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Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna Boaventura de Sousa Santos Estamos a doze anos do final do século XX. Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. Quando, ao procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto, olhamos para o passado a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos que nos precederam desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos, até ao próprio século XIX não são mais que uma pré-história longínqua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein. E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar. Recorrendo à teoria sinergética do físico teórico Hermann Haken, podemos dizer que vivemos num sistema visual muito instável em que a mínima flutuação da nossa percepção visual provoca rupturas na simetria do que vemos. Assim, olhando a mesma figura, ora vemos um vaso grego branco recortado sobre um fundo preto, ora vemos dois rostos gregos de perfil, frente a frente, recortados sobre um fundo branco. Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambigüidade e a complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita. Tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer, é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade. Tenho comigo uma criança que há precisamente duzentos e trinta e oito * A visita do prof. Boaventura contou com o apoio da FAPESP. As reflexões epistemológicas deste texto estão tratadas com maior amplitude no livro Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, a ser publicado pela Editora Graal.

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Um discurso sobre as Ciênciasna transição para umaciência pós-modernaBoaventura de Sousa Santos

Estamos a doze anos do final do séculoXX. Vivemos num tempo atônito que aodebruçar-se sobre si próprio descobreque os seus pés são um cruzamento desombras, sombras que vêm do passadoque ora pensamos já não sermos, orapensamos não termos ainda deixado deser, sombras que vêm do futuro que orapensamos já sermos, ora pensamos nuncavirmos a ser. Quando, ao procurarmosanalisar a situação presente das ciênciasno seu conjunto, olhamos para o passadoa primeira imagem é talvez a de que osprogressos científicos dos últimos trintaanos são de tal ordem dramáticos que osséculos que nos precederam — desde oséculo XVI, onde todos nós, cientistasmodernos, nascemos, até ao próprioséculo XIX — não são mais que umapré-história longínqua. Mas se fecharmosos olhos e os voltarmos a abrir,verificamos com surpresa que os grandescientistas que estabeleceram emapearam o campo teórico em que aindahoje nos movemos viveram outrabalharam entre o século XVIII e osprimeiros vinte anos do século XX, deAdam Smith e Ricardo a Lavoisier eDarwin, de Marx e Durkheim a MaxWeber e Pareto, de Humboldt e Plancka Poincaré e Einstein. E de tal modo éassim que é possível dizer que emtermos científicos vivemos ainda noséculo XIX e que o século XX ainda nãocomeçou, nem talvez comece antes determinar. E se, em vez de no passado,centrarmos o nosso olhar no futuro, domesmo modo duas imagens contraditóriasnos ocorrem alternadamente. Por umlado, as potencialidades da traduçãotecnológica dos conhecimentosacumulados fazem-nos crer no limiar de

uma sociedade de comunicação einterativa libertada das carências einseguranças que ainda hoje compõemos dias de muitos de nós: o século XXIa começar antes de começar. Por outrolado, uma reflexão cada vez maisaprofundada sobre os limites do rigorcientífico combinada com os perigoscada vez mais verossímeis da catástrofeecológica ou da guerra nuclear fazem-nostemer que o século XXI termine antes decomeçar.

Recorrendo à teoria sinergética do físicoteórico Hermann Haken, podemos dizerque vivemos num sistema visual muitoinstável em que a mínima flutuação danossa percepção visual provoca rupturasna simetria do que vemos. Assim, olhandoa mesma figura, ora vemos um vasogrego branco recortado sobre um fundopreto, ora vemos dois rostos gregos deperfil, frente a frente, recortados sobreum fundo branco. Qual das imagens éverdadeira? Ambas e nenhuma. É estaa ambigüidade e a complexidade dasituação do tempo presente, um tempode transição, síncrone com muita coisaque está além ou aquém dele, masdescompassado em relação a tudo oque o habita.

Tal como noutros períodos de transição,difíceis de entender e de percorrer, énecessário voltar às coisas simples, àcapacidade de formular perguntas simples,perguntas que, como Einstein costumavadizer, só uma criança pode fazer mas que,depois de feitas, são capazes de trazeruma luz nova à nossa perplexidade.Tenho comigo uma criança que háprecisamente duzentos e trinta e oito

* A visita do prof. Boaventura contou com o apoio da FAPESP. As reflexõesepistemológicas deste texto estão tratadas com maior amplitude no livro Introduçãoa uma Ciência Pós-Moderna, a ser publicado pela Editora Graal.

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anos fez algumas perguntas simplessobre as ciências e os cientistas. Fê-lasno início de um ciclo de produçãocientífica que muitos de nós julgamestar agora a chegar ao fim. Essa criançaé Jean-Jacques Rousseau. No seu célebreDiscours sur les Sciences et les Arts (1750)Rousseau formula várias questõesenquanto responde à que, tambémrazoavelmente infantil, lhe fora postapela Academia de Dijon1. Esta últimaquestão rezava assim: o progresso dasciências e das artes contribuirá parapurificar ou para corromper os nossoscostumes? Trata-se de uma perguntaelementar, ao mesmo tempo profunda efácil de entender. Para lhe dar resposta -do modo eloqüente que lhe mereceu oprimeiro prêmio e algumas inimizades -Rousseau fez as seguintes perguntas nãomenos elementares: há alguma relaçãoentre a ciência e a virtude? Há algumarazão de peso para substituirmos oconhecimento vulgar que temos danatureza e da vida e que partilhamoscom os homens e mulheres de nossasociedade pelo conhecimento científicoproduzido por poucos e inacessível àmaioria? Contribuirá a ciência paradiminuir o fosso crescente na nossasociedade entre o que se é e o que seaparenta ser, o saber dizer e o saberfazer, entre a teoria e a prática? Perguntassimples a que Rousseau responde, demodo igualmente simples, com umredondo não.

Estávamos então em meados do séculoXVIII, numa altura em que a ciênciamoderna, saída da revolução científica doséculo XVI pelas mãos de Copérnico,Galileu e Newton, começava a deixar oscálculos esotéricos dos seus cultores parase transformar no fermento de umatransformação técnica e social semprecedentes na história da humanidade.Uma fase de transição, pois, que deixavaperplexos os espíritos mais atentos e osfazia refletir sobre os fundamentos dasociedade em que viviam e sobre oimpacto das vibrações a que eles iam sersujeitos por via da ordem científicaemergente. Hoje, duzentos anos volvidos,somos todos protagonistas e produtosdessa nova ordem, testemunhos vivos dastransformações que ela produziu.

Contudo, não o somos, em 1988, domesmo modo que o éramos há quinze ouvinte anos. Por razões que alinho adiante,estamos de novo perplexos, perdemos aconfiança epistemológica; instalou-se emnós uma sensação de perda irreparáveltanto mais estranha quanto não sabemosao certo o que estamos em vias de perder;admitimos mesmo, noutros momentos,que essa sensação de perda seja apenas acortina de medo atrás da qual seescondem as novas abundancias da nossavida individual e coletiva. Mas mesmoaí volta a perplexidade de não sabermoso que abundará em nós nessa abundância.

Daí a ambigüidade e complexidade dotempo científico presente a que comeceipor aludir. Daí também a idéia, hojepartilhada por muitos, de estarmosnuma fase de transição. Daí finalmentea urgência de dar resposta a perguntassimples, elementares, inteligíveis. Umapergunta elementar é uma pergunta queatinge o magma mais profundo da nossaperplexidade individual e coletiva coma transparência técnica de uma fisga.Foram assim as perguntas de Rousseau;terão de ser assim as nossas. Mais do queisso, duzentos e tal anos depois, as nossasperguntas continuam a ser as de Rousseau.Estamos de novo regressados ànecessidade de perguntar pelas relaçõesentre a ciência e a virtude, pelo valor doconhecimento dito ordinário ou vulgarque nós, sujeitos individuais oucoletivos, criamos e usamos para darsentido às nossas práticas e que a ciênciateima em considerar irrelevante, ilusórioe falso; e temos finalmente de perguntarpelo papel de todo o conhecimentocientífico acumulado no enriquecimentoou no empobrecimento prático das nossasvidas, ou seja, pelo contributo positivoou negativo da ciência para a nossafelicidade. A nossa diferença existencialem relação a Rousseau é que, se as nossasperguntas são simples, as respostassê-lo-ão muito menos. Estamos no fim deum ciclo de hegemonia de uma certaordem científica. As condiçõesepistêmicas das nossas perguntas estãoinscritas no avesso dos conceitos queutilizamos para lhes dar resposta. Énecessário um esforço de desvendamentoconduzido sobre um fio de navalha entre

l Jean-Jacques Rousseau, Discours sur les Sciences et les Arts, in Oeuvres Completes, vol. 2,Paris, Seuil, 1971, p. 52 e segs.

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a lucidez e a ininteligibilidade da resposta.São igualmente diferentes e muito maiscomplexas as condições sociológicas epsicológicas do nosso perguntar. Émuito diferente perguntar pela utilidadeou pela felicidade que o automóvelme pode proporcionar se a pergunta éfeita quando ninguém na minhavizinhança tem automóvel, quando todaa gente tem exceto eu ou quando eupróprio tenho carro há mais de vinteanos.

Teremos forçosamente de ser maisrousseaunianos no perguntar do que noresponder. Começarei por caracterizarsucintamente a ordem cientificahegemônica. Analisarei depois os sinaisda crise dessa hegemonia, distinguindoentre as condições teóricas e as condiçõessociológicas da crise. Finalmenteespecularei sobre o perfil de uma novaordem científica emergente, distinguindode novo entre as condições teóricas e ascondições sociológicas da suaemergência. Este percurso analítico serábalizado pelas seguintes hipóteses detrabalho: primeiro, começa a deixar defazer sentido a distinção entre ciênciasnaturais e ciências sociais; segundo, asíntese que há que operar entre elas temcomo pólo catalisador as ciênciassociais; terceiro, para isso, as ciênciassociais terão de recusar todas as formasde positivismo lógico ou empírico oude mecanicismo materialista ouidealista com a conseqüente revalorizaçãodo que se convencionou chamarhumanidades ou estudos humanísticos;quarto, esta síntese não visa uma ciênciaunificada nem sequer uma teoria geral,mas tão-só um conjunto de galeriastemáticas onde convergem linhas de águaque até agora concebemos comoobjetos teóricos estanques; quinto, àmedida que se der esta síntese, a distinçãohierárquica entre conhecimento científicoe conhecimento vulgar tenderá adesaparecer e a prática será o fazer e odizer da filosofia da prática.

O Paradigma Dominante

O modelo de racionalidade que preside àciência moderna constituiu-se a partir darevolução científica do século XVI e foidesenvolvido nos séculos seguintes

basicamente no domínio das ciênciasnaturais. Ainda que com algunsprenúncios no século XVIII, é só noséculo XIX que este modelo deracionalidade se estende às ciências sociaisemergentes. A partir de então podefalar-se de um modelo global deracionalidade científica que admitevariedade interna mas que se distingue edefende, por via de fronteiras ostensivas eostensivamente policiadas, de duas formasde conhecimento não-científico (e,portanto, irracional) potencialmenteperturbadoras e intrusas: o senso comum eas chamadas humanidades ou estudoshumanísticos (em que se incluíram, entreoutros, os estudos históricos, filológicos,jurídicos, literários, filosóficos eteológicos).

Sendo um modelo global, a novaracionalidade científica é também ummodelo totalitário, na medida em quenega o caráter racional a todas as formasde conhecimento que se não pautarempelos seus princípios epistemológicos epelas suas regras metodológicas. É estaa sua característica fundamental e a quemelhor simboliza a ruptura do novoparadigma científico com os que oprecedem. Está consubstanciada, comcrescente definição, na teoria heliocéntricado movimento dos planetas de Copérnico,nas leis de Kepler sobre as órbitas dosplanetas, nas leis de Galileu sobre a quedados corpos, na grande síntese da ordemcósmica de Newton e finalmente naconsciência filosófica que lhe conferemBacon e sobretudo Descartes. Estapreocupação em testemunhar umaruptura fundante que possibilita uma e sóuma forma de conhecimento verdadeiroestá bem patente na atitude mental dosprotagonistas, no seu espanto perante aspróprias descobertas e a extrema e aomesmo tempo serena arrogância comque se medem com os seuscontemporâneos. Para citar apenas doisexemplos, Kepler escreve no seu livrosobre a Harmonia do Mundo publicadoem 1619, a propósito das harmoniasnaturais que descobrira nos movimentoscelestiais: "Perdoai-me mas estou feliz;se vos zangardes eu perseverarei; (...)O meu livro pode esperar muitos séculospelo seu leitor. Mas mesmo Deus teve deesperar seis mil anos por aqueles que

O modelo deracionalidade quepreside à ciênciamoderna constituiu-se apartir da revoluçãocientífica do séculoXVI e foi desenvolvidonos séculos seguintesbasicamente nodomínio das ciênciasnaturais.

