150
DANIEL DOBRIGKEIT CHINELLATO POR UMA RAZÃO ESTÉTICA: UM ELO ENTRE O INTELIGÍVEL E O SENSÍVEL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual de Campinas, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes. Área de concentração: Arte, Cultura e Sociedade Orientador: Prof. Dr. João Francisco Duarte Jr. CAMPINAS 2007

UM ELO ENTRE O INTELIGÍVEL E O SENSÍVELlivros01.livrosgratis.com.br/cp127292.pdf · 1 A expressão “razão estética” foi sugerida por Marc Jimenez em seu livro “O que é

Embed Size (px)

Citation preview

DANIEL DOBRIGKEIT CHINELLATO

POR UMA RAZÃO ESTÉTICA:

UM ELO ENTRE O INTELIGÍVEL E O SENSÍVEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual de Campinas, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes. Área de concentração: Arte, Cultura e Sociedade Orientador: Prof. Dr. João Francisco Duarte Jr.

CAMPINAS 2007

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

II

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

Título em inglês: “The Course of Aesthetic Reason: Bonding the Intelligible and the Sensitive” Palavras-chave em inglês (Keywords): 1. Aesthetics. 2. Reason 3. Aesthetic Experience 4. Modernity 5. Sensitive. Titulação: Mestre em Artes Banca examinadora: Prof. Dr. João Francisco Duarte Júnior Prof. Dr. José Roberto Zan Prof. Dr. João Francisco Regis de Morais Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto (suplente) Prof. Dr. Valério José Arantes (suplente) Data da Defesa: 10-08-2007 Programa de Pós-Graduação: Artes

Chinellato, Daniel Dobrigkeit.

C441p Por uma razão estética: um elo entre o inteligível e o sensível /

Daniel Dobrigkeit Chinellato. – Campinas, SP: [s.n.], 2007.

Orientador: João Francisco Duarte Júnior. Tese (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Estética 2. Razão 3. Experiência Estética 4. Modernidade

5. Sensibilidade. I. Duarte Júnior, João Francisco. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia)

V

Dedico este trabalho aos meus pais, José

Augusto e Carola. Reconheço e agradeço a chance que vocês me deram para seguir meus sonhos; sem vocês nada disso teria sido possível.

VII

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos professores, funcionários e

colegas do Instituto de Artes da Unicamp.

Saliento um especial agradecimento ao Professor Dr. José Roberto Zan e ao

Professor Dr. Regis de Morais pelas importantes contribuições nas ocasiões da qualificação

e da defesa. Embora o tempo escasso não tenha possibilitado o aprofundamento e a leitura

atenta da, por eles sugerida, bibliografia (e conseqüentemente seu uso neste trabalho)

prometo, numa futura pesquisa, levar todos seus apontamentos em cuidadosa consideração.

Deixo aqui registrada a minha mais profunda gratidão ao Professor Dr. João

Francisco Duarte Jr.; se hoje consigo vislumbrar, transcrito em papel, uma parte das minhas

questões pessoais, o mérito é dele. Freqüentemente sobrecarregado e cansado pelo

atribulado ritmo da diretoria do Instituto de Artes, o professor João sempre se prontificou a

corrigir e discutir meus textos (quase sempre abrindo mão das suas preciosas horas de

descanso). Hoje, mais do que um orientador e mestre, considero o João um grande amigo.

E tenho a certeza de que esta amizade há de perdurar por um longo tempo. Obrigado, João!

Deixo também anotado meu agradecimento ao meu amigo e parceiro musical

Andreas (sucesso ao Symbolic Life!). Agora é hora de tentarmos transpor parte das idéias

discutidas aqui em música.

Importantíssima foi ainda a contribuição do meu irmão e amigo David; perdi a

conta das inúmeras vezes em que pedi socorro para lidar com este caprichoso artefato, o

computador.

Agradeço à Janaína pelo apoio, pelo carinho e pelo exemplo de

companheirismo e amor.

IX

Não sou um admirador da preguiça e nem do

acaso. As reflexões que aqui aparecem... não são produto da vaga contemplação do mundo: referem-se a entes que encontrei no caminho rumo a mim mesmo. (Embarcamos rumo a terras distantes, ou buscamos o conhecimento de homens, ou questionamos a natureza, ou buscamos a Deus; depois notamos que o fantasma perseguido éramos Nós mesmos.) Fora de minha rota devem existir outros entes, outras teorias e hipóteses. O Universo de que se fala aqui é meu Universo particular e, portanto, incompleto, contraditório e perfectível.

Ernesto Sabato

Assim, parece que tão-só encerrar-se-á o presente

ciclo da história humana na medida em que maneiras novas de se construir o conhecimento possam gerar atitudes diferentes do homem em relação a si mesmo e a este planeta no qual habitamos, acarretando outras organizações sociais, outras formas de produção e de distribuição de bens e saberes. Neste sentido, talvez a valorização do sensível e a busca de sua integração com o inteligível possa consistir num pequeno e primordial passo rumo a tempos menos brutais e permeados de maior equilíbrio entre as muitas formas de vida conhecidas.

João-Francisco Duarte Jr.

XI

RESUMO

Por Uma Razão Estética: Um Elo Entre o Inteligível e o Sensível

Este trabalho tem como objetivo defender a experiência estética – entendida

como uma forma específica de intencionalidade na qual o inteligível e o sensível se

coadunam para compor o fenômeno estético – como fundamento de uma racionalidade

estética e, conseqüentemente, principal fator constituinte de uma razão que pode, por

analogia, ser nomeada razão estética.

É sobre a complexa trama entre refletido e irrefletido que repousa a contribuição

da experiência estética na constituição dessa razão; através de tal experiência aquela parcela

da dimensão irrefletida que é irredutível à conceitualização tradicional encontra a

possibilidade de ser conscientizada. Desta forma, busca-se vincular à experiência estética a

própria possibilidade de consciência dos dilemas existenciais aos quais o homem é

constantemente exposto em sua vida.

Também considera-se o sujeito desta racionalidade; neste sentido, procuramos

apontar, em primeiro lugar, que o princípio racionalista sobre o qual se pensou estar

edificando a cultura moderna por vezes produziu o efeito contrário do esperado:

irracionalidade. Esta irracionalidade, por sua vez, teria lançado o homem contemporâneo

num estado de incerteza e ansiedade. Assim, a intenção é a de apontar o que se nomeia

“razão estética” como um possível caminho para a superação de uma certa irracionalidade

resultante do processo moderno de racionalização.

PALAVRAS-CHAVES: estética, razão, experiência estética, modernidade, sensibilidade.

XIII

ABSTRACT

The Course of Aesthetic Reason: Bonding the Intelligible and the Sensitive

This work’s central purpose is to defend the aesthetic experience – understood

here as a specific kind of intentionality in which intelligible and sensible combine to

compose the aesthetic phenomenon – as a ground to an aesthetic rationality and, therefore,

as a major requirement for the establishment of a reason that can, by analogy, be called

aesthetic reason.

It is in the complex relation between reflected and unreflected that lies the

possible contribution from the aesthetic experience to the constitution of the aesthetic

reason; the unreflected portion, mostly irreducible to words, can, through the aesthetic

experience, be brought to consciousness. The aesthetic experience is then associated to the

very possibility of consciousness of the existential dilemmas that an individual is

continually exposed to in his life.

This study discusses the effects of aesthetic rationality on the individual; the

starting point here will be, hence, an analysis of the most dominant characteristics of our

society and its influence on the contemporary man. Therein, we first expect to demonstrate

that the rational principle upon which modern civilization was thought to be founded on

produced the contrary effect: irrationality. Subsequently, we will suggest an anxiety derived

from currently existing social-cultural factors. The main intention of this investigation is,

thus, to demonstrate that aesthetic reason is one possibility for overcoming the irrationality

that results from the modern rationalization process.

KEYWORDS: aesthetics, reason, aesthetic experience, modernity, sensitive.

XV

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 1

I – O ABALO DA FÉ NA MODERNIDADE ..................................................................... 15

II – O HOMEM DESNORTEADO...................................................................................... 41

III – UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O FENÔMENO

ESTÉTICO....................................................................................................................... 69

IV – A RAZÃO (DA) ESTÉTICA....................................................................................... 99

CONCLUSÃO.................................................................................................................... 127

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................ 137

1

INTRODUÇÃO

As propostas a serem defendidas neste trabalho podem ser sintetizadas em

poucas palavras: tentar-se-á demonstrar que a experiência estética constitui uma forma

específica de intencionalidade, na qual inteligível e sensível se coadunam para compor o

fenômeno estético. Ademais, a experiência estética será defendida como fundamento de

uma racionalidade estética e, conseqüentemente, principal fator constituinte de uma razão

que deve, por analogia, ser nomeada razão estética1.

As questões aqui debatidas não são novas: tentativas de se pensar a importância

da experiência estética na formação do homem estão, certamente, entre as mais freqüentes

do pensamento filosófico ao longo dos últimos séculos e ressurgem sob diversos rótulos e

nas mais diversas áreas de conhecimento. Há, porém, alguns pontos peculiares na reflexão

que se seguirá. Em primeiro lugar, embora este estudo pretenda discutir uma interpretação

de razão baseada na experiência estética, o leitor não encontrará nas páginas subseqüentes

nenhuma tentativa de descrição das características de um objeto estético. Tampouco

encontrará uma reflexão baseada puramente nos aspectos subjetivos da experiência estética.

Focaremos, sim, o fenômeno estético, entendido aqui como um fenômeno de natureza

relacional no qual um determinado sujeito apreende um objeto através de uma

intencionalidade estética. Além disso, também é peculiar a este estudo a tentativa de

fundamentar nossas discussões no próprio sujeito desta experiência; para que a discussão

seja erigida sobre fundamentos sólidos, partiremos de uma análise das características mais

marcantes da atual sociedade e de seus influxos no homem. Assim, o que se pretende aqui é

apontar o que será nomeado “racionalidade estética” como imprescindível para a formação

do homem contemporâneo. Percebe-se que reside na defesa destas propostas o verdadeiro

trabalho que pode corroborá-las ou abrir espaços para uma contestação tão precisa e justa

que nos impossibilite de considerá-las como possuidoras de qualquer tipo de validade.

1 A expressão “razão estética” foi sugerida por Marc Jimenez em seu livro “O que é estética” (“Em suma, o ponto de concordância estaria em uma outra razão, diferente da razão matemática e lógica, uma razão adaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razão estética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediário entre a razão e a imaginação, entre o entendimento e a sensibilidade”, p.73).

2

O humano, antes de toda concepção de mundo baseada na intelecção, é

possuidor de uma percepção primordial (os sentidos físicos), a qual alicerça toda posterior

linguagem e reflexão, ou seja, encerra em si uma dimensão sensível que fundamenta

qualquer entendimento inteligível. No entanto, jamais se pode falar de um contato físico

direto do homem com o mundo, na medida em que nossa percepção é sempre histórica e

culturalmente educada. E justamente a partir deste convívio entre refletido e irrefletido, e

não exclusivamente através de sua dimensão intelectiva, é que o homem estabelece o

sentido dos fenômenos que vivencia. Não podemos, assim, pretender esgotar a

compreensão de um fenômeno exclusivamente a partir da consciência reflexiva humana.

Segue, também, a impossibilidade de se afirmar o mundo como algo autônomo, existente

independentemente de certa intencionalidade. Isto não quer dizer que o mundo deixa de

existir quando não é objeto de certa mirada, mas somente que, no momento em que o

afirmamos, ele já é fruto de uma determinada intencionalidade. Em outras palavras: o

mundo, e os objetos que nele existem, somente podem ser afirmados enquanto fenômenos.

Conseqüentemente, o homem está em constante diálogo com seu mundo: cria o mundo ao

mesmo tempo em que é por ele criado. Essa relação homem-mundo ocorre mediatizada de

diversas maneiras e uma dessas é a experiência estética. Desta forma, a experiência estética

não é um acontecimento desenraizado, atemporal e abstrato, pairando acima de um

determinado homem e de um determinado mundo. Cabe ainda dizer que, freqüentemente,

um certo tipo de intencionalidade é compartilhado por indivíduos de uma mesma cultura,

tornando-se um traço social marcante, o que impele-nos também em direção a um olhar

sócio-cultural da atual situação histórica.

Decorre da própria característica deste estudo a necessidade de atentar para o

que, tradicionalmente, são entendidas como áreas distintas do conhecimento. Basta um

rápido olhar pela bibliografia para atestar a presença, por exemplo, de autores sociólogos,

filósofos, críticos de arte, psicanalistas, entre outros. Tal escolha, no entanto, não vem

isenta de ônus, pois uma reflexão que se debruce sobre diversas áreas do conhecimento

deve aceitar de antemão algumas limitações. O primeiro ponto crítico que esta apresenta é

que certamente resultará numa visão incompleta das análises já feitas. Sobra assumir que

essa saída encerra, em sua pretensão, o inevitável fardo de estar pecando por aquilo que não

3

diz. Esta é, porém, uma crítica que pode ser contestada se lançarmos um olhar na própria

história das reflexões filosóficas. Sabemos que há aproximadamente vinte e cinco séculos o

homem vem se colocando perguntas de cunho filosófico, o que nos leva a crer que,

aparentemente, não pode deixar de fazê-lo. Como diz-nos W. Luijpen2, “é a vida que

suscita o perguntar filosófico”. No entanto, como resposta a esse “perguntar” vemos

inúmeros sistemas contraditórios e que se contestam mutuamente. Isso porque “sendo o

filosofar um assunto pessoal, não pode encontrar... seu ponto de partida senão na presença

pessoal do filósofo... à realidade que aí está. Essa presença se chama ‘experiência’.”3 Se

existem diferentes modos de experimentar, podemos argumentar que em cada filosofia

existe a presença de determinado aspecto do real, relativo à forma pela qual o filósofo

percebe a realidade. Um filósofo nunca vai conseguir abarcar toda a realidade uma vez que

é impossível que ele viva completamente uma outra experiência de vida que não seja a dele.

O legítimo filosofar pode ser entendido, portanto, como basicamente uma tentativa de

responder a um questionar pessoal. Abrindo mão de se estabelecer as próprias perguntas,

deixaremos também de obter nossas próprias respostas. “Isso se reduz ao que Heidegger

chama falatório (Gerede). O filosofar passa a ser simplesmente ‘falado’.”4 Sob essa ótica

toda e qualquer filosofia fracassa não tanto pelo que afirma, mas pelo que silencia, pelas

perguntas e respostas alheias e, em última instância, pelos mundos alheios que deixa de fora

de seu entendimento. Logo, se a reflexão aqui presente peca por aquilo que não diz, ela

provavelmente compartilha dessa falha com praticamente toda filosofia que vem se fazendo

nesses últimos vinte e cinco séculos.

Surge também, da tentativa de se coadunar áreas distintas, uma outra

importante questão: a adoção de uma metodologia. Soma-se ainda a dificuldade gerada pelo

fato de que, mesmo em cada uma das respectivas áreas que embasam este trabalho, não

existe um princípio metodológico de aceitação geral. Em nossa defesa podemos tão-só

levantar a hipótese de o método estar indissociavelmente imbricado à própria exposição das

idéias que serão aqui defendidas. Desta forma, método e conteúdo se completariam criando

uma unidade própria e pessoal. Não seria, portanto, possível questionar a “cientificidade” 2 Introdução à fenomenologia existencial, p.17. 3 Ibidem, p.19. 4 Ibidem, p.18.

4

deste presente estudo? Certamente a questão sobre a cientificidade de qualquer escrito

filosófico é um ponto delicado; vivemos, atualmente, num período de instabilidade e de

coexistência de diversas “visões epistemológicas”, resultando um solo instável e

pluralizado sobre o qual as pesquisas vêm tentando se edificar. Vemos, conseqüentemente,

estudos que parecem buscar seu “atestado de validade” na escolha de sua bibliografia ou de

certa visão epistemológica. Existe, porém, o risco de fragmentar-se, desta maneira, o campo

do saber e, conseqüentemente, segmentar as diferentes gamas de estudos em nichos não-

comunicantes, uma vez que, freqüentemente, a própria “direção epistemológica” adotada

pelo trabalho passa a ser, por assim dizer, seu atestado de validade.

Mas qual seria propriamente o sentido da idéia de cientificidade? No

pensamento de Umberto Eco5,

para alguns, a ciência se identifica com as ciências naturais ou com a pesquisa em bases quantitativas: uma pesquisa não é científica se não for conduzida mediante fórmulas e diagramas. Sob este ponto de vista, portanto, não seria científica uma pesquisa a respeito da moral em Aristóteles; mas também não o seria um estudo sobre a consciência de classe e levantes camponeses por ocasião da reforma protestante. Evidentemente, não é esse o sentido que se dá ao termo “científico” nas universidades.

Eco enumera, pois, alguns pontos necessários para que um estudo seja

considerado como científico. Em primeiro lugar o estudo deve debruçar-se sobre um objeto

reconhecível, para logo em seguida acrescentar que “o termo objeto não tem

necessariamente um significado físico. A raiz quadrada também é um objeto, embora

ninguém jamais a tenha visto”.6 No nosso caso, certamente não podemos afirmar somente

um único objeto de estudo; cada um dos capítulos aqui expostos apresenta, por assim dizer,

seu próprio objeto. Deve-se, entretanto, salientar o fato de que a própria natureza das

reflexões que se seguirão parece garantir que cada objeto esteja ligado a certas hipóteses. A

primeira delas, apresentada no primeiro capítulo, repousa numa análise da intencionalidade

característica compartilhada pelo homem contemporâneo, fruto de uma mentalidade que

5 Como se faz uma tese, p.20. 6 Ibidem. p.21.

5

vem sendo construída, principalmente, a partir da Idade Moderna. Num segundo capítulo,

será apresentado o que se considerou ser o resultado desta mentalidade para o homem

contemporâneo. Já o terceiro capítulo abre-se como um grande parêntese na nossa

discussão, uma vez que pretende apresentar um entendimento da experiência estética a

partir da fenomenologia existencial. Fazendo uso dos temas abordados nestes três primeiros

momentos, a proposta passará a ser a valorização de uma intencionalidade freqüentemente

obscurecida pelo que aqui se defendeu ser a mentalidade dominante na modernidade

enquanto período histórico. Esta intencionalidade, entendida como estética, é, enfim,

apresentada como sendo fundamento de uma ampliação da concepção de razão.

Percebe-se, pela leitura do parágrafo precedente, que este estudo é amplamente

baseado em propostas ou hipóteses. A possibilidade de verificação e contestação destas

hipóteses é, sem dúvida, um ponto delicado e aqui reside, provavelmente, uma das grandes

diferenças da filosofia para com as ciências exatas. Como exigir de uma pesquisa de cunho

filosófico que ela seja “verificável”? Ou melhor, o que caracterizaria essa verificação para

pesquisas desta natureza? Chegou-se, inclusive, em certos momentos da história da ciência,

a acreditar que a possibilidade de verificação de um estudo poderia somente ser logrado se

a pesquisa fosse conduzida em bases quantitativas. Percebeu-se, entretanto, que esse

princípio não poderia ser aplicado indistintamente a todas as áreas do conhecimento e até

hoje, provavelmente, não podemos apontar um princípio de verificação próprio da filosofia.

Na verdade, atualmente parece estabelecido que o conhecimento científico e o filosófico

são de ordens epistemologicamente distintas, não podendo ser equiparados.

A dificuldade de comprovação e verificação de um estudo filosófico não

significa a ausência de verdade na filosofia, mas apenas “que suas verdades não estão

sujeitas à verificação de fato e aos controles precisos.”7 Que fique claro, no entanto, que

não é o intuito fazer a defesa da cientificidade ou da não-cientificidade das reflexões aqui

contidas, mas simplesmente apontar que não há um princípio metodológico universalmente

aceito que possa ser exigido como condição para que este estudo seja considerado válido.

Um dos pontos mais particulares deste trabalho é sua abrangência. Por que

partir de um terreno tão vasto e amplo e correr o risco de afundar-se em um mar de

7 Luijpen, Op. cit., p.25.

6

reflexões e conceitos tão variados e muitas vezes contraditórios? Certamente isso torna toda

nossa discussão logo de antemão suscetível de um grande número de críticas. Pode-se

facilmente censurar sua pretensão de abarcar conteúdos diversificados, nos quais

dificilmente se acha algum princípio norteador, e de tentar criar, a partir dessa pluralidade

de reflexões, um quadro dotado de sentido. Mas tal tarefa não soa assustadoramente

próxima da necessidade do homem contemporâneo, vivendo num mundo no qual coexistem

diferentes ordens de valores e comunidades de sentido em grande escala dissonantes?

Certamente é necessária a apresentação de uma justificativa que demonstre se tratar de uma

escolha consciente e não de um “acaso”, no qual o estudante escolhe um tema por demais

amplo sem se dar conta das dificuldades que ele apresenta. Deve-se, portanto, reconhecer

que o presente estudo possui certas limitações intrínsecas, mas também que, se assim

ocorre, é em função de uma visão de mundo que o fundamenta. Estudar a experiência

estética desvinculada de determinado homem, neste caso, do homem contemporâneo é, na

melhor das hipóteses, uma abstração didática e não se assemelha em nada com o que ocorre

no campo dessa experiência que é, obviamente, humana8. Todas as experiências humanas

são baseadas no pressuposto de que o homem existe, tomado literalmente: “o homem como

sujeito ex-sistit, colocando-se fora de si mesmo”.9

A idéia da existência porém, quer precisamente exprimir que a subjetividade humana não é real sem o mundo. Quer significar que o mundo pertence à essência do homem, de modo que, deixando-se de lado o pensamento do mundo, também o sujeito não pode mais ser afirmado.10

Vemos surgir a necessidade de se atentar para a dimensão relacional entre

objetivo e subjetivo, focando, assim, o próprio local no qual o “pacto” entre corpo11 e

mundo é estabelecido. E ainda que esta questão não faça parte de nossas preocupações aqui,

8 Ainda que esta figura, “homem contemporâneo”, seja também uma abstração generalizante, uma categorização alargada. Contudo, só se pode fazer ciências ou reflexões filosóficas tomando-se categorias gerais (às quais pertencem os seres humanos). É impossível fazer ciência do indivíduo. (cf. Rubem Alves, Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras) 9 Luijpen, Op. cit., p.52. 10 Ibidem, p.53. 11 “Meu corpo é também o que me abre para o mundo, onde me põe em situação.” (Merleau-Ponty apud Luijpen, op. cit., p.56).

7

é interessante assinalar (e apenas assinalar) ser nessa interseção entre subjetivo e objetivo o

local em que encontramos a origem da maior parte das assim chamadas perturbações

psíquicas.

Estas não são causadas por processos unilaterais e determinantes oriundos de estímulos do “mundo exterior”, nem tampouco podem ser entendidas como exteriorizações de uma desorganização no “mundo interior”. São antes uma ruptura entre o corpo e o mundo, quase sempre de caráter afetivo, ruptura que não pode ser restaurada por um esforço pessoal de ordem intelectual ou por uma decisão da vontade, mas há de sê-lo por uma nova abertura do corpo para o mundo e para os outros.12

A passagem acima pode servir de ponto de partida para a elucidação do que se

seguirá no presente estudo. Entendemos aqui que a crise por nós enfrentada atualmente

colabora para o surgimento de um certo distanciamento entre o homem e mundo,

característica do modo de ser contemporâneo. A forma com que essa crise se manifesta,

pelo menos no âmbito da reflexão filosófica, é a de uma crítica da modernidade que,

freqüentemente, acaba por apontar um certo mal-estar cultural contemporâneo.

Ao fazer uma análise dos principais diagnósticos desse mal-estar encontramos

três principais leituras, cada qual com uma solução peculiar. A primeira delas entende a

crise contemporânea como sendo causada por um enfraquecimento “das inibições morais,

ao clima de permissividade e à decadência da autoridade”13, ou seja, uma crise do superego,

e vê no restabelecimento de um superego social o caminho para a reestruturação social.

Vale ressaltar que a maioria de seus partidários

não defendem um aparelho repressivo de leis e dogmas morais destinado a impor o conformismo moral. Depositam pouca confiança em controles externos.... Posicionam-se a favor do superego: vale dizer, por uma moral de tal forma interiorizada, baseada no respeito pela imperiosa presença moral dos pais, professores, pregadores e magistrados, que não mais dependeria do medo de punições ou da esperança de recompensas.14

12 Luijpen, Op. cit., p.59. 13 Christopher Lasch, O mínimo eu , p.182. 14 Ibidem, p.184.

8

A segunda dessas leituras entende que a crise à qual estamos atualmente

expostos pode ser superada através de um fortalecimento do ego, ou seja, da faculdade

racional do ser humano. Para os defensores dessa solução, é através desse fortalecimento

que um indivíduo se torna capaz de lidar de forma satisfatória com a pluralidade de opções

disponíveis, sendo capaz de fazer uso da sua razão para estabelecer juízos morais próprios.

Uma terceira via de entendimento do nosso mal-estar contemporâneo edifica

seus argumentos a partir de uma crítica da razão, ou pelo menos do entendimento de razão

característico da nossa modernidade. Se a segunda leitura propõe um fortalecimento da

faculdade racional do ser humano como alternativa à crise atual, a terceira defende que o

próprio conceito de razão seja revisto. Freqüentemente ambas caminham juntas, propondo,

por assim dizer, o fortalecimento de uma razão re-interpretada. É justamente nesta terceira

corrente que se fundamenta a proposta deste estudo; o sujeito desta “nova razão” deve ser

aquele capaz de dialogar com sua dimensão sensível, da qual o homem moderno foi

apartado (como se tentará demonstrar mais a fundo nos dois primeiros capítulos). Assim,

parece ser necessário o fortalecimento de uma razão que se fundamente numa

intencionalidade que seja capaz de coadunar inteligível e sensível. Esta razão deve valorizar

uma intencionalidade distinta da intencionalidade prática e analítica, orientada

primordialmente pela intelecção. A tentativa será, enfim, demonstrar que a intencionalidade

estética parece satisfazer as exigências que esta re-interpretação de razão impõe. Resulta,

assim, a proposta que um certo equilíbrio entre o sensível e o inteligível – que, talvez pelo

viés da psicanálise pudesse também se dizer entre ego e superego – tenha como um de seus

elementos propiciadores a experiência estética.

Se a proposta parte de uma re-interpretação da razão, faz-se necessário partir de

uma “velha razão”, no caso, o entendimento de razão que veio sendo estabelecido no

desenrolar dos últimos séculos pela nossa modernidade. Entendeu-se amiúde a razão como

sinônimo de entendimento e estando baseada exclusivamente no funcionamento da

intelecção. Mas, como Karl Jaspers15 afirma, “de fato, ela [a razão] não dá nenhum passo

sem o entendimento, mas o supera”. A mentalidade moderna não foi somente responsável

por este “estreitamento” na concepção de razão, mas também pela adoção de um modelo

15 Razão e anti-razão em nosso tempo, p.49.

9

epistemológico racionalista. Assim, junto com a passagem do mundo medieval – no qual o

sagrado e o mágico desempenhavam um papel proeminente – para o mundo moderno,

surgiu a crença de que exclusivamente através desta razão, identificada com o

entendimento, poder-se-ia atingir uma concepção de mundo da qual não fariam parte

sombras e mistérios. Além dessa ruptura com os sistemas de explicações mitológicos e

religiosos, ocorreu também, principalmente em decorrência do estabelecimento e

desenvolvimento da ciência ocidental nos séculos XVI e XVII, uma ruptura com a tradição

aristotélica-escolástica que acreditava serem a lógica e a coerência meios validos para

obtenção de conhecimento, afirmando-se a primazia da experiência, da dimensão empírica,

tanto sobre a coerência quanto sobre a lógica. No entanto, a dimensão física (ou seja, os

sentidos, notadamente o meio pelo qual a razão podia se relacionar com o real) era, para o

pensamento do início da modernidade, responsáveis por falsear nossa percepção do mundo

real. Sendo assim, Descartes, em suas Meditações Metafísicas, prega os equívocos

advindos dos sentidos e defende a inteligência como única fonte confiável de

conhecimento16. Como exemplo, o autor francês afirma que um pedaço de cera não é

nenhuma de suas qualidades físicas – sua cor, seu cheiro, sua consistência –, pois estas

podem mudar sem que a cera deixe de ser cera (a cera pode, por exemplo, através de um

aquecimento, tornar-se líquida). Conseqüentemente, Descartes conclui, nas palavras de

Merleau-Ponty17, que

a verdadeira cera, portanto, não é vista com os olhos. Só podemos concebê-la pela inteligência. Quando acredito ver a cera com meus olhos, só estou pensando através das qualidades que os sentidos captam na cera nua e sem qualidades que é sua fonte comum.

Foram-se, portanto, as tradições metafísicas medievais e ficou a esperança de

que a ciência e a razão pura pudessem apresentar “uma explicação coerente do mundo e do

lugar que nele ocupa o homem”18, e, dessa forma, garantir ao homem a emancipação de

todo e qualquer sofrimento. A primazia e crença nessa razão restrita como único caminho 16 A limitação decorrente da própria natureza dos sentidos humanos também foi tratada por Galileo e posteriormente por Kant. A visão kantiana será apresentada no terceiro capítulo. 17 Conversas 1948, p.4-5. 18 Christopher Lasch, op. cit., p.24.

