da percepção das rachaduras

intransponíveis da ordem burguesa, em que, de nosso ponto de vista, mais ou

m enos no centro do capitalism o emerge o sujeito da psicanálise, dividido em

relação a uma norm a incorporada mas que não pode se expandir até as últimas

conseqüências da verdade — que seriam pós-burguesas — , na periferia do sis­

tem a aparece, sob a configuração de uma outra ordem de subjetivação, outra

operação de sentido do sujeito, que passa simplesmente ao largo das soluções de

com prom isso sim bólicas próprias à form a sintoma européia, expressão mais

típica de quem introjetou e reconhece a instância psíquica da lei do outro com o

tam bém sendo sua.Este verdadeiro acontecim ento crítico e estético que foi a obra de Machado

de Assis implica ainda mais: que a nom eação precisa e profunda deste outro

sujeito, pós-colonial, burguês e escravocrata, foi realizada segundo um método

de invenção próprio, que não necessitou, quando não zombou constantemente, das ilusões universalistas, transcendentais ou científicas da vida ocidental cen-

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trai — ou simplesmente as superou no vazio, em sua inteiramente outra forma, meio ao modo de um Sade diante das normas de papel da Aufklärung. O célebre núcleo duro do recalque e da castração simbólica européia se desmanchava por aqui em uma forma de dissolução e variação infinita do sentido das coisas, cujo núcleo duro era provavelmente bem outro, ao que tudo indica, o da estrutura social escravocrata ou, no plano do objeto, o corpo do escravo e o seu uso.

Como aprendemos com o crítico brasileiro, o estatuto do tesouro ociden­tal de referências morais, culturais, estéticas, científicas ou técnicas é muito ambíguo, para não dizer praticamente inválido em sua ordem original de ra­

zões, quando operado pelo sistema rigoroso do capricho e do desenraizamento das suas condições sociais de origem, que a situação concreta das condições

sociais brasileiras permitia ao seu século xix. Segundo Schwarz, aquela produ­ção social geral dita moderna teve densidade ideológica e crítica de primeira

água em seu campo histórico europeu original, impulsionando algo do pro­gresso social — noção ela própria produto daquele específico espaço simbólico— na medida em que se expressou concretamente no embate real entre as clas­ses; daí seria possível dizer, com a psicanálise, que tal ideário geral se alçou a

alguma esfera pública como solução de compromisso na forma dos direitos abs­tratos entre as classes, todavia, direitos barrados — recalcados — , cindidos so­cialmente, pela posse privada dos meios de produção da riqueza, com seus efei­tos catastróficos e regressivos na cultura fetichista do mercado capitalista. Todo

este mundo de idéias que tiveram alguma aplicação real e passaram a regular ideologicamente uma sociedade, uma história e uma formação subjetiva, que correspondia em seus embates ao seu próprio campo simbólico, no mundo

escravista e burguês, mas sem a estrutura social burguesa, tinha a mesma vali­dade simbólica de qualquer gesto aleatório, caprichoso ou egoísta, privativo dos senhores da elite proprietária da massa de trabalhadores, produzindo um tipo de campo de imanência de gestos particulares que, no contexto, impunham a sua

validade social como universal.Podemos lembrar aqui a hipótese de Adorno, da correspondência insti-

tuinte entre vida subjetiva e vida material, entre as formas do sujeito da psicanálise e a ordem simbólica cindida da vida social sob o regime do capital, e pensarmos — com esquema mínimo — , a partir de Roberto Schwarz, que a ordem social da cisão simples européia entre as classes sociais pode corresponder relativamente ao sujeito contraditório do inconsciente, enquanto, por aqui, a ordem da mo-

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I dernidadc foi potencializada em uma dupla e tnais radical nat ureza de cisão.11 EstaI dupla tensão brasileira, e suas rachaduras, se daria entre o atraso colonial e o sis- í tema simbólico central, não diretamente ajustado ao espaço central periférico —i mas registro moderno atualizado, que também se habitava— e entre os senhores,i seus escravos e seus dependentes, ordem social cuja simbólica não correspondiaI em nada ao jogo muito tenso mas regulado das modernas classes sociais no capi- \ talismo liberal clássico, mas ordem estranha medida também por ele, que, pode-I mos dizer, enfeixava simbolicamente o significante advindo do todo.

Desta forma, o senhor brasileño dispunha, a um tempo, da pletora da tra­dição cultural ocidental à qual suas prerrogativas de classe e sua inserção no campo das trocas gerais lhe davam acesso, sem que isto implicasse a ordem das relações locais, e dispunha também do direito de rebaixar tal ordem simbólica, quando bem entendesse, ao estatuto real do gesto particular qualquer. Este gesto não estava inscrito em nenhuma norma de caráter geral, a não ser a sua própria, em uma espécie de lei particular, o imperativo de um gozo qualquer, fundamento

psíquico da generalização do capricho como formação social por excelência.Podemos dizer então que a razão prática das coisas, a correspondência

entre a ação social e o horizonte de legitimidade de uma lei comum, racional­mente reconhecida e introjetada, com eficácia superegóica, estava totalmente alterada, radicalmente a favor de alguns, em relação à norma geral européia.

Segundo Schwarz:

Do ponto de vista espontâneo, trata-se para o narrador [Brás Cubas] de gozar ao

acaso, em muitos planos e sem remorso as vantagens e facilidades proporcionadas

pela injustiça local e pela posse impune da palavra, sem abrir mão de nada — do

pecadilho à atrocidade— e aliás sem desconhecer que aos olhos do superego euro­

peu fazia um papelão, o que só acentuava o picante do caso.':

Assim, curiosamente no Brasil escravista — estrutura social que em parte perdura, dado o fantástico grau de concentração da renda brasileiro1' — como Machado de Assis compreeendeu sua forma14 de pôr categorias como consciên­cia, lei e sujeito, podemos dizer que os senhores da elite figuravam uma espécie concretamente determinada, negativa e retardatária, mas atualizada, do sujeito do espírito absoluto— na formulação que foi própria às aspirações da expansão da consciência reflexiva do indivíduo, romântico, operador da razão autônoma.

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Este efeito subjetivante, de aspiração concreta ao absoluto, deve ser correlato, na Europa, à expansão mundial do capital e da ciência a partir do século xvni, mas no Brasil, tal absoluto passava pela não-inscrição, pela não-introjeção, de ne­nhuma norma nítida delimitadora, ou ordem das razões que tivesse valor trans­cendente rumo a alguma humanidade reconhecida como lei geral frente ao desejo ou capricho particular. Se lá tal sujeito correspondia à idéia da emanci­pação racional pela expansão reflexiva, aqui ele estava fundado em um princí­pio imaginário de onipotência, cujo resultado é uma impotência crônica que, sem abrir mão de um núcleo interessado, e vazio, da razão, apenas reproduzia a ordem social que garantia o seu predomínio radical.

É desse modo que, o que no espaço europeu novecentista poderia aparecer figurado como um Fausto, ou, em outra formulação, um Julien Sorel, ou um Lucien Rubempré, aqui ganhava boa forma como o muito deficitário, porém ainda muito mais lépido, Brás Cubas. Interessantemente, e para tornar a coisa com substância e complexidade histórica maior, ao mesmo tempo, no registro internacionalizado da cultura, qualquer idéia moderna e nova das coisas huma­nas sempre foi muito bem-vinda à elite brasileira, na medida em que servisse ao predomínio social vigente. No mesmo movimento, tal posição era a de uma inserção própria na ordem geral da modernidade, na qual o Brasil sempre esteve realmente inserido como produtor primário de mercadorias.

Noutras palavras, o universo das idéias, das técnicas e das ciências está dis­ponível imaginariamente para o prazer do proprietário, que em nada é compro­metido por ele, dada a verdade do predomínio direto nas relações sociais. Assim, tal universo simbólico forte, tornado fraco, convive,15 em um regime misto, estranho e outro em relação a seus próprios princípios, com o real mais forte do gesto aleatório, egoísta, interessado ou absurdo, do mesmo (tipo de) sujeito, o que contradiz à luz do dia da cultura o centro ideológico mais firme e conse­qüente daquela outra vida social, também presente. Tudo isso se dava às custas de um esvaziamento drástico de alguma densidade do eu.

Este gesto “qualquer”, que, conforme demonstra Schwarz, acaba reali­zando a lógica do imperativo de um gozo também qualquer, é mantido social­mente legítimo e frouxamente desrecalcado, por senhores que dispõem dire­tamente do outro como mercadoria. Tal condição geral, poderíamos dizer, torna o outro um objeto absoluto. Um aspecto fantástico deste mundo é que, nele, dada a posse real do objeto, a fantasia sadomasoquista pode avançar direta-

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mente sobre o real, de forma a tornar a coisa difícil de simbolizar: tratar-se-ia, bem ao contrário da forma européia de operar o espaço social, da experiência histórica viva de uma imensa form ação de descompromisso,16— convivendo mesmo com um sistema de horror em ato, que configurava aspectos importan­tes da vida social.17 Deste modo, podemos dizer, ao contrário, que a célebre solu­ção de compromisso da psicanálise original, forma derivada do princípio geral do recalque, é muito própria à vida simbólica moderna européia, e lhe pertence mais intimamente, como dado histórico, do que era possível reconhecer no interior de seu quadro de referências naturais. A forma subjetiva da solução de compromisso, com seus aspectos simultaneamente progressistas e regressivos, em conflito instável, habitava uma simultânea região no interior do sujeito e na ordenação social da própria sociedade que a operava. Era esta exata solução, com suas densidades simbólicas específicas, que, no plano da produção da vida social, faltava no Brasil. Tudo isto sem prejuízo do fato, igualmente moderno, de o Brasil ter se constituído deste modo em plena modernidade, ou seja, no tempo da expansão mundial do capital dos séculos xvii, x v i i i , xix, que por aqui se realizava mesmo deste modo avesso.

Olhando tudo isto do ponto de vista da história teórica da psicanálise, podemos lembrar que apenas em 1927, e, com mais clareza, em 1938, já em pleno ciclo histórico das duas grandes guerras mundiais — quando as ilusões burguesas do século xix já haviam sucumbido, e próximo ao fim da vida — , Freud trataria de uma forma de defesa psíquica que implicava a divisão do ego de modo que, diante do fetiche sexual, a lógica defensiva vigente seria: a castração materna existe, mas a presença do fetiche a nega, e ela também não existe.18 Se­gundo o já muito experiente analista, esta forma de pôr o sentido levaria a uma dupla corrente contraditória de consciência que se manteria convivendo no su­jeito, uma posição sem prejuízo da outra. Passado o tempo histórico da emer­gência da pulsão de morte na psicanálise, do início dos anos 20, e diante de uma espécie de outra forma do humano que habitava o perverso sexual, Freud obser­vava uma outra composição do sujeito que, em vez de incorporar o sentido ne­gativo e universal do recalque, sobrepunha consciências contraditórias para recusar estrategicamente todo um campo da realidade.

Vendo de outro lugar, e com outras palavras, estaríamos talando daquilo que, após muitos anos da formatação original da psicanálise sobre a ordem do sintoma neurótico, Lacan evocou como o regime perverso do sujeito diante da

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lei simbólica: sei que ela existe, mas para mim ela não vale...19 Lendo o Machado de Assis redesenhado por Roberto Schwarz, podemos observar a precocidade da consciência crítica brasileira sobre algo destas formulações tardias na história européia e, mais ainda, no caso brasileiro, estaríamos diante de uma cultura que se estruturava inteiramente, desde sua natureza própria às suas relações de vio­lência direta entre as classes e de sua inserção atualizada na vida moderna de seu tempo, sobre esta norma escorregadia, dupla e clivada, que a psicanálise avan­çada associou à palavra perversão.

O objeto fetiche, que põe e nega a realidade simbólica da castração, no caso, seria a própria presença do corpo do escravo, fonte significante de todo o gozo, capricho e abertura ao real de qualquer alucinação, como deixam claro os ins­trumentos sádicos descritos por Machado de Assis, presentes na mais legítima e cotidiana vida social, em pleno século xix. A situação brasileira seria, de certo modo, ao julgarmos pela radicalidade machadiana, a do lugar da perversão pró­pria ao sistema global de sentidos e de dominações, que só pode ser pensada na experiência européia a partir dos anos 20 do século xx, quando o capitalismo rompeu definitivamente com todas as soluções de compromisso e tendeu aber­tamente para a destruição e o fascismo,20 o que na periferia do sistema já apare­cia muito claramente configurado ao longo de todo o século anterior.

Noutra direção, porém assemelhada, o trabalho de revelação dialética de Roberto Schwarz sobre a duplicidade oscilante, fabulosa e impotente do narra­dor machadiano pode ser aproximado também do célebre diálogo psicanalítico, sem síntese, realizado por Lacan em seu Kant avec Sade, seu estudo mais com­pleto sobre a vida simbólica do perverso. Mas entre estes dois textos e seus mun­dos há, pelo menos, uma diferença: no trabalho sobre o sujeito do direito ao gozo absoluto sobre o corpo do outro, Lacan equipara topologicamente em dois grafos o lugar fantástico do sujeito sadiano — que não conheceria o barramento da lei e o desejo do Outro — e o lugar, para o psicanalista francês inscrito tam­bém no sujeito sadiano e por ele superável, do sujeito da lei moral e superegóico kantiano. As diferenças políticas destas formas de constituição passam a ser variações que podem ser postas no plano do significante, da fantasia e do desejo, igualmente descritos e em pé de igualdade, por sua psicanálise e suas topologías, dando ao discurso de Lacan o prazer da ironia, ou do cinismo, de libertar para o pensamento ocidental o libertino, ou o fascista. Schwarz, por seu lado, opera as contradições espetaculres e cultas do narrador machadiano — cujo horizonteé

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a mesma supressão do direito e do espaço simbólico de qualquer outro, mas em

um plano de gozo rebaixado, do gosto superficial pelo universal inconseqüente

e seus efeitos de poder na rebaixada vida local, que não constrói nenhuma cate­dral se comparada à hipercalculada maquinária sadiana — de modo a manter

tensa e irrealizada, no limite, a promessa de universalidade da normatização

própria à modernidade ocidental, tirando, ao confrontá-la com o seu produto

periférico, o seu eixo central de articulação. Assim, o sistema simbólico da

modernidade passa a girar em falso e a revelar, desde a sua periferia, o seu cará­ter ideológico, falsamente realizado.

O ponto histórico, e da forma subjetiva, que interessa a Schwarz trabalhar

guarda um valor tenso e inconcluso, visando criticamente o todo, colocado em

desequilíbrio constante pela própria visão indireta de sua forma dada no mestre

romancista periférico. E esta forma se produz em uma espécie de salto invertido,

desde a relativa redução de sua matéria histórica brasileira até o interior do sistema

das inconsistências capitalistas mais gerais e, por outro lado, ainda impensáveis:

A equivalência do que não é comparável, ditada por conveniências de momento,

denota o sujeito pouco integrado. [...] À comédia das substituições [ imaginárias],

cujas personagens vivem em falta com o padrão europeu de constância e respon­

sabilidade, acrescenta-se outra mais radical, que coloca em dúvida a identidade ela

mesma — da pessoa, do amor, dos atos, dos objetos. E se a unidade do indivíduo,

mais os seus correlatos de propriedade privada, monogamia, autonomia moral e

intelectual forem ilusão ou, na melhor das hipóteses, um caso particular inutil­

mente transformado em mandamento? [...] Conduzido pelo estatuto inconvin- cente da norma no Brasil, Machado desenvolvia uma análise extramoral dos rela­

cionamentos humanos, e, sobretudo, do funcionamento da própria norma. Posição de vanguarda, que o colocava na família dos escritores propriamente

investiga ti vos, para os quais a realidade certamente não tinha o sentido que apre­goava, se é que tinha algum. Por outro lado, aquele estatuto não deixava de ser um defeito local, de modo que a clarividência a respeito, gerando embora ceticismo, não gerava propriamente um patamar de existência renovado — o que hoje, se pensarmos na ideologizaçào furiosa da época, pode parecer uma superioridade complementar. No mais alto nível, despido de provincianismo e deslumbramento,

reencontramos o limite da civilização reflexa/1

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Lacan diria, com base na própria avaliação de Sade com Kant, que falta um grão de sal à suspensão negativa do mundo que surge do movimento do pensa­mento em Roberto Schwarz; movimento de um pensamento que, por seu lado, parece preferir não brincar com o que é mal concreto entre os homens.

De fato, Brás Cubas é mais engraçado que Sade, e Roberto Schwarz é mais sério que Lacan. Penso que o desejado grão de sal de Lacan pode ser o índice des- recalcado, quase imperceptível, do cinismo, e de seu gozo, a qualidade das iden­tificações de classe, ou as posições na ordem do mundo, que orientam, como fantasia original, a própria enunciação de cada pensador. Por trás do signifi­cante do tempero sadiano, destacado por Lacan diante do esforço sério e sem humor kantiano, podemos estar às voltas com uma epistemología política mais radical: quem se identifica e quem busca trabalhar a superação da possibilidade de fundar a cultura sobre o significante do gozo qualquer sobre o outro. Trata- se de um problema central na cultura da modernidade, e de sua desconstrução,22 e é nesse sentido que cabe aqui este pequeno discurso sobre Schwarz com Lacan?

Mas, voltando à vaca fria do real, à verdade da matéria onde os dados de forma são jogados, de fato a noção significante predominante no Brasil moderno de Machado de Assis é a de uma norma geral, uma lei subjetivante, bastante escorregadia, ou volúvel, se considerarmos que o mesmo sujeito da autonomia particular de um gesto qualquer pode evocar também livremente as regras liberais e modernas, a lei dominante do tempo, e que ele também quer se inserir, e se insere, no sistema de sentidos globais, medida geral das coisas— por que não ter acesso a tudo, quando se tem a posse de tudo? — e, também, na medida em que este sistema de valores passa a funcionar a seu favor. Por exem­plo, trata-se de oscilar livremente de sentido, quando uma atitude fria e impes­soal à la cálculo objetivo e regulado próprio ao capitalista moderno dá maiores ganhos do que os vínculos personalistas e arbitrários advindos do patriarca- lismo tradicional, de matriz ibérica e colonial, vínculos também conservados, na dimensão exclusiva do interesse.

Nem isto nem aquilo, ou melhor, isto e aquilo, conforme as conveniências e o máximo gozo, contra o destino e o direito estruturado do outro: tal sujeito escorregadio é uma modalidade ativa e criativa muito peculiar de recusa da lei, alterando a noção completamente na medida em que também sabe usá-la para a afirmação constante, de modo ligeiro e oscilante do ilimitado de seu direito exclusivo. Observando o sujeito da estrutura simbólica psicanalítica clássica,

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que interioriza o espaço do conflito e o organiza com o form a simbólica, tal

oscilação espetacular e gozosa que tende à anulação do outro e à perda de um

tan to de densidade do eu, leva a um a historicização radical das categorias

m etapsicológicas no m odo que a psicanálise as fixou. Estas perdem algo de sua

vigência abstrata universal e necessitam construir outras noções, com suas cor­

respondências históricas próprias, com o a volubilidade brasileira necessaria­

m ente indica.

Na Europa a valorização literária do capricho estivera ligada às luzes e à luta “pela

autonomia e atividade espontânea dos sentimentos”. Trazida para cá ela permitiu

o close up de uma liberdade nada esclarecida, mas cotidiana e crucial no país,

aquela em que um indivíduo, sobretudo de classe alta, arbitrariamente decide se

vai considerar o próximo em termos de igualdade civil ou segundo a gama de rela­

ções legadas pela colônia, ou ainda uma coisa sob a aparência de outra. [...] Em

perspectiva análoga, lembremos que Machado apurava a dimensão quantitativa e

contábil dos movimentos da consciência, cuja inquietação se governa pelos requi­

sitos do prazer e da fuga ao desprazer, mesmo que para isso tenha que abandonar

o mundo real pela compensação imaginária. Adotadas como célula elementar da

prosa narrativa, bem como da conduta das personagens, estas transações compen­

satórias incorporam ao romance uma reflexão psicológica de ponta, com afini­

dade científica, em discrepância pronunciada com as apreciações religiosas ou

morais da vida anterior. Ocorre que, na ausência destas últimas, o paternalismo

perde toda e qualquer justificativa aceitável, ficando reduzido ao puro arbítrio dos

proprietários. Por outro lado, a hipótese de uma dinâmica puramente econômica

do psiquismo não tem papel só crítico, mas também apologético, pois livra de res-

ponsabilidade pelos dependentes — estimada ilusória — os beneficiários da

ordem social. [...] Por fim, dispensa comentário a diminuição acarretada pela

volubilidade e por suas conseqüências, em pleno século xix, para o universo que

elas caracterizam. Mas vimos também as vantagens correspondentes, os prazeres

regressivos ligados à infração repetida e eternamente impune, sem prejuízo do

nada em que desembocam. Sob o signo da volubilidade do narrador estava mon­

tado um dispositivo literário onde o estatuto do indivíduo, da lei, o espírito cien­

tífico, a tradição beletrista e os argumentos filosóficos gravitam fora do eixo con­

sagrado, mas conforme a disciplina de uma formação social.24

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Machado de Assis formulou, no contraponto moderno periférico do sis­tema ideológico europeu, na origem de nossa estrutura histórica nacional, um tal sujeito, outro do regime iluminista, e sob a forma de uma outra psicanálise— de meu ponto de vista — constituída em sua própria escritura, de caráter inven­tivo e materialista, operando por circuitos constantes de contradição em ato da estabilidade de toda norma, através de certo íluxo calculado e rigoroso do ab­surdo. Esta forma foi muito precoce em relação à consciência geral destas mes­mas coisas, diante do tempo catastrófico da história do capital no próprio cen­tro de seu mundo.

A forma da permanente suspensão pelo narrador de toda norma acordada com o leitor ou a comunidade, dada no imperativo do capricho ou do gozo qual­quer, é a forma mesma, em uma espécie de heterologia de toda razão partilhada, daquilo que pode conceber e operar a forma psíquica do outro sujeito— o outro estranho. Este outro é outro da norma pública européia e também outro da

ordem de razões que organiza o sujeito neurótico, muito mais próximo daquela norma pública do que a experiência do senhor de classes brasileiro jamais o foi.

Em algum lugar Roberto Schwarz comenta que aquela sociedade cindida, tresloucada em suas contradições reais, mas plenamente instalada e satisfeita nelas — do ponto de vista do senhorio, é claro — , não teria a idéia nem a força de produzir “um Kant do favor”,25 um normatizador das condições de possibili­dade da operação social contra, mas também, ao contrário, articulada com a nor­ma liberal do tempo. Creio que se pode dizer, a partir da revelação da leitura do próprio crítico, que a radicalidade do jogo formal e simbólico de Machado de Assis o poria mais ou menos neste lugar central do espírito às avessas, lugar de significante e de contraprova ao jogo ideológico central, com sinal negativo e chave polêmica em relação ao espírito geral de seu tempo. Tal estranho sistema se caracterizaria pela pesquisa heterônoma do baixo sadismo ilustrado, noção de difícil nomeação, fantasia subjetivante periférica, de base histórica material, que se revela no fundo da volubilidade geral, fixada pela escravidão.

O prólogo e o famoso capítulo inicial de Memórias póstumas de Brás Cubas terminam exatamente enunciando, no plano mesmo da construção dos perío­dos e até mesmo da frase, o tal estatuto diante da lei do perverso da psicanálise, indicando o movimento geral de todo o livro no plano do detalhe.26 Mas o fazem encenando na própria relação do narrador com o leitor, e com qualquer objeto cultural, a ordem autoritária e arbitrária da posição do senhorio brasileiro em

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relação aos pobres, nos dando o efeito, em ato, daquilo que move tal sujeito e sua

relação com o outro, e, de quebra, invertendo radicalmente o próprio estatuto

não implicado, ou aparentemente descomprometido, do narrador neutro, em equilíbrio estável, típico do romance realista tradicional. No Brasil de Machado

de Assis, um ponto de vista nitidamente discriminado como este não parecia inteiramente verdadeiro.

Ao fim do prólogo, por exemplo, que tem a função de posicionar o autor

defunto e seus direitos inauditos à prosa livre, sem ponto fixo, que pode evo­

car igualmente “a galhofa e a melancolia” e que tem seu estatuto formal e con­ceituai indeterminado, o que é do maior interesse estético e teórico, todo este

universo de radicalidade moderna com a forma é colocado na perspectiva da

suspensão do sentido, para azar do leitor e para o gozo ligeiro do narrador.

Após, por um segundo, simular um princípio de interesse pela opinião do ou­

tro e de validação interna da obra, que deveria ser julgada de forma isenta

diante da própria presença constrangedora dos interesses particulares do au­

tor — norm a geral das coisas estéticas em uma cultura séria e real — , senti­

mos, num golpe explícito, por que e para que tudo aquilo veio: “A obra em si

mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,

pago-te com um piparote, e adeus”27O descompromisso com qualquer alteridade revela aqui, neste mínimo

passo, de forma jocosa, ou gozosa, o seu fundo de violência particular e real. O

seu saldo, de soma zero final, é do interesse e do ganho exclusivo de Brás Cubas; ao mesmo tempo o seu efeito é o de esvaziamento radical de tudo o que possa vir

a estruturar a cultura.O Outro, toda ordem de valor partilhada com qualquer outro, tem validade

apenas estratégica, na medida geral da regra do gozo qualquer de Brás. Assim, se o leitor concorda, seduzido pela linguagem que quer seduzi-lo, com o alto valor que o narrador dá à sua própria obra, muito bem; se não, literalmente dane-se, ou seja, a alternativa real e verdadeira possível é suspensa, o leitor é desqualifi­cado e no mesmo movimento lhe são roubadas as balizas que medem as coisas de sua própria cultura. Ainda, de troco, a construção acaba em um croque, para o pequeno gozo sádico do narrador, que fez desaparecer todo continente sim­bólico que dá validade a alguma troca entre os homens. O impacto imaginário do piparote, a violência real figurada aqui quase como um ato, na escura poética da frase final, é exatamente esta: fomos colocados na posição própria ao direito

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dos escravos na sociedade escravista; posição aqui mimetizada na própria ordem da composição, como Schwarz demonstrou.

Trata-se de algo como: par, eu ganho, ímpar, você perde, e nas duas posições eu gozo, seja em uma norma elevada, própria à técnica geral do tempo, seja no gesto de minha violência livre, rebaixada. Tudo isso sem compromisso sobre o que tal ruptura da lógica da identidade no plano do sentido significa a respeito de alguma ordem da realidade comum e partilhada, inexistente e suprimida com o próprio gesto do narrador-personagem. Creio que está sendo acionada, na passagem, do ponto de vista de quem quer coerência com as coisas humanas, uma espécie de alucinação negativa — como as que Charcot produzia de forma ingênua em suas histéricas no mesmo período que Machado escrevia — , ato que desrealiza o espaço social do direito e da validade do outro, e junto com ele toda uma ordem de razões possíveis.28 Por fim, apenas o gozo do narrador, no nada, é certo.

Nas palavras de Schwarz: “Digamos que a notação da realidade contin­gente, própria ao romance como forma, não tem seqüência, ou melhor, não fru­tifica. A todo momento a narrativa a interrompe e a transforma em trampolim para um movimento de satisfação subjetiva, que pode ser do narrador, dos per­sonagens ou do leitor, e se realiza à custa do real”.29

Podemos agora entender, do ponto de vista do narrador, que tende à ilimi- tação, os ares de mito e delírio que se escondem na frase “A obra é tudo”. A obra é tudo porque, sendo parte integrante dele próprio, em seu radical narcisismo defunto — de resto, como todo o resto — é tudo o que importa, e é tudo. Tal construção significante de uma teoria estética brasiana, “a obra é tudo”, com os efeitos autoritários e vazios que Machado de Assis já revelava em sua formação original, e operando do mesmo modo irresponsável, não deixa de ter vida longa na cultura conservadora brasileira. Ao mesmo tempo que a obra é tudo, totali­zando a vida cultural em si mesma, o resultado final do movimento é o vazio de todo parâmetro simbólico possível, vazio rebaixado, incongruente e descom­prometido que se torna o próprio mundo da cultura entre nós.

Não por acaso o horizonte de muitos desses personagens senhoris será o descarrilamento da experiência e a convivência quase imperceptível com uma certa vida delirante30 — em uma forma em que o escritor tem que exercer ao máximo a sua argúcia técnica— , delírio que, no contexto do predomínio social generalizado de tais senhores, se impõe também ao outro como medida real das

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coisas. Tal núcleo desrealizador e delirante tem especificidade e peso social pró­prios. Segundo Schwarz:

note-se como funciona o aspecto extraburguês dos assuntos locais, e também da

própria relação narrativa: ora é apenas um desvio da regra, ora tem um movi­

mento com viés próprio, que escapa às definições dominantes e descobre terra

incógnita. Para dar uma idéia, vejam-se a parte da autoridade na definição e na dis­

solução da pessoa, própria ou alheia; as relações entre desagregação pessoal e expe­

riência do tempo, entre mando e loucura, muitas vezes do mandante ele mesmo;

as dimensões extra-científicas da ciência, com suas funções autoritárias e sádicas;

a diferença total que faz o ponto de vista etc.31

Tal universo incógnito à norm a que costuma orientar a leitura do espaço

simbólico e do estatuto do sujeito por aqui, incógnita que nos é tão mais pró­

xima mas, interessantemente, de muito difícil conceituação — o que evoca seu

caráter de inconsciente historicamente determinado — , foi figurado através de

um sistema formal rigoroso, preciso e surpreendente, por Machado de Assis, em

um conjunto de obras de grande repercussão para a vida do espírito e da crítica,

nas últimas décadas do século xix. A sua solução, precocemente pós-iluminista,

foi original em relação a gestos críticos semelhantes, levados por artistas centrais

diante da catástrofe ocidental do século xx, e demonstra que um poder de ava­

liação da história e da forma muito elevados pode aparecer em qualquer ponto

do sistema das trocas internacionais capitalistas, que universaliza mesmo, para

além da clivagem entre as classes e o espírito que realiza, a possibilidade de cons­

ciência sobre as suas coisas.As repercussões deste objeto, correspondente ao Brasil, para a ordem de

razões e problemas próprios ao campo psicanalítico são inúmeras, a começar

pelo descentram ento radical e no plano do princípio das pretensões teóricas

aistóricas da disciplina.^ Com o temos visto, a estrutura transcendental dos

valores, normas e objetos próprios à ordem moderna ocidental tica abalada em

seu núcleo,’1 e torna-se paraconsistente no Brasil Império, questão de capricho

e adorno de classe, incapaz de ter vigência plena, se não funcionando mesmo ao

contrário, ou de forma biruta.São estes valores que, na história que os constituiu através da vida real dos

embates das classes no centro do capitalismo, foram projetados no lugar teórico

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operativo da lei do Outro, que a psicanálise abstraiu como a lei central organiza­dora do sujeito do seu inconsciente, o recalque, produtor de uma simbólica específica. Tal categoria teórica, por exemplo, entre outras, passa a ter historici­dade própria, e o corte de uma metapsicologia universalista perde o fio. Passa a ser intransponível a formatação simbólica no Brasil, onde há muito, e cotidia­namente, a lei existe, mas... Antes de ser uma superação do dado violento que habitaria a norma de subjetivação européia, tal suspensão calculada de uma validade repõe um grau insuspeitado de barbárie, em uma outra ordem moderna de astúcia, radicalizando as cisões míticas entre os homens, de modo a tender, até segunda ordem, a transcender de forma específica as ilusões pro­gressistas frente ao andamento da história.

Em conjunto, o sujeito que opera esta suspensão daquilo que também conhece, e para o que dá um piparote e adeus, vai se constituir como radical­mente oscilante, volúvel, inconseqüente por um lado, e narcísico ao extremo por outro, tendo o mundo referido totalmente a si e a seu potencial delirante, ponto cego de um gozo infinito, o ponto de vista abrangente da morte,34 constituindo uma modalidade específica de eu fraco, socialmente determinada. Certa vez um paciente muito doente, dos mais regredidos, falhado em aspectos de alguma humanidade comum e tristemente narcísico de que já pude cuidar, me disse, ao ler as Memórias póstumas de Brás Cubas: “É impressionante como tudo o que ele diz e faz é apenas ele mesmo”.

O saldo social de tal formatação subjetiva é a possibilidade cotidiana e legí­tima do uso direto da força, garantida e sustentada pela ordem social escravista, convivendo com um lustro cultural e científico que, sem trabalhar contra a regra do jogo, só vem acentuar a dimensão de privilégio própria à vida da cultura no Brasil. A continuidade histórica real de tais mazelas e sua distorção da vida inte­lectual e subjetiva no Brasil impressionam muito, e podemos intuir o quanto o trabalho de Schwarz faz as vezes de um processo crítico e analítico radical de um espaço social arcaico-moderno, que se projeta no tempo e é momento sempre reposto da própria ordem das razões centrais que, aqui, em certo vértice, fun­ciona assim.

U m outro m odo de pôr tudo isso — ou seja, os efeitos desrealizadores de

um a esfera pública com u m , e sua lei, a p artir da posse totalitária do Outro,

simultânea de um cam po de idéias e valores liberais e científicos que pouco tem

a ver com o caso, e que parecem servir para aum entar a distinção dos senhores

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— seria se perguntar como, no caso, se configura o próprio valor da experiência da realidade. Para escândalo geral dos princípios psicopatológicos clássicos, que não por acaso interessaram muito ao próprio Machado de Assis, Roberto Schwarz observa que, naquela ordem social “o teste de realidade não parecia importante”.35 Daí podemos tentar conceber como a forma disparatada, capri­chosa, inconstante e eivada de absurdo, mas que tem integridade e coerência his­tórica específica, do narrador machadiano, corresponde a uma tentativa de dar forma a um mundo em que o sujeito se constitui plenamente dando de ombros, quando quer, ao teste de realidade, a baliza central da constituição do sujeito cin­dido próprio ao mundo burguês, o que põe em crise a possibilidade de se pen­sar a própria construção metapsicológica psicanalítica com os parâmetros que a organizaram.

De fato as cisões do eu operantes socialmente no caso — mas superadas no plano subjetivo, ainda uma vez, pelo gozo particular de reconhecer-se o sujeito mesmo quando opera contra apropria norma que também aceita, em uma espé­cie de simulacro de integração e totalização do eu no negativo, que a psicanálise conhece pouco — trabalham constantemente sobre a anulação da vigência da realidade partilhada. O que quer dizer, no plano material das classes, anulando a lei que pertence ao outro, o dependente ou o escravo.

É este o ponto do pacto simbólico que a ordem escravista e moderna brasi­leira faz tremer, suprim indo-o, abrindo o espaço para a própria alucinação negativa de aspectos da realidade, recusados, mantidos socialmente inexisten­tes, irrealizados, mesmo quando celebrados como já tendo acontecido, na cul­tura propangandística moderna dos senhores. Tal estrutura de gozo particular, que desrealiza espaços sociais, tornados em meras idéias mal assentadas, como se sabe, tem muita pregnância e grande duração, no estranho jogo do progresso brasileiro, onde ainda hoje noções básicas próprias ao campo da cidadania não se efetivam na vida concreta da maioria. De resto, trata-se de um pequena peça no relógio falso da progressão capitalista geral.

Por fim, é realmente importante para uma psicanálise contemporânea, de caráter dialético, a insistência de Roberto Schwarz na natureza da transforma­ção simbólica que ocorreu entre os primeiros romances de Machado de Assis e os de sua fase madura. Como o crítico explica esta alteração radical de forma, que retirou o autor de um campo ainda melodramático, estrategicamente deco­roso, paralisado pela posição de classe que diagnosticava, das contradições dos

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homens livres diante da posse da riqueza e do julgamento de seu destino fran­queado aos proprietários, e o lançou na complexidade envenenada da forma e

do sujeito dos últimos trabalhos, de valor crítico notável?Como uma reavaliação profunda, por parte do artista, dos horizontes da

esperança e da verdade ligados à condição das classes sociais no Brasil, e uma

mudança de perspectiva no interior das posições simbólicas nesta sociedade

particular, do ponto de vista dos dependentes e agregados para o dos senhores.

O novo gesto simbólico de Machado de Assis é simultaneamente um ato de

am adurecim ento em ocional3'' através do qual se torna possível pensar o até

então impensável — a crítica real à relações paternalísticas e volúveis entre as

classes brasileiras não envolvidas com o trabalho — , bem com o é um ganho de

conhecim ento objetivo da verdade do outro na ordem concreta das classes

sociais onde se vive, e uma mudança radical de forma, de com o agenciar e pôr o

problema em linguagem, de modo verdadeiro e eficaz:

O lance de gênio consistiu — salvo engano — em delegar a função narrativa ao

anterior adversário de classe, aquele mesmo que não sabe, segundo os seus depen­

dentes esclarecidos, o que sejam dignidade e razão. [...] As oscilações do proprie­

tário bifronte, civilizado à européia e incivil à brasileira, ou cordial à brasileira e

objetivo à européia — esclarecido e arbitrário, distante e intrometido, vitoriano e

compadre — , se tornam a própria forma da prosa, condicionando o mundo à regu­

laridade de seu tique-taque. A alternância elegante ou ignóbil dos padrões já não

determina apenas a relação com os dependentes em momentos circunscritos de

crise, bem localizados no desdobramento da intriga. Ela agora é ubíqua e vem a ser a ambiência geral da vida em todos os seus momentos, numa escala incrível, cuja

efetivação retórica é um feito técnico. Vertiginosa e enciclopédicamente, aplica-se aos fundamentos da representação literária, à ingenuidade do leitor de boa fé, às normas contemporâneas da decência, a mini-sínteses da tradição do Ocidente, bem como ao dia-a-dia trivial da ex-colônia. No limite, nada fica incólume. [...] A passagem ao ponto-de-vista de classe oposto, que de seu modo não deixava de ser uma adesão ao mais forte, uma operação vira-casaca, uma bofetada na justiça etc., de fato fazia parte — escandalosa ou discreta — do novo dispositivo formal, no qual entretanto se combinava a uma dose desconcertante de perfídia social-literá- ria. Manejada com virtuosismo absoluto, esta última reequilibrava o conjunto por meio das verdades indiretas que deixava escapar, em detrimento dos bem postos e

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de sua sociedade, num vazam ento organizado e impressionante, além de hum o­

rístico. Em negativo, o narrador plantado no alto do sistema local de desigualda­

des, nas suas condições e conseqüências, bem com o nas teorias novas e velhas que

pudessem ajudar, é um a consciência abrangente, que incita à leitura a contrapelo

e à form atação de um a superconsciência contrária, se é possível dizer assim.37

Assim podem os perceber os vários planos do processo de expansão da

forma e do pensamento que estão em jogo, e a conquista de um espaço impor­

tante da verdade das coisas, que vai no nível da natureza poética da representa­

ção, sua form atação, ao sentido das balizas simbólicas em jogo na vida social e

ao desmascaramento de um processo social real, insólito e violento, conforme

visto daqui ou dali.