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pudessem contemplar o seu trabalho"2.Por outro lado, Descartes, nessamaravilhosa autobiografia espiritual queé o Discurso do Método e a que voltareimais tarde, diz, referindo-se ao métodopor si encontrado: "Porque já colhi deletais frutos que embora no juízo que façode mim próprio procure sempreinclinar-me mais para o lado dadesconfiança do que para o da presunção,e embora, olhando com olhar defilósofo as diversas ações eempreendimentos de todos os homens,não haja quase nenhuma que não mepareça vã e inútil, não deixo de receberuma extrema satisfação com oprogresso que julgo ter feito em buscada verdade e de conceber tais esperançaspara o futuro que, se entre as ocupaçõesdos homens, puramente homens, algumahá que seja solidamente boa e importante,ouso crer que é aquela que escolhi".3

Para compreender esta confiançaepistemológica é necessário descrever,ainda que sucintamente, os principaistraços do novo paradigma científico.Cientes de que o que os separa do saberaristotélico e medieval ainda dominantenão é apenas nem tanto uma melhorobservação dos fatos como sobretudouma nova visão do mundo e da vida,os protagonistas do novo paradigmaconduzem uma luta apaixonada contratodas as formas de dogmatismo e deautoridade. O caso de Galileu éparticularmente exemplar, e é aindaDescartes que afirma: "Eu não podiaescolher ninguém cujas opiniões meparecessem dever ser preferidas às dosoutros, e encontrava-me como queobrigado a procurar conduzir-me amim próprio"4. Esta nova visão domundo e da vida reconduz-se a duas

distinções fundamentais, entreconhecimento científico econhecimento do senso comum, porum lado, e entre natureza e pessoahumana, por outro. Ao contrário daciência aristotélica, a ciência modernadesconfia sistematicamente dasevidências da nossa experiência imediata.Tais evidências, que estão na base doconhecimento vulgar, são ilusórias. Comobem salienta Einstein no prefácio aoDiálogo sobre os Grandes Sistemas doMundo, Galileu esforça-se denodadamentepor demonstrar que a hipótese dosmovimentos de rotação e de translaçãoda terra não é refutada pelo fato denão observarmos quaisquer efeitosmecânicos desses movimentos, ou seja,pelo fato de a terra nos parecer parada equieta5. Por outro lado, é total aseparação entre a natureza e o serhumano. A natureza é tão-só extensão emovimento; é passiva, eterna e reversível,mecanismos cujos elementos se podemdesmontar e depois relacionar sob aforma de leis; não tem qualquer outraqualidade ou dignidade que nos impeçade desvendar os seus mistérios,desvendamento que não é contemplativo,mas antes ativo, já que visa conhecer anatureza para a dominar e controlar.Como diz Bacon, a ciência fará da pessoahumana" o senhor e o possuidor danatureza"6.

Com base nestes pressupostos oconhecimento científico avança pelaobservação descomprometida e livre,sistemática e tanto quanto possívelrigorosa dos fenômenos naturais. ONovum Organum opõe a incerteza darazão entregue a si mesma à certeza daexperiência ordenada7. Ao contrário doque pensa Bacon, a experiência não

2 Consultada a edição alemã (introdução e tradução de Max Caspar), Johannes Kepler,Welt-Harmonik. Munique, Verlag Oldenbourg, 1939, p. 280.

3 Descartes, Discurso do Método e as Paixões da Alma. Lisboa, Sá da Costa, 1984, p. 6.4 Descartes, ob. cit.,p. 16.5 Einstein in Galileu, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Berkeley, University

of California Press, 1970, p. xviii.6 Consultada a edição espanhola (preparada e traduzida por Gallach Palés), F. Bacon, Novum

Organum. Madrid, Nueva Biblioteca Filosófica, 1933. Para Bacon "a senda que conduz ohomem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma"(p. 110). Se o objetivo da ciência é dominar a natureza não é menos verdade que "sópodemos vencer a natureza obedecendo-lhe" (p. 6, grifo meu), o que nem sempre temsido devidamente salientado nas interpretações da teoria de Bacon sobre a ciência.

7 Cf. A. Koyré, Considerações sobre Descartes. Lisboa, Presença, 1981, p. 30.

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dispensa a teoria prévia, o pensamentodedutivo ou mesmo a especulação, masforça qualquer deles a não dispensarem,enquanto instância de confirmaçãoúltima, a observação dos fatos. Galileusó refuta as deduções de Aristóteles namedida em que as acha insustentáveis e éainda Einstein quem nos chama a atençãopara o fato de os métodos experimentaisde Galileu serem tão imperfeitos que sópor via de especulações ousadas poderiapreencher as lacunas entre os dadosempíricos (basta recordar que não haviamedições de tempo inferiores aosegundo)8. Descartes, por seu turno,vai inequivocamente das idéias para ascoisas e não das coisas para as idéias eestabelece a prioridade da metafísicaenquanto fundamento último da ciência.

As idéias que presidem à observação e àexperimentação são as idéias claras esimples a partir das quais se podeascender a um conhecimento maisprofundo e rigoroso da natureza. Essasidéias são as idéias matemáticas. Amatemática fornece à ciência moderna,não só o instrumento privilegiado deanálise, como também a lógica dainvestigação, como ainda o modelo derepresentação da própria estrutura damatéria. Para Galileu, o livro danatureza está inscrito em caracteresgeométricos9 e Einstein não pensa demodo diferente10. Deste lugar centralda matemática na ciência modernaderivam duas conseqüências principais.Em primeiro lugar, conhecer significaquantificar. O rigor científico afere-se

pelo rigor das medições. As qualidadesintrínsecas do objeto são, por assimdizer, desqualificadas e em seu lugarpassam a imperar as quantidades em queeventualmente se podem traduzir. Oque não é quantificável é cientificamenteirrelevante. Em segundo lugar, o métodocientífico assenta na redução dacomplexidade. O mundo é complicadoe a mente humana não o podecompreender completamente. Conhecersignifica dividir e classificar para depoispoder determinar relações sistemáticasentre o que se separou. Já em Descartesuma das regras do Método consisteprecisamente em "dividir cada uma dasdificuldades . . . em tantas parcelasquanto for possível e requerido paramelhor as resolver"11. A divisãoprimordial é a que distingue entre"condições iniciais" e "leis da natureza".As condições iniciais são o reino dacomplicação, do acidente e onde énecessário selecionar as que estabelecemas condições relevantes dos fatos aobservar; as leis da natureza são o reinoda simplicidade e da regularidade onde épossível observar e medir com rigor.Esta distinção entre condições iniciais eleis da natureza nada tem de "natural".Como bem observa Eugene Wigner, émesmo completamente arbitrária12. Noentanto, é nela que assenta toda a ciênciamoderna.

A natureza teórica do conhecimentocientífico decorre dos pressupostosepistemológicos e das regrasmetodológicas já referidas. É um

8 Einstein, ob. cit., p. XIX.9 Entre muitos outros passos do Diálogo sobre os Grandes Sistemas, cf. a seguinte fala de

Salviati: "No que respeita à compreensão intensiva e na medida em que este termo denota acompreensão perfeita de alguma proposição, digo que a inteligência humana compreendealgumas delas perfeitamente, e que, portanto, a respeito delas tem uma certeza tão absolutaquanto a própria natureza. Tais são as proposições das ciências matemáticas, isto é, dageometria e da aritmética nas quais a inteligência divina conhece infinitamente maisproposições porque as conhece todas. Mas no que respeita àquelas poucas que a inteligênciahumana compreende, penso que o seu conhecimento é igual ao Divino em certeza objetivaporque, nesses casos, consegue compreender a necessidade para além da qual não há maiorcerteza". Galileu, ob. cit., p. 103.

10 A admiração de Einstein por Galileu está bem expressa no prefácio referido na nota 5. Omodo radical (e instintivo) como Einstein "vê" a natureza matemática da estrutura damatéria explica em parte a sua longa batalha sobre a interpretação da mecânica quântica(especialmente contra a interpretação de Copenhague). Cf. B. Hoffmann, Albert Einstein,Creator and Rebel, Nova Iorque, New A merican Library, 19 73, p. 173 e segs.

11 Descartes, ob. cit., p. 1 7.12 E. Wigner, Symmetries and Reflections. Scientific Essays. Cambridge, Cambridge University

Press, 19 70, p. 3.

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conhecimento causal que aspira àformulação de leis, à luz de regularidadesobservadas, com vista a prever ocomportamento futuro dos fenômenos.A descoberta das leis da natureza assenta,por um lado, e como já se referiu, noisolamento das condições iniciaisrelevantes (por exemplo, no caso daqueda dos corpos, a posição inicial e avelocidade do corpo em queda) e, poroutro lado, no pressuposto de que oresultado se produzirá independentementedo lugar e do tempo em que se realizaremas condições iniciais. Por outras palavras,a descoberta das leis da natureza assentano princípio de que a posição absolutae o tempo absoluto nunca são condiçõesiniciais relevantes. Este principio é,segundo Wigner, o mais importanteteorema da invariância na físicaclássica13.

As leis, enquanto categorias deinteligibilidade, repousam num conceitode causalidade escolhido, nãoarbitrariamente, entre os oferecidos pelafísica aristotélica. Aristóteles distinguequatro tipos de causa: a causa material, acausa formal, a causa eficiente e a causafinal. As leis da ciência moderna são umtipo de causa formal que privilegia ocomo funciona das coisas em detrimentode qual o agente ou qual o fim das coisas.É por esta via que o conhecimentocientífico rompe com o conhecimento dosenso comum. É que, enquanto nosenso comum, e portanto noconhecimento prático em que ele setraduz, a causa e a intenção convivemsem problemas, na ciência a determinaçãoda causa formal obtém-se com a expulsãoda intenção. É este tipo de causa formalque permite prever e, portanto, intervirno real e que, em última instância,permite à ciência moderna responder àpergunta sobre os fundamentos do seurigor e da sua verdade com o elenco dosseus êxitos na manipulação e natransformação do real.

Um conhecimento baseado na formulaçãode leis tem como pressuposto metateóricoa idéia de ordem e de estabilidade domundo, a idéia de que o passado se repete

no futuro. Segundo a mecânicanewtoniana, o mundo da matéria é umamáquina cujas operações se podemdeterminar exatamente por meio de leisfísicas e matemáticas, um mundoestático e eterno a flutuar num espaçovazio, um mundo que o racionalismocartesiano toma cognoscível por via dasua decomposição nos elementos que oconstituem. Esta idéia do mundo-máquinaé de tal modo poderosa que se vaitransformar na grande hipótese universalda época moderna, o mecanicismo. Podeparecer surpreendente e até paradoxalque uma forma de conhecimento, assentenuma tal visão do mundo, tenha vindoa constituir um dos pilares da idéia deprogresso que ganha corpo nopensamento europeu a partir do séculoXVIII e que é o grande sinal intelectualda ascensão da burguesia 14. Mas averdade é que a ordem e a estabilidade domundo são a pré-condição datransformação tecnológica do real.