10

capaz de emancipar o homem de seus sofrimentos perdurou por um longo tempo até serem

questionadas, de forma mais enfática, por Freud e Nietzsche. Cabe aqui salientar que,

embora tenha ganhado corpo com estes dois pensadores, a crítica ao conceito iluminista de

razão é certamente anterior a ambos e remete ao pensamento conservador pós-revolução

francesa.19 A partir daí, a fé na modernidade, arraigada na fé na razão (ou num certo modo

de a razão se exercer) começa cada vez mais a ser questionada, até que, após o desenrolar

de duas guerras mundiais e da ameaça de uma guerra nuclear que colocaria toda a vida na

terra em ameaça, a crítica da razão passasse a ser um dos temas principais da reflexão

crítica da segunda metade do século XX.

Depois de Freud a razão, já separada da emoção por três séculos de método

científico, passou a ser vista como não mais diretamente relacionada com a vontade

consciente. Conteúdos inconscientes também reclamavam sua porção quando se tratava de

nortear os atos e vontades do homem. Se até aquele momento, pelo menos numa

interpretação mais difundida, a razão podia responder a qualquer problema e a vontade era

o caminho para superá-lo, a partir desse ponto o homem vê-se órfão de um princípio de

significação pessoal do qual pudesse resultar a construção de uma personalidade integrada.

Percebe-se que a razão transformada em racionalização intelectualista não podia mais do

que resultar na “compartimentalização da personalidade, com as resultantes depressões e

conflitos entre instinto, ego e superego, que Freud tão bem descreveu”20. O homem

mergulha num período no qual a ansiedade é o sentimento mais característico, sentindo-se

desnorteado frente a uma pluralidade de sentidos, os quais não consegue articular de modo

coerente. O uso exclusivo da razão intelectualista havia, enfim, se mostrado inadequado

para esgotar o sentido do mundo ou da existência humana. Nas palavras de Gilberto de

Mello Kujawski21, “o colapso da razão pura, seu esgotamento, na medida em que não serve

para viver, em que falhou para enfrentar e interpretar os problemas humanos, marca o fim

do utopismo e o crepúsculo da modernidade.”

Retomando nesse ponto as leituras do mal-estar contemporâneo percebemos

que tanto a proposta de fortalecimento do superego quanto a proposta de fortalecimento do 19 Ver, por exemplo, Louis de Bonald (1754-1850) e Joseph de Maistre (1754-1821). 20 Rollo May, O homem à procura de si mesmo, p.42. 21 A crise do século XX, p.174.

11

ego fazem eco ao que Rollo May chama de “compartimentalização de personalidade”,

decorrente de uma razão tornada instrumental. Dificilmente se podem evitar as depressões e

os conflitos originários dos embates entre instinto, ego e superego se a própria concepção

de razão não for repensada, que é, exatamente, o que pretendeu fazer uma parte da crítica

da razão há mais de dois séculos. Como resume Sérgio Paulo Rouanet22,

depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não há como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, não é possível escamotear o lado repressivo da razão [deve-se salientar, no entanto, que o lado repressivo da razão já estava apontado na obra de Weber], a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão.

Essa nova razão seria uma razão que não prega sua emancipação de todo e

qualquer conteúdo que esteja vinculado à sensibilidade. Entende que sua racionalidade só

pode ser construída considerando o diálogo entre razão e sensibilidade, entre o inteligível e

o sensível, harmonizando essas duas faculdades. Trata-se de uma razão que não opõe o

sujeito ao objeto e que considera o corpo como aliado e não mais como adversário. Essa

“nova razão” considera o inconsciente, não somente no sentido mais comum do termo, o de

conteúdos psíquicos reprimidos, mas no sentido de uma dimensão psíquica anterior à

consciência23, e que serve de suporte para qualquer saber, ou seja, para a intelecção, para a

intuição, para a memória, e para a criatividade. Esse entendimento de inconsciente resgata,

também, o corpo como elemento a ser considerado na formação do homem. Isso porque

entende que o mundo não se apresenta ao homem como um desfilar de parâmetros

potencialmente matemáticos, exclusivamente legíveis através da intelecção. Anteriormente

22 As razões do Iluminismo, p.12 [comentário nosso]. 23 Aliás, como já afirmou Rubem Alves, “a palavra inconsciente é apenas o nome para os pensamentos que moram no corpo, sem que a cabeça tenha deles notícia”. (apud João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.138).

12

à ordenação inteligível, é o corpo que busca lançar suas redes sobre o mundo, procurando

estabelecer significações numa tentativa de interpretar o meio em que se encontra.

O corpo não é, portanto, uma matéria passiva, submetida ao controle da vontade, obstáculo à comunicação, mas, por seus mecanismos próprios, é de imediato uma inteligência do mundo. Esse conhecimento sensível inscreve o corpo na continuidade das intenções do indivíduo confrontado a seu ambiente; ele orienta em princípio seus movimentos ou suas ações sem impor a necessidade preliminar de uma longa reflexão.24

Desta forma, essa “nova razão” a se buscar pode ser batizada de diversas

maneiras. Nietzsche nos fala de uma “grande razão” em oposição à uma “pequena razão”,

enquanto o filósofo Ortega y Gasset defende uma “razão vital”, mais efetivamente ligada à

vida da forma que ela é, de fato, vivida. O sociólogo Edgar Morin aponta para uma “razão

aberta”, ao lado de Michel Maffesoli que a nomeia como “razão sensível”. Claro que não

pretendemos afirmar aqui que todos esses conceitos de razão coincidem uns com os outros,

mas, sim, apontar que diversas propostas se preocuparam com o fortalecimento de uma

razão fechada em si mesma e alienada de suas limitações. A busca portanto, é de uma razão

mais ampla, que congregue em si as muitas maneiras de ela se exercer.

Embora pareça ser necessário evitar, nesta tentativa de ampliação da idéia de

razão, o domínio incondicional do inteligível sobre o sensível, também deve se atentar para

que o sensível não sucumba ao irracional. Para tal

há uma solução possível, mas ela exige duas condições: de um lado, que a razão, tão eficaz nas ciências, renuncie à sua ambição totalizadora e universalizante; que ela, de qualquer forma, abrande-se; de outro lado, que seja possível responder, racional e conceptualmente, pela imaginação e pela sensibilidade, e admitir que elas também constituem faculdades cognitivas e são assim geradoras de conhecimento. 25

Eis a vantagem de se nomear esta “nova razão” uma razão estética: esta opção a

relaciona com a experiência estética que conclama, no momento de sua consolidação,

muitas das principais propostas desta ampliação da razão. É imprescindível, portanto,

24 David Le Breton, Adeus ao corpo, p.190. 25 Marc Jimenez, O que é estética?, p.73.

13

deixar claro quais os pressupostos que fundamentam nossa concepção de experiência

estética. Uma completa exposição do assunto ocuparia um espaço demasiado extenso para

uma introdução e merecerá um foco maior num capítulo próprio. No entanto, pode-se

adiantar que esse trabalho faz eco a freqüentes tentativas que, durante o século XX,

tentaram relacionar a estética com a fenomenologia. Um dos mais notáveis trabalhos nesse

sentido foi realizado pelo filósofo Mikel Dufrenne. Influenciado por Husserl, Sartre e

Merleau-Ponty, Dufrenne, como nos diz Roberto Figurelli na introdução à edição brasileira

de Estética e Filosofia, “preenche uma lacuna da fenomenologia e afirma a possibilidade de

uma estética fenomenológica”26.

A experiência estética, que aqui, grosso modo, consideraremos como a

experiência do belo, abrange em si um tipo de relação em que a dicotomia sujeito-objeto é

momentaneamente suspensa27. A forma ordinária de relacionamento que o homem

experimenta na vida cotidiana, marcadamente baseada na classificação e distinções de

objetos isolados, é posta de lado em benefício de um êxtase provisório. Nesse êxtase se

realiza um acordo entre sensibilidade e intelecção, fazendo com que o homem se sinta “no

mundo”. Isso porque o objeto estético, fruto de um determinado modo de intencionalidade

dirigido ao mundo, “não... propõe uma verdade a respeito do mundo; ele... descortina o

mundo como fonte de verdade”28. Na experiência estética a percepção não tem a pretensão

de ser nada mais do que percepção, sem se render, pelo menos num primeiro momento, ao

intelecto que, no intuito de dominar o objeto percebido, tenta encerrá-lo em abstrações

conceituais. Desta forma, o objeto estético apresenta uma dimensão inefável do mundo,

uma dimensão mais efetivamente conectada ao que de fato vivemos enquanto seres

enraizados num corpo. O mundo que a experiência estética coloca diante do homem é um

mundo diferente daquele que nos fala nossa intelecção, orientada à uma compreensão

lógica e racional do que apreende. No entanto, se o mundo surge distinto, não é porque se

transfigura em algo novo, mas porque o homem para quem esse mundo surge, dirige-lhe

26 Roberto Figurelli, Introdução à edição brasileira de “Estética e Filosofia” de Mikel Dufrenne, p. 19. 27 Não esquecendo que, para Kant, a experiência estética abrange, ainda que em menor grau, além da experiência do belo, também a experiência do sublime e do gracioso. 28 Mikel Dufrenne, Estética e filosofia, p.53.

14

uma nova forma de intencionalidade na qual sentimento e pensamento igualam-se em

importância, articulando-se e completando-se.

O que caracteriza um objeto estético não é, portanto, nenhuma de suas

características físicas, mas sim a relação que se estabelece entre o sujeito-de-uma-

intencionalidade e o objeto-de-sua-intencionalidade. É na “esfera do entre”, ou na palavra

de Heidegger, no dazwischen, que se consolida a natureza do objeto estético.

Não será justamente a valorização de uma intencionalidade que coadune, em pé

de igualdade, o inteligível e o sensível e que possibilite, desta forma, que o homem retorne

ao mundo da vida e re-signifique os laços que o prende ao mundo essencial para que se

consolide uma nova abertura do homem para o mundo e para os outros?

15

I – O ABALO DA FÉ NA MODERNIDADE

Acreditou-se que o progresso estava automaticamente garantido pela evolução histórica. Acreditou-se que a ciência seria sempre progressiva, que a indústria sempre traria benefícios, que a técnica só traria melhorias. Acreditou-se que as leis históricas garantiriam o desenvolvimento da humanidade e, tomando por base esse argumento, acreditou-se ser possível atingir a salvação na terra, ou seja, o reino da felicidade que as religiões prometiam no céu. O que se constata hoje é o abandono da idéia de uma salvação na terra.

Edgar Morin

Assim, não há hoje quem não fale em crise, por este ou aquele motivo, neste ou naquele contexto. E tal crise vincula-se diretamente a um certo estilo de vida que a humanidade veio adotando ao longo dos últimos séculos, notadamente no outrora chamado “mundo ocidental”. O que se está assistindo, portanto, consiste talvez no mais radical questionamento sofrido por essa forma de viver adotada pelos seres humanos, cujos parâmetros e princípios definem o conceito de modernidade.

João Francisco Duarte Jr.

Em todo caso, trata-se menos de rejeitar a modernidade do que de discuti-la.

Alain Touraine

16

Que a cultura mundial passa atualmente por uma crise é ponto comum entre

grande parte daqueles que se ocupam em pensar o atual momento histórico. Muitos chegam

inclusive a defender, na ânsia de vislumbrar um futuro diferente do passado, o fim da

modernidade e o surgimento de uma pós-modernidade. Para o presente trabalho, mais

importante do que discutir o possível nascimento de uma pós-modernidade ou uma

sobrevida da modernidade é saber que, se há uma crise, ela traz consigo um questionamento

do projeto moderno. A fé num progresso baseado na razão, que traria nada além de

abundância, liberdade e felicidade, sucumbe frente aos sentimentos de ansiedade e de medo

por um possível destino funesto para toda a humanidade. Guerras, violência, fome,

desestabilidade social, desequilíbrio ambiental e o surgimento de novas doenças

consolidam-se como características marcantes de um século XX que encontra, na crítica da

razão identificada com uma dada racionalidade cientificista e tecnicista, o tom de boa parte

das reflexões na área das humanidades. Evidentemente tais características não são

peculiares somente ao nosso atual momento histórico, mas surgem como evidências de uma

promessa não cumprida. Suas simples existências nos lembram que, se o estágio atual da

cultura mundial é fruto de um projeto racionalista que previa a emancipação de todos os

males, esse projeto fracassou. Vemos, portanto, que a manifestação desse abalo da fé na

modernidade que, primeiramente se baseava numa crítica de uma certa concepção de razão,

freqüentemente deságua, por um certo exagero, numa rebelião contra a própria idéia de

razão, que ronda, perigosamente, os limites do irracionalismo. Destarte, se num primeiro

momento o questionamento à razão tomou ares de contracultura e fundamentou-se numa

atitude crítica, atualmente este corre o risco de se perder num certo irracionalismo que vê a

razão como algo hostil à vida. Não é raro também que, nesta leitura um tanto quanto

estreita, a reflexão passe a ser identificada com a própria razão fracassada e,

conseqüentemente, contraposta e subvalorizada por exaltação da prática e da técnica em si.

Vemos muitas vezes, inclusive no âmbito acadêmico, esta preocupante contraposição entre

o fazer e o pensar. No entanto, poucos se dão conta de que essa razão que vem sendo

contraposta à prática é tão-somente uma razão tecnocrática, uma razão fechada em si e com

impulsos totalizantes. Segundo Sérgio Paulo Rouanet1,

1 Op. cit., p.20.

17

a alternativa legítima não é entre a prática e a razão tecnocrática, mas entre a razão tecnocrática e a outra razão, capaz de transformar a prática. Temos que reformular a frase de Goethe: “Cinzenta é toda teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida”. Verde é toda teoria que liberta a vida, e cinzenta toda vida que se fecha à razão.

Muito se discutirá, nos próximos capítulos, a proposta de uma nova concepção

de razão, acima de tudo capaz de dialogar livremente com toda a dimensão prática, uma vez

que está enraizada no próprio universo do qual a razão tecnocrática veio tentando se

emancipar. No entanto, por ora, devemos concentrar-nos na difícil tarefa de apontar as

características marcantes de uma modernidade que atualmente aparece rodeada de críticas

das mais disparatadas, para assim resultar uma possível leitura do cenário sócio-cultural no

qual o homem contemporâneo está inserido.

Uma questão que certamente pode ser levantada diz respeito ao próprio início

do período histórico que estamos chamando de modernidade. Este, certamente não é um

ponto de fácil esclarecimento uma vez que toda periodização, em se tratando de história, é

problemática. No entanto, podemos compreender a idéia de uma Idade Moderna a partir de

uma concepção que vê no desenrolar da história uma sucessão de três momentos distintos:

Idade Antiga, Idade Média e, por fim, a Idade Moderna. Enquanto alguns pensadores

preferem fazer coincidir o início da Idade Moderna com a queda de Constantinopla em

1453, existem outros como, por exemplo Michel Foucault, que defendem que a

modernidade só foi propriamente inaugurada em 1784 com o ensaio de Kant intitulado “O

que é Iluminismo?”.2 Muito mais válido, portanto, do que datar seu início, é a tentativa de

abarcar as características dos processos desse período que levaram a uma civilização

baseada na razão e na tecnologia. Em suma, o que se tentará demonstrar neste capítulo é

que, no decorrer daquilo que se convencionou chamar modernidade ocorreu uma

desvalorização do sensível através de dois principais movimentos: a edificação de uma

mentalidade quantificadora e calculista e a consolidação de um entendimento restrito de

razão.

2 Cf. Sérgio Paulo Rouanet, Op. cit., p.239.Este ensaio (cujo título original é “Was ist Aufklärung?”) é freqüentemente traduzido como “O que é esclarecimento?” ou ainda como “O que é ilustração?”.

18

A análise da valorização de uma mentalidade quantificadora e calculista leva

nosso olhar de volta à Idade Média, mas especificamente aos séculos XII e XIII, época de

um trânsito crescente com o oriente em decorrência das cruzadas. São estabelecidas, então,

as primeiras rotas comerciais entre a Europa medieval e o oriente, juntamente com a idéia

de lucro e de riqueza a partir desse comércio. Se até aquele momento era comum entre o

povo a prática do escambo, ou seja, a troca de mercadorias sem o uso da moeda3, a partir

dele foi necessário estabelecer diretrizes gerais que pudessem incluir na transação

comercial uma nova classe burguesa emergente. Para tal, foi necessário que o dinheiro

fosse popularizado e elevado à condição de essencial. Paralelamente, a nova prática

comercial exigia que as distâncias fossem corretamente mensuradas, uma vez que os gastos

com o transporte deveriam ser computados no preço final da mercadoria. “Estavam, desta

forma, sendo concretizados os alicerces da modernidade, no estabelecimento de uma

mentalidade quantificadora e calculista, a qual foi se espalhando ao longo dos séculos

seguintes e penetrando os mais diversos ramos da atividade humana.”4

Decisivos na consolidação dessa mentalidade moderna foram também a

invenção do relógio no século XIV, que contribuía quantificando o tempo, distanciando o

ser humano de uma apreensão mais direta dos ciclos da natureza5 e o desenvolvimento de

uma teoria da perspectiva no âmbito do desenho, principalmente através dos estudos de

Alberti, Piero de la Francesca e Leonardo da Vinci, que resultaram na geometrização do

espaço. Por fim, podemos ainda citar Brunelleschi, pai da arquitetura moderna, que projeta

pela primeira vez uma catedral na superfície de um papel.

Brunelleschi contribui, assim, para transformar definitivamente o espaço, de um meio onde o corpo vive e se movimenta, numa abstração matematizada e geometrizada sobre uma superfície plana. Dos sentidos para o cérebro, de acordo com as exigências modernas.6

3 Embora a moeda tenha existido desde a antiguidade remota seu uso não era popularizado. Segundo Fritjof Capra: “Muitas sociedades arcaicas usaram o dinheiro, incluindo moedas metálicas, mas estas eram usadas para o pagamento de impostos e salários, não para a circulação geral.” (op.cit.,p.186). 4 João Francisco Duarte Jr., Itinerário de uma crise: a modernidade, p.16. 5 Cf. Ibidem, pp.16-17. 6 Ibidem, p.19.

19

Certamente não se há aqui de criticar as brilhantes mentes acima citadas. Suas

realizações entraram na história como impressionantes exemplos da genialidade humana.

No entanto, suas obras dialogam diretamente com a cultura em que estavam inseridas e,

desta forma, eles se tornam ícones das suas respectivas épocas, ao mesmo tempo em que

influenciaram o estabelecimento da mentalidade subseqüente.

Vemos, portanto, na passagem da Idade Média para Idade Moderna uma lenta

migração de uma apreensão do mundo qualitativa para uma apreensão quantitativa,

resultando, por assim dizer, dois modus operandi diversos. Segundo Ernesto Sabato7,

a característica da nova sociedade é a quantidade, o número. O mundo feudal era um mundo qualitativo: o tempo não se media, vivia-se em termos de eternidade e o tempo era o natural para os pastores, do despertar e do descanso, da fome e do comer, do amor e do crescimento dos filhos, o pulsar da eternidade; era um tempo qualitativo, o que corresponde a uma comunidade que não conhece o dinheiro.

Tampouco se media o espaço, e as dimensões das figuras em uma ilustração não correspondiam às distâncias nem à perspectiva: eram expressão da hierarquia.

Mas quando irrompe a mentalidade utilitária, tudo se quantifica. Em uma sociedade na qual o simples transcurso do tempo multiplica os ducados, em que o “tempo é ouro”, é natural que se meça minuciosamente.

Há de se salientar que a expansão da mentalidade calculista às mais diversas

áreas gerou um formidável desenvolvimento humano nos primeiros séculos da

modernidade. Não menos importante foi a contribuição desta mentalidade na

fundamentação da ciência experimental moderna que teve, no século XVII, suas bases

estabelecidas por meio, principalmente, de duas pessoas: René Descartes, considerado um

dos precursores filosofia moderna, e o do filósofo, astrônomo e matemático italiano Galileu

Galilei. O primeiro,

com seu método da dúvida sistemática, coloca sob suspeita as verdades até ali estabelecidas e separa a relação homem/mundo em dois pólos distintos, o do sujeito que investiga e o do objeto que se deixa investigar, bem como restringe o saber confiável àquele passível de ser expresso em

7 Homens e engrenagens, p.30.

20

números, reduzindo a natureza e as coisas do mundo à extensão, isto é, à sua dimensão mensurável.8

Descartes questiona ainda a veracidade de qualquer evento ou objeto que não

possa ser expressa de forma numérica. Em suas próprias palavras,

não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados desse modo, penso que não há necessidades de admitir outros princípios da física, nem que sejam desejáveis. 9

Já Galileu Galilei, promove um afastamento da tradição aristotélica, deixando

de lado o interesse pelos “princípios” dos movimentos na natureza, que, na sua opinião,

estava escrita numa linguagem matemática, sendo o objetivo do cientista formular as

equações que regiam as leis dos movimentos naturais. Como o próprio Galileu10 nos

explica,

a filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.

A questão passa então a ser como se medir os movimentos, tarefa para qual a

lógica aristotélica não poderia contribuir. Podemos citar como ilustração da divergência

entre essas duas escolas a discussão sobre a queda livre de dois corpos de pesos diferentes.

Aristóteles afirma, quase vinte séculos antes de Galileu, que o corpo com o maior peso

cairia mais rápido. Galileu, no entanto, afirma a possibilidade de erro contida na lógica

8 João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.43. 9 Apud Fritjof Capra , O ponto de mutação, p.53. 10 O Ensaiador, em Bruno, Galileu, Campanella, p. 119.

21

aristotélica11 e propõe um experimento que comprova que os dois corpos caem em igual

velocidade. Estava, por assim dizer, inaugurada a ciência experimental moderna. Os

sentidos retornam à cena, mas somente como uma etapa intermediária na busca do

conhecimento verdadeiro, expresso numa linguagem matemática.

Responsável por dar formas finais à Revolução Científica, Isaac Newton deu

realidade ao pensamento de Descartes desenvolvendo uma completa formulação

matemática da concepção mecanicista da natureza. Em sua obra Princípios matemáticos de

filosofia natural, Newton apresenta ainda um procedimento sistemático, no qual a descrição

matemática deveria se basear, para chegar à avaliação crítica da evidência experimental.12

Os séculos XVIII e XIX confirmam a teoria newtoniana, uma vez que todos os

experimentos apontavam para a possibilidade de que tudo podia ser entendido sob um

ponto de vista puramente mecanicista e matemático: comportamento de sólidos, líqüidos e

gases (incluindo o calor e o som). O aparente sucesso da ciência quantificada leva,

inclusive, à exigência de que os estudos a respeito do ser humano se submetessem às

mesmas avaliações matemáticas características das ciências exatas. No entanto, como nos

diz Ernesto Sabato13,

frente à infinita riqueza do mundo material, os fundadores da ciência positiva selecionaram os atributos quantificáveis: a massa, o peso, a forma geométrica, a posição, a velocidade. E chegaram à convicção de que “a natureza está escrita em caracteres matemáticos”, quando o que estava escrito em caracteres matemáticos não era a natureza, mas... a estrutura matemática da natureza. Truísmo tão evidente como o de afirmar que o esqueleto dos animais tem sempre caracteres esqueléticos.

Indo ao encontro de Sabato, Max Horkheimer14 defende que “os chamados

fatos determinados por métodos quantitativos, que os positivistas se inclinam a ver como os

únicos científicos, são muitas vezes fenômenos de superfície que obscurecem mais do que

clarificam a realidade subjacente.” 11 “Ocorre que Galileu, na força de sua personalidade contestadora e sobretudo amante da comprovação dos fatos, raciocinava que um pensamento pode ser perfeitamente lógico e enquadrado no bom senso, sem que necessariamente seja verdadeiro.” (Regis de Morais, Filosofia da ciência e da tecnologia, p.38). 12 Cf. Fritjof Capra, Op. cit., p.59. 13 Homens e engrenagens, p.47. 14 Eclipse da Razão, p.88.

22

Devemos, no entanto, salientar que não se pretende, aqui, fazer uma

condenação ao método matemático, mas sim à crença de que nosso conhecimento sobre o

mundo pode ser esgotado matematicamente. Uma senóide ou uma geodésica “podem e

devem ser definidos com rigor absoluto. Pertencentes ao universo matemático, não somente

são puros como não podem deixar de sê-lo.”15 No entanto, uma boa parte das situações que

vivemos no nosso dia a dia nada têm a ver com uma lógica rígida ou com uma análise

matemática. Podemos, inclusive, nos questionar se não são justamente as regiões rebeldes

aos métodos quantitativos as mais valiosas para o homem e seu destino. Desta forma,

Sabato16 conclui que

a ciência exata – isto é, a ciência matematizável – é alheia a tudo o que é mais valioso para um ser humano; suas emoções, seus sentimentos de arte ou justiça, sua angústia frente à morte. Se o mundo matematizável fosse o único mundo verdadeiro, não só seria ilusório um palácio sonhado, com suas damas, bobos da corte e palafreneiros; também o seriam as paisagens da vigília ou a beleza de uma fuga de Bach. Ou pelo menos seria ilusório o que neles nos emociona.

O estabelecimento de uma mentalidade quantificadora e calculista é um aspecto

constitutivo de um processo de racionalização das instituições e da vida em geral. Desta

forma, o estudo da modernidade enquanto consolidação de uma certa visão de mundo que

acabaria por nortear a vida dos seres humanos obriga-nos a apontar uma crescente

racionalização como outra de suas principais características. Dito isto, devemos começar

por propor uma definição para o conceito de racionalização. Para Edgar Morin17,

racionalização

é a construção de uma visão coerente, totalizante do universo, a partir de dados parciais, de uma visão parcial, ou de um princípio único. Assim, a visão de um só aspecto das coisas (rendimento, eficácia), a explicação em função de um fator único (o econômico ou o político), a crença que os males da humanidade são devidos a uma só causa e a um só tipo de agentes constituem outras tantas racionalizações.

15 Ernesto Sabato, O Escritor e seus Fantasmas, p.14. 16 Nós e o Universo, p.23. 17 Ciência com consciência, p.157-148.

23

Morin completa apontando que a racionalização claudica por “querer fechar o

universo numa coerência lógica pobre ou artificial e, em todo caso, insuficiente”18.

Podemos também citar Subirats19, para quem o termo racionalização

possui no pensamento de nosso século uma sólida tradição que começa com a sociologia de Weber e a psicanálise de Freud, e acaba na crítica social de Adorno e Horkheimer. Neste contexto dilatado, a crítica da racionalização remete a um nexo comum: a substituição da realidade vital do ser humano por um paradigma tecnológico. Trata-se, formulando-o ao contrário, da extensão da racionalidade técnico-científica ao conjunto de processos vitais, individuais ou coletivos, sem reconhecimento de sua autonomia real. Semelhante expansão de um modelo de atuação tecnológica aos processos vitais foi discutido tanto no plano sociológico, como epistemológico.

Sendo assim, a tendência moderna à racionalização procura estabelecer uma

visão que compreenda a totalidade do universo simplesmente eliminando da sua teoria os

aspectos que são incompatíveis a uma redução racional, ou ainda tentando moldar a

realidade para que esta se adapte à sua lógica. Vale salientar que o termo racionalização é

usado freqüentemente na psicanálise para caracterizar um mecanismo de defesa que pode

ser definido como o “processo defensivo no qual o indivíduo procura justificar suas ações

de forma coerente desconhecendo entretanto suas motivações inconscientes”.20 Na

definição de Laplanche e Pontalis21, a racionalização é o

processo pelo qual o indivíduo procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, etc., de cujos motivos verdadeiros não se apercebe; fala-se mais especialmente da racionalização de um sintoma, de uma compulsão defensiva, de uma formação reativa. A racionalização intervém também no delírio, resultando numa sistematização mais ou menos acentuada.

Percebe-se que a racionalização não é aqui considerada sinônimo de

racionalidade (ou do uso da razão). Um indivíduo que se utiliza deste mecanismo pode agir

18 Ibidem, p.170. 19 Da vanguarda ao pós-moderno, p.36. 20 Ruth M. Cerqueira Leite, “Glossário com Termos Psicanalíticos”, em Folha de S. Paulo, 23/9/1973. 21 Vocabulário da psicanálise, p. 543.

24

de uma forma aparentemente consciente e racional, quando está, na verdade, sendo

impulsionado por motivações de ordem não-racional. Toda a discussão que se seguirá tem

como objetivo demonstrar que a racionalização num âmbito sócio-cultural pode ser um

processo irracional.

Não podemos deixar de apontar, mesmo que rapidamente, o racionalismo como

variação mais radical da racionalização. Enquanto o último exclui os aspectos

incompatíveis de seu sistema, propondo uma explicação teórica e racional a partir de um

ponto de vista generalizado, o primeiro afirma total concordância entre o racional e a

realidade do universo. Ou seja, os aspectos não-racionais não estão somente excluídos de

seu sistema teórico, mas sim de tudo aquilo que é, por ele, considerado real. Nas palavras

de Edgar Morin22, o racionalismo

é: 1º. uma visão do mundo afirmando a concordância perfeita entre o racional (lógica) e a realidade do universo; exclui portanto, do real o irracional e o arracional; 2º. uma ética afirmando que as ações e as sociedades humanas podem e devem ser racionais em seu princípio, sua conduta, sua finalidade

De forma quase análoga à primeira parte da definição de Morin, para

Kujawski23, “chama-se racionalismo a crença segundo a qual entre a realidade e a razão

existe plena e absoluta transparência; a realidade se comportaria em identidade com as

idéias da razão.”