Esta transform ação no plano do pensável, descobrindo, no caso, o método

formal enciclopédico e oscilante, que agencia o impasse moderno da sociedade

ao modo brasileiro, diz muito respeito ao problema psicanalítico da elaboração

das ansiedades regressivas de certa posição no mundo humano para a forma

mesma de um outro grau de consciência, de si e do outro, que pode também ser

consciência sobre norm a social que ordena estas mesmas relações. É auto-evi-

dente o quanto isto im porta à clínica contemporânea.

O que aprendemos com Roberto Schwarz a respeito desta noção geral — a

do deslocamento de forma e valor daquilo que Bion nomeou, em um limite de

categorias, a relação de transformação entre continente e conteúdo psíquicos— é

que tal processo radical, que altera o nível técnico, form al e a natureza do problema mesmo que se pode pensar, em um processo de expansão notável, pode ocorrer, e

ocorreu, no caso machadiano, pela avaliação rigorosa do componente de sen­

tido ligado à situação concreta do embate entre as classes sociais em sua deter­minada sociedade. O narrador, que estava em situação, operava uma dinâmica

de sentido social bem mais ampla, e a ele articulada, dinâmica histórica que se

faz visível em sua própria oscilação, enquanto o autor parece ganhar consciên­

cia de tudo.Noutras palavras, o móvel histórico da situação e dos jogos ideológicos

específicos colocados na relação entre as classes sociais é um núcleo central para a possibilidade da expansão, da forma e do conteúdo, daquilo que, na psicaná­lise de hoje, podemos chamar a capacidade de pensar os pensamentos do pensador, sua capacidade de conceber profundamente, em correspondência com uma

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possível ordem da realidade, a natureza de seu próprio ser e do outro, que o põe em um específico e determinado jogo simbólico, que é concreto, e que vem do todo da vida social. Machado de Assis teria transitado da fantasia mestra sado- masoquista, cuja forma literária era o melodrama decoroso com o senhor de escravos, que realiza o desejo da má-formação e má percepção das coisas do Bra­sil próprio aos senhores, à autonomia da formulação crítica que avalia rigorosa­mente o déficit geral e os modos de anulação em jogo em tal formação social, superando toda submissão.

A transformação sensacional de forma e de consciência crítica no segundo Machado de Assis, que o pôs como um dos núcleos para a concepção crítica da história contemporânea, se deu claramente no plano da avaliação e do desloca­mento do controle ideológico, escorregadio e violento, próprio ao jogo entre as classes sociais de seu mundo, de modo que, concebendo mais amplamente a ver­dade da relação de domínio e poder particular a este espaço, ele concebeu a forma do mundo e a forma de si mesmo em um plano até então desconhecido, ainda hoje dificilmente pensável. Se a ordem material escravista permanecia, em pleno século xix brasileiro, a solução simbólica diante dela se alterou radical­mente a partir da formulação machadiana, que operava um outro plano de con­seqüências, que, talvez, do ponto de vista dos que perdiam legitimidade social em tal gesto, deveria ser mantido politicamente inconsciente em sua própria vida social, através das limitadas formas estéticas anteriores. A defesa específica, transformada por uma elaboração simbólica muito radical, tem estatuto social em toda a linha do que é ou não é pensável.

Na clínica psicanalítica, como a entendo, tais conclusões têm importância radical e renovadora. Elas repõem com muita força o lugar da consciência crí­tica e dialética do sujeito, própria à origem não superada de sua modernidade inconclusa, em relação aos jogos de força e de distorção social específicos de seu mundo, e também do tempo geral da grande máquina do mundo, campo sim­bólico coletivo que implica a nossa própria capacidade de nos formarmos.

A ordem de razões, agora sim, razões realizantes, destacadas por Roberto Schwarz para a elevação extrema da consciência em Machado de Assis, enquanto forma e capacidade de pôr os problemas do tempo, fundamenta a transformação do sujeito na própria capacidade de conceber e se posicionar frente ao labirinto específico de sua vida social, a qual, como o percurso de for­mação machadiano deixa claro, exige trabalho e aposta de risco.

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Do ponto de vista clínico, tal teoria da expansão social do sujeito implica que o analista possa oferecer as condições livres de constrangimento para que se possa viver, em um espaço que possa repor o valor da crítica à violência irracio­nal da vida social, os movimentos de expansão e forma que sejam necessários aos pacientes diante da sua própria vida ideológica e material. Tal movimento carregaria um específico dado de natureza coletiva, a ser determinado, que abre o sujeito àquilo que o constitui na própria crítica do estatuto simbólico, ideoló­gico, de seu tempo histórico.

Tratar-se-ia do retorno para a psicanálise do sujeito de uma consciência histórica específica, a revalorização real para o sujeito, muito pouco estudada pelos analistas, de certa cadeia significante das séries complementares freudia­nas: aquela que diz respeito à história e ao mundo que encontramos para viver.

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Ascensão à brasileira'

Milton Ohata

Ao nos contar a história dos percalços de um funcionário em ascensão pela

burocracia do Brasil imperial, Antonio Candido revisita as questões cruciais de

nosso século xix.2 Nascido num Rio ainda joanino em 1810, Antonio Nicolau

Tolentino entrou para o serviço público em 1825, atravessou os anos turbulen­

tos das Regências e do início do Segundo Reinado, falecendo em julho de 1888,

logo após a abolição da escravatura. O personagem viveu portanto quase todo o

período. Em si, o fato não tornaria menos ou mais interessante sua trajetória

pessoal, não fosse ela significativa o suficiente para revelar a dinâmica social do

tempo. Filho de lavradores pobres ou de mãe solteira — não se sabe ao certo — ,

saiu da obscuridade por esforço próprio, foi reconhecido em seu valor por figu­

rões da política, arranjou um bom casamento entre a elite e term inou seus dias

com o alto funcionário. Da roça aos salões de baile da Corte, a subida não foi feita

sem ânim o prestativo, hesitações, orgulho das próprias qualidades, espera do

m om ento oportuno e resignação de quem teve de ouvir calado. Tudo isso num

quadro social que não lhe garantia nenhum reconhecim ento e é uma constante

brasileira até hoje. Entretanto, Tolentino não apenas abaixava a cabeça para res­

guardar sua carreira, com o faria um adulador m edíocre. Havia nele um idea­

lism o no bom sentido do term o, que obviam ente encontrou resistências

quando foi posto em prática. O nervo da narrativa de Antonio Candido é o con-

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flito entre as intenções racionais do burocrata e a politicagem ampla, geral e irrestrita. Não se trata contudo de luta do Bem contra o Mal, pois tal embate tem uma especificação histórica cuja raiz se encontra no próprio surgimento do Brasil como país.

A dissolução do antigo sistema colonial em todo o continente americano era parte de uma mudança maior, na qual o capitalismo industrial e o universo burguês se afirmavam em relação aos velhos modos de produzir, aos privilégios da sociedade de ordens e também à escravidão moderna, que havia sido ela própria uma das alavancas da acumulação primitiva do capital. Nossa inde­pendência tom ou entretanto a forma mais conservadora entre os países ame­ricanos, preservando o regime monárquico e as estruturas sociais fundadas no escravismo. A constituição do Estado nacional brasileiro foi um processo difí­cil, no qual a classe dirigente precisava se equilibrar entre as pressões inglesas pelo fim do tráfico negreiro e os interesses contrários da classe dominante bra­sileira, que necessitava do comércio de escravos.3 Em outras palavras, o Brasil independente afirmava-se como nação moderna, adotava uma Constituição, um Parlamento, casaca e cartola, ao mesmo tempo em que mantinha a maior parte de sua população fora do âmbito da cidadania. Os escravos, sob a chibata

dos senhores. Os não-proprietários, sem nenhum direito garantido, obrigados à prática do favor e dependentes dos caprichos do mando. Situação que parecia nos colocar aquém dos padrões civilizacionais que nos serviam de modelo. Roberto Schwarz notou que o assunto foi explorado largamente por Machado de Assis. Aqui, o funcionamento do ideário burguês tinha um quê de amalu­cado. “Necessário à organização e à identidade do novo Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro lado, não expressa nada das relações de traba­lho efetivas, as quais recusa e desconhece por princípio, sem prejuízo de convi­ver familiarmente com elas.”1 O progresso é desejável e existe, mas é conside­rado de um ângulo objetivo que o relativiza. Salvo engano, essa é a chave para entender o drama de Antonio Nicolau Tolentino, que pisou o mesmo chão das personagens machadianas.

Não poderíamos ver em Tolentino muito de Helena e Iaiá Garcia? De ori­gem parecida, além de boas e algo ingênuas, as três figuras têm consciência de suas qualidades, da fragilidade destas no quadro patriarcal, e por isso também fazem cálculos sociais no intuito de civilizar as práticas do làvor. De fato, Tolen­tino aprendeu inglês e francês, era homem lido e — aqui a diferença — deu-se

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bem com seus padrinhos na burocracia, verdadeiros construtores da política imperial, como Caxias, Rio Branco e Mauá, que lhe reconheciam a competência e o apoiaram publicamente todas as vezes que sua reputação foi posta em dúvida pelos seus adversários. A comparação fica ainda mais interessante quando pen­samos nos romances da chamada segunda fase machadiana, na qual as boas intenções da primeira dão lugar à certeza quanto ao caráter anti-social da classe dominante brasileira. Esta aparece com toda a sua crueza num episódio central da carreira de Tolentino — o qual é também muito significativo para entender o sistema político do regime. Diga-se de passagem que o livro de Antonio Can­dido situa-se precisamente nos andares de baixo da política parlamentar e pala­ciana, ou seja, Um funcionário da monarquia complementa na sua aparente modéstia — e nesse ponto o autor acerta mais uma vez no tom e na forma — Um estadista do Império, dos poucos grandes livros da historiografia brasileira, clássico de Joaquim Nabuco publicado entre 1897 e 1899.6 Antonio Candido soube portanto avaliar a significação do episódio que quase botou a perder todo o esforço de seu personagem. Aqui está um tema importantíssimo e pouco explorado pela historiografia do Império: o conflito entre os presidentes de pro­víncia, nomeados pelo poder central, e as Assembléias, que representavam os mais encarniçados interesses regionais.7

Ocorreu que, em agosto de 1857, Tolentino foi nomeado para a presidên­cia da província do Rio de Janeiro e iniciou uma reforma administrativa já apro­vada pela própria Assembléia mas que, seguindo a melhor tradição brasileira, continuava apenas no papel. A reforma tinha sido ensaiada em vão por anteces­sores ilustres e era considerada uma necessidade para o núcleo duro do próprio regime, que reconhecia como irracional a falta de continuidade administrativa a cada mudança política de rotina. Tolentino empenhou-se na tarefa, tentando racionalizar o expediente, acabar com as sinecuras e estabelecer critérios para os gastos, tudo em linha com a impessoalidade da norma que vale para todos. Logo um deputado protestou, soltando uma declaração auto-incriminatória: “S.Exâ veio para a Província e veio resolvido a acabar com todos os abusos ante os quais tinham-se quebrado a força do prestígio dos srs. Marquês de Paraná e Visconde de Sepetiba”.8 Os conflitos prosseguem, e a Assembléia passa a usar os argumen­tos mais esdrúxulos, apoiando-se inclusive na Constituição. O ponto alto da encenação foi um discurso do líder dos deputados, Saldanha Marinho. Para Antonio Candido,“oração magistral, de serenidade feroz e a mais admirável má-

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fé estratégica”/ que — acrescentem os — faz como Brás Cubas e Bentinho o mesmo uso volúvel de idéias prestigiosas, revelador de um privilégio de classe incontrastado. Execrado pela Assembléia e diante do silêncio do Gabinete, Tolentino pede demissão e tudo fica com o dantes no quartel de Abrantes. Alguns anos depois, desta vez na Alfândega que então dirigia e tentava reformar,

o personagem envolve-se num caso de contrabando, episódio em que nova­mente enfrenta e é derrotado pelo patriarcalismo. Na ocasião, Tolentino escreve

um livro em sua própria defesa, no qual se vê a distância grande entre seu espí­

rito público e a bandalheira à sua volta. Depois de quase dez anos de ostracismo,

volta a ocupar posições de destaque na burocracia, sempre com zelo, competên­

cia e ânimo reformador. São anos crepusculares e amenos, tais como os vividos

pelo Conselheiro Aires. Pouco antes de falecer, Tolentino sai da cama para uma

deferência do regime que ajudara a construir, ser recebido em palácio pela prin­

cesa Isabel e beijar a mesma mão que assinará a Lei Áurea, início da derrocada

do Império.

À parte a fina reconstituição histórica, o livro não é uma biografia completa

de seu personagem, com o nos adverte o próprio autor, que preferiu não esmiu­

çar alguns aspectos mais rotineiros e técnicos da carreira de Tolentino. Um his­

toriador positivista, aferrado ao fetichismo dos documentos, veria nisso um

defeito. Os leitores de Antonio Candido sabem entretanto que a ele não falta um

aguçadíssimo senso histórico, raro mesmo entre profissionais da historiografia,

junte-se a este senso outra de suas qualidades, a percepção estética alargada, e teremos a razão pela qual este livro assumiu feições tão próprias. Aquilo que sob

certo ponto de vista representa uma falha é na verdade um procedimento cons­ciente para identificar o que Antonio Candido chama de “redução estrutural” comum a formas sociais e artísticas— sendo no fim das contas um ganho de per­cepção em meio a detalhes que nem sempre são significativos. Nesse sentido, poderia ser feita uma aproximação do vaivém entre ordem e desordem, identi­ficado pelo autor nas Memórias de um sargento de milícias, com certos avanços e recuos da vida de Tolentino.10 Se não chegava ao grau de malandragem de Leo­nardo Pataca, Tolentino tampouco se manteve com os dois pés no plano da ordem. Sabemos pelo livro que, antes do casamento arranjado numa rica famí­lia fluminense, nosso personagem mantinha uma união informal com uma ita­liana bonita que lhe deu duas filhas (desde sempre reconhecidas). No mesmo espírito, o burocrata que não sujou as mãos ao ascender faz vistas grossas para a

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naturalidade com que seus protetores misturam interesses privados e negócios públicos. Por outro lado, sob pena de injustiça à memória de Tolentino, é claro que o essencial de sua trajetória está numa espécie de recusa aos aspectos menos defensáveis da ordem que entretanto lhe permitiu mudar de vida e subir. O reformismo do personagem teria assim afinidades com um veio político já iden­tificado por Antonio Candido como o radicalismo possível de nossas camadas médias, espremidas entre a desfaçatez de nossas elites e certa inorganicidade renitente dos de baixo."

Vimos que a força discreta deste livro vem de um conhecimento fundo das coisas brasileiras, decantado por Antonio Candido em sua experiência e em raciocínios longamente maturados, jogando luz sobre dados estruturais de nossa história, nossa cultura e nossa vida social. Aqui o motivo pelo qual, embora centrado em nosso século xix, Um funcionário da monarquia tem resso­nâncias e um significado no presente. Há na carreira de Tolentino algo de fanta­sia desfeita, um ritmo característico da história brasileira. Noutra resenha do livro, José Murilo de Carvalho fez um paralelo com a luta de Rui Barbosa pelos ideais civilistas contra o pacto oligárquico da República Velha.12 Adiante, quando o desenvolvimentismo deu à questão da modernização nacional possi­bilidades práticas inéditas, mais uma vez — e num grau máximo de tensão e complexidade — os interesses escusos derrotaram o que de melhor já teve nosso espírito público. A experiência ficou registrada na memorialística de Celso Fur­tado, o funcionário-modelo do Brasil democrático. Nessas trajetórias acompa­nhamos o esforço custoso de construção nacional na periferia, o qual parece no fim das contas fazer parte de uma dinâmica que lhe escapa e frustra.13 Nos dias que correm, os Estados nacionais têm sido utilizados para cortar na própria carne e optar, em detrimento dos cidadãos, pela reprodução do capital. O fato pode assustar um europeu criado nas políticas socialmente inclusivas do Wel­fare State. Não a quem atenta para nossa história. O Brasil do século xix revela impasses presentes que não são apenas brasileiros, pois, sem prejuízo da aberra­ção, o Estado imperial foi constituído para formar uma nação partida e por isso não cansava de desfazer a fantasia de Tolentino.

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Tropicália, pós-modernismo e a subsunção real do trabalho sob o capital

Nicholas Brown

“Cultura e política, 1964-1969”, de Roberto Schwarz, como nos informa seu título enganosamente neutro, diz respeito a uns breves anos na vida política e cultural de um país semiperiférico. O período em questão acabou antes de eu próprio ter nascido, e o país não é meu nem pela cidadania, nem como especia­lidade acadêmica. Mas então o que explica a excitação visceral que marcou meu primeiro contato com esse ensaio, e que me obriga, a cada vez que o procuro para uma breve citação, a seguir novamente sua lógica do começo ao fim? A força do argumento e a paixão de seu engajamento não explicam sozinhas o poder desse ensaio, que a meu ver é inigualável até mesmo quando comparado ao mais res­sonante Benjamin ou ao mais exigente Adorno. O próprio Roberto Schwarz dá uma resposta, en passant, quando descreve o golpe de 1964 como “um dos momentos cruciais da Guerra Fria”.1 Por mais específica que seja a história polí­tica do Brasil, ela é também um caso ilustrativo particularmente dramático do fenômeno mundial do fim da modernidade política baseada em grandes proje­tos utópicos: do desapontamento que se seguiu à aparente tomada da própria iniciativa histórica pelos movimentos africanos de independência até a dissipa­ção da contracultura dos anos 60 no Primeiro Mundo, transformada em discor­dância mercantilizada de estilos de vida alternativos. Sob esse ponto de vista, o fim da Guerra Fria — não um acontecimento pontual, mas uma longa e no fim

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decepcionante série de lutas— designa o aspecto político daquele processo mais complexo teorizado por Marx no apêndice do livro I d’O capita/como “subsun- ção real do trabalho sob o capital”: a conversão direta das economias tributárias, da agricultura de subsistência, da produção estética, das economias nacionais dos antigos Estados socialistas em economias capitalistas.2 Se o fim da Guerra Fria é ao mesmo tempo o surgimento de nosso atual momento histórico — para o qual “pós-modernidade” é uma palavra tão boa quanto qualquer outra — , então o que Roberto Schwarz estava descrevendo, já que não poderia saber naquele momento e nem poderia desejar, era nada mais que o modelo da pro­dução cultural pós-moderna.

A situação da arquitetura nesse ensaio é emblemática: os arquitetos brasi­leiros, cuja formação tinha sido centrada num modernismo coletivista e utó­pico, de repente não tinham nada a construir senão casas burguesas. Com os fins completamente fora de proporção em relação aos meios, o resultado foi uma arquitetura inadequada para se habitar: princípios de design inicialmente “racionais” se tornaram um mero sinal de bom gosto ou um símbolo moralista de uma revolução abstrata. Esse modo de colocar as coisas implica um julga­mento de valor, completamente justificado nesse contexto, mas num sentido mais abrangente torna-se claro que esse esvaziamento do conteúdo utópico é justamente o protótipo da conversão da economia estética de vanguarda ao transvanguardismo pós-moderno. No contexto da arquitetura doméstica ame­ricana, a tendência corrente vai em direção a um “modernismo agradável” que preservaria o interesse visual de todos os diversos tipos de modernismos, enquanto os esvazia de qualquer elemento que pudesse estranhar ou perturbar a vida doméstica. Esse fenômeno simplesmente domestica uma transição que ainda pôde ser vista como monstruosa e violenta após o golpe de 1964.

Sem reconstituir o argumento por inteiro, poderia ser útil lembrar das pos­sibilidades opostas atingidas pelo teatro. A primeira é representada pelo Teatro de Arena de Augusto Boal, cuja influência predominante foram os Lehrstücke de Brecht. Assim como o exemplo da arquitetura, as técnicas dos Lehrstücke, desen­volvidas num contexto de revolução em potencial, sofrem certa deformação no contexto de vazio que vem logo após uma revolução falhada. De fato, para falar em termos um tanto brutais, a elite cultural brasileira, ainda que sincera na sua oposição política de esquerda, estava “objetivamente” do lado do golpe, já que falhara ao explicar o modo pelo qual seus próprios interesses de classe coinci-

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diam com a elisão populista do conflito de classes: “A esquerda derrotada triun­fava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito”3 A técnica artística revolucionária se tornou, no melhor dos casos, uma reprodu­ção dos problemas inerentes ao populismo de esquerda e, no pior, um signo con- sumível da inocência do público. É obvio que o prazer dessa experiência é um desmentido à inocência.

Por outro lado, temos o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, o qual é mais diretamente relevante para a nova música de então: a polícia militar fala de sua associação com o Teatro Oficina como uma razão provável para a pri­são de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que também tinham laços com o Arena.4 O Teatro Oficina, em particular sua encenação de Roda viva de Chico Buarque, representa um tipo inteiramente diferente de experimento teatral, baseado numa técnica de assalto à platéia. A partir de uma compreensão mais crítica do papel das classes médias no golpe, José Celso argumentava que “todo consenti­mento entre palco e platéia é um erro ideológico e estético”.5 Assim, a platéia deve ser insultada pelo palco, seus hábitos e escolhas ridicularizados, agarrada pelo colarinho, obrigada a ouvir vociferações contra si, estapeada com sangue, levar empurrões de atrizes que brigam no corredor do teatro por um fígado de boi cru (representando o coração de um astro de t v ) , zombada caso ofereça alguma resistência. O surpreendente — mas também problemático — é que a platéia aprecia a imagem da própria humilhação: o espetáculo é um tremendo sucesso de bilheteria. Mas não estamos lidando aqui com simples masoquismo. Na ver­dade, algo muito mais sinistro parece estar acontecendo: “parte da platéia iden­tifica-se ao agressor, às expensas do agredido. Se alguém, depois de agarrado, sai da sala, a satisfação dos que ficam é enorme. A dessolidarização diante do mas­sacre, a deslealdade criada no interior da platéia são absolutas, e repetem o movimento iniciado pelo palco”/ É preciso dizer que a atitude do palco repete por sua vez a atitude da sociedade como um todo?

A meu ver, existem duas formas de avaliação dessas experimentações com­pletamente ambíguas. O critério da primeira seria brechtiano: a superação da atitude contemplativa, que caracteriza a corrente dominante da estética euro­péia, em favor do valor político da solidariedade de classe. Dessa perspectiva, a coesão política mínima mantida pelas produções do Arena é preferível à com­pleta “desintegração da solidariedade” do Oficina. O critério da segunda é a ver­dade (no sentido adorniano): a “mónada sem janelas” que incorpora as estrutu-

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ras sociais sem necessidade de representá-las. Sob esse ponto de vista, a aborda­gem do Arena se torna simplesmente uma mentira — a continuação de uma ideologia populista de esquerda após a ilusão que a sustentava ter deixado de se fundar em aparências — , enquanto as produções do Oficina, em toda a sua bru­talidade, de fato prevêem a brutalidade real da ditadura (e o pior dela ainda es­tava porvir), bem como a complacência generalizada diante dela. O ponto aqui não é escolher entre uma ou outra. Tal escolha, de todo modo, não poderia ser absoluta, mas deveria depender da situação política de cada um e de como ela é interpretada. Na época em que essas peças foram montadas, quando a parte a ser desempenhada pela esquerda estudantil, que por sua vez tinha começado a desempenhar um papel ativo, ainda estava em aberto, se poderia facilmente favorecer a primeira. Na situação atual, na qual as possibilidades de uma arte genuinamente crítica parecem crescentemente restritas e na qual, ao menos no contexto americano, uma complacência sem precedentes e uma inocência assu- midamente falsa predominam em face de uma sucessão de horrores globais, existem razões para se sentir atraído pela atitude anti-social da segunda. De qualquer forma, é nesse contexto que poderíamos entender a música mais inte­ressante do período, chamada de Tropicália a partir de uma instalação de Hélio Oiticica.7 Ouvindo “Panis et circenses”, uma das faixas-título do álbum-mani- festo coletivo Tropicália ou panis etcircensis, três décadas após seu lançamento, o arranjo soará como um tanto imitativo (ainda que não mais que muitos álbuns britânicos e americanos bastante considerados, lançados durante o auge da popularidade dos Beatles). Poderia ser melhor, nesse caso, pensá-lo como um exemplo brechtiano de Umfunktionierung [refuncionalização]. Por exemplo, Panis et circensis inicia-se com uma fanfarra militar pomposa que é claramente inspirada em George Martin. Mas enquanto o significado dessa espécie de pas­tiche é deixado um tanto vago no contexto dos Beatles, esvaziando de sentido uma cultura oficial mais antiga que de repente parece datada e risível, no con­texto da ditadura militar a “cultura oficial” assume um significado mais especí­fico. O título da própria canção se refere a “pão e circo”, aquilo que mantém a complacência dos cidadãos romanos, no entender de Juvenal. O arranjo, imi­tando música de circo, é tão ritmicamente quadrado quanto possível. O erro na citação latina na capa do álbum, intencionalmente ou não, dá certo ar paroquial a esse circo particular:

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Eu quis cantarMinha canção iluminada de sol Soltei os panos sobre os mastros no ar Soltei os tigres e os leões tios quintais Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer.

Mandei fazerDepuro aço luminoso punhal Para matar o meu amor e matei Às cinco horas na Avenida Central Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer.

Mandei plantarFolhas de sonho no jardim do solar As folhas sabem procurar pelo sol E as raízes procu rar procurar Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer em morrer.8

A atmosfera do arranjo — todo o peso de técnicas contemporâneas de gra­vação, a participação de compositores vanguardistas da moda, o uso da monta­gem de fita magnética e assim por diante, tudo isso funcionando ao mesmo tempo e energicamente para enfeitar uma pequena melodia quase insípida, ter­minando em uma cadência perfeita em anticlímax, cantada de um modo delibe­radamente forçado — pode ser lida como uma alegoria de uma ditadura que era tecnológica e economicamente modernizante mas que mobilizou em seu apoio os elementos mais retrógrados e provincianos da pequena burguesia. Nessa lei­tura, Panis et circensis provoca brutalmente uma fenda no antigo alinhamento entre progresso social e progresso tecnológico, que tinha sido a ideologia estética, profundamente ambígua, do populismo brasileiro: os grandes modernismos progressistas que vão do Manifesto antropófago até Desafinado. Nesse contexto, o

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desprezo pela vida familiar burguesa no primeiro verso é deliberadamente fácil; somos levados a esperar uma denúncia rotineira do filistinismo burguês que poderia ser igualmente incisiva (ou melhor, inteiramente não incisiva) tanto hoje quanto há cem anos. Em relação à sala de jantar burguesa, o “eu” do primeiro verso assume a mesma postura de inocência que as montagens do Arena. Mas a segunda estrofe sugere algo muito mais manhoso e sinistro, quando entra sorra­teiramente na voz dos cantores mais que uma sugestão de malícia e o significado do refrão muda a polaridade. O “eu” da canção é não mais um artista lamentando a ignorância da burguesia, mas um assassino tirando vantagem disso. De repente, as pessoas em suas salas de jantar não são somente filistinos em abstrato, mas per­tencem a um momento particular em que a pequena burguesia, mobilizada pela ditadura, fecha os próprios olhos e começa a participar das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No entanto, o segundo “eu”, cúmplice — e este é o ponto principal — , não é sublinhado como distinto do primeiro, fazendo com que esse mesmo segundo “eu”, assassino, para quem tudo é permitido contanto que a paz das salas de jantar não seja perturbada, retroaja no primeiro “eu”, o do artista. Não pode haver escapado aos compositores da canção que seus próprios espetáculos eram (como as performances do Oficina) mais e mais parecidos com o circo, e é claro que o próprio álbum é chamado de “pão e circo”— isso também é parte do que se exige para se manter as pessoas na sua sala de jantar. (Caetano Veloso se referiu geralmente à música pop como “nosso pão e nosso circo”9). Aqui ninguém é inocente. A propósito deste efeito tropicalista, que expõe matéria datada, “brega”, conservadora à “luz branca do ultramoderno”, Roberto Schwarz ressalta que é como “um segredo familiar trazido à rua”.10

A fusão de elementos arcaicos, “retrógrados”, com modernos, como alego­ria da ditadura, é um subitem de uma técnica tropicalista mais ampla de juntar aleatoriamente, aparentemente sem se importar com isso, emblemas do resi­dual, do atual e do emergente. Em termos formais, isso não se distingue do “saco de gatos ou quarto de despejos de subsistemas disparatados e matérias-primas aleatórias” que, segundo Jameson, caracteriza a obra de arte no pós-moder- nismo." No entanto, aqui a matéria-prima nunca é inteiramente casual, assim como os concretistas brasileiros jamais conseguiram produzir inteiramente experimentos lingüísticos puros (o que não torna a poesia concreta brasileira inferior à sua correlata européia — antes muito pelo contrário). Na produção cultural semiperiférica, esse tipo de justaposição é mais ou menos dado imedia-

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tamente como conteúdo geopolítico, já que a própria textura do dia-a-dia semi- periférico envolve a experiência da contemporaneidade do residual com o emergente. (A integração do Brasil na economia mundial através da cafeicul­tura, por exemplo, ao mesmo tempo que manteve relações sociais atrasadas no interior, exigiu um desenvolvimento industrial nas cidades12). Assim como o exemplo da fanfarra introdutória citada antes, a justaposição a Paul McCartney de um decadente e provinciano entrenimento de salão com a técnica vanguar­dista de estúdio que caracteriza o resto da canção: um pastiche relativamente esvaziado em certos arranjos dos Beatles também funciona como uma alegoria da sociedade brasileira.

Um fenômeno parecido diz respeito à incorporação de elementos aleató­rios na música, que na análise de Jameson é sintoma de uma esquizofrenia cul­tural que se segue ao esvaziamento do significado (isto é, da história) do sujeito paradigmático primeiro-mundista. Outra canção-manifesto do movimento tropicalista, a própria “Tropicália”, começa com uma gravação lendária, que aparece como um objet trouvé, na qual um dos percussionistas, sem saber que estava sendo gravado, declama umas poucas linhas da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei narrando a descoberta do Brasil, terminando por dizer: “e o Gauss da época gravou”. Dada a temática da canção, parece impossível que essa gravação tenha sido acidental, mas um outro exemplo empresta credibilidade à lenda. Uma composição de John Cage que utiliza um rádio comum foi execu­tada em Salvador. Quando o aparelho foi ligado, imediatamente anunciou, numa voz familiar a todos da audiência, “Rádio Bahia, cidade de Salvador”.13 O efeito tropicalista de expor matéria local a efeitos ironizantes da técnica pós- moderna é produzido acidentalmente; mas é produzido, não obstante, como nunca poderia ter sido numa execução nos Estados Unidos. A questão aqui é que as mesmas técnicas que, num contexto primeiro-mundista, são sintomas do recuo da história (a evaporação do significado na obra de arte pós-moderna) se transformam, nas produções sem iperiféricas (mesmo a despeito de si próprias), em sintomas da própria história.

Existe um modo mais radical de reforçar essa tese, segundo o qual o signi­ficado recuperado na performance semiperiférica é também o conteúdo repri­mido no pós-modernismo primeiro-mundista. Num contexto bastante dife­rente (embora nele ressoem muitos dos assuntos de que estamos tratando), Reiichi Miura fez uma leitura fascinante das traduções de Raymond Carver para

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o japonês. As adaptações imensamente populares feitas por Haruki Murakami, ignorando a ressonância cultural de traços de classe tais como, por exemplo, comprar tapetes em Rug City, tendem a empalidecer o conteúdo de classe dos textos de Carver. Para Miura, a leitura correta é justamente o mal-entendido japonês em relação a Carver, já que em Carver a classe é um problema de cor local, mais uma identidade cultural fetichizada que uma posição mapeável num espaço social que pode ser transformado; apenas uma intuição preexistente desse espaço no leitor poderia restaurar na obra de Carver o aspecto realista genuíno.14 Poderíamos especular, então, que o elemento aleatório da peça de Cage estava talando em certo sentido sobre o seu próprio isolamento em relação à história, em relação a problemas tais como um “desenvolvimento desigual” que tem sua revanche no riso provocado pela performance na Bahia.

De qualquer modo, o momento aleatório em “Tropicália”é seguido de duas seções alternadas. A primeira delas, extraordinarimente densa e alusiva, é can­tada quase como um recitativo sobre o imponente arranjo de Júlio Medaglia. Essa parte da canção já foi analisada por várias gerações de críticos americanos e brasileiros, e por isso não a analisaremos tão detidamente aqui; mas vale a pena notar que um elemento central na alegoria, fazendo com que inesperadamente nos voltemos para a questão da arquitetura, seja semelhante ao insight de Roberto Schwarz: após 1964, a própria Brasília, a grande cidade modernista, só pode parecer um aborto histórico: atinge-se finalmente o coração do “monu­mento no Planalto Central do país” apenas para achar “uma criança sorridente, feia e morta”. Mas no momento é a segunda parte que nos interessará mais. Aqui, os elementos alegóricos de repente se tornam mais livres, organizados em pares, mas destacados de qualquer contexto explícito, permitindo combinações entre si de várias maneiras interessantes, enquanto a música subitamente explode num andamento rápido de marcha marcadamente brasileiro, em cuja estrutura de cordas há um eco do berimbau. As justaposições, retiradas de maneira um tanto artificial do seu contexto, são bem conhecidas:

Viva a bossa sa saViva a palhoça ça ça ça çaViva a mata ta taViva a mulata ta ta ta ta

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Viva a Maria ia ia Viva a Bahia ia ia ia ia

Viva Iracema ma ma Viva Ipanema ma ma ma ma

Viva a banda da da Carmen Miranda da da da da15

O peculiar poder dessas justaposições vem, entretanto, não apenas do pro­

cedimento que com bina e embaralha, sintetizando os elementos alegóricos,

exemplos de progresso tecnológico e atraso tecnológico (bossa nova e palho­

ças), um procedimento que é, afinal de contas, um simples “truque de lingua­

gem”.16 Antes, eles compartilham certa distorção de efeito em relação ao que esta

justaposição pareceria evocar. Por um lado, um “segredo familiar trazido à rua”,

por outro, alguma tolerância e mesmo um gosto por essa situação (“Viva a pa­

lhoça”) que é, na sua forma bruta fora do poema ou letra, o resultado de uma

situação de pobreza que não se pode de fato querer que se perpetue. Mais uma

vez pode-se lem brar da análise do pós-modernismo feita por Jameson:

A euforia dessas novas superfícies é tanto mais paradoxal quanto seu conteúdo

essencial deteriorou-se ou se desintegrou a um ponto certamente ainda concebí­

vel nos primeiros anos do século xx. Como pode a esqualidez urbana deliciar os

olhos quando expressa um processo de mercantilização?17

Ainda uma vez, a resposta de Jameson não se aplica aqui. No contexto do Pri­

meiro Mundo, essa estranheza de gosto nos dá uma pista de u ma forma de subjeti­vidade para a qual um horizonte que não o da experiência imediata é completa­mente impensável. Em “Tropicália”, entretanto, essa estranheza assinala algo diferente, a transposição de uma possibil idade utópica eufórica— e ainda precisa­mos descobrir a que se deve essa euforia nessa canção— para o presente distópico.