O determinismo mecanicista é ohorizonte certo de uma forma deconhecimento que se pretende utilitárioe funcional, reconhecido menos pelacapacidade de compreenderprofundamente o real do que pela .capacidade de o dominar e transformar.No plano social, é esse também ohorizonte cognitivo mais adequado aosinteresses da burguesia ascendente quevia na sociedade em que começava adominar o estádio final da evolução dahumanidade (o estado positivo deComte; a sociedade industrial de Spencer;a solidariedade orgânica de Durkheim).Daí que o prestígio de Newton e dasleis simples a que reduzia toda acomplexidade da ordem cósmica tenhamconvertido a ciência moderna no modelode racionalidade hegemônica que a poucoe pouco transbordou do estudo danatureza para o estudo da sociedade. Talcomo foi possível descobrir as leis danatureza, seria igualmente possíveldescobrir as leis da sociedade. Bacon,Vico e Montesquieu são os grandesprecursores. Bacon afirma a plasticidadeda natureza humana e, portanto, a suaperfectibilidade, dadas as condições

O determinismomecanicista é o

horizonte certo deuma forma de

conhecimento que sepretende utilitário

e funcional,reconhecido menospela capacidade de

compreenderprofundamente o

real do que pelacapacidade de o

dominar e transformar.No plano social, é esse

também e horizontecognitivo maisadequado aos

interesses da burguesiaascendente que via na

sociedade em quecomeçava a dominar

o estádio final daevolução da humanidade

13 E. Wigner, ob. cit., p. 226.14 Cf., entre muitos, S. Pollard, The Idea of Progress. Londres, Penguin, 1971, p. 39.

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sociais, jurídicas e políticas adequadas,condições que é possível determinar comrigor15. Viço sugere a existência de leisque governam deterministicamente aevolução das sociedades e tornam possívelprever os resultados das ações coletivas.Com extraordinária premonição Vicoidentifica e resolve a contradição entre aliberdade e a imprevisibilidade da açãohumana individual e a determinação eprevisibilidade da ação coletiva16.Montesquieu pode ser considerado umprecursor da sociologia do direito aoestabelecer a relação entre as leis dosistema jurídico, feitas pelo homem, e asleis inescapáveis da natureza17.

No século XVIII este espírito precursoré ampliado e aprofundado e o fermentointelectual que daí resulta, as luzes, vaicriar as condições para a emergência dasciências sociais no século XIX. Aconsciência filosófica da ciência moderna,que tivera no racionalismo cartesiano e noempirismo baconiano as suas primeirasformulações, veio a condensar-se nopositivismo oitocentista. Dado que,segundo este, só há duas formas deconhecimento científico — as disciplinasformais da lógica e da matemática e asciências empíricas segundo o modelomecanicista das ciências naturais — asciências sociais nasceram para serempíricas. O modo como o modelomecanicista foi assumido foi, no entanto,diverso. Distingo duas vertentesprincipais: a primeira, sem dúvidadominante, consistiu em aplicar, namedida do possível, ao estudo dasociedade todos os princípiosepistemológicos e metodológicos quepresidiam ao estudo da natureza desde oséculo XVI; a segunda, durante muitotempo marginal mas hoje cada vez maisseguida, consistiu em reivindicar para asciências sociais um estatutoepistemológico e metodológico próprio,com base na especificidade do serhumano e sua distinção polar em relaçãoà natureza. Estas duas concepções têmsido consideradas antagônicas, a primeira,sujeita ao jugo positivista, a segunda,

liberta dele, e qualquer delasreivindicando o monopólio doconhecimento científico-social.Apresentarei adiante uma interpretaçãodiferente, mas para já caracterizareisucintamente cada uma destas variantes.

A primeira variante — cujo compromissoepistemológico está bem simbolizado nonome de "física social" com queinicialmente se designaram os estudoscientíficos da sociedade — parte dopressuposto que as ciências naturais sãouma aplicação ou concretização de ummodelo de conhecimento universalmenteválido e, de resto, o único válido.Portanto, por maiores que sejam asdiferenças entre os fenômenos naturais eos fenômenos sociais é sempre possívelestudar os últimos como se fossem osprimeiros. Reconhece-se que essasdiferenças atuam contra os fenômenossociais, ou seja, tornam mais difícil ocumprimento do cânonemetodológico e menos rigoroso oconhecimento a que se chega, mas nãohá diferenças qualitativas entre oprocesso científico neste domínio e oque preside ao estudo dos fenômenosnaturais. Para estudar os fenômenossociais como se fossem fenômenosnaturais, ou seja, para conceber osfatos sociais, como coisas, comopretendia Durkheim18, o fundador dasociologia acadêmica, é necessárioreduzir os fatos sociais às suasdimensões externas, observáveis emensuráveis. As causas do aumento dataxa de suicídio na Europa do virar doséculo não são procuradas nos motivosinvocados pelos suicidas e deixados emcartas, como é costume, mas antes apartir da verificação de regularidades emfunção de condições tais como o sexo,o estado civil, a existência ou não defilhos, a religião dos suicidas19.

Porque essa redução nem sempre é fácile nem sempre se consegue sem distorcergrosseiramente os fatos ou sem osreduzir à quase irrelevância, as ciênciassociais têm um longo caminho a percorrer

15 Bacon, ob. cit.16 Vico, Scienza Nuova, in Opere. Milão Riccardi, 1953.17 Montesquieu, L'Esprit des Lois. Paris, Les Belles-Lettres, 1950.18 E. Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença, 1980.19 E. Durkheim, O Suicídio. Lisboa, Presença, 1973.

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no sentido de se compatibilizarem com oscritérios de cientificidade das ciênciasnaturais. Os obstáculos são enormes masnão são insuperáveis. Ernest Nagel, emThe Structure of Science, simboliza bemo esforço desenvolvido nesta variantepara identificar os obstáculos e apontaras vias da sua superação. Eis alguns dosprincipais obstáculos: as ciências sociaisnão dispõem de teorias explicativasque lhes permitam abstrair do real paradepois buscar nele, de modometodológicamente controlado, a provaadequada; as ciências sociais não podemestabelecer leis universais porque osfenômenos sociais são historicamentecondicionados e culturalmentedeterminados; as ciências sociais nãopodem produzir previsões fiáveis porqueos seres humanos modificam o seucomportamento em função doconhecimento que sobre ele se adquire;os fenômenos sociais são de naturezasubjetiva e como tal não se deixamcaptar pela objetividade docomportamento; as ciências sociais nãosão objetivas porque o cientista socialnão pode libertar-se, no ato deobservação, dos valores que informama sua prática em geral e, portanto,também a sua prática de cientista20.

Em relação a cada um destes obstáculos,Nagel tenta demonstrar que a oposiçãoentre as ciências sociais e as ciênciasnaturais não é tão linear quanto sejulga e que, na medida em que hádiferenças, elas são superáveis ounegligenciáveis. Reconhece, no entanto,que a superação dos obstáculos nemsempre é fácil e que essa é a razãoprincipal do atraso das ciências sociaisem relação às ciências naturais. A idéiado atraso das ciências sociais é a idéiacentral da argumentação metodológicanesta variante, e, com ela, a idéia de queesse atraso, com tempo e dinheiro,poderá vir a ser reduzido ou mesmoeliminado.

Na teoria das revoluções científicas deThomas Kuhn o atraso das ciênciassociais é dado pelo caráterpré-paradigmático destas ciências, aocontrário das ciências naturais, essas

sim, paradigmáticas. Enquanto, nasciências naturais, o desenvolvimentodo conhecimento tornou possível aformulação de um conjunto deprincípios e de teorias sobre a estruturada matéria que são aceites semdiscussão por toda a comunidadecientífica, conjunto esse que designapor paradigma, nas ciências sociais nãohá consenso paradigmático, pelo que odebate tende a atravessar verticalmentetoda a espessura do conhecimentoadquirido. O esforço e o desperdícioque isso acarreta é simultaneamentecausa e efeito do atraso das ciênciassociais.

A segunda vertente reivindica para asciências sociais um estatuto metodológicopróprio. Os obstáculos que há poucoenunciei são, segundo esta vertente,intransponíveis. Para alguns, éa própria idéia de ciência da sociedadeque está em causa, para outros trata-setão-só de empreender uma ciênciadiferente. O argumento fundamental éque a ação humana é radicalmentesubjetiva. O comportamento humano,ao contrário dos fenômenos naturais,não pode ser descrito e muito menosexplicado com base nas suascaracterísticas exteriores e objetiváveis,uma vez que o mesmo ato externopode corresponder a sentidos de açãomuito diferentes. A ciência social serásempre uma ciência subjetiva e nãoobjetiva como as ciências naturais;tem de compreender os fenômenossociais a partir das atitudes mentais e dosentido que os agentes conferem às suasações, para o que é necessário utilizarmétodos de investigação e mesmocritérios epistemológicos diferentes doscorrentes nas ciências naturais, métodosqualitativos em vez de quantitativos, comvista à obtenção de um conhecimentointersubjetivo, descritivo e compreensivo,em vez de um conhecimento objetivo,explicativo e nomotético.

Esta concepção de ciência socialreconhece-se numa postura antipositivistae assenta na tradição filosófica dafenomenologia e nela convergemdiferentes variantes, desde as mais

20 Ernest Nagel, The Structure of Science. Problems in the Logic of Scientific Explanation. NovaIorque, Harcourt, Brace & World, 1961, p. 447 e segs.

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moderadas (como a de Max Weber) 21 atéàs mais extremistas (como a dePeter Winch)22. Contudo, numa reflexãomais aprofundada, esta concepção, talcomo tem vindo a ser elaborada, revela-semais subsidiária do modelo deracionalidade das ciências naturais doque parece. Partilha com este modelo adistinção natureza/ser humano e talcomo ele tem da natureza uma visãomecanicista à qual contrapõe, comevidência esperada, a especificidade doser humano. A esta distinção, primordialna revolução científica do século XVI,vão-se sobrepor nos séculos seguintesoutras, tal como a distinção natureza/cultura e a distinção ser humano/animal, para no século XVIII se podercelebrar o caráter único de serhumano. A fronteira que então seestabelece entre o estudo do ser humanoe o estudo da natureza não deixa de serprisioneira do reconhecimento daprioridade cognitiva das ciências naturais,pois, se, por um lado, se recusam oscondicionantes biológicos docomportamento humano, pelo outrousam-se argumentos biológicos parafixar a especificidade do ser humano.Pode, pois, concluir-se que ambas asconcepções de ciência social a quealudi pertencem ao paradigma daciência moderna, ainda que a concepçãomencionada em segundo lugar represente,dentro deste paradigma, um sinal decrise e contenha alguns dos componentesda transição para um outro paradigmacientífico.

A Crise do Paradigma Dominante

São hoje muitos e fortes os sinais de queo modelo de racionalidade científicaque acabo de descrever em alguns dosseus traços principais atravessa umaprofunda crise. Defenderei nesta seção: .primeiro, que essa crise é não sóprofunda como irreversível; segundo, queestamos a viver um período de revoluçãocientífica que se iniciou com Einstein e amecânica quântica e não se sabe aindaquando acabará; terceiro, que os sinaisnos permitem tão-só .especular acerca.doparadigma que emergirá deste períodorevolucionário mas que, desde já, se

pode afirmar com segurança quecolapsarão as distinções básicas em queassenta o paradigma dominante e a quealudi na seção precedente.A crise do paradigma dominante é oresultado interativo de uma pluralidadede condições. Distingo entre condiçõessociais e condições teóricas. Darei maisatenção às condições teóricas e por elascomeço. A primeira observação, que •não é tão trivial quanto parece, é que aidentificação dos limites, dasinsuficiências estruturais do paradigmacientífico moderno é o resultado dogrande avanço no conhecimento queele propiciou. O aprofundamento doconhecimento permitiu ver a fragilidadedos pilares em que se funda.

Einstein constitui o primeiro rombono paradigma da ciência moderna, umrombo, aliás, mais importante do que oque Einstein foi subjetivamente capazde admitir. Um dos pensamentos maisprofundos de Einstein é o darelatividade da simultaneidade. Einsteindistingue entre a simultaneidade deacontecimentos presentes no mesmo lugare a simultaneidade de acontecimentosdistantes, em particular de acontecimentosseparados por distâncias astronômicas.Em relação a estes últimos, o problemalógico a resolver é o seguinte: como éque o observador estabelece a ordemtemporal de acontecimentos noespaço? Certamente por medições davelocidade da luz, partindo dopressuposto, que é fundamental àteoria de Einstein, que não há nanatureza velocidade superior à da luz. Noentanto, ao medir a velocidade numadireção única (de A a B), Einsteindefronta-se com um círculo vicioso: a fimde determinar a simultaneidade dosacontecimentos distantes é necessárioconhecer a velocidade; mas paramedir a velocidade é necessárioconhecer a simultaneidade dosacontecimentos. Com um golpe degênio, Einstein rompe com estecírculo, demonstrando que asimultaneidade de acontecimentosdistantes não pode ser verificada,pode tão-só ser definida. É, portanto,arbitrária e daí que, como salienta

A crise do paradigmadominante é oresultado interativo deuma pluralidade decondições. Distingoentre condições sociaise condiçõesteóricas. ( . . . )a identificação doslimites, dasinsuficiênciasestruturais doparadigma científicomoderno é o resultadodo grande avanço noconhecimento queele propiciou. Oaprofundamento doconhecimento permitiuver a fragilidade dospilares em que se funda.