Após esta rápida apresentação dos termos racionalização e racionalismo,

podemos afirmar que, ligada à crescente racionalização moderna, encontra-se uma

concepção de razão identificada puramente com a intelecção24. Vemos surgir uma oposição

entre a intelecção, identificada com a razão, e o sensível, considerado um obstáculo para o

perfeito funcionamento da razão. Um dos maiores perigos desta separação reside no próprio

funcionamento desta suposta razão que, para manter intacta a cisão, desconfia de tudo que

22 Idem, p.157. 23 Op. cit., p. 119. 24 Segundo Horkheimer: “tanto em discussões laicas quanto no debate científico, a razão vem sendo comumente considerada uma faculdade intelectual de coordenação, cuja eficiência pode ser aumentada pelo uso metódico e pela remoção de quaisquer fatores não-intelectuais, tais como as emoções conscientes ou inconscientes.” (O eclipse da razão, p.18).

25

não é razão (no sentido que ela própria deu ao termo). Este entendimento de razão, em

muitos momentos obcecada com a sua eficácia, balizou boa parte de edificação da nossa

cultura moderna e conduziu à generalização da racionalização.

Pode-se dizer que a industrialização, a urbanização, a burocratização, a tecnologização se efetuaram segundo as regras e os princípios da racionalização, ou seja, a manipulação social, a manipulação dos indivíduos tratados como coisas em proveito dos princípios de ordem, de economia, de eficácia.25

Podemos, como ilustração, rapidamente apontar o influxo da racionalização na

implantação do modelo industrial moderno. Intimamente correlacionada a uma mitificação

do conceito de eficácia26, a característica principal da racionalização industrial foi

“considerar o trabalhador não como pessoa, mas como força física de trabalho”27. A

eficácia passa a ser o princípio legitimador de uma lógica de produção racionalizada: se

algo é eficaz para a produção e pode aumentar os ganhos, deve ser adotado. Atentando para

a expansão do mito da eficácia, Gilberto de Mello Kujawski28 defende que este gera ainda o

seguinte raciocínio: “o que é eficaz, em princípio é bom, seja para o bem-estar material ou a

salvação da alma, para o enriquecimento ou o reforço do Estado, para a educação dos

jovens ou para a conduta moral.” Frente ao conceito mitificado de eficácia, “o bom e o

mau, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, o

agradável e o desagradável, o ético e o não-ético, todos os esquemas valorativos baseados

numa razão mais ampla sucumbem”.29

Esta lógica de produção obcecada com sua eficácia econômica colaborou para o

afastamento entre o homem e seu corpo; este último deveria ser controlado para que não

atrapalhasse a eficácia da produção. Para ilustrar os efeitos decorrentes da implantação

25 Edgar Morin, Ciência com consciência, p.162. 26 “A modernidade é o lugar da luta encarniçada entre eficácia e legitimidade. Esta emana da concórdia social e histórica sobre crenças tradicionais, e atua como princípio sacralizador do mundo. A legitimidade moderna típica foi a legitimidade pela eficácia, que a princípio não era só eficácia técnica, mas também política, racional, jurídica etc.” (Gilberto de Mello Kujawski, A crise do século XX, p.149). 27 Edgar Morin, op. cit., p.162. 28 Op. cit, p.136. 29 João Francisco Duarte Jr, O sentido dos sentidos, p. 56.

26

dessa lógica de produção, Herbert Marcuse concebe o termo “mais-repressão”, cunhado

sobre o termo freudiano de “repressão”.

De acordo com o pensamento freudiano, para o surgimento da civilização o ser humano houve que reprimir seus instintos fundamentais, tornando possível o aparecimento de leis e normas que regravam a sua correta satisfação naqueles momentos e locais determinados. Para Marcuse, porém, foi necessária uma mais-repressão por ocasião da Revolução Industrial, de maneira que uma quantidade adicional de energia fosse canalizada para a estafante atividade junto às máquinas de então, em jornadas que chegavam a dezesseis horas por dia. O que implicou no estabelecimento de regras morais e de conduta ainda mais severas, na direção de uma condenação aos prazeres do corpo e daquelas atividades não rentáveis no que tange à produção de bens de consumo.30

É importante chamar a atenção para o fato de que, na citação acima, o

estabelecimento de certas regras morais é apontado com um subproduto de um processo de

racionalização. Podemos, portanto, inferir que, da racionalização podem resultar novos

valores éticos, valores morais ou até mesmo valores estéticos mesmo que nenhum destes

valores tenha sido contemplado de forma consciente no estabelecimento do processo. Isto

porque, a racionalização possui, acobertada de suas camadas mais superficiais, uma

dimensão irracional oculta. Em outras palavras: o resultado de um processo de

racionalização nem sempre é racional, como a própria psicanálise já o afirmou. No

entendimento psicanalítico, uma pessoa que desconhece suas reais motivações

inconscientes, age freqüentemente motivada por estas mesmas motivações, mesmo quando

acredita estar agindo de forma consciente e racional. André Dartigues31 aponta-nos a

origem deste paradoxo: “a vida psíquica antecede e excede a reflexão consciente, ela

comporta formações antigas que lhe escapam e determinam sua visada antes que ela tenha

podido esclarecê-las refletindo-as”. A razão demonstra, desta forma, que só pode ser plena

caso atente para a totalidade da vida psíquica, ou seja, também para o não-racional32. A

30 Ibidem, p.48. 31 O que é fenomenologia?, p.53. 32 Preferimos usar o termo não-racional (ou a-racional) ao termo irracional, pois este último carrega uma conotação negativa que não caberia neste caso.

27

opção moderna de não atentar ou até mesmo reprimir o a-racional e os instintos parece

apresentar aqui seus primeiros sinais de fracasso. Como explica Subirats33,

o princípio racional no qual se funda o maquinismo como projeto de dominação não foi elevado a axioma geral da civilização moderna sem produzir simultaneamente seu contrário: a irracionalidade da destruição. O mito da máquina, tanto nas formulações positivas dos apologistas, quanto nas visões sinistras dos detratores, oferece, no fim da era moderna, o panorama cultural de uma radical ambigüidade de significados.

Além do domínio sobre a força de trabalho, este modelo de produção baseou-se

também na exploração da natureza por busca de matérias primas e na desconsideração das

questões ambientais. Vê-se o triunfo de uma razão tornada instrumental34; “seu valor

operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para

avaliá-la.”35 A natureza passa a ser vista como um utensílio, ou seja, passa a ser

considerada somente a partir do uso que dela se faz.

Outra questão problemática da racionalização é que esta, freqüentemente,

considera a razão, identificada exclusivamente com a intelecção, como um ponto de partida

para a edificação da sociedade de uma forma geral ou como um guia para se viver a vida.

Essa é, inclusive, uma das críticas que se faz ao ideal iluminista, o qual propunha a razão

como ponto de partida para a maioridade do homem. Como nos explica Sério Paulo

Rouanet36, a proposta iluminista

se limitava a dizer que o homem já era, de saída, racional e, por desconhecer os limites da razão, deixava o homem indefeso diante da desrazão. Freud descobriu esses limites e com isso armou o homem para a conquista da razão: ela não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada.

33 Da vanguarda ao pós-moderno, p.44. 34 Originalmente proposto por Weber, o tema da instrumentalização da razão foi fundamental nas reflexões desenvolvidas pelos integrantes da chamada Escola de Frankfurt. 35 Horkheimer, op. cit., p.29. 36 Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.143.

28

Para uma melhor compreensão do projeto iluminista deve-se levar em conta

uma das diferenças mais fundamentais entre a Idade Média e a Idade Moderna: o modelo

epistemológico que embasaria a edificação do conhecimento. Na Idade Média acreditava-se

que a chave para a compreensão do presente e do homem se encontrava nas sagradas

escrituras e na leitura dos antigos sábios. Sendo assim, o conhecimento da verdade não

dependia da adoção de um método correto, mas sim do acesso às fontes corretas, restrito a

determinados grupos. Com o início da modernidade percebe-se a limitação desse

pensamento e o homem assume sua parcela de responsabilidade perante a construção do

conhecimento. Para tal, um novo método de busca do conhecimento, baseado, entre outras

coisas, na ampliação da acessibilidade às fontes e às informações, foi necessário. A

invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg ou a tradução da bíblia cristã por

Lutero, são marcos ilustrativos desta mentalidade. Dentro deste projeto e a partir do

Renascimento, ocorre uma valorização do estudo direto dos homens e de seus atos,

inclusive passados, como forma de elaboração do conhecimento no presente. No entanto, o

homem que olhava para seu próprio passado confrontava-se, por assim dizer, com

características profundamente conflitantes com os novos ideais humanistas. Ficava claro

que seria necessário um projeto para o futuro que pudesse corrigir os erros do passado.

Marcado por inúmeros entrepassos, esse processo resulta, no século XVIII, justamente no

ideal iluminista que, nas palavras de Kant,

consiste na superação da minoridade, pela qual o próprio homem é culpado. A minoridade é a incapacidade de servir-se do seu próprio entendimento, sem direção alheia. O Homem é culpado por essa minoridade quando sua causa não reside numa deficiência intelectual, mas na falta de decisão e de coragem de usar a razão sem a tutela de outrem. Sapere aude! Ousa servir-te de tua razão!37

Embora este texto de Kant tenha o objetivo de, primordialmente, questionar a

minoridade religiosa que, segundo o filósofo, “não é somente a mais danosa, mas também a

37 Immanuel Kant apud Sérgio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo, p.30-31.

29

mais desonrosa”38, o projeto iluminista pretendia que o homem encontrasse em si próprio as

armas contra todos os “poderes externos” que até então ditavam o desenrolar das suas

vidas. Tratava-se de devolver ao homem a capacidade de ser senhor de seus atos, e de sua

vida, ou seja, de permitir ao homem o uso de seu próprio entendimento sem a direção de

outrem. Este é, para o Iluminismo, “o entendimento dirigido pela razão”39.

Devemos também salientar que o sucesso da ciência experimental moderna

parecia garantir que, enfim, havia-se desvendado definitivamente o mecanismo de

funcionamento da natureza e que o caminho para a obtenção de toda verdade havia sido

descoberto. A ciência, juntamente com a razão, seria uma cartada certa contra os erros do

passado e, juntas, seriam responsáveis pela redenção do gênero humano. A harmonização

do homem com o mundo objetivo, através do desvelamento de todos os segredos da

realidade seria, enfim, papel da ciência e de suas descobertas. No entanto, a razão,

considerada pelos iluministas uma possível arma contra “poderes externos” acaba por

tornar-se um poder por si só. Para Alain Touraine40,

a particularidade do pensamento ocidental, no momento da sua mais forte identificação com a modernidade, é que ele quis passar do papel essencial reconhecido à racionalização para a idéia mais ampla de uma sociedade racional, na qual a razão não comanda apenas a atividade científica e técnica, mas o governo dos homens tanto quanto a administração das coisas.

Tal fato tem uma profunda influência no projeto de formação/educação do ser

humano. Ainda citando o pensamento de Touraine41, “a formação do homem como sujeito

foi identificada, como se vê melhor nos programas de educação, com a aprendizagem do

pensamento racional e a capacidade de resistir às pressões do hábito e do desejo, para

submeter-se somente ao governo da razão”. A lógica da razão foi contraposta ao corpo e

38 Immanuel Kant, “What is Enlightenment”, in Contemporary Civilization Staff – Columbia College (org.) Contemporary civilization reader, p.342. (minha tradução). Texto original: [“I have emphasized the main point of the enlightenment – man´s emergence from his self-imposed nonage – primarily in religious matters, because our rulers have no interest in playing the guardian to their subjects in the arts and sciences. Above all, nonage in religion] is not only the most harmful but the most dishonrable.” 39 Theodor Adorno e Max Horkheimer. Op. cit., p.81. 40 Crítica da Modernidade, p.20. 41 Idem, p.218.

30

suas paixões, suas sensações e sentimentos. O sujeito moderno, a partir desta cisão, corre o

risco de tornar-se esquizóide.

No entanto,

esta tentativa de para conceber uma sociedade racionalizada não vingou. Antes de mais nada porque a idéia de uma administração racional das coisas que substituiria o governo dos homens é dramaticamente falsa e porque a vida social que se imaginava transparente e governada por escolhas racionais revelou-se repleta de poderes e de conflitos.42

Horkheimer43 vai ainda mais além e afirma que

a razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem. Entregou-os à sanção suprema dos interesses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado.

A tentativa de se discutir a modernidade enquanto projeto não pode deixar de

lado o atual abalo da crença no progresso, garantido que estava pela tríade ciência, técnica44

e indústria, resultando em felicidade, abundância e liberdade. Vemos, inclusive, diversos

efeitos colaterais do desenvolvimento industrial e econômico dos últimos séculos,

resultando, por assim dizer, num grande número de novos problemas, cuja maior parte é de

difícil solução. Assim, o que hoje é chamado de crise da modernidade está, em larga escala,

ligado ao questionamento do projeto moderno de uma sociedade dita racional. Aparece aqui

justamente a capacidade de auto-reflexão da razão; o questionamento do projeto moderno é

fruto da própria atuação da razão, que começa a ter consciência de sua crise. Não se trata,

42 Ibidem, p.39. 43 Op. cit., p.18. 44 Técnica e tecnologia são distinguíveis historicamente. Como Regis de Morais nos explica: “teoricamente a técnica tem como objetivo humanizar a natureza, ou, como entendia Karl Marx, transformar a natureza no corpo inorgânico do homem. E enquanto a atividade técnica manteve esta finalidade, maravilhosas coisas aconteceram em benefício do ser humano. Contudo, os caminhos pelos quais enveredaram a técnica e a ciência em épocas mais próximas são completamente diferentes. Razão pela qual... diremos técnica para mencionar o comportamento criativo do homem paleolítico, neolítico, medieval ou mesmo moderno, que manteve fidelidade à função humanizante da tecnificação; e designamos por tecnologia a prática mais recente da objetiva criatividade humana.” (Filosofia da ciência e da tecnologia, p.102).

31

entretanto, de uma aporia, e sim da identificação de que o que se acreditou ser a razão plena

não passa de uma parcela de suas reais dimensões.

O questionamento do progresso vem sendo impulsionado pela trágica realidade

à qual estamos atualmente expostos, evidenciada na violência social, nas guerras, na

miséria, no desemprego, na fome, na deterioração do meio ambiente, entre outros. Diante

deste suposto fracasso do projeto moderno o ser humano se percebe carente de perspectivas

concretas para o futuro. A busca por novos caminhos surge como uma opção necessária e

hoje, talvez mais do que nunca, faz-se indispensável debater e buscar alternativas que

minimizem a sensação de um futuro funesto e ameaçador. Provavelmente o ponto crucial

para qualquer proposta neste sentido é a de modificar a maneira com que o homem se

relaciona consigo mesmo e com o mundo. Neste sentido, podemos entender as palavras de

Duarte Jr. 45:

parece que tão-só encerrar-se-á o presente ciclo da história humana na medida em que maneiras novas de se construir o conhecimento possam gerar atitudes diferentes do homem em relação a si mesmo e a este planeta no qual habitamos, acarretando outras organizações sociais, outras formas de produção e de distribuição de bens e saberes.

Atualmente vemos, portanto, um tumultuado cenário marcado pela crise da

idéia de modernidade e pelo questionamento da própria base sobre a qual toda a construção

do conhecimento moderno vinha sendo edificada. Dentro da pluralidade de propostas

atuais poderíamos apontar duas principais correntes. A primeira, denominada pós-

modernismo, defende o total esgotamento do projeto moderno, afirmando existir uma total

ruptura com os antigos ideais e projetos fracassados46. Na ânsia de vislumbrar um futuro

diferente do passado, o pós-modernismo, em sua versão mais radical, corre o risco de ter

seus postulados estabelecidos até mesmo pela contraposição ao que é considerado moderno.

Neste aspecto, podemos inclusive temer que o culto à razão, tipicamente moderno, acabe

45 João-Francisco Duarte Jr. O sentido dos sentidos, p. 219. 46 “Adorno escreveu em Mínima Moralia que a modernidade tinha ficado fora de moda. Hoje, estamos confrontados, ao que parece, com algo de mais definitivo: não a obsolescência, mas a morte da modernidade. Seu atestado de óbito foi assinado por um mundo que se intitula pós-moderno e que já diagnosticou a rigidez cadavérica em cada uma das articulações que compunham a modernidade”. (Sérgio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo, p. 20).

32

por se tornar um culto à irracionalidade. Devemos, no entanto, considerar este um caso à

parte e atentar para o fato de que o pós-modernismo reúne, atualmente, em sua defesa um

certo número de críticos, filósofos, sociólogos e artistas convencidos de que já houve uma

ruptura com a modernidade. Não é raro encontrarmos, entre estes, os que buscam na ciência

argumentos para corroborar suas opiniões, fazendo com que a pós-modernidade seja

freqüentemente relacionada com o nascimento de um novo paradigma47 baseado nos

descobrimentos da física no início do século XX. Grosso modo, “a ciência moderna seria

determinista e a pós-moderna seria probabilística, indeterminista, baseada no princípio da

incerteza”48, características que acabariam por influenciar, na visão do pós-modernismo,

toda a formação de um paradigma não só científico, mas também sócio-cultural e humano.

Uma segunda linha de pensamento afirma que o projeto moderno nunca se

realizou plenamente e que a modernidade ainda pode e deve ser defendida, sem excluir, no

entanto, a necessidade de se rediscutir seus postulados. Podemos citar o brasileiro Sérgio

Paulo Rouanet como um entusiasta defensor desta vertente. Nas suas palavras,

não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão usando os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria modernidade: uma razão autônoma, capaz de desmascarar as pseudolegitimações do mundo sistêmico, uma ação moral autodeterminada, que não depende de autoridades externas, e uma ação política consciente, baseada em estruturas democráticas que pressupõem uma razão crítica e uma vontade livre. Deixar de ver essa dialética da modernidade, reduzindo-a, em bloco, à sua vertente perversa, é privar-se dos meios de resistir à perversão. Demitir-se da modernidade é a melhor forma de deixar intacta a modernidade repressiva.49

Para Rouanet, a vontade de um mundo pós-moderno reflete, no entanto, uma

sensação de fracasso do projeto moderno e um desejo do novo, mas ainda faz parte da

própria modernidade. Sendo assim,

o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a modernidade) que de articular o novo (o pós-moderno). O pós-moderno é

47 O termo paradigma foi utilizado e popularizado pelo físico e epistemólogo Thomas Kuhn e pode ser entendido como um modelo e uma mentalidade que formam uma base para se compreender o mundo. 48 Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.261. 49 Idem, p.25-26.

33

muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade.50

Como vimos, a “consciência pós-moderna”, fruto da auto-reflexão da razão,

aponta para os possíveis desvios do projeto moderno e deve, portanto, ser considerada

como uma importante literatura para o debate dos postulados modernos. A crença no

nascimento de uma pós-modernidade aponta, ainda nas palavras de Rouanet51, uma vontade

de

despedir-se de uma modernidade doente marcada pelas esperanças traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelos neofundamentalismos mais obscenos, pela razão transformada em poder, pela domesticação das consciências no mundo industrializado e pela tirania política e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gênero humano.

Deve-se salientar, porém, que o que está em pauta neste estudo é muito mais

uma discussão do percurso moderno do que propriamente sua rejeição e o nascimento de

uma pós-modernidade. Resumidamente, o que se pretende mostrar é que este percurso foi

marcado, durante sua maior parte, pela fé no progresso sustentado pela tríade ciência,

técnica e indústria até a instauração da desconfiança nesta mesma fé que, de forma

definitiva, se estabelece no século XX.

Devemos, entretanto, atentar para o fato de que a fronteira entre os diferentes

aspectos desta tríade não é nada clara. Assim,

embora se possam distinguir atividades mais científicas do que técnicas e outras mais técnicas do que científicas, a distinção ciência-técnica, tal como é usualmente utilizada pelos cientistas é uma distinção idealista. Funda-se numa abstração: desenraiza o discurso científico relativamente à sua verificação prática que implica a técnica; considera

50 Ibidem, p. 269. 51 Idem, p.269.

34

a ciência como uma espécie de em si, fazendo abstração do seu exercício concreto nos laboratórios e nas fábricas.52

Mesmo correndo o risco de fechar cada um dos aspectos da tríade ciência,

técnica e indústria num nicho estanque e fictício, tentaremos analisar cada um

separadamente através da proposta de uma distinção meramente teórica.

Um dos aspectos desta tríade, o primeiro que iremos debater aqui, a ciência53

moderna teve suas bases amplamente discutidas e estabelecidas a partir do século XVI.

Emergida de um ambiente humanista, acreditou-se que a ciência poderia, enfim, desvendar

não só a coerência da natureza, uma vez que era o meio por excelência para a revelação da

verdade, mas também apontar o lugar do homem nesta totalidade. No entanto, hoje vemos

que “a ciência não correspondeu às esperanças de que pudesse substituir as tradições

metafísicas desacreditadas por uma explicação coerente do mundo e do lugar que nele

ocupa o homem”.54 Isto porque a ciência, pelo menos nos seus primeiros séculos, se

destacou do mundo da vida. Neste sentido explica André Dartigues55 que “a crise se

manifesta de fato como a ruptura de um mundo: o mundo da ciência, tal como a ciência o

constitui e o vê, se destacou do mundo da vida (Lebenswelt)”. Conseqüentemente, o

próprio sujeito foi apartado do mundo, do objeto, contribuindo no estabelecimento de uma

polarização sujeito-objeto, tipicamente moderna. Assim, a ciência acabou por apresentar

um mundo fictício, chamado por Rubem Alves de “mundo objetivo da abstração

científica”56, cuja maior abstração é o próprio homem.57 Conseqüentemente, mesmo uma

visão coerente deste mundo fictício não foi capaz de apaziguar os anseios do ser humano

concreto. Isto porque, em última instância, o sentido para qualquer vivência e inclusive do

fenômeno maior que se chama mundo, só pode ser entendido como vivência intencional do

52 Roqueplo apud Regis de Morais, op. cit., p.49. 53 “A palavra latina scientia provém de scire, ou seja, aprender ou alcançar conhecimento. É claro que a origem é muito genérica e que o vocábulo ‘ciência’ tal como o usamos hoje aponta para um tipo de conhecimento mais especial e apurado.” (Regis de Morais, op. cit., p.50). 54 Cristopher Lasch, O mínimo eu, p.24. 55 Op. cit., p.74. 56 O enigma da religião, p.25. 57 Ernesto Sabato afirma: “o crescente processo de racionalização que examinei... foi, ao mesmo tempo, o processo de abstração e da desagregação do homem. Até chegar a esta sociedade tecnólatra em que catastroficamente não sobra nada da unidade originária.” (O escritor e seus fantasmas, p.188).

35

sujeito. E para este sujeito, as coisas que constituem o mundo, como observou Dewey,

“empiricamente são emocionantes, trágicas, lindas, cômicas, estabelecidas, perturbadoras,

confortáveis, irritantes, áridas, rudes, consoladoras, esplêndidas, terríveis.”58 O mundo de

que nos fala a ciência não é o mesmo mundo em que o sujeito vive antes de toda elaboração

conceitual e racional.

Além da dicotomia sujeito-objeto, o desenvolvimento da ciência moderna leva,

em decorrência do aparente sucesso das ciências exatas nos séculos XVII e XVIII, à

identificação do método científico com a apresentação da natureza e de qualquer

“realidade” em linguagem matemática. Este movimento vai se intensificando até que, no

século XIX, sob o título de positivista, acaba definitivamente por pretender “confinar a

verdade no domínio das ciências exatas”.59 A ciência acaba por ser considerada um

processo, em última instância, de caráter matemático. Nesta visão,

a realidade do que no mundo não pode ser calculado e medido, do que não pode tornar-se problema científico60, vê-se simplesmente negada. O que não se pode tornar um problema das ciências, não tem sentido para o cientista. O que não pode ser calculado e medido, para ele não existe, simplesmente.61

Cabia à ciência abrir o caminho para “um mundo moderno governado pela

razão e pelo interesse, que seria acima de tudo um único mundo, sem sombras e sem

mistérios”.62 As luzes iriam acabar, enfim, com as trevas e tornar o homem senhor de si. No

entanto, a edificação do conhecimento, despreocupada com os reais atributos do homem,

tem um profundo impacto no sujeito moderno que, obcecado por descobrir as verdades do

mundo e dominar a natureza, acaba vendo este plano iluminista de emancipação fracassar.

Nas palavras de Horkheimer63,

58 Dewey apud Rubem Alves, O enigma da religião, p.25. 59 André Dartigues, op. cit, p.81. 60 Luijpen está fazendo referência a uma idéia de Gabriel Marcel (Positions et approches du mystère ontologique, pp. 258-272). 61 W. Luijpen, op. cit., p. 253. 62 Alain Touraine, op. cit., p.46. 63 O eclipse da razão, p.186-187.

36

agora que a ciência nos ajudou a superar o medo do desconhecido na natureza, somos escravos das pressões sociais em relação à própria construção de nós mesmos. Quando somos instados a agir independentemente, clamamos por modelos, sistemas e autoridades.

Esperava-se que a razão fosse capaz de garantir a autonomia do homem. No

entanto, dificilmente podemos entender que o projeto kantiano no qual o homem seria

capaz de fazer uso do seu próprio entendimento através do uso da razão foi alcançado. Tal

resultado, decorrente de uma certa concepção que entende a razão como um ponto de

partida e um conseqüente governante da sociedade e do próprio homem, leva Horkheimer64

afirmar que

se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem da crença supersticiosa em forças do mal, demônios e fadas, e no destino cego – em suma, a emancipação do medo – então a denúncia daquilo que atualmente se chama de razão é o maior serviço que a razão pode prestar.

O segundo e o terceiro aspectos da tríade ciência, técnica e indústria, também

estão profundamente emaranhados, sendo quase impossível separá-los de forma definitiva e

clara, mesmo se tratando de uma separação meramente didática. No entanto, devemos

entender que a crítica de qualquer uma delas deve ser feita com cuidado e que não se

pretende, aqui, proscrever a técnica ou a indústria de qualquer sociedade futura. A acusação

leviana de qualquer uma delas chega a se tornar ridícula e seria, no mínimo, uma falta de

bom senso defender o fechamento de fábricas ou laboratórios.65 Neste sentido, chega-se

facilmente na mesma conclusão que Luijpen66 quando este afirma que “proscrever a

técnica equivaleria à anarquia, à barbárie, à fome, à sede, à morte ou, em suma, ao

abandono de tudo o que de humano fora conquistado numa acerba luta.” No entanto,

podemos também afirmar que uma sociedade tecnólatra é igualmente bárbara. A idolatria

da técnica freqüentemente esquece que a técnica sozinha é isenta de valores mais amplos.

Assim, o próprio Luijpen conclui que “as ciências naturais são boas e a técnica é benéfica,

64 Op. cit., p.187. 65 Cf. Luijpen, op. cit., p.251. 66 Idem, p.251.

37

mas a absolutização da técnica fez originar-se o que hoje se costuma chamar tecnocracia”67.

Ainda vemos, no processo atual de tecnificação, uma tendência tecnocrata que vê, como

possíveis resultados da aplicação moderna da técnica, somente potenciais positivos. No

entanto, vemos, freqüentemente, pensadores receosos quanto aos rumos desta aplicação

moderna da técnica. Provavelmente a mais importante crítica que se pode fazer neste

sentido, diz respeito à sua própria motivação. A técnica nasceu da tentativa de adquirir um

poder pelo qual o homem pudesse dominar as forças naturais ameaçadoras68, ou seja, nasce

como uma subsidiária da sobrevivência. No entanto, a técnica moderna possui uma

particularidade: ela não é fruto das necessidades reais do ser humano. A modernidade

promove as necessidades funcionais do sistema a fim-em-si. Conseqüentemente, as

necessidades do sistema acabam por estabelecer as próprias necessidades humanas.

Deixemos que Marcuse nos explique que “o complexo produtivo tende a se tornar

totalitário, pois que ele determina não apenas os empregos, técnicas e atitudes necessárias,

como também as necessidades e aspirações individuais”.69 Assim, nas palavras de Rubem

Alves70,

ao invés de as necessidades humanas definirem as necessidades de produção – o que seria a norma para uma sociedade verdadeiramente humana – são as necessidades do funcionamento do sistema que irão criar as “falsas necessidades” de consumo... E o sistema criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe disse: Não terás outros deuses diante de mim!

O complexo produtivo, no entanto, também precisa garantir uma produção que

supra a vontade de consumo pela qual ela própria é responsável. Para lograr com êxito esta

produção foi necessário estabelecer uma indústria que estivesse, em primeiro lugar,

comprometida com sua produtividade. A produtividade, medida somente pelo seu aspecto

quantitativo, passa a ser um ideal a ser perseguido a qualquer custo; qualquer falha em

67 Ibidem, p.252. 68 Cf. ibidem, p.48-49. (“Ao longo do tempo, rituais mágicos e religiosos, usados na tentativa de acalmar e controlar a natureza, foram sendo substituídos por habilidades e conhecimentos. Deve ser este o princípio da história da ciência e da técnica.”). 69 Marcuse apud Rubem Alves, O enigma da religião, p.112. 70 Idem, p.112.

38

suprir as necessidades de consumo poderia levar a um descontentamento social e colocar

em risco o próprio sistema produtivo.

A indústria, tratada aqui como possuidora de uma lógica em si mesma, sempre

teve sua autonomia garantida pela crença no progresso responsável por um futuro melhor.