Longe de se acotovelarem ao acaso, as justaposições da segunda seção de “Tropicália” são cuidadosamente controladas, evitando se transformar em opo- sições inequívocas ou em antinomias ao forçar os termos a deslizar entre certos registros e não em outros. A Maria anônima não pode ser contrastada com Car-

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men Miranda, o que levantaria uma outra ordem de questões; a bossa nova não pode ser contrastada com “A banda”, o que faria a canção dizer algo claro sobre Chico Buarque. (Na conjunção existente entre Chico e Carmen, quem é moderno e quem é obsoleto?18) Mais significativa é a distancia que separa “Ipa­nema” de “palhoça”. “Ipanema” é, pelo contrario, rimado com “Iracema”; além do nome indígena, que é certamente significativo a despeito da rima em si, nada parece unir as duas palavras, que estão em níveis discursivos diferentes: um bairro, uma personagem de ficção. Por outro lado, se“Ipanema” também nos faz recordar da famosa garota, então estamos lidando com duas imagens da femi­nilidade brasileira; se ela se refere ao título da canção de Tom Jobim (e Iracema ao título da obra de Alencar), estamos lidando então com duas formas característi­cas brasileiras de expressão artística. Ipanema pode significar tanto o traço da pre­sença indígena quanto sofisticação, modernidade, as mulheres brasileiras ou a bossa nova; mas ela não pode se referir ao “lugar onde vivem os ricos no Rio”, que a colocaria em oposição direta às palhoças onde vivem os nordestinos pobres. Em certo sentido, isso demarca o limite ideológico de “Tropicália” como poema. Adiante, vamos considerar se há algum outro conteúdo em “Tropicália” que é de fato domesticado por essas imagens, e até mesmo se isso empresta a elas sua exci­tação. Mas por enquanto, quando consideramos que essa imagem do Brasil é tam­bém uma mercadoria no mercado mundial, descobrimos que uma linha muito tênue separa a postura tropicalista — que precisa esvaziar muito do significado maligno das contradições que mapeia— do seu contrário, uma retórica que apre­senta à contemplação do turista uma “terra de contrastes” vazia de conteúdo.19

O exemplo extremo da estratégia tropicalista é a recente — e muito bela — “Manhatã”, canção de Caetano Veloso que se inicia a partir da fórmula ins­piradora, descoberta num poema de Sousândrade, de se pronunciar “Manhat­tan” (originalmente, é claro, o nome de uma etnia nativa americana) fonetica­mente em português, de maneira que soe como “M anhatã”, que por sua vez parece um nome indígena brasileiro.20 O maravilhoso verso inicial pode ser lido igual e coerentemente em dois registros radicalmente disparatados. Cada pala­vra se refere tanto à ilha de Manhattan embicando na baía de Nova York com a Estátua da Liberdade à frente, quanto a uma “deusa” índia na proa de uma canoa no Amazonas. Aqui a justaposição é, por assim dizer, absoluta: o arcaico e o moderno não ocupam simplesmente o mesmo espaço, mas são, de algum modo, idênticos. O que torna possível essa identidade especular entre particu­

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laridades que na aparência não se podem comparar é mostrado com clareza notável no contexto da letra: “Um remoinho de dinheiro Varre o mundo intei­ro, um leve leviatã”.

A palavra crucial aqui, “varrer”, pode ser tomada em sentido literal, mas também no de “apagar”: a identidade de Manhattan e Manhatã está contida no movimento do capital em si (na sua fase atual, centrada em uma Manhattan em direção à qual “todos os homens do mundo voltaram seus olhos”), cujo desequi­líbrio intrínseco sempre necessitou uma contínua expansão e a incorporação ou destruição de formas não capitalistas de produção e de vida — tanto os índios brasileiros quanto os manhattans originais, que venderam a ilha pelo equiva­lente a meio quilo de prata. Mas, como em “Tropicália” e na poesia de Oswald de Andrade, o tom do refrão (simplesmente “Manhatã”, que significa tanto Nova York quanto o “nome doce da cunhã” repetida várias vezes) é paradisíaco — apropriado para uma determinada experiência de Manhattan, mas não, é claro, para a Amazônia atual, e na verdade a imagem que temos de Manhatã é plena­mente cognata de Iracema, e não de índios reais.

Tudo isso é dito não para criticar a poesia de Caetano Veloso; um tom mais estridente não a tornaria politicamente melhor, mas com certeza poeticamente pior. Esse sincretismo ou pastiche— e nenhuma dessas palavras, que fique claro, é de fato adequada para o approach tropicalista, embora ambos os termos sejam freqüentemente usados para descrevê-lo — é um sintoma autêntico da condi­ção semiperiférica; embora nem todos estejam em uma posição que permita uma fruição desse sintoma. E não que esse problema seja facilmente evitado; se a miséria da Amazônia for esteticamente representada — e certamente a recusa em representá-la seria igualmente ideológica — , então ela existe, em algum grau, para ser fruída. Uma foto de ianomâmis atuais feita por Sebastião Salgado, explicitamente enquadrada por problemas reais de hoje e que sugere uma polí­tica para a representação artística muito mais correta, é não obstante sujeita a uma crítica semelhante.21

A despeito dessa limitação ideológica, o trabalho de Caetano Veloso car­rega uma possibilidade utópica, de maneira que poderia servir de modelo à pro­dução cultural pós-moderna. O fato central da cultura pós-moderna, que deve ser levado em consideração com o risco de uma inadequação imperdoável, é que, para que tenha alguma efetividade social, a produção estética atual precisa ser difundida pelo poder tremendo dos canais contemporâneos de distribuição.

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Mas hoje não há canais que não pertençam de imediato ao capital; se é que exis­tem, redutos de amadorismo ou seriedade não exploráveis são, a rigor, irrele­vantes. Esse é, mais uma vez, o problema da transição da subsunção formal ou real do trabalho (cultural) sob o capital. Essa transição significa que a produção cultural está agora diretamente, e não apenas de modo eventual, explorada do ponto de vista econômico, comprada e vendida de maneira a proporcionar lu­cro. Na situação de hoje, portanto, não há intervalo entre o momento potencial­mente “crítico” de uma obra de arte e sua apropriação pelo mercado. O velho preconceito romântico contra a “traição dos ideais artísticos”, tratando a arte como uma mercadoria entre outras na praça, é correto até certo ponto: entrar no mercado envolve necessariamente compromisso e conformismo. Mas a alternativa é a irrelevância. Não quero com isso celebrar a subsunção direta do trabalho estético sob o capital ou reconhecer essa subsunção em sua forma geral como o fim da história — longe disso. Por outro lado, dificilmente podemos ficar irritados com as invocações constantes de Caetano Veloso em Verdade tro­pical do mercado como horizonte da prática musical, pois ele fala de maneira notavelmente honesta a respeito das condições sob as quais os artistas contem­porâneos realmente trabalham.22 Assim, quando Júlio Medaglia (que na época estaria provavelmente trabalhando no arranjo de “Tropicália”) proclamava em 1967 que simplesmente não havia espaço fora do mercado e que a partir de então o “artista” era equivalente ao diletante, deixando aos profissionais a produção cultural significativa, ele estava dizendo algo que os teóricos do Primeiro Mundo só viriam a reconhecer de maneira relativamente recente.23 As ambigüi­dades dessa posição são profundas: de um lado, um abandono da noção de gênio solitário em favor da produção coletiva e da obrigação de estar ao alcance de todos; de outro, a indústria cultural como já a conhecemos, uma aquiescência diante do status quo e o abandono da vocação da crítica. O próprio Caetano Veloso disse de maneira extraordinariamente clara em 1968 em uma entrevis­ta para Augusto de Campos: “de um lado, a Música, violentada por um processo novo de comunicação, faz-se nova e forte, mas escrava; de outro, a Música, res­guardada”.24 Qualquer arte genuinamente crítica é de imediato mercantilizada e se transforma em seu contrário. O espaço da transcendência em relação ao mer­cado, não importa quão estreito — e para Adorno, que entendia disso, ele já era de fato muito estreito — , é essencial ao momento da crítica. E esse espaço, como Medaglia e seus companheiros reconheceram há tempos, e como Caetano

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Veloso sempre entendeu explicitamente, desapareceu — a ponto de, pelo me­nos nos Estados Unidos, a indústria cultural de hoje precisar produzir sua pró­pria arte “crítica” só para atender à demanda. Mas, de repente, podemos ver o outro lado da moeda, já que a demanda existe. A despeito de todas as ambigüi­dades que decorrem da estratégia tropicalista, há algo além disso na música de Caetano Veloso (bem como, em grande medida, em outros tipos de música) que é muito mais fundamental do que acontece no plano da letra. É significa­tivo a esse respeito que os momentos paradisíacos em “Tropicália” emergem não apenas a partir de uma mudança no tom poético, mas quando o arranjo or­questral recua em favor da seção rítmica, quando o recitativo explode em uma marcha celebratória. Por acaso, essa marcha é muito semelhante ao ritmo usado por Paul Simon em algumas faixas de seu álbum Rhythm o f the Saints.25 Simon utiliza a percussão afro-baiana do grupo Olodum como matéria-prima sem nenhum conteúdo próprio — o gesto pós-moderno por excelência — como um tipo de pano de fundo decorativo para a sua poesia cansada de tudo. Em termos de composição, a percussão bem poderia ser feita por um só instru­mento. Em “Tropicália”, por outro lado, esse ritmo é usado precisamente para a sua própria matéria, a alegria coletiva incorporada na performance sincroni­zada da seção rítmica.

A oposição a ser focada agora, entretanto, é aquela entre o impulso coletivo corporal dessa marcha, que existe potencialmente “para todos”, e um gesto poé­tico que liga esse prazer à especificidade de uma posição de classe. O primeiro nos dá a pista para o conteúdo utópico da música de Caetano Veloso, enquanto o segundo nos traz de volta às ironias corrosivas de “Panis et circenses”. Pode-se aqui arriscar uma leitura do título do álbum Tropicália ou panis et circensis na qual a palavra “ou”, antes que separar dois sinônimos, oferece uma alternativa de fato: de um lado, o gênio lírico distópico da imagem tropicalista, cujo prazer só pode ser experimentado a partir de uma posição privilegiada; de outro, um engajamento junto à criatividade da multidão, que representa uma possibili­dade utópica real dentro da Tropicália.

Mesmo que a cultura seja hoje em dia, de maneira imediata, uma mercado­ria, como toda mercadoria sua presença enquanto valor de troca mascara sua existência qualitativa como valor de uso. Se a exportação de filmes de Holly­wood é também a exportação do comportamento, dos gestos e dos hábitos de consumo americanos, então temos que fazer um conjunto diferente de pergun-

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tas a respeito da circulação da cultura musical. A forma musical está relacionada de maneira íntima à forma social, à integração de corpos individuais num corpo social: como coloca o fenomenólogo Don Ihde, “envolvimento e participação se tornam o modo de estar na situação musical”/6 A música não representa nada, mas quase que diretamente é forma social na forma de um “chamado” para um futuro possível. Em vez de endossar a tese de Jacques Attali segundo a qual a pró­pria música alegoriza o futuro, o que é uma idéia atraente mas estranha, pode­mos dizer que ela incorpora o desejo por uma organização do corpo social que ainda não existe.2 Certamente, o conteúdo a que nos referimos, presente na música, é um valor sempre evocado por Caetano Veloso: “convivência”, num sentido bastante forte, intimidade universal.28 A verdadeira oposição à “tole­rância” liberal supostamente promovida pelo próprio mercado — que decorre precisamente de um reforço das barreiras entre as pessoas — , tal intimidade universal não é virtualmente encontrada em parte alguma na cultura contem­porânea, exceto de modo imanente na forma musical e, de fato, em certos tipos de performance musical. O conteúdo da música de massas que emergiu no século passado— mesmo a pior dela— é precisamente essa intimidade. O papel do artista “consciente” nesse esquema é, de um modo quase brechtiano, refinar esse conteúdo e nos devolvê-lo. De modo que esse retorno seja tanto mais pos­sível “para todos”, os canais de distribuição existentes devem ser explorados o máximo possível — o que obviamente envolve compromisso tanto com a pró­pria mídia quanto com o capital, na forma de nichos musicais etc. E não se deve esquecer que no lado econômico desse processo está nada menos que nosso velho imperialismo cultural, o lucro derivado da apropriação privada do conhe­cimento comum. Não obstante, estamos preocupados agora em enfatizar o desejo por intimidade pelo qual esse processo seria parasitário. A apropriação onívora de formas musicais feita por Caetano Veloso tem sido vista nos Estados Unidos em termos de pastiche, no sentido que Jameson dá ao termo, com o enfraquecimento de um impulso paródico que ainda acreditava em si.29 Embora esse argumento se valha de uma observação interessante, ele está, segundo a perspectiva desenvolvida aqui, basicamente errado. É verdade que, a despeito de expectativas camp, não há ironia nas apropriações feitas por Caetano Veloso de, por exemplo, Carmen Miranda, Vicente Celestino, o Michael Jackson mais recente, ou ainda em sua composição de músicas ao estilo bossa-nova ou ao estilo dos trios elétricos, ou então as destilações de Gilberto Gil de formas regio-

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nais como o xote ou o baião.30 Mas não porque elas se tornaram meramente matéria-prima; pelo contrário, o que Caetano Veloso preserva e destila é a ale­gria coletiva que é seu conteúdo mais essencial.

Que fique bem claro: o tipo de desejo imanente aqui descrito não é político; no máximo, é protopolítico. Para que esse desejo imanente se torne político é preciso, num dado ponto de crise, que se condense numa posição transcen­dente. A configuração atual é completamente ambígua. A alegria coletiva a que somos chamados por essa música — uma alegria que, voltando a dizer, virtual­mente não existe fora da prática musical — é constrangida pela máquina da mídia mesmo que seu potencial seja magnificado por ela. Muitas vezes ela é reduzida a um simulacro anódino de si mesma; mas sua realização enfática seria a própria utopia. Essa ambivalência não será superada se não for superado o que a determina. O argumento desses últimos parágrafos não é a tese sentimental de que a música é uma prática transformadora em si, mas que a música, melhor que qualquer outro meio, traz em si o impulso utópico em nossa época pós-moder­na. Nem mesmo chegamos perto de uma sugestão de como essa utopia poderia vir a existir, ou seja, como a criatividade da multidão poderia se transformar num ator histórico-político. Enquanto esse ensaio está sendo escrito, uma crise econômica global ameaça espalhar pelo Primeiro Mundo a irrelevância do tra­balho humano. Ela pode ser superada rapidamente e, para o Primeiro Mundo, relativamente sem dor; ou podem se expandir exponencialmente a quantidade e a presença geográfica dos “sujeitos monetários sem dinheiro”.31 Neste último caso, o momento no qual essa pergunta se torne urgente poderia vir mais cedo do que imaginamos.

Tradução do inglês de Milton Ohata

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PARTE III DEPOI MENT OS

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Fernando Novais

Queria agradecer o convite, e vou começar com algumas palavras sobre a minha dificuldade em estar aqui na abertura desta semana de homenagem a Roberto Schwarz, para discutir sua obra. Especialmente nesta primeira sessão,

sobre o Seminário Marx. Em primeiro lugar, tenho dificuldades em falar sobre o Seminário porque falar dele é falar de mim mesmo. O Seminário tem sido objeto de depoimentos dos seus antigos participantes e ultimamente até de estu­

dos. Em Campinas há uma tese que está sendo elaborada sobre o Seminário.A minha posição também é complicada porque, em segundo lugar, não

gosto de ficar dando entrevista sobre isso, já que revela certa idade... E em ter­ceiro lugar, todo mundo gosta de ser sujeito, e não objeto. E, finalmente, por­que historiador não gosta de falar de si próprio. Aliás, é uma tradição na histo­riografia: os historiadores não escrevem autobiografia. Edward Gibbon é uns

dos raríssimos exemplos que confirmam a regra. Historiadores raras vezes fa­zem autobiografia. Recentemente os franceses até teorizaram sobre isso. Pierre Nora publicou uma coletânea chamada Essais d ’Ego-histoire, que não é lá essas coisas. Há mesmo uma certa dificuldade do historiador em escrever sobre si. Quem resolveu essa questão foi Jorge Luis Borges, que uma vez descreveu o his­toriador como “aquele indivíduo que, temendo enfrentar a própria história, passa a vida tergiversando alheias histórias”. Ele tem alguma razão. Portanto, a

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dificuldade em falar sobre o objeto dessa mesa. Então, o que eu poderia fazer? Talvez discutir alguma coisa do Roberto, mas isso já fiz em uma outra mesa há pouco tempo no Centro Universitário Maria Antònia em que se discutiram as “Idéias fora do lugar”.

Não conseguirei fugir totalmente, mas vou partir de questões do Seminá­rio^ falar nesse momento alguma coisa a respeito da minha experiência. Acabo tendo que falar de mim mesmo, o que é desagradável. Nos debates do seminá­rio, uma coisa que ficou mais ou menos consensual é que quem foi central para a montagem do seminário foi o professor José Arthur Giannotti, embora ele tenda a não concordar muito com isso.

O que também é mais ou menos consensual é que o Seminário resultou de uma insatisfação. Na história da universidade brasileira, o marxismo estava entrando para o mundo acadêmico, nas ciências sociais. Havia uma insatisfação com relação a isso, ao mesmo tempo em que havia uma insatisfação com o mar­xismo oficial, o marxismo soviético, sobretudo a partir de 1956, menos até por causa das revelações do vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética e mais por causa da invasão da Hungria, que afetou diretamente aqui o nosso colega ao lado [István Jancsó, coordenador da mesa]. Aquilo foi uma viragem, realmente. A desilusão ali se completava. Mas, ao mesmo tempo, havia a idéia de fidelidade ao marxismo. Não tanto de fidelidade ao marxismo, mas de interesse pelo marxismo, que não podia ser aquele oficial. É por isso que eu digo que o Giannotti foi fundamental. Ele insistia que, metodologicamente, os equí­vocos acontecem porque não se faz de Marx uma leitura filosófica. “Para que se escape do marxismo oficial é preciso ler o Marx com outros olhos”, dizia. Ele até definia o que era um filósofo em relação ao simples pensador. Filósofo é aquele que exige uma conversão ao seu texto para ser entendido. Não se pode ler e cri­ticar ao mesmo tempo um filósofo como você critica qualquer cientista, histo­riador ou coisa assim. No caso de um filósofo, você precisa se converter a ele para depois fazer eventualmente a crítica. Até dei um exemplo confirmando, isso me lembra (tenho boa memória) uma conferência do Ortega y Gasset em que ele dizia que só podia falar de Kant porque tinha vivido oito anos na Alemanha estudando Kant... E só quem faz isso pode falar... E o Giannotti: “Esse Ortega y Gasset é um pensador, não é um filósofo”. Sobre esse aspecto é que eu quero observar algumas coisas. Eu também não posso falar da participação do Rober­to, não é? Dizer que é importante, porque, como o Roberto nos seus depoimen-

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tos valoriza muito o meu trabalho, se eu elogio o Roberto, estou elogiando a mim mesmo. Se critico, pareço um sujeito ingrato. Então, não tem jeito, não é? Vou esquecer um pouco o Roberto nessa história... Está estabelecido que ele foi muito importante no seminário. Se o seminário foi muito importante, então esse é um assunto para debate. Vejamos o que posso dizer a respeito disso, à base da minha experiência. Faço um hiato, e lembro o meu amigo, o regreté Albert Soboul, que esteve no Brasil em diversas ocasiões e costumava dizer, às vezes em debates com estudantes, que ele era um historiador marxista e não um marxista historiador. “Je suis un historien marxiste, pas un marxiste historien.” Eu sempre quis saber mais sobre isso. Conversei com ele e ele dizia coisas que não eram muito esclarecedoras. Mas isso sempre me inquietou. Depois de algum tempo, e tendo escrito alguns trabalhos, acho que sou visto como um razoável histo­riador marxista heterodoxo. Isso evidentemente tem a ver com o seminário. Nesse sentido, o seminário, para mim, foi fundamental. Se a proposta do Semi­nário era esta, acabei sendo considerado um historiador marxista heterodoxo.

O Seminário preencheu exatamente aquilo a que se propunha.Ultim am ente, ao dar cursos sobre historiografia, tenho procurado refle­

tir um pouco sobre a relação do marxismo com a história. Eu vou dizer rapi­

damente, o que é difícil, por que isto é objeto de todo um curso semestral. Mas vou tentar resumir para não tomar muito tempo. Essa distinção entre histo­riador marxista e marxista historiador me lembra certas polêmicas. Por exem­plo, as polêmicas sobre a natureza do escravismo colonial, o modo de produ­ção escravista, em que várias vezes estive envolvido. Neste ponto, há dois problemas a serem definidos aqui. Há uma questão que é saber quem é mais marxista. Essa questão não é desimportante. Quando estiverem no vigésimo nono volume da história do marxismo, redigido por Eric Hobsbawm e os ita­lianos, vai haver um capítulo sobre marxismo na América Latina, onde haverá um subcapítulo sobre marxismo no Brasil, onde haverá um item sobre as aná­lises da escravidão. Isso é importante. Agora, outro problema é quem dá mais inteligibilidade a tal ou qual objeto. É essa distinção que acho que estava em mente quando o Soboul dizia: “Sou um historiador marxista, não um mar­xista historiador”.

Nessa linha, fiz algumas considerações sobre ¿1 posição da historiografia no campo das ciências sociais. O ponto central é o seguinte: a relação entre história e ciências sociais é diferente das relações entre as várias ciências sociais entre si.

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O diálogo necessário das ciências sociais é inevitável, seja explícito ou implícito. Entre antropologia e sociologia, sociologia e economia, economia e psicologia, psicologia e ciências políticas etc. Com relação à história, o diálogo não é da mesma natureza que o diálogo de cada uma delas entre si. Por quê? Por dois motivos. O mais simples é que a história é anterior às ciências sociais. A história é muito antiga. A história tem uma musa. Nenhuma ciência social tem uma musa, não é? Ninguém ia pensar em uma musa para a economia. Seria um desas­tre! A história tem uma musa que é Clio. Isso está em todo livro de história da historiografia (que a história é mais antiga), só que não se tiram as implicações disso. Por exemplo: é possível pensar o impacto das ciências sociais sobre a his­tória e não o inverso. Todo mundo diz, “a história é muito antiga” Quando apa­rece a ciência social no século xix já está lá a história. Há um impacto das ciên­cias sociais sobre a história, mas não há um impacto da história sobre as ciências sociais. As ciências sociais se desprendem, elas se formam a partir de determina­dos momentos. Uma vez que elas se formam, o diálogo é permanente. Aliás, uma maneira que me parece boa para distinguir a historiografia nova da tradicional: através das suas relações com as ciências sociais. A nova é aquela que dialoga com as ciências sociais. A tradicional é aquela que não dialoga com as ciências sociais. A tradicional e a moderna têm coisas em comum, que é preciso analisar. Muitas vezes fico discutindo em banca de pós-graduação o que se chama historiografia tradicional. Sempre pergunto: o que você quis dizer com historiografia tradicio­nal? Nunca ninguém me deu uma resposta razoável. E eu percebo o que quer dizer, é muito simples: é que tradicionais são todos os outros, o único que não é tradicional é a pessoa que está taxando os outros de tradicionais. Então, o que seria a tal da historiografia tradicional? Aquela anterior ao século xix, pois ao longo do século xix formam-se as ciências sociais e engaja-se o diálogo. Tome­mos como exemplo os Anuales, a primeira escola a ter um diálogo assumido com as ciências sociais, se tomarmos como exemplo os manifestos de 1929, nos quais Lucien Febvre e Marc Bloch diziam: “É imprescindível o diálogo com as ciências sociais, todas”. Só que eles acrescentam: a história tem que usar os conceitos das ciências sociais historicizando-os. Ninguém explica o que é “historicizar”. Por que não explica? Porque é dificílimo. Por outro lado, a historiografia como tal não muda sua natureza: sempre visa à narração e à reconstituição dos aconteci­mentos. Na realidade, sua diferença em relação às ciências sociais, que marca a diferença do diálogo, é que a história não tem, nem pode ter, a mesma categoria

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científica. Porque, e vou dizer uma banalidade — peço desculpas aos filósofos presentes — , a ciência se distingue por duas coisas: ter um objeto bem definido, delimitado, e um método adequado a esse objeto. Ora, o que é a história? Todo acontecer humano, de qualquer espécie, em todo tempo, e em qualquer lugar. Se vocês tomarem os livros chamados Introdução aos estudos históricos e Metodolo­gia da história, verão uma série de técnicas e levantamentos de documentos e tratamento das fontes. E só. Método é posição do sujeito em face do objeto... Isso é das ciências sociais. “É preciso usar as ciências sociais historicizando-as.” O problema está em “historicizando”. Agora, este objeto, o que caracteriza o objeto da historia é sua infinitude, ele não pode ser objeto de um discurso totalmente científico. É por isso que PaulVeyne começa Comment on écritVhistoire com esta frase pour épater les bourgeois: “L’Histoire n’existe pas, il n’y a que histoire d e...” Vocês podem pensar o que ele quer dizer com isso. “O sujeito escreve um livro de epistemología da história e começa por dizer que a história não existe!?” O que ele está dizendo é que esse livro de história que dominasse esse objeto, “o acontecer humano de toda natureza ou qualquer lugar em qualquer momento em todos os momentos”, só podia ter um autor, “Deus”. E se chamaria Dieu et son époque. Diante disso, veja como é diferente o diálogo; por que é assim? Porque as ciências sociais, no conjunto desse objeto infinito, seccionam certas esferas da existência: esfera econômica, social, esfera política, esfera cultural etc. História é sempre total, os historiadores provocam confusões quando ficam falando da história total. História, quando for história, é sempre total. Podemos dizer, ten­tando fixar, por que as ciências sociais recortam as esferas da existência, no con­ceito de Weber. Reconhecem que não é possível fazer ciência social se não se recortar as esferas da existência, aquelas esferas da existência que têm certa inde­pendência, autonomia relativa que permite um discurso conceituai sobre ela. Assim sociologia, assim economia, assim vão se constituindo as ciências sociais. Ao fazer isso sacrificam a totalidade pela conceitualização. A história faz o con­trário, sacrifica a conceitualização para manter a totalidade. O ponto funda­mental é o seguinte: a história é sempre total não porque trate sempre de todas as esferas da existência, mas porque visa sempre à reconstituição do aconteci­mento. Quando digo isso, os alunos objetam: “Mas também há história econô­mica, história social etc.”. Não é porque trata de todos os assuntos, é porque seu objetivo final é a reconstituição, e não a explicação, esse é que é o ponto funda­mental. E a reconstituição sempre é total, porque nenhum acontecimento é exclu-

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sivamente de uma esfera social. O sujeito planta uma batata e isso pode ser um fenômeno religioso. Então, às vezes se diz “as ciências sociais também reconsti­tuem”, ainda assim fica a diferença. As ciências sociais reconstituem para expli­car. Historiador explica para reconstituir. O objetivo nosso é sempre esse,e é ina­tingível. A história, como discurso, é uma utopia. Uma vez a associação dos historiadores fez aqui um seminário internacional sobre os estudos da utopia na história e eu fiz um comentário que era o seguinte: “falta uma utopia” E come­çamos a discutir,“falta a utopia da história”. A história como discurso é uma uto­pia, nunca se chega lá e nem se pode chegar. Se chegar volta aos seios de Deus todo-poderoso. O que há em história são aproximações, tentativas. Desse ponto de vista acho que, para tentar voltar para a questão do historiador marxista/mar­xista historiador, o marxismo é visto antes e acima de tudo como uma teoria da história. A diferença do marxista historiador e do historiador marxista é que para o marxista historiador o materialismo histórico é “a” teoria da história, não há outra teoria da história. Para um historiador marxista ela é “uma” teoria da história, eu diria até mais, ela é a melhor teoria da história. Do meu ponto de vista. Como é que sabem que é a melhor? Pelos resultados! Os melhores traba­lhos sobre um tema, quando são bem elaborados pelo marxismo, dão conta melhor do objeto que os outros. Esse é o critério, não pode haver outro, porque são aproximações. É isso que me parece ser fundamental. Desse ponto de vista, os conceitos fundamentais do materialismo histórico são dois: modo de produ­ção e luta de classes, conceitos dos quais Marx tratou pouco. Por que modo de produção e luta de classe? Porque modo de produção é um critério de periodi­zação de história, isso como forma de organização da vida. O conceito mais pró­ximo nas ciências sociais creio seria o de genre de vie na geografia humana. Você sabe que o modo de produção foi entendido de duas formas: como maneira de produzir as coisas, a versão mais rasteira. E aparece no Marx às vezes com esse significado. Ou como sinônimo de sistema econômico. Mas há uma terceira possibilidade, aliás a mais complexa. Modo de produção como forma de articu­lação das instâncias. Assim concebido, modo de produção constitui-se em cri­tério de periodização da história. Nesse sentido é um conceito fundamental para periodizar a história. O outro conceito, o luta de classes, é também fundamen­tal. Modo de produção analisa a estrutura. Luta de classes desvenda a dinâmica. É a luta de classes que explica por que a história se movimenta. E exclui o deter­minismo, porque se trata de luta, e luta se perde e se ganha, nunca se empata.

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Pode dar socialismo ou barbárie, não está predeterminado quem vai ganhar. Nesse sentido é que acho que é possível entender também a historiografia moderna. O maior exemplo é o dos Armales, que é o ponto mais alto da historio­grafía moderna. Discutem-se sobretudo as últimas tendências dos Armales. Ela mesma se apresenta como contra o marxismo, urna alternativa. Muitos marxis­tas tomam-na dessa maneira e ficam falando dos Armales como movimento ideológico para destruir o marxismo. Acho que é um equívoco. Pierre Villar sempre foi marxista e até o fim permaneceu nos Armales. Eu me lembro de Soboul que me disse um dia que ele não gostava de Braudel. Foi falar com Brau­del sobre a Revolução Francesa e Braudel olhou para ele e disse: “Ça nexiste pas”. Ele foi embora e nunca mais falou com Braudel. Braudel estuda a longa duração, e Soboul vai falar de uma revolução? Isso não é possível. Mas isso é um equívoco, na realidade, porque Villar também disse que quando ele foi estudar a Catalu­nha, Braudel falou para ele que estudar menos de um continente não tem sen­tido. “C’est petit.” Por que é possível isso? Porque, exatamente, do ponto de vis­ta dos Armales o marxismo é visto como “uma” teoria da historia. O ponto de vista dos Armales não exclui o marxismo. O que eles não aceitam é que o marxismo feche todas as outras possibilidades de periodização que não seja através do cri­tério “modo de produção”. Qual é a diferença entre os Armales e o marxismo? O marxismo tem “um” critério de historicizar os conceitos. Mas historicizar os conceitos é também o problema da historiografia moderna. A diferença é que os Anuales dizem que cada autor na sua pesquisa vê que conceitos vai usar, tem que ter a sensibilidade de perceber e como historicizar os conceitos, qual é o critério de historicização dos conceitos. Não há um geral. É essa a diferença. Cada modo de produção do ponto de vista do materialismo histórico tem uma entrada que não pode ser mudada, e costumo dizer aos meus alunos, para terminar essas observações, afirmando que se Marx, em vez de ter escrito Das Kapital, tivesse escrito Das Feodum, o subtítulo do livro certamente seria “Crítica da Summa Theologica”. Mas, voltando ao seminário: eu, certamente, não teria essa visão dos problemas das relações entre materialismo histórico e historiografia sem que tivesse participado do seminário. E teria sido ou um historiador marxista ortodoxo, ou um historiador da École des Anuales daqueles que entendem que o marxismo não existe ou já não tem nenhuma importância. Espero pertencer a uma terceira espécie, como se pode ver pelo que foi dito acima.

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José Arthur Giannotti

Estou comovido com esta homenagem ao Roberto, mas sinto o mesmo constrangimento de meu colega Fernando Novais. Estou em uma sinuca de bico. Em primeiro lugar, ao nos dar como tema o Seminário Marx, cuja mitificação ainda está em curso, me induz a falar sobre aquilo que não interessa mais falar, pelo menos para as pessoas de minha geração. Em segundo lugar, porque não poderia de forma nenhuma deixar de estar presente aqui hoje. E não posso usar o expediente de Fernando de falar sobre o sentido história, o que foge de minha competência. Só me resta então ser mais historiador do que ele, mas, em vez nar­rar um episódio da história da Universidade de São Paulo, tratarei de refletir sobre o sentido de um grupo de professores se reunir, junto com alguns estudan­tes jovens e promissores como Roberto Schwarz, para ler Marx. Todos éramos muito jovens, eu tinha 28 anos, o Roberto devia ter uns 22 e assim por diante. Nos reuníamos, porém, antes de tudo para, através de Marx, chegar a conhecer o pen­samento de esquerda. E foi Fernando Novais que nos afunilou para esse autor.

Nosso interesse era encontrar um parâmetro a partir do qual pudéssemos pensar de um ponto de vista da esquerda e, ao mesmo tempo, criticar a esquerda contemporânea e seus pilares ideológicos. Tanto assim que chamamos pessoas de outras faculdades, como o economista Paul Singer, cujo problema, no momento, era juntar Keynes e Marx. Não foi à toa que, primeiro, lemos Marx e

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depois Keynes. Sem essa conexão, o Seminário Marx, que terminou depois do golpe de 1964, quando estávamos estudando Hilferding, se tornou ininteligível. No plano da sociologia, quais eram nossas referências? De um lado, Antonio Candido, que, com a finura tradicional, nos levava até o rio Bonito; de outro, Florestan Fernandes, que resumia o esquema conceituai no qual estávamos metidos. Nessa época Florestan escreve um livro muito ruim, Teorias da indução sociológica, no qual nomeia os três porquinhos nossos referenciais: Durkheim, Weber e Marx. Segundo ele, Durkheim nos servia de exemplo de uma análise funcionalista, que o próprio Florestan manejava com maestria. Lembremos que seus primeiros livros foram A organização social dos tupinambás e A função social da guerra na sociedade tupinambá. Marx servia apenas como paradigma de uma sociologia histórica. Note-se que lidando com três paradigmas Florestan não se considerava marxista como se costuma pensar hoje em dia. Weber estava muito presente, na medida em que de certo modo completava a análise puramente funcional. A idéia de “tipo ideal” e o modo de caracterizar a ação social por sua dimensão de sentido eram moedas correntes entre nós. Os primeiros trabalhos de Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso tratam da escravidão na perife­ria das sociedades capitalistas. De uma forma ou de outra resumem as três influências tendo como foco a pergunta: como é que o sistema capitalista cons­trói as suas periferias e a sua alteridade? O negro em particular, mas também o índio, os imigrantes e assim por diante.

A essas influências se soma a antropologia de Lévi-Strauss. O estrutura­lismo não foi apenas aquilo que ele se mostrou mais tarde, um jogo simples­mente formalista; Lévi-Strauss induzia pela primeira vez a pensar uma estru­tura pela diferença. Tendo como matriz a estrutura formada pelas diferenças pertinentes entre os sons para a configuração dos fonemas, tal como ensinava a nova fonologia, nos mostrava um tipo de análise que não era nem weberiana e nem funcionalista. Muitos de nós procuramos então examinar como Marx lidava com esse tipo de estruturação e terminamos sublinhando a diferença entre história categorial e uma história do vir-a-ser que o historicismo dos pen­sadores da Terceira Internacional tinham abandonado inteiramente. Desse modo a história punha em movimento as estruturas que o estruturalismo pro­curava. Daí tratamos de pensar a categoria valor ligada aos comportamentos de troca mercantil, mas igualmente como tais comportamentos se exerciam em vista de uma medida, cujo movimento se explicitava em dinheiro, capital e assim

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por diante. Daí lermos O capital de dois pontos de vista, separando os trechos mais estruturalmente organizados, como o primeiro capítulo, daqueles mais his­tóricos, a exemplo de “A acumulação primitiva”. Eu mesmo fiquei obcecado por essa diferença a tal ponto que tenho pensado nela a vida toda. Dar-lhe ênfase era a contribuição que os filósofos traziam para o entendimento do capital. Desde o primeiro dia esse tema passou a ser discutido entre nós, Bento Prado Jr. e eu nos contrapondo, ele imaginando que a noção de valor tinha por trás uma visão par­ticular do ser humano, uma antropologia fundante, e eu, ao contrário, tratando de salientar o próprio tecido da estrutura e suas condições de existência. Polê­mica aliás que ainda nos mantém vivos, mas agora na interpretação do conceito de jogo de linguagem, tal como o formula Wittgenstein.

A influência de Sartre foi enorme entre os que tendiam para o lado de Bento. O prefácio do Fernando Henrique para seu livro, publicado muito mais tarde, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, é inteiramente sartreano. Mas essa dualidade entre os “logicistas” e os “fenomenólogos” permeou todo o Seminário, foi ela que me obrigou a ver uma logicidade na prática, uma logici- dade que dava um sentido muito mais poderoso para a noção de infra-estrutura.

Todos nos interessávamos muito em analisar a situação política. Quería­mos entender até que ponto o processo político era basicamente um confronto entre capital e trabalho, em suma, entre as classes sociais. Daí nos perguntar qual era o sentido do novo capital e qual era a forma de superá-lo. Nunca topamos transferir esse problema para o plano da crise da razão, como fizeram os pensa­dores frankfurtianos, que não tiveram sobre nós uma influência comparável àquela de Lukács. Nosso problema era o capital e a sociedade capitalista con­temporânea, para assim poder intervir politicamente. Para os menos políticos como eu restava refletir sobre essa logicidade da prática. Me interessei e me inte­resso pelas formas pelas quais os comportamentos de troca e de acumulação se estabilizam num panorama que pode ser descrito pelo movimento de seus pró­prios elementos. Essa fascinação pelo sistema chega até ao historiador do grupo. Não é à toa que Fernando Novais escreve sobre o sistema colonial, um dos mais belos livros publicados pelos membros do Seminário. Antes de tudo estuda como a estruturação do comércio capitalista vai dar outra alteridade à relação entre proprietários “livres”. Não estuda a história évenementielle à<x escravidão, mas sua estruturação como alteridade do próprio sistema capitalista.

O Lukács da consciência de classe estava próximo de nós, igualmente por-

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que nos trazia uma problemática weberiana, mas levada ao limite: a luta de clas ­ses em formação poderia chegar ao ponto de se pensar a si mesma, a intelecção da sua própria situação e assim ultrapassar-se pela revolução. Creio que a partir daí Roberto começa a construir sua maquinaria crítica. Mas nesse ponto me des­peço dele. Se Roberto, como há pouco vem de dizer Antonio Candido, procura entender a máquina do mundo, obriga-se a tomar a idéia de mímese como ponto de partida, procurando relações estruturais entre a obra de arte e relações sociais de produção e de posicionamento dos personagens nessas relações. Ainda penso que talvez a obra de arte seja mais do que um olhar dirigido à máquina profunda do mundo, seja mais do que um procedimento vinculado à verdade, tal como aquela pensada pelos sociólogos, economistas e assim por diante, em resumo, mais do que a revelação de uma verdade arcaica. Tenho a impressão — como creio em milagres — que a obra de arte é sobretudo explo­ração dos mundos possíveis que residem na aura de nossas práticas e de nossas obras. O pintor, o escritor é antes de tudo um inventor de um novo mundo. É, portanto, um falsificador, que fantasia aquilo que já poderíamos ser mas não somos por causa de nossas “verdades”. Sob esse aspecto, leio os trabalhos do Roberto sobre Machado de Assis tentando descobrir nos seus interstícios o que Machado colaborou para desenhar nosso mundo do espírito. Mas isso é uma tarefa e um tema para conversas posteriores. Deixo aqui o meu abraço ao Roberto. Que este evento sirva para que vocês possam dar mais um passo na dia­lética materialista, embora eu não tenha nenhuma capacidade de dizer o que ela seja, embora a idéia de uma crítica materialista não me faça nenhum sentido.