21 Max Weber, Methodologischen Schriften. Frankfurt, Fischer, 1968.22 Peter Winch, The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres, Routledge

e Kegan Paul, 1970.

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Reichenbach, quando fazemosmedições não pode haver contradiçõesnos resultados uma vez que estes nosdevolverão a simultaneidade quenós introduzimos por definição nosistema de medição23. Esta teoriaveio revolucionar as nossas concepçõesde espaço e de tempo. Não havendosimultaneidade universal, o tempo e oespaço absolutos de Newton deixamde existir. Dois acontecimentossimultâneos num sistema de referêncianão são simultâneos noutro sistema dereferência. As leis da física e da geometriaassentam em medições locais. "Osinstrumentos de medida, sejam relógiosou metros, não têm magnitudesindependentes, ajustam-se ao campométrico do espaço, a estrutura do qualse manifesta mais claramente nosraios de luz"24.O caráter local das medições e, portanto,do rigor do conhecimento que com basenelas se obtém, vai inspirar o surgimentoda segunda condição teórica da crise doparadigma dominante, a mecânicaquântica. Se Einstein relativizou o rigordas leis de Newton no domínio daastrofísica, a mecânica quântica fê-lono domínio da microfísica. Heisenberge Bohr demonstram que não é possívelobservar ou medir um objeto seminterferir nele, sem o alterar, e a talponto que o objeto que sai de umprocesso de medição não é o mesmo quelá entrou. Como ilustra Wigner, "amedição da curvatura do espaço causadapor uma partícula não pode ser levadaa cabo sem criar novos campos que sãobilhões de vezes maiores que o camposob investigação"25. A idéia de que nãoconhecemos do real senão o que neleintroduzimos, ou seja, que nãoconhecemos do real senão a nossaintervenção nele, está bem expressa no

princípio da incerteza de Heisenberg: nãose podem reduzir simultaneamente oserros da medição da velocidade e daposição das partículas; o que for feitopara reduzir o erro de uma das mediçõesaumenta o erro da outra26. Esteprincípio, e, portanto, a demonstraçãoda interferência estrutural do sujeitono objeto observado, tem implicaçõesde vulto. Por um lado, sendoestruturalmente limitado o rigor donosso conhecimento, só podemosaspirar a resultados aproximados e porisso as leis da física são tão-sóprobabilísticas. Por outro lado, ahipótese do determinismo mecanicista éinviabilizada uma vez que a totalidadedo real não se reduz à soma das partesem que a dividimos para observar emedir. Por último, a distinção sujeito/objeto é muito mais complexa do que àprimeira vista pode parecer. A distinçãoperde os seus contornos dicotômicos eassume a forma de um continuum.O rigor da medição posto em causa pelamecânica quântica será ainda maisprofundamente abalado se se questionar origor do veículo formal em que a mediçãoé expressa, ou seja, o rigor da matemática.É isso o que sucede com as investigaçõesde Godel e que por essa razão consideroserem a terceira condição da crise doparadigma. O teorema da incompletude(ou do não-completamento) e osteoremas sobre a impossibilidade, emcertas circunstâncias, de encontrardentro de um dado sistema formal aprova da sua consistência vieram mostrarque, mesmo seguindo à risca as regras dalógica matemática, é possível formularproposições indecidíveis, proposições quese não podem demonstrar nem refutar,sendo que uma dessas proposições éprecisamente a que postula o caráternão-contraditório do sistema27. Se as

23 H. Reichenbach, From Copernicus to Einstein, Nova Iorque, Dover Publications, 1970, p. 60.24 H. Reichenbach, ob. cit., p. 68.25 E. Wigner, ob. cit., p. 7.26 W. Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa, Livros do Brasil, s. d.;

W. Heisenberg, Physics and Beyond. Londres, Allen and Unwin, 1971.27 O impacto dos teoremas de Godel na filosofia da ciência tem sido diversamente avaliado.

Cf., por exemplo, J. Ladrière, "Les Limites de la Formalization ", in J. Piaget (org),Logique et Connaissance Scientifique. París, Gallimard, 1967, p. 312 e segs.; R. Jones,Physics as Metaphor. Nova Iorque, New American Library, 1982, p. 158; J. Parain-Vial,Philosophic des Sciences de la Nature. Tendances Nouvelles. Paris, Klincksieck, 1983, p. 52 esegs.; R. Thom, Parábolas e Catástrofes. Lisboa, D. Quixote, 1985, p. 36; J. Briggs e F. D.Peat, Looking Glass Universe. The Emerging Science of Wholeness. Londres, Fontana,1985, p. 22.

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leis da natureza fundamentam o seu rigorno rigor das formalizações matemáticasem que se expressam, as investigaçõesde Godel vêm demonstrar que o rigor damatemática carece ele próprio defundamento. A partir daqui é possívelnão só questionar o rigor da matemáticacomo também redefini-lo enquanto formade rigor que se opõe a outras formas derigor alternativo, uma forma de rigor cujascondições de êxito na ciência modernanão podem continuar a ser concebidascomo naturais e óbvias. A própria filosofiada matemática, sobretudo a que incidesobre a experiência matemática, temvindo a problematizar criativamente estestemas e reconhece hoje que o rigormatemático, como qualquer outra formade rigor, assenta num critério deseletividade e que, como tal, tem um ladoconstrutivo e um lado destrutivo.A quarta condição teórica da crise doparadigma newtoniano é constituídapelos avanços do conhecimento nosdomínios da microfísica, da química eda biologia nos últimos vinte anos. Atítulo de exemplo, menciono asinvestigações do físico-químico IlyaPrigogine. A teoria das estruturasdissipativas e o princípio da "ordematravés de flutuações"' estabelecem queem sistemas abertos, ou seja, emsistemas que funcionam nas margens daestabilidade, a evolução explica-se porflutuações de energia que emdeterminados momentos, nuncainteiramente previsíveis, desencadeiamespontaneamente reações que, por viade mecanismos não-lineares, pressionam osistema para além de um limite máximode instabilidade e o conduzem a umnovo estado macroscópico. Estatransformação irreversível etermodinâmica é o resultado dainteração de processos microscópicos

segundo uma lógica de auto-organizaçãonuma situação de não-equilíbrio. Asituação de bifurcação, ou seja, o pontocrítico em que a mínima flutuação deenergia pode conduzir a um novo estado,representa a potencialidade do sistemaem ser atraído para um novo estado demenor entropia. Deste modo airreversibilidade nos sistemas abertossignifica que estes são produto da suahistoriais.A importância desta teoria está na novaconcepção da matéria e da natureza quepropõe, uma concepção dificilmentecompaginada com a que herdamos dafísica clássica. Em vez da eternidade, ahistória; em vez do determinismo, aimprevisibilidade; em vez do mecanicismo,a interpenetração, a espontaneidade e aauto-organização; em vez dareversibilidade, a irreversibilidade e aevolução; em vez da ordem, a desordem;em vez da necessidade, a criatividade e oacidente. A teoria de Prigogine recuperainclusivamente conceitos aristotélicostais como os conceitos de potencialidadee virtualidade que a revolução científicado século XVI parecia ter atiradodefinitivamente para o lixo da história.

Mas a importância maior desta teoriaestá em que ela não é um fenômenoisolado. Faz parte de um movimentoconvergente, pujante sobretudo a partirda última década, que atravessa asvárias ciências da natureza e até as .ciências sociais, um movimento devocação transdisciplinar que Jantschdesigna por paradigma daauto-organização e que tem aflorações,entre outras, na teoria de Prigogine, nasinergética de Haken29, no conceito dehiperciclo e na teoria da origem da vidade Eigen30, no conceito de autopoiesisde Maturana e Varela31, na teoria das

28 I. Prigogine el. Stengers, La Nouvelle Alliance. Metamorphose de la Science. Paris,Gallimard, 1979; I. Prigogine, From Being to Becoming. 5. Francisco, Freeman, 1980;I. Prigogine, "Time, Irreversibuity and Randomness", in E. Jantsch (orgj, The EvolutionaryVision. Boulder, Westview Press, p. 73 e segs.

29 H. Han/en, Synergetics: an introduction. Heidelberg, Springer 19 77; H. Haken, "Synergetics -An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization", Geoforum 16 (1985),205.

30 M. Eigen e P. Schuster, The Hypercyde: a principle of natural self-organization. Heidelberg,Springer, 1979.

31 H. R. Maturana e F. J. Varela, De Maquinas y Seres Vivos. Santiago do Chile, EditorialUniversitária, 1973; H. R. Maturana e J. F. Varela, Autopoietic Systems. Urbana, BiologicalComputer Laboratory University of Illinois, 1975. Cf., também, F. Benseler, P. Hejl e W.Koch (orgs.), Autopoiesis. Communication and Society. The Theory of Autopoietic Systemsin the Social Sciences. Frankfurt, Campus, 1980.

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catástrofes de Thorn32, na teoria daevolução de Jantsch33, na teoria da"ordem implicada" de David Bohm34

ou na.teoria da matriz-S de GeoffreyChew e na filosofia do "bootstrap"que lhe subjaz35. Este movimentocientífico e as demais inovações teóricasque atrás defini como outras tantascondições teóricas da crise do paradigmadominante têm vindo a propiciar umaprofunda reflexão epistemológica sobreo conhecimento científico, uma reflexãode tal modo rica e diversificada que,melhor do que qualquer outracircunstância, caracteriza exemplarmentea situação intelectual do tempo presente.Esta reflexão apresenta duas facetassociológicas importantes. Em primeirolugar, a reflexão é levada a cabopredominantemente pelo próprioscientistas, por cientistas que adquiriramuma competência e um interessefilosóficos para problematizar a suaprática científica. Não é arriscadodizer que nunca houve tantoscientistas-filósofos como atualmente, eisso não se deve a uma evoluçãoarbitrária do interesse intelectual. Depoisda euforia cientista do século XIX e daconseqüente aversão à reflexão filosófica,bem simbolizada pelo positivismo,chegamos a finais do século XX possuídospelo desejo quase desesperado decomplementarmos o conhecimento dascoisas com o conhecimento doconhecimento das coisas, isto é, com oconhecimento de nós próprios. Asegunda faceta desta reflexão é que elaabrange questões que antes eram deixadasaos sociólogos. A análise das condiçõessociais, dos contextos culturais, dosmodelos organizacionais da investigaçãocientífica, antes acantonada no camposeparado e estanque da sociologia daciência, passou a ocupar papel de relevona reflexão epistemológica.

Do conteúdo desta reflexão respigarei,a título ilustrativo, alguns dos temas

principais. Em primeiro lugar, sãoquestionados o conceito de lei e oconceito de causalidade que lhe estáassociado. A formulação das leis danatureza funda-se na idéia de que osfenômenos observados independem detudo exceto de um conjuntorazoavelmente pequeno de condições(as condições iniciais) cuja interferênciaé observada e medida. Esta idéia,reconhece-se hoje, obriga a separaçõesgrosseiras entre os fenômenos,separações que, aliás, são sempreprovisórias e precárias uma vez que averificação da não-interferência decertos fatores é sempre produto deum conhecimento imperfeito, pormais perfeito que seja. As leis têmassim um caráter probabilístico,aproximativo e provisório, bemexpresso no princípio da falsificabilidadede Popper. Mas acima de tudo, asimplicidade das leis constitui umasimplificação arbitrária da realidade quenos confina a um horizonte mínimopara além do qual outros conhecimentosda natureza, provavelmente mais ricose com mais interesse humano, ficam porconhecer. Na biologia, onde asinterações entre fenômenos e formasde auto-organização em totalidadesnão-mecânicas são mais visíveis, mastambém nas demais ciências, a noção delei tem vindo a ser parcial e sucessivamentesubstituída pelas noções de sistema, deestrutura, de modelo e, por último, pelanoção de processo. O declínio dahegemonia da legalidade é concomitantedo declínio da hegemonia dacausalidade. O questionamento dacausalidade nos tempos modernos vemde longe, pelo menos desde David Humee do positivismo lógico. A reflexãocrítica tem incidido tanto no problemaontológico da causalidade (quais ascaracterísticas do nexo causal?; essenexo existe na realidade?) como sobre oproblema metodológico da causalidade(quais os critérios de causalidade?; como

Mas acima de tudo, asimplicidade das leis

constitui umasimplificação

arbitrária da realidadeque nos confina a um

horizonte mínimopara além do qual

outros conhecimentosda natureza,

provavelmente maisricos e com mais

interesse humano,ficam por conhecer.Na biologia, onde as

interações entrefenômenos e

formas deauto-organização em

totalidadesnão-mecânicas sãomais visíveis, mas

também nas demaisciências, a noção de

lei tem vindo a serparcial e

sucessivamentesubstituída pelas

noções de sistema,de estrutura, de

modelo e, por último,pela noção de

processo.