No entanto, com a consolidação de uma consciência crítica ainda no século XIX, começa-

se, cada vez mais, a perceber que a indústria também gerava subprodutos que punham em

perigo o próprio futuro humano na Terra. Atualmente percebe-se que as sobras de nosso

mundo industrial e a aplicação de métodos industriais à agricultura, à pesca e à criação se

tornam uma séria ameaça à toda a natureza e à vida na terra. Para Eduardo Subirats71, a

“consciência de conflitos catastróficos para a sobrevivência da natureza grava hoje a

consciência moderna com uma nova angústia histórica”. E nas palavras de Christopher

Lasch72,

a acusação máxima contra a civilização industrial não está apenas em que ela tenha devastado a natureza, mas que tenha minado a nossa confiança na continuidade e permanência do mundo feito pelo homem ao cercar-nos com bens disponíveis e fantásticas imagens de mercadorias.

De forma similar a um gigantesco mecanismo de defesa, o sistema de produção

acaba, por fim, enclausurado entre sua renovação e a manutenção de seus postulados. Sua

reformulação se torna indispensável para o futuro da humanidade, mas a necessidade de

manter uma produção suficientemente grande para suprir a demanda é uma exigência do

seu velho compromisso com a produtividade. Eis aqui o mais atual dilema do complexo de

produção moderno.

Apontamos brevemente como o núcleo da fé no progresso, representado pela

tríade ciência, técnica e indústria, perde, principalmente a partir do século XX, seu caráter

providencial e a decorrente instalação de um certo mal-estar na civilização, que começa a

se conscientizar de que toda a crença no progresso não passava de uma ilusão. Hoje se

percebe que “a afirmação de que o progresso é o caminho para a abundância, a liberdade e

a felicidade e que estes três objetivos estão fortemente ligados entre si, nada mais é que

71 A cultura como espetáculo, p.27. 72 Op. cit., p.237.

39

uma ideologia constantemente desmentida pela história”.73 A crença no progresso dá lugar,

enfim, a uma angústia decorrente de uma perspectiva do ocaso da própria civilização.

A crítica à modernidade que se inicia no século XIX e se intensifica no século

XX vê, finalmente, no uso do mecanismo garantido pela tríade ciência, tecnologia e

indústria a serviço da barbárie na Segunda Guerra Mundial, um marco definitivo para a

instalação da desilusão no projeto moderno. Nas palavras de Jean-François Mattei 74:

o mundo novo acreditava ter ocultado a ignorância, a guerra e a violência à proporção das luzes da ciência e do triunfo da democracia; mas este descobriu em seu seio as guerras mundiais, as deportações, os extermínios, os genocídios a um grau jamais igualável na História. Do buraco negro de Auschwitz ao ofuscante sol de Hiroshima.

Hoje percebemos que a palavra progresso não é tão evidente quanto críamos.

Pensávamos, por exemplo, que ao crescimento econômico seguia um desenvolvimento

social e humano e colocávamos tudo sob o emblema do progresso. No entanto, percebemos

que tanto o crescimento econômico, quanto o técnico e o industrial, quando pautados na

racionalização, podem gerar subprodutos nocivos para o homem. Desta forma, vemos

atualmente um questionar dos próprios desígnios do progresso, seguido por uma sensação

generalizada de ansiedade que, em última instância, é fruto de um receio individual e

coletivo quanto ao futuro que a modernidade vinha prometendo.

73 Alain Touraine, op. cit., p.10. 74 Jean-François Mattei, “Civilização e barbárie”. In Denis Rosenfield (org.) Ética e estética, p. 74.

41

II – O HOMEM DESNORTEADO

O homem contemporâneo paga o preço de uma

incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e toda a sua eficiência, continua possuído por “forças” fora do seu controle. Seus deuses e demônios absolutamente não desapareceram; têm, apenas, novos nomes. E o conservam em contato íntimo com a inquietude, com apreensões vagas, com complicações psicológicas, com uma insaciável necessidade de pílulas, álcool, fumo, alimento e, acima de tudo, com uma enorme coleção de neuroses.

Carl G. Jung

O homem moderno vive perdido num mundo de símbolos e normas que, embora mostrem inequívoca funcionalidade objetiva, estão tão privados de dimensão interior que não lhe deixam espaço para reconhecer-se. E assim se sente como náufrago extraviado num mar de signos que compreende e manipula, mas que de maneira alguma pode sentir como parte sua. As formas e normas da cultura revelam-se como um universo frio de substâncias mortas, e nessa nulidade ele se experimenta a si mesmo como uma identidade subjetiva carente de valor próprio.

Eduardo Subirats

Diz Martin Buber que a problemática do homem é posta de novo em questão a cada vez que parece rescindir-se o pacto primeiro entre o mundo e o ser humano, em tempos em que o ser humano parece encontrar-se no mundo como um estrangeiro solitário e desamparado. São tempos em que foi apagada uma imagem do Universo, desaparecendo com ela a sensação de segurança que se tem ante o que é familiar: o homem se sente na intempérie, sem lar. Interroga-se então novamente sobre a si mesmo.

Ernesto Sabato

42

A crise da modernidade se manifesta, em uma forma mais específica, numa

crise do próprio homem. Esta crise se faz perceptível, numa primeira instância, na

dificuldade experimentada pelo ser humano atual em manter uma relação significativa com

suas próprias vivências. O homem, carente de uma vida que tenha um sentido pessoal,

acaba, como aponta Ernesto Sabato (citando Martin Buber) na epígrafe deste capítulo, por

ter a sensação de que seu “pacto” com mundo foi, por assim dizer, rescindido. Vários

fatores podem ser elencados como determinantes para a instalação do que pode ser

entendido como o lado humano da atual crise da cultura moderna. Podemos começar

lembrando que, na concepção moderna, a razão foi entendida exclusivamente como um

instrumento do sujeito e considerada ponto de partida tanto para a leitura quanto para a

edificação do mundo objetivo, através de um processo que descrevemos como

racionalização. O homem pensava ter, portanto, a capacidade de, a partir de um instrumento

do eu1 (a razão), buscar coesão no mundo e imprimir sua vontade à realidade à sua volta.

No entanto, para Horkheimer2, o homem atualmente “experimenta o reverso dessa

autodeificação. A máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço.” A

máquina é o próprio mundo que, novamente, é sentido como um ambiente hostil à vida. O

homem, que acreditava ter adquirido, finalmente, o derradeiro poder sobre a natureza, vê

hoje que este suposto controle não pode ser aplicado à cultura humana de uma forma geral;

nesta, freqüentemente, irrompem eventos, em maior ou menor grau, irracionais. Os

assassinatos banais, a violência urbana, os desastres ambientais ou a eclosão de guerras

acabam fazendo com que o mundo seja novamente sentido como uma ameaça à própria

sobrevivência. Num primeiro nível, este medo da morte é sentido individualmente para

assumir, numa visão mais pessimista, o receio de que estejamos todos rumando em direção

ao fim da própria espécie humana. Assim, se nos primórdios dos tempos o homem via na

natureza a possibilidade de morte ou de vida, hoje vê na própria cultura a possibilidade do

ocaso ou da sobrevivência da civilização. O maior predador do homem, atualmente, é o

próprio homem.

1 “O indivíduo antigamente concebia a razão como um instrumento do eu, exclusivamente” (Max Horkheimer, op. cit., p.131). 2 Idem, p.131.

43

Podemos inclusive afirmar que decorre, desta incerteza quanto ao futuro e das

freqüentes ameaças às quais estamos sujeitos no presente, uma sensação de ansiedade3

peculiar ao momento histórico em que nos encontramos. Na tentativa de minimizar esta

ansiedade vemos hoje uma enorme quantidade de debates e buscas por alternativas aos

valores do próprio projeto moderno. Este questionamento é sem dúvida necessário e acaba

por multiplicar as opções de visões de mundo e de possíveis padrões de vida.

Curiosamente, Hermann Hesse já apontava, no começo do século XX, para uma existência

em potencial de diferentes modalidades de vida. Para Hesse, aquela geração ficou presa

“entre dois períodos, duas modalidades de vida e, por conseguinte, perdeu toda capacidade

de autocompreensão, pois não tem padrões, segurança, ou simples aquiescência.”4 Este

texto, de 1927, ainda resume bem o espírito do que pode ser considerado o atual cenário de

vida do homem, quase um século depois. A única ressalva é que, se na década de vinte

Hesse via apenas duas modalidades de vida, hoje podemos facilmente apontar a

coexistência de inúmeras modalidades de vida, em larga escala diferentes umas das outras.

Vivemos numa sociedade pluralista, na qual freqüentemente nos confrontamos com uma

multiplicidade de sistemas de valores sobre os quais um indivíduo pode pautar sua visão de

mundo e, conseqüentemente, seus atos. Como explicam-nos Peter Berger e Thomas

Luckmann5, o pluralismo moderno pode ser caracterizado pela “coexistência de diferentes

ordens de valores e fragmentos de ordem de valores na mesma sociedade e, com isto, a

existência paralela de comunidades de sentidos bem diferentes”.

Faz-se necessário tentar compreender o que são as comunidades de sentido e

analisar o que implica, para o ser humano atual, a grande quantidade destas comunidades.

Nosso primeiro passo aqui é focar a própria palavra sentido quando entendida como uma

busca por uma vida que tenha um significado pessoal. Como explica-nos Duarte Jr.6,

para o animal, a relação de seu corpo com o meio ambiente se estrutura de forma mecânica: ele se adapta às condições físicas através dos

3 “O século XX vive mais mergulhado em ansiedade que qualquer outro período desde a Idade Média” (Rollo May, op.cit., p.30). 4 Apud Rollo May, op.cit., p.32-33. 5 Modernidade, pluralismo e crise de sentido, p.36. 6 Fundamentos estéticos da educação, p.28.

44

mecanismos reguladores da dor e do prazer, da ameaça e da promessa de vida. Para o homem, que busca mais do que a manutenção da vida – busca um sentido para ela –, este motivo vital adquire contornos mais específicos. (...) Frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor que as coisas têm em relação à sua vida, isto é, a respeito de sua significação. Assim, os mecanismos interpretativos da dor e do prazer se transformam num esquema de interpretação de valores, no contexto humano. Um valor positivo é aquele que auxilia o homem na manutenção da vida e de seu significado (a existência); um negativo, ao contrário, diz respeito à destruição da vida e de sua coerência.

Apesar do sentido da existência se constituir na consciência humana não se

deve entendê-lo como uma construção puramente subjetiva; não se pode entender o sentido

como apartado de um mundo7. O sentido nasce do encontro entre consciência e o mundo e

é dado pela natureza da relação entre o primeiro e o segundo. Desta forma, é necessário

atentar também para o meio social no qual o indivíduo está inserido, “mesmo porque não

existem seres humanos isolados. O que existem são comunidades humanas.”8

Devemos, entretanto, ter em conta que a simples sucessão de experiências

pessoais não é significativa em si. Ainda nas palavras de Duarte Jr.9,

as experiências só se tornam significativas após terem sido vividas, quando o pensamento pode tomá-las como objeto e transformá-las em símbolos. (...) A razão humana, a reflexão, portanto, só se dá a partir de um fundo indiferenciado de sensações e emoções; o pensamento “significador” procura, desta forma, tornar inteligível ao homem este alicerce dinâmico, nascido de seu encontro com o mundo.

Vimos que a busca por sentido é exercida, mesmo que de forma não refletida,

por todos os homens e que esta não pode ser analisada independentemente de um agir

social. Conseqüentemente, podemos supor que cada indivíduo busque socialmente, na

experiência de outrem, ajuda para criar suas próprias significações. Freqüentemente esta

transmissão de sentido se dá diretamente entre indivíduos; neste caso a significação é

manifestada nas próprias relações sociais que um indivíduo mantém. Num segundo nível

7 “A consciência tomada em si não é nada; deve haver sempre consciência de algo. Existe somente enquanto dirige sua atenção para um objeto, para um objetivo.” (Berger e Luckmann, op. cit., p.14). 8 João Francisco Duarte Jr., op.cit., p.36. 9 Fundamentos estéticos da educação, p.29-30.

45

encontramos as instituições sociais que administram10 o que Berger e Luckmann chamam

de reservatórios históricos de sentido. Deixemos que estes autores expliquem-nos que

a formação de reservatórios históricos de sentido e instituições alivia o indivíduo da aflição de ter de solucionar sempre de novo problemas de experiência e de ação que surgem em situações determinadas. Se a situação concreta for idêntica nos traços essenciais com outras constelações já conhecidas, então o indivíduo pode recorrer a patrimônios de experiência e modos de agir já familiares e ensaiados.11

Para Berger e Luckmann, no entanto, o pluralismo moderno propicia uma

difusão de crises de sentido, tanto num nível individual quanto num nível intersubjetivo.

Isto porque vivemos em uma “sociedade onde os valores comuns e obrigatórios não são

(mais) dados a todos e assegurados estruturalmente e onde esses valores não atingem mais

igualmente todas as esferas da vida, nem conseguem torná-las concordes.”12 Este colapso

de uma ordem generalizada de sentido não é, como havíamos apontado citando Hesse, um

tema novo; suas origens remontam, inclusive, ao próprio início da modernidade. “O

Iluminismo e seus seguidores saudaram este processo como prelúdio da criação de uma

nova ordem, baseada na liberdade e na razão. Os tradicionalistas franceses pós-

revolucionários e outros pensadores conservadores lamentaram o mesmo processo como

sendo decadência e declínio. ”13 Eis aqui uma questão interessante: devemos reconstruir

uma ordem de sentido compartilhada por todos os indivíduos de uma sociedade para que,

desta forma, se tente minimizar esta difusão de crises de sentido apontada por Berger e

Luckmann? Podemos apontar, na própria história do homem, evidências suficientes de que

tal regresso é, mesmo que desejado, inviável. Isto porque

a história das ideologias totalitárias dos últimos cem anos mostrou que nada, nem mesmo tentativas radicais de regressão podem restaurar

10 “As reservas de sentido objetivadas e processadas pela sociedade são ‘conservadas’ em reservatórios históricos de sentido e ‘administradas’ por instituições. O agir do indivíduo é moldado pelo sentido objetivo, colocado à disposição pelos acervos sociais do conhecimento e comunicado por instituições através da pressão que exercem para seu acatamento.” (Peter Berger e Thomas Luckmann, op. cit., p.25). 11 Idem, p.19. 12 Ibidem, p.33. 13 Ibidem, p.46.

46

duradouramente tais sistemas uniformes de interpretação e fazer deles a característica estrutural das sociedades modernas.14

Além disso, uma proposta de homogeneização das comunidades de sentido,

além de dogmática, exigiria que o indivíduo obedecesse impecavelmente a uma ordem

social. No entanto,

os homens de uma cultura, pelo seu modo de conhecimento, produzem a cultura que produz o seu modo de conhecimento. A cultura gera os conhecimentos que regeneram a cultura. O conhecimento depende de múltiplas condições socioculturais, as quais, em retorno, condiciona.15

Acreditar na possibilidade de restringir as comunidades de sentido significa

acreditar que esta dinamicidade da relação homem-cultura pode ser suspensa. Para tal, seria

necessário ignorar as potencialidades de autonomia de criação e de auto-renovação

individual.

Berger e Luckmann ainda apontam a existência de um outro grupo, ligado ao

Iluminismo, cujo seguidores acreditavam que o processo de pluralização das ordens de

sentido marca o início de uma “nova ordem, baseada na liberdade e na razão”. A liberdade

é aqui cuidadosamente colocada ao lado da razão; esta última é entendida como

fundamental para que o indivíduo faça uso do seu próprio entendimento e para que seja

possível, desta forma, falar-se em liberdade. Os defensores desta idéia afirmam que a

“liberdade é o outro aspecto da autoconsciência: se não tivermos consciência de nós

mesmos seremos impelidos pelo instinto, ou pela marcha automática da história, como as

abelhas ou mastodontes.”16 Como a percepção autoconsciente se dá sobre uma base

dinâmica irrefletida, a própria abertura para a liberdade também deve ser reconquistada dia

a dia. Neste sentido podemos entender as palavras de Goethe17, quando Fausto reflete sobre

a lição aprendida:

14 Peter Berger e Thomas Luckmann, idem, p.39. 15 Edgar Morin. O método 4: as idéias, p.30. 16 Rollo May, O homem à procura de si mesmo, p.134. 17 Apud Rollo May, op. cit., p.140.

47

Sim! a esta idéia atenho-me com firme persistência: A sabedoria impõe-lhe o selo da verdade; Conquista a existência e a liberdade somente quem todo dia a reconquista.

Para os iluministas, a autoconsciência e, conseqüentemente, a liberdade

derivam do uso da razão. Este é, para Kant, o caminho pelo qual o homem pode superar a

sua minoridade, pela qual ele próprio é culpado. Assumindo a validade da proposta

kantiana e o acerto dos pensadores que afirmam a sociedade moderna vir sendo edificada

sobre valores racionais, seria esperado que o homem tivesse, enfim, logrado sua

maioridade. No entanto, dificilmente poderíamos defender o total esgotamento das antigas

tutelas, que dividem, atualmente, espaço com novas formas de autoridade18, como, por

exemplo, a opinião pública, ou os diktats de uma indústria cultural obcecada pelos

resultados econômicos. A falha da razão – tornada racionalização intelectual –, como

instrumento emancipador talvez permita que a crise atual seja entendida como o não-

cumprimento da promessa iluminista. A racionalização nos dá a ilusão de que a

modernidade foi, como pretendia Kant e seus seguidores, sendo balizada pela razão

quando, na verdade, vinha sendo pautada num modo estreito de esta operar.

Num processo de constante diálogo, a racionalização humana age sobre a

própria construção da cultura que, por sua vez, motiva o homem que novamente age sob a

cultura, e assim por diante. Assim, a tentativa que empenhamos aqui de separar a dimensão

cultural da crise moderna (primeiro capítulo) de uma dimensão humana da mesma crise

(segundo capítulo) é, na melhor das hipóteses, uma abstração didática e não deve ser

encarada como sendo fiel à realidade do mundo. Podemos tentar discutir, entretanto, como

as formas sociais de atuação humana, grosso modo, mantêm o indivíduo refém de agentes

externos, alimentando, assim, uma crise do próprio homem. Este não consegue significar

suas vivências usando seu entendimento pessoal, e busca irrefletidamente, nas objetivações

sociais de sentido, um significado para sua existência. Aparentemente, a pluralidade

cultural é sinônimo de liberdade; a grande quantidade de comunidades de sentido parece 18 “Erich Fromm observou que hoje em dia as pessoas deixaram de viver sob a autoridade da igreja ou das leis morais, mas submetem-se a ‘autoridades anônimas’, como a opinião pública. A autoridade é o próprio público, mas esse público é uma simples reunião de indivíduos, cada qual com seu radar ligado para descobrir o que os outros dele esperam.” (Rollo May, op. cit., p.22).

48

garantir que o ser humano possa, a todo momento, facilmente optar por migrar de uma para

outra, aumentando a sensação de liberdade. No entanto, Hermann Hesse já nos alertava

para o fato de que um indivíduo que estivesse preso entre modalidades de vida distintas

perderia, em última instância, sua capacidade de autocompreensão. Sem esta, vimos que

não se pode falar de liberdade e, conseqüentemente, de emancipação. O homem acaba,

então, por se submeter às “autoridades” externas.

Provavelmente o principal agente de controle externo atual encontra-se na

própria cultura de massa, amplamente relacionada com a própria mentalidade de uma

civilização industrial. Com a consolidação de uma produção em larga escala, que podemos

chamar de produção em massa, foi também necessário estabelecer um mercado de massa.

Para Cristopher Lasch19,

a mobilização da demanda por consumo, ao lado do recrutamento de uma força de trabalho, requeria uma série de transformações culturais de longo alcance. Era necessário desencorajar as pessoas de promover as suas próprias necessidades e ressocializar estas pessoas enquanto consumidores.

Conseqüentemente, a mentalidade de massa acaba praticamente por corroer

a autoconfiança e a autonomia tanto dos trabalhadores como dos consumidores. Ela expande o controle coletivo do homem sobre o meio ambiente às custas de seu controle pelos indivíduos; e mesmo tal controle coletivo, como já apontaram inúmeras vezes os ecologistas, começa a se revelar ilusório, na medida em que a intervenção humana ameaça provocar respostas inesperadas da natureza, incluindo alterações climáticas, o esgotamento da camada de ozônio e a exaustão de recursos naturais.20

A cultura de massa não raramente promove, num nível pessoal, ainda segundo

Lasch21, “a dependência, a passividade e o estado de espírito de espectador, tanto no

trabalho, quanto no lazer.” Desta forma, não é difícil compreender porque uma grande

19 Op. cit., p.20. 20 Ibidem, p.34. 21 Idem, p.19.

49

quantidade de pensadores, entre estes os da escola de Frankfurt, vêem na massificação da

cultura um perigoso instrumento de repressão social.

Podemos apontar ainda que, num nível individual, a personalidade veio sendo,

por assim dizer, “programada” pelos meios de comunicação modernos. Segundo Duarte

Jr.22, “o que consumir, como nos vestimos, em que acreditar, como nos comportamos em

tais e tais ambientes, etc., tudo é devidamente ‘ensinado’ pelos meios de comunicação,

aliados a poderosas corporações industriais.” Tal fato leva Lasch23 a afirmar que

uma vez que o indivíduo parece programado por agências externas, não se pode considerá-lo como responsável por seus atos. Num sentido rigoroso, ele não pode agir, de modo algum; a sua única esperança de sobrevivência encontra-se na fuga, no descompromisso emocional, numa recusa em tomar parte em qualquer tipo de viga coletiva ou mesmo nas complicações normais do relacionamento humano do cotidiano.

O que foi minado, portanto, nessa cultura organizada em torno da produção e

do consumo em massa foi a própria capacidade do homem de promover as suas próprias

necessidades e fazer uso, em última instância, de seu próprio entendimento. Desta forma, se

fôssemos definir este processo poderíamos, provavelmente, apontá-lo como sendo um

projeto de caráter anti-iluminista.

Alain Touraine nos aponta que o homem é, neste cenário tipicamente moderno,

inclusive incapacitado de ser sujeito.24 O ser humano acaba, assim, coisificado e passa a

viver sua vida num estado de passividade e embotamento. Juntamente com o entendimento

individual, vão-se também as vontades e desejos individuais. Nas palavras de Ernesto

Sabato25,

a massificação suprime os desejos individuais, porque o Superestado necessita de homens-coisas intercambiáveis, como peças de reposição de uma máquina. E, no melhor dos casos, permitirá os desejos coletivizados, a massificação dos instintos: construirá gigantescos estádios e, ao mesmo

22 O sentido dos sentidos, p.20. 23 Op. cit., p.145. 24 Segundo Alain Touraine, “intelectual ou não, nenhum ser humano vivendo no Ocidente do final do século XX escapa desta angústia da perda de todo sentido, da invasão da vida privada, da capacidade de ser Sujeito, pela propaganda e pela publicidade, pela degradação da sociedade em multidão e do amor em prazer.” (Op. cit., p.173). 25 Homens e engrenagens, p. 65.

50

tempo que criará dessa forma vastas empresas capitalistas, fará voltar semanalmente os instintos da massa em uma só direção, com sincrônica regularidade. Mediante o jornalismo, o rádio, o cinema e os esportes coletivos, o povo embotado pela rotina poderá dar vazão a uma espécie de panonirismo, à realização coletiva de um Grande Sonho. De modo que, ao fugir das fábricas em que são escravos da máquina, entrarão no reino ilusório criado por outras máquinas: rotativas, rádios e projetores.

No entanto, a cultura de massa, não só permite a escolha, mas obriga o homem

a tomar decisões. Cria-se, por assim dizer, uma compulsão de escolha na qual o indivíduo

se vê diante de um grande número de opções de produtos ou marcas.26 A economia de

mercado é, portanto, uma das principais instituições da sociedade moderna que “promovem

a passagem do destino para as possibilidades de escolha e para a compulsão de escolher”.27

Ainda para Berger e Luckmann28,

essa compulsão de escolha vai desde os bens triviais de consumo (qual a marca da pasta de dente?) até as alternativas tecnológicas básicas (qual a matéria-prima para a indústria de automóveis?). A ampliação das opções também se estende para o campo social e intelectual. Aqui, modernização significa a troca de uma existência determinada pelo destino por uma longa série de possibilidades de decisão.

Numa utópica sociedade humanista, as alternativas colocadas diante dos olhos

do indivíduo, tanto pela economia de mercado como pelo pluralismo de comunidades de

sentido, chamam pela reflexão e pela escolha pessoal. No entanto, numa sociedade de

consumo massificado, a reflexão raramente acontece num nível individual. A questão não é

usar a própria razão, como queria o Iluminismo, mas simplesmente optar por determinada

comunidade de sentido. Esta opção não é, geralmente, fundada num processo de reflexão e

do uso da razão individual, mas sim baseada em processos alheios ao indivíduo; a

sociedade de consumo chama a obedecê-la.

26 Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann: “O pluralismo não só permite que escolhamos (profissão, esposo ou esposa, religião, partido), mas obriga a isto, assim como a oferta moderna de consumo obriga a decisões (sabão Minerva ou sabão Omo, carro Volkswagen ou Renault). Já não é possível não escolher, pois é impossível fechar os olhos diante do fato de que uma decisão tomada poderia ter sido diferente” (Op.cit., p.59). 27 Peter Berger e Thomas Luckmann, op.cit., p.59. 28 Idem, p.58.

51

A morte da idéia de um senhor soberano de si não está completa, porém, se não

apontarmos também o processo observado nos últimos séculos que acaba por tornar a

máquina um outro importante fator de repressão ao sujeito moderno. Na consideração de

Subirats29,

desde Descartes, a máquina foi concebida na história da cultura ocidental como a máxima expressão e o mais decisivo meio do poder humano sobre a natureza e, conseqüentemente, como instrumento emancipador. O caráter cultural libertador da máquina provém, na sociedade moderna, tanto de seu potencial técnico como meio de ampliar o domínio humano, quanto da racionalidade que lhe é intrínseca. Esta racionalidade, um princípio econômico e funcional ligado ao conhecimento científico, teve uma dimensão técnica especificamente ligada à produção, mas transcendeu rapidamente o modelo organizativo para a sociedade em seu conjunto. Desde Descartes até as técnicas de organização social do século XIX, o modelo da máquina estende-se da concepção do corpo humano à organização inteira do processo vital, individual e socialmente considerado.

Esta máquina repressora pode ser entendida como uma objetivação prática de

uma visão de mundo da qual o homem concreto, em última instância, não faz parte.

Inicialmente idealizada no intuito de dominar a natureza, e assim torná-la menos

ameaçadora, a grande máquina volta-se, em última instância, contra o próprio sujeito;

triângulos e aço, logaritmos e eletricidade, senóides e energia atômica, estranhamente unidas às formas mais misteriosas e demoníacas do dinheiro, constituíram finalmente a Grande Engrenagem, da qual os seres humanos acabaram sendo obscuras e importantes peças.30

Sabato contrapõe, no texto acima, um mundo matemático (triângulos,

logaritmos e senóides) à sua objetivação cultural (aço, eletricidade e energia atômica).

Certamente é o segundo grupo que age mais diretamente sobre o homem comum, uma vez

que acaba alterando significativamente o próprio mundo com o qual o homem se relaciona.

Esta objetivação, pautada num processo de racionalização, acaba fazendo com que cada vez

mais o ritmo da máquina determine o ritmo da vida. Nesta projeção, o mundo acaba carente

29 Da vanguarda ao pós-moderno, p.23. 30 Ernesto Sabato, Homens e engrenagens, p. 66.

52

de valores mais humanos, e o homem passa, cada vez mais, a ser considerado meramente a

partir da função que exerce, ou seja, passa a ser uma peça substituível do que Sabato chama

de “grande engrenagem”. Este homem tornado peça, obedece implacavelmente à máquina,

mesmo sem saber o que suas engrenagens podem, enfim, apresentar como produtos. Ainda

segundo Sabato,

este é o destino contraditório daquele semi-deus renascentista que reivindicou sua individualidade, que orgulhosamente se levantou contra Deus, proclamando sua vontade de poder e transformação das coisas. Ignorava que ele chegaria a transformar-se em coisa.

Homens como Pascal, William Blake, Dostoievski, Baudelaire, Lautréamont, Kierkegaard e Nietzsche intuíram que algo trágico estava sendo gestado em meio ao otimismo. Mas a grande Maquinaria seguiu em frente. Desolado, o homem se sentiu por fim em um universo incompreensível, cujos objetivos desconhecia e cujos Amos, invisíveis e cruéis, o enchiam de pavor.

Por fim vale lembrar que a razão é hoje freqüentemente acusada de possuir

estreitos vínculos com o projeto moderno em crise. Mas e se, num curioso paradoxo, a

crítica à razão, que pretende ser também uma crítica à modernidade, estiver, em parte,

pautando-se na própria mentalidade da qual pretende tornar-se independente? O não-uso da

razão individual é essencial para que os gostos e os desejos de consumo sejam

compartilhados pelo maior número de pessoas e para que, dessa maneira, surja uma cultura

consumista de massa.31 O que deve ficar claro, portanto, é que a crítica da razão não pode

ser partidária da abdicação do uso da razão. Enquanto o homem contemporâneo tiver

condições de refletir criticamente sobre a crise da modernidade, o projeto moderno não

estará falido. É neste sentido que podemos entender a já citada passagem de Rouanet

quando este afirma que “não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão usando

os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria modernidade”

Não se pode, portanto, desprezar a razão. Resta-nos, portanto, rediscuti-la.

Neste sentido,

31 Segundo Octavio Paz: “O princípio que rege a propaganda – e que seus beneficiários tiraram dos métodos comerciais da burguesia – omite a razão e a liberdade: o homem é um complexo de reações que é preciso estimular ou neutralizar conforma as circunstâncias.” (O arco e a lira, p.256).