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Paul Singer

No início do seminário, eu era o único que não era da faculdade de filoso­fia, e acho que isto, essa diferença, vem de uma falha histórica, difícil de aceitar. Fácil de explicar mas difícil de aceitar: é que a economia é uma ciência social e nós deveríamos estudar economia como estudamos ciência política, antropolo­gia, psicologia, o que seja, ou seja, juntos. Mas por alguma razão que, acho, tem a ver com a profissionalização da economia, ela acabou sendo separada do corpo das ciências sociais, virou uma faculdade especializada, virou um mundo fechado nele mesmo e hoje em dia talvez a economia seja a primeira das ciências sociais que timbra em ser não histórica, deliberadamente aistórica.

Não estou falando da economia marxista, evidentemente, mas da econo­mia neoclássica, que já era dominante quando fui para a faculdade de econo­mia e é mais dominante ainda hoje, pelo menos é a impressão que tenho. E daí a economia transforma-se numa espécie de visão fechada do mundo e do ho­mem, ela trabalha com modelos dedutivos que se devem em princípio aplicar a qualquer situação humana no espaço e no tempo. E como entrei na economia um bocado tarde — já tinha 24 anos, já tinha passado por militância sindical e uma série de outras coisas — , me senti lá, muito mais do que aqui, um “estranho no ninho”. Ou seja, tinha uma formação autodidaticamente adquirida, mar­xista, e fui para a economia na esperança de poder entendê-la como meio fun-

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damental para analisar a história, a luta de classes, a transformação social e tan­tas coisas mais.

Quero, em meu depoimento, falar um pouco da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas dos anos 50. Nesse tempo, a faculdade conti­nuava ensinando que a divisão internacional de trabalho é uma das causas fun­damentais do progresso e que a teoria das vantagens comparativas destinava o Brasil a produzir café. E que toda industrialização que estava acontecendo, que foi obra de Juscelino Kubitschek, não tinha sentido. Fui estudar economia numa faculdade que dizia que aquilo tudo era uma idiotice, era um absurdo, e o pro­fessor que mais, digamos, tentava entender a industrialização, o desenvolvi­mento e o juscelinismo dizia que éramos uma democracia, o povo queria isso, por mais irracional que fosse e, portanto, não havia muito que fazer.

O que aprendi de novo, na faculdade de economia, foi a visão keynesiana, acho que Giannotti tem razão, quer dizer, não era só Marx. Keynes, trazido por Celso Furtado, era uma outra e importante influência nessa época. O seminário começa em 1958, exatamente no meio da realização do Plano de Metas. Então era estranho na Universidade de São Paulo, no centro dessa imensa industriali­zação ultra-acelerada, de um crescimento econômico que hoje nos parece uma utopia do passado, que a faculdade de economia da mais importante universi­dade do lugar e, possivelmente, do país, estivesse completamente alienada do processo; não “crítica” do processo; mas simplesmente alienada do processo, recusando-se a entender por que não cabia nos modelos.

E, para tornar as coisas mais interessantes, nós— estou falando da tradição marxista na qual fui criado e Antonio Candido está aqui como um dos meus mestres e há de se lembrar bem dessa época — tínhamos absoluta certeza que o capitalismo já tinha dado tudo que tinha que dar e portanto não poderia gerar nenhum desenvolvimento. Mas o que é que estava acontecendo no Brasil, meu Deus do céu? O capitalismo estava esgotado, estava pedindo para ser substituído, e o progresso inegável do Brasil não tinha evidentemente nada a ver com essa concepção.

Um dia Fernando Novais, meu professor de história, veio até mim e disse: “Olha, tem um grupo de gente que está com vontade de estudar O capital e que­remos fazer isso de uma forma interdisciplinar”. Nesse momento, o grupo já tinha um filósofo, pois o seminário foi iniciativa do Giannotti, e depois entra­ram historiadores, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos. “Falta um eco-

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nomista e a gente está convidando você”, disse Novais. Isso foi uma coisa funda­mental para mim, eu estava cheio de dúvidas não só em relação àquilo que esta­vam me ensinando, mas inclusive àquilo que era base até aquele momento da minha visão de mundo eda minha atuação militante. Aceitei e foi para mim uma

experiência fundamental.Temos momentos em que a nossa formação, a nossa maneira de entender

as coisas, se solidifica. Depois disso ha mais acréscimos, mais novas experiências e aprendizados, a gente nunca deixa de aprender, pelo menos é o meu caso e tenho certeza que é dos meus colegas todos. Nesse sentido o Seminário é um epi­sódio na vida de todos nós, do meu ponto de vista fundamental. Para mim foi. Não é que eu conseguisse resolver as minhas dúvidas. O seminário me ajudou basicamente a formular minhas perguntas, e eram essas as essenciais. E a per­gunta crucial era: O que está acontecendo no Brasil?

Li uma das apreciações que o Roberto fez a respeito do Seminário e ele chamou a atenção para a imensa preocupação com o país. Era um seminário altamente abstrato e cosmopolita. Líamos O capital em várias línguas e inclu­sive comparávamos as versões. Descobrimos contradições interessantes entre a versão francesa, que, para quem não sabe, foi revista pelo próprio Marx — e isto é um perigo, quando o autor revê sua própria obra traduzida ele encontra falhas. Marx acrescenta, mas acrescenta muito na versão francesa, que depois não foi retraduzida para a versão alemã. Eu era um dos que liam a versão alemã, e isso deu origem a uma enorme discussão no Seminário. Até que fui pegar a tradução francesa e descobri uma série de acréscimos importantes, que escla­reciam coisas, mas que eu não tinha encontrado na minha versão alemã. O que interessa é que, apesar dessa relativa sutileza, e todos nós vínhamos com certa carga teórica de nossas respectivas ciências do homem, o seminário era a res­peito do Brasil, quer dizer, líamos O capital pensando na realidade palpitante na qual vivíamos.

Como disse Giannotti em seu texto, estávamos interessados em intervir politicamente no país. Mas isso não era apenas uma aspiração daquele pequeno grupo que estudava O capital Eu diria que havia um forte estado de espírito que mobilizava os alunos, sem dúvida nenhuma, e também a nós. Eu mesmo era aluno daquele início, e também os jovens professores, ou seja, o grupo estava dis­cutindo o Brasil através d 'O capital. E depois, através de Keynes, através de Hil- ferding, através de Rosa Luxemburgo. E isto foi para mim fundamental.

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Descobri essa anomalia de que a economia estava exilada num campo auto-suficiente. Continuo totalmente cético quanto à economia neoclássica. Acho que ela realmente explica muito pouco, serve para muito pouca coisa, a não ser para ideologia, para dizer que o mercado é o grande organizador da liberdade humana, da democracia e assim por diante. Não vai além disso. É uma polêmica absolutamente incessante desde os primeiros neoclássicos até este momento quanto a qualquer tentativa de intervenção política nos merca­dos. Apesar disso, eu diria que a economia se compraz nesse isolamento esplên­dido como a única ciência do homem que pensa o homem enquanto natureza, seus instintos, as suas inclinações, e isso é tudo o que você precisa conhecer, o resto você aplica. E isso está hoje sendo aceito na ciência política e em outras ciências humanas, quer dizer, em vez de a economia entrar na visão, diria, mais histórica, mais empírica, na tentativa de analisar e entender o que se passa, é a economia que está exportando seus modelos dedutivos para as outras ciências do homem.

Para mim é uma surpresa muito grande. Mas acho pelo menos que merece registro: nós não lemos no Seminário, e talvez tenha sido uma falha, nenhum neoclássico de verdade. Keynes era quem mais se aproximava do neoclássico, mas neoclássico falso, no sentido de que ele estava a partir dos anos 30 cada vez mais crítico em relação aos fundamentos da economia neoclássica e no fim rom­peu com essa tradição ao escrever o livro que o torna realmente imortal, a Teo­ria geral de 1936.

De modo que o Seminário Marx me marcou imensamente, me tornei um pouco cientista social através dele, e isso continuou depois no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ( c e b r a p ) . Não sei se posso mencionar isso, porque não é todo mundo do seminário que foi para o c e b r a p , mas muitos fomos. E o tipo de atividade intelectual que desenvolvemos nos primeiros anos no c e b r a p

foi uma continuação do seminário, pelo menos para mim não resta nenhuma dúvida. Para mim tem sido uma continuação a vida inteira.

O seminário realmente me permitiu não só perceber como a realidade social é extremamente complexa, interessante, mas inteligível pelo menos sufi­cientemente inteligível para você poder escolher o seu lado. Acho que isto foi tal­vez uma das coisas melhores que tiramos do seminário. Não há compreensão completa. “Agora, sabemos como é que as coisas vão.” Eu pelo menos continuei sendo surpreendido pela realidade. Não só pela realidade do período Juscelino,

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mas por todas as seguintes. E quero deixar publicamente esta confissão: a con­tra-revolução neoliberal me pegou totalmente de surpresa. Acho que o nosso se­minário não nos preparou para essa reviravolta e, se vocês quiserem, a revira­volta do atual governo brasileiro também não estava preparada nem prevista, de modo que com isso posso terminar essas considerações.

Para os jovens, a maior parte de vocês são jovens, não só há muito que apren­der, mas há muito a elaborar. Nós não resolvemos todos os problemas. Resolve­mos apenas um mínimo que nos permitiu agir, e acho que isso valeu. Continua­mos a enfrentar a dinâmica social e econômica e política, sobretudo com um estoque de expectativas que na maior parte das vezes não se realizam. Não sei se isso é uma tragédia. O que eu gostaria de dizer é que isso poderia ser uma boa moti­vação para que mais gente como vocês se meta ambiciosamente a criar uma com­preensão do que vai acontecer, por mais importante e menos factível que seja. Roberto, fiz questão de estar aqui. Acho que você foi uma das pessoas, junto com todos nós outros, que elaboraram essa visão do mundo e do Brasil, a qual não é homogênea em todos nós, mas tem um importante lastro em comum até hoje.

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Roberto Schwarz, seminarista

Fernando Henrique Cardoso

Recordo-me de Roberto desde os tempos de seu ingresso na faculdade. Parecia tímido, era atento e, sobretudo, namorador. Dava inveja aos jovens pro­fessores, como eu, que víamos o ambiente de estimulação intelectual e afeição que unia os estudantes. Tudo isso na velha Maria Antonia quando o número de estudantes era pequeno, as inquietações intelectuais muitas e o prazer da vida maior ainda. Eram tempos felizes: anos 50. A política era vista de longe pela faculdade. Juscelino construía Brasília, mas, para falar a verdade, o ambiente paulistano não andava em consonância com o imenso esforço que o Brasil fazia para se modernizar. A esquerda e a intelectualidade preferiam ver o que faltava, mais do que o que se fazia. Os mais moralistas (éramos todos, “vício” ou quali­dade pequeno-burguesa?) estávamos antes estarrecidos com as denúncias de corrupção e com as alianças do Partido Socialista Brasileiro com o Partido Tra­balhista Brasileiro e mesmo com o Partido Comunista Brasileiro, do que eufó­ricos com um futuro que, à semelhança da estampa do presidente, poderia ser mais risonho.

Isso não impedia que à nossa moda também quiséssemos ser inovadores. Jovens assistentes, sob o jugo das cátedras e de certo pedantismo universitário então predominante, sentíamos inquietação para ligar o que aprendíamos e o que sabíamos com a vida da sociedade. E nela, nosso coração pulsava do lado certo,

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dos mais pobres, ou, melhor dizendo, do “proletariado” Marx em nossos cursos era um autor entre outros, mas bem pouco estudado e conhecido. Nas pesqui­sas de campo que nos apaixonavam (alguns de nós participáramos de uma importante pesquisa sobre os negros em São Paulo, sob a orientação de Flores- tan Fernandes e Roger Bastide), lutávamos para juntar os princípios metodoló­gicos ao conhecimento efetivo dos problemas.

Foi nesse clima que Giannotti, recém-chegado da França, propôs-nos que lêssemos Marx à maneira dos filósofos. Ou seja: com todo o respeito à herme­nêutica. O grupo inicial é conhecido e já foi mencionado algumas vezes pelos demais autores desta coletânea. A decisão importante foi a de juntar aos jovens professores assistentes alguns alunos: Paul Singer, embora esse fosse já mais velho e experiente, Bento Prado, Francisco Weffort, Michel Löwy e Roberto. Assim, o seminário ganhou o ar de uma “fraternidade”, ou de um College das uni­versidades inglesas, onde as hierarquias se dissipam. Com uma vantagem: comer nas high tables não é permitido aos alunos, somente aos fellows, e a comida é de péssima qualidade. Em nosso seminário havia não só igualdade intelectual a despeito das diferenças de hierarquia, de idade e de tipo de forma­ção, como o jantar que se servia depois dos seminários era, em geral, bom e para todos. Creio mesmo que este aspecto de convivência foi essencial para que ele durasse tantos anos, lidando com textos muitas vezes indigestos.

Os debates havidos no seminário, agora um tanto mitificados e, por conse­qüência, mistificados, eram apaixonados e confusos. Giannotti tentava ler os primeiros capítulos de O capital na óptica de Husserl, influenciado que estava pela fenomenología. Singer, mais direto, explicava-nos o “economês marxista”. Bento Prado se contrapunha ao que eram os primordios da leitura giannottiana da prática fundadora de um movimento lógico com uma visão antropológica: o homem é o centro de todas as coisas, e por aí nos perdíamos todos. Entre per­das e achados, entretanto, fomos abrindo nossos próprios caminhos, cada qual a seu modo.

Foi nesse contexto que a influência e mesmo a presença de Sartre em São Paulo nos ajudaram bastante. As “Questões de método” abriam caminho para uma utilização não canônica de Marx. Também Luckács, com a temática da cons­ciência de classe, permitiu uma visão mais rica das questões ideológicas, e assim por diante. O fato é que muitos de nós, a partir do seminário, repensamos o que

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havíamos aprendido. Procuramos desbastar as confusões derivadas da aplica­ção à nossa realidade e à nossa época de formas de pensar que se haviam consti­tuído em outras épocas e para explicar outras realidades.

Roberto Schwarz se destacou nessa caminhada. Assim como tive que refa­zer o percurso teórico-prático para analisar a escravidão em uma região de capi­talismo “moderno” mas periférico, ele teve que avaliar idéias que, mesmo fora do lugar, são essenciais para explicar a nova realidade a que se aplicam, desde que não se as tome pelo que dizem valer, mas pelo que valem. Seu ensaio famoso sobre a matéria é, com razão, um clássico. Mas Roberto não é compositor de uma nota só: a própria análise que fez sobre o seminário, as contribuições à história da cultura brasileira e, sobretudo, sua visão e prática de crítica literária consti­tuem um exemplo de como foi possível, sendo seminarista, não morrer ajoe­lhado no dogmatismo.

Eu não tenho formação em literatura para avaliar melhor a contribuição de Roberto neste campo. Tenho até mesmo, apesar de amador na matéria, certa implicância com os transbordamentos da Escola de Frankfurt, que fazem dela pedestal do futuro e julgam este último sempre com certa nostalgia da época em

que era fácil criticar a “cultura de massas” como expressão direta do capitalismo monopolista e do imperialismo. Hoje, em época pós-pós-moderna, de socieda­des em rede e de globalização, me parece que é preciso dar passos adiante na crí­tica e na compreensão dos processos históricos e culturais. Mas coincido com Roberto no modo como ele vê a crítica literária: mostra a filiação dos textos e analisa seu contexto social. Ao bom estilo de Antonio Candido, pondo sempre ênfase na “formação” da literatura, como Roberto tantas vezes anotou em seus ensaios. Por certo na estrutura da obra literária, ou da obra artística em geral, as oposições que ela mesma cria, sua linguagem específica, contam. Dão-lhe os valores decisivos, para brincar com os momentos decisivos da literatura brasi­leira, aplicados não aos textos, mas aos contextos. E seria pecado vulgar reduzir a linguagem criada pelo artista a um “reflexo” da vida social. Mas que cabe uma interpretação juntando um plano ao outro e que essa dialética enriquece o conhecim ento da obra me parece, como leitor amador em crítica literária e como profissional da sociologia, um bom caminho.

A preocupação central de Roberto Schwarz na análise da literatura brasi­leira é com a necessária dupla referência, à literatura local e à literatura univer­sal. Este procedimento não pode se resumir a uma imitação da forma universal

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com outro conteúdo, e tampouco deve ser um repúdio da história universal da cultura, no intento vão de partir do zero. Trata-se de uma releitura das referên­cias universais à luz da experiência concreta que o artista vive, releitura que enri­quece e cria a nova produção. O “nacional”, não o nacionalismo, forma parte indispensável da verdadeira obra artística assim produzida. O nacional não é o autóctone, nem o bizarro do só aqui produzido: é um diálogo entre desiguais, mas do qual pode derivar algo até melhor que “o original”. Nessa releitura o con­texto social local brota como parte do imaginário que permite a crítica, a ironia e a revelação. Há muitos anos, analisando a escola latino-americana de econo­mia formada na c e p a l , escrevi um ensaio a que dei o título de “A originalidade da cópia”, aproveitando a tese das idéias fora de lugar, para expressar a mesma preocupação de Roberto.

No mundo de hoje, com a globalização, as coisas se complicam. O diálogo é muito mais fragmentado. Não se trata só de um “outro”, a Europa culta (ou desenvolvida), ou qualquer que seja esse outro (como os Estados Unidos). Com a internet, as t v s , as viagens, a meia-língua universal que é o trôpego inglês com o qual os jovens, os técnicos e os cientistas (para não falar nos exércitos) se comunicam, as redes de sociabilidade que se formam saltam fronteiras geográ­ficas e mesmo culturais. Tudo isso promoverá novas formas de conhecimento e de expressão nas quais o papel do “nacional” pode esmaecer. Pode? Tenho dúvi­das: haverá sempre identidades culturais e afetivas, talvez não tão baseadas no território e certamente menos nos estados, que continuarão a interferir no grande panorama da mundialização. Será, entretanto, correto falar de “nacio­nal” nas novas circunstâncias? Deixo a questão em aberto.

Não faço essas observações para diminuir o apreço e a importância que dou à obra de Roberto. Sempre haverá leituras diferentes. Mesmo no que é pro­priamente o âmago de sua estética, haverá quem possa replicar que as várias for­mas de imaginar as oposições criadoras da linguagem artística brotam sem cor­respondência com a realidade social e que incorporar esta última, ainda que tangencialmente, à estrutura de compreensão da obra é mera justaposição e tempo perdido. Faço as observações sobre as mudanças acarretadas pela globa­lização para instigar Roberto a produzir mais um ensaio: por que não tomar como pano de fundo as conseqüências da globalização e analisar a aplicação de um conceito como, por exemplo, o de “neoliberalismo”? Que valor heurístico pode ter o uso (e os desusos) dessa idéia para compreender seu significado no

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contexto em que se originou e no que é utilizada? E mesmo para explicar este último. Ninguém melhor do que Roberto Schwarz, um apaixonado pela análise das situações específicas que brotam do jogo entre o geral e o particular, para repor as coisas no lugar, desmascarando tanto o uso ideológico da idéia de neo- liberalismo como o que ele pode significar em uma situação “ex-periférica”, mas ainda assim “não-central”.

Uma última palavra sobre a pessoa Roberto Schwarz. Antonio Candido anotou que ele leva a vantagem da dupla filiação, à cultura alemã e à brasileira. É como se em sua personalidade se fundisse o que em outros é sempre uma cons­trução que se justapõe e que é necessária para entender a especificidade da pro­dução cultural nos países que não pertencem ao berço da civilização ocidental. Isto é certo. Mas a verdade é que o militante Roberto Schwarz fez do intelectual— e digo como elogio — tão próximo do Brasil como qualquer de nós que aqui nasceu e por aqui vive. Houve uma espécie de reconstrução da personalidade. O esquivo Roberto da juventude, o difícil professor, o escritor de forma apurada e não fácil, amalgamou-se, especialmente a partir da experiência política da época dura dos “anos de chumbo”, no cidadão-escritor que vive e critica a produção cultural de seu tempo e de seu país com uma paixão, eu diria para provocá-lo, “tropicalista”.

É nos estudos de Roberto sobre o teatro tal como produzido e representado no Brasil, em seus ensaios sobre o tropicalismo, mais do que na obra clássica sobre Machado de Assis, que se percebe este Roberto ser humano que faz esco­lhas, tem lado e tem paixão. Do vienense que não chegou a ser fez-se um brasi­leiro que sabe mais que quase todos os outros, mas sente do mesmo jeito que todos nós. A partir de preocupações semelhantes, suas escolhas políticas não são as minhas. Mas o modo de fazê-lo e os motivos pelos quais opta deixam bem vivas as marcas de seu tempo e de sua geração. E sempre com discrição e integridade.

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Ad Roberto Schwarz

Michel Löwy

Ao escrever esta nota, me dou conta que conheço Roberto há exatamente cinqüenta anos. Um meio século de conversas e controvérsias, convergências e divergências, harmonias e dissonâncias, mas sobretudo uma grande afinidade eletiva, no sentido alquímico da palavra.

Nos conhecemos em 1955, numa colônia de férias; descobrimos logo que partilhavamos não só origens comuns — famílias judaicas de Viena emigradas para o Brasil nos anos 30 — , mas também o interesse pela literatura e a simpatia pelas idéias de um certo Karl Marx. Desde o começo de nossa amizade, admirei a bela irreverência de Roberto em relação às autoridades constituídas e às dou­trinas estabelecidas. Decidimos estudar ciências sociais na u s p e durante quatro anos freqüentamos assiduamente a rua Maria Antônia, onde aprendemos os rudimentos da arte graças a nossos ilustres mestres Florestan Fernandes, Fer­nando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Antonio Candido, Paula Beigelmann, entre outros. Nessa época Roberto, Gabi (Gabriel Bolaffi) e eu formávamos um trio inseparável, carinhosamente — e/ou ironicamente — designado pelos colegas como “Os três mosqueteiros”. O santo padroeiro de Roberto se chamava Bertolt Brecht, a minha Aparecida era Rosa Luxemburgo; não conseguimos nos converter reciprocamente, mas nos encontrávamos na comum admiração por são George (Lukács). Já no fim do curso (1960), participamos do famoso Semi-

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nário Marx, em companhia de Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais, José Arthur Gianotti e Paul Singer. Não cito a lista completa dos participantes, que pode ser encontrada no belíssimo artigo que Roberto dedicou a esta singu­lar experiencia intelectual. Foi nessa época que Roberto começou sua brilhante carreira de falsário genial e fabricante de canulares de alto nível, inventando uma pretensa carta de Lukács dirigida a mim; nessa missiva, escrita num alemão impecável, o mestre de Budapeste agradecia o envio de artigos meus e de Roberto, inspirados por sua obra, que mereciam grandes elogios, por sua excep­cional qualidade intelectual e literária (estou citando de memória, não tenho mais esse precioso documento à mão). Cúmplice da manobra, levei a falsa men­sagem de Lukács à seguinte reunião do Seminário Marx, onde ela foi lida e dis­cutida, suscitando o ceticismo de alguns e a inveja de outros — não cito nomes.

Durante os anos 60, eu estando em Paris e Roberto em São Paulo, nosso contato foi essencialmente epistolar. Enquanto eu comia o amargo caviar do exílio, Roberto se engajou na resistência contra a ditadura militar; ativamente procurado pela polícia, teve que se refugiar na França. Voltamos a nos encontrar, não graças a Deus mas graças ao Dops. No começo dos anos 70, Roberto redigiu sua tese francesa de doutorado sobre a obra de Machado, utilizando já a magní­fica “chave do tamanho” que inventara: o conceito de “idéias fora do lugar” Foi nessa época — ou talvez ainda no Brasil — que Roberto começou a me falar de dois autores que eu praticamente desconhecia na época: Theodor Wisegrund Adorno e Walter Benjamin. E uma das inúmeras dívidas que tenho com “Bertha Dunkel”— pseudônimo de Roberto Schwarz, em outro delicioso canular, desta vez nas páginas da polêmica revista da esquerda uspiana, fechada pela polícia, Teoria e Prática.

Roberto voltou logo às margens do Tietê e eu acabei ficando mesmo enca­lhado nos cais do Sena. Só voltamos a nos encontrar a partir dos anos 80, com regulares viagens de Roberto e Grécia a Paris, e minhas, em companhia de Eleni (nascida na Grécia), ao Brasil. Nesses anos todos acompanhei com admiração e inveja os ensaios de Roberto sobre a literatura e a cultura no Brasil. Quando alguns destes trabalhos foram reunidos num livro publicado em Londres, Mis­placed ideas. Essays on Brazilian culture (1992), fui convidado pela editora para redigir uma opinião — o assim chamado “blurb” — para a contracapa. A regra do jogo é resumir tudo numa só frase. Tentei juntar o particular e o universal em três linhas: “Roberto Schwarz essays are not only a brilliant analysis of Brazilian

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literature and art, but above all a bold, original and creative contribution to a cri­tical theory of literature, to a materialist interpretation o f cultural history”.

Quando apareceu Utn mestre na periferia do capitalismo, tive o privilégio de servir de intermediário para uma carta que Machado de Assis, em pessoa — lá das profundezas do Inferno, ou das alturas do Paraíso, já não me lembro bem — , enviou a Roberto, com rasgados elogios a seu livro, o único até então a dar conta da clarividência ferina, maldosa e implacável de seus romances, cuja irônica denúncia das iniquidades das elites brasileiras é simplesmente devastadora.

Enfim, alguns anos depois, numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (março de 1995), mencionei os trabalhos de Roberto como exemplo de uma lucidez sobre as perversões do progresso, característica do ponto de vista crítico situado na periferia: “Se o fato de ser ‘periferia’ traz certas dificuldades eviden­tes, por outro lado pode ser também intelectualmente vantajoso: é lá— no Bra­sil, na América Latina, no Terceiro Mundo— que se percebem com mais agudeza as contradições do mundo moderno, os limites dos paradigmas ideológicos dominantes, as falhas do sistema”.

Para concluir esta breve nota, coloco a seguinte pergunta para os leitores deste livro: sem ser um clássico da literatura, mas apenas crítico literário, sem ser autor de romances imortais, mas apenas de alguns belos ensaios, será que o Roberto não é também, a sua maneira e em sua época, modéstia à parte, um mes­tre na periferia do capitalismo globalizado?

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Retoques a “A sereia desmistificada” 1

Bento Prado Jr.

Devo dizer, antes de mais nada, quão feliz me sinto por poder participar desta justa homenagem a meu velho amigo Roberto Schwarz. Felicidade que não deixa de ser sombreada por um mínimo de inquietação. Com efeito, que poderia eu dizer de pertinente, nesta ocasião, sem limitar-me à rememoração de uma longa amizade? Depois de muito meditar, acabei por decidir, sob o título acima inscrito, retomar criticamente meu texto de 1968, que tentava examinar a primeira obra de meu amigo. O título é roubado a André Gide que, depois de publicar seu Retour de Russie, francamente apologético do universo soviético, escreveu seus Retouches au Retour de Russie, onde a apologia cede lugar a um dis­tanciamento crítico. No meu caso, aqui e agora, trata-se sempre de rememorar um momento de nossa convivência intelectual. Mas de uma rememoração que é exatamente uma Erinnerung no sentido hegeliano da palavra, isto é, uma re- interiorização, uma reincorporação do passado que não deixa intacto o pre­sente, pois implica Aufhebung, que, no mesmo vocabulário, significa ao mesmo tempo superação, cancelamento e conservação. Processo essencial do devir do espírito que é sempre superação de si mesmo e autocrítica. Não se trata de dizer que nada valia no ensaio que consagrei a A sereia e o desconfiado. Trata-se antes de mostrar como o texto que escrevi, há quase quarenta anos, está efetivamente distante de mim, como jamais o reescreveria tal e qual, mas, sobretudo, trata-se

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de sublinhar algumas ambigüidades do texto que se prestaram a uma leitura equivocada.

Ao fazê-lo, completo uma tarefa já começada, pois no início dos anos 80 (há uns vinte anos), por ocasião de uma iniciativa da u n k s p em Araraquara, tive a oportunidade de fazer, numa conferência largamente improvisada, uma auto­crítica’ de outro escrito meu de 1968, consagrado, a pedido da revista italiana Aut Aut (num número que contou também com a colaboração de Roberto Schwarz), ao problema da filosofia no Brasil. No texto original, baseado em parte em Antonio Candido e Michel Foucault (A. Candido, ao ler o texto, acres­centou, com o humor de sempre: “Michel vai gostar muito do paralelo suge­rido”) e sobretudo no clássico “método de análise estrutural” de Martial Gué- roult, distanciava-me levemente de meu mestre João Cruz Costa em nome de um vago anti-historicismo. Valia-me, para tanto, do privilégio concedido por A. Candido à idéia de sistema literário e ao privilégio, concedido por Foucault, à idéia de estrutura: no segundo caso, é claro, eu seguia passivamente a moda da filosofia francesa da época. Falando em Araraquara, insisti no inadequado do amálgama Candido/Foucault e declarei que meu texto da Aut Aut era. cego para a importância da história social na história da filosofia (sem jamais, toda­via, fazer da história da filosofia uma simples “história das idéias”).

É a mesma operação que é preciso levar a cabo a propósito do ensaio consagrado ao livro de R. Schwarz. A moda de então, na filosofia francesa, levou-me a utilizar novamente Foucault (que aliás não deve ser condenado às trevas exteriores, longe disso, embora tenha comemorado a tomada do poder no Irã, por Khomeini, com um ensaio intitulado “O retorno do espiritual em política”). E a censurar, no excelente escritor (cujo livro, insistia eu — rou­bando uma metáfora foucauldiana, contra “as moscas cegas da reflexão”, que diziam que era mal escrito — , que era escrito como um poema), certa inde- terminação quanto ao estatuto da linguagem literária (pelo menos da litera­tura dos séculos xix e xx, já que o estatuto dos maternas e dos poemas varia muito ao longo da história da literatura ocidental — video caso de Lucrécio). Insistência ou mania de filósofo, mais do que crítico literário, que levaria alguns a crer que, na ocasião, eu aderia a alguma forma de “absoluto literário” ou à tese (na moda então) da “intransitividade do verbo poético”, que teste­munhava uma espécie de mallarmesismo muito tardio e, digamos, fora de

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lugar. Xa verdade eu e Roberto não estávamos, creio, tão distantes um do

outro. Eu dizia, reconheço, que na literatura encontramos uma verdade que mio é do mundo, mas acrescentava logo a seguir: mas que pesa, no entanto, e que ilumina. Com isso, queria insistir no fato de que há uma espécie de “ver­

dade literária” que precede, de algum modo, a verdade das chamadas ciências

sociais. Roberto recentemente dizia, em entrevista, se não me engano, coisa

muito parecida. E não é verdade que o próprio Marx afirmava que os roman­

ces de Balzac, a despeito do conservadorismo do autor, eram mais revelado­

res do essencial da história social da França do século xix do que a obra ucien-

tífica” dos historiadores? Tal idéia, já presente em meu ensaio antigo, foi

retomada mais recentem ente para sublinhar o caráter excepcional da obra de

crítica literária de nossos m aiores: Sérgio Buarque de Holanda e Antonio

Candido.

Talvez houvesse apenas um ponto— muito tópico — de discordância real.

Falo da interpretação que Roberto dá do filme 8 1 2 de Fellini. A despeito de acer­

tos formidáveis que sublinho em meu ensaio, continuo achando que, ao contrá­

rio do que diz Roberto, no filme, a rememoração da infância não é apenas uma

superfície onde transparece o essencial: a transformação do cinema em indús­

tria. Continuo achando que tal visão é muito parecida com a do duro crítico

contratado pelo personagem central e que é enforcado no meio do filme ou na

im aginação do diretor hesitante. Eu brincava no texto, dizendo que jamais

Roberto poderia sair de dentro do filme e escrever sobre ele porque iá fora enfor­

cado dentro do próprio filme: como um soldado morto em 1941 jamais pode­

ria escrever a história da Segunda Guerra Mundial.

Mas, para os mais jovens, talvez fosse interessante relembrar a génese do

meu texto. Ele me foi solicitado pela redação da revista Teoria e Pratica, que pen­

sava promover,como indica seu título, crítica da cultura e critica política de uma

perspectiva revolucionária. Por que o pedido? Amigo dos editores da revista,

não fazia parte dela, em bora participasse freqüentemente das reuniões da

comissão editorial. Mas ninguém ignorava nossa antiga convivência intelectual

— esse misto de cumplicidade ( jamais do ponto de vista da prática autopromo-

cional, tão freqüente entre poetas e literatos) e de polêmica sempre virtual. Tra­

tava-se, para a revista, de trazer à luz, de incentivar o debate entre candidatos a

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escritor que partilhavam ideais politicos; ou entre pessoas que podiam dizer:

Socialismo sim!, mas com Proust c Kafka!De fato, grande era a cumplicidade. Nós nos cruzamos pela primeira vez na

luventudc Socialista, em 1955 (onde fui tesoureiro, o que dá uma idéia da eficá­

cia da organização..., nías onde podíamos ouvir versões do marxismo livres do

dogmatismo staiinista, como tíos discursos de Paul Singer e Maurício Tragten-

berg). Reencontramo-nos, em 1957, no saguão da Biblioteca Municipal,quando

Roberto veio talar-me de dois poetas: Carlos Drummond de Andrade (que já era

minha maior paixão literária) e Gottfried Benn, poeta alemão de que jamais

tinha ouvido talar. Em 1957 ou 1958, ouvíamos juntos (chez Jacó e Gita Guins-

burg) os cursos de seu mestre Anatol Rosenfeld, que logo em seguida organizou,

conosco e colegas minhas, em casa de Lúcia Seixas (que logo se tornaria Lúcia

Prado), um seminário de um ano sobre A morte em Veneza de T. Mann. De seu

lado, na segunda metade dos anos 50 Roberto descobria, meio por acaso, na livra­

ria Herder, os autores da Escola de Frankfurt, de que ninguém falava então. Na

mesma ocasião, eu descobria, também por puro acaso, na livraria Francesa, o

livro de Alexandre Kojève sobre Hegel. Simultaneamente, pois, redescobríamos

Hegel, que impregnaria nossas imaginações fascinadas pela articulação (ou

desarticulação) entre literatura e política. Era normal, assim, que me solicitassem

o texto em pauta, para melhor mostrar a identidade entre a identidade e a dife­

rença, para guardar o vocabulário de Hegel. Uma diferença que se mostrava na

tensão entre a germanofilia de Roberto e minha franco filia (tensão pouco grave,

já que, como dizia o Lebrun, desde Madame de Stãel os franceses passaram a pen­

sar um pouco à maneira alemã). Lembro-me (para acrescentar uma anedota)

que em 1964 apresentei Paulo Arantes a Roberto Schwarz; logo a seguir, Paulo

veio me dizer, com ironia, que se sentia como o Hans Castorp de A montanha mágica, dividido entre dois mestres. A que acrescentei: nesse caso, sou o Settem- brini, porque, embora reconhecendo a grandeza da obra de Lukács, não gostava

de seu livro A destruição da razão. Aliás, encontrando-me recentemente com seu discípulo hoje radicado na Inglaterra István Mészáros, disse-lhe que escrevera algures que esse livro era uma má obra de um grande autor; o antigo discípulo redargüiu: “Isto porque você ignora as concessões que teve de fazer à polícia polí­tica, para poder publicar o livro!”. Descobri então que não se tratava de um mau livro de um grande autor, mas de uma “obra coletiva”.

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Depois de então envelhecemos ou “amadurecemos” Roberto escreveu seu Machado e continua a escrever. De minha parte, recomecei meu itinerário de pesquisa, talvez condenado a retornar a meu ponto de partida. De qualquer maneira, hoje escreveria um ensaio bem diferente sobre A sereia e o desconfiado. Um ensaio certamente mais compreensivo, que permitiria mais um recomeço de conversa. De uma conversa que nunca deixou de recomeçar.

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Vil ma Arêas

Pensei primeiro em fazer um depoimento pessoal, pois há pelo menos trinta anos, antes portanto de nos conhecermos, Roberto Schwarz interfere na

minha vida sem saber.Mas quando eu reafirmava a amigos essa intenção em resposta à repetida

pergunta vinda de todos os lados — o que é que você vai falar? — , era energica­mente desencorajada. Então desisti.

Entretanto, quando ontem Grécia me disse que ainda guarda uma pequena concha que eu lhe dei com um poema dentro — e o poema era “Passeata”, de nosso homenageado — , achei que tinha de relatar pelo menos esse episódio. Foi assim: quando nos anos 70 a Coleção Frenesi foi publicada no Rio de Janeiro, eu e meu irmão Vicente vivíamos lendo os poemas. “Corações veteranos” talvez fosse o mais freqüentado e acabamos por escrever “Passeata” em letras garrafais na parede da sala.

Pau no imperialismoabaixo o cu do papa.