32 R. Thom, ob. cit., p. 85 e segs.33 E. Jantsch, The Self-Organizing Universe: scientific and human implications of the emerging

paradigm of evolution. Oxford, Pergamon, 1980; E. Jantsch. "Unifying Principles ofEvolution" E. Jantsch (org), The Evolutionary Vision, cit., p. 83 e segs.

34 D. Bohm, Wholeness and the Implicate Order. Londres, Ark Paperbacks, 1984.35 G. Chew, "Bootstraps scientific idea?", Science 167 (1968), p. 762 e segs;G. Chew, "Hardon

bootstrap: triumph or frustration?", Physics Today, 23 (1970) p. 23 e segs; f. Capra, "Quarkphysics without quarks: a review of recent developments in S-matrix theory", AmericanJournal of Physics, 47 (1979), p. 11 e segs.

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reconhecer um nexo causal ou testaruma hipótese causal?). Hoje, arelativização do conceito de causa partesobretudo do reconhecimento de que olugar central que ele tem ocupado naciência moderna se explica menos porrazões ontológicas ou metodológicasdo que por razões pragmáticas. Oconceito de causalidade adequa-se bem auma ciência que visa intervir no reale que mede o seu êxito pelo âmbitodessa intervenção. Afinal, causa é tudoaquilo sobre que se pode agir. Mesmo osdefensores da causalidade, como MarioBunge, reconhecem que ela é apenasuma das formas do determinismo e quepor isso tem um lugar limitado, ainda queinsubstituível, no conhecimentocientífico36. A verdade é que, sob aégide da biologia e também da microfísica,o causalismo, enquanto categoria deinteligibilidade do real, tem vindo aperder terreno em favor do finalismo.

O segundo grande tema de reflexãoepistemológica versa mais sobre oconteúdo do conhecimento científico doque sobre a sua forma. Sendo umconhecimento mínimo que fecha asportas a muitos outros saberes sobre omundo, o conhecimento científicomoderno é um conhecimentodesencantado e triste que transforma anatureza num autômato, ou, comodiz Prigogine, num interlocutorterrivelmente estúpido37. Esteaviltamento da natureza acaba poraviltar o próprio cientista na medidaem que reduz o suposto diálogoexperimental ao exercício de umaprepotência sobre a natureza. O rigorcientífico, porque fundado no rigormatemático, é um rigor que quantificae que, ao quantificar, desqualifica, umrigor que, ao objetivar os fenômenos,os objetualiza e os degrada, que, aocaracterizar os fenômenos, os caricaturiza.É, em suma e finalmente, uma forma de

rigor que, ao afirmar a personalidadedo cientista, destrói a personalidade danatureza. Nestes termos, o conhecimentoganha em rigor o que perde em riquezae a retumbância dos êxitos da intervençãotecnológica esconde os limites da nossacompreensão do mundo e reprime apergunta pelo valor humano do afãcientífico assim concebido. Esta perguntaestá, no entanto, inscrita na própriarelação sujeito/objeto que presideà ciência moderna, uma relação queinterioriza o sujeito à custa daexteriorização do objeto, tornando-osestanques e incomunicáveis.

Os limites deste tipo de conhecimentosão, assim, qualitativos, não sãosuperáveis com maiores quantidades deinvestigação ou maior precisão dosinstrumentos. Aliás, a própria precisãoquantitativa do conhecimento éestruturalmente limitada. Por exemplo,no domínio das teorias da informação oteorema de Brillouin demonstra que ainformação não é gratuita38. Qualquerobservação efetuada sobre um sistemafísico aumenta a entropia do sistema nolaboratório, O rendimento de uma dadaexperiência deve assim ser definidopela relação entre a informação obtidae o aumento concomitante da entropia.Ora, segundo Brillouin, esse rendimentoé sempre inferior à unidade e só emcasos raros é próximo dela. Nestestermos, a experiência rigorosa éirrealizável pois que exigiria um dispendioinfinito de atividades humanas. Porúltimo, a precisão é limitada porque, se éverdade que o conhecimento só sabeavançar pela via da progressivaparcelização do objeto, bemrepresentada nas crescentesespecializações da ciência, éexatamente por essa via que melhor seconfirma a irredutibilidade dastotalidades orgânicas ou inorgânicas às

36 M. Bunge, Causality and Modem Science. Nova Iorque, Dover Publications, 3a edição, 1979,p. 353: "The causal principle is, in short, neither a panacea nor a myth; it is a generalhypothesis subsumed under the universal principle of determinacy, and having anapproximate validity in its proper domain". Em Portugal é justo salientar neste domínio anotável obra teórica de Armando Castro. Cf. Teoria do Conhecimento Científico, vols. I-IV,Porto Limiar, 1975, 1978, 1980, 1982; vol V, Porto, Afrontamento, 1987.

37 I. Prigogine e I. Stengers, ob. cit., p. 13.38 L. Brillouin, La Science et la Theorie de l'Information. Paris, Masson, 1959. Cf., também,

Parain-Vial, ob. cit., p. 122 e segs.

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partes que as constituem e, portanto, ocaráter distorsivo do conhecimentocentrado na observação destas últimas.Os fatos observados têm vindo aescapar ao regime de isolamento prisionala que a ciência os sujeita. Os objetos têmfronteiras cada vez menos definidas; sãoconstituídos por anéis que se entrecruzamem teias complexas com os dos restantesobjetos, a tal ponto que os objetos emsi são menos reais que as relações entreeles.

Ficou dito no início desta parte que acrise do paradigma da ciência modernase explica por condições teóricas, queacabei ilustrativamente de apontar, epor condições sociais. Estas últimas nãopodem ter aqui tratamento detalhado59.Referirei tão-só que, quaisquer que sejamos limites estruturais de rigor científico,não restam dúvidas que o que a ciênciaganhou em rigor nos últimos quarentaou cinqüenta anos perdeu em capacidadede auto-regulação. As idéias da autonomiada ciência e do desinteresse doconhecimento científico, que durantemuito tempo constituíram a ideologiaespontânea dos cientistas, colapsaramperante o fenômeno global daindustrialização da ciência a partirsobretudo das décadas de trinta equarenta. Tanto nas sociedadescapitalistas como nas sociedadessocialistas de Estado do leste europeu, aindustrialização da ciência acarretou ocompromisso desta com os centros depoder econômico, social e político, osquais passaram a ter um papel decisivona definição das prioridades científicas.

A industrialização da ciênciamanifestou-se tanto ao nível dasaplicações da ciência como ao nível daorganização da investigação científica.Quanto às aplicações, as bombas deHiroshima e Nagasaki foram um sinaltrágico, a princípio visto como acidentale fortuito, mas hoje, perante a catástrofeecológica e o perigo do holocaustonuclear, cada vez mais visto comomanifestação de um modo de produçãoda ciência inclinado a transformaracidentes em ocorrências sistemáticas.

"A ciência e a tecnologia têm vindoa revelar-se as duas faces de um processohistórico em que os interesses militarese os interesses econômicos vãoconvergindo até quase à indistinção"40.No domínio da organização do trabalhocientífico, a industrialização da ciênciaproduziu dois efeitos principais. Por umlado, a comunidade científicaestratificou-se, as relações de poder entrecientistas tornaram-se mais autoritáriase desiguais e a esmagadora maioria doscientistas foi submetida a um processode proletarização no interior doslaboratórios e dos centros deinvestigação. Por outro lado, ainvestigação capital-intensiva (assente eminstrumentos caros e raros) tornouimpossível o livre acesso ao equipamento,o que contribuiu para o aprofundamentodo fosso, em termos de desenvolvimentocientífico e tecnológico, entre os paísescentrais e os países periféricos.

Pautada pelas condições teóricas e sociaisque acabei de referir, a crise doparadigma da ciência moderna nãoconstitui um pântano cinzento deceticismo ou de irracionalismo. É anteso retrato de uma família intelectualnumerosa e instável, mas tambémcriativa e fascinante, no momento de sedespedir, com alguma dor, dos lugaresconceituais, teóricos c epistemológicos,ancestrais e íntimos, mas não maisconvincentes e securizantes, umadespedida em busca de uma vida melhor acaminho doutras paragens onde ootimismo seja mais fundado e aracionalidade mais plural e ondefinalmente o conhecimento volte a seruma aventura encantada. Acaracterização da crise do paradigmadominante traz consigo o perfil doparadigma emergente. É esse o perfilque procurarei desenhar a seguir.

O Paradigma Emergente

A configuração do paradigma que seanuncia no horizonte só pode obter-sepor via especulativa. Uma especulaçãofundada nos sinais que a crise doparadigma atual emite mas nunca por

As idéias da autonomiada ciência e do

desinteresse doconhecimentocientífico, quedurante muito

tempo constituíram aideologia espontânea

dos cientistas,colapsaram perante o

fenômeno global daindustrialização da

ciência a partirsobretudo das

décadas de trinta equarenta.

39 Sobre este tema cf. Boaventura de Sousa Santos, "Da Sociologia da Ciência à PolíticaCientífica", Revista Crítica de Ciências Sociais, l (1978), p. 11 e segs.

40 Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 26.

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eles determinada. Aliás, como diz RenéPoirier e antes dele disseram Hegel eHeidegger, "a coerência global dasnossas verdades físicas e metafísicas sóse conhece retrospectivamente"41. Porisso, ao falarmos do futuro, mesmo queseja de um futuro que já nos sentimosa percorrer, o que dele dissermos ésempre o produto de uma síntese pessoalembebida na imaginação, no meu casona imaginação sociológica. Não espanta,pois, que ainda que com alguns pontosde convergência, sejam diferentes assínteses até agora apresentadas. IlyaPrigogine, por exemplo, fala da novaaliança e da metamorfose da ciência42.Fritjof Capra fala da "nova física" e doTaoísmo da física43, Eugene Wignerde "mudanças do segundo tipo"44,Erich Jantsch do paradigma da auto-organização45, Daniel Bell da sociedadepos-industrial46, Habermas da sociedadecomunicativa47. Eu falarei, por agora, doparadigma de um conhecimento prudentepara uma vida decente. Com estadesignação quero significar que a naturezada revolução científica que atravessamosé estruturalmente diferente da queocorreu no século XVI. Sendo umarevolução científica que ocorre numasociedade ela própria revolucionada pelaciência, o paradigma a emergir dela nãopode ser apenas um paradigma científico(o paradigma de um conhecimentoprudente), tem de ser também umparadigma social (o paradigma de umavida decente). Apresentarei oparadigma emergente através de umconjunto de teses seguidas de justificação.

Todo o conhecimentocientífico-natural é científico-social

A distinção dicotômica entre ciênciasnaturais e ciências sociais começa a deixarde ter sentido e utilidade. Esta distinçãoassenta numa concepção mecanicista

da matéria e da natureza a que contrapõe,com pressuposta evidência, os conceitosde ser humano, cultura e sociedade. Osavanços recentes da física e da biologiapõem em causa a distinção entre oorgânico e o inorgânico, entre seres vivose matéria inerte e mesmo entre o humanoe o não-humano. As características daauto-organização, do metabolismo e daauto-reprodução, antes consideradasespecíficas dos seres vivos, são hojeatribuídas aos sistemas pré-celulares demoléculas. E quer num quer noutrosreconhecem-se propriedades ecomportamentos antes consideradosespecíficos dos seres humanos e dasrelações sociais. A teoria das estruturasdissipativas de Prigogine, ou a teoriasinergética de Haken já citadas, mastambém a teoria da ordem implicadade David Bohm, a teoria da matriz-S deGeoffrey Chew e a filosofia do"bootstrap" que lhe subjaz e ainda ateoria do encontro entre a físicacontemporânea e o misticismo orientalde Fritjof Capra, todas elas de vocaçãoholística e algumas especificamenteorientadas para superar as inconsistênciasentre a mecânica quântica e a teoria darelatividade de Einstein, todas estasteorias introduzem na matéria osconceitos de historicidade e de processo,de liberdade, de auto-determinação e atéde consciência que antes o homem e amulher tinham reservado para si. É comose o homem e a mulher se tivessemlançado na aventura de conhecer osobjetos mais distantes e diferentes desi próprios, para, uma vez aí chegados,se descobrirem refletidos como numespelho. Já no princípio da década desessenta e extrapolando a partir damecânica quântica, Eugene Wignerconsiderava que o inanimado não era umaqualidade diferente mas apenas um caso-limite, que a distinção corpo/alma deixarade ter sentido e que a física e a psicologiaacabariam por se fundir numa única

A distinção dicotômicaentre ciências naturaise ciências sociaiscomeça a deixarde ter sentido eutilidade. Esta distinçãoassenta numa concepçãomecanicista da matériae da natureza a quecontrapõe, compressuposta evidência,os conceitos de serhumano, cultura esociedade.