53

talvez não fosse demais recordar Nietzsche, que, já no século XIX e contra o cientificismo então predominante, pregava uma volta à “grande razão”, formada pelo corpo todo do ser humano, e que havia de deixado submeter pela “pequena razão”, seu intelecto, tomado do modo mais restrito e restritivo. Para esse filósofo, o homem do Ocidente (não se falava então em sociedade industrial) acabaria por sucumbir exatamente devido à elevação da pequena razão à categoria de faculdade quase exclusiva do saber humano, com desconsideração e mesmo a repressão aos apelos da grande razão.32

Podemos ainda lembrar Horkheimer33, que formula uma das idéias mais

profundas do século XX: “a razão não basta para defender a razão.” Para Touraine34, "esta

frase (...) rompe com o racionalismo da ideologia iluminista muito seguro de si. É uma

chamada ao sujeito, a recusa de dar uma importância central à oposição entre o tradicional e

o moderno.” No entanto, romper com o “racionalismo da ideologia iluminista” não

significa romper completamente com o projeto iluminista; precisamos identificar os limites

da razão e, principalmente, discutir o colapso do que Nietzsche chamou “grande razão” no

racionalismo moderno. O levante contra o racionalismo é, como nos disse Touraine, um

chamado do sujeito soterrado pela grande engrenagem (Sabato). Ao homem

contemporâneo, vivendo numa cultura que acaba determinando o próprio desenrolar e ritmo

da sua vida, mas que ouve, das profundezas do seu ser os gritos de um sujeito soterrado,

resta, aparentemente, somente entregar-se à ansiedade peculiar de nossos tempos.

Rollo May35, numa tentativa de descrever esta ansiedade, comenta que “o

homem moderno, apavorado com as bombas que ele mesmo fabricou, precisa fugir ao céu e

esconder-se nas cavernas.” Após um período em que o homem aparentemente havia

dominado a natureza e minimizado, através dos avanços tecno-científicos-industriais, a

sensação de uma natureza ameaçadora, o mundo volta a ser sentido como ameaçador. Esta

sensação de ameaça, peculiar ao nosso atual momento histórico, imprime no devir do

progresso um traço de desconfiança que acaba sepultando as antigas crenças de que a

32 João Francisco Duarte Jr., A modernidade: o itinerário de uma crise, p.96. 33 Apud Alain Touraine, op.cit., p.223. 34 Op.cit., p.223. 35 O homem à procura de si mesmo, p.57.

54

humanidade havia descoberto, na tríade ciência, técnica e indústria, o caminho para a

prosperidade e para a felicidade. Conseqüentemente, à crença num futuro garantido pelo

progresso começou a se opor um questionamento dos moldes escolhidos durante a

modernidade para balizar a tentativa de edificação de uma sociedade racional. O homem

acabou por questionar a utilidade do gigantesco dispositivo de domínio da natureza que

havia sido por ele construído e que tinha, em uma primeira instância, falhado em mitigar a

ansiedade causada por seus antigos dilemas e que havia, ainda por cima, lançado-o em um

novo estado histórico de ansiedade decorrente da própria perspectiva do ocaso da

civilização ameaçada pelos produtos de uma sociedade que se mostrou, e ainda se mostra,

pouco ou nada racional. Como assinala Eduardo Subirats36,

a consciência de conflitos catastróficos para a sobrevivência da natureza grava hoje a consciência moderna com uma nova angústia histórica. E aquela visão emancipadora da civilização com que o humanismo científico havia sonhado, desde a revolução copernicana dos céus até a concepção moderna do progresso, foi trocada pela perspectiva do ocaso da história e do homem.

A idéia de angústia, utilizada por Subirats, certamente é algo distinto da

ansiedade. No entanto, podemos também cuidadosamente aproximar estes dois conceitos.

A angústia freqüentemente é definida como o sentimento decorrente da consciência da

morte. Heidegger37, por exemplo, pondera que “na angústia abre-se a extrema possibilidade

do homem como projeto, a saber, a morte. Toda angústia, portanto, é angústia da morte.”

Subirats também afirma, no texto acima, mesmo que indiretamente, que a angústia tem uma

intima relação com a perspectiva da morte (ocaso). Aproximando sua concepção de

ansiedade desta interpretação de angústia, May defende que “a ameaça de morte é o

símbolo mais comum da ansiedade.”38 Ainda para este último autor, “a ansiedade pode

assumir todas as formas e intensidades, pois é a reação básica do ser humano a um perigo

que ameaça sua existência, ou um valor que ele identifica com sua existência.”39 A

36 A cultura como espetáculo, p.37-38. 37 Apud Luijpen, op. cit., p.387-388. 38 Op. cit., p.35. 39 idem, p.34.

55

afirmação de que estes dois conceitos coincidem é, certamente, leviana e não atenta para as

particularidades de cada uma das situações psicológicas. Podemos, entretanto, pelo menos

no que tange à sensação atravessada pelo homem atual, apontar uma certa semelhança entre

o que Subirats afirma ser uma nova angústia histórica e a ansiedade afirmada por May

como uma das principais características da sociedade atual.

Deve ficar claro que pretendemos tratar aqui de uma ansiedade básica (e de

suas objetivações no século XX) que pouco ou nada tem a ver com a ansiedade neurótica.

Esta última provém de conflitos psicológicos inconscientes e geralmente está relacionada a

algum trauma pessoal. A maneira de trabalhar a ansiedade neurótica é trazer, de preferência

através de um processo de psicoterapia, a situação traumática à tona para que seja possível

ressignificá-la de forma adequada. A ansiedade a que nos referimos neste estudo encontra,

diferentemente da ansiedade neurótica, suas principais origens num nível cultural e é

compartilhada por um certo número de indivíduos. Como Subirats40 explica, este estado de

ansiedade foi forjado principalmente no século XX em decorrência

das experiências traumáticas das guerras, dos totalitarismos políticos e do empobrecimento que, tanto num sentido estético quanto cognitivo e ético, acompanhou a progressiva colonização tecnológica das formas da cultura humana. Uma nova condição espiritual do homem moderno surge necessariamente da nova consciência das suas limitações cognitivas ou perceptivas diante do universo desumanizado das novas tecnologias da inteligência, mas também do sentimento individual e coletivo de impotência do devenir dos acontecimentos políticos, sociais e também naturais do mundo contemporâneo.

O que Subirats chama de empobrecimento estético, cognitivo e ético, mina a

capacidade do indivíduo para significar sua própria vida frente a um mar de estímulos

plurais e aparentemente caóticos. Desta forma, podemos entender que a ansiedade atual

também é fruto de uma falta de recursos que o ser humano experimenta para lidar com o

mundo em que vive. Este homem acaba carente de significações pessoais satisfatórias,

sentindo-se, assim, desnorteado e impotente não só em relação ao rumo do mundo

contemporâneo, mas também frente ao devir da sua própria existência. Em uma primeira

instância, como Horkheimer apontou, a sensação é de que a máquina havia expelido o 40 A cultura como espetáculo, p. 38-39.

56

maquinista e que estava correndo cegamente. No entanto, podemos também transpor esta

afirmação ao próprio indivíduo: este é o triste fim do sujeito soberano que nascia, pelo

menos enquanto projeto, com a aurora da modernidade. Como explica-nos Lasch41,

uma das razões pelas quais as pessoas não mais se vêem como sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se vêem como sujeitos, de modo algum, mas como vítimas das circunstâncias; e essa sensação de deixar-se guiar por forças externas incontroláveis inspira um outro modo de armamento moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um observador irônico, separado e confuso.

A passividade frente aos desígnios sócio-culturais, aliada ao desnorteamento em

relação à vida, garante que o homem contemporâneo continue imerso num estado de

ansiedade. Além disso, a própria natureza da ansiedade garante, por assim dizer, sua

existência. Isto porque, “quando estamos ansiosos ... sentimo-nos ameaçados sem saber o

que fazer para enfrentar o perigo. A ansiedade é a sensação de estar ‘agarrado’, ‘oprimido’;

e em vez de tornar mais aguda a percepção, em geral torna-a embotada.”42

Estes não são, entretanto, os únicos fatores de incitação da ansiedade com os

quais atualmente se defronta o indivíduo. A crescente ansiedade, aliada à necessidade de

escoamento dos produtos industriais, foi o cenário perfeito para o surgimento de uma

cultura de consumo que veio se estabelecendo ao longo do último século e que atinge,

atualmente, níveis sem precedentes na história. Na reflexão de Lasch43,

o estado de espírito promovido pelo consumismo é melhor descrito como um estado de desconforto e de ansiedade crônica. O lançamento das mercadorias depende, como a moderna produção em massa, de desestimular o indivíduo quanto à confiança em seus próprios recursos e julgamentos: neste caso, o discernimento do que ele necessita para ser saudável e feliz. O indivíduo vê-se sempre sob observação, quando não de chefes e superintendentes, de pesquisadores de mercado e de opinião pública, que lhe contam o que os outros preferem e o que ele também deve preferir, ou de médicos e psiquiatras, que o examinam em busca de sintomas de doenças não identificáveis por olhos destreinados.

41 Op. cit., p.85-86. 42 Rollo may, op. cit., p.33-34. 43 Op. cit., p. 19 (nota de rodapé).

57

Para Lasch, portanto, a própria lógica do mercado de massa privilegia a

manutenção do estado de um certo estado de ansiedade. O homem moderno que, como

aponta Lasch, desacredita nos próprios recursos e julgamentos, vê-se, inevitável e

constantemente premido pela obrigação de escolher: a sociedade atual, marcada pelo

pluralismo e pelo consumismo, não apenas permite que o indivíduo faça as suas próprias

escolhas, mas o obriga a isto. O escolher, porém, no caso da sociedade de consumo, não

exclui o que não foi escolhido, e acaba por fazer com que o indivíduo entenda por liberdade

a possibilidade de escolher todas as coisas simultaneamente, inclusive quando se trata de

seu próprio projeto de vida.

A idéia de que “você pode ser tudo o que quiser”... passou a significar a possibilidade de as identidades serem adotadas ou descartadas como se troca de roupa. Do ponto de vista ideal, as escolhas de amigos, amantes e carreiras deviam estar todas sujeitas ao cancelamento: tal é a concepção experimental e ilimitada da boa vida que sustenta a propaganda de mercadorias, ao cercar o consumidor com imagens de possibilidade ilimitada: mas se a escolha não mais implica compromissos e conseqüências... a liberdade de escolha resulta, na prática, numa abstenção de escolha. A menos que a idéia de escolha traga com ela a possibilidade de fazer diferença, de mudar o curso dos acontecimentos, de desencadear uma cadeia de eventos que pode provar-se irreversível, ela nega a liberdade que pretende sustentar.44

Certamente a idéia de que a identidade pessoal pode ser facilmente adotada ou

descartada a qualquer momento é central para a instalação da ansiedade peculiar aos dias de

hoje. O funcionamento da sociedade atual, baseada no consumo de massa, não só permite

que a identidade seja mudada a qualquer hora, mas faz com que o indivíduo tenha a

sensação de que sua identidade necessita ser sempre renovada através das escolhas

pessoais. Vemos, portanto, uma obsessão pela constante construção e renovação da

identidade, projetada, primeiramente, na própria escolha de mercadorias, mas que está,

atualmente, estendida para todos os campos onde é possível se falar de uma escolha

pessoal. Na vida real, no entanto, este processo não ocorre ausente de severos conflitos

44 Christopher Lasch. Op. Cit. p.29.

58

psíquicos. Freud havia apontado, na sua segunda teoria do aparelho psíquico, um pólo

pulsional da personalidade, o id, cujos conteúdos são, em larga escala, inconscientes. Como

as escolhas, num nível individual, estão relacionadas com esta dimensão pulsional da

personalidade humana, a sociedade de consumo e da propaganda em massa acaba, por

assim dizer, estimulando e explorando as vontades do id. Além disso, para explorar mais

facilmente os impulsos do id, esta lógica social se aproveitou do enfraquecimento do

superego (dimensão psíquica na qual estão interiorizadas as exigências sócio-culturais e

parentais), resultado da própria mentalidade moderna. O próprio Freud já havia apontado

que o id está freqüentemente em conflito com o ego, que tente a representar um pólo

defensivo da personalidade. Os processos defensivos promovidos pelo ego também

decorrem, em grande parte, de processos inconscientes. Desta forma, nossa sociedade atual

promove um aumento significativo de conflitos entre o id e o ego que resulta num foco de

aumento da ansiedade sentida pelo homem contemporâneo.

Por fim, devemos abrir espaço para a reflexão sobre as implicações da própria

visão de mundo atual no aumento da ansiedade contemporânea. A modernidade viu, no seu

desenrolar inicial, uma rebelião contra um mundo fechado e baseado em leis rígidas,

resultado, principalmente, da confiança no homem e na sua razão individual. Cada vez

mais,

a partir do renascimento, o mundo é requestionado; depois que Cristóvão Colombo aumentou a Terra e Copérnico e Galileu diminuíram-na no céu, Deus é requestionado, assim como o homem; a interdependência dessas reflexões determina uma problematização generalizada. A perda dos antigos fundamentos de inteligibilidade e de crença suscita a procura incessante de novos fundamentos e a formação ininterrupta de novos sistemas filosóficos, os quais levantam mais questões do que fornecem respostas, o que relança em permanência a busca. 45

Este mundo que nascia com a própria modernidade era, portanto, um mundo no

qual as fronteiras não estavam definidas e cujos princípios de funcionamento ainda

deveriam ser descobertos através da capacidade do próprio homem. Vemos, portanto,

45 O método 4: as idéias, p.175.

59

durante a modernidade, movimentos que questionavam os rumos sociais, mas que estavam

amparados por uma crença no indivíduo e na razão. No dizer de Subirats46,

movimentos do pensamento como o Humanismo, a Reforma, o Iluminismo e as vanguardas têm em comum uma característica: o questionamento de si mesmos e de sua época, a idéia de renovação, de reformulação sempre iniciada a partir do zero de valores individuais e coletivos, de objetivos comuns a uma civilização.

No entanto, a partir do questionamento da razão, que se dá, principalmente, a

partir do fim do século XIX e começo do século XX, começa-se a ter a impressão que a

incompletude do mundo não é uma questão puramente relacionada com o estágio dos

avanços e descobrimentos científicos, mas sim uma questão inerente ao próprio mundo.

Para agravar a situação, as novas descobertas da física no começo do século XX também

promovem a sensação de uma ambigüidade inerente ao mundo. Comparado com a

segurança do positivismo que afirmava estarmos diante de um mundo ordenado e que

obedecia a uma lógica racional, e de um pensamento que acreditava estar destinado ao

conhecimento total da natureza, esta nova visão de mundo, na qual aparecem a

ambigüidade e incompletude, pode ser vista como um sinal de crise ou de declínio. No

entanto, na ponderação de Merleau-Ponty47,

temos razões para perguntar a nós mesmos se a imagem que muitas vezes o mundo clássico nos passa é algo mais do que uma lenda, se ele também não conheceu a incompletude e a ambigüidade em que vivemos, se não se contentou com recusar-lhes a existência oficial e se, conseqüentemente, longe de ser um caso de decadência, a incerteza de nossa cultura não é, antes, a consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi verdade, portanto, é aquisição e não declínio.

Merleau-Ponty48 conclui que

se isso é verdade, a consciência “moderna” não teria descoberto uma verdade moderna, mas uma verdade de todos os tempos, apenas mais

46 Da vanguarda ao pós-moderno, p.47. 47 Conversas 1948, p.74-75. 48 Idem, p.76.

60

visível hoje e levada à sua mais alta gravidade. E essa clarividência maior, essa experiência mais integral da contestação não é o comportamento de uma humanidade que se degrada: é o comportamento de uma humanidade que não vive mais por alguns arquipélagos ou promontórios, como viveu por muito tempo, mas confronta a si mesma de um extremo a outro do mundo

Certamente este confronto aludido por Merleau-Ponty, seja num nível social ou

num nível individual está relacionado com o aumento da ansiedade. Mas este é o preço a se

pagar, caso estejamos dispostos a tentar construir uma representação sem lacunas do

mundo.

Também é central para a instauração da sensação de desamparo e afastamento

do mundo o distanciamento entre o corpo e os processos inteligíveis da mente humana.

Embora a promoção de uma dicotomia entre o corpo e a mente seja freqüentemente

creditada a René Descartes, a instauração de uma tradição de suspeita do corpo já existia

muito antes de Descartes e percorre o mundo ocidental desde a Grécia antiga. Ainda no

século VI a.C o filósofo grego Pitágoras formulou, com grandes influências do orfismo49,

uma doutrina baseada na idéia da transmigração da alma de corpo em corpo, resultando na

crença de que a alma seria imortal e, portanto, divina, enquanto o corpo seria mortal e

corruptível. Pitágoras não é, porém, o único arrimo da instauração da suspeita do corpo;

segundo David Le Breton50, “Platão... considera o corpo humano como túmulo da alma,

imperfeição radical de uma humanidade cujas raízes não estão mais no Céu, mas na Terra.

A alma caiu dentro de um corpo que a aprisiona.” Embora os gregos não tenham se privado

do prazer corporal e do cuidado com o próprio corpo, podemos apontar na sua filosofia, ou

pelo menos no entendimento que dela se fez durante parte dos tempos modernos, a origem

da tradição de suspeita do corpo.

No entanto, nos últimos séculos, foram acrescentadas novas dimensões à

tradição de suspeita ao corpo. A contraposição grega entre a alma e o corpo era, em última

49 Segundo Nicola Abbagnano, o orfismo é uma “seita filosófico-religiosa bastante defendida na Grécia desde o século VI a.C e que se julgava fundada por Orfeo. A crença fundamental da seita era que a vida terrena fosse uma simples preparação para uma vida mais elevada, que podia ser merecida por meio de cerimônias e de ritos purificadores” (Dicionário de filosofia, p.702). 50 Adeus ao corpo, p.13.

61

instância, um dilema que contrapunha o bem e o mal, o divino e os estorvos da carne. A

modernidade, entretanto, simplesmente desprezou este dilema ao tentar suprimir um desses

termos de seu discurso. Assim, o corpo também foi abstraído na elaboração da

epistemologia moderna e, conseqüentemente, as expressões sensíveis da existência humana,

que estão enraizadas na experiência corporal, foram desconsideradas e enterradas sob os

desígnios de uma cultura que se mostrava cada vez mais obcecada pela racionalização.

Desta forma, o corpo passou a ser entendido como uma matéria indiferente na elaboração

da visão que o homem tinha do mundo; era somente a razão que, ao se relacionar com o

mundo poderia, enfim, compreendê-lo e dominá-lo. E o método criado pela modernidade

para a compreensão da natureza foi a ciência moderna. Tal fato faz com que Sabato51

afirme que “o poder da ciência se adquire graças a uma espécie de pacto com o diabo: à

custa de uma progressiva evanescência do mundo cotidiano. Chega a ser monarca, mas,

quando o consegue, seu reino é apenas um reino de fantasmas.” Deixemos que Sabato52

novamente nos explique que

os tempos modernos edificaram-se sobre a ciência, e não há ciências senão a do geral. Mas como a prescindência do particular é a aniquilação do concreto, os tempos modernos edificaram-se aniquilando filosoficamente o corpo. E se os platônicos o excluíram por motivos religiosos e metafísicos, a ciência o fez por motivos friamente gnosiológicos.

A fundamentação filosófica da ciência baseou-se, portanto, numa visão de

mundo que tirava a aptidão cognoscitiva do corpo colaborando para o surgimento da

crença de que o mundo puramente objetivo poderia ser totalmente representado pela ciência

e através da razão. Mas como alerta André Dartigues53,

no universo “galileano”, o da física matemática, ninguém pode dizer que o tempo está bom, que o mar está calmo, as flores perfumadas e os frutos apetitosos. Não tem mais nenhum sentido falar de campinas, florestas, casas, instrumentos, pois, ao observar o mundo sob aquele ângulo, é preciso “fazer abstração dos sujeitos enquanto pessoas que têm uma vida

51 Nós e o universo, p.20. 52 O escritor e seus fantasmas, p.139. 53 O que é fenomenologia, p.77.

62

pessoal, de tudo o que é espiritual não importa em que sentido, de todas as propriedades culturais ligadas aos objetos na ação humana”54 O mundo da objetividade pura “sistema material, real e fechado”55, é um mundo inabitado e inabitável.

A busca pelo conhecimento e pela própria representação cognoscitiva do

mundo acabou por perseguir, durante boa parte da modernidade, um mundo abstrato, um

mundo irreal, uma vez que dele não fazia parte o corpo e, conseqüentemente, toda a

dimensão subjetiva da existência humana. Além disso, ao excluir o corpo do seu discurso, a

modernidade excluiu o próprio sujeito real em benefício de um sujeito abstrato, uma

espécie de super-homem sem emoções, sentimentos ou sensações. A concepção do homem

como existência mostra, enfim, que o dualismo moderno não somente contrapõe o corpo à

alma, mas sim, em última instância, o homem ao seu próprio corpo. Nas palavras de

Luijpen56,

refletindo sobre o corpo humano... encontramos o sujeito, que está mergulhado no corpo e por ele está envolvido no mundo. Achamos o mundo que, como um todo significativo, se prende ao corpo, o qual, enquanto humano, indica o sujeito. Eis o homem como existência.

Se a recusa ao corpo era, para os gregos, baseada em questões metafísicas e

espirituais ela acaba sendo, por assim dizer, condição epistemológica de uma modernidade

que vê na racionalização o caminho para a organização social e individual da vida. No

entanto, podemos ainda apontar a própria funcionalidade do sistema que fundamenta nossa

civilização como instauradora da abstração do corpo. Na ponderação de Rubem Alves57,

a racionalização e a eficiência, fundamentos de nossa civilização, não podem existir sem a repressão ao corpo. Para que um homem se torne uma função do sistema ele tem de reprimir todos os ritmos naturais de seu corpo e começar a operar no ritmo estabelecido pelo próprio sistema. O jogo e a eficiência não caminham juntos. Enquanto você olha o relógio, enquanto corre para tomar um ônibus ou o metrô, entra na fábrica ou no

54 E. Husserl, Die Krisis der Europäischen Wissenschaften und die Transzendentale Phänomenologie, Haia, M. Nijhoff, 1962, p.60. 55 Ibidem, p.61. 56 Introdução à fenomenologia existencial, p.57. 57 A gestação do futuro, p.157.

63

asséptico mundo da burocracia, todas as coisas repetem o mesmo refrão: “o corpo deve ser vencido”.

Ou seja, para que a eficácia seja alcançada em termos principalmente de lucro,

o corpo deve ser submetido a um funcionamento equivalente ao de uma máquina ou operar

como extensão destas.

Apontamos, portanto, uma tríplice origem para essa abstração do corpo: uma

tradição metafísica e espiritual que encontra suas origens na filosofia grega, a própria

epistemologia moderna e, por fim, a funcionalidade de um sistema sócio-econômico

racionalista. Desta forma, ainda hoje “nossa civilização se baseia no pressuposto de que a

verdadeira humanidade começa onde o corpo termina. (...) Aprendemos que a mente, o

intelecto, o espírito e a alma constituem a essência do homem.” 58

À primeira vista, porém, a afirmação de que o corpo é atualmente reprimido

pode enfrentar questionamentos. Os críticos mais severos poderiam até mesmo argumentar

que vivemos, nos dias atuais, exatamente o oposto. Estes iriam certamente apontar o corpo

no mundo da publicidade ou o aumento de transtornos alimentares resultantes da obsessão

pelo corpo perfeito como prova da apologia ao corpo. No entanto, como explica-nos Daniel

Lins59 vivemos atualmente o

paradoxo de uma modernidade cujo discurso aparente faz a apologia do corpo para melhor esvaziá-lo, transformando-o em mercadoria e impondo um fora do corpo – como exterioridade redundante – que dita o simulacro do próprio corpo. Nunca o corpo-simulacro, o corpo-descartável foi tão exaltado como na contemporaneidade.

Le Breton conclui que “o corpo exaltado não é o corpo com o qual vivemos,

mas um corpo retificado, redefinido.”60 Embora a exaltação do corpo-simulacro pareça

reverter o dualismo original, no qual o corpo era visto como a parte inferior da condição

58 Idem, p.156. 59 Prefácio do livro Adeus ao corpo de David Le Breton, p.10. 60 Entrevista com David Le Breton publicada em tradução para o português na revista IHU on-line Ano 4 No110 – 9 de agosto de 2004, p.37. [original revista Construire, No19, 9 de Maio de 2000].

64

humana, ela acaba por acentuar o confronto entre o homem e o seu corpo. O corpo exaltado

se torna

uma forma possível de transcendência pessoal e de contato. O corpo deixa de ser uma máquina inerte e torna-se um alter ego de onde emanam sensação e sedução. Torna-se o local geométrico da reconquista de si, território a ser explorado à espera de sensações inéditas a experimentar.61

Desta forma, o corpo acaba por se tornar um alter ego a ser perseguido pelo

sujeito e a transmutação neste alter ego, condicionada, principalmente pelo mundo da

publicidade, ao consumo. Em outras palavras, o corpo real passa a ser considerado um

rascunho, um objeto imperfeito que deve, através do consumo, ser corrigido. Toda esta

concepção faz “do corpo um sócio que se mina ou um adversário que se combate para lhe

dar a forma desejada.”62 Resulta daí que “essa preocupação com a aparência, essa

ostentação, essa vontade de bem-estar que faz correr ou se consumir não modificam... em

nada a eliminação do corpo que reina na sociedade.”63

Além disso, se para a concepção de origem da suspeita do corpo, marcadamente

metafísica e espiritual, o corpo era o instrumento da alma, o corpo também é visto,

atualmente, como um instrumento da busca do prazer, e, portanto, valorizado como tal.

Nas palavras de Rollo May64, “o corpo é tratado como um veículo de sensações, do qual se

pode obter com habilidade e exatamente como quem liga um televisor certos prazeres

gastronômicos e sexuais”. Mudam-se as finalidades, mas permanece o corpo-instrumento.

Podemos, inclusive, questionar-nos se os vícios, que são tradicionalmente creditados a uma

fraqueza e imperfeição do corpo, têm sua origem somente no corpo. Como afirma Michel

Serres65,

dissertamos mais facilmente sobre os vícios porque podemos compreender melhor sua verdadeira natureza, totalmente intelectual. A

61 David Le Breton, Adeus ao corpo, p.53. 62 entrevista com David Le Breton publicada em tradução para o português na revista IHU on-line Ano 4 No110 – 9 de agosto de 2004, p.38. [original revista Construire, No19, 9 de Maio de 2000]. 63 David le Breton, Adeus ao corpo, p.54. 64 Op.cit., p.89. 65 Variações sobre o corpo, p.49.

65

cabeça nunca cessa de contabilizar: uma aritmética triste e simplista dos prazeres, das ações, das mulheres conquistadas, dos tesouros acumulados, da intensidade dos aplausos, dos golpes que infligimos ao adversário em comparação com os que dele recebemos, das horas passadas na ociosidade. Nada disto concerne ao corpo, mas em compensação chama atenção para seus indicadores: os vícios intelectuais se prestam ao discurso.

Embora o corpo enquanto tema tenha sido amplamente debatido desde dos

gregos até os dias atuais, certamente este se tornou, no último século, um tema central e de

grande importância. Esta valorização do corpo enquanto tema filosófico ocorreu, em grande

parte, pela própria recusa do corpo em obedecer totalmente a uma lógica racional, tornando

o corpo um fecundo território para aqueles que pretendem fazer a crítica da modernidade. É

na relação corpo-mundo que percebemos, mais claramente, o fracasso da racionalização:

nesta relação estão expostas as irregularidades do homem que resiste a se tornar uma

máquina racional, uma vez que o corpo é a morada de tudo aquilo que não pode ser

reduzido à razão. Devemos salientar, entretanto, que a recusa filosófica ao dualismo não é

recente. Espinosa66, por exemplo, já havia afirmado, no século XVII, que “Alma e o Corpo

estão... simultaneamente presentes, e – é necessário supor – simultaneamente ausentes. Se a

Alma é a idéia do Corpo, não há mais idéia quando não há mais corpo”. O que garantiu,

portanto, que este dualismo e uma conseqüente recusa do corpo perdurasse por tanto tempo,

mesmo sob constantes críticas e questionamentos? Como nos explica Le Breton67 “a luta

contra o corpo revela sempre mais o móvel que a sustenta: o medo da morte. Corrigir o

corpo, torná-lo uma mecânica, associá-lo à idéia da máquina ou acoplá-lo a ela é tentar

escapar desse prazo, apagar ‘a insustentável leveza do ser’ (Kundera).” Ainda segundo

Breton68, “a carne do homem é a parte maldita sujeita ao envelhecimento, à morte, à

doença. É o ‘cadáver em decomposição’, a ‘carne’. O mal é biológico.” O que está por trás

da luta contra o corpo é, portanto, uma luta contra a própria condição humana, mais

especificamente, o que Heidegger já havia apontado como origem última da angústia: a

morte. O drama do homem moderno não é, portanto, somente ter sido separado do seu

66 Apud Daniel Lins, op.cit., p.12. 67 Op. cit., p.17. 68 Ibidem, p.14.

66

corpo, mas também o fato de que, nesta divisão, está implícito um confronto entre estas

duas partes do qual o homem não pode, de forma alguma, sair vitorioso.