Que não estava longe, imagino, de “Os testículos de Edgar”, de Berta Dun­kel, “dona de uma certa reputação de poeta, verdade que escandalosa”, conforme

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escreve Roberto. Meses depois, recebemos uma visita de nossos pais. Vinham do

interior e imaginavam a vida que levávamos no Rio completamente desregrada, inspirada nos abomináveis princípios de esquerda. Pois bem, mal entraram

leram os versos, levaram um choque e... os recusaram, pelo mesmo motivo que

o poem a de Dunkel foi recusado: “pela natureza filistina do assunto”. Para

encurtar, as pazes só foram possíveis meses depois.Uma vez descartada essa linha, pensei também em fazer um retrato de Ro­

berto, a fim de imitá-lo. Ele é um excelente retratista, todos sabem. Basta pensar­

mos em “A velha pobre e o retratista”, e nos estupendos retratos de Cacaso e de

Anatol. Seria assim com o o traçado que ele surpreende em Kafka:

seu arabesco delicado e breve é violentíssimo e morde o nervo de uma cultura

inteira. Não explica, mas implica a vida burguesa com tal felicidade, que ela sai tri­

turada, de uma cena simples e doméstica, um pouco fantasiosa. A chave do mundo,

para Kafka, é de latão, e pode estar nos subúrbios. Se Kafka fosse revolucionário,

não fabricaria bombas, mas supositorios.

Acho que todos podem os reconhecer aqui a postura desassombrada de

Roberto Schwarz, no esforço de dinamitar o sempre igual, o convencional e os

nossos fósseis ilustres. Quanto à crítica de reducionismo às vezes ouvida quanto

a seu trabalho, e a outros de inspiração marxista, fico com José Antonio Pasta Jr.,

quando o define com o reducionismo funcional com a intenção de desvenda-

mento do texto em exame.

Mas hão de convir que eu precisaria ser Roberto para falar de Roberto. Pen­

sei então em tom ar Zuca Sardan com o modelo, quando ele traça a figura de Ale­xandre Eulálio, associando-a ao coelho de Alice, isto é, algo aparentemente nor­

mal — afinal é apenas um coelho — , mas esse coelho, diferentemente de todos

os outros, vive consultando o relógio e perguntando “que horas são?”, com medo

de estar atrasado.O im portante é que, assim fazendo, arrasta a menina para o buraco onde

ela vive as mais extraordinárias aventuras sob todos os pontos de vista, do ponto

de vista lógico e também do erótico (que aliás não foi explorado no seminário), e onde a linguagem do senso comum e as velhas explicações da velha academia

são desautorizadas.Pois bem, não vou fazer o retrato, mas queria frisar a capacidade fabulativa

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e provocativa de Roberto, que combina racionalidade com fantasia, porque tem o intuito da intervenção provocante e imaginosa. Ou, ainda nas palavras dele, citando “um temido crítico vienense” a respeito de sua irmã gêmea Dunkel: seus versos são “tanto mais fantásticos quanto são realistas”. Pergunto: funcionará essa armadilha do raciocínio lógico como um alter ego dialético?

Em vista de todas essas indecisões, vou então falar alguma coisa sobre meu trabalho, que deve muito não só a Roberto Schwarz, como à linhagem a que ele pertence. O primeiro exemplo é o meu livro sobre Martins Pena, Na tapera de Santa Cruz. O assunto me foi sugerido por Fausto Cupertino, que afirmava — com o que concordo, e meu orientador Décio de Almeida Prado também— que os dois únicos intelectuais brasileiros do século xix a compreender o sentido da escravidão entre nós foram Machado de Assis e Martins Pena, embora o pri­meiro não reconhecesse o segundo, preferindo Alencar e o que ele chamava o “decoro” da cena. Aliás, teatrólogo medíocre na forma-teatro, Machado de Assis realiza-se enquanto teatrólogo na prosa vazada nos moldes da farsa. Assim cer­tamente a interpreta Roberto, quando fala dos narradores postos em situação na ficção machadiana e quando reescreve O alienista como violentíssima farsa, em A lata de lixo da história.

Mas voltando a Martins Pena, já encontramos nele os problemas da cultura importada e incorporada pela rama e o realismo, além dos mecanismos que moviam o país, organizado este em termos da espoliação, a desmoralização do trabalho, a legitimação das diferenças sociais, a confusão ou inversão das nor­mas éticas, o domínio do favor e a exploração do estrangeiro. Como diz um inglês numa peça: “Brasil, bela, bela, lucros 100% ”.

Martins Pena era um homem bastante culto para a época, dominava pelo menos três línguas, era tenor, compunha, assinou crítica musical em 1846 e 1847 no Jornal do Commercio e tentou na literatura e no teatro vários gêneros: conto, romance, dramalhões incríveis, também indianistas, melodramas — a maioria muito medíocre — , até inventar a comédia brasileira, com muito de farsa, trans­formando e manipulando a tradição ocidental do teatro culto e popular. Tema? O Brasil da época, centrado no Rio de Janeiro e tudo muito rebaixado, muito pessimista. Portanto, também como Machado no romance, ele experimenta a mão antes de acertar na invenção de nossa comédia (realista e não romântica, pois não tivemos comédia romântica) após estudar a lição do entremez, dos es­petáculos populares, do circo, da ópera etc., além de ensaiar o uso de nossa pro-

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sódia brasileira no palco, o que lhe valeu a pecha de autor relaxado, que não sabia escrever, e assim por diante. (Os atores eram portugueses, como sabemos, e um folhetinista da época observou que o roceiro brasileiro que Martins Pena punha no palco parecia campónio luso pelo sotaque.) Martins Pena preparava-se para compor a ópera cômica brasileira quando faleceu, em 1848. Suas peças, brevís­simas (Judas em sábado de aleluia é uma obra-prima em doze cenas, censurada após a primeira representação, porque não continha o lado moral da punição), manipulam muitos fios da convenção teatral, e são uma prova que ele poderia fazer a comédia que quisesse, desde a de meios-tons até a farsa mais grosseira. Seu diálogo é impossível de se encontrar em outro dramaturgo do século entre nós. Um exemplo surpreendente em Os dous ou o inglês maquinista: “ela: ...primo?/ ele: Priminha?/ ela: aquilo?/ ele: vai bem/ uma outra personagem: o que é?/ ela: uma cousa”.

Além disso era um mal-humorado, nem um pouco convencional — não casou, teve uma filha com uma atriz, falava mal da “rapaziada patriótica” que celebrava as glórias nacionais, apoiou uma greve dos coristas (cantores dos coros) do teatro, que não recebiam salário havia três meses, denunciando pelos jornais as manobras da diretoria para frustrar o movimento e apontando o trai­dor dos grevistas, justamente (pasmem!) o engraçadíssimo ponto. Havia por­tanto razões de sobra para ele ser mal-humorado. Estava também atento aos movimentos libertadores da Europa. Segundo minhas pesquisas, acho que Mar­tins Pena foi o único intelectual a comentar em 1847 a morte de O’Connell, irlan­dês que lutou no Parlamento inglês pela emancipação da Irlanda. Falo tudo isso porque é comum avaliar o tamanho intelectual de nosso autor e do seu teatro associado às figuras da “tapera de Santa Cruz”, que ele descreve impiedosamente. Todos parecem irritar-se por ele oferecer um retrato medíocre e rasteiro do Bra­sil, inclusive a própria censura. Por exemplo, em O5 dous, quando Martins Pena mostra no palco um contrabandista de escravos — com um escravinho dentro de um cesto — e um inglês espoliador (as duas figuras mais problemáticas da época), a censura proíbe. Houve inflamados discursos na Câmara dos Deputa­dos, em 1845, comentando o absurdo de aparecer em cena um contrabandista de africanos trazendo um deles dentro de um cesto, o que nos colocava numa situa­ção delicada diante da Inglaterra e da proibição do tráfico. Ainda mais com o per­sonagem do inglês oportunista ombreando-se com o traficante.

Foi a própria escravidão — o entendimento da instituição e de seu papel na

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sociedade brasileira — que fez Martins Pena abalar sua construção cômica, a partir daí inventando uma forma. Como se sabe, a comédia nova clássica, de onde provém a nossa, é um gênero simétrico (velhos contra moços, serviçais contra amos etc.), e Martins Pena introduziu nela a assimetria básica da pre­sença dos escravos. Eles não têm correspondência de pares, são mudos, sem voz e sem razão, trabalham todo o tempo, surrados, empurrados etc., enquanto a um palmo acima a trama desenrola-se ao ritmo vivíssimo desse teatro.

Quero comentar ainda muito rapidamente o que escrevi sobre Cidade de

Deus, diálogo também com Roberto, mas o corte a que o livro foi submetido, as exigências de uma editora entrangeira, destruiu — assim me disseram — o pro­cedimento que eu achava mais interessante e mais realista, e que é justamente a monotonia e a repetição das mortes no livro. Sabemos que isso é estritamente realista em nossa história. Por exemplo, é de nossa tradição matar pobre, e matar abertamente, estando eles dormindo ou não, crianças em porta de igreja, men­digos na rua e até índio, se é confundido com mendigo. Pelo menos é o que con­cluímos da declaração daqueles marginais que atearam fogo num índio ador­mecido em Brasília: “Pensamos que ele fosse um mendigo!” (como não eram populares, jamais foram chamados de “marginais”). Outro exemplo: um conhe­cido governador do Rio de Janeiro, ex-comunista, mandou afogar mendigos no rio da Guarda — conheci os mata-mendigos na prisão, eram outros mendigos, irmãos dos afogados — , depois mandou incendiar uma favela no Leblon por dois motivos: dispersar a liderança— intento maior na base de qualquer remo­ção de favelas (confira-se Janice Perlman, O mito da marginalidade) — e, em segundo lugar, recuperar os terrenos, que com o tempo ficaram muito valoriza­dos. Pois bem, ateou-se o fogo, proibiu-se o corpo de bombeiros de acudir, os líderes desapareceram, muita gente morreu, a que sobrou foi empilhada em caminhões de lixo e levada para fora da cidade. Nos terrenos, então limpos, construiu-se a Selva de Pedra, apartamentos financiados para militares. Temos de convir que nenhuma das gangues de hoje teria o poder para uma operação de tal envergadura.

A monotonia da violência da esfera de cima, que se chama lei, aparece cla­ramente na primeira versão do livro de Paulo Lins. Não reli com os cortes impostos, achei até que Roberto ia comentar alguma coisa. Ou a noção de forma mudou? Talvez eu seja mais conservadora.

O que escrevi sobre o livro de Francisco Alvim foi também inspirado na crí-

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tica do Roberto, pois procurei articular as duas partes aparentemente opostas do livro, articulação que ele deixou confessadamente solta: de um lado, o teatro anônimo da voz coletiva apontando os vícios de nossa formação histórica; de outro, os poemas líricos, aos quais, segundo Roberto “nada do que viemos dizendo se aplica, ao menos diretamente. Aqui a mitologia e a linguagem são pessoais, a intenção é expressiva etc. — trata-se de luz e sombra, água, areia e vento, animais e paisagens, mais do que sistema de nossos constrangimentos sociais” (“O país do Elefante”).

Provocada intelectualmente por esse texto, que é o grande interesse de um texto, acho, tentei estabelecer ligações entre as duas partes — não posso logica­mente refazer aqui as etapas da análise. Resumindo, de saída me parecia evidente que a dicotomia aparentemente radical do livro não fazia mais que tematizar nossa sociedade drasticamente heterogênea,“os dois Brasis”, para simplificar: de um lado, violência, racismo, pobreza, certa “confusão de sentimentos” etc., a que a voz coletiva no Elefante faz menção; de outro, o registro sofisticado, diferen­ciado, sublinhando a marca de classe do sujeito lírico construído por Francisco Alvim. “Tudo é muito carregado de hierarquia social”, diz Roberto. É mesmo. A dicotomia do livro fala disso.

Além disso, há poemas que dialogam de ambos os lados, que dialogam entre si, como o “Arquivo” (que não pode ser de lembranças) e o “Aberto” (que fala da lembrança de Cacaso). Basta-nos conferir:

ARQUIVO

não pode ser de lembranças

ABERTO

para Cacaso

Às vezes o olhar caminha

na trama da luz

sem curiosidade alguma

qualquer devaneio

Vai em busca do tempo

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e o tempo, cotno o sempre,

vazio de tudo

não está longe

está aqui, agora

O olhar sem memória

sem destino

se detém

no ardo ar

na luz da luz —

lugar?

O burocrático lugar onde se guardam documentos se opõe ao impalpável lugar de ar e luz — aí estão as lembranças do amigo morto. O poema retoma o que escreveu um dia Drummond a Mário de Andrade em idêntica circunstân­cia: “...tua lembrança/ fichada nos arquivos da saudade”.

Citarei mais um procedimento das duas partes do livro, unidas desta vez pelo fio amoroso, que percorre muitas falas do teatro anônimo (como o “brin­quinho que comprei lá na feira do Gaminha”, como a simpatia pela “dorzinha” dos velhos etc.). Essas peças funcionam como notas soltas que ajudam a compor o ritmo, projetando-se nos poemas líricos. Estes, por sua vez, se movem num cír­culo de imagens restritas, controladas, repetidas de um poema para outro, variando apenas a tonalidade. Isto é, os poemas “altos” e “baixos” obedecem a um movimento similar: são fiéis à obsessão de girar ao redor de seus núcleos particulares.

Em suma, a minha contribuição a esta homenagem a Roberto Schwarz sig­nifica confessar uma grande dívida para com ele, ao mesmo tempo intelectual e afetiva.

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Francisco Alvim

Vou citar um poema de Corações veteranos, de Roberto. Eu vou ler “Depois

do telejornal”. Espero que ele fique dando sinais durante toda nossa conversa.

Depois do telejornal

Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à

velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim,

também as mãos, são da irm ã que envelhece noutro continente. Está aqui

desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 num campo francês,

em 41 passou para um quartel em Casablanca, perdeu a mãe em Buchenwald

e costurou seis dias por semana, 25 anos, num a fábrica de roupas no Bronx.

Sem entender, acena ao sobrinho do Brasil — onde as coisas vão mal — a

cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do planeta. — Sei que

você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar

que sou uma velha. Mas cis vezes acredito nalgum defeito genético do homem.

Senão por que esse gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto

isso, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção

— a lepra do mundo, me entenda bem! A lepra do mundo — nos acabam de

trabalho, desemprego, guerra ou loucura.

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Bem, agora voltando à nossa conversa. Eu já nem sei em que ano conheci o Roberto. Foi um banho de mar que tomamos. Quem nos apresentou foi Alexan­dre Eulálio. Foi no apartamento do Alexandre na Prado Júnior. Saímos num dia assim enfarruscado, meio paulistano, nada carioca, e tom am os banho ali em

Copacabana. Você ia pegar seu avião para uma longa tem porada nos Estados

Unidos. E ali no meio daquela espuma, “Espumas flutuantes”,1 nos apresenta­

mos os dois:— Você escreve?

— Escrevo!

— O que você escreve?

— Poemas e ensaios...

— Poemas! Você falou “poemas” antes de ensaios.

— E você?

— Bom eu estou aí também, escrevo e tal....

— Eu tenho um livro chamado O pássaro na gaveta.

Bom, eu não tinha lido. E eu tinha apenas poemas soltos. E firmamos ali um

pacto de tritões, e a camaradagem seguiu pela vida afora. Um a camaradagem

que se deu muito através de Alexandre, que é um a figura notável também, uma

figura esplêndida. Tudo passava pelo Alexandre, é impressionante. Ele geria... A

impressão que a gente tinha era que ele comandava um a sala de visitas perma­

nente, cheia de gente interessante. O Alexandre tinha um hábito maravilhoso

que era de ler cartas dos amigos para os amigos. Então você ia visitá-lo e ele abria

uma carta do Roberto... Ele dizia: olha, o Roberto está lá não sei onde, fazendo o

quê... E aí ele mantinha aquela chispa, aquela chama viva da afetividade. Então,

muito do nosso convívio se deu nesse período, pelo Alexandre. E o período era

esplêndido, era muito bom. Estamos falando de inícios dos anos 60, por aí. Em

volta tinha o quê? O Cinema Novo do meu cunhado Joaquim Pedro... Tanta sau­dade... Joaquim fazia o Cinco vezes favela. Eu me lembro que tem um pé que apa­rece no Cinco vezes favela. E o pé é meu; o sapato está sendo engraxado pelo

moleque. Eu não queria, eu tinha já nessa época algum tipo de consciência. Eu achava que era demais, uma coisa chata, humilhante, ficar ali o meu pé naquele filme, sendo engraxado. Eu falei para o Joaquim:

— Ó, Joaquim...— Bobagem, Chico! É uma grande besteira! Faz aí, não tem importância

nenhuma.

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í. ' * *

L . . - -

E eu aí falei: “Bom...”. Então, hoje eu estava pensando nesse episódio e falei: o Paulo Lins... Porque eu sou neto do Francisco Soares Alvim, meu nome é Fran­cisco Soares Alvim Neto, o meu avô era coronel da Zona da Mata mineira, zona de café e de escravos, realmente pesada. Eu falei: o Paulo vai me dar alforria um dia desses, um dia desses ele vai me dar alforria! Eu sei que ele vai me dar, pela obra que ele está fazendo, gigantesca, e que tudo realmente vai caminhar muito bem. Ele sabe, como Dante, que“é o amor que move o Sol e as estrelas”, e está tra­tando disso. Mas, enfim, tinha o Cinema Novo, que era aquela coisa maravi­

lhosa. E eu me lembro do dia em que a gente viu a estréia de Deus e o diabo na

Terra do Sol Foi aquela coisa, aquele susto! Foi aquela primeira manifestação de

um artista que beirava, se não já estava inteiramente mergulhado, na geniali­dade. Aquele susto que as grandes obras trazem, aquele frescor! Glauber sur­

gindo, uma coisa assim... uma alvorada, na presença dele e tudo mais. Num

cinema ali de Botafogo, lembro das figuras saindo, todos nós amigos, todo

mundo na faixa dos vinte, naquela emoção. Ninguém sabia o que dizer um com

o outro... E outros tantos encontros desse período... Alguns até acho que foram

mais sonhados que vividos. Não sei se foram reais. Como uma vez de que eu me lembro, nesse clima exatamente de cinema, do cineclube da Associação Bra­sileira de Imprensa, que funcionava num dos andares do edifício da Associação.

Um belo dia, eu estava ali, entrando naquela fila para subir. E entrei antes. De re­pente, vem um aparato meio que policial, mas era mais protocolar, e interrompe

a fila, porque estava havendo uma solenidade ali, e umas figuras exponenciais estavam chegando. Só eu entro no elevador, e em seguida entram minha prima Nininha, Fidel Castro e um terceiro personagem, que durante muitos anos acre­ditei equivocadamente que fosse Che Guevara! Não sei se sonhei isso... Mas parece que foi verdade.

Ela disse: “Chico, você por aqui? Deixa eu te apresentar o Comandante”Eu falei: “Pois não, muito prazer, muito prazer”.Na poesia eu me lembro que tinha feito um soneto, “Os bichos” Mostrei a

um amigo meu, o Cláudio Mello e Sousa, que gostou e disse que ia levar para o Mário Faustino, que tinha aquela página no Jornal do Brasil chamada “Poesia- experiência”. E tinha um cantinho que chamava “O poeta novo”. Mário gostou, mas disse que eu fosse lá falar com ele alguma coisa, não sei. E eu fui. Fui lá, e o

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Mário me recebeu embaixo, nas rotativas do jornal. E falou assim: Olha...Você

vai fazer o Itamaraty, não vai?”.Eu falei: “Ué! Como é que você sabe?”“Pelo seu jeito de vestir e tal...”Até hoje não entendi essa história... E aí leu o soneto e disse: “Tem um verso

de pé-quebrado”. E eu pensei que ele não ia reparar. Eu sabia qual era o verso. Eu não conseguia resolver o verso, tinha até passado noites em claro e o verso não ajeitava de jeito nenhum, não chegava lá. Mas ele talou, e eu disse: “Tem sim, é

verdade”.“Você sabe qual é?”Eu disse: “Sei, sei! Pois é, mas eu não resolvo, não sei resolver!!!”.“Mas é tão simples... Está no plural. Você põe no singular.”Pronto! Consertou o soneto e... Era aquilo mesmo!Mas o Mário fazia uma coisa extraordinária que era a página dele. E havia

aquele reboliço dos “concretos” que estavam surgindo e eu ficava numa angús­tia muito grande porque... O Alexandre Eulálio é que me transmitiu as primei­ras notícias da vanguarda concretista, que não saíam no Rio de Janeiro. Estava ali ao lado! Foi em 1956 ou foi um pouco antes. E a exposição foi lá no Rio, no Museu de Arte Moderna. E aí o Alexandre trazia as notícias de São Paulo, do pes­soal “concreto” e tudo o mais. Eu ficava assim meio chateado. Dava uma certa cha­teação, porque antes de começar — eu era pretendente a fazer verso — já esta­vam decretando o final do verso! Então, eu não sabia como aquela coisa ia virar para o meu lado. E fiquei muito contrariado com aquela história. E aí o Mário começava a unir essas pontas todas. E o Jornal do Brasil era realmente uma coisa apaixonante. Era fantástico porque aí vinha aquela coisa toda das vanguardas, vinha a leitura que ele fazia da poesia, que era extremamente interessante, com aquele critério da pedra de toque e que ele realmente ia com uma segurança muito grande, às vezes um pouco exagerada. Às vezes ele errava, mas em geral ia com muita segurança no que a poesia tem, que é realmente essa matéria morta em volta. No geral, é pura matéria morta e, de repente vem um lampejo, uma concreção, uma coisa, a pedra de toque, aquela influência de Pound e tudo mais. Porque eu lia muito aquilo tudo e entendia pouco, mas tinha uma coisa que eu começava a sentir: que realmente aquela história favorecia pouco o meu... enfim, o meu desempenho, a minha preocupação, o que for. E que era

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uma certa ausência de subjetividade. Uma objetividade muito desejada, uma desconfiança da experiência pessoal, uma valorização muito grande da língua. E aquelas coisas todas ao mesmo tempo acontecendo em volta, começando a acontecer: Cuba, pobreza, aquela coisa, o Brasil entrando por todos os olhos, por todos os poros. E também a memória recente: a fazenda, a miséria e tudo aquilo de Minas, da opacidade, da quase afasia, não é? — que a Maria Augusta Fonseca sabe do que se trata*— , da quase afasia das pessoas. Eu falava com os colonos da fazenda do meu avô, parecia que era uma outra língua, outro planeta, que era uma outra humanidade na figura deles, na língua deles — uma humanidade rebaixada. E essa coisa: como é que a gente vai resolver essa história... Eu quero uma poesia com Drummond comandando. Eu tinha deixado já a do Jorge de Lima, dado uma rasteira no Jorge Lima, em termos interiores.3 Isto é, a poesia metafórica cedendo à poesia testemunhal. A poesia conceituai, nem conceituai eu diria, porque não é. Mas à poesia mais vivencial de Drummond. Meu pri­meiro livro saiu. Fecha-se essa fase, eu entro para o Itamaraty e tal. Tem período lúdico com muitas festas, muito baile, muita farra e muita maravilha. Depois há um salto no tempo e o exílio. Vou ler outro poema.

O ARMANDO É UMA BOA CABEÇA

Ele é excelente, efetivamente bastante bom

Acho maravilhosa a Luisinha

Não acho que ela seja fascista

Para mim foi-se o tempo

De ler Le Monde e mexer a bunda

Você vai me achar boba

Mas não consigo me livrar

Dos sentimentos románticos

O nosso convívio rendia muito

Minha cuca está fundida

Caralho.

Essa é uma versão bastante original do stream of conscience. Porque, ao invés de ser para dentro, é para fora, não é? Tem essa coisa. Inventa. Isso, nós já estávamos em Paris. Nos topávamos lá, conversávamos, malhávamos os con-

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eretos quando podíamos e tal. Falávamos que assim não vai, porque não é pos­sível, não sei o quê, isso não dá conta... E essa linguagem estava na cabecinha de Roberto nessa época. Muito mais na dele do que na minha. Enfim, volto de Paris depois de um período e ele fica por lá. E ele na saída me fala: “Você está vol­tando para o Brasil e, se der para publicar esse livro — Corações veteranos —, você publica”. Aí então eu volto para o tempo da p u c , no Rio de Janeiro, em que Clara passou a lecionar, e as amizades que fizemos no período: Cacaso, Ana Cristina, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua, estes três últimos alunos de Clara; ou as de muito antes: Helô Buarque e João Carlos Horta — período radioso dos anos 70, no Rio de Janeiro. Cacaso era uma força extraordinária! Um poder de aglutinar pessoas, com uma manha extraordinária, produz a Coleção Frenesi. O livro do Roberto sai na Coleção Frenesi e com ele sai um tipo... Eu me lembro o susto que foi ver o livro dele, que tanto na minha opi­nião quanto na de Cacaso, os dois conversando sobre isso: “É o melhor. É muito mais...” Brilhava.

Há uma influência entre os poetas. Uma vez li uma crônica do Sainte Beuve, no seu Causeries du Lundi. E essa crônica é muito interessante, muito curiosa, porque ele fala das tribos dos poetas, de como aparecem. Tratava-se do aparecimento de duas ou três gerações de poetas franceses românticos, que sempre surgiam com uma adoração qualquer pelo poeta da geração anterior, começavam a ler, quando de repente um começava fazer umas coisas, escrever umas coisinhas, inventava um tom, trabalhava um tom. O outro que estava ao lado — era um pouco de ouvido — fazia o mesmo, e aquilo ia se desenvolvendo e se formava realmente um grupo, um estilo e tudo o mais. E uma língua, uma linguagem surgia e aparecia naquele esforço conjunto, que era feito, no fundo... é uma teoria, quase uma “teoria do pio”, uma piada, como se fosse um bando de passarinhos que chega, um soprando, dizendo uma coisa, o outro outra... Depois tudo se transforma, vira uma briga danada, brigam pra cima, pro lado, pra baixo. É uma linhagem de gente muito pugnaz. Bom, esse pessoal Roberto ajudava. Começava a piar, tinha um pio forte. Então, tanto eu quanto o Cacaso, todo mundo ouvia, ficava ouvindo... Então, aquilo ia se transformando e se incorporando e surgindo realmente, surgindo uma linguagem poética que é a que a gente pode fazer. Eu não digo que é grande coisa, ou será uma grande coisa, mas enfim, é a que foi feita. Assim surge essa poesia que, de certa maneira, de certo modo, dá o salto, ela ajuda no salto, e não só as alianças da leitura que já

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vinham sendo feitas. E pego aí o meu livro como referência, que é o Sol dos cegos, o primeiro deles, que uma vez chamei de “caderno de exercícios de um moder­nista tardio”, quer dizer, as influências, as leituras estão todas ali, quer dizer, eu me lembro que a Zulmira Ribeiro Tavares uma vez fez uma crítica muito con­sistente no período. Eu mandei para ela e ela respondeu e disse assim: “É inte­ressante e tudo o mais. Mas isso aí é 1922. Não sei, está muito marcado, por influência da Semana”. Ela não lembra, porque foi uma carta, uma carta que guardo no coração.

Mas, enfim, aí junto dessa influência, vamos dizer assim, nessa busca comum da linguagem eficaz, poética, eficaz, há essa componente que vem das leituras. Mas há também essa componente que vem dos contemporâneos, que é realmente fundamental. Por que são seus companheiros de viagem, são seus irmãos, as pessoas que estão ali trabalhando aquilo que, no fundo, aquele fluxo de linguagem, é comum a todos, é uma obra coletiva. No início a poesia perde sua individualidade, e depois torna a ganhar com as peculiaridades de cada um. E nesse salto a poesia de Roberto teve uma influência fundamental, como vocês vêem. Quem conhece a minha poesia, vê, para vocês que leram o Cacaso, por exemplo, também. Vejam, os poemas desse livro são inclusive anteriores aos da segunda parte do meu Passatempo, aos poemas de Exemplar proceder. O Cacaso nesse período não escrevia nada. Ele tinha me falado num encontro que tive­mos, num almoço, quando fui apresentado a ele... ele tinha deixado a poesia. Achava que não tinha sentido ser poeta e fazer poesia. Não tinha o menor sen­tido porque diminuía, ninguém se interessava. E sobretudo não era uma ques­tão só de leitura. Ninguém escrevia nada que interessasse, inclusive ele próprio; o que fazia era uma chateação para os outros e para si mesmo. Então ele tinha deixado. Mas vejam este poema:

BUSCA

Me disse que era cabeleireira

mas logo descobri que era empregada.

Eu queria que segurasse o meu pinto

porém na face ela me beijou.

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Onde está o verdadeiro amor:

na fúria do dese jo sexual

na volubilidade desenfreada

ou no conceito sublime da família?

O ritmo desse poema, o conceito, a imaginação, o conceito foi muito para o Cacaso, e ele pegou e aproveitou. E o ritmo também, os versos quebrados, os planos em que os versos se correspondem, tudo isso aparece muito vivo em determinados poemas do Cacaso. Já a experiência distingue, a sensibilidade amorosa de Cacaso é diferente, é diferente.

Tem um outro também aqui muito bonito, chama-se “Jura”.

JURA

Vou me apegar muito a você

vou ser infeliz

vou lhe chatear

Isso é uma maravilha! Nem Roberto Carlos faz uma coisa como essa... Bom, no que me toca, é só pegar... Tem vários, todos esses que acabei de ler

também viajam pelos meus poemas afora, tem o “Dieter Denglet, german born, us fighter pilo f . É igualzinho, quer dizer, sendo diferente, inclusive no inglês, por­que isso é um objet trouvé.

O inglês do poema de Roberto é legítimo, inglês de americano. O meu, faço uma colagem. Chama-se “Job inscription”, está no Passatempo também. É um objet trouvéy mas o inglês é meio “macarrónico”, um inglês brasileiro de um sujeito que está pedindo emprego, numa situação de humilhação cabal. Mas os recursos são muitos parecidos.

Bom, eu só leria mais um poeminha aqui dele. Não tem título, e começa com “como um bicho enjaulado”; é o primeiro verso.

Como um bicho enjaulado

penso em telefonara uma amiga

em sair a passeio, em paquera

no parque, em telefonara um amigo

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em ler um romance, em ligar

o rádio, em irá privada

em jantar embora tenha almoçado

há duas horas, tudo tudo

menos ficar aqui sentado escrevendo

é a impaciência de viver a tarde

vitalidade nada, é resistência contra

o livro que há sete anos quero

escrever para inscrever meu nome

entre os mortos tranqüilos e famosos

sou um exemplo, exemplo de uma piada

e estes versinhos, que salvam o dia.

O b o m da história é que os versinhos foram escritos e o livro tam bém .

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Eso si es que no1 ou Três tristes tigres2

José Almino

Não havia lugar para sentar— apenas conseguimos nos espremer até

o corredor abarrotado, apertado, sobretudo com mulheres — mas eu

não escutei reclamação da parte de H enry James. Em algum lugar do

rio o barco parou por alguns minutos e uns poucos passageiros desce­

ram. Com certeza, eu insisti com James, nós poderíamos aproveitara

oportunidade e escapar também, mas não, James não queria ouvir

falar disso. Nós devemos ir até o amargo fim “por razões científicas”, me

disse ele.0

Graham Greene

De que serviu a minha vida é questão que ultrapassa o limiar da minha consciência: permanece como um ruído de fundo, me desorientando e perse­guindo, um mecanismo de cobranças e ressentimentos vagos, mas tenazes, sobre os quais cabe somente um comentário banal: são frutos desses caminhos desconexos que trilhei e não escrevi; talvez porque o escritor latino-americano

[ seja] o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam corn insistência. Lê

o tempo todo e publica de vez em quando.4Se eu tivesse cometido um crime (por que não cometi um crime?), ou

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algum outro gesto ordenador, provavelmente tudo seria mais claro. Em vez disso, morri eu, em algum momento da década de 70, porque, como declararia Cabrera Infante muito tempo depois, e pouco antes de morrer: a morte organiza as coisas. Disse isso e passou incontinenti ao ato.

Vejo-me agora assim — a dar cabriolas de volatim5 — , paródia, de mim mesmo e tentando organizar os fatos, antes uma anedota de um período crucial para nós: o Professor, o Pedro Guedes e eu. Com alguma dificuldade, concedo desde o início, porque fui e provavelmente ainda permaneço um homem de monólogos, às vezes soturnos, mas na maioria das vezes autocelebrativos e de narrativas pitorescas aos amigos.

Éramos emigrados políticos, termo pudico e genérico que cobria, no nosso caso, três situações diferentes: eu tinha passaporte e não sabia se poderia voltar para o Brasil; o Professor tinha passaporte, mas a sua volta não seria reco­mendável; quanto a Pedro Guedes, este tinha passaporte e não queria voltar para o Brasil. Refugiados com passaportes eram um paradoxo que pedia uma solução retórica, e passamos a nos denominar emigrados. Assim, mantínhamos a compostura das nossas idéias e a finura conceituai, o que, convenhamos, não era pouco.

Quanto à anedota... Era uma tarde de maio, quando a primavera já se ins­talara e uma indolência suave, que prometia ser eterna, embalava a nossa con­versa. Tratávamos da volta ao Brasil, assunto quase corriqueiro naquele tempo. A visita ao cemitério avivara inquietações sombrias. Aquilo era um imenso depósito de ondas migratórias sucessivas: de poloneses, armênios, espanhóis e judeus — que remontavam quase até meados do século xix. A ana­logia conosco se impunha com brutalidade. Mas Pedro Guedes recusava a comparação e negava-se a participar da discussão. Reagia apopléctico como um personagem eciano: quicava e gritava “que a mim não haverão de agarrar por aqui”, “que não era personagem de La gu erre est jinie'\" “que eu volto, eu faço e aconteço”.

Talvez, em outras circunstâncias, cada um de nós poderia ter pensado como Nabuco: Sou antes uni espectador do m eu século do q u ed o m eu país; a peça

é para m im a civilização, e se está representando em todos os teatros da hum ani­

dade, ligados hoje pelo telégrafo. Mas, tudo nos gritava em outro tom. Éramos apenas três pobres hom ens da Póvoa de Varzim, três tristes tigres, escolhendo uns

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docinhos na vitrine de uma confeitaria, logo depois do almoço: limão, maçã ou, uma minha preferida: gatean basque, feito com massa mais grosseira, que lem­brava a contextura de uma empada nacional nossa.

O Professor nos observava divertindo-se. Eu e Pedro Guedes tínhamos partido caminho, por força Deus sabe do quê, já que saímos dos mesmos lugares, passeamos pelos mesmos livros e causas, até um ponto avançado das nossas vidas. Mas, a um dado momento, era como se ele adotasse a lente do poder e da pecunia para ver o mundo e as coisas, e eu houvesse me recolhido à galhofa e à melancolia. Não chegávamos a ser incompatíveis, às vezes éra­mos até complementares; naquela ocasião: quase xipófagos em crise, entre amuos e irritações.

Por essa época, passei a fazer versos como esses:

Ê fácil ser brasileiro.

Basta juntar:

a multidão suada,

o perfum e barato das lojas

e a vida a retalho

que cutuca o ser

nos seus bons-bocados.

Depois de uma longa espera, espantava-me tão parco resultado: fatura tar­dia do modernismo, ou, no parecer do Professor: um documento doído e instru­

tivo de um fim de linha histórico.

Pedro Guedes planava em outros ares. Procurava a teoria, algo que o levasse além do Livro i do Capital e o colocasse em altura comparável à alcançada pelos economistas neoclássicos, nos seus rigores de formalização. Embrenhara-se no estudo da controvérsia de Cambridge, andava de um lado para o outro com o livrozinho de Morishima,8 perdia-se nas demonstrações do “problema da trans­formação”, sonhava com um grande modelo que unisse as decisões microeco- nômicas à reprodução ampliada do capital.

A sua imaginação superava, em muito, o seu empenho, e provavelmente a sua capacidade. Um dia, atrapalhado com a matemática, impacientou-se: “Se não der certo, volto ao Brasil pra dar palpite”.

Page 361: Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

Mas a questão do retorno ao Brasil já havia sido resolvida pelo Professor, depois que acabamos as tortas: “Não é um país onde se é feliz, mas existem outras coisas na vida, além de ser feliz”. Sobre o quê, eu, ainda que morto, tenho lá as minhas dúvidas.

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Notas

APRESEN TAÇÃO (p p . 9 ~lo)

1 . 0 seminário foi gravado em v h s e pode ser consultado no arquivo do Instituto de Estu­dos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

PARTE I ---- A N Á L IS E DA OBRA

OLHARES PERIFÉRICOS! A TEO RIA E ST É T IC A DE ADORNO NO BRASIL (p p . 2 2 - 3 2 )

1. “Olhares periféricos: A teoria estética de Adorno no Brasil” foi escrito em inglês para um público conhecedor da tradição crítica de Frankfurt, mas sem o conhecimento do contexto latino- americano. O ensaio foi publicado na sua versão original em Max Pensy (ed.), Globalizing critical theory, Landham: Rowman and Littlefield, 2005.

2. Neil Larsen explica as razões para este fenômeno em seu texto publicado neste volume (“Por que ninguém consegue entender Roberto Schwarz nos Estados Unidos?”).

3. Fredric Jameson, “Third World literature in the era of multinational capitalism”, Social Text,v. 10, n. 15, outono 1986.