41 R. Poirier, prefácio a Parain-Vial, ob. cit.,p. 10.42 L Prigogine, obs. cits.43 F. Capra, The Tao of Physics, Nova Iorque, Bantam Books, (1976), 1984; F. Capra, The

Turning Point. Nova Iorque, Bantam Books, 1983.44 E. Wigner, ob. cit., p.215 e segs.45 E. Jantsch, obs. cits.46 D. Bell, The Coming Crisis of Post-Industrial Society. Nova Iorque, Basic Books, 1976.47 J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns, 2 vols. Frankfut, Suhrkamp, 1982.

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ciência48. Hoje é possível ir muito alémda mecânica quântica. Enquanto estaintroduziu a consciência no ato doconhecimento, nós temos hoje de aintroduzir no próprio objeto doconhecimento, sabendo que, com isso, adistinção sujeito/objeto sofrerá umatransformação radical. Num certoregresso ao pan-psiquismo leibniziano,começa hoje a reconhecer-se umadimensão psíquica na natureza, "a mentemais ampla" de que fala Bateson, da quala mente humana é apenas uma parte, umamente imanente ao sistema social globale à ecologia planetária que algunschamam Deus49. Geoffrey Chew postulaa existência de consciência na naturezacomo um elemento necessário àautoconsistência desta última e, seassim for, as futuras teorias da matériaterão de incluir o estudo da consciênciahumana. Convergentemente, assiste-se aum renovado interesse pelo "inconscientecoletivo", imanente à humanidade noseu todo, de Jung. Aliás, Capra pretendever as idéias de Jung — sobretudo a idéiada sincronicidade para explicar a relaçãoentre a realidade exterior e a realidadeinterior — confirmadas pelos recentesconceitos de interações locais e não-locais na física das partículas50. Talcomo na sincronia jungiana, asinterações não-locais são instantânease não podem ser previstas em termosmatemáticos precisos. Não são, pois,produzidas por causas locais e, quandomuito, poder-se-á falar da causalidadeestatística. Capra vê em Jung uma dasalternativas teóricas às concepçõesmecanicistas de Freud e Bateson afirmaque enquanto Freud ampliou oconceito de mente para dentro(permitindo-nos abranger osubsconsciente e o inconsciente) énecessário agora ampliá-lo para fora(reconhecendo a existência de fenômenosmentais para além dos individuais ehumanos). Semelhantemente, a teoria daordem implicada, que, segundo o seuautor, David Bohm, pode constituir umabase comum tanto à teoria quântica comoà teoria da relatividade, concebe aconsciência e a matéria como

interdependentes sem, no entanto,estarem ligadas por nexo de causalidade.São antes duas projeções, mutuamenteenvolventes, de uma realidade mais altaque não é nem matéria nem consciência.O conhecimento do paradigma emergentetende assim a ser um conhecimento não-dualista, um conhecimento que se fundana superação das distinções tão familiarese óbvias que até há pouco considerávamosinsubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado,mente/matéria, observador/observado,subjetivo/objetivo, coletivo/individual,animal/pessoa. Este relativo colapso dasdistinções dicotômicas repercute-se nasdisciplinas científicas que sobre elas sefundaram. Aliás, sempre houve ciênciasque se reconheceram mal nestasdistinções e tanto que se tiveram defraturar internamente para se lhesadequarem minimamente. Refiro-me àantropologia, à geografia e também àpsicologia. Condensaram-se nelasprivilegiadamente as contradições daseparação ciências naturais/ciênciassociais. Daí que, num período detransição entre paradigmas, sejaparticularmente importante, do ponto devista epistemológico, observar o que sepassa nessas ciências.

Não basta, porém, apontar a tendênciapara a superação da distinção entreciências naturais e ciências sociais, épreciso conhecer o sentido e conteúdodessa superação. Recorrendo de novo àfísica, trata-se de saber qual será o"parâmetro de ordem", segundo Haken,ou o "atractor", segundo Prigogine,dessa superação, se as ciências naturais,se as ciências sociais. Precisamenteporque vivemos um estado deturbulência, as vibrações do novoparadigma repercutem-se desigualmentenas várias regiões do paradigma vigentee por isso os sinais do futuro sãoambíguos. Alguns lêem neles aemergência de um novo naturalismocentrado no privilegiamento dospressupostos biológicos docomportamento humano. AssimKonrad Lorenz ou a sociobiologia. Para

48 E. Wigner, ob. cit., p. 271.49 G. Bateson, Mind and Nature, Londres, Fontana, 1985.50 Cf. também M. Bowen, "The Ecology of Knowledge: linking the natural and social sciences",

Geoforum 16 (1985), p. 213 e segs.

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estes, a superação da dicotomia ciênciasnaturais/ciências sociais ocorre sob aégide das ciências naturais. Contra estaposição pode objetar-se que ela temdo futuro a mesma concepção com queas ciências naturais autojustificam, noseio do paradigma dominante, o seuprestígio científico, social e político e,por isso, só vê do futuro aquilo em queele repete o presente. Se, pelo contrário,numa reflexão mais aprofundada,atentarmos no conteúdo teórico dasciências que mais têm progredido noconhecimento da matéria, verificamosque a emergente inteligibilidade danatureza é presidida por conceitos,teorias, metáforas e analogias dasciências sociais. Para não irmos maislonge, quer a teoria das estruturasdissipativas de Prigogine quer a teoriasinergética de Haken explicam ocomportamento das partículas atravésdos conceitos de revolução social,violência, escravatura, dominação,democracia nuclear, todos elesoriginários das ciências sociais (dasociologia, da ciência política, da história,etc.). O mesmo sucede, ainda no campoda física teórica, com as teorias deCapra sobre a relação entre física epsicanálise, os padrões da matéria e ospadrões da mente concebidos comoreflexos uns dos outros. Apesar deestas teorias diluírem as fronteirasentre os objetos da física e osobjetos da biologia, foi sem dúvida nodomínio desta última que os modelosexplicativos das ciências sociais maisse enraizaram nas décadas recentes. Osconceitos de teleomorfismo, autopoiesis,auto-organização, potencialidadeorganizada, originalidade, individualidade,historicidade, atribuem à natureza umcomportamento humano. Lovelock, emlivro recente sobre as ciências da vida,afirma que os nossos corpos sãoconstituídos por cooperativas decélulas51.

Que os modelos explicativos das ciênciassociais vêm subjazendo aodesenvolvimento das ciências naturais

nas últimas décadas prova-se, além domais, pela facilidade com que as teoriasfísico-naturais, uma vez formuladas noseu domínio específico, se aplicam ouaspiram aplicar-se no domínio social.Assim, por exemplo, Peter Allen, um dosmais estreitos colaboradores de Prigogine,tem vindo a aplicar a teoria das estruturasdissipativas aos processos econômicos eà evolução das cidades e das regiões52.E Haken salienta as potencialidades dasinergética para explicar situaçõesrevolucionárias na sociedade53. É comose o dito de Durkheim se tivesse invertidoe em vez de serem os fenômenos sociaisa ser estudados como se fossemfenômenos naturais, são os fenômenosnaturais estudados como se fossemfenômenos sociais.

O fato de a superação da dicotomiaciências naturais/ciências sociais ocorrersob a égide das ciências sociais não é,contudo, suficiente para caracterizar omodelo de conhecimento noparadigma emergente. É que, comodisse atrás, as próprias ciências sociaisconstituíram-se no século XIX segundoos modelos de racionalidade das ciênciasnaturais clássicas e, assim, a égide dasciências sociais, afirmada sem mais, poderevelar-se ilusória. Referi contudo que aconstituição das ciências sociais tevelugar segundo duas vertentes: uma maisdiretamente vinculada à epistemologiae à metodologia positivistas das ciênciasnaturais, e outra, de vocaçãoantipositivista, caldeada numa tradiçãofilosófica complexa, fenomenológica,interacionista, mito-simbólica,hermenêutica, existencialista, pragmática,reivindicando a especificidade do estudoda sociedade mas tendo de, para isso,pressupor uma concepção mecanicistada natureza. A pujança desta segundavertente nas duas últimas décadas éindicativa de ser ela o modelo deciências sociais que, numa época derevolução científica, transporta a marcapós-moderna do paradigma emergente.Trata-se, como referi também, de ummodelo de transição, uma vez que define

51 J. E. Lovelock, Gaia: a New Look at Life on Earth. Oxford, Oxford University Press.52 P. Allen, "The Evolutionary Paradigm of Dissipative Structures", in E. Jantsch (org),

The Evolutionary Vision, cit., p. 25 e segs.

53 H. Haken, "Synergetics — An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization",Geoforum 16 (1985), p. 205 e segs.

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a especificidade do humano porcontraposição a uma concepção danatureza que as ciências naturais hojeconsideram ultrapassada, mas é ummodelo em que aquilo que o prende aopassado é menos forte do que aquiloque o prende ao futuro. Em resumo, àmedida que as ciências naturais seaproximam das ciências sociais estasaproximam-se das humanidades. Osujeito, que a ciência moderna lançarana diáspora do conhecimento irracional,regressa investido da tarefa de fazererguer sobre si uma nova ordemcientífica.Que este é o sentido global da revoluçãocientífica que vivemos, é tambémsugerido pela reconceptualização em cursodas condições epistemológicas emetodológicas do conhecimento científicosocial. Referi acima alguns dos obstáculos àcientificidade das ciências sociais, osquais, segundo o paradigma aindadominante, seriam responsáveis peloatraso das ciências sociais em relaçãoàs ciências naturais. Sucede contudo que,também como referi, o avanço doconhecimento das ciências naturais e areflexão epistemológica que ele temsuscitado têm vindo a mostrar que osobstáculos ao conhecimento científicoda sociedade e da cultura são de fatocondições do conhecimento em geral,tanto científico-social como científico-natural. Ou seja, o que antes era a causado maior atraso das ciências sociais éhoje o resultado do maior avanço dasciências naturais. Daí também que aconcepção de Thomas Kuhn sobre ocaráter pré-paradigmático (isto é,menos desenvolvido) das ciênciassociais54, que eu, aliás, subscrevi ereformulei noutros escritos55, tenha deser abandonada ou profundamenterevista.

A superação da dicotomia ciênciasnaturais/ciências sociais tende assim arevalorizar os estudos humanísticos. Masesta revalorização não ocorrerá sem queas humanidades sejam, elas também,profundamente transformadas. O quehá nelas de futuro é o terem resistido àseparação sujeito/objeto e o terem

preferido a compreensão do mundo àmanipulação do mundo. Este núcleogenuíno foi, no entanto, envolvido numanel de preocupações mistificatórias (oesoterismo nefelibata e a erudiçãobalofa). O ghetto a que as humanidadesse remeteram foi em parte uma estratégiadefensiva contra o assédio das ciênciassociais, armadas do viés cientistatriunfalmente brandido. Mas foi tambémo produto do esvaziamento que sofreramem face da ocupação do seu espaço pelomodelo cientista. Foi assim nos estudoshistóricos com a história quantitativa,nos estudos jurídicos com a ciência purado direito e a dogmática jurídica, nosestudos filológicos, literários elingüísticos com o estruturalismo. Háque recuperar esse núcleo genuíno epô-lo ao serviço de uma reflexão globalsobre o mundo. O texto sobre que semprese debruçou a filologia é uma dasanalogias matriciais com que se construiráno paradigma emergente o conhecimentosobre a sociedade e a natureza.