Esta luta contra si próprio também se desdobra no âmbito social. Segundo a

reflexão de Alain Touraine69,

o drama da nossa modernidade é que ela se desenvolveu lutando contra a metade dela mesma, fazendo a caça ao sujeito em nome da ciência, rejeitando toda a bagagem do cristianismo que vive ainda em Descartes e no século seguinte, destruindo em nome da razão e da nação a herança do dualismo cristão e das teorias do direito natural que haviam provocado o nascimento das Declarações dos direitos do homem e do cidadão nos dois lados do Atlântico. De forma que continuamos a chamar de modernidade o que é a destruição de uma parte essencial dela mesma. Não existe modernidade a não ser pela interação crescente entre o sujeito e a razão, entre a consciência e a ciência, por isso quiseram nos impor a idéia de que era preciso renunciar à idéia de sujeito para que a ciência triunfasse, que era preciso sufocar o sentimento e a imaginação para libertar a razão, e que era necessário esmagar as categorias sociais identificadas com as paixões, mulheres, crianças, trabalhadores e colonizados, sob o jugo da elite capitalista identificada com a racionalidade.

A tentativa de eliminar o sofrimento imposto pelo corpo se mostra, portanto,

uma nova fonte de angústia e, ao eliminar o corpo, a modernidade acaba gerando resultados

dramáticos, que resultam, paradoxalmente, numa fonte de ansiedade e de angústia. Como

nos aponta Rubem Alves70

uma civilização que seja construída com base na repressão ao corpo e na transformação deste num meio para os seus próprios fins – um processo que abarca desde o sutil condicionamento científico do comportamento até as mais brutais formas de tortura e violência – consiste na encarnação da morte e da loucura, estando condenada a se extinguir pela abolição da própria vida.

Podemos completar este pensamento com as palavras de Ernesto Sabato71, ao

defender que

69 Op. cit., p.219. 70 A gestação do futuro, p.158. 71 O escritor e seus fantasmas, p.139.

67

entre outras catástrofes para o homem, essa proscrição acentuou sua solidão. Pois a proscrição gnosiológica das emoções e das paixões, a aceitação exclusiva da razão universal e objetiva converteu o homem em coisa, e as coisas não se comunicam: o país onde é maior a comunicação eletrônica é também o país onde maior é a solidão dos seres humanos.

Parece então que não resta alternativa senão “retornar ao corpo. Não há outra

maneira de se abranger o significado da vida e de se descobrir em que consiste ser e agir

como um ser humano.”72 Nesta ótica, a experiência estética surge como um dos caminhos

para promover uma intencionalidade que una, em pé de igualdade, o sensível e o inteligível

e que seja, desta forma, capaz de gerar novas experiências de corporeidade que possam

permitir ao homem uma nova consciência de si mesmo e do mundo. Como afirma João

Francisco Duarte Jr.73, numa passagem que já serviu de epígrafe para o presente trabalho,

“talvez a valorização do sensível e a busca de sua integração com o inteligível possa

consistir num pequeno e primordial passo rumo a tempos menos brutais e permeados de

maior equilíbrio entre as muitas formas de vida conhecidas.”

72 Rubem Alves, op. cit., p.158. 73 O sentido dos sentidos, p. 219.

69

III – UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O FENÔMENO ESTÉTICO

Aproximo-me cada vez mais do alvo a que vos

conduzo por trilhas pouco animadoras. Permiti que eu siga por mais alguns passos, a fim de que a vista de um horizonte mais livre possa, talvez, compensar as penas da caminhada.

Schiller

Se não formos destruídos pelas forças atômicas,

será necessário empreender uma vasta síntese de elementos contrários. Já a filosofia existencial-fenomenológica tenta uma conciliação entre o objetivo e o subjetivo, entre a essência e a existência, entre o absoluto e o relativo, entre o intemporal e o histórico.

Ernesto Sabato

O belo não é um objeto, mas uma relação

harmônica entre o sujeito e a obra de arte. Martin Buber afirmava que o mundo humano não se constitui nem dos objetos que estão ao nosso redor e nem da consciência pura, fechada em si. É a maneira de ser em relação ao mundo, o hífen que liga o Eu ao seu mundo, que é a essência de nossa realidade. É isto que encontramos na experiência estética.

Rubem Alves

O objeto belo é aquele que realiza, no apogeu do

sensível, a adequação total do sensível e do sentido e que, assim, suscita o livre acordo da sensibilidade e do intelecto.

Mikel Dufrenne

70

Havíamos afirmado, na introdução do presente trabalho e tomando como ponto

de partida uma idéia do esteta francês Marc Jimenez, a intenção de se pensar uma

concepção de razão a partir da experiência estética. Paralelamente, afirmamos a

possibilidade de se compreender a experiência estética a partir da fenomenologia. Como

numa seqüência lógica de passos, dificilmente poderíamos deixar de entender que nossa

segunda tarefa aqui mencionada deve ser apresentada primeiramente à discussão sobre a

possibilidade de uma razão estética. Tentar expor a natureza da experiência estética; eis o

difícil propósito deste terceiro capítulo.

Apesar de ser uma idéia freqüentemente usada pela Estética, a definição da

experiência estética pode se mostrar, em alguns momentos, uma tarefa desconcertante e

intrincada. Como nos aponta Monroe C. Beardsley1,

existe, primeiramente, a dificuldade de se falar claramente sobre experiências em si. (...) Uma experiência pode ter uma certa duração, isso é certo. Mas o que mais pode ser dito corretamente a respeito? Este é, certamente, o nosso primeiro desafio. Mesmo que seja permitido aplicar certos predicados para experiências, podemos nos questionar se estes serão suficientemente ricos e exatos para fornecer uma distinção clara entre a experiência estética e outros tipos de experiência. Este é o segundo desafio.

Portanto, além da própria dificuldade de se discorrer sobre a experiência

estética em si, devemos considerar o que Beardsley aponta como um segundo desafio:

como proceder para diferenciar a experiência estética de outros tipos de experiência. Isto

porque, certamente, ao assumirmos a possibilidade de se falar de uma experiência estética,

assumimos a existência de experiências não-estéticas. Na concepção adotada neste trabalho

e que será discutida no desenrolar das páginas seguintes, experiências de naturezas distintas

decorrem de diferentes formas de orientações da consciência humana, o que acaba por

1 Aesthetic Experience Regained, in The Journal of Aesthetics and Art Criticism, p. 5. Original: “there is first the difficulty in talking intelligibly about experiences as such. (...) An experience can have a certain duration; so much is clear. But what else can correctly be said about it? This is one puzzle. But even if we are allowed to aply some predicates to experiences, it may also be questioned whether they will be rich enough and exact enough to afford a reasonbly clear distinction between aesthetic experiences and other kinds. That is the second puzzle.”

71

resultar em diferentes modos de percepção e, conseqüentemente, diferentes formas de

aparição do mundo. É foco maior deste capítulo, entretanto, apontar a diferença específica

entre a experiência estética e o que será descrito como experiência prática. Feito isso, um

terceiro e último tópico pretende reabilitar a experiência estética como um importante fator

de conhecimento. Diferentemente da crença amplamente aceita na modernidade, a

experiência estética não promove um tipo de conhecimento inferior ou que esteja em

desacordo com o conhecimento gerado por outras intencionalidades humanas. O que se

tentará demonstrar é que a experiência estética, mais precisamente aquela proporcionada

pela obra de arte, apresenta uma tentativa de interpretação e conhecimento do mundo e do

homem de ordem diferente daquela apresentada por outros sistemas simbólicos.2 As

diferentes formas de orientação da percepção humana simplesmente geram conhecimentos

complementares e igualmente importantes. Antecipando a discussão a respeito da

experiência estética como forma de conhecimento podemos, mesmo que rapidamente,

apontar algumas de suas peculiaridades. Como nos explica Duarte Jr.3, a palavra estética

deriva da palavra grega aisthesis, “indicativa da primordial capacidade do ser humano de

sentir a si próprio e ao mundo num contexto integrado.” O mesmo autor acrescenta, em

uma outra obra sua, que a experiência estética pode ser entendida como “uma suspensão

provisória da causalidade do mundo, das relações conceituais que nossa linguagem forja.

Ela se dá com a percepção global de um universo do qual fazemos parte e com o qual

estamos em relação.”4

Falar da relação que mantemos com os estímulos do mundo exige um ponto de

partida focado no questionamento da influência da orientação da consciência na percepção

e sua influência na experiência humana. Esta é, portanto, uma tarefa que envolve um

mergulho no pensamento que pretende a compreensão da forma como o homem significa

suas vivências e o mundo em que vive. Exige, também, que se considere a questão da

própria capacidade que o homem tem para conhecer o mundo. Em outras palavras: não

2 Ernst Cassirer ilustra esta diferença usando, como exemplo, a ciência. Em suas palavras: “como a arte e a ciência se movem em planos totalmente diferentes, não podem contrariar-se ou contradizer-se. A interpretação conceitual da ciência não exclui a interpretação intuitiva da arte.” (op. cit., p.277). 3 O sentido dos sentidos, p.13. 4 Fundamentos estéticos da educação, p.91.

72

existe interpretação da experiência estética que não esteja baseada numa certa

Weltanschauung.

A pluralidade de visões epistemológicas que podem embasar a questão parece

ter garantido, na história da Estética, um certo embate a respeito do caráter da experiência

estética. Freqüentemente a experiência estética é pensada por um viés objetivista, que

pretende ver no objeto estético o que poderíamos entender como o belo-em-si. A beleza

seria, na interpretação mais extrema deste viés, somente uma característica de determinado

objeto. Também é comum encontrarmos uma interpretação subjetivista, na qual o principal

componente da experiência estética estaria ligado a um processo psicológico subjetivo.

Vemos que o termo experiência estética está marcado, no desenrolar da sua trajetória, pelos

paradoxos mais dispares. No entanto, o que se tentará afirmar aqui é que, pautando-nos sob

os pressupostos da fenomenologia existencial, podemos descrever a experiência estética de

uma forma a minimizar – mas certamente não evitar por completo – a possibilidade de

embates acerca de seu caráter. Destarte, curiosamente, nossa apresentação da experiência

estética começa com uma breve descrição da fenomenologia existencial.

Dificilmente poderíamos apresentar uma interpretação do significado de

fenomenologia que fosse capaz de abarcar todos os significados que o termo veio

adquirindo desde sua primeira aparição no texto de J.H. Lambert Novo Organon, no qual é

interpretado como sendo “a teoria da ilusão sob suas diferentes formas.”5 Indo ao encontro

de Dartigues, Abbagnano6 nos confirma que “Lambert o usa como título da 4ª. Parte do seu

Novo Organon (1764) e entende por ele o estudo das fontes de erro. Aqui, a aparência de

que a Fenomenologia é descrição é entendida como aparência ilusória.” Lambert pretendia

que a fenomenologia se mostrasse uma “teoria das aparências” e que pudesse ajudar a

distinguir entre a aparências das coisas do que elas, de fato, são em si.

É talvez sob a influência de Lambert que Kant retoma por sua vez o termo; ele o utiliza, em todo caso, em 1770 numa carta a Lambert onde o que chama “phaenomenologia generalis” designa a disciplina propedêutica que deve, segundo ele, preceder a metafísica. Utiliza-o de

5 André Dartigues, op. cit., p.11. 6 Op. cit., p.416.

73

novo na célebre Carta a Marcus Herz de 21 de setembro de 1772, onde esboça o plano da obra que, após uma longa gestação aparecerá em 1781 sob o título de Crítica da razão pura. Ora, a primeira secção da primeira parte dessa obra deveria, segunda a carta de Herz, intitular-se: A fenomenologia em geral. O fato de que Kant não tenha posteriormente retido esse título e tenha preferido o de Estética transcendental retardou sem dúvida alguma a carreira do termo. Mas nem por isso uma fenomenologia está ausente da Crítica kantiana pois esta, ao se entregar a uma investigação da estrutura do sujeito e das “funções” do espírito, se dá por tarefa circunscrever o domínio do aparecer ou “fenômeno”. A meta de tal investigação é, no entanto, menos a elucidação desse aparecer do que a limitação das pretensões do conhecimento que, por atingir apenas o fenômeno, não pode jamais se prevalecer de ser conhecimento do ser ou do absoluto. 7

Sabemos que Kant defende, na sua Crítica da razão pura, que o conhecimento

humano é um conhecimento apenas dos fenômenos e não das coisas-em-si. Para ilustrar

esta discussão, o filósofo alemão introduz, nesta mesma obra, o termo noumenon (nômeno)

para designar a coisa-em-si ou, em outras palavras, a própria realidade e o termo

phenomenon (também phainómenon), que seria a única esfera do real à qual o homem teria

acesso. Nas próprias palavras de Kant, o phenomenon, ou fenômeno, é “o que não pertence

ao objeto em si mesmo, mas se encontra sempre na relação entre ele e o sujeito, e é

inseparável da representação que este tem daquele.”8

Inspirado na visão kantiana Regis de Morais9 nos explica que

o mundo visita os nossos sentidos e, através destes, faz-se numa oferenda à nossa inteligência e à nossa sensibilidade, estimulando-as. Mas os nossos sentidos, todos eles, têm limitações de alcance; além do que, entre os sinais do entorno e os sentidos que temos, há vibrações do ar, entrecruzamentos de efeitos, distâncias – enfim, um complexo de interferências e dificultações. Assim, olhamos e vemos, mas vemos aquilo a que nossa inteligência e nossa sensibilidade podem ter acesso.

Por esta razão lembrava o filósofo Immanuel Kant que temos acesso ao fenômeno (phainómenon), no sentido daquilo que aparece no âmbito das nossas humanas possibilidades. As “coisas em si” (o nômeno), que com sua incidência sobre nossa sensação e nossa percepção estimulam-nos a atingirmos os fenômenos, a estas realidades em si mesmas o homem não tem acesso. Isto é desanimador e diz-nos que

7 André Dartigues, op. cit., p.11-12. 8 Apud N. Abbagnano, op. cit., p.415. 9 Arte: a educação do sentimento, p.37.

74

vivemos nutridos de irrealidade? Não. Isto esclarece que a verdade humana, a sua realidade, é fenomênica.

Se a realidade é, de fato, fenomênica, ela não pode ser afirmada independente

de um certo sujeito e de um certo modo de intencionalidade10. Concedamos novamente a

palavra a Kant11: “se atribuo à rosa em si a cor vermelha, a Saturno os anéis ou a todos os

objetos externos em si a extensão, sem levar em conta a relação desses objetos com o

sujeito e sem limitar meu juízo a esta relação, então nasce a ilusão.” Certamente contraria-

se, com esta afirmação, a freqüente crença de que podemos espelhar uma realidade externa,

através dos nossos sentidos, em nossa consciência. Portanto, isto vai contra a idéia de que a

beleza nasce do espelhamento do belo-em-si, característica de determinado objeto, na

consciência do espectador.

Ao invés de nos aprofundarmos na questão do fenômeno descrita por Kant,

procuraremos, no entanto, apresentar, nas próximas linhas, uma pequena descrição do que

se entende hoje por fenomenologia. Vale salientar que não é intenção desde trabalho

apresentar as diversas acepções que o termo assumiu desde do século XVIII, mas sim

anotar alguns dos momentos mais marcantes do termo até a inauguração de uma forma de

entendimento da fenomenologia inaugurada com o filósofo alemão Edmund Husserl, a

quem é atribuída a elaboração da interpretação atualmente mais freqüente da

fenomenologia. Husserl anuncia sua noção de fenomenologia na obra Pesquisas Lógicas,

cuja primeira parte foi publicada em 1900 e sua continuação no ano seguinte, com o

propósito de apresentar uma filosofia cujo objeto de estudo fosse, por excelência, as

essências dos fenômenos como estes se apresentam para a consciência. Segundo o próprio

Husserl12 a fenomenologia “não estuda os objetos que o especialista das outras ciências

considera, mas o sistema total dos atos possíveis da consciência, das aparições possíveis,

das significações que se relacionam precisamente com esses objetos.” Daí pode-se levantar

10 Conceito a ser melhor discutido à frente. 11 Apud N. Abbagnano, op. cit., p.415. 12 Apud André Dartigues, op.cit., p.71.

75

a hipótese de um parentesco da fenomenologia com um certo psicologismo13, para o qual

todas as significações da realidade estariam embutidas dentro da consciência. Mas, como

considera Luijpen14,

a resposta a essa objeção é simples, porque parte de dois postulados insustentáveis. O primeiro consiste em que a psique, a consciência, é uma intimidade fechada em si mesma, onde moram conteúdos que projetamos injustamente sobre as “coisas”. O segundo supõe que “as coisas mesmas” são realidades brutas... . Não existe, entretanto, uma consciência fechada em si mesma, com significados que lhe pertencem; ser-consciente constitui uma maneira de existir, de ser-no-mundo.

Notamos que o homem não é descrito, por Luijpen, somente como um ser-no-

mundo; esta é uma afirmação que a teoria materialista poderia fazer. O ser-no-mundo do

homem pode ser mais corretamente entendido como sendo um ser-consciente-no-mundo.

Esbarramos, ainda na citação acima, numa segunda idéia central: a de uma existência

humana. É na noção de existência que a fenomenologia busca um meio de pensar a

condição humana. Segundo Merleau-Ponty, “a existência no sentido moderno é o

movimento pelo qual o homem está no mundo, comprometendo-se numa situação física e

social que se torna sua visão do mundo.”15 Vimos, portanto, que a consciência não se

encontra fechada sobre si mesma; ela está sempre direcionada para o mundo e só pode ser

afirmada nesta relação, relação esta que é, por assim dizer, guiada pela intenção com que a

consciência aborda o mundo. Conseqüentemente, a própria apreensão da realidade estaria,

para a fenomenologia, vinculada à noção de intencionalidade16. Assim, a consciência

sempre aparece direcionada a um determinado objeto e o objeto só se torna objeto em

decorrência da ação da consciência. Como resultado direto desta noção de intencionalidade

13 Segundo Luijpen, citando uma idéia do filósofo francês André Lalande: “falando em geral, designa-se pela palavra ‘psicologismo’ a tendência a reduzir todos os problemas filosóficos, ou seja, todas as questões lógicas, morais, estéticas e metafísicas a problemas psicológicos.” 14 Op. cit. p.79. 15 Apud Luijpen, op. cit., p. 52 (nota). 16 Segundo André Dartigues: “a expressão ‘na consciência’ é equívoca, já que a consciência não tem interior, já que ela própria está, em virtude de sua intencionalidade, junto às coisas e no mundo.” (op.cit., p.100).

76

temos um rompimento com a idéia de um sujeito fechado em si e, desta forma, isolado do

mundo. Deixemos que André Dartigues17 nos explique que

o principio da intencionalidade é que a consciência é sempre ‘consciência de alguma coisa’, que ela só é consciência estando dirigida-para um objeto (sentido de intendio). Por sua vez, o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência, ela é sempre objeto-para-um-sujeito. Poderemos, pois, falar, seguindo Brentano, de uma existência intencional do objeto na consciência. Isto não quer dizer que o objeto está contido na consciência como que dentro de uma caixa, mas que só tem seu sentido de objeto para uma consciência, que sua essência é sempre o termo de uma visada de significação e que sem essa visada não se poderia falar de objeto, nem portanto de uma essência de objeto. Dito de outra maneira, a questão ‘O que é o que é?’, que visa o sentido objetivo ou essência, remete por sua vez à questão: ‘O que se quer dizer?’, dirigida à consciência. Isso significa que as essências não têm existência alguma fora do ato da consciência que as visa e do modo sob o qual ela os apreende na intuição. Eis por que a fenomenologia, em vez de ser contemplação de um universo estático de essências eternas, vai se tornar a análise do dinamismo do espírito que dá aos objetos do mundo seu sentido.

O caráter da consciência acaba se desdobrando, em última instância, como

sendo o do próprio conhecimento humano. Desta forma, a fenomenologia compreende o

próprio conhecimento humano relacionando-o com uma determinada forma de

intencionalidade. Todo conhecimento é, portanto, o conhecimento permitido pela

consciência. Sendo assim, Husserl, ao analisar o caráter da consciência, cuidadosamente

distingue o aspecto objetivo da experiência vivida, chamado por ele de noema, da visada da

consciência descrita como noese.18 Para este filósofo, os dois termos são inseparáveis; não

existe o noema sem estar relacionado com a noese. Estamos entrelaçados com o mundo.

Enraizada na noção de intencionalidade aparece a forma como o mundo integra a

consciência. Em última análise, podemos inferir que ligado à intencionalidade aparece o

próprio ato humano de atribuir um sentido às suas vivências. Percebemos, pois, que o

17 Op. cit., p.24-25. 18 Como nos explica André Dartigues: “Husserl batizará com o nome de nóese a atividade da consciência e com o nome de nóema o objeto constituído por essa atividade, entendendo-se que se trata do mesmo campo de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si própria em direção a seu objeto e o objeto como se referindo sempre aos atos da consciência” (Op. cit., p.26)

77

entendimento fenomenológico de sentido está intimamente correlacionado com as

experiências concretas do sujeito. Desta forma, entende-se que o sentido de um fenômeno

“se constitui... como aquilo que faz a unidade das experiências reais em sua diversidade

infinita, como o horizonte de universalidade do qual o sujeito se aproxima através de todas

as suas experiências.”19

É nesta zona intermediária formada entre o sujeito e o objeto-de-sua-visada que

aparecem unificados a consciência e o mundo; ambos se constituem na medida em que se

relacionam. O mundo, conseqüentemente, só pode ser afirmado como um mundo-para-

uma-consciência20. Neste sentido, Dufrenne21 afirma que “mundo é o real ordenado à vida

singular de uma consciência perceptiva: real indeterminado, mas significante, porque

centrado na experiência de um ser singular”. Deve ficar claro, entretanto, que a

fenomenologia não pretende afirmar a não-existência de um mundo-em-si, independente do

homem, mas quer apenas suspender qualquer afirmação neste sentido para que se possa

melhor realizar uma investigação sobre o próprio funcionamento da consciência. Ademais,

podemos entender que “o mundo é a possibilidade de todos os mundos singulares.”22

Segue, portanto, que a existência de um mundo autônomo, existente independentemente de

certa visada, é posto entre parênteses. Este processo é definido, por Husserl, como a

redução fenomenológica¸ entendida também por epoché fenomenológica. Segundo o

próprio Husserl23,

nós colocamos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e colocamos entre parênteses tudo quanto ela compreende; por isso, o mundo natural inteiro que está constantemente ‘aqui para nós’, ‘ao alcance da mão’ e que continuará a permanecer como ‘realidade’ para a consciência ainda que nos agrade colocá-lo entre parênteses. Fazendo

19 André Dartigues, op. cit., p.68. 20 Como anota Luijpen: “ora, um mundo-sem-sujeito é um mundo de que nenhum sujeito tem consciência, do qual nenhum sujeito fala realmente, com o qual nenhum sujeito trata realmente, em que nenhum sujeito vive realmente e que não é afirmado realmente por nenhum sujeito. Um mundo assim evidentemente jamais pode ser afirmado. Daí conclui Hume que nunca afirmamos outra coisa senão nossas impressões.” (op. cit.,p.133) Ainda segundo Luijpen, o homem, “não pode, entretanto afirmar nenhum ‘ser’ fora de sua própria presença como sujeito existente; com outras palavras, o homem jamais afirma alguma coisa que não seja o ser-para-o-homem.” (op. cit., p.66) 21 O poético, p.182. 22 Ibidem, p.183. 23 Apud N. Abbagnano, op. cit., p.320.

78

isso, como está em minha plena liberdade fazê-lo, eu não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho em dúvida o seu ser-aqui, como se fosse um cético; mas exerço a epoché fenomenológica, que me veta absolutamente todo juízo sobre o espaço temporal existente.

Vemos que a redução fenomenológica visa superar a crença de que os objetos

com os quais determinado sujeito se relaciona existem tais como ele os vê. Deve-se,

afirmar, sob a ótica fenomenológica, que tanto mundo, na sua dimensão de realidade, de

exterioridade ou do próprio caráter do objeto percebido são constituídos através da

consciência intencional. Mesmo correndo o risco de se alongar tanto em quantidade quanto

em extensão das citações, devemos deixar que Dartigues24 conclua que

se o objeto é sempre objeto-para-uma consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto-percebido ou objeto-pensado, rememorado, imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que poderá parecer estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhe é, de alguma maneira, co-original. Se a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto para a consciência”, é inconcebível que possamos sair dessa correlação já que, fora dela, não haveria nem consciência nem objeto. Assim se encontra delimitado o campo de análise da fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual não somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende o mundo inteiro.

Embora os primeiros escritos de Husserl – até a publicação de Meditações

Cartesianas, em 1929 – se aproximem de um certo idealismo uma vez que a análise da

consciência é primordialmente colocada sobre o sujeito25,

em seus últimos escritos e... sob a influência de Heidegger, Husserl acentua ao contrário a própria correlação consciência-mundo, que será bastante fácil de traduzir por ser-no-mundo. Se o verdadeiro resíduo da redução fenomenológica é essa correlação, e não o Sujeito transcendental ou ‘sujeito puro’ que aproximava Husserl dos neokantianos, a fenomenologia poderá então se tornar o estímulo das novas filosofias da

24 Op. cit., p.26. 25 Cf. André Dartigues, op. cit., p.31.

79

existência. A evidência primeira, o terreno absoluto para o qual cumpre voltar não será mais o sujeito, mas o próprio mundo tal como a consciência o vive antes de toda elaboração conceptual.26

Ao acentuar a correlação entre consciência e mundo, a fenomenologia mostra o

intuito de superar uma estanque oposição entre objetivismo e idealismo (ou subjetivismo).

Sob a ótica fenomenológica, não cabe mais buscar o conhecimento na realidade exterior

sem levar em consideração eventuais distorções que nossa consciência pode imprimir nesta

realidade, como propõem os objetivistas, que supõem a consciência como um reflexo puro

dos dados do mundo. Tampouco se deve entender os objetos materiais como meras

representações do nosso espírito, ou seja, como uma idéia. A fenomenologia existencial

acaba por propor um posicionamento conciliador no embate entre objetivistas e idealistas

ou, nas palavras usadas por Luijpen, entre materialistas e espiritualistas. Para este filósofo,

estes dois sistemas “testemunham claramente as dificuldades perante as quais se encontra o

pensamento ao pretender exprimir o que é o homem” 27. Já a fenomenologia existencial

procura justamente “valorizar a realidade que materialistas e espiritualistas viram, sem

contudo cair na unilateralidade desses dois sistemas.”28

Esta é uma afirmação de natureza delicada e merecedora de nossa atenção. Por

uma questão expositiva iremos, primeiramente, apontar as linhas gerais do materialismo

para que, num segundo momento, possamos discutir a questão do idealismo até, por fim,

chegar-se à proposta de reconciliação entre ambos defendida no texto de Luijpen e, de

forma geral, pela própria fenomenologia.

Uma vez que existe um grande número de acepções possíveis do termo matéria,

a tarefa de descrição do materialismo é, sem dúvida, muito problemática. No entanto,

grosso modo, o materialismo entende a matéria como um imperativo responsável por

constituir os processos pessoais e culturais. O materialismo defende, assim, que o homem é

resultado de influências físicas, fisiológicas e culturais, atribuindo, em sua versão mais

26 Ibidem. p.32. 27 Op. cit. p.32. 28 Ibidem, p.32-33.

80

radical, a causalidade exclusivamente à matéria. Embora a afirmação materialista contenha

uma noção valiosa que deve ser preservada, Merleau-Ponty29 pondera que

não sou o resultado ou cruzamento das múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu “psiquismo”; não posso pensar-me como um aparte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar-me sob o universo da ciência. Tudo o que sei do mundo, ainda que pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não significariam nada.

O materialismo não inclui, nos seus postulados, uma dimensão essencial do

homem: a dimensão do ser-consciente do sujeito. Isso não significa, entretanto, que o

problema da consciência esteja excluído completamente do pensamento materialista; o

materialismo, ao reduzir a consciência a um resultado das causalidades materiais, apenas

promove um certo estreitamento da acepção da consciência. Como nos explica o filósofo

Albert Dondeyne30,

o materialismo, que quer reduzir todo o ser a um jogo de partículas em movimento, explicáveis apenas causalmente, não pode ser refutado por conceitos a priori. Não contém uma contradictio in terminis, mas sim uma contradictio in actu exercito, i.e.. encontramos no materialismo, ao lado do sistema do mundo material, com suas leis causais, a afirmação do mundo e a prática consciente da explicação causal, e isto é um ato de consciência, que, visto em sua estrutura essencial, está acima do determinismo causal.

Ocupando uma posição distinta da do materialismo, devemos lançar nossa

atenção para o subjetivismo (na palavra usada por Luijpen: espiritualismo). Se “para o

materialista, o sujeito consciente não é uma realidade digna de menção; para o

espiritualista, o pensamento sobre a realidade começa com a afirmação do sujeito.”31

Assim, no seu discurso mais radical, o espiritualismo acaba por defender que a realidade é

29 Apud Luijpen, op. cit., p. 35 (nota). 30 Apud Luijpen, op. cit., p.36-37 (nota). 31 Luijpen, op. cit., p.40.

81

fruto apenas dos processos da consciência humana. No entanto, na consideração de

Luijpen32,

esse modo de tornar absoluta a importância do sujeito equivale, no monismo espiritualista, à redução do ser das coisas materiais ao ser do sujeito. Portanto, nessa corrente, a “destotalização da realidade” se faz na direção completamente oposta à que é seguida pelo materialismo. Enquanto neste o significado da subjetividade é simplesmente omitido ou, no máximo, visto como indigno de ser mencionado, no monismo espiritualista desaparece a densidade das coisas materiais nos fantasmas dos conteúdos de consciência.