4. Refiro-meaqui não somente ao debate iniciado nas páginas do Social Text nos anos 1986- 87, entre Jameson e Ahmad, mas também à maneira como ele continua a definir os limites da nossa busca das respostas a perguntas sobre a produção literária que ocorre fora da metrópole. Os antigos discípulos de Jameson continuam a aderir a possíveis defesas da posição delineada por ele na Social Text (cf. Imre Szeman,“Who is afraid of national allegory? Jameson, literary criticism, globalization”, South Atlantic Quarterly, 100:3, verão 2001), enquanto idéias mais interessantes,

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como as de Franco Moretti sobre o estudo da literatura mundial (cf. “Conjectures on world lite­rature”, New Left Review, 1, jan./fev. 2000), sem razão se definem vis-à-visàs afirmações feitas (ou não) por Jameson sobre a questão. É justo dizer, no entanto, que a responsabilidade pelo provin­cianismo do debate não cabe por inteiro a Jameson, mas às expectativas do público leitor que exi­gem referência a este debate.

5. Abordei esta questão em “National culture, globalization and Post-War El Salvador”, Comparative Literature Studies, v. 41, nö 1, University Park: The Pennsylvania State University Press, 2004.

6. Uma versão deste subcapítulo apareceu como uma introdução a Critical theory in Latin

America. Edição especial de Cultural Critique, v. 9, primavera 2001, pp. 3-6.7. Roberto Schwarz, “Adequação nacional e originalidade crítica”, in Seqüências brasileiras,

São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 40.8. Este ensaio foi traduzido para o inglês como “A seminar on Marx”, Hopscotch, v. 1, na 1,

1999.9. Roberto Schwarz, “Adequação nacional e originalidade crítica”, in Seqüências brasileiras,

op. cit., p. 28.10. Roberto Schwarz, “Complexo, moderno, nacional e negativo”, in Q ue horas são?, São

Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 188-99.11. Shierry Weber Nicholsen, Exact imagination, late work. On Adorno's aesthetics, Cam­

bridge: m it Press, 1997, p. 5.12. Lisa Lowe e David Lloyd (eds.), The politics o f culture in the shadow o f capital, Durham,

NC: Duke University Press, 1997.13. Michael Mann, “As the Twentieth century ages”, New Left Review, 214(1995): pp. 104-24.14. Robert Kurz, D er Kollaps der M odernisierung: Vom Z usam m enbruch des Kasernenso­

zialismus zur Krise der Weltökonomie, Frankfurt: Eichborn Verlag, 1991. E, mais recentemente, seu Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang a u f die Marktwirtschaft, Frankfurt: Eichborn Ver­lag, 2000.

QUEM HERDA NÃO FURTA (p p . 33~4 3 )

1.0 texto reproduz minha comunicação na sessão “Herança teórica” no seminário “Crítica materialista no Brasil: a obra de Roberto Schwarz”, exposta em 24/8/2004 na Faculdade de Filoso­fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para manter-me dentro do tempo, na ocasião deixei de lado as observações finais do texto.

2. Todas as citações provêm de Roberto Schwarz, “Memorial”, texto datilografado, s.d.(1990), pp. 3,4. Agradeço a Flávio Moura, que amigavelmente me forneceu uma cópia do“Memo- rial”.

3. Cf. L. Waizbort, “Erich Auerbach im Kontext der Historismusdebatte”, in K. Barck e S. Weigel, Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen, Berlim: Kadmos Verlag, 2007.

4. Max Weber, “Die ‘Objektivität’ sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkennt-

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nis”, in Gesammelte Aufsätze zur Wissen schüft sieh re ,' Y ii b i n ge n: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1988[19041,7“ ed., p. 166.

5 .0 próprio René Wellek dá bom exemplo disso, ao i ronizar “his [ isto é, de Auerbach ] secu­lar religion of historicism”. René Wellek, “Auerbach and Vico”, in Lettere Italiane, ano 30, nfi 4, out./dez. 1978, p. 466.

6. Cf. L. Waizbort, “Erich Auerbach sociólogo”, in Tempo Social, v. 16, na 1,2004, pp. 61-91.7. Cf. Georg Lukács, “Der historische Roman”, in Werke. Probleme des Realismus III, Neu-

wied/Berlim: Luchterhand, 1965 [ 1937], p. 99.8. Cf. Erich Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur,

Tübingen/Basiléia: Francke, 9ä ed., 1994 [1946], p. 447.9. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do

romance brasileiro, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34,2000 [1977], 54 ed., pp. 165-6.10. Cf. Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2- ed., 1981, pp.

171-2. É possível, portanto, atestar desde pelo menos o inicio dos anos 60 uma leitura de Mimesis

por Roberto Schwarz, e o assunto, como não poderia deixar de ser, era o realismo. Se esse primeiro livro de Roberto congrega uma série de estudos em que o problema do realismo aflora com toda a força, parece legítimo considerá-lo como uma espécie de propedêutica à discussão do realismo na literatura brasileira, isto é, a Ao vencedor as batatas (e sua continuação).

11. Auerbach, Mimesis, op. cit., pp. 444-5.12. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado deAssis, São Paulo:

Duas Cidades, 1998,3® ed., p. 213.13. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, op. cit., pp. 145-6.14. Cf. Roberto Schwarz, “Machado de Assis: um debate”, in Novos Estudos Cebrap, nfi 29,

1991, p. 81.15. Cf. Roberto Schwarz, “Um crítico na periferia do capitalismo”, disponível em <in

www.revistapesquisa.fapesp.br> (entrevista publicada originalmente em Pesquisa Fapesp); cf. Antonio Candido, O albatroz e o chinés, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 135.

16. Roberto Schwarz, “Entrevista com Roberto Schwarz”, in Literatura e Sociedade, n“ 6, 2001-2, p. 28.

17. Antonio Candido, Literatura e sociedade, São Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha, 2000, 811 ed.,p. 13.

PRESSU PO STO S, SALVO ENGANO, DOS PRESSUPOSTOS, SALVO ENCANO (pp. 4 4 -5 3 )

1. Theodor Adorno, “Palestra sobre lírica e sociedade”, in Notas de literatura /, São Paulo: Editora 34,2003, p. 66.

2. Roberto Schwarz, O pai de família e outros estudos, São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 93.3. Theodor Adorno, Prisms (traduzido por Samuel e Shierry Weber), Cambridge: mit Press,

5“ ed., 1990.4. Ibid., p. 272.5. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo: Editora 34,2000, p. 13.

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6. Roberto Schwarz, Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 30.7. Entrevista a Eva Corredor, republicada em Literatura e Sociedade, na 6,2000, pp. 14-37.8. Entrevista publicada na revista Cult, n° 72,2003, pp. 8-12.9. Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, p. 15.10. Roberto Schwarz, “Conversa sobre Duas Meninas”, in Seqüências brasileiras. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999, p. 233.11. Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de‘Dialética da malandragem’”, in Que

horas são?, op. cit., p. 13012. Paulo Arantes, Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, São Paulo:

Paz e Terra, 1992.13. Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, Franfkfurt a. M.: Suhrkamp, 1982, p. 4214. Roberto Schwarz, O pai de família e outros estudos, op. cit., pp. 11-20.15. Roberto Schwarz,“Cultura e política, 1964-1969”, in O pai de família e outros estudos, op.

cit., p. 61.16. Roberto Schwarz, “Um seminário de Marx”, in Seqüências brasileiras, op. cit., p. 86.17. Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, op.

cit., pp. 113-48.18. Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’ ”, in Que

horas são?, op. cit., p. 146.

O CHÃO E AS N U V E N S: ENSAIOS DE ROBERTO SCHW ARZ E N T R E AR TE E C IEN C IA (p p .5 4 -6 5 )

1. Roberto Schwarz, A sereia e 0 desconfiado, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965; O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; Q ue horas são?, São Paulo: Com­panhia das Letras, 1987; Seqüências brasileiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

2. Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, in Notas de literatura I (trad. Jorge de Almeida), São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34,2003 [ 1958], p. 16.

3. Ibid., p. 18.4. Cf. Roberto Schwarz, “Anatol Rosenfeld, um intelectual estrangeiro”, in O pai de família,

op. cit., pp. 99-109; “Primeiros tempos de Anatol Rosenfeld no Brasil”, in Que horas são?, op. cit., pp. 79-82; “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, op. cit., pp. 113-48 (no qual repontam diversas referências à presença de Anatol na vida de Roberto, no trabalho de recep­ção de Brecht no país e na cultura brasileira da época).

5. Id., “Utopia”, in O pai de família, op. cit., pp. 97-8. Ver também “Contra o retrocesso”, in Seqüências brasileiras, op. cit., pp. 239-45.

6. Id., “Primeiros tempos de Anatol Rosenfeld no Brasil”, loc. cit., p. 80.7.“Comentando o contraste na obra de Weber entre o arbitrário das tipologias e a concre­

ção do resultado, diz Marcuse:‘Esta concreção é o resultado do domínio de um material imenso, de uma amplitude de conhecimentos hoje inconcebível, de um saber que pode se permitir as abstrações porque é capaz de distinguir entre o essencial e o inessencial, entre realidade e

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aparência’” (id.,“Pressupostos, salvo engano, de‘Dialética da malandragem”’, in Que horas sao?,

op. cit., p. 153).8. Id., “Cultura e política, 1964-69”, in O pai de família, op. cit., p. 61.9 .0 teor deste comentário não se aplica às análises de Roberto sobre a obra de Machado de

Assis, cujo esquema explicativo exigiria outros requerimentos de apreciação e juízo.10. Ibid., p. 65.11. Ibid., p. 66.12. “Aliás, este fundo de imagens tradicionais é muitas vezes representado através de seus

decalques em radionovela, opereta, cassino e congêneres, o que dá um dos melhores efeitos do tro- picalismo: o antigo e autêntico era ele mesmo tão faminto de efeito quanto o deboche comercial de nossos dias, com a diferença de estar fora de moda; é como se a um cavalheiro de cartola, que insis­tisse em sua superioridade moral, respondessem que hoje ninguém usa mais chapéu” (ibid., p. 75).

PARA USO DO PRÓXIMO (pp. 66-7 7 )

1. Sérgio Milliet, De ontem, de hoje, de sempre, São Paulo: Livraria Martins, 1960, pp. 136-7.2. Sobre o assunto, nada melhor que a“fenomenologia” do desenvolvimento e suas fantás­

ticas criações feita por Fernando Novais e J. M. Cardoso de Mello,“Capitalismo tardio e sociabili­dade moderna”, in História da vida privada no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 4.

3. Hélio Oiticica, “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtivi- dade”, in Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 50.

4. Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-69”, in O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

5. Polyana Canhête e eu discutimos essa questão no livro que publicamos sobre o assunto: Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores, São Paulo: Boitempo, 2004.

6. In Pesquisa Fapesp 98, abril de 2004, p. 14.7. Fernando Novais e J. M. Cardoso de Mello,“Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”,

op. cit, p. 605.8. Sobre Clima, ver o depoimento de Antonio Candido, “Clima”, in Teresina, etc.., Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1980.9. Cf.“Originalidade da crítica de Antonio Candido”, Novos Estudos CEBRAP, nu 32, março

de 1992, pp. 33-4.10. In Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Rio de janeiro: Paz e Terra/Embrafilme,

1980, p. 77.1 1. Paulo Arantes, Sentimento da dialética, Rio de Janeiro: Paz e Ierra, 1 S)92, p. 16.12. Gilda de Mello e Souza,“ Paulo Hmílio: a crítica como perícia”, in O baile das quatro artes:

exercícios de leitura, São Paulo: Duas Cidades, 1980.13. Roberto Schwarz,“Sobre as três mulheres de três imm’ös”, in O pai de familia e outros estu-

dos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 (escrito em 1974), p. 129.14. Roberto Schwarz,“Fim de século”, in Seqüências brasileiras, São Paulo: op. cit, pp. 157-8.15. Para uma análise brilhante do estado atual da “cultura” e sua moda recente, ver Paulo

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Arantes, “Sofística da assimilação”, Praga: Estudos M arxistas, São Paulo: Hucitec, agosto de1999, n2 8.

16. Roberto Schwarz, “Fim de século”, in Seqüências brasileiras, op. cit., p. 162.17. Roberto Schwarz, “O livro audacioso de Robert Kurz”, in Seqüências brasileiras, op. cit.,

p. 183.18. Ibid., p. 187.

EM BUSCA DO NARRADOR: TRAÇO S DO P E N SA M EN T O DO JOVEM SC H W A R Z (pp. 78-94)

1. Um exemplo dessa visão está no extraordinário ensaio “Literatura e subdesenvolvi­mento”, de Antonio Candido, por exemplo quando liga imediatamente uma coisa e outra, vida rural & atraso & regionalismo: “A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimen­são regional como objeto vivo” (A educação pela noite, São Paulo: Atica, 1989, p. 159).

2. Não é pinimba pessoal, mas vale citar, como ponto de vista contrário, o mesmo e grande Candido, no mesmo ensaio: “Os melhores produtos da ficção brasileira foram sempre urbanos”

(A educação pela twite, op. cit., p. 161).3. “Dialética da malandragem”, publicado pela primeira vez na Revista do Instituto de Estu­

dos Brasileiros na 8, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1970. Candido, imagino, terá lido o ensaio de seu aluno Roberto antes de escrever o seu.

4. Seqüências brasileiras, op. cit., p. 178.

SOBRE QUE HORAS SÃO? (pp. 96 -IO7 )

1. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Ao longo do texto, os números de página entre parênteses se referem a esta edição.

2. É bem no estilo de Mário de Andrade a dedicatória de Schwarz a Antonio Candido no livro O pai de família e outros estudos (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2- ed., 1978): “ao meu mestre- açu Acê”. Por sua vez, a de A sereia e o desconfiado (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2- ed., 1981) diz: “A Anatol Rosenfeld e à memória de meu pai, Johann Schwarz”.

3. Vejam-se a este respeito as considerações de Schwarz sobre a divisão do trabalho intelec­tual na universidade: “Levar a sério uma forma literária como esforço de conhecimento ou pro- blematização é do pior efeito, se não for como ilustração de uma lei da lingüística”. Por outro lado, no campo materialista, não há menor pobreza quando “o crítico dispõe de um esquema socioló­gico, a que a obra serve de confirmação” (pp. 145-6).

4. “Grande Sertão: A fala”, in A sereia e 0 desconfiado, op. cit., pp. 39-40.0 ensaio foi escrito em 1960.

5. “Sobre as três mulheres de três pppês”, in O pai de família e outros estudos, op. cit., pp. 131 -2.

AO ESCRITOR AS BATATAS (pp. II7 -23)

1.“Cultura e política, 1964-1969 — Alguns esquemas”, in O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Ierra, 1978.

Page 369: Um crítico na periferia do capitalismo Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz

2. Apud Francisco Alambert,“Para uso do próximo”, neste mesmo volume.3. Paternalismo esclarecido

A Roberto Schwarz

Estou virando o meu pai.

Descobri faz algum tempo, quando sentei um dia cansado e dei por mim com seus olhos fecha­

dos, sua testa enrugada, desenrugada...Eu, que dele não gosto nem desgosto, não tenho dó nem ódio, que levei uma vidapra pensar nele,

sempre temi esse dia, por não saber o que achar.

Acho que já posso morrer.

4. Desde que li a peça que lhe pregaram (cf. “Revisão e autoria”, in O pai de família e outros

estudos, op. cit.), já não sei se nosso autor pode gabar-se de ser inteiramente sua A lata de lixo da

história — Farsa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.5. Corações veteranos, Rio de Janeiro: Coleção Frenesi, 1974.0 poema, dos últimos, começa

com o seguinte verso: “Como um bicho enjaulado”.6. Roberto Schwarz, “Conversa sobre Duas Meninas”, in Praga: Estudos Marxistas, São Paulo:

Hucitec, 1998, n2 5.7. Título de resenha nossa (in Praga: Estudos Marxistas, São Paulo: Hucitec, 1997, n2 4) ao

livro Duas meninas, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.8. Como se percebe, o escritor dilatou ad nauseam quase o “instante cafajeste” da literatura

brasileira de que fala Schwarz ao tratar d ’A pata da gazela, de José de Alencar (in Ao vencedor as

batatas, São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 47). O esquete dialogado de “Capitu”, de Arara bêbada

(Rio de Janeiro: Record, 2004), traz a heroína choramingando junto ao filho escurinho, de cabelo pixaim, tanto a condição de exilada quanto as saudades dum Escobar negão (para ficar no léxico do autor). Outro conto,“Capitu sou eu”, do livro homônimo (Rio de Janeiro: Record, 2003,3Jed.), conta a história de uma“professorinha de letras”, partidária da inocência de Capitu, que se envolve com o cafajeste da classe. Depois de abandonada, vai fazendo pateticamente de tudo pra reaver o amor perdido. “E, última tentativa de reconquistar o seu amor, acaba de publicar na Revista de

Letras um artigo em que sustenta a traição de Capitu.// A sonsa, a oblíqua, a perdida Capitu. Essa mulherinhaà-toa”(p. 18].

9. Um mestre na periferia do capitalismo— Machado de Assis, São Paulo: Duas Cidades, 1990, p. 227. Grifo do autor.

10.“[...] foi um exemplo bonito e interessante de colaboração literária. Gledson leu muito bem Ao vencedor as batatas. A partir daí elaborou uma interpretação completamente original de Casa velha, que me tocou duplamente, porque o trabalho era muito bom, e porque antecipava o que eu tencionava fazer. Meu plano era estabelecer, num primeiro passo, a lógica dos romances de Machado de Assis da fase inicial e, depois, explorar o tema da transição para a fase dos grandes romances. Casa velha é o livro estratégico para estudar essa transição. F. uma pequena obra-prima, que vinha sendo subestimada, um livro no qual Machado superava, de modo rigoroso e ponto por ponto, as fraquezas da ficção do primeiro período. Gledson percebeu claramente tudo isto e escre­veu o essencial do que eu pensava escrever.// Vocês vejam como o processo crítico é associado e objetivo. Uma vez que um esquema analítico está em andamento, todos que tenham pressupos­

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tos mais ou menos parecidos tendem a chegar a resultados semelhantes. Considerando que por meu lado eu também aproveitei dos achados de John, acho que se trata de um caso sugestivo de colaboração crítica” (Idem).

11. A crítica dialética “supõe obras e sociedades muito estruturadas, com dinamismo pró­prio. Trata-se de enxergar uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de refletir a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa idéia de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte — talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a idéia de arte mudou, e é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desapare­cendo...” (“Um crítico na periferia do capitalismo”, entrevista concedida a Luiz Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura, revista eletrônica da Fapesp, edição 98, de abril de 2004. Disponível em: <www. revistapesquísã.fapesp.br>).

12. Cf. “Crítica de intervenção”, debate transcrito na revista Rodapé — Crítica de Literatura Brasileira Contemporânea (São Paulo: Nankin, 2004, n2 3) e que contou, além da de Roberto Schwarz, com a participação de Iná Camargo Costa, Iumna Maria Simon, que coordenou a mesa, José Antonio Pasta Jr. e Paulo Arantes.

13. Ver, de Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, in A educação pela noite e outros ensaios, São Paulo: Ática, 1989,2â edição.

14. Ibid., p. 155 (seção 4).15. Acerca da centralidade da cultura em tempos globalitários, convém acompanhar os

vários escritos, solo ou em conjunto, de Paulo e Otilia Arantes, os quais vêm tratando, ora direta, ora indiretamente, da “economia política da cultura” (na justa expressão dos ensaístas).

16. Confesso que o ensaio-bomba explodiu o livro que mais amava da literatura brasileira. Libertei-me, graças a ele! Já outros, mais casmurros, preferiram continuar apegados a santos e bentinhos.

ANATOL ROSENFELD, FIGURA DE ROBERTO SCHWARZ (p p . I 2 4 - 3 j )

1. O pai de família e outros estudos, São Paulo: Paz e Terra/Secretaria do Estado da Cultura, 1992 [1978],

2. Ibid., p. 102.3. Um gênero como o do texto em questão, em que obrigatoriamente se acionam recursos

não de representação, mas os necessários para ativar relações essenciais num objeto preexistente, para torná-lo visível (conforme um intuito das vanguardas históricas), pode por vezes, nas oca­siões em que obtém êxito, falar muito mais à nossa sensibilidade de modernos do que gêneros mais literários — quando nestes não se obtém êxito. Isso equivale a dizer: sentimos o êxito num e nou­tro caso como tendo os mesmos pressupostos.

4 .0 pai de familia e outros estudos, op. cit., p. 101.5.0 caso aparece em out ro relato de Roberto Schwarz,"Primeiros tempos de Anatol Rosen-

telil no Brasil ”, in Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 79.

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6. O pai de família t’ outros estudos, op. cit., p. 101.7. “Didatismo e literatura (Um folheto de Bertha Dunkel)”, in O pai de família e outros estu­

dos, op. cit., p. 51. A personagem, como se sabe, é ficticia, mas essa ficção traduz de forma bem- humorada, já pelo nome, as convicções de Roberto Schwarz nesse período.

8. O pai de família e outros estudos, op. cit., p. 102.9. Ibid., p. 103.10. Essa será a posição de Adorno, pelo menos, como expressa na Dialética negativa.1 1 .0 pai de família e outros estudos, op. cit., p. 107.12. Ibid., pp. 103-4.13. Ibid.14. Ibid., p. 105.15. Ibid.16. Ibid., p. 106.17. “Tribulação do pai de família”, in O pai de família e outros estudos, op. cit., p. 24.18 .0 que estaria dentro dos propósitos de Bertha Dunkel, a de 1922, em meio à República

de Weimar, e a “traduzida” em 1968: ascese da forma e assassinato.1 9 .0 pai de família, op. cit., p.107.20. Além da influência de Thomas Mann e de autores importantes para este, como Schope­

nhauer, Roberto Schwarz destaca a da ontologia de Nicolai Hartmann, que, lembra, era dos filó­sofos modernos o único considerado pelo Lukács da última fase. Opai de familia, op. cit., p. 107.O irracionalismo de Schopenhauer e Nietzsche e a tendência à dissolvência formal do roman­tismo alemão eram em Anatol, como em Thomas Mann, postos em confronto com o raciona­lismo de Goethe e Kant, por exemplo. A ambas as perspectivas dava razão e as punha em ironiza- ção recíproca. Nesse sentido, Lukács lhe pareceria mesmo unilateral em seu classicismo e exasperação contra pulsões de morte pequeno-burguesas, grande-burguesas ou aristocráticas. Mas, para o autor de História e consciência de classe, o problema não era se aparecessem como con­teúdo social. O problema era quanto à herança de formas, ao que ameaçasse as chances de trans­missão do que havia de melhor da cultura ocidental burguesa à classe operária no momento de sua formulação sobre si mesma. Pois nesse autor o ponto de fuga de sua luta pela emancipação da arte de todo vínculo mítico (o que inclui a crítica dura àquelas que pareceriam não lhe opor resistên­cia) é a república solar do proletariado emancipado; para Adorno, como as chances de fazer do destino história foram suspensas e habitamos o mito, aquele vínculo, que a arte de vanguarda, quebrando um tabu, traz à tona, não pode ser negado sem que se reproduza a desrazão da ordem social. Nessa “honra” prestada ao mito, talvez Rosenfeld concordasse mais com Adorno, embora certamente não compartilhasse todos os pressupostos e conseqüências dessa honra. Tanto que, como Lukács, não era cético (seu posterior marxismo brechtiano o confirmará) quanto às possi­bilidades de intervenção.

Para um apanhado das influências filosóficas de Rosenfeld, ver de J. Guinsburg,“Homena­gem a Anatol Rosenfeld”, in J. Guinsburg e Plínio Martins Filho (orgs.), Sobre Anatol Rosenfeld,São Paulo: Com-Arte/Bartira, 1995.

21.“Psicologia profunda e crítica”, in Texto/Contexto /, São Paulo: Perspectiva, 1996. Tanto a discussão como o artigo parecem muito delirantes. Talvez não seja justo que sirvam para exem­plificar os equívocos de exegeses apoiadas na psicanálise. Qualquer teoria pode ter um uso dani-

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nho. Mas o crítico está chamando a atenção para análises unilaterais, em que o método tem mais prioridade que o objeto.

22. Ibid., p. 115.23. Ibid., p. 117.24. Ibid.25. Veja-se ainda a seguinte descrição: “Quando Rosenfeld falava, não estávamos diante de

um professor da USP, de assessor da fap esp o u de um livre-docente, estávamos diante de um argu­mento”. A rejeição de tudo o que saía da jurisdição do argumento é muito virtuosa, mas também faz rir um pouco por ter aquela inflexibil idade dos lunáticos, em outros termos, aquela “rigidez de caráter” que H. Bergson vê nos tipos cômicos. Mas esse é só um aspecto do centauro Rosenfeld, outra imagem com que Roberto se refere a ele no texto que estamos analisando (p. 103). O comen­tário inicial está em outro depoimento de Schwarz, “O intelectual independente”, in Sobre Anatol Rosenfeld, op. cit., p. 95.

26. Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in O pai defamília e outros estudos, op. cit., p .69.

27. Ibid., p. 64.28. “Anatol Rosenfeld, um intelectual estrangeiro”, p. 109. Lembre-se que foi justamente em

1965 que Rosenfeld publicou O teatro épico, baseado sobretudo nos pressupostos brechtianos do teatro narrativo, embora com um ponto de vista bastante... distanciado. O mesmo que aproxima surpreendentemente (para mim, ao menos) Claudel de Brecht.

29. “O cinema e Os fuzis”, in O pai de família e outros estudos, op. cit., p. 29.

COM ROBERTO SCHWARZ DEPOIS DO TELEJORNAL (p p . I 3 8 -4 5 )

1. A sereia e 0 desconfiado, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, lâ edição.2 .0 pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, l4 edição.3. Corações veteranos, Rio de Janeiro: Coleção Frenesi, 1974, P edição.4.0 que não impede Roberto de usá-la eventualmente no livro. Algumas me parecem quase

casuais, outras, não. Mas há no bloco 3 de “Canções do exílio” o seu emprego em grande estilo, uma estocada crítica que surpreende pelo engenho e astúcia; vem com certo sabor de vingança (pelo tema? pelas afetações poéticas?) disfarçado em suave ritmo de balanço: 3 — “Divagações no cais”: “Há fuga de capitais/devido à medidas policiais/ nesta não acredito mais/onde estais/que não nos acha­cais/ meus sentimentos nacionais/ diluem-se mais e mais/ estranha essa paz/ o que será que preparais”.

PARTE I I ----QUESTÕES EM COMUM

A TEORIA DA CISÃO DE GÊNEROS E A TEORIA CRÍTICA DE ADORNO (pp. I6 8 -8 0 )

1. Regina Becker-Schmidt.2. Ver, por exemplo, Irmgard Schultz, Der erregende Mythos vom Geld. Die neue Verbindung

von Zeit, Geld und Geschlecht im Ökologiezeitalter. Frankfurt: Campus, 1994.

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3. M ax H orkheim er e Theodor W. A dorno,“Dialetik der Aufklärung”. In: Max Horkheimer,

Gesammelte Schriften (vol. 5), Frankfurt: S. Fischer Verlag, 1973, pp. 56-7.

4. Andrea Maihofer, Geschlecht als Existenzweise, Frankfurt: Helmer, 1995, p. 111.5. Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 95.6. Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 16.7. Adorno emprega a imagem da “garrafa lançada ao mar” (Flaschenpost) para concluir o

ensaio “Schoenberg e o progresso”, in Filosofia da nova música, uma metáfora para as razões que conduziram ao movimento da vanguarda musical do início do século xx em Viena ao mesmo tempo que permanece excluído da prática social. [N. T.]

8. Robert Kurz.9. Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 132.10. Irmgard Schultz, op. cit.1 1 . Theodor W. Adorno, Einleitung in die Soziologie, Frankfurt: Suhrkamp, 1993, pp. 46-7.12. Beck.13. Horkeimer e Adorno, op. cit., p. 135.14. Theodor Adorno, Gesammelte Schriften (vol. 5), Wissenschaftliche Buchgesellschaft:

Darmstadt, 1998.15. Theodor Adorno, Minima Moralia. Reflexionen aus einem beschäfigten Leben, Fran-

kurt/Main: Suhrkamp, 1983, p. 166.16. Regina Becker-Schmidt.

S O B R E “ V E R S O S P A R A O R E T R A T O D E H O N O R É D A U M I E R ” ( p p . l 8 l - 6 )

1. Os poemas de Baudelaire traduzidos neste capítulo foram extraídos do livro As flores do mal, trad., introd. e notas de Ivan Junqueira, P ed. especial, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 (quarenta anos, quarenta livros).

Vers pour le portrait de M. Honoré Daumier. Celui dont nous t’offrons VimageJ Et dont Part, subtil entre tousj Nous enseigne à rire de nous,/ Celui-là, lecteur, est un sage.// C ’est un satirique, un moqueurj Mais Vénergie avec laquelle/ IIpeint le Mal et sa séquelle,/ Prouve la beauté de son avur.H Son rire nest pas la grimace! De Melmoth ou de Méphisto/ Sous la torche de l'Alecto/ Qui les brule, mais qui nous glace.// Leur rire, hélasl de la gaitél N ’est que la douloureuse charge,j Le sien rayarme, franc et large,/ Comme un signe de sa bonté! (Baudelaire, CEuvres completes, éd. Claude Pichois, Paris: Gallimard, 1975, t. i, p. 167).

2. Si tu nas fait ta rhétorique/ Chez Satan, le rusédoyenj Jettel tu n'y comprendrais rien,/ Ou

tu mecroirais hystérique. ( Idem, (Etivres completes, op. cit., 1. 1, p. 137.)3. Idem, CEuvres completes, op. cit., 1. 11, p. 526.4 . Ne suis-je pas un faux accord/ Dans la divine symphonic,/ Gràce à la vorace IronieI Qui me

secoue et qui me morcPJ [...]/ Je suis la plaieet le couteauH Je suis lesoufflet et la joue!/ je suis les mem- bresetla roue,/ Et la victime el le bourreauH Idem, CEuvres completes, op. cit., 1.1, pp. 78-9.)

5. Idem, CEuvres completes, op. cit., t. n, pp. 556 e ss.

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1. S. Eisenstein, “Sirva-se!” in A forma do filme, Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 87.2 . Id.,“Fora de quadro”, op. cit., p. 35.3. Cf. Marc Silberman (org. e trad.), Bertolt Brecht on film and radio, Londres: Methuen,

2000. Partes 3 (Filme de três vinténs) e 5 (Kuhle Wampe), ambas publicadas originalmente em 1932. Há também uma tradução francesa, no volume Ecritssurla littemtureet fart 1: sur le cinéma, Paris: L’Arche, 1970.

4. Um estudo sobre o Processo encontra-se em Steve Giles, Bertolt Brecht and the critical theory: marxism, modernity mid the threepenny lawsuit, Berna: Peter Lang, 1997. Sobre Kuhle Wampe, existe o trabalho de Uma Esperança de Assis Santana, O cinema operário na República de Weimar, São Paulo: Unesp, 1993. E sobre implicações de maior alcance, ver José Antonio Pasta Júnior, Trabalho de Brecht, Sao Paulo: Ática, 1986.

5. Mas no roteiro do filme que Brecht escreveu e a empresa descartou há urna nota de rodapé sugerindo que no meio do processo ele se deu conta disso também: “Deste ponto em diante dei­xamos de acrescentar sugestões adicionais porque a certa altura entendemos que nos iludíramos a respeito dos que as seguiriam para realizar o filme. Imersos em nossos trabalhos, tínhamos esquecido: já estávamos em setembro de 1930”. Cf. B. Brecht, “The Bruise — A threepenny film”, in Marc Silberman, op. cit., p. 137, nota 17.

6. Mais especificamente, o mercado cinematográfico ficou dividido em quatro regiões: a empresa alemã Tobis passou a controlar a Europa Central e a Escandinávia; as americanas War­ner e Fox (já sob o controle do capital financeiro, em particular os grupos Morgan e Rockefeller), Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, índia e União Soviética. A Inglaterra ficou dividida entre americanos (75%) e alemães (25%). O resto do mundo ficou na categoria “territó­rio livre”. Cf. David A. Cook, A history of narrative film, Nova York/Londres: Norton & Co., 1990, 2l edição, especialmente o capítulo 7: “The Coming of Sound, 1926-1932”.

7. Cf. Michel Marmin,“Les années pionnières (1900-1918)”, in Claude Beylie (org.), Une histoire du cinéma Français, Bolonha/Paris: Larousse, 2000.

8. Anatol Rosenfeld lembra que a existência deste público foi essencial para o cinema se constituir como tal:“O cinema [...] não teria eventualmente ultrapassado o estágio de mera curio­sidade e de instrumento científico para reproduzir o movimento se a sua invenção não tivesse coincidido com o desenvolvimento de um grande proletariado demasiadamente pobre para fre­qüentar o teatro e os espetáculos não mecanizados” (A. Rosenfeld, Cinema: arte e indústria, São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 63).

9. Um bom exemplo do repertório antigo restaurado pelo filme de longa metragem é A dama das camélias, em sua versão muda de 1921 e depois sonora em 1936. Comparar as duas ver­sões com qualquer curta do período anterior é um bom exercício de cálculo de perdas e danos.

10. A análise minuciosa, do ponto de vista lógico, dos desentendimentos entre Brecht, a Nero Filmes e depois o tribunal que julgou o processo está em Steve Giles, op. cit.

11.0 texto publicado (cf.“The Bruise”, op. cit.) tem material suficiente para imaginarmos o grau da diversão.

12. Brecht chegou a sugerir que os novos roteiristas adaptassem então o texto de John Gay, The Heggar’s Opera, como ele mesmo fizera, mas a empresa não abriu mão do direito que comprara

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de filmar a versão dele, já em alemão, o que não significava economia de algibeira, principalmente numa circunstância em que tempo é dinheiro.

13. Cf. Brecht,“The Threepenny Lawsuit”, op. cit. As demais citações não serão destacadas, a menos que se refiram a outros textos.

14. A discussão sobre quem teria maiores prejuízos foi decisiva para a sentença. Um dos argumentos do tribunal é mortalmente revelador: como a empresa já investira 800 mil marcos nas filmagens e as modificações que Brecht reclamava implicariam dobrar o investimento, o “senso de justiça” recomendava aplacar as aflições do capital.

15. Eisenstein no texto já citado, e depois Walter Benjamin, na Obra das passagens, mostram que a industrialização da literatura é fato consolidado desde o início do século xix.

16. Cf. Walter Benjamin, “O autor como produtor”, in Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1985.

17. Recado de Brecht para os que, por outro lado, sucumbem ao fetichismo da tecnologia: “Por enquanto só têm apoio os desenvolvimentos técnicos que favorecem o capital. Se alguém inventar uma lâmpada capaz de durar dezenas de anos, sua patente será comprada para impedir a sua fabricação” (B. Brecht, Me Ti, Livre des retournements, Paris: L’Arche, 1978, p. 20).

18. Brecht, Me Ti, op. cit., p. 77.19. Muito antes do golpe do cinema sonoro, os estúdios de Hollywood, aperfeiçoando a

receita francesa da Companhia Pathé, já controlavam toda a cadeia produtiva: produção, distri­buição e exibição. Os executivos dos escritórios de distribuição naturalmente contavam com os préstimos de profissionais nativos em cada centro importante. Para se ter idéia de como o capital não brinca em serviço, até no mercado brasileiro, raquítico por definição, o cartel americano tra­tou de se instalar com o nome de Associação Brasileira de Cinema. Isto em 1932, sob os auspícios do governo Vargas. Cf. André Gatti, “Distribuição”, in Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, (orgs.), Enciclopédia do cinema brasileiro, São Paulo: s e n a c , 2000, p. 175.

20. Um tópico que não pode ser desenvolvido aqui diz ainda respeito aos profissionais da censura, que nos Estados Unidos se tornaram oficialmente parceiros voluntários da produção cinematográfica, em aliança com as distribuidoras, através de acordo negociado em 1909 que resultou na primeira agência de censura americana (cf. David A. Cook, op. cit.).

21. Não há como saber se Brecht tinha conhecimento da relação determinante entre a fun­dação da Academia das Artes e Ciências do cinema em 1927, o golpe do cinema sonoro e a criação do Oscar para premiar os “achados” técnicos que antes de mais nada significavam economia de matéria prima. Na fundação da Academia afirmou-se o objetivo de estimular o aperfeiçoamento técnico do cinema e em suas primeiras edições o Oscar foi para o executivo de montagem que des­cobriu a possibilidade de eliminar um quadro por seqüência para encurtar a metragem das cópias e acelerar a velocidade dos filmes. (Cf. David A. Cook, op. cit., p. 307 e nota à p. 326.).

22. Está em Obra das passagens a exposição das razões econômicas da receita da “peça bem- feita”: Scribe contratava operários-escritores para escreverem as peças que assinava, assim como fazia Dumas Pai com seus romances. Anotação de Walter Benjamin: “Scribe descobriu que o segredo do sucesso dos homens de dinheiro consistia em fazer os out ros trabalharem para nós [...] e ficou várias vezes milionário”. Apud Susan Buck-Morss, Dialética do olhar, Belo Horizonte/Cha­pecó: Ed. u f m g /Argos, 2 0 0 2 , p. 177.

23. Ainda Brecht: Para chegar ao mercado, uma obra de arte precisa ser submetida a uma

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operação específica que a divide em seus componentes. Em certa medida, os componentes entram no mercado separadamente. Por exemplo: pode ser usada como literatura sem o seu significado, com outro significado ou sem nenhum significado. Sua tese original pode ser desmontada e remontada em uma que seja socialmente aceitável e em outra que só alcança o mercado como rumor. O conteúdo pode receber uma forma diferente ou a forma pode receber um conteúdo inteira ou parcialmente diferente; forma verbal e forma cênica podem aparecer uma sem a outra e assim por diante. Em resumo, a canibalização é completa.