A concepção humanística das ciênciassociais enquanto agente catalisador daprogressiva fusão das ciências naturais eciências sociais coloca a pessoa, enquantoautor e sujeito do mundo, no centro doconhecimento, mas, ao contrário dashumanidades tradicionais, coloca o quehoje designamos por natureza no centroda pessoa. Não há natureza humanaporque toda a natureza é humana. É poisnecessário descobrir categorias deinteligibilidade globais, conceitos quentesque derretam as fronteiras em que aciência moderna dividiu e encerrou arealidade. A ciência pós-moderna é umaciência assumidamente analógica queconhece o que conhece pior através doque conhece melhor. Já mencionei aanalogia textual e julgo que tanto aanalogia lúdica como a analogiadramática, como ainda a analogiabiográfica, figurarão entre as categoriasmatriciais do paradigma emergente: omundo, que hoje é natural ou social eamanhã será ambos, visto como umtexto, como um jogo, como um palcoou ainda como autobiografia. CliffordGeertz refere algumas destas analogias

A concepçãohumanística das

ciências sociaisenquanto agente

catalisador daprogressiva fusão das

ciências naturais eciências sociais coloca

a pessoa, enquantoautor e sujeito do

mundo, no centro doconhecimento, mas,

ao contrário dashumanidades

tradicionais, colocao que hoje designamos

por natureza nocentro da pessoa.Não há natureza

humana porque todaa natureza é

humana.

54 T. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, University of Chicago Press,1962, passim.

55 Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 29 e segs.

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humanísticas e restringe o seu uso àsciências sociais, enquanto eu as concebocomo categorias de inteligibilidadeuniversais56. Não virá longe o dia em quea física das partículas nos fale do jogoentre as partículas, ou a biologia nosfale do teatro molecular ou a astrofísicado texto celestial, ou ainda a químicada biografía das reações químicas. Cadauma destas analogias desvela uma pontado mundo. A nudez total, que serásempre a de quem se vê no que vê,resultará das configurações de analogiasque soubermos imaginar: afinal, o jogopressupõe um palco, o palco exercita-secom um texto e o texto é a autobiografiado seu autor. Jogo, palco, texto oubiografia, o mundo é comunicação epor isso a lógica existencial da ciênciapós-moderna é promover a "situaçãocomunicativa" tal como Habermas aconcebe. Nessa situação confluemsentidos e constelações de sentidovindos, tal qual rios, das nascentes dasnossas práticas locais e arrastandoconsigo as areias dos nossos percursosmoleculares, individuais, comunitários,sociais e planetários. Não se trata deuma amálgama de sentido (que nãoseria sentido mas ruído), mas antes deinterações e de intertextualidadesorganizadas em torno de projetoslocais de conhecimento indiviso. Daquidecorre a segunda característica doconhecimento científico pós-moderno.

Todo o conhecimento é local e total

Na ciência moderna o conhecimentoavança pela especialização. Oconhecimento é tanto mais rigorosoquanto mais restrito é o objeto sobreque incide. Nisso reside, aliás, o que hojese reconhece ser o dilema básico daciência moderna: o seu rigor aumentana proporção direta da arbitrariedadecom que espartilha o real. Sendo umconhecimento disciplinar, tende a ser umconhecimento disciplinado, isto é, segregauma organização do saber orientada parapoliciar as fronteiras entre as disciplinase reprimir os que as quiserem transpor.É hoje reconhecido que a excessivaparcelização e disciplinarização do sabercientífico faz do cientista um ignorante

especializado e que isso acarreta efeitosnegativos. Esses efeitos são sobretudovisíveis no domínio das ciências aplicadas.As tecnologias preocupam-se hoje com oseu impacto destrutivo nos ecossistemas;a medicina verifica que ahiperespecialização do saber médicotransformou o doente numa quadrículasem sentido quando, de fato, nuncaestamos doentes senão em geral; afarmácia descobre o lado destrutivo dosmedicamentos, tanto mais destrutivosquanto mais específicos, e procura umanova lógica de combinação químicaatenta aos equilibrios orgânicos; o direito,que reduziu a complexidade da vidajurídica à secura da dogmática,redescobre o mundo filosófico esociológico em busca da prudênciaperdida; a economia, que legitimara oreducionismo quantitativo e tecnocráticocom o pretendido êxito das previsõeseconômicas, é forçada a reconhecer,perante a pobreza dos resultados, que aqualidade humana e sociológica dosagentes e processos econômicos entrapela janela depois de ter sido expulsa pelaporta; para grangear o reconhecimentodos utentes (que, públicos ou privados,institucionais ou individuais, sempreestiveram numa posição de poder emrelação aos analisados) a psicologiaaplicada privilegiou instrumentosexpeditos e facilmente manuseáveis,como sejam os testes, que reduziram ariqueza da personalidade às exigênciasfuncionais de instituições unidimensionais.

Os males desta parcelização doconhecimento e do reducionismoarbitrário que transporta consigo sãohoje reconhecidos, mas as medidaspropostas para os corrigir acabam emgeral por os reproduzir sob outra forma.Criam-se novas disciplinas para resolveros problemas produzidos pelas antigas epor essa via reproduz-se o mesmo modelode cientificidade. Apenas para dar umexemplo, o médico generalista, cujaressurreição visou compensar ahiperespecialização médica, corre o riscode ser convertido num especialista aolado dos demais. Este efeito perversorevela que não há solução para esteproblema no seio do paradigma

56 C. Geertz, Local Knowledge. Further Essays in Interpretative Anthropology. Nova Iorque,Basic Books, 1983, p. 19 e segs.

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dominante e precisamente porque esteúltimo é que constitui o verdadeiroproblema de que decorrem todos osoutros.

No paradigma emergente oconhecimento é total, tem comohorizonte a totalidade universal de quefala Wigner ou a totalidade indivisa deque fala Bohm. Mas sendo total, étambém local. Constitui-se em redorde temas que em dado momento sãoadotados por comunidades interpretativasconcretas como projetos de vida.locais,sejam eles reconstituir a história de um

lugar, manter um espaço verde, construirum computador adequado às necessidadeslocais, fazer baixar a taxa de mortalidadeinfantil, inventar um novo instrumentomusical, erradicar uma doença, etc., etc.A fragmentação pós-moderna não édisciplinar e sim temática. Os temas sãogalerias por onde os conhecimentosprogridem ao encontro uns dos outros.Ao contrário do que sucede no paradigmaatual, o conhecimento avança à medidaque o seu objeto se amplia, ampliaçãoque, como a da árvore, procede peladiferenciação e pelo alastramento dasraízes em busca de novas e mais variadas

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Mas sendo local, o conhecimentopós-moderno é também total porquereconstitui os projetos cognitivoslocais, salientando-lhes a suaexemplaridade, e por essa viatransforma-os em pensamento totalilustrado. A ciência do paradigmaemergente, sendo, como deixei ditoacima, assumidamente analógica, étambém assumidamente tradutora, ouseja, incentiva os conceitos e as teoriasdesenvolvidos localmente a emigrarempara outros lugares cognitivos, de modoa poderem ser utilizados fora do seucontexto de origem. Este procedimento,que é reprimido por uma forma deconhecimento que concebe através daoperacionalização e generaliza atravésda quantidade e da uniformização, seránormal numa forma de conhecimentoque concebe através da imaginação egeneraliza através da qualidade e daexemplaridade.

O conhecimento pós-moderno, sendototal, não é determinístico, sendo local,não é descritivista. É um conhecimentosobre as condições de possibilidade. Ascondições de possibilidade da açãohumana projetada no mundo a partirde um espaço-tempo local. Umconhecimento deste tipo é relativamenteimetódico, constitui-se a partir de umapluralidade metodológica. Cada métodoé uma linguagem e a realidade respondena língua em que é perguntada. Só umaconstelação de métodos pode captar osilêncio que persiste entre cada línguaque pergunta. Numa fase de revoluçãocientífica como a que atravessamos,essa pluralidade de métodos só épossível mediante transgressãometodológica57. Sendo certo que cadamétodo só esclarece o que lhe convéme quando esclarece fá-lo sem surpresasde maior, a inovação científica consisteem inventar contextos persuasivos queconduzam à aplicação dos métodosfora do seu habitat natural. Dado que aaproximação entre ciências naturais eciências sociais se fará no sentido destasúltimas, caberá especular se é possível,

por exemplo, fazer a análise filológicade um traçado urbano, entrevistar umpássaro ou fazer observação participanteentre computadores.

A transgressão metodológica repercute-senos estilos e gêneros literários quepresidem à escrita científica. A ciênciapós-moderna não segue um estilounidimensional, facilmente identificável;o seu estilo é uma configuração de estilosconstruída segundo o critério e aimaginação pessoal do cientista. Atolerância discursiva é o outro lado dapluralidade metodológica. Na fase detransição em que nos encontramos sãojá visíveis fortes sinais deste processode fusão de estilos, de interpenetraçõesentre cânones de escrita. CliffordGeertz estuda o fenômeno nas ciênciassociais e apresenta alguns exemplos:investigação filosófica parecendo críticaliterária no estudo de Sartre sobreFlaubert; fantasias barrocas sob a formade observações empíricas (a obra deJorge Luis Borges); parábolasapresentadas como investigaçõesetnográficas (Carlos Castañeda); estudosepistemológicos sob a forma de textospolíticos (a obra Against Method dePaul Feyerabend)58. E como Geertz,podemos perguntar se Foucault éhistoriador, filósofo, sociólogo oucientista político. A composiçãotransdisciplinar e individualizada paraque estes exemplos apontam sugeremum movimento no sentido da maiorpersonalização do trabalho científico.Isto conduz à terceira característica doconhecimento científico no paradigmaemergente.

Todo o conhecimento éautoconhecimento

A ciência moderna consagrou o homemenquanto sujeito epistêmico masexpulsou-o, tal como a Deus, enquantosujeito empírico. Um conhecimentoobjetivo, fatual e rigoroso não toleravaa interferência dos valores humanos oureligiosos. Foi nesta base que se construiu

57 Sobre o conceito de transgressão metodológica cf. Boaventura de Sousa Santos, "Science andPolitics: doing research in Rio's squatter settlements ", in R. Luckham (org.). Law and SocialEnquiry :case studies of research. Uppsala, Scandinavian Institute of African Studies, 1981,p.275 e segs.

58 C. Geertz, ob. cit., p. 20.

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a distinção dicotômica sujeito/objeto.No entanto, a distinção sujeito/objetonunca foi tão pacífica nas ciências sociaisquanto nas ciências naturais e a issomesmo se atribuiu, como disseco maioratraso das primeiras em relação àssegundas. Afinal, os objetos de estudoeram homens e mulheres como os queos estudavam. A distinção epistemológicaentre sujeito e objeto teve de se articularmetodológicamente com a distânciaempírica entre sujeito e objeto. Istomesmo se .torna evidente sé compararmosas estratégias metodológicas daantropologia cultural e social, por umlado, e da sociologia, por outro. Naantropologia, a distância empírica entreo sujeito e o objeto era enorme. Osujeito era o antropólogo, o europeucivilizado, o objeto era o povoprimitivo ou selvagem. Neste caso, adistinção sujeito/objeto aceitou oumesmo exigiu que a distância fosserelativamente encurtada através do uso demetodologias que obrigavam a umamaior intimidade com o objeto, ouseja, o trabalho de campo etnográfico,a observação participante. Na sociologia,ao contrário, era pequena ou mesmo nulaa distância empírica entre o sujeito eobjeto: eram cientistas europeus aestudar os seus concidadãos. Neste caso,a distinção epistemológica obrigou a queesta distância fosse aumentada através douso de metodologias de distanciamento:por exemplo, o inquérito sociológico,a análise documental e a entrevistaestruturada.

A antropologia, entre a descolonizaçãodo pós-guerra e a guerra do Vietnam, e asociologia, a partir do final dos anossessenta, foram levadas a questionar estestatus quo metodológico e as noções dedistância social em que ele assentava.De repente, os selvagens foram vistosdentro de nós nas nossas sociedades e asociologia passou a utilizar com maisintensidade métodos anteriormentequase monopolizados pela antropologia(a observação participante), ao mesmotempo que nesta última os objetospassavam à ser concidadãos, membrosde pleno direito da Organização dasNações Unidas, e tinham de serestudados segundo métodos sociológicos.As vibrações destes movimentos nadistinção sujeito/objeto nas ciências

sociais vieram a explodir no períodopós-estruturalista.