Se o materialismo acaba “reduzindo o mundo” ao não levar em consideração a

capacidade de reinvenção da consciência humana, o idealismo “reduz” o mundo porque “se

o torna certo, é a título de pensamento ou consciência do mundo e como simplesmente

correlativo à nossa consciência, de modo a tornar-se imanente a ela, suprindo-se assim a

asseidade das coisas.”33 Desta forma, como pondera Luijpen34,

o monismo espiritualista vê-se obrigado a sacrificar a identidade do “pequeno” sujeito ao Sujeito Absoluto. No lugar do “pequeno” sujeito, que é todo sujeito real, aparece o sujeito “grande” e impessoal, de que os muitos e distintos sujeitos não passam, quando muito, de particularizações, momentos dialéticos ou funções.

Pelo ângulo puramente espiritualista “evidencia-se logo serem as qualificações

do Sujeito Absoluto tão fantásticas que acabam coincidindo com o que tradicionalmente se

designa com o ‘nome’ Deus”.35 Ou seja, no conceito de Sujeito Absoluto aparece também

subentendido uma certa divinização do sujeito.

A conseqüência disso é que o homem julga poder falar com autoridade “divina” e pensa agir com uma garantia “divina” de valor. Dá tanta importância a suas convicções e asserções que se vê incapacitado, em princípio, de escutar outrem e toma como crime de lesa-majestade qualquer contestação de sua “verdade” 36.

32 Op. cit., p.40. 33 Merleau-Ponty apud Luijpen, op. cit., p.40 (nota). 34 Idem, p.41. 35 Ibidem, p.41. 36 Idem, p.42.

82

Ao serem tomados de forma isolada, tanto o materialismo quanto o

espiritualismo podem ser acusados de apresentar uma visão parcial do mundo. Porém, não

se pode negar o fato de que ambos possuem noções valiosas. O que se busca, portanto, é

um caminho médio capaz de valorizar as interpretações justas de ambos sem cair num

extremismo qualquer37. Este consistiu, como já dito, o intuito da fenomenologia existencial.

O que esta nos diz, em última análise, é que se mostra inútil assentar a busca do

conhecimento exclusivamente no espírito ou no mundo material. Edgar Morin38, comenta,

provavelmente sob influência da fenomenologia, que

o conhecimento não tem fundamento, no sentido literal do termo, mas possui várias fontes e nasce da confluência destas, no dinamismo reflexivo de um circuito de onde emergem juntos sujeito e objeto; esse circuito põe em comunicação o espírito e o mundo, inscritos um no outro, numa co-produção dialógica da qual participam cada um dos termos e dos momentos do ciclo.

Chegamos, enfim, à principal contribuição que a fenomenologia pode dar à

discussão sobre a experiência estética. Buscar a justificativa para a constituição de uma

experiência estética somente no objeto estético seria desconsiderar o sujeito real, que

constitui, através da sua existência, o próprio mundo e os objetos com os quais se relaciona.

Reduzir a explicação da experiência estética à sua dimensão subjetiva acaba, por sua vez,

destituindo objeto estético de sua própria materialidade. Da mesma forma como se tentou

demonstrar que o uso da expressão “na consciência” é equivocado, uma vez que a

consciência se encontra imbricada nas coisas e, assim, no mundo, por meio da

intencionalidade, não cabe procurar um estado puramente subjetivo que poderia ser

caracterizado como estético, como se a beleza se constituísse por si mesma. Em outras

palavras, a gênese da beleza não está nem exclusivamente fora do homem, nem

exclusivamente dentro dele. Podemos, desta forma, embasados na fenomenologia 37 Segundo Luijpen: “concebido em sentido subjetivista, o mundo seria entregue à arbitrariedade do sujeito, cessando, portanto, de ser realidade objetiva. Se a realidade do mundo fosse pensada em sentido objetivista, o sujeito seria destruído como ‘afirmação’ existente do mundo, deixando, pois, de ser um sujeito real.” (op. cit., p.65). 38 O método 3: O conhecimento do conhecimento, p.256-257.

83

existencial, entender como fenômeno estético o fruto conjunto de determinada

intencionalidade que um sujeito dirige a um objeto e de uma certa resposta deste objeto à

intencionalidade que lhe foi lançada. O belo é, neste entendimento, constituído na unidade

sujeito-objeto que, diga-se de passagem, só pode ser quebrada com a intenção de se

cometer erros ou com fins didáticos. Sendo assim, a experiência estética será entendida,

doravante neste trabalho, como um fenômeno de natureza relacional e como uma forma de

apreensão do mundo norteada por uma intencionalidade estética.

Corriqueiramente, no entanto, a beleza é acreditada como uma qualidade

objetiva que determinados objetos ou pessoas podem, ou não, possuir. Mas se isso fosse

verdade, deveria ser possível apontar as características que tornam determinado objeto belo.

Apesar de inúmeras tentativas, provavelmente podemos falar com segurança que tal tarefa

nunca será lograda de forma unânime. Como nos explica Duarte Jr.39, “se o belo fosse uma

propriedade que alguns objetos possuem, então todos, contemplando-os, deveriam

igualmente considerá-los belos. Mas isso não ocorre: aquilo que para mim é belo, para

outro pode não ter beleza alguma.” O que faz com que o próprio autor conclua, afastando-

se do senso comum, que “o belo não é uma propriedade dos objetos.”40 Uma outra

costumeira saída reside em se argumentar que o belo reside inteiramente na subjetividade

do indivíduo. Como ilustração desse entendimento podemos lembrar a freqüente afirmação

de que “a beleza está nos olhos de quem vê”. No entanto, se tal fosse o caso, não

precisaríamos ir a teatros, exposições ou concertos para termos uma experiência estética;

bastaria evocar uma beleza que fosse produzida “na nossa cabeça”. Como vimos,

diferentemente do que quer fazer crer o senso comum, a beleza é fruto, sim, de uma certa

intencionalidade, ou seja, de uma maneira com qual o sujeito experimenta sua relação com

determinado objeto. Podemos entender, desta forma, que “a beleza se encontra... ‘entre’ o

homem e o mundo, entre a consciência e o objeto (estético). A beleza habita a relação.”41

Se o belo nasce do encontro entre um objeto – que pode ser estendido à idéia

de um mundo-enquanto-objeto-relacional – e a consciência humana, isto significa que todas

as coisas e, em última instância, o próprio mundo, são potencialmente estéticos, mesmo que 39 Fundamentos filosóficos da educação, p.92. 40 Idem, p.92. 41 Ibidem, p.93.

84

certas características das coisas as tornem mais ou menos propícias à experiência estética.

Vale salientar, inclusive, ser muito mais freqüente que determinado objeto não se preste a

uma percepção estética42. Percebe-se, portanto, que a afirmação do belo a partir do encontro

entre consciência e objeto não significa a adoção de uma visão idealista. Dizer que o

mundo é potencialmente estético tampouco equivale à afirmação de que as coisas com que

nos relacionamos possuem, por si só, uma dimensão transcendental responsável pelo

estabelecimento de uma experiência estética.

Neste sentido, podemos compreender que a própria natureza pode ser

apreendida esteticamente. Comenta Dufrenne43:

ora, se diante da natureza a experiência estética não tem o caráter de pureza e rigor que pode ter diante da obra de arte, se a contemplação não é mais distraída, ao menos é mais embaraçada por elementos estranhos, menos bem fixada do que por um objeto preciso, isso também depende do objeto que a ela se propõe. Esse objeto não é delimitado exatamente como o quadro é delimitado pela sua moldura, a sinfonia pelo silêncio que a prepara, o poema pela página na qual eu leio e pelo tempo de minha leitura. Sua forma não é plena e isso não só porque o seu contorno não é nítido mas porque, em si mesmo, ele não está fixado e imutável: a luz muda, as nuvens passam, cobre-se o horizonte, sem tomar em consideração, à diferença das artes de movimento, o efeito estético...

O mesmo autor alerta ainda para o perigo de se considerar a experiência estética

natural um “parente pobre” da experiência estética proporcionada pela arte. Isto porque,

mesmo não sendo humanamente produzido para ser belo, o belo natural nos permite sermos

“envolvidos e integrados no devir natural do mundo”44, uma vez que “exalta os aspectos

sensíveis do mundo, cuja imprevisibilidade e prodigalidade são então as virtudes

dominantes, sem que se seja tentado a procurar nele o rigor de uma organização

premeditada.”45

42 Segundo Dufrenne: “é... necessário que o objeto se preste a essa estetização pois, embora seja verdade que o objeto só é objeto estético para e por uma consciência, nós nos recusamos a reduzir essa dualidade a um monismo que aqui seria inevitavelmente idealista.” (Estética e filosofia, p.61). 43 Op.cit., p.61-62. 44 Estética e filosofia, p.63. 45 Ibidem, p.62.

85

Embora o potencial estético não seja, portanto, exclusividade da obra de arte, é

comum que a reflexão sobre o objeto estético a privilegie46, o que será o que o leitor

perceberá nas próximas páginas. Seria o caso, portanto, de se tentar propor uma definição

de arte? Não há dúvida que esta é uma tarefa de elevada dificuldade que nos faz, inclusive,

levantar a hipótese de ser este um empreendimento fadado ao insucesso. No entanto,

segundo Frayze-Pereira47,

de qualquer maneira nossas incertezas acabam se acalmando quando, após ter buscado saber o que é arte na Teoria da Arte, percebemos que o campo semântico do termo é, ele próprio, incerto. E que os teóricos apontam como um dos aspectos da própria Arte as dificuldades que apresenta ao enquadramento numa definição fixa, positiva. Isto é, os teóricos encontram dificuldades para delimitar as fronteiras da própria Arte, pois, de um lado, a Arte não teve sempre, nem em toda a parte, o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e a mesma função. O que se verifica ainda hoje... De outro lado, independentemente de qualquer pressuposto sociocultural, desconfia-se hoje muito da palavra arte. O campo recoberto pelo conceito é extenso: entre a obra-prima e o esboço, o desenho do mestre e a garatuja infantil, o som e o ruído, o canto e o grito, o objeto e o acontecimento, é difícil traçar uma fronteira e até poderíamos nos perguntar se vale a pena traçar essa fronteira.

O mesmo autor prossegue citando Dufrenne, quando este último defende que

“não são apenas as teorias da arte que hesitam em atribuir-lhe uma essência, mas a própria

prática dos artistas é que desmente a todo momento qualquer definição.”48 Não é raro que a

tentativa de definição da arte acabe gerando erros e más-interpretações da atividade

artística. Deixemos que novamente Frayze-Pereira49 nos explique ser

um erro muito freqüente... considerar a Arte ou admitir como conceito geral e definidor da Arte um programa particular de arte, uma poética. Segundo o grande esteta italiano Luigi Pareyson, esse engano é freqüente e consiste em tomar a parte pelo todo, por exemplo, quando se diz que a Arte é expressão do eu profundo do artista, sem se dar conta que essa é

46 Segundo Dufrenne: “A reflexão sobre o objeto estético sempre privilegia a arte. É sobre a arte que ela melhor se pode exercer porque é a arte que melhor exercita o gosto e provoca a percepção estética mais pura.” (op. cit.p.60) 47 Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, p.38. 48 Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.39. 49 Op. cit., p.39.

86

uma idéia que surge com o Romantismo no começo do século XIX, e não antes.

Sendo assim, a natureza do objeto estético dificilmente pode ser compreendida

a partir do que é costumeiramente entendido como sendo uma obra de arte. Como afirma

Jimenez50, citando uma idéia de Nelson Goodman,

o importante não é que uma obra seja julgada bela, agradável ou bem-executada conforme a idéia que tradicionalmente temos de arte; o essencial é que ela funcione esteticamente. (...)

A questão primordial não é mais “O que é a arte?” mas sim: “Quando há arte?” E a resposta do filósofo renova ao mesmo tempo o programa da estética analítica: há arte quando uma coisa funciona simbolicamente como obra de arte.

Isso significa que um objeto de arte não é em si mesmo uma obra de arte; torna-se arte se assim decido vê-lo ou se o contexto me leva a isso. Um quadro de Rembrandt usado para tapar um vidro quebrado cessa de funcionar como uma obra de arte.

Será que isso quer

dizer que não há ser do fenômeno e que o quadro cessa de existir quando a porta do museu se fecha após o último visitante? De forma alguma: o seu esse não é um percipi, não mais que para um objeto qualquer; é necessário dizer apenas que ele então cessa de existir como objeto estético e só existe como coisa, como obra se quisermos, isto é, como objeto estético simplesmente possível.51

Desta forma, Dufrenne52 conclui que

esta identificação do fenômeno com o objeto estético talvez permita aclarar o liame que a intencionalidade forja entre o objeto e o sujeito. Realmente, é preciso se interrogar sobre o estatuto do objeto estético. Defini-lo como algo do sensível, será dizer que ele é produzido pela consciência que o apreende? Sim e não: o sensível é o ato comum daquele que sente e do que é sentido. Isto significa, em primeiro lugar, que o objeto estético só se realiza na percepção, uma percepção que esteja atenta a lhe fazer justiça: diante do beócio que só lhe concede um olhar indiferente, a obra de arte ainda não existe como objeto estético. O

50 Op. cit., p.369. 51 Mikel Dufrenne, op. cit., p.82. 52 Idem, p.82.

87

espectador não é somente a testemunha que consagra a obra, ele é, à sua maneira, o executante que a realiza; o objeto estético tem necessidade do espectador para aparecer.

A obra só se constitui inteiramente no que tange ao seu sentido, portanto,

através do espectador. Daí concluir-se que a qualidade do sentimento que um espectador

experimenta frente a uma obra de arte é pessoal e única.

Existe, no entanto, a possibilidade de o espectador não se permitir vivenciar

uma experiência estética. Um motivo muito comum é o não-aprendizado, por parte do

espectador, do código expressivo da obra; a falta de familiaridade com o objeto artístico

garantiria, neste caso, o malogro no estabelecimento de uma relação estética. Existe

também, os “casos de neurose profunda, de pré-psicose ou mesmo de psicose, em que os

planos de realidade se confundem, e o indivíduo acaba por mergulhar inteiramente no

universo da obra.”53 Isto porque, a experiência pode, potencialmente, trazer à tona

conteúdos inconscientes que exigem, por sua vez, um “eu” estruturado para mediar este

encontro. Como nos explica Duarte Jr.54, “naqueles casos patológicos, porém, isto não

acontece, e o dique do ‘eu’ se rompe, fazendo confundir a turbulência do inconsciente com

a realidade da obra.” No entanto, mais ligado aos interesses do presente trabalho é a

reflexão sobre um diferente empecilho para o estabelecimento de uma relação estética: a

incapacidade, por parte do espectador, de substituir a percepção prática pela estética.

Anteriormente, definimos a experiência estética por si mesma, a partir dos pressupostos da

fenomenologia existencial. Faz-se agora necessário discutir a experiência estética em

oposição à experiência prática.

O que seria, enfim, a experiência prática? Como aponta Duarte Jr.55, “na vida

diária interroga-se o aparecer dos objetos segundo propósitos práticos. A intelecção orienta

nossa percepção em torno das funções dos objetos e de suas relações.” A percepção prática

busca sempre desvelar a verdade sobre determinado objeto ou determinada situação,

resultando num predomínio quase que total do funcionamento da intelecção sobre o

sentimento e a imaginação. Já na percepção estética, observamos a suspensão dos

53 João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.88. 54 Idem, p.88. 55 Fundamentos estéticos da educação, p.91.

88

propósitos práticos e a percepção cessa de ser predominantemente utilitária. Resulta, pois,

um maior equilíbrio entre o pensar e o sentir, entre o impulso inteligível e o impulso

sensível. Enquanto a percepção prática busca a verdade sobre o objeto, a percepção estética

busca a verdade do objeto, que reside nele mesmo e não pode ser desvinculada deste

objeto56.

Não é raro encontrarmos, a partir de Kant, autores que definem a experiência

estética como sendo uma experiência desinteressada, já que ela não é orientada por

interesses práticos. Defensor desta idéia, Dufrenne57 afirma que “toda percepção estética,

na medida em que é desinteressada, realiza a apoteose do sensível que é a própria

substância do objeto estético.” Mais adiante na mesma obra, este autor aponta ainda para o

fato de que

o primeiro sentido do objeto estético, e que é comum ao objeto musical e ao objeto literário ou pictórico, não é um sentido que apela para o discurso e que exercita a inteligência como o objeto ideal que é o sentido de um algoritmo lógico. É um sentido totalmente imanente ao sensível que, portanto, deve ser experimentado no nível da sensibilidade e que, contudo, cumpre bem a função do sentido, a saber: unificar e esclarecer.58

Freqüentemente é traçado entre as idéias de percepção prática e de percepção

estética do mundo um paralelo com a descrição que o filósofo Martin Buber faz das duas

atitudes que um homem pode manter perante o mundo: a atitude EU-ISSO e a atitude EU-

TU. Aproximando-se da fenomenologia, “Buber afirmava que o mundo humano não se

constitui nem dos objetos que estão ao nosso redor e nem da consciência pura, fechada em

si. É a maneira de ser em relação ao mundo, o hífen que liga o Eu ao seu mundo, que é a

essência de nossa realidade.”59 Deve-se, entretanto, salientar que, para Buber, os termos

ISSO e TU não são necessariamente indicativos de objetos ou pessoas, mas são, sim,

56 Segundo Dufrenne: “enquanto a percepção ordinária – sempre tentada pela intelecção desde que tem acesso à representação – procura uma verdade sobre o objeto, que eventualmente dá um arritmo à praxis, e a procura em torno do objeto, nas relações que o unem aos outros objetos; a percepção estética procura a verdade do objeto, assim como ela é dada imediatamente no sensível.” (op. cit., p.80). 57 Op. cit., p.62. 58 Idem, p.92. 59 Rubem Alves, op. cit., p.38.

89

definidos a partir da atitude que determinado homem estabelece para com um determinado

objeto relacional.

O relacionamento EU-ISSO subentende nossa atitude cotidiana (prática) perante o mundo. Aqui a consciência toma-o como objeto de seu saber e de sua ação, interrogando-o a respeito de causas e efeitos, utilidades e usos, subordinações e leis. Em EU-ISSO a consciência sabe-se distinta, separada das coisas: o sujeito conhece seus “limites” e subordina os objetos a si. Nesta esfera o homem age, construindo e alterando o mundo; nesta esfera se dão a ciência, a filosofia e todo o saber e agir humanos. Já na relação EU-TU as coisas não se subordinam à consciência, mas mantêm com ela uma relação “de igual”, constituindo, homem e mundo, os dois pólos de uma totalidade. Aqui não se pode falar de um sujeito que investiga e de um objeto que é conhecido, pois entre ambos (EU e TU) não há relações de subordinação. Em EU-TU há a presença total do EU frente ao mundo e vice-versa: todas as formas possíveis de a consciência apreender o mundo estão presentes no momento dessa relação. Nesta esfera ocorre, então, a experiência estética.60

A experiência estética parece permitir uma percepção do mundo peculiar,

revelando ser, assim, uma forma específica de abertura para o mundo. Numa feliz

comparação, Frayze-Pereira61 aproxima a experiência estética da experiência psicanalítica

ao afirmar que ambas são “uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz

dizer.” Neste sentido, podemos entender a experiência estética como um êxtase no qual são

suspensas as vivências corriqueiras e no qual o homem encontra a possibilidade de

vivenciar os impulsos eróticos reprimidos no dia-a-dia.62 Este êxtase estético,

preferivelmente de caráter provisório, é uma suspensão da vida cotidiana e,

conseqüentemente, da experiência ordinária, na qual, segundo Ernst Cassirer63,

associamos os fenômenos segundo a categoria de causalidade ou finalidade. Conforme estivermos interessados nas razões teóricas ou nos efeitos práticos das coisas, pensamos nelas como causas ou meios. Desse

60 João Francisco Duarte Jr. Fundamentos estéticos da educação, p.90. 61 João Augusto Frayze-Pereira, Arte e dor, p.24. 62 Seria esperado, portanto, numa situação sadia, uma alternância entre intencionalidade estética e intencionalidade prática, resultando um princípio de complementaridade e equilíbrio. No entanto, a atual sociedade, amplamente moldada por fundamentos práticos, parece ter garantido a manutenção de um grande número de indivíduos numa intencionalidade prática. 63 Op. cit., p.277-278.

90

modo, normalmente perdemos de vista a sua aparência imediata, até não podermos mais vê-las face a face. A arte, por outro lado, ensina-nos a visualizar as coisas, e não apenas conceitualizá-las ou utilizá-las.

Sobre as particularidades das duas formas de intencionalidade aqui em

discussão, Duarte Jr.64 defende que “em cada uma delas a consciência, colocando-se de

maneira peculiar, capta os objetos de maneira também peculiar. Em cada uma delas

diferentes aspectos do mundo são relevados e revelados.” E, em última análise, o que uma

experiência estética

provoca em nós é uma formulação de nossas concepções de sentimento e nossas concepções da realidade visual, factual e audível, em conjunto. Ela nos dá formas de imaginação e formas de sentimento, inseparavelmente; quer dizer, clarifica e organiza a própria intuição. É por isso que ela tem a força de uma revelação e inspira um sentimento de profunda satisfação intelectual, embora não suscite qualquer trabalho intelectual consciente (raciocínio). A intuição estética apreende a forma maior e, portanto, a significação principal, imediatamente; não há necessidade de trabalhar através de idéias menores e implicações cerradas em primeiro lugar sem uma visão do todo, como no raciocínio discursivo, onde a intuição total de relacionamento vem na conclusão, como um prêmio. Na arte, é o impacto do todo, a revelação imediata da significação vital, que age como chamariz psicológico de uma longa contemplação.65

Vimos, portanto, que, na experiência estética, diferentes aspectos da realidade

são revelados e apresentam-se para o nosso conhecer. No entanto, nossa visão tipicamente

moderna promoveu um entendimento que considerava este tipo peculiar de conhecimento

“um tipo de conhecimento sensível, confuso e inferior ao racional, claro e distinto, isto é,

ao conhecimento voltado para a verdade.”66 Assim, desde o surgimento da Estética como

disciplina no século XVIII com Alexander Gottlieb Baumgarten, o conhecimento que é

fruto da experiência estética é, de praxe, colocado num plano inferior ao conhecimento

lógico. Como nos explica Marc Jimenez67, “o que é que, desde Baumgarten, impede a

estética de ser posta rigorosamente no mesmo plano do conhecimento lógico? A

64 Fundamentos estéticos da educação, p.90. 65 Susanne Langer, Sentimento e forma, p.412-413. 66 Frayze-Pereira, Op. cit., p.31 67 Op. cit., p.368.

91

sensibilidade e as emoções.” No entanto, se considerarmos tanto a sensibilidade quanto as

emoções como uma forma de conhecimento ou uma forma específica de significar a

existência, distinta daquela inerente à percepção prática, a arte surge, ao lado do mito e da

ciência, como um importante sistema simbólico que visa, ao mesmo tempo, interpretar e

construir o mundo. Para que seja possível uma melhor compreensão da arte como uma

forma de conhecimento faz-se necessário, portanto, discutir a própria questão mais ampla

do símbolo como mediador entre o homem e o mundo. Como vimos anteriormente, um

ponto fundamental tanto para a própria fenomenologia quanto para o presente trabalho, é a

rejeição da idéia de que o mundo nos é dado de forma inalterada pela percepção sensorial.

O tema que deve ser discutido não é mais o espelhamento da coisa-em-si na consciência,

mas sim a formação do sentido da coisa-em-si. E este sentido é fruto de um encontro entre

o sujeito e o objeto e não pode abordado sem a consideração dos sistemas simbólicos, uma

vez que o homem não recebe dados brutos do meio ambiente, mas marca, através de

processos mentais pessoais, o caráter da sua relação com o mundo; a experiência humana é

sempre marcada pela atividade simbólica.68 Não se pode falar, portanto, em uma percepção

puramente sensorial do mundo, mas sim de uma percepção que depende, além da estrutura

física, em larga escala da estrutura simbólica que um determinado homem tem à sua

disposição.

Em seu livro A estrutura do comportamento, publicado em 1942, Merleau-

Ponty aponta a existência de três ordens: a ordem humana, a ordem física e a ordem vital. A

ordem humana é definida, pelo filósofo, justamente como sendo uma estrutura simbólica. O

equilíbrio entre estas ordens

não se verifica como conservação de uma ordem dada (ordem física), nem como adaptação através das virtualidades do organismo às condições atuais (ordem vital), mas em virtude da possibilidade de ultrapassar a imediatez das situações e criar uma situação nova tendo em vista algo que está ausente. O símbolo justamente é o que exprime esse tipo de estruturação onde a ação se orienta para o virtual, orientação que se presentifica na percepção, na linguagem e no trabalho. A “estrutura

68 Segundo Susanne Langer, “foi Cassirer quem, sobretudo, reconheceu o papel que representa a simbolização, ou a expressão simbólica, na formulação de coisas e eventos e na ordenação natural de nosso ambiente como um ‘mundo’.” (Ensaios filosóficos, p. 63-64).

92

simbólica” define-se, então, por um movimento de transcendência que confere à existência humana o poder de ultrapassar o dado, encontrando para ele um sentido novo através de uma ação orientada em função do possível.69

Vale ainda salientar que a definição precisa de símbolo é, sem dúvida, um

empreendimento de grande dificuldade, uma vez que o símbolo é, em maior ou menor grau,

um processo de abstração e que existem diferentes maneiras de se fazer abstrações.

Conseqüentemente, a palavra “símbolo” possui acepções bem distintas entre si.

Algumas [pessoas] reservam-na para signos místicos, como os símbolos rosa-cruzes; outras designam por meio dela imagens significantes, como os ‘vastos símbolos nebulosos de sublime romance’, de Keats; alguns a usam de maneira totalmente oposta e falam de ‘meros símbolos’, significando gestos vazios, signos que perderam seus significados; e outros, sobretudo os lógicos, usam o termo para denotar signos matemáticos, marcas que constituem um código, uma linguagem breve e concisa.70

O sentido de símbolo adotado por este trabalho está, em larga escala, embasado

na definição que Langer apressa-se em dar logo após a passagem acima. Em suas próprias

palavras,

quando digo que a função distintiva do cérebro humano é o uso de símbolos, refiro-me a qualquer e a todos dessas espécies. Eles são completamente diferentes dos signos que os animais usam. Os animais também interpretam signos, mas apenas como indicadores de coisas e de eventos reais, sugestões de ação ou expectativa, ameaças e promessas, pontos de referência e sinais de identificação no mundo. Os seres humanos também usam tais signos, mas usam sobretudo símbolos – especialmente palavras – para pensar e falar acerca de coisas que não estão presentes nem são esperadas. As palavras transmitem idéias, que podem ou não ter correlativos na realidade. Esse poder de pensar acerca de coisas expressa-se através da linguagem, da imaginação e da especulação – principais produtos da mentalidade humana que os animais não partilham.71

69 João Augusto Frayze-Pereira, op. cit., p.46-47. 70 Susanne Langer, Ensaios filosóficos, p.104. 71 Ibidem, p.104-105.

93

Na definição de Duarte Jr.72, “um símbolo constitui um determinado objeto ou

sinal que representa algo; que permite o conhecimento de coisas e eventos não presentes

ou, mesmo, inexistentes concretamente.” Desta forma, neste grande campo que surge ao

considerarmos as relações entre os humanos e o mundo, a atividade simbólica se mostra um

tema de fundamental importância, uma vez que, caracterizando a capacidade inerente ao ser

humano de transcender a experiência dada e imediata, acaba por possibilitar a busca, por

parte do homem, por um sentido para sua existência. Vemos, portanto, que, através dos

símbolos, o homem supera sua esfera puramente animal. Sendo assim, podemos também

facilmente entender que a estrutura simbólica transforma radicalmente a forma como o ser

humano se relaciona com “sua realidade”:

comparado aos outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão de realidade. Existe uma diferença inconfundível entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, uma resposta direta e imediata é dada a um estímulo externo; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida por um lento e complicado processo de pensamento.73

Desta forma, na conclusão de Cassirer74,

o homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas lingüísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. Sua situação não é a mesma tanta na esfera teórica como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e desilusões, em suas fantasias e sonhos. ‘O que perturba e assusta o homem’, disse Epíteto, ‘não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas.’

72 Fundamentos estéticos da educação, p.25-26. 73 Ernst Cassirer, op. cit., p.48. 74 Idem, p.49.

94

O mundo não surge, portanto, de forma neutra, mas sim, carregado de

significações; atribuímos, ao mundo, sentidos e valores pessoais. Como nos explica Le

Breton75,

a percepção é uma apropriação simbólica do mundo, uma decifração que situa o homem numa posição de compreensão a seu respeito. O sentido instaura-se na relação do homem com as coisas e no debate travado com os outros para sua definição, na complacência ou não do mundo em se perfilar nessas categorias. O mundo sensível é a tradução em termos sociais, culturais e pessoais de uma realidade que só é acessível por esse desvio de uma percepção sensorial e afetiva de homem inscrito em uma trama social. Ele se oferece como inesgotável virtualidade de significações. Habitam o olhar do homem intenções, expectativas, emoções, sensibilidade. A inteligência humana está em situação, não está separada de uma existência singular e necessariamente carnal.

Cassirer propõe então que se defina o homem não como animal racional mas

sim como um animal simbólico. Conseqüentemente o símbolo seria o caminho para a

compreensão da cultura humana. Nas palavras de Cassirer76,

os grandes pensadores que definiram o homem como animal rationale não eram empiristas, nem pretenderam jamais dar uma explicação empírica da natureza humana. Com essa definição, estavam antes expressando um imperativo moral fundamental. A razão é um termo muito inadequado com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum. Ao fazê-lo, podemos designar sua diferença específica, e entender o novo caminho aberto para o homem – o caminho para a civilização.