24. A empresa que estava financiando o projeto avisou que o filme não seria comercial por­que não havia mais a ameaça comunista na Alemanha

25. No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin cita a seguinte opinião do reacionário George Duhamel sobre o cinema e seu público: “Trata-se de uma diversão de párias, um passatempo para analfabetos, pessoas miseráveis, aturdidas por seu trabalho e suas preocupações... um espetáculo que não requer nenhum esforço, que não pressu­põe nenhuma implicação de idéias, não levanta nenhuma indagação, que não aborda seriamente qualquer problema, não ilumina paixão alguma, não desperta nenhuma luz no fundo dos cora­ções, não suscita qualquer esperança a não ser aquela, ridícula, de um dia virar star em Los Ange­les”. Cf. Os pensadores: Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 25.

26. Marx insiste em que não se deve apresentar a produção capitalista como algo que ela não é, como por exemplo produção que tem por finalidade imediata a satisfação ou a criação de meios de satisfação de alguma necessidade; seu objetivo imediato e motivo determinante é produção de mais-valia. Cf. K. Marx, O capital (tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe), São Paulo: Abril Cultural, 1983, vol. m,tomo l,p. 185.

27. K. Marx, A ideologia alemã, São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 56. Grifo meu.

DE RELÓGIOS, BÚSSOLAS E SEXTANTES----PERGUNTAS A ROBERTO SCHWARZ (pp. 2 0 0 - l l)

1. Esse argumento é desenvolvido, com diferenças, por Fred Licht no livro Goya: the Origins of the Modern Temper in Art, Nova York: Harper and Row, 1979. Devo a indicação desse texto a Roberto Schwarz.

2. Essa questão é mais desenvolvida por Rosario Assunto no livro V antichità come futuro— studio suir estetica del neoclassicismo europeo, Milão: Mursia, 1973.

3. Ver “Machado de Assis: um debate”, in Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n“ 29, março de 1991, pp. 62-3.

4. Ibid., p. 62.

O MUNDO TEM AS CARAS QUE PODE TER (pp. 212-25)

1. Ver Roberto Schwarz, “8 Vi de Fellini”, in Revista Civilização Brasileira, na 1, março de 1965. Texto reproduzido em A sereia e o desconfiado: ensaios críticos, São Paulo: Paz e Terra, 1981, 2a edição.

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2. Ver Roberto Schwarz, “O cinema e Osfuzis”, Revista Civilização Brasileira, n“ 9-10, setem­bro de 1966. Texto reproduzido em O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

3. Ver Roberto Schwarz, “O fio da meada”, Folha de S.Paulo, 26/1/1985. Texto reproduzido em Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

4. Este é o nome que a teoria do cinema dá à configuração própria dos meios materiais e sociais que presidem a experiência de produção e recepção dos filmes. Em muitos casos o dispo­sitivo não se refere somente ao aparato técnico; é o cinema em sua engrenagem maior de institui­ção social, vetor do imaginário.

5. Ver Jean-Jacques Courtine & Claudine Haroche, Histoire du visage: exprimer et taire ses émotions (X W — débutXIX siécle), Paris: Editions Payot 8c Rivages, 1994.

6. 0 texto de Balász é de 1923, e está incluído em seu livro Theory of Film, Nova York: Dover,1970.

7. Para uma análise da dimensão histórica da fisionomia numa construção literária, ver o comentário de Roberto Schwarz à cena de Pai Goriot, de Balzac, a mesma que Erich Auerbach ana- lisa no seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Integrada em seu per­curso de leitura do romance, a observação de Roberto acentua o que falta na análise de estilo feita por Auerbach: a articulação da mesquinhez do ambiente e da figura de Madame Vauquer com uma condição de “barateamento” pequeno-burguês que tem data e não teria lugar antes na história. O filólogo alemão descreve, com a usual precisão, o que termina por entender como a manifestação do “demoníaco” na pensão de Madame, interessado que está em assinalar o “realismo atmosférico” e os traços românticos no estilo de Balzac. Nesta direção, a fisionomia assumiria a condição de um dado substancial de caráter, o que marcaria a presença residual, no Balzac fisionomista, da teoria de Johann Lavater (de quem ele foi leitor). Digo residual porque, no romancista, nos termos de Auerbach, há o ajuste da figura a seu ambiente e circunstância, a articulação de corpo e cenografia, não simplesmente o dado fisionômico tomado como imagem de uma disposição inata. Ver Roberto Schwarz, “Dinheiro, memória, beleza (O Pai Goriot)”, in A sereia e o desconfiado, op. cit.; Erich Auerbach, Mimesis, São Paulo: Perspectiva, 1970. Sobre Balzac e a fisionomia, ver Regine Bor- derie, Balzac, peintre des corps: La Comédie Humaine ou les sens des détails, Reims: s e d e s - v u e f , 2002, e Christopher Rivers, Face Values: physignomical thought and the legible body in Marivaux,Lavater, Balzac, Gautier and Zola, Madison: University of Wisconsin Press, 1995.

GRACILIANO E A DESORDEM (p p . 2 2 6 -3 9 )

1 . Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1997,2a reimpressão, p. 161.2. Vale ressaltar que uma “dialética da malandragem” estaria presente em outras obras, de

outros momento, por exemplo em Macimaíma ou mesmo em Gregório de Matos, como apontou o próprio Candido.

3. Cf. Roberto Schwarz,“ Pressupostos, salvo engano, de ‘ Dialética da malandragem’ ”, in Que horas são7., op. cit., pp. 129-55.

4. Nas Memórias, o herói, Leonardo, é cedo deixado pela mãe, em seguida pelo pai, ficando assim entregue aos mimos do Padrinho, que faz vistas grossas para as confusões que apronta o

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candidato a devoto. Como todos lembramos, o Padrinho quer vê-lo clérigo, mas uma espécie de “sina” lança-o desde sempre à carreira de malandro. Leonardo, conforme demonstra Candido, é atraído ora para uma ordem momentânea, promissora, ora para a desordem, sucessivamente. Outras personagens também vão e vêm, dando dimensão coletiva para tal dinâmica dentro do setor intermediário da sociedade — sem que o ângulo narrativo faça nenhum juízo moral sobre um ou outro pólo. Finalmente Leonardo “estaciona” na ordem, mas, nesse momento, o leitor já se deu conta da intimidade profunda entre ordem e desordem. Como se sabe, Leonardo casa-se com “moça boa”, “de família”, e recebe heranças — bases materiais e sossego para seguir na vida ociosa, de malandro, agora dentro da mais perfeita ordem.

Vale lembrar, inclusive para o contraponto com Machado de Assis, a observação feita por Roberto: à suspensão do juízo moral no livro corresponde uma suspensão da ótica de classe que este veicula. Cf. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’ ”, op. cit., p. 132.

5. Edu Teruki Otsuka discute, em tese de doutorado, aspectos da violência na estrutura do livro (esta talvez uma contrapartida de tal plano alegre da malandragem). Quando este artigo foi entregue para publicação, a tese ainda não tinha sido defendida. Cf. Era no tempo do rei: a dimen­são sombria da malandragem e a atualidade das Memórias de um sargento de milícias, Tese de dou­torado, São Paulo: f f l c h - u s p , 2005.

6. As citações de Vidas secas foram retiradas de: Graciliano Ramos, Vidas secas, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965,13a ed.

7. A projeção num outro que leva a efeito a violência contida no homem submisso à ordem, desafiando, com a contrapartida violenta à margem, a pessoalidade escorada em cargos institu­cionais, está também em Fogo morto, nas fantasias que mestre Zé Amaro nutre com relação ao can­gaceiro Antônio Silvino. É de se lembrar que Zé Amaro nutre ódio pelos homens da lei, os quais chama de “polícia de bandidos”.

8. Cf. Antonio Candido, “50 anos de Vidas secas”, in Ficção e confissão, Rio de Janeiro: Edi­tora 34, 1992, pp. 102-8.

9.“E andavam para o sul metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias [...] Chegariam a uma terra desco­nhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá” (p. 159).

10. Estas seriam o primeiro passo de um livro que pretende escrever na cadeia.11. As citações de Angústia foram retiradas de: Graciliano Ramos, Angústia, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1953,6- ed.12. Antes do crime, Luís da Silva era solidário com miseráveis de todo tipo — seu Ivo, va­

gabundo e bêbado, aliás, é considerado por ele um de seus poucos amigos. Depois do assassinato tornam-se, como diz,“criaturas que não suporta” (embora continue amigo de seu Ivo). Parece que a desordem interior faz ver insuportável a desordem à sua volta, como no referido delírio, em que todos viriam exigir-lhe algo.

13. Sob a ótica de Luís da Silva, Julião, que comete abusos e caminha por toda parte “como se estivesse em casa, pisando em chão pago”, aparece quase todo o tempo como um sujeito mais potente do que ele. Depois de matá-lo, entretanto, Julião lhe parece um espelho,“uma excrescên­cia miserável” (p. 217). Sobre a imagem de Julião como duplo do narrador, ver Antonio Candido, “Os bichos do subterrâneo”, in Tese e antítese, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, pp. 95-118.

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14. De outro lado, a labilidade entre ordem e desordem num extrato social miserável, repre­sentada pela figura do cangaceiro — que, pela desordem sanguinária, quer reverter a ordem, fazendo “o sertão virar mar e o mar virar sertão” —, é vista por Luís da Silva como falência da civi­lização. Não há, nem sequer como havia para Fabiano, como vingança fantasiosa, redenção cole­tiva possível. A certa altura do livro, o funcionário identifica-se com o guarda civil, que apenas apita quando vê algo fora de lugar, e após o assassinato volta a se ver como alguém inerme diante da desordem que o cerca e habita. Quando imagina o triunfo de uma revolução socialista, o sonho também não é de libertação: seria acusado por ter servido aos poderosos, escrevendo artigos, sub­metendo-se — e seus dotes de escritor de nada serviriam numa “revolução sem vírgulas e sem tra­ços” (p. 180).

15. A formulação foi feita por José Antonio Pasta Jr., lembrando Hegel, na banca examina­dora do mestrado de leda Lebensztayn sobre Caetés (Caetés, os incapazes de propriedade, disserta­ção defendida 26/3/2003).

O CRÍTICO E OS ARQUITETOS (pp. 24I-54)

1. Houve precedentes: Mário de Andrade, ocasionalmente; Mário Pedrosa, sistematica­mente — para mencionar duas referências maiores. Cito os críticos “não-arquitetos” — os que nos interessam quando apontam a relevância da arquitetura — pois, para os arquitetos, eviden­temente, a arquitetura desde sempre é um “problema central”.

2. No posfácio a Pedro Arantes, Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefè- vre, de Artigas aos mutirões, São Paulo: Editora 34,2002, p. 232.

3.0 texto foi reeditado em Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre, São Paulo: Cosac Naify,2006. Baseio-me aqui na afirmação do próprio Sérgio, em nota publicada no mesmo livro, por ocasião dos trinta anos deste seu artigo que marcou a história da arquitetura paulista.

4. Dele participavam com regularidade, além de Roberto e Sérgio, Ruy Fausto, Lurdes Sola, Emir Sader, João Quartim de Moraes, Célia e Zé Chico Quirino dos Santos, Albertina e Cláudio Vouga e Emilia Viotti da Costa (segundo informações dadas ao autor por Roberto e Emilia).

5. Segundo depoimentos ao autor de Roberto, Sérgio, Célia e Zé Chico.6. Foi publicada em 1980 em Arte em Revista, São Paulo: CEAC/Kairós, n. 4 e republicada em

Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre, São Paulo: Cosac Naify, 2006.7. Publicado em Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.8. 0 esboço do ensaio, escrito em 1968-9 e sua versão final, de 1976, estão republicados em

Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre, São Paulo: Cosac Naify, 2006.9. Reconstituo a trajetória de Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo l.etèvreem Arquitetura

nova, op cit., e procuro avaliar algumas conseqüências do “legado” dos três, nas experiências que se seguiram à“abertura”e ao fim da ditadura militar.

10. Ver Sérgio Ferro, “A produção da casa no Brasil” (1967-8), reeditado pela Cosac Naify, 2006; e Francisco de Oliveira, Critica a razão dualista (1973), reeditado pela Boitempo, 2003.

11. Ermínia Maricato, Indústria da construção epolítica habitacional, tese de doutorado, i a u -

USP, 1983.12. Ermínia Maricato (org.),A produção capitalista da casa ( eda cidade) no Brasil industrial,

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São Paulo: Alfa-ômega, 1979. Ermínia participa também com o texto “Autoconstrução, a arqui­tetura do possível”.

13. Sobretudo Ascher e Lacoste, mas também Lojkine, Lipietz e Topalov, entre outros.14. Em A cidade do pensamento único, Petrópolis: Vozes, 2000.15. Adoto aqui e em outras passagens algumas das interpretações de Otilia Arantes em sua

resenha “Pobre cidade grande”, do livro de Ermínia Maricato, em Urbanismo em fim de linha, São Paulo: Edusp, 1999.

16. Ermínia Maricato, Metrópole na periferia do capitalismo, São Paulo: Hucitec, 1996.17. Mariana Fix, São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, disser­

tação de mestrado em sociologia, f f l c h -USP, 2003.18. Pedro Arantes. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades

latino-americanas, dissertação de mestrado, FAU-USP, 2004.19. Na expressão de Mike Davis, “Planet of Slums”, in New Left Review, Londres, ne 26,

mar./abr. 2004, pp. 5-34.20. “Fim de século”, em Seqüências brasileiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 160.21. A capital mundial da neofavela, o Rio de Janeiro, é também a cidade que implementou

o maior programa de urbanização de favelas do planeta, o Favela-Bairro, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e aplaudido em todos os seminários internacionais.

22. Ver a esse respeito estudo de Márcio Pochman, “Sobre a nova condição de agregado social no Brasil”, citado e comentado por Tânia Caliari em “Quem e quantos são os ricos no Bra­sil”, revista Reportagem, na 61, outubro de 2004.

23. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista - O ornitorrinco, São Paulo: Boitempo, 2003.24. Cf. Pedro Arantes e Mariana Fix, “São Paulo: metrópole ornitorrinco” no jornal Correio

da Cidadania, nfi 383, fevereiro de 2004.25. Cf. “Oração a São Paulo: a tarefa da crítica”, texto apresentado por ocasião da concessão

do título de “Cidadão Paulistano”, pela Câmara de Vereadores de São Paulo, junho de 2003.26. Mariana Fix, Parceiros da exclusão, São Paulo: Boitempo, 2001.27. Cf. Otilia Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único,

Petrópolis: Vozes, 2000.28. Pedro Arantes, O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades

latino-americanas, op. cit.29. Cf. Mike Davis, Cidade de quartzo, São Paulo: Scritta, 1993. Para a variante brasileira do

argumento, ver Tereza Caldeira, São Paulo: cidade dos muros, São Paulo: Editora 34,2001.30. Posfácio em Pedro Arantes, Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefi-

vre, de Artigas aos mutirões, op. cit.

O REGIME DE BACAMARTE (pp. 255-66)

1. Notas de inverno sobre impressões de verão (trad, de Boris Schnaiderman, São Paulo: Edi­tora 34,2000).

2. Roberto Schwarz, A lata de lixo da história, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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3. David Garland,“The meaning of mass imprisonment”, in Punishment & Society, vol. 3! 1), pp. 5-7, Londres: Sage, 2001 , p. 6.

4. Algumas dessas tendências são discutidas em K. Beckett, Making crime pay. Lawandorder in contemporary American politics, Nova York: Oxford University Press, 1997; N. Christie, Crime control as industry: towards gulags, Western style, Londres: Routledge, 1994; D. Garland. The cul­ture of control — Crime and social order in contemporary society, Chicago: The University of Chi­cago Press, 2001; M. Feeley & J. Simon, “Actuarial justice: The emerging new criminal law”, in D. Nelken (ed.), The futures of criminology, Londres: Sage, 1994; M. Mauer e M. Chesney-Lind (eds.), Invisible punishment. The collateral consequences of mass imprisonment, Nova York: The New Press, 2002; L. Wacquant, Leprisons de la misère, Paris: Raisons D’Agir, 1999; L. Wacquant,“From slavery to mass incarceration”, in New Left Review, jan./fev. 13:41-60, Londres, 2002; J. Young, The exclu­sive society. Social exclusion, crime and difference in late lodemity, Londres: Sage, 1999.

5. Cf. Z. Bauman, “Social uses of law and order”, in D. Garland e R. Sparks (eds.), Crimino­logy and social theory, Oxford: Oxford University Press, 2000, pp. 23-45.

6. Nils Christie, Crime control as industry, op. cit., p. 118.7. H. M. Enzensberger, Civil war, Londres: Granta Books, 1994.8. Ibid., p. 47.9. Ver Lo'ic Wacquant,“ Sur quelques contes sécuritaires venu d’Amérique”, Le Monde Diplo­

matique, maio 2002, pp. 6-7.10. Cf. Francisco de Oliveira, “O ornitorrinco”, in Crítica à razão dualista, São Paulo: Boi­

tempo, 2003.1 l .“A nota específica”, in Seqüências brasileiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp.

152-3.12. Ibid., loe. cit.13.“Tira-dúvidas com Roberto Schwarz”, entrevista concedida a A. Fávero et al., Novos Estu­

dos CEBRAP, nc 58, nov. de 2000, p. 55.14. Ibid., p. 63.15. Ibid., p. 67.16. In Seqüências brasileiras, op. cit., p. 241.17. “Fim de século”, in Seqüências brasileiras, op. cit., pp. 159-6018. In Seqüências brasileiras, op. cit., pp. 86-105; avaliando retrospectivamente a experiên­

cia do seminário, o autor retraça o surgimento do tema da reprodução moderna do atraso entre nós em “Um crítico na periferia do capitalismo”, entrevista concedida a L. H. L. dos Santos e M. Moura, Pesquisa FAPESPna 98, abril de 2004, p. 14.

19. Privatização de presídios e criminalidade. A gestão da violência no capitalismo global, São Paulo: Max Limonad, 2000.

DOIS MESTRES: CRÍTICA E PSICANÁLISE EM MACHADO DE ASSIS E ROBERTO SCHWARZ (pp.

2 6 7 -8 9 )

1 . Ver a auto-apresentação de Freud nas “Cinco lições de psicanálise” (1910), conferências apresentadas na Universidade Clark, nos Estados Unidos, em 1909. Ele repete estes mesmos ter­mos na “História do movimento psicanalítico”, em 1914.

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2. Sobre Breuer e Freud, ver a Comunicação Preliminar dos Estudos sobre a histeria (1895), e a carta de Freud a Breuer a respeito, de 1893, em Obras completas, edição standard brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol. li; um bom estudo sobre o assunto é “A verdadeira história de AnnaO.” de John Forrester, em As seduções da psicanálise, Campinas: Papirus, 1990. Segundo Peter Gay, “Breuer foi, provavelmente, a mais decisiva influência no desenvolvimento de Freud como psica­nalista”. Em The Freud Reader, Londres: Vintage, 1995.

3. Antonio Candido encerrou a Formação da literatura brasileira, escrito entre 1945a 1957, com as palavras de Machado de Assis sobre o “sentimento íntimo que torna um escritor homem de seu tempo e de seu país”, para além da mera ênfase no assunto local, e considerou ser este o momento da “consciência real que o romantismo [no Brasil] adquiriu do seu significado histó­rico”. O significado histórico da própria obra de Machado levou também o seu tempo para se configurar plenamente, para muitos, no pensamento de Roberto Schwarz, e, não por acaso, a partir da experiência histórica dos anos 60 do século xx brasileiro. Vou trabalhar aqui principal­mente com três obras de Schwarz: Ao vencedor as batatas, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000,5a edição; Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo: Duas Cidades /Editora 34,2000, 41 edição; e o ensaio “A viravolta machadiana”, encomendado por Franco Moretti para o volumeV da coletânea II romanzo, Turim: Einaudi, e publicado na íntegra em Novos Estudos CEBRAP, ntt 69, julho de 2004.

4. Ver sobre esta acumulação crítica gradual “Esquema de Machado de Assis” (1968), de Antonio Candido, texto posicionado no limite da consciência crítica, que vai ganhar toda sua per­formance em Roberto Schwarz, in Antonio Candido, Vários escritos, São Paulo: Duas Cidades, 1995,3â edição revista e ampliada. Ver também o recente “Leituras em competição”, do próprio Schwarz, em Novos Estudos CEBRAP, n2 75, julho de 2006.

5. Como não poderia deixar de ser, alguns psicanalistas e psicólogos sociais atentaram para o impacto da obra de Schwarz: em 1991, Sérvulo Augusto Figueira tratou a questão como sendo de importância em “Machado de Assis, Roberto Schwarz: psicanalistas brasileiros?” em Nos bas­tidores da psicanálise, Rio de Janeiro: Imago, 1991; o interessante ensaio de Luís Cláudio Figuei­redo, Modos de subjetivação no Brasil, São Paulo: Escuta/Educ, 1994, tem um dos seus centros no trabalho do crítico, que surpreende, orienta e provoca reações, em um mesmo movimento; o mesmo fenômeno ocorre no trabalho de Miriam Chnaiderman, “Existe uma psicanálise brasi­leira?”, em Percurso, São Paulo: Instituto Sedes Sapietiae, n. 20,1998, que tenta reconhecer o per­curso histórico do movimento psicanalítico no Brasil e como ele informa esse movimento em seus centros tradicionais de origem; por fim, Maria Helena Souza Patto realizou um excelente traba­lho sobre a medicina, a psiquiatria e o estatuto ideológico da ciência no Brasil do século xix, com base em Schwarz e na historiografia brasileira e em oposição às leituras abstratas genericamente foucaultianas, não correspondentes ao campo histórico em jogo, em “Teoremas e cataplasmas no Brasil monárquico”, em Novos Estudos CEBRAP, n“ 44, 1996. Por outro lado, uma série muito maior de estudos sobre “fantasias de Brasil” ou “psicanálise e colonização no Brasil”, ou “leituras do sintoma social no Brasil”, ou ainda “Psicanálise em Machado de Assis”, praticamente desco­nhece a construção teórica de Schwarz. De fato, me parece ser esta a posição real do campo psica­nalítico brasileiro em relação aos resultados do trabalho do crítico: desconhecimento generali­zado e, sendo assim, programático.

6. Há um problema de incorporação local da forma romance, anterior a Machado de Assis,

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diante do qual ele se põe em um ponto de síntese e superação, e do uso estratégico de uma litera­tura romanesca européia do século anterior, o xvin, que poderia se dizer menor em relação à grande técnica realista do tempo, e que serve muito à construção do inusitado da forma macha- diana. Ver de Roberto Schwarz o capítulo sobre a importação do romance para o Brasil e suas con­tradições em José de Alencar em Ao vencedoras batatas, e o desdobramento teórico da questão, da assimilação periférica, para o quadro de uma literatura mundial, que Franco Moretti tira desta demonstração, em “Conjectures on world literature”, New Left Review 1, jan./fev. 2000.

7.0 estranho da forma do sujeito machadiano, como veremos, não corresponde ao estranho familiar, o efeito unheimlich, de evocação romântica, estudado por Freud. Sua estranheza desabu­sada e pitoresca tem origens e conexões históricas específicas que dão substrato para sua preg- nante familiaridade, pelo menos para nós, brasileiros.

8. Ver, por exemplo, a presença radical da cultura no sonhar freudiano no capítulo v de A interpretação dos sonhos.

9. “A psicanálise, o último momento da autocrítica burguesa”, na expressão de Adorno em Minima moralia.

10. Há uma tradição recalcada de compreensão desta relação para a consciência pública do Brasil. A obra de Machado de Assis está crivada de referências à natureza do uso social do escravo; Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre iniciaram a avaliação crítica e o reconheci­mento desta ordem da produção social brasileira. Já há uma grande produção a respeito, o que torna ainda mais ideológica a sua baixa circulação. O trabalho de Roberto Schwarz e o mais recente, O trato dos viventes (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), de Luiz Felipe de Alencas- tro, me parecem as conquistas teóricas e historiográficas contemporâneas mais significativas sobre esta nossa matéria subjetivante. O livro de Alencastro descentra novamente nossas veleida­des identitárias, situando-as em um mercado internacionalizado, o do tráfico negreiro, que não corresponde ao território nacional, o ultrapassa e o co-determina, em uma muito densa história negra, que é também, a meu ver, a história de uma constituição subjetiva particular, nacional: “A transparência intermitente de uma matriz colonial que é distinta da unidade nacional brasileira inverte a cronologia e sugere uma seqüência histórica alternada: o século xix está mais perto do XVII do que do xvm. [...] Esta é a a variável de longue duréeque apreende a formação do Brasil nos seus prolongamentos internos e externos: de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterrito- rializado: o contingente principal da mão-de-obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional. A história do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comércio, é longa, mas a história da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento, é curta”. O trato dos viven­tes, op. cit., pp. 353-5.

11. Ver Minima moralia, por exemplo o fragmento 147, “Novissimum Organum”.12.“A viravolta machadiana”, in ¡l romanzo, op. cit., p. 30.13. Joaquim Nabuco foi o primeiro a apontar o problema da longa duração do sistema sim­

bólico, e de interesses, escravista, muito além da marca social insólita da abolição ao fim do século xix. Uma demonstração expressiva desta permanência de fundo em nossa própria vida contem­porânea é o excelente filme de Sérgio Bianchi, Quanto vale ou épor quilo? (2005).

14. A concepção de forma em Roberto Schwarz, para a literatura e para a arte, é simultanea­mente uma concepção sobre a estrutura simbólica e ideológica da própria realidade social, e faz lembrar o interesse dialético de certa psicanálise contemporânea que concebe algo do sujeito

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como existindo nem dentro nem fora de si mesmo, ou simultaneamente dentro efora. Schwarz nomeou a sua concepção de forma de modo mais completo, afora as grandes demonstrações de seus estudos machadianos, em um trabalho sobre a crítica de Antonio Candido, “Pressupostos salvo engano de ‘ Dialética da malandragem’ ”: “Assim, a junção de romance e sociedade se faz atra­vés da forma. Esta é entendida como princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e os da realidade, sendo parte dos dois planos. Sem descartar o aspecto inventivo, que existe, há aqui uma presença da realidade em sentido forte, muito mais estrita do que as teorias literárias costumam sugerir. Noutras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico estuda foi produzida pelo processo social, mesmo que ninguém saiba dela. Trata-se de uma teoria enfática do realismo literário e da realidade social enquanto fo rm a d a Em Esboço de figura, São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 141.

15. Ver, a respeito, “Teoremas e cataplasmas no Brasil monárquico” (Novos Estudos CEBRAP, nfi 44,1996), de Maria Helena de Souza Patto.

16. “Trata-se afinal de contas da urgência apenas subjetiva de reconfirmar um poder, cuja substância é o descompromisso”, Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit., p. 50.

17. “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. [...] Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez ao escravo por lhe tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda nas portas das loias. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imagi­nai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.” Trata-se do impressionante início do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. O sistema simbólico do horror e da crueldade explícita do tempo explica a fantasia da recusa calculada da crueldade extre­mada, própria ao nosso tempo, que deixando de ser diretamente visível no espetáculo da vida social, não deve mesmo existir. Em Obra completa— Machado de Assis, Rio de Janeiro: José Agui­lar, 1959, vol. li, p. 639.

18. Sigmund Freud,“Fetichismo” (1927) e“Clivagem do ego no processo de defesa” (1940). A respeito do negativo de um negativo simbolizante que o objeto fetiche realiza, segundo Freud, ver o ensaio de Giorgio Agamben sobre o fetichismo moderno, “Dans le monde d’Odradek”, in Stanze, Paris: Payot-Rivages, 1998.

19. Nas palavras de Joel Dor a respeito: “O perverso adere a essa convicção contraditória identificada por Freud: uma vez que a mãe faltante só deseja o pai porque ele tem o falo, basta prové-la imaginariamente deste objeto e manter esta atribuição para que sejam neutralizados tanto o real da diferença dos sexos quanto a falta que ela atualiza (...) Continuando a manter o móbil de uma possibilidade de gozo que se libertaria da diferença dos sexos como causa signifi-

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cante do desejo, o perverso não tem outra saída senão aderir ao desafio da lei e à sua transgressão, que são os dois traços mais fundamen tais de sua estrutura”. Joel Dor, verbete “Perversão”, in Pierre Kaufmann (ed.), Dicionário enciclopédico de psicanálise— O legado de Freud e Lacan, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

20. Neste ponto Kafka e Becket parecem avançar, como o periférico Machado de Assis, sobre o grau de reificação, fragmentação, negativização e desumanização que a psicanálise liberal freu­diana, com algum elemento particular de caráter idelista, tem dificuldades em formular.

21. Um mestre naperiferia do capitalismo, op. cit., pp. 146,149-50.22. Adorno e Horkheimer estudaram ao seu modo, e pela primeira vez, Kant com Sade no

ensaio “Juliette ou esclarecimento e moral”, de Dialética do esclarecimento (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985), para demonstrar o limite ideológico do sistema transcendental e sua lei moral, sua fragilidade quase ingênua diante do real eficaz e totalitário da ordem prática da submissão do outro, que subsume de princípio a razão, verdade sempre presente na vida do capital: “A obra do Marquês de Sade mostra ‘o entendimento sem a direção de outrem’, isto é, o burguês liberto de toda tutela”. Sabemos que, na origem de todo o processo da modernidade, foi Diderot, com o diá­logo entre o filósofo e o sobrinho de Rameau, que pela primeira vez confrontou a fragilidade ideal da universalidade dos direitos abstratos do homem e a eficácia real e gozosa do sujeito cínico e cal­culadamente volúvel. Na Europa, até a emergência final do fascismo, diferentemente do Brasil, estas posições diante da vida social estavam algo separadas e em conflito.

23. Por outro lado Lacan percebeu o momento de opacidade subjetivante próprio à obra de arte, recusando-se a operá-la como uma hermenêutica do material própria à psicanálise clássica— como lembra Vladimir Safatle: “Na verdade, devemos estar atentos ao fato de a formalização estética poder aparecer para Lacan como modo de apreensão de objetos que resistem aos proce­dimentos gerais de simbolização reflexiva com sua pressuposição de ampliação hermenêutica do horizonte de ampliação da consciência. Daí afirmações como: ‘aquilo a que nos dá acesso o artista, é o lugar do que não se deixa ver: resta ainda nomeá-lo’. [...] Para Lacan a arte poderia nomear o que não se deixa ver, ao mesmo tempo que guarda sua opacidade. Saímos, assim, da procura freu­diana em fundamentar um horizonte de visibilidade integral das obras através do desvelamento de sua estrutural pulsional de produção, a arte pode aparecer como modo de formalização da irre- dutibilidade do não-conceitual, como pensamento da opacidade”. Assim a arte pode constituir um sentido do sujeito desde sua forma estrangeira ao conceito já reconhecido, exatamente como penso aqui a relação da arte crítica de Machado de Assis com a psicanálise. Ver Vladimir Safatle, “Estética do real: pulsão e sublimação na reflexão lacaniana sobre as artes”, in Gilson lannini, Vla­dimir Safatle e outros (orgs.), O tempo, o objeto e o avesso — Ensaios de filosofia epsicanálise, Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

24. Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit., pp. 215-6.25. Ao vencedoras batatas, op. cit., p. 17. De fato Schwarz está às voltas, ao seu modo teórico,

com seu próprio Kant avec Sade.26. Ver “Observações iniciais”, in Utn mestre na periferia do capitalismo, op. cit.27. “Prólogo”, in Obra completa — Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas, Rio

de Janeiro: José Aguilar, v. 1,1959.28.0 muito interessante psicanalista Cristopher Bollas apontou a vigência de uma análoga

supressão do sentido do outro, alucinação negativa, na leitura do colonizador europeu e seu tra-

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balho de simbolização ideológica do colonizado, o oriental, construída por Edward Said. Uma das diferenças entre o crítico estudioso do orientalismo e o pensamento de Roberto Schwarz está no fato espantoso de que o operador ideológico da supressão e cio apagamento do lugar do outro na vida simbólica brasileira é uma força social interna à nação, e portanto nacional, à própria elite volúvel do país, e não o pólo mais estável do estrangeiro, invasor e colonizador. Na estranha ordem de razões brasileiras é uma força positiva da modernidade constituinte do espaço nacional que desrealiza aspectos essenciais à constituição deste próprio espaço, tornando-o simbolicamente descosido, frouxo, por vezes inexistente. No nosso caso, para tornar as coisas ainda mais difíceis, o estrangeiro sotnos nós, ou, dito de outro modo, o mesmo c o outro, ou ainda na mais precisa das for­mulações, de Paulo Emílio Salles Gomes: “Estrangeiros em nossa própria terra, oscilamos cons­tantemente na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Ver a introdução de Bollas ao livro de Edward Said, Freud e 05 não-europeus, São Paulo: Boitempo, 2005.

29. Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit., p. 51.30. Ver a respeito, de Roberto Schwarz, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, in Duas

meninas, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.31. “A viravolta machadiana”, op. cit., p. 33.32. Estamos às voltas com uma dimensão histórica concreta do desenvolvimento da disci­

plina que Renato Mezan intuiu, mas não desenvolveu, quando escreveu: “[...] o material clínico com o qual Freud depara no final do século xix contém uma forte proporção de sintomas e mani­festações histéricas. Essa difusão de um determinado tipo de perturbação emocional tem a ver com condições que não são emocionais, porém sociais, econômicas, culturais em sentido largo, ligadas à repressão sexual. Se, na mesma época, Freud estivesse trabalhando em Pernambuco, pro­vavelmente não encontraria uma dose tão grande de repressão sexual; a crer em Gilberto Freyre e em outros antropólogos que nos contam sobre os costumes sexuais das casas grandes, talvez encontrasse uma boa carga de sadismo ou de fetichismo, e a psicanálise poderia ter começado a se estruturar a partir do estudo dos sintomas da perversão”. “Sobre a epistemología da psicanálise”, in Interfaces da psicanálise, Companhia das Letras: São Paulo, 2002, p. 444.0 problema que venho apontando é exatamente este, com a diferença que estruturar a psicanálise a partir da perversão e da experiência brasileira implica uma transformação nos próprios fundamentos ideológicos e formais da disciplina, como acontece em Machado de Assis, que busca a forma moderna para nomear o outro sujeito, que Mezan evoca aqui. Outro modo de dizer: a própria psicanálise como ela se formou, levada por um homem como Freud, aqui não seria possível, por nenhuma das suas condições estarem dadas; concretamente possível para operar a outra ordem de razões foi um artista crítico como Machado de Assis, cuja forma realizada, muito outra do que aprendemos, cor­responde mesmo à nomeação da experiência histórica de nossa perversão.

33. Adorno e Horkheimer já haviam demonstrado algo da mesma ordem, no seu estudo da inscrição inconsciente no plano da autoconservação da natureza transcendental da própria razão, no excurso li de Dialética do esclarecimento,“Juliette ou esclarecimento e moral”.

34.0 crítico José Antonio Pasta Jr. tem pesquisa sistemática a respeito desta noção, que des­dobra o sistema da forma de Roberto Schwarz na forma da alegorização, também de substrato social radical, que se observa constantemente na escritura de Machado de Assis. Em 1999 ele apre­sentou tais problemas, concernentes ao Brasil, à Association Freudienne Internationale, umas das associações lacan ¡anas francesas interessadas na América Latina, no trabalho“Changement e idée

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fixe (l'autredans le roman brésilien)”, publicado no Cahier du CREPAI,, 10, Presses Sorbonne Nouvelle. Lá, falando a analistas, com conhecimento de causa sobre o Brasil e algo sobre a psica nálise, ele antecipa muito precisamente algo que reponho neste trabalho. A partir da conjunção de capitalismo e escravidão, que produziu, de um modo ou de outro, a forma volúvel de grande parte dos personagens importantes da literatura brasileira, o crítico deriva um duplo regime de relação do sujeito com a alteridade no Brasil, o da discriminação moderna e o da indiscriminação patriarcal escravista: “Qual é a forma de uma mesma subjetividade que deve conceber a sua dife­rença em relação ao outro e, ao mesmo tempo, não a deve conceber de nenhum modo? Eu diria mesmo, eis a esfinge brasileira, a torção particular do Édipo que nos foi reservada”, op. cit., p. 164. É importante notarmos que esta torção particular do Édipo no Brasil é de radical origem histórica, moderna e específica.

35. “O teste de realidade não parecia importante. É como se coerência e generalidade não pesassem muito, ou como se a esfera da cultura ocupasse uma posição alterada, cujos critérios fos­sem outros— mas outros em relação a quê? Por sua mera presença, a escravidão indicava a impro­priedade das idéias liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo produtivo da vida ideoló­gica. A chave desta era diversa.” Ao vencedoras batatas, op. cit., p. 15.

36. Fica evidente o grau de maturidade emocional diante das estruturas ideológicas patriar­cais, e a correspondente capacidade de pensar, crítica e livre, na duríssima e muito clara descrição e avaliação da formação infantil de Brás Cubas, onde o pai e a família são tratados como uma espé­cie de delinqüentes socialmente legítimos, que formam a criança para operar o específico sadismo à brasileira: “O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa fica aí indicada — vul­garidade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domí­nio do capricho e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”. Memórias póstumas de Brás Cubas, op. cit., p. 427.

37. “A viravolta machadiana”, op. cit., p. 28.

ASC EN SÃ O À BR ASILEIRA (p p . 29 O -4 )

1. Versões menores deste texto foram publicadas anteriormente em Reportagem, n. 36, setembro de 2002, e em Novos Estudos CEBRAP, n" 64, setembro de 2002. Devo o título a Raquel Ima- nishi, na ocasião editora de cultura da primeira, a quem agradeço. Os escritos de Roberto Schwarz tiraram muito de sua força da leitura minuciosa da obra de Antonio Candido. Ainda que alguns estudiosos tenham contribuído para ressaltar essa influencia, notadamente Paulo Arantes em seu Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992), creio que muito ainda está por esclarecer. Numa resenha de Seqüências brasileiras (São Paulo: Companhia da Letras, 1999), procurei assinalar o peso da feição mais negativa de alguns escritos de Antonio Candido sobre a ensaíst ica de Roberto Schwarz, ver.“A parte que nos coube”, em Novos Estudos CEBRAP, n- 56, março de 2000. Vale lembrar que os processos de acumulação crítica interna não são a regra na cultura de países periféricos, conquanto possam existir, como bem sabe o leitor de Formação da literatura brasileira. Contudo, neste texto tentei o caminho inverso, não

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estranho à dialética praticada em alto grau por Roberto Schwarz, e preferi comentar um livro do mestre à luz da obra do discípulo.