No domínio das ciências físico-naturais,o regresso do sujeito fora já anunciadopela mecânica quântica ao demonstrarque o ato de conhecimento e o produtodo conhecimento eram inseparáveis. Osavanços da microfísica, da astrofísica e dabiologia das últimas décadas restituíramà natureza as propriedades de que aciência moderna a expropriara. Oaprofundamento do conhecimentoconduzido segundo a matriz materialistaveio a desembocar num conhecimentoidealista. A nova dignidade da naturezamais se consolidou quando se verificouque o desenvolvimento tecnológicodesordenado nos tinha separado danatureza em vez de nos unir a ela e quea exploração da natureza tinha sido oveículo da exploração do homem.O desconforto que a distinção sujeito/objeto sempre tinha provocado nasciências sociais propagava-se assim àsciências naturais. O sujeito regressava naveste dó objeto. Aliás, os conceitos de"mente imanente", "mente mais ampla"e "mente coletiva" de Bateson e outrosconstituem notícias dispersas de que ooutro foragido da ciência moderna, Deus,pode estar em vias de regressar.Regressará transfigurado, sem nada dedivino senão o nosso desejo de harmoniae comunhão com a natureza que nosrodeia e que, vemos agora, é o maisíntimo de nós. Uma nova gnose estáem gestação.Parafraseando Clausewitz, podemosafirmar hoje que o objeto é acontinuação do sujeito por outros meios.Por isso, todo o conhecimento científicoé autoconhecimento. A ciência nãodescobre, cria, e o ato criativoprotagonizado por cada cientista e pelacomunidade científica no seu conjuntotem de se conhecer intimamente antesque conheça o que com ele se conhece doreal. Os pressupostos metafísicos, ossistemas de crenças, os juízos de valor nãoestão antes nem depois da explicaçãocientífica da natureza ou da sociedade.São parte integrante dessa mesmaexplicação. A ciência moderna não é aúnica explicação possível da realidadee não há sequer qualquer razão científicapara a considerar melhor que asexplicações alternativas da metafísica,

No domínio dasciências físico-naturais,

o regresso do sujeitofora já anunciado

pela mecânica quânticaao demonstrar que oato de conhecimento

e o produto doconhecimento eram

inseparáveis.

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da astrologia, da religião, da arte ou dapoesia. A razão por que privilegiamoshoje uma forma de conhecimento assentena previsão e no controle dos fenômenosnada tem de científico. É o juízo devalor. A explicação científica dosfenômenos é autojustificação da ciênciaenquanto fenômeno central da nossacontemporaneidade. A ciência é, assim,autobiográfica.

A consagração da ciência moderna nestesúltimos quatrocentos anos naturalizou aexplicação do real, a ponto de não opodermos conceber senão nos termospor ela propostos. Sem as categoriasde espaço, tempo, matéria e número — asmetáforas cardeais da física moderna,segundo Roger Jones — sentimo-nosincapazes de pensar, mesmo sendo jáhoje capazes de as pensarmos comocategorias convencionais, arbitrárias,metafóricas. Este processo denaturalização foi lento e, no início, osprotagonistas da revolução científicativeram a noção clara que a prova íntimadas suas convicções pessoais precedia edava coerência às provas externas quedesenvolviam. Descartes mostra melhorque ninguém o caráter autobiográficoda ciência. Diz, no Discurso do Método:''Gostaria de mostrar, neste Discurso,que caminhos segui; e de nele representara minha vida como num quadro, paraque cada qual a possa julgar, e para que,sabedor das opiniões que sobre eleforam expendidas, um novo meio de meinstruir se venha juntar àqueles de quecostumo servir-me" 59. Hoje sabemos oususpeitamos que as nossas trajetórias devida pessoais e coletivas (enquantocomunidades científicas) e os valores, ascrenças e os prejuízos que transportamsão aprova íntima do nosso conhecimento,sem o qual as nossas investigaçõeslaboratoriais ou de arquivo, os nossoscálculos ou os nossos trabalhos de campoconstituiriam um emaranhado dediligências absurdas sem fio nem pavio.No entanto, este saber, suspeitado ouinsuspeitado, corre hojesubterraneamente, clandestinamente, nosnão-ditos dos nosso trabalhos científicos.

No paradigma emergente, o caráter

autobiográfico e auto-referenciável daciência é plenamente assumido. A ciênciamoderna legou-nos um conhecimentofuncional do mundo que alargouextraordinariamente as nossasperspectivas de sobrevivência. No futuronão se tratará tanto de sobreviver como desaber viver. Para isso é necessária umaoutra forma de conhecimento, umconhecimento compreensivo e íntimoque não nos separe e antes nos unapessoalmente ao que estudamos. Aincerteza do conhecimento, que aciência moderna sempre viu comolimitação técnica destinada a sucessivassuperações, transforma-se na chave doentendimento de um mundo que maisdo que controlado tem de sercontemplado. Não se trata do espantomedieval perante uma realidadehostil possuída do sopro da divindade,mas antes da prudência perante ummundo que, apesar de domesticado, nosmostra cada dia a precaridade do sentidoda nossa vida por mais segura que estejaao nível da sobrevivência. A ciência doparadigma emergente é maiscontemplativa do que ativa. A qualidadedo conhecimento afere-se menos peloque ele controla ou faz funcionar nomundo exterior do que pela satisfaçãopessoal que dá a quem a ele acede e opartilha.

A dimensão estética da ciência temsido reconhecida por cientistas efilósofos da ciência, de Poincaré aKuhn, de Polanyi a Popper. Roger Jonesconsidera que o sistema de Newton étanto uma obra de arte como urna obrade ciência60. A criação científica noparadigma emergente assume-se comopróxima da criação literária ou artística,porque à semelhança destas pretende quea dimensão ativa da transformação doreal (o escultor a trabalhar a pedra) sejasubordinada à contemplação do resultado(a obra de arte). Por sua vez, o discursocientífico aproximar-se-á cada vez maisdo discurso da crítica literária. De algummodo, a crítica literária anuncia asubversão da relação sujeito/objeto queo paradigma emergente pretendeoperar. Na crítica literária, o objeto do

59 Descartes, ob. cit., p. 6.60 R. Jones, ob. cit., p. 41.

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estudo, como se diria em termoscientíficos, sempre foi, de fato, umsupersujeito (um poeta, umromancista , um dramaturgo) face ao qualo crítico não passa de um sujeito ouautor secundário. É certo que, em temposrecentes, o crítico tem tentado sobressairno confronto com o escritor estudado aponto de se poder falar de uma batalhapela supremacia travada entre ambos.Mas porque se trata de uma batalha, arelação é entre dois sujeitos e não entreum sujeito e um objeto. Cada um é atradução do outro, ambos criadores detextos, escritos em línguas distintasambas conhecidas e necessárias paraaprender a gostar das palavras e domundo.

Assim ressubjetivado, o conhecimentocientífico ensina a viver e traduz-se numsaber prático. Daí a quarta e últimacaracterística da ciência pós-moderna..

Todo o conhecimento científico visaconstituir-se num novo senso comum

Já tive ocasião de referir que ofundamento do estatuto privilegiado daracionalidade científica não é em simesmo científico. Sabemos hoje que aciência moderna nos ensina pouco sobrea nossa maneira de estar no mundo e queesse pouco, por mais que se amplie, serásempre exíguo porque a exigüidade estáinscrita na forma de conhecimento queele constitui. A ciência moderna produz

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conhecimentos e desconhecimentos. Sefaz do dentista um ignoranteespecializado faz do cidadão comum umignorante generalizado.

Ao contrário, a ciência pós-modernasabe que nenhuma forma de conhecimentoé, em si mesma, racional; só aconfiguração de todas elas é racional.Tenta, pois, dialogar com outras formasde conhecimento deixando-se penetrarpor elas. A mais importante de todas é oconhecimento do senso comum, oconhecimento vulgar e prático com queno quotidiano orientamos as nossasações e damos sentido à nossa vida. Aciência moderna construiu-se contra osenso comum que considerou superficial,ilusório e falso. A ciência pós-modernaprocura reabilitar o senso comum porreconhecer nesta forma de conhecimentoalgumas virtualidades para enriquecera nossa relação com o mundo. É certoque o conhecimento do senso comumtende a ser um conhecimento mistificadoe mistificador mas, apesar disso e apesarde ser conservador, tem uma dimensãoutópica e libertadora que pode serampliada através do diálogo com oconhecimento científico. Essa dimensãoaflora em algumas das características doconhecimento do senso comum.

O senso comum faz coincidir causa eintenção; subjaz-lhe uma visão domundo assente na ação e no princípioda criatividade e da responsabilidadeindividuais. O senso comum é prático epragmático; reproduz-se colado àstrajetórias e às experiências de vida deum dado grupo social e nessacorrespondência se afirma fiável esecurizante. O senso comum étransparente e evidente; desconfia daopacidade dos objetivos tecnológicos edo esoterismo do conhecimento que osprojeta em nome do princípio daigualdade do acesso ao discurso, àcompetência cognitiva e à competêncialingüística. O senso comum é superficialporque desdenha das estruturas queestão para além da consciência, mas, porisso mesmo, é exímio em captar aprofundidade horizontal das relaçõesconscientes entre pessoas e entre pessoas

e coisas. O senso comum é indisciplinar eimetódico; não resulta de uma práticaespecificamente orientada para oproduzir; reproduz-se espontaneamenteno suceder quotidiano da vida. O sensocomum aceita o que existe tal comoexiste; privilegia a ação que não produzarupturas significativas no real. Porúltimo, o senso comum é retórico emetafórico; não ensina, persuade.

À luz do que ficou dito atrás sobre oparadigma emergente, estascaracterísticas do senso comum têm umavirtude antecipatória. Deixado a simesmo, o senso comum é conservadore pode legitimar prepotências, masinterpenetrado do conhecimentocientífico pode estar na origem de umanova racionalidade. Uma racionalidadefeita de racionalidades. Para que estaconfiguração de conhecimentos ocorraé necessário inverter a rupturaepistemológica. Na ciência moderna aruptura epistemológica simboliza osalto qualitativo do conhecimento dosenso comum para o conhecimentocientífico; na ciência pós-moderna osalto mais importante é o que é dadodo conhecimento científico para oconhecimento do senso comum. Oconhecimento científico pós-modernosó se realiza enquanto tal na medidaem que se converte em senso comum.Só assim será uma ciência clara quecumpre a sentença de Wittgenstein,"tudo o que se deixa dizer deixa-sedizer claramente"61. Só assim seráuma ciência transparente que fazjustiça ao desejo de Nietzsche aodizer que "todo o comércio entre oshomens visa que cada um possa ler na almado outro, e a língua comum é aexpressão sonora dessa almacomum"62.

A biência pós-moderna, aosensocomunizar-se, não despreza oconhecimento que produz tecnologia,mas entende que, tal como oconhecimento se deve traduzir emautoconhecimento, o desenvolvimentotecnológico deve traduzir-se emsabedoria de vida. É esta que assinalaos marcos da prudência à nossa aventura

61 L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus. Frankfurt, Suhrkamp, 1973, 4.116.62 Nietzsche, "Rhetorique et Langage"; Poetique, 5 (191), p. 139.

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científica. A prudência é a insegurançaassumida e controlada. Tal comoDescartes, no limiar da ciência moderna,exerceu a dúvida em vez de a sofrer, nós,no limiar da ciência pós-moderna,devemos exercer a insegurança em vezde a sofrer.

Na fase de transição e de revoluçãocientífica, esta insegurança resulta aindado fato de a nossa reflexãoepistemológica ser muito mais avançadae sofisticada que a nossa prática científica.Nenhum de nós pode neste momentovisualizar projetos concretos de

investigação que correspondaminteiramente ao paradigma emergenteque aqui delineei. E isso é assimprecisamente por estarmos numa fasede transição. Duvidamos suficientementedo passado para imaginarmos o futuro,mas vivemos demasiadamente o presentepara podermos realizar nele o futuro.Estamos divididos, fragmentados.Sabemo-nos a caminho mas nãoexatamente onde estamos na jornada.A condição epistemológica da ciênciarepercute-se na condição existencial doscientistas. Afinal, se todo o conhecimentoé autoconhecimento, também todo odesconhecimento é autodesconhecimento.