2. Antonio Candido, Um funcionário da monarquia — Ensato sobre o segundo escalão, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2002.

3. Ver a respeito Fernando Novais,“Passagens para o novo mundo” in Aproximações— £sfu- dos de história e historiografía, Sao Paulo: Cosac Naify, 2005 [ 1984 ]; e Luiz Felipe de Alencastro,“Le Versant Brésilien de l’Atlantique Sud — 1530-1850”, Anuales ~ / listare, Sciences Sociales, 2,2006, e “O fardo dos bacharéis", Novos Estudos CE li RA P. nJ 19,1987.

4. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo: Duas Cidades, 1990,p. 37.

5. O problema básico da primeira tase machadiana. Ver Roberto Schwarz, Ao vencedoras batatas, São Paulo: Duas Cidades, 1977. Isabel Lustosa nota justamente que “Antonio Candido tem uní estilo analítico machadiano” (“Tolentino, o burocrata”, caderno Prosa e Verso, O Globo, 22/6/2002, p. 2 ).

6. Sobre o significado de Um estadista do Império, ver Luiz Felipe de Alencastro, in Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil— Um banquete no trópico, São Paulo: Editora Senac, 1999, pp.l 13-31. João Cezar de Castro Rocha (“Um anti-Leonardo Pataca", in Jornal do Brasil, caderno Idéias, 20/8/2002, p. 6) faz outro paralelo interessante ao notar que o livro é um comple­mento à série de biografias da História dos fundadores do Império (1958), de Octávio Tarquínio de Souza. Antonio Candido planejou inicialmente fazer o estudo a quatro mãos com Lúcia Miguel Pereira, sua prima, casada com Tarquínio. Atente-se porém que os protagonistas da História atuam no Primeiro Reinado e nas Regências, enquanto o livro de Antonio Candido se dedica, como o de Nabuco, mais ao Segundo Reinado. A diferença não se limita à simples troca de monar­cas num mesmo regime, pois a partir de 1831 o tráfico negreiro, desde a independência assumido como política de Estado, passou a ser considerado crime internacional, colocando o Brasil na lista das nações-piratas, fato que muda bastante o estatuto do par “norma-infração”, que pautava a auto-imagem e a posição relativa do país na ordem mundial. Roberto Schwarz, Um mestre na peri­feria do capitalismo, op. cit., p. 39.

7. Ver a respeito, Luiz Felipe de Alencastro, “Memórias da Balaiada”, in Novos Estudos Cebrap, n. 23, março de 1989, pp. 7-13; e Maria de Fátima S. Gouvêa, O império das províncias — Rio de Janeiro, 1822-1889, Rio de Janeiro: Editora da u f f (no prelo).

8. Antonio Candido, Um funcionário da monarquia, op. cit., p. 68. A fala do deputado remete a um dos pontos principais do programa da “conciliação” (a partir de 1853): modernizar o apare­lho de Estado em nome da governabilidade, acima dos interesses partidários estritos. O artífice- mor da “conciliação” foi justamente Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-56), magistrado, deputado eleito por Minas Gerais, senador, presidente de província, ministro de Estado. Como marquês de Paraná (1854) e líder do Partido Conservador, foi reconhecido em vida como um dos principais nomes da política imperial num tempo em que as reformas políticas procuravam acompanhar a modernização da economia após o fim do tráfico negreiro e a expansão da cafei­cultura.

9. Ibid., p. 81.0 pernambucano maçom Joaquim de Saldanha Marinho (1816-95), mem­bro do Partido Liberal, deputado e senador do Império em várias legislaturas, foi também presi­dente das províncias de Minas Gerais e São Paulo. Posteriormente um dos opositores destacados

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da forma monárquica de governo, formou nas fileiras iniciais do abolicionismo, foi signatário do Manifesto Republicano (1870) e primeiro líder do Partido Republicano. Sua figura é caracterís­tica de um tipo reformador entre as elites brasileiras. “Tradicionalistas e iconoclastas movem-se, em realidade, na mesma órbita de idéias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis pre­servadores do legado colonial [o predomínio do patriarcalismo sobre o interesse público], e as diferenças entre si são unicamente de forma e superfície” (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil Rio de Janeiro: José Olympio, 1986,18* edição, p. 54). É fato conhecido que o movimento republicano beneficiou-se do apoio de antigos escravocratas inconformados com o 13 de maio de 1888. José Almino observa que logo após a abolição, Joaquim Nabuco, monarquista e o grande líder da causa, “revigora os seus ataques ao movimento republicano, no qual identifica elementos de uma ‘reação’ escravocrata”. Ver “Radicalismo e desencanto”, em José Almino de Alencar e Ana Pessoa (orgs.), Joaquim Nabuco — O dever da política, Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Bar­bosa, 2002, pp. 36-7. Dessa reação, participou gente como o barão de Santa Pia, personagem do Memorial de Aires, que se antecipou à lei Áurea e alforriou os escravos de sua fazenda. Perguntado sobre as razões de sua atitude, deu “esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as cousas ou nada: — Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso. [... ] — Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer onde nasceram”. Vinte anos antes da publicação do Memorial o pessimismo histórico de Machado de Assis era duramente condenado por abolicionistas como José do Patrocínio: “Pago o ódio que esse homem vota à humanidade com o meu desprezo... Nunca olhou para fora de si; nunca deparou, no círculo das suas idealidades e reverências, outro homem que não fosse ele, outra causa que não fosse a sua, outro amor que não fosse o de si mesmo... O país inteiro estremece; um fluido novo e forte, capaz de arrebatar a alma nacional, atravessa os sertões, entra pelas cidades, abala as cons­ciências.. . Só um homem, em todo o Brasil e fora dele, passa indiferente por todo esse clamor e essa tempestade... Esse homem é o Sr. Machado de Assis. Odeiem-no porque é mau; odeiem-no por­que odeia a sua raça, a sua pátria, o seu povo...”, citado em “Entusiasta e místico”, in Augusto Meyer, Machado de Assis, 1935-1958, Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, pp. 45-6. Toda essa série de citações revela que a posição periférica do país joga luz de um ângulo inesperado sobre categorias políticas européias, que aqui quase nunca correspondem às respectivas práticas. O republica­nismo liberal não parece o que é e pode ser menos progressista que o conservadorismo monár­quico, o qual por sua vez alimentava um otimismo algo ingênuo sobre o futuro. Longe de uma fria indiferença, Machado de Assis esmiuçou no calor da hora o funcionamento objetivo dessa verda­deira comédia ideológica. Em A pirâmide e o trapézio (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974), Raymundo Faoro provou à exaustão o quanto Machado de Assis, durante muito tempo acusado de alheio às coisas brasileiras, havia descrito minuciosamente a estrutura social do país. Na esteira de Faoro, John Gledson revelou que na ficção machadiana há uma mistura de realismo com interpretação alegórica da história brasileira. Para o crítico inglês, o MemorialdeAires“mos- tra a verdadeira história da Abolição”. Ver John Gledson, Machado de Assis— Ficção e história (São Paulo: Paz e Terra, 1986, pp. 223 e 247-51). Do mesmo autor, ver também especialmente o capí­tulo 3 de Machado de Assis — Impostura e realismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1991). Devemos a José Galante de Souza a identificação de Machado como autor da série de crônicas

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publicadas em 1888-9 na Gazeta de Notícias sob o título “Bons dias!” Nelas, sob pseudônimo, Machado pôde expressar desabusadamente sua própria visão do processo. Ver a análise minuciosa de Gledson, Machado de Assis— Ficção e história, capítulo 3. Na prática, como burocrata do Minis­tério da Agricultura, Machado atuava à sua maneira a favor do abolicionismo. Ver Sidney Cha- loub, Machado de Assis historiador (São Paulo: Companhia das Letras, 2003, capítulo 4). Para uma análise dos pontos nevrálgicos do abolicionismo, ver Luiz Felipe de Alencastro, “De Nabuco a Nabuco”, Folhetim, Folha de S.Paulo, 8/5/1987, pp. B-6-B-8.

10. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, in O discurso e a cidade, São Paulo: Duas Cidades, 1993. Uma comparação entre Leonardo Pataca e Tolentino também é feita por Castro Rocha (op. cit.).

1 1 . Ver do autor a segunda parte de Teresina, efe, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; “Radica­lismos”, in Vários escritos, São Paulo: Duas Cidades, 1995,3* edição, revista e aumentada; e “A situa­ção brasileira”, in Vinícius Dantas (seleção, apres. e notas), Textos de intervenção, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34,2002.

12 José Murilo de Carvalho, “Veredas do poder”, in Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 13/4/2002, p. 10.

13. Ver Robert Kurz, O colapso da modernização, São Paulo: Paz e Terra, 1992. E Roberto Schwarz, “Fim de século”, in Seqüências brasileiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

TROPICÁLIA, PÓS-MODERNISMO E A SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO SOB O CAPITAL (pp.

295-309)

1. Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in O pai da família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 73.

2. Karl Marx, Capital: A critique of political economy, vol. 1 , trans. Ben Fowkes, Nova York: Penguin, 1976, pp. 1019-60.

3. “Cultura e política”, op. cit., p. 83.4. Caetano Veloso, Verdade tropical, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 382-6. A

insistência de Caetano em que ele próprio não via nada de explicitamente político em Roda viva é certamente dissimulada.

5. “Cultura e política”, op. cit., p. 85.6. “Cultura e política”, op. cit., p. 88.7. Guy Brett et al, Hélio Oiticica. Rotterdam: Witte de With, 1993, pp. 121 -6.8. Tropicália ou pañis etcircensis(l96S), Phillips 512089,1993.9. Verdade tropical, op. cit., p. 272.0 terceiro verso reproduz a estrutura de pista falsa dos

dois primeiros. O verso inicial, que fala em “Folhas de sonho no jardim do solar” é uma referência mais ou menos rotineira e deliberadamente “chocante” à contracultura das drogas. Mas a ênfase está nas raízes, e não nas folhas, e nos deparamos com uma imagem de desejos subterrâneos— não fica claro se são malignos ou revolucionários — que procuram permanentemente uma válvula de escape. Enquanto isso, confirmando a ambigüidade da letra, as pessoas na sua sala de jantar têm a última palavra: o refrão acelera na coda, culminando num tipo de repetição frenética das“pessoas

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na sala de jantar” que, antes do que resolver, termina abruptamente numa gravação da própria sala de jantar, onde as pessoas passam pratos umas às outras ao som de “Danúbio azul”.

10. “Cultura e política”, op. cit., p. 74.11. Fredric Jameson, Postmodernism: Or, the cultural logic of late capitalism, Durham, n c :

Duke University Press, 1991, p. 31.12. Essa técnica em sua forma linguística não é nada nova na poesia brasileira. A leitura de

Roberto Schwarz do conjunto de poemas “Postes da Light”, de Oswald de Andrade (o próprio título, contendo a palavra inglesa “light” em referência a uma empresa canadense que operou no Brasil, já encerra as sementes da técnica), desenvolve uma estrutura semelhante. Ver “A carroça, o bonde, e o poeta modernista”, in Roberto Schwarz, Que horas são?, São Paulo: Companhia das Letras, 1987. É possível que seu contato com Tropicália tenha dado a Roberto Schwarz a pista para o modernismo brasileiro— o ensaio sobre o modernismo foi escrito significativamente mais tarde.

O notável aqui é que a Tropicália parece que chegou a esse método independentemente, atestando que essa técnica aparentemente “pós-moderna” é, por assim dizer, congênita à semi- periferia. Caetano Veloso, afetadamente indiscreto a respeito de suas influências, insiste que não sabia nada a respeito de Oswald de Andrade (Verdade tropical, op. cit., p. 155) até o momento em que a semelhança lhe foi apontada pelos concretistas. Ver também “Conversa com Caetano Veloso,” in Augusto de Campos, Balanço da bossa e outras bossas, São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p. 204.

13. Verdade tropical, op. cit., p. 60.14. Reiichi Miura,“On the globalization of literature: Haruki Murakami, Tim O’Brien and

Raymond Carver”, comunicação apresentada na Universidade de Illinois, Chicago, em 19 de março de 2003.

15. Caetano Veloso, Caetano Veloso( 1967), Phillips 838557,2002.16. “Cultura e política”, op. cit., p. 76.17. Postmodernism, op. cit., p. 33.18. Ver a defesa de Carmen Miranda feita por Caetano Veloso, “Carmen Mirandadada”,

trans. Robert Myers e Charles A. Perrone, in Charles A. Perrone e Christopher Dunn, eds., Bra­zilian popular music and globalization, Gainesville: UP of Florida, 2001, pp. 39-45. Em “A banda”, de Chico Buarque, urna banda de músicos passando pode ser vista como alegoria de uma opor­tunidade revolucionária que passou pelo Brasil, mas o fundamento alegórico de urna banda marchando á-toa é decididamente arcaico. Em relação ao comentário de Caetano Veloso sobre o Chico Buarque desse período, sugiro prestar atenção não a suas observações publicadas na imprensa, mas à sua versão de “Carolina”, do próprio Chico Buarque, que forçadamente devolve o pretenso conteúdo político da canção a seu solo alegórico, parecido agora com uma sedução casual e dasapaixonada. A versão de Caetano, que desmascara brutalmente a inocência compla­cente assumida pela voz lírica que “cantou uma centena de versos" para convencer as boas almas da burguesia a se juntar à revolução, requeriría uma atenção maior à que dedicaremos aqui. Mas posso ao menos sugerir que a versão de Caetano explicita o que já estava implícito na voz ama­dora do cantor Chico Buarque: não importa quão nobre o sentimento, o poeta não se importa tanto em expressá-lo. A sedução da garota, a persuasão da burguesia: objetivos valiosos, se pude­rem ser alcançados sem muito esforço. Essa leitura, claro, pressupõe um horizonte “tecnológico” adorniano — a especialização progressiva do trabalho em geral registrada na obra de arte atra-

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vés da competência técnica crescente dos artistas profissionais trabalhando em esferas crescen­temente próximas e coordenadas entre si, que claramente não poderiam ser aplicadas em mui­tos gêneros tradicionais sem que se introduzisse distorções grosseiras. (Mesmo se a exposição desses gêneros à produção técnica dos estúdios de gravação comerciais e a demanda pela máquina de distribuição acabe por abrir — tanto faz — esse horizonte a eles. A questão aqui, no entanto, é se Chico Buarque tem que pagar um preço por evitar esse horizonte, e se isso de fato acontecer, quão caro é.)

19. Tejumola Olaniyan insistiu em que o gênio de Feia Kuti, o criador da música afrobeat, consiste não apenas simplesmente em sua exposição de um “incrível presente” nigeriano, não diferente da imagem tropicalista, mas no seu rigoroso approach ao problema do futuro: “um modo poético que não tolera nenhuma noção do incrível Presente que não seja uma transição”. Tejumola Olaniyan, Arrest the music! Feia and his rebel art and politics, Bloomington: Indiana u p ,

2004, p. 2. Lenine, o músico brasileiro contemporâneo que mais claramente desenvolve a diná­mica tropicalista, oferece uma crítica sucinta à sua principal invenção poética, que poderia ser glo­sada, muito pouco poeticamente, como uma contradição não-dialética: “Este lugar é uma mara­vilha/ Mas como é que faz pra sair da ilha?” (Lenine, “A ponte”, no álbum O dia em que faremos contato).

20. Verdade tropical, op. cit., p. 505. A canção“Manhatã”está em Caetano Veloso, Livro, Poly- Gram 536584-2,1999.

21. Na verdade, as imagens de ianomâmis feitas por Sebastião Salgado conseguem sugerir ao mesmo tempo o antigo ideal romántico da india e o ideal contemporáneo dos direitos huma­nos, que traz seus próprios problemas, diferentes mas não menos profundos. O que se pode ver refletido em muitas das mais horríveis fotografías de Salgado na série “Migrações” — e algumas delas são de fato horríveis — é a própria inocência diante do massacre: deste horror jamais serei responsabilizado. Num primeiro momento, o que geralmente agrada nessas fotografias é sua grande e paradoxal beleza — longe de ser um simples fenômeno, já que representam a miséria humana mais aguda que nosso planeta oferece hoje em dia. Num segundo momento, o que agrada é a própria inocência, e obviamente a própria alegria marca a inocência como algo espúrio. Dizendo mais uma vez, não que o massacre não possa ser representado; mas simplesmente não existe um modo “certo” de fazê-lo, e as imagens tão explícitas feitas por Salgado, por exemplo, dos cadáveres ruandeses tutsis em Rusumo, rolando cachoeira abaixo, nos mostra o massacre com uma crueza que é absolutamente necessária diante do esquecimento exigido pelo noticiário da mídia. Não obstante, pode-se preferir o comportamento da câmera em Trabalhadores, Nova York: Aperture, 1993. Para as imagens dos ianomâmis, ver Sebastião Salgado, Migrations: humanity in transition, Nova York: Aperture, 2000, pp. 251-63.

22. Pode ter sido a própria condição periférica o que permitiu aos tropicalistas reconhecer esse fato antes de todos. Na sua configuração atual, a cultura de massas emergiu com uma rapidez extraordinária no Brasil. Um breve olhar para o desenvolvimento do aparato de mídia mostra que ela cresceu exponencialmente no período que precedeu o Tropicalismo, rapidamente ultrapas­sando o desenvolvimento infra-estrutural convencional. Por volta de 1970, apenas 12,8% dos domicílios na Bahia tinham água encanada, 22,8% tinham eletricidade, mas 36,6% tinham rádio, que poderia ser compartilhado; os números para São Paulo são, respectivamente, 58,5%, 80,4% e

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80,4%. Ver Christopher Dunn, Brutality garden: Tropicália and the Emergence of a Brazilian Coun- terculture.Chapel Hill: University of North Carolina P, 2001, p. 45.

23. Ver Roberto Schwarz,“Nota sobre vanguarda e conformismo”, in O pai da família [...], op. cit., pp. 43-8. Na nota de rodapé do texto, a entrevista de Medaglia e outros quatro composi­tores de vanguarda está datada de 1957, o que parece ter sido um erro tipográfico, já que o ensaio de Roberto Schwarz foi escrito em 1967 e certamente não dez anos após o fato.

24. “Conversa com Caetano Veloso”, op. cit., p. 200.25. Paul Simon, Rhythm of the saints, Warner Brothers 26098-2,1990.26. Ihde, Listening and Voice: A Phenomenology of Sound, Athens: Ohio, 1976, p. 159.27. Ver Jacques Attali, Bruits: essai sur Véconomiepolitique de la musique, Paris: Presses Uni-

versitaires de France, 1977.28. Verdade tropical, op. cit., p. 281.29. Ver Brutality garden, op. cit., pp. 90-2.30. Um “samba-provocação” de Gilberto Gil oferece uma leitura simpática de Michael Jack­

son que sugere um tipo de apropriação não irônica aqui descrita: “Michael Jackson ainda resiste/ Porque além de branco ficou triste”. “De Bob Dylan a Bob Marley— Um Samba-Provocação”, no álbum O eterno deus Mu dança, Wea 703698,1989.

31. Essa formulação sugestiva está em Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung: Vom Zusammenbruch des Kasernsozialismus zur Krise der Weltökonomie (Frankfurt: Eichborn Ver­lag, 1991). Para meu argumento, vali-me da glosa muito útil de Neil Larsen em “Poverties of Nation: The Ends of the Earth, ‘Monetary Subjects Without Money’ and Postcolonial Theory”, in Determinations: Essays on Theory, Narrative, and Nation in the Americas, Londres: Verso,2001, pp. 55-6.

PARTE III ----DEPOIMENTOS (pp. 337 ' 4 l)

R e t o q u e s a “A s e r e i a d e s m i s t i f i c a d a ”

1. Depoimento no encerramento (em 27 de agosto de 2004) da semana de homenagem a Roberto Schwarz na f f l c h da u s p .

2. Em boa parte auxiliado por observações críticas de Paulo Arantes.

f r a n c i s c o a l v i m (pp. 3 4 9 -5 7 )

1. Para chamar Castro Alves para nossa conversa.2. Maria Augusta Fonseca,“Inconfidencias poéticas de Elefante”, Literatura e Sociedade, n“ 6,

FFLCH-USP, Departamento de Literatura comparada e Teoria Literaria, 2001-2, pp. 85-104.3. Rasteira é modo de dizer, e modo mal de dizer, pois nunca abandonei Jorge de Lima e, por

vezes, ele contra-ataca e reaparece com sua carga metaforizante. É a ele que devo o brilho baço de meu poema “Elefante”.

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1. Ouvido de passagem, em uma festa no começo da década de 1970.2. Cabrera Infante.3. There was no place to sit— we just managed to squeeze ourselves into a corridor tightly pac­

ked, mainly by women — but I heard no complaint from Henry James. At some place on the river the boat stopped for a few minutes and a few passengers got off. Surely, I urged James, we could take the opportunity and escape too, but no, James wouldn’t hear of it. We must go on to the bitter end. “For scientific reasons’, he told me.

4. Silviano Santiago.5. Machado de Assis.6. Filme de Alain Resnais.7. Eça de Queirós.8. Michio Morishima (1923-2004). Economista ilustre, autor de Marx’s Economics: A Dual

Theory of Value and Growth, 1973.

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Agradecimentos

FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: Dieter Heidemann e Sedi Hirano.

Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo: Alexandre Macedo Ferreira, Ana Paula F. Camargo Lima, Bianca Abbade Dettino, Fátima Faria Gomes, Flávio Gomes de Oli­veira, István Jancsó, Lúcia Elena Thomé e Miriam Leite.

Goethe-Institut São Paulo: Alfred Keller, Carminha Gongora e Joachim Bernauer.Centro Brasileiro de Análise e Planejamento: Oneida Borges Fischetti.Instituto Fernando Henrique Cardoso: Danielle Ardaillon.E mais: Antonio Lizárraga, Dárkon V. Roque, Isabel Loureiro, Leda Paulani, Luiz Henrique

Lopes dos Santos, Maria Augusta Fonseca, Nelson Kon, Roseli M. Coelho, Sálete de Almeida Cara e Samuel Titan.

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Obras de Roberto Schwarz

ENSAIOS

A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

Ao vencedoras batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; São Paulo, Duas Cidades/Editora 34,2007.

O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 1978; 1992.Os pobres na literatura brasileira (org.), vários autores. São Paulo: Brasiliense, 1983.Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987; 2006.Um mestre na periferia do capitalismo— Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990;

São Paulo: Duas Cidades/Editora 34,2006.Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; 2006.Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.Cultura epolítica. São Paulo: Paz e Terra, 2001 (Coleção Leitura).

POESIA

Pássaro na gaveta. São Paulo: Massao Ohno, 1959.Corações veteranos. Rio de Janeiro, Coleção Frenesi, 1974.Poemas em Heloísa Buarque de Holanda, 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Labor do Brasil,

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A lata de lixo da história. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1977.

TRADUÇÕES

Ferdinand Bruckner, Males da juventude (teatro), encenação pelo Teatro Jovcm, 1961. Friedrich Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: Herder, 1963;

24 ed., revista por Márcio Suzuki, Sào Paulo: Iluminuras, 1989.Georg Simmel,“Indivíduoedíade”, in Fernando Henrique Cardoso eOctávio Ianni (orgs.),

Homem esociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1966.Karl Marx,“A ideologia em geral”, in Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (orgs.),

Homem e sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1966.Bertolt Brecht, Vida de Galileu, encenação pelo Teatro Oficina, 1968. São Paulo: Abril, 1977

(Coleção Teatro Vivo).Bertolt Brecht, A exceção e a regra, encenação pelo Teatro da usp, 1968.Theodor W. Adorno, “Idéias para a sociologia da música”, Teoria e Prática, na 3,1968. Albert O. Hirschman, “Sobre Hegel, imperialismo e estagnação estrutural”, Almanaque, n.

9, São Paulo: Brasiliense, 1979.Albert O. Hirschman, “A moralidade e as ciências sociais”, Novos Estudos CEBRAP, vol. 1, n8

1, São Paulo, dezembro de 1981.Ariel Dorfman, “Duas crônicas norte-americanas”, Novos Estudos CEBRAP, na 3, junho de

1982.Bertolt Brecht, A Santa Joana dos matadouros, in Teatro Completo, Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1990 (vol. 4).

L IV R O S T R A D U Z ID O S

Misplaced ideas— essays on brazilian culture. Tradução e introdução de John Gledson, Lon­dres: Verso, 1992.

A master on the periphery of capitalism— Machado deAssis. Tradução e introdução de John Gledson, Durham/Londres: Duke University Press, 2001.

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Sobre os autores e organizadores

A ír t o n Pa s c h o a é escritor e publicou Contos tortos (1999), Dárlin (2003), noveleta porno- política, e Ver navios (2007).

A n a P a u l a P a c h e c o é professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Compa­rada da FFLCH-USP. É autora de Lugar do mito: narrativa eprocesso social nas Primeiras histórias de Guimarães Rosa (2006).

A n t o n io C a n d i d o d e M e l l o e S o u z a é professor emérito da f f l c h - u s p e autor de, entre outros, Formação da literatura brasileira (1959), Os parceiros do rio Bonito (1964) e O discurso e a cidade (1993).

B e n t o P r a d o J r . foi professor emérito d a f f l c h - u s p e professor n a UFSCar. Autor d e , entre outros, Alguns ensaios — Filosofia, literatura, psicanálise (1985), Presença e campo transcendental— Consciência e negatividade na filosofia de Bergson (1988) e Erro, ilusão, loucura (2004).

D o l f O e h l e r é professor de literatura comparada na Rheinische-Friedrich-Wilhelms Uni­versität Bonn. Livros traduzidos para o português: Quadros parisienses. Estética antiburguesa 1830-1848 (1997), O velho mundo desce aos infernos. Auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris (2000), Terrenos vulcânicos (2004).

F e r n a n d o N o v a is é professor titular no Instituto de Economia da u n ic a m p , autor de Portu­gal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808) (1979) e Aproximações — Estudos de his­tória e historiografia (2005).

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F r a n c is c o A l a m b e r t é professor no Departamento de História da f f l c h - u s p e co-autor,com Polyana Canhête, de As bienais de São Paulo. Da era dos museus à era dos curadores (2004).

F r a n c is c o d e O l iv e ir a é professor aposentado do Departamento de Sociologia da f f l c h - u sp

e membro do c e n e d ic - u s p . Escreveu, entre outros, A economia da dependência imperfeita (1984), Os direitos do anti-valor (1998) e Críticaà razão dualista - O ornitorrinco (2003).

F e r n a n d o H e n r iq u e C a r d o s o é professor emérito da f f l c h - u s p , foi fundador do c e b r a p e, entre outras, docente ñas Universidades de Paris e Cambridge. Autor de, entre outros, Dependên­cia e desenvolvimento na América Latina (com Enzo Falleto, 1969), O modelo político brasileiro (1975), Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (2003) e A arte da política (2006). Foi sena­dor, ministro das Relações Exteriores e da Fazenda, e presidente da República por dois mandatos consecutivos.

F ra n cisco Alvim é diplomata e autor de Poemas 1968-2000 (2 0 0 4 ).

I n á C a m a r g o C o s t a é professora aposentada do Departamento de Teoria Literária e Lite­ratura Comparada da f f l c h - u s p . É autora de A hora do teatro épico (1996), Sinta o drama (1998), Panorama do rio Vermelho (2001).

I s m a il X a v ie r é professor do Departamento d e Cinema da e c a - u s p e autor de, entre outros, O discurso cinematográfico (1977), Sertão mar (1983), Alegorias do subdesenvolvimento (1993) e O olhar e a cena (2002).

J o r g e d e A l m e id a é doutor em filosofia, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da u s p , tradutor e crítico literário. Autor de Crítica dialética em Theodor Adorno (2007).

J o s é A l m in o é pesquisador e atual presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa. Autor de Maneira de dizer (1991), O motor da luz (1994), Baixo Gávea — Diário de um morador (1996) e Joaquim Nabuco — O dever da política (com Ana Pessoa, 2002).

J o s é A r t h u r G ia n n o t t i é professor emérito da f f l c h - u s p e autor de, entre outros, Trabalho e reflexão (1983), Apresentação do mundo (1995), Certa herança marxista (2000) e O jogo do belo e do feio (2005).

L a u r in d o D ia s M in h o t o , doutor em filosofia e teoria geral do direito pela u s p , é atualmente professor-visitante da Faculdade de Saúde Pública da u s p e membro do conselho editorial de So­cial & Legal Studies. Autor de Privatização de presídios e criminalidade— A gestão da violência no capitalismo global (2000).

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L e o p o l d o W a iz r o r t é professor de sociologia na u s p ; sobre o assunto escreveu: A passagem do três ao um: crítica literária-sociologia-filologia.

Luís A u g u s t o F is c h e r é professor no Instituto de Letras na u f r g s e autor de, entre outros, Para fazer diferença (1999), Contra o esquecimento (2001) e De ponta com o vento norte (2004).

M a r c e l o C o e l h o formou-se em ciências sociais na f f l c h - u s p e é mestre em sociologia pela mesma instituição. Colabora semanalmente na Folha de S.Paulo desde 1990. É autor de Noturno (1992), Jantando com Melvin (1997) e Folha explica Montaigne (2000).

M a r ia E l isa C e v a s c o é professora titular do Departamento de Letras Modernas da f f l c h -

u s p . Autora, entre outros, de Para ler Raymond Williams (2001) e Dez lições de estudos culturais (2003).

M ic h e l L ö w y é diretor de pesquisa em sociologia do Centre National de la Recherche Scien- tifique (CNRs) e autor de, entre outros, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (1987), Redenção e utopia— O judaísmo libertário na Europa Central (1989), Fatherland or Mother Earth? — Essays on the National Question (1998), Estrela da manhã: Surrealismo e marxismo (2002) e Walter Benjamin: Aviso de incêndio (2005).

M il t o n O h a ta é doutor em história pela f f l c h - u s p e trabalha no Serviço de Difusão Cultu­ral do Instituto de Estudos Brasileiros da u s p . Publicou em Novos Estudos Cebrap, Teoria e Debate e no suplemento Mais! da Folha de S.Paulo, entre outros.

M o d e s t o C a r o n e é professor aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem da Uni- camp, tradutor da obra de Franz Kafka e autor de, entre outros, Metáfora e montagem (ensaio, 1974), As marcas do real (contos, 1979) e Resumo de Ana (ficção, 1998).

N e il L a r s e n é professor de literatura comparada na Universidade da Califórnia — Davis ( e u a ) e autor de Modernism and hegemony. A materialist critique of aesthetic agencies (1990); Read­ing North by South. On Latin American literature, culture and politics (1995) e Determinations. Essays on theory, narrative and nation in the Americas (2001).

N ic h o l a s B r o w n é professor nos Departamentos de Inglês e Estudos Afro-Americanos da Universidade de Illinois-Chicago e autor de Utopian Generations— The Political Horizon of 20th Century Literature (2005).

Pa u l S in g e r é professor titular no Departamento de História Econômica da fea - u sp , pesqui­sador do c e b r a p e autor de, entre outros, Desenvolvimento e crise (1968), Uma utopia militante— Repensando o socialismo (1999) e Introdução à economia solidária (2002).

P e d r o F io r i A r a n t e s é arquiteto e urbanista formado pela fau- u sp e coordenador do escri­tório de assessoria técnica Usina. É autor de Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e

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Rodrigo Leßvre, de Artigas aos mutirões (2* ed, 2004), e organizador da coletânea de textos de Sér­gio Ferro, Arquitetura e trabalho livre (2006).

P r is c il a F ig u e ir e d o é doutora em literatura brasileira pela f f l c h - u s p e autora de Em busca do inespecífico (2001), sobre Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade.

R o b e r t K u r z é editor da revista Exit e autor de, entre outros, O colapso da modernização (1992) e Os últimos combates (1998).

R o d r i g o N a v e s é crítico de arte e autor de, entre outros, El Greco (1985), A forma difícil (1996), O filantropo (, 1998) e O vento e o moinho(2007). Foi editor do Folhetim da Folha de S. Paulo e da revista Novos Estudos CEBRAP.

R o s w it h a S c h o l z é colaboradora da revista Exit e autora de Das Geschlecht des Kapitalis­mus (2000) e Differenzen der Krise — Krise der Differenzen (2005). No Brasil, seu artigo “O valoré o homem” foi publicado em Novos Estudos CEBRAP, na 45, julho de 1996.

S e r g io M ic e l i é professor titular do Departamento de Sociologia da u s p e autor de Nacio­nal estrangeiro. História social e cultural do modernismo artístico em São Paulo (2003), A noite da madrinha (2005), entre outros, além de organizador da História das ciências sociais no Brasil

S il v ia L . L o p e z é professora de literatura latino-americana no Carleton College, Minne- sotta. Publicou ensaios sobre Adorno, Lukács, Garcia Canclini e Roberto Schwarz. Traduziu, com Christopher Chiappari, Hybrid cultures: Strategies for entering and leaving modernity, de Nestor Garcia Canclini. Foi editora do número especial da revista Cultural Critique dedicada à. teoria crí­tica latino-americana. Atualmente prepara um livro de ensaios intitulado Frankfurt mínima. Essays in aesthetics and culture.

T a l e s A b ’S á b e r é psicanalista, professor do Departamento de Psicanálise da Criança no Ins­tituto Sedes Sapientiae, doutor em psicologia clínica/psicanálise pela u s p e autor de A imagem fria— Cinema e crise do sujeito no Brasil dos anos 80(2003) e O sonhar restaurado— Formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (2005).

VILMA A r ê a s é professora titular de literatura brasileira na u n ic a m p e autora de Na tapera de Santa Cruz (1987), Aos trancos e relâmpagos (1988), Iniciação à comédia (1990), A terceira perna (1992), Trouxa-frouxa (2000), Clarice Lispector com a ponta dos dedos (2005).

Z u l m ir a R ib e ir o T a v a r es é escritora. Publicou, entre outros, O japonês dos olhos redondos (1980 ) e os romances O nome do bispo e Jóias de família, reeditados em 2004 e 2007, respectiva­mente.

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Em agosto de 2004» um semi­nário na Universidade de Sào Pau­lo celebrou e discutiu a obra — moderna, complexa, nacional e negativa — do critico Roberto Schwarz. Um critico na periferia do capitalismo reúne o resultado desse encontro, do qual participa­ram “corações veteranos”, como o poeta Francisco Alvim e o ex-pre- sidente Fernando Henrique Car­doso, jovens criticos e escritores, além de colegas de longa data — Fernando Novais e Modesto Caro- ne entre eles —, e interlocutores estrangeiros como Dolf Oehler e Robert Kurz.

Dos mais de trinta textos aqui reunidos — entre análises, depoi­mentos e ensaios —, todos eles afiados, surge o perfil de um criti­co que criou um estilo ensaistico próprio, interessado em articular dlaleticamente a forma literária eo processo sodal, a tradição literá­ria e a situação periférica. Marca­da a fundo pelo melhor do mar­xismo alemão, a prosa de Schwarz ganhou têmpera expositiva na lei­tura de Erich Auerbach ao mesmo tempo que aprendeu um "Instinto de nacionalidade” com a obra de Antonio Candido; e assim, flertan­do a sério com Machado de Assis e Bertolt Brecht, vem respondendo com vigor propriamente literário às reviravoltas da história contem­porânea, do golpe de 64 à queda do Muro de Berlim, dos anos dou­rados de Juscelino Kubitschek ao estranho inicio do novo século.

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Roberto Schwarz nasceu em 20 t I S de agosto de 1938, em Viena, fi- wSb lho de Käthe e Johann Schwarz. Ü 'J No começo de 1939, sua família

mudou-se da Áustria anexada pa- P E ra São Paulo, onde muito tempo . JÈ depois ele conheceu o também

emigrado Anatol Rosenfeld, men- tor literário e filosófico de seus anos de formação. De 1957 a i960, estudou ciências sociais na Universidade de São Paulo, onde

ISfe participou de um seminário de lei­tura da obra de Marx que, entre

1. J 1958 e 1964, reuniu intelectuais ü |B j como Fernando Novais, José Ar- |D b thur Giannotti e Fernando Henri- É S r que Cardoso. Entre 1961 e 1963, Bffffl cursou o mestrado em teoria lite- B jE rária da Universidade Yale, nos Es-

tados Unidos. De volta ao Brasili em 1963, tornou-se assistente de

, "V Antonio Candido no Departamen- MSk: to de Teoria Literária da USP. Em j ) 1968, partiu para o exílio em Pa-

ris, e em 1976 obteve o doutorado fljSp em estudos latino-americanos pe- Ie S ÍI la Universidade de Paris III com aM »I«7 flft tese Ao vencedor as batatas, so-

^re Machado de Assis. Voltou aopÈf * Brasil em 1978, quando começou ■«■BUÍ

a lecionar teoria literária na Uni- 5 camp, de onde se aposentou em

j n 1992. Dele, a Companhia das Letras ! publicou Que horas são? (1987)

Duas meninas (1997) e Seqüências : \ ) brasileiras (1999).

FIORI ¡RCIO ALESSS a u g[CHÖI/I IDfiSti ► fÊRIN CILA Fl SIDOH i/ARESHl R S |NCISCC lC A M ANDlC 4A ILX / iOPOit FIORI

ERGIO A L E S Í ¡S AUC CHOWÍ 3DESTC Í/ARES /Y '* BE URZNcised U cA m I :a n d iIA IL X OPOL FIORI

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