Como vimos, o ato de conhecer está, necessariamente, relacionado com o

processo simbólico, uma vez que o conhecimento é, em uma primeira instância, uma

tradução da experiência em símbolos e signos. Freqüentemente vemos implícito no ato de

conhecer o processo de construção de sistemas cognitivos decorrentes da articulação de

informações que também aparecem na forma de símbolos ou de signos. Vemos, desta

75 Op. cit., p.191. 76 Idem, p.49-50.

95

forma, que “o conhecimento não saberia refletir diretamente o real, só podendo traduzi-lo e

reconstruí-lo em outra realidade.”77

A arte, para muitos pensadores como, por exemplo, Susanne Langer e Ernst

Cassirer é considerada como uma forma simbólica não-discursiva. Curiosamente, com a

utilização da idéia de símbolo podemos, inclusive, apresentar conceituações até mesmo

satisfatórias de arte; a dinamicidade contida no termo “símbolo”, decorrente de sua relação

com a dimensão sócio-cultural que, por sua vez, se encontra sempre em movimento,

permite que a definição baseada na idéia de símbolo seja ampla o suficiente para tentar

lidar com a prática dos artistas, que, como apontou Dufrenne, parece desmentir a todo

momento qualquer definição de arte. Uma das conceituações de arte a partir da idéia de

símbolo nos é dada por Langer78: a “arte é a criação de formas simbólicas do sentimento

humano.” Indo também ao encontro da pensadora americana podemos citar Duarte Jr.79,

para quem “a obra de arte constitui uma objetivação dos sentimentos, isto é, a sua

concretização em um símbolo.” Esta concretização dos sentimentos acaba por permitir que

possamos, frente a uma obra de arte, “contemplar os sentimentos engastados em suas

formas, apreendendo-os enquanto expressividade”80 No entanto, como nos aponta Langer81,

embora seja também uma simbolização,

uma obra de arte difere de um símbolo genuíno – isto é, de um símbolo no sentido pleno e usual – pelo fato de não indicar nenhuma coisa além de si própria.(...) na verdade, o sentimento que ela expressa parece ser dado diretamente com ela – como o sentido de uma metáfora verdadeira ou como o valor de um mito religioso – e não é separável de sua expressão. Falamos de sentimento de ou do sentimento em uma obra de arte, e não do sentimento que ela significa. E o dizemos bem; uma obra de arte apresenta algo assim como uma visão direta da vitalidade, emoção, realidade subjetiva.

77 Edgar Morin, O método3: o conhecimento do conhecimento, p.65. 78 Sentimento e forma, p.42. 79 Fundamentos estéticos da educação, p.89. 80 Ibidem, p.89-90. 81 Ensaios filosóficos, p.87.

96

A arte difere, portanto, da linguagem, o sistema simbólico mais amplamente

usado por nós; a linguagem é “fundamentalmente conceitual, linear e discursiva. Conceitual

porque organiza nossa percepção do mundo fragmentando-o e classificando as coisas em

classes gerais: os conceitos.”82 Os símbolos lingüísticos são, de certa maneira, uma

compartimentalização da própria existência humana. A este respeito, vale também citar

Sabato, que nos explica que “o homem interrompe o fluxo fenomênico e quebra esse

estranho mundo cotidiano em pedaços, que depois classifica, rotula e coloca em estantes;

de modo que esse Universo fluente é curiosamente convertido em uma espécie de Grande

Despensa.”83.

Embora a linguagem conceitual classifique o fluxo contínuo da vida, inclusive

os sentimentos84 que dele se originam, ela é extremamente impotente para descrevê-los.

Isto porque, na linguagem conceitual, esta classificação se realiza de forma geral e

inespecífica. Como nos explica Duarte Jr.85, “se na palavra ‘mesa’ estão contidas todas as

mesas porventura existentes, sob o conceito ‘amor’ estão abrigados todos os tipos

infindáveis e particulares deste sentimento.” No entanto, o sentimento-em-si, que tem sua

gênese no próprio fluxo existencial do indivíduo, é rebelde a classificações gerais e, por

isso, não pode ser transposto em palavras. Neste sentido, podemos também entender o

filósofo Alfred Schutz86 quando este afirma que “aquilo que é irrecuperável – em princípio

sempre inefável – só pode ser vivido, nunca ‘pensado’: é, em princípio, impossível de ser

verbalizado.” Situando-se num território anterior à simbolização conceitual, a arte procura,

por assim dizer, estabelecer uma relação mais direta entre espectador e obra. Uma vez que a

apreensão da obra de arte é primordialmente estabelecida através do sensível, a arte permite

que o espectador seja estimulado com a possibilidade de sentimentos diferentes daqueles

usualmente vividos por ele. Embora esta possibilidade seja compartilhada por todos que,

82 João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.26. 83 Nós e o Universo, p.134. 84 “Sentimento é sempre a primeira impressão que temos das coisas, é uma apreensão direta do mundo e de nós mesmos ainda não mediatizada pelos símbolos, pela linguagem. Sentimentos são evidências estruturadas da realidade, isto é, conscientizações da interação entre organismo e ambiente. São apreensões diretas da situação na qual nos encontramos, anteriores às significações lingüísticas e simbólicas, que fracionam tal situação em conceitos e os relacionam entre si.” (João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.22). 85 O que é beleza, p.27. 86 Apud João Francisco Duarte Jr, O que é beleza, p.29.

97

eventualmente, venham a se relacionar com uma determinada obra, a qualidade deste

sentimento será sempre único, pois nasce da própria existência do indivíduo. Desta forma,

Podemos entender que a arte “não remete a um absoluto, mas aos devires humanos.” 87

Nisso se distingue a arte das outras formas simbólicas: ela não tenta

simplesmente a reprodução de uma suposta realidade pronta. A arte, portanto,

não é uma imitação, mas uma descoberta da realidade. Contudo, não descobrimos a natureza através da arte no mesmo sentido que o cientista usa o termo “natureza”. A linguagem e a ciência são os dois processos principais pelos quais avaliamos e determinamos nossos conceitos do mundo exterior. Precisamos classificar nossas percepções sensoriais e agrupá-las em noções e regras gerais para poder-mos dar-lhes um sentido objetivo. Tal classificação resulta de um esforço persistente no sentido da simplificação. A obra de arte, de um modo parecido, implica esse ato de condensação e concentração. (...)

A linguagem e a ciência são uma abreviação da realidade; a arte é uma intensificação dessa realidade. A linguagem e a ciência dependem de um único e mesmo processo de abstração; a arte pode ser descrita como um processo contínuo de concreção.88

Como vimos, é possível defender que a experiência estética permite um

conhecimento do mundo. No entanto, não é aqui que ela realiza o que há de mais peculiar e

específico nas suas possibilidades. A arte atua “levando-nos não apenas a descobrir formas

até então inusitadas de sentir e perceber o mundo, como também desenvolvendo e acurando

os nossos sentimentos e percepções acerca da realidade vivida.”89

Vivemos nossas vidas norteados não apenas pela nossa dimensão física, mas

também pela nossa dimensão simbólica, resultando num inevitável e indissolúvel diálogo

entre sensível e inteligível. É sobre o solo desta complexa trama que a arte parece permitir

uma melhor compreensão e, conseqüentemente, uma maior organização de nossas ações,

uma vez que pode, com mais propriedade do que qualquer outro discurso humano, colocar-

nos em contato com nossos próprios sentimentos. Se, de fato, é na experiência estética que

surge a possibilidade maior para que o homem tente a consciência e o controle da

87 Francastel apud Frayze-Pereira, op. cit., p.52. 88 Ernst Cassirer, op. cit., p.235. 89 João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.23.

98

intrincada trama existencial a que ele é constantemente exposto pelo seu devir, parece ser

também na experiência estética que nasce a razão como possibilidade.

99

IV – A RAZÃO (DA) ESTÉTICA

A constituição da alma moderna... caracteriza-se

por essa estrutura antinômica e, portanto, dilacerada, entre uma identidade lógica – o Eu racional –, que é elevada a princípio de dominação, e a realidade empírica do sujeito, que se comporta frente à sua identidade intelectual como realidade submissa ou como escravo. Mas tal dualidade, ou mesmo tal dilaceramento interno da alma moderna... é questionada precisamente no marco da experiência estética, onde nenhuma ordem social objetiva oferece um apoio para esta estrutura antinômica.

Eduardo Subirats

Como se vê, trata-se em boa medida, de retomar a idéia dos alemães, que viam na arte a suprema síntese do espírito – mas agora apoiada numa concepção mais complexa, que, se não fosse pela grandiloqüência da expressão, teria de denominar-se ‘neo-romantismo fenomenológico’.

Ernesto Sabato

Em suma, o ponto de concordância estaria em uma

outra razão, diferente da razão matemática e lógica, uma razão adaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razão estética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediário entre a razão e a imaginação, entre o entendimento e a sensibilidade.

Marc Jimenez

Mas a razão, que é capaz de despertar todas as

origens adormecidas, não produz nada de si mesma. Penetrando no coração de tudo o que existe, pode fazê-lo pulsar, fazer que se mova e se revele. Mas é preciso que atinja o coração das coisas, para ser eficaz.

Karl Jaspers

É melhor não falar de irracionalidade, mas do conhecimento racional da “razão alargada”.

Luijpen

100

A tarefa de conciliação entre os capítulos precedentes é o maior desafio deste

quarto e último capítulo que acaba, desta forma, praticamente por se tornar um prelúdio à

conclusão que se seguirá. Trata-se, no entanto, de retomar rapidamente o que foi discutido

anteriormente para então apresentar as principais teses deste estudo. É quase desnecessário

apontar que retorna à cena a questão da acepção moderna do termo razão, discutida, com

maior atenção, no primeiro capítulo. Diferentemente do que se acreditou nos últimos

séculos, não podemos opor a razão ao sensível e também ao inconsciente. Se assim fosse

não estaríamos falando de razão no seu sentido pleno, mas numa forma específica e parcial

de seu funcionamento, norteada exclusivamente pela intelecção e da qual resulta nada mais

do que o entendimento. Para ser capaz de lidar com a própria existência do homem

precisamos de uma concepção de razão que procure capturar, embora seja incapaz de

esgotar, todos os aspectos da existência humana. Assim, a razão se fortalece na pluralidade

de modos em que a intencionalidade humana pode ser exercida. Neste sentido, a

experiência estética, que parece possibilitar um livre acordo entre o inteligível e o sensível,

constitui-se num importante passo para a constituição da razão. Salientamos, aqui, a

palavra constituição; a razão não é um ponto de saída, mas um ponto de chegada. Eis o que

foi freqüentemente ignorado nos últimos séculos, quando acreditou-se que a razão

intelectiva poderia ser tanto o fundamento sobre o qual poderia ser assentada a constituição

da cultura quanto o caminho para a compreensão do homem. Ignorou-se, desta forma, que a

razão só pode ser fruto, e nunca a semente, da existência concreta do homem. Tal fato

garante que a razão não exista senão como uma meta a ser perseguida e nunca

definitivamente alcançada, uma vez que tem sua origem no próprio tecido entremeado entre

o refletido (pensado) e o irrefletido (vivido) que constitui a existência do homem. Neste

sentido, Karl Jaspers1 pontua que “o homem não se encontra a si mesmo como um ser

racional, mas, por assim dizer, se converte em racional, a partir da existência concreta que

lhe é dada. Atinge o caminho da razão pela sua própria liberdade, e não automaticamente.”

Podemos acrescentar que, assim como a liberdade, a razão não é um dado a priori do

homem e deve não só ser conquistada, mas reconquistada constantemente. Uma das

premissas básicas deste capítulo é, portanto, a crença de que o diálogo entre o pensado e o

1 Razão e anti-razão em nosso tempo, p.58.

101

vivido é a própria condição da racionalidade. Resulta daí a necessidade de se defender um

novo conhecimento, mais profundo e mais complexo que o simples entendimento das

causalidades e finalidades possibilitado pela intelecção. É necessário defender um

conhecimento que aceite sua origem sensível e reconheça, desta forma, seu fundamento na

dimensão irrefletida da existência2. Igualmente necessária é a defesa de um conhecimento

sensível em-si, resgatando o próprio corpo como portador de um conhecimento pré-

intelectivo e digno de ser valorizado.

Ao pequeno sobrevôo que fizemos, no parágrafo precedente, dos principais

tópicos a serem discutidos neste quarto capítulo, falta ainda acrescentar o fio condutor de

todo o presente estudo: a tese de que a arte pode ter um papel fundamental na superação do

que freqüentemente é entendido como uma crise histórica da modernidade e o decorrente

desnorteamento do homem moderno, uma vez que parece promover um livre acordo da

sensibilidade e do intelecto, essencial para que o homem adquira uma maior consciência

sobre sua própria vida. Em outras palavras: a tese de que a arte parece ser fundamental

para a própria constituição da razão, ou, mais especificamente, dessa razão mais ampla

que se está aqui defendendo.

Uma vez expostos os principais temas deste quarto capítulo resta-nos ainda

afirmar que o caminho expositivo aqui é um entre muitos: partiremos da própria tentativa

que o homem faz para significar e compreender o mundo em que vive. Vimos, durante o

desenrolar da história do homem, que qualquer que seja a cultura, ela tende a produzir duas

esferas de significação e a compreensão do mundo;

a primeira tende a precisar, denotar, definir, apóia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa. A segunda utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora, ou seja, esse halo de significações que circunda cada palavra, cada enunciado e que ensaia traduzir a verdade da subjetividade. Essas duas linguagens podem ser justapostas ou misturadas, podem ser separadas, opostas, e a cada uma delas correspondem dois estados. O primeiro, também chamado de prosaico, no qual nos esforçamos por perceber, raciocinar, e que é o estado que

2 Como nos aponta Duarte Jr. , “o conhecimento do mundo advém... de um processo onde o sentir e o simbolizar se articulam e completam.” (Fundamentos estéticos da educação, p.16).

102

cobre uma grande parte de nossa vida cotidiana. O segundo estado, que se pode justamente chamar de ‘estado segundo’, é o estado poético.3

Fica claro que Morin descreve, nesta passagem, duas linguagens4 distintas: a

linguagem prosaica e a linguagem poética. Cabe chamar a atenção para o termo “metáfora”,

usado para apontar um dos processos básicos do estado poético. Segundo o mesmo autor,

numa outra obra sua, “a metáfora não poderia ser condenada como metáfora, pois a idéia de

metáfora comporta muito claramente valor de evocação, de sugestão, de ilustração, não de

explicação.”5 Mas o que pode a metáfora ? O que pode a linguagem poética? Morin6 ensaia

uma resposta quando afirma que

a metáfora é com freqüência um modo afetivo e concreto de expressão e de compreensão. Poetiza o cotidiano transportando para a trivialidade das coisas as imagem que surpreende, faz sorrir, comove ou mesmo maravilha. Faz navegar o espírito através das substâncias, atravessando as barreiras que encerram cada setor da realidade; ultrapassa as fronteiras entre o real e o imaginário. De qualquer maneira, sobretudo hoje, a higiene dos nossos espíritos e sociedades requer não somente o direito de cidadania à metáfora na linguagem cotidiana, mas também o pleno reconhecimento da esfera poética, onde as analogias vivem em liberdade.

Guardadas as devidas diferenças entre Morin e Mikel Dufrenne, podemos

encontrar, no segundo, um complemento para as palavras do primeiro. Diz Dufrenne7: “a

poesia diz a vida porque a vida é poética: ela é o espaço no qual a consciência descobre e

frui o mundo sem se colocar ainda como consciência, no qual se consome um monismo

impensável que a irrecusável prosa do dualismo virá logo destruir.”

Entre outras coisas, este estudo demonstrou que, no curso da modernidade, a

esfera poética foi, cada vez mais, relegada a uma posição marginalizada, resultando uma

crescente “prosaicização” do mundo moderno. Conseqüentemente, embora a vida seja,

3 Amor poesia sabedoria, p.35-36. 4 Segundo Octavio Paz: “As diferenças entre o idioma falado ou escrito e os outros – plásticos ou musicais – são muito profundas; não tanto, porém, que nos façam esquecer que todos são, essencialmente, linguagem: sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo.” (O arco e a lira, p.23). 5 O método 3: o conhecimento do conhecimento, p.174. 6 Idem, p.174. 7 Op. cit., p.210.

103

necessariamente, vivida de forma poética e de forma prosaica – “poesia-prosa constituem...

o tecido de nossa vida.”8 – há, ainda nos dias atuais, um desequilíbrio entre a dimensão

prosaica e a dimensão poética, com a primeira se sobrepondo à segunda. Ao comentar este

ponto, Morin9 defende, inclusive, que estamos atualmente expostos

a uma grande expansão da hiperprosa, que se articula à expansão de um modo de vida monetarizado, cronometrado, parcelarizado, compartimentado, atomizado e de um modo de pensamento no qual os especialistas consideraram-se competentes para todos os problemas, igualmente ligados à expansão econômica-tecnoburocrática.

Não só vimos ocorrer durante a modernidade uma priorização do estado

prosaico, mas também sua identificação com a própria racionalidade. Como resultado

vimos nascer a crença numa razão fria, que prega o ceticismo diante de toda a dimensão

poética do homem. Este entendimento de razão tende não somente a contrapor intelecção e

sensibilidade, mas também a considerar a segunda como ilusão, erro de interpretação ou até

loucura, transformando, desta forma, a complementaridade entre prosa e poesia em

oposição. Ao homem moderno não restou alternativa se não ficar preso ao seguinte

questionamento: “devo seguir a razão, ceder às paixões e impulsos sensuais, ou ser fiel ao

meu padrão ético?”.10 Como desenvolve May11, o homem acaba por ficar preso num

emaranhado de soluções contraditórias:

a ‘razão’ funciona quando se estuda, a ‘emoção’ quando se visita uma pessoa amiga, a ‘força de vontade’ quando se prepara um exame, os deveres religiosos nos enterros e no domingo de páscoa. Essa compartimentalização de valores e metas conduz rapidamente à desintegração da personalidade, e a pessoa, dividida interior e exteriormente, não sabe para que lado voltar-se.

Embora a prosa tenha assumido uma posição de destaque nos últimos séculos,

vimos eclodir, principalmente nos dois últimos séculos, movimentos que pregavam a

valorização e, por vezes, até superioridade da linguagem poética sobre a linguagem

8 Edgar Morin, op.cit., p.36. 9 Idem, p.40. 10 Rollo May, op. cit., p.42. 11 Idem, p.44.

104

prosaica. Tradicionalmente podemos apontar duas principais “revoltas histórias” da poesia.

A primeira delas, e talvez a que assumiu dimensões maiores foi o romantismo que, nas

palavras de Morin12, foi uma “revolta contra a invasão da prosaidade do mundo utilitário,

do mundo burguês, que se desenvolveu no início do século XIX.” Numa análise que se

aproxima, em alguns pontos à de Morin, Sabato13 observa que “o romantismo não foi um

mero movimento na arte, mas uma vasta e profundíssima rebelião de todo o espírito que

não podia deixar de atacar as bases mesmas da filosofia racionalista.” A segunda delas,

embora não tão costumeiramente lembrada quanto o romantismo, foi, na opinião de Morin,

o surrealismo, no inicio do século XX. Como ele mesmo nos explica14,

a idéia surrealista é a de que a poesia extrai sua fonte da vida, com seus sonhos e acasos. Todos sabemos a importância que os surrealistas atribuíam ao acaso. O que ocorreu, então, foi uma desprosaização da vida cotidiana, que começou com Arthur Rimbaud, quando este se maravilhou com as tendas militares estrangeiras e com o latim das igrejas. Os surrealistas dignificaram o cinema e foram os primeiros a admirar Charlie Chaplin. Em resumo, a primeira mensagem surrealista foi desprosaizar a vida quotidiana, reintroduzir a poesia na vida.

Octavio Paz15 também aproxima o romantismo ao surrealismo na seguinte passagem:

o programa surrealista – transformar a vida em poesia e operar assim uma revolução decisiva nos espíritos, nos costumes e na vida social – não é diferente do projeto de Friedrich Schlegel e seus amigos: tornar poéticas a vida e a sociedade. Para consegui-lo ambos apelam para a subjetividade: a desagregação da realidade objetiva, primeiro passo para sua poetização, será obra da inserção do sujeito no objeto. A “ironia” romântica e o “humor” surrealista se dão as mãos.

Não é intuito aqui, no entanto, sugerir uma nova “rebelião” através da poesia.

Não podemos negar a importância das atividades que se originam prosaicamente; entre elas

encontramos as atividades práticas, técnicas e materiais, extremamente necessárias e

12 Op. cit., p.38. 13 O escritor e seus fantasmas, p.122. 14 Idem, p.38-39. 15 O arco e a lira, p.298-299.

105

intrincadas no estilo de vida do homem moderno. A poesia, entretanto, coloca-nos em

contato com nossa dimensão sensível, morada das nossas impressões primeiras do mundo.

Desta forma, a permanente cristalização no estado prosaico resultaria, para o homem, na

impossibilidade de constituição de sua completa racionalidade, uma vez que a verdadeira

inteira razão só pode nascer da alternância entre os estados prosaico e poético, a qual

permite, por sua vez, o próprio diálogo entre o inteligível e o sensível.

É no seu próprio desenvolvimento que esta racionalidade reconhece a

incapacidade de se tornar razão plena. Sempre existirá um irracionalizável, rebelde aos

caminhos da razão. Mas, como afirmamos anteriormente, a razão, embora incapaz de

racionalizar totalmente o irracionalizável, não procura ignorá-los, mas sim estabelecer um

diálogo, ainda que este nunca se realize plenamente. Como assinala Morin16,

ser racional não seria, então, compreender os limites da racionalidade e da parte de mistério do mundo? A racionalidade é uma ferramenta maravilhosa, mas há coisas que excedem o espírito humano. A vida é um misto de irracionalizável e racionalidade. Seria necessário aprender, de qualquer modo, a brincar com esta parte irracional de nossas vidas e saber aceitá-las. Confesso que, quando estou só na floresta durante a noite, eu tenho medo. Não de bandidos, mas de fantasmas! Sei que se trata de um medo irracional, mas, ao mesmo tempo, sei que não posso recalcá-lo.

Mesmo se tratando de uma citação um tanto extensa, pedimos aqui a licença

para inserirmos, no presente texto, a descrição de razão feita por Jaspers17 que servirá de

fundamento para boa parte dos pensamentos que se seguirão.

Que é a razão? Este grande tema de filosofia não está esgotado por

milênios de pensamento, não chega a completar-se mediante o conhecimento sistemático. Vou tentar caracterizar a razão.

A razão está em movimento sem estabilidade assegurada. Impele à crítica de toda posição adquirida, e por isso está em oposição à tendência de nos dispensarmos, graças a idéias definitivamente fixadas, de continuar a pensar.

Deseja a reflexão; - opõe-se à arbitrariedade Realiza o autoconhecimento de cada um e, ao conhecer as

limitações, a humildade pessoal; - opõe-se à arrogância.

16 Idem, p.57-58. 17 Op.cit., p.49-50.

106

Deseja sempre ouvir e sabe esperar; - opõe-se à estreitante embriaguez da paixão.

Nesses movimentos a razão desvencilha-se das cadeias do dogmatismo, da arbitrariedade, da arrogância, da embriaguez, - mas, para ir onde?

A razão é a vontade de unidade. A força propulsora da razão e o cuidado da sua clarificação nascem da pergunta sobre o que é esta unidade.

A razão não quer apreender uma unidade qualquer, mas procurar a verdadeira e única unidade. Se esta unidade deve ser a última e absoluta, então a razão sabe que está perdida em toda apreensão prematura e parcial da unidade. Pois ela quer o Um, que é tudo.

Por isso, não lhe é permitido deixar de fora nada que existe, nada omitir, nada excluir. É em si uma abertura ilimitada.

O próprio Jaspers18 conclui, na seqüência, que

a razão é atraída pelo que lhe é mais estranho. Mesmo aquilo que, transgredindo a lei do dia, se torna realidade destruidora, como paixão pela noite, mesmo isso, a razão desejaria, iluminando-o, conduzir ao Ser, emprestar-lhe uma linguagem e não deixá-lo desaparecer no nada. A razão não quer ser culpada de esquecimento, não quer perder o Um em uma harmonia ilusória, nem se enganar, por encobrimento. Acorre sempre ao lugar onde se rompe uma unidade, para, na ruptura, aprender ainda uma verdade dessa ruptura. Quebrando toda unidade bela na aparência, - que pela própria quebra revela sua insuficiência – a razão quer impedir a ruptura metafísica, o despedaçamento do Ser mesmo, da autêntica unidade. Por isso, a razão, origem mesma da ordem, acompanha também o que destrói a ordem.

Para lograr seus objetivos, a racionalidade de que se fala aqui estabelece, por

assim dizer, uma adequação entre uma coerência lógica, descritiva e explicativa, calcada no

universo prosaico, e o vivido. Esta racionalidade tenta, desta forma, superar, mas não negar,

o que Morin chama de lógica dedutivo-identitária. Deixemos que o próprio Morin19 nos

explique que

a lógica dedutiva-identitária, abre-se, não à compreensão do complexo e da existência, mas à inteligibilidade utilitária. Corresponde às nossas necessidades práticas de superação do incerto e do ambíguo para produzir um diagnóstico claro, preciso, sem equívoco. Corresponde, mesmo sob o risco de desnaturar os problemas, às nossas necessidades

18 Idem, p.50. 19 O método 4: as idéias, p.239.

107

fundamentais de separar o verdadeiro do falso, de opor a afirmação à negação. A sua inteligibilidade repele a confusão e o caos. Por isso, essa lógica é intelectualmente necessária. (...) Como disse Suzuki, ‘a lógica é o instrumento mais útil à vida prática... o supremo instrumento utilitário através do qual tratamos as coisas pertencentes à superficialidade da vida’.

Este tipo de lógica é extremamente importante para o homem e muito útil para a

vida cotidiana, mas enfrenta dificuldade em lidar com a existência humana. Isto porque “a

lógica dedutivo-identitária expurga do discurso a existência, tempo, o não racionalizável, a

contradição; a partir daí, o sistema cognitivo que lhe obedece cegamente se coloca em

contradição ao mesmo tempo com o real e com a sua pretensão cognitiva.”20 Aqui

encontramos a distinção entre racionalização e a racionalidade; embora ambas possuam

uma origem comum, a racionalização está inteiramente submetida à lógica dedutiva-

identitária e expurga, portanto, do seu discurso o irracionalizável e a contradição. Já a

a verdadeira racionalidade engloba, utiliza e supera a lógica dedutivo-identitária no seu intercâmbio com o real. A racionalidade assim entendida se identifica a uma dialógica entre o teórico e o empírico que necessita uma lógica suavizada/enfraquecida, onde a lógica nunca triunfa mas também nunca é arrasada. 21

Para a racionalidade “aquilo que constitui a nossa realidade inteligível não é

mais do que uma faixa, um fragmento de uma realidade cuja natureza é indemonstrável e

irrefutável.”22 Desta forma, qualquer tentativa de significação e compreensão da realidade,

objetivo por excelência do conhecimento, deve, necessariamente, ser abordada tanto a partir

da lógica quanto de uma forma supra-lógica. Uma lógica maleável é fundamental, portanto,

para a gênese de uma razão mais ampla e para a própria idéia de racionalidade.

O caminho da inteira razão se afasta, portanto, da simples racionalização e,

desta forma, de uma lógica rígida e com tendências totalitárias. Tal afastamento não

significa uma afirmação contra a lógica dedutiva-identitária; as ciências exatas que fazem

uso desta lógica, extraem dela não seu ponto fraco, mas sim um fator do qual tomam

20 Ibidem, p.257. 21 Ibidem, p.262-263. 22 Ibidem, p.261.

108

proveito para atingir suas potencialidades máximas. No entanto, intrínseca a esta

metodologia, nascem as próprias limitações da ciência que resultam do destacamento do

mundo científico do mundo da vida (Lebenswelt). Mesmo portadora de limitações, a ciência

moderna foi e continua sendo um importante e indispensável caminho para a verdade23 e

não deve ser ignorada ou desprezada. Segundo Jaspers24,

o abalo radical do espírito moderno – tantas vezes descrito e discutido – não é precisamente um abalo da ciência moderna. Na medida em que esta é pura nos seus métodos e limpa na sua crítica, não é de modo algum abalada, antes, ao contrário, progride em segurança, clareza e certeza, - dentro dos seus limites.

O que, porém, está abalado em muitos homens é a significação desta ciência, é a evidência de que a ciência é necessária. Para recuperar-se esta significação, requerem-se outras fontes, diferentes das que a própria ciência pode proporcionar.

Faz-se necessário dissipar a ilusão cientificista de que a totalidade do mundo é

redutível à lógica fechada e compreender os limites intrínsecos à ciência. Isto significa que

as críticas que são dirigidas atualmente à ciência são muito mais uma crítica à sua ambição

do que, de fato, uma crítica à sua metodologia ou ao seu funcionamento. Claro que,

freqüentemente, críticas mais ingênuas acabam transgredindo este delicado limiar fazendo,

desta forma, do seu afã pela verdade o motivo de uma cruzada contra a ciência. Deve-se,

portanto, resgatar o mundo da vida (Lebenswelt), isto é, o mundo em que o sensível

desempenha um papel essencial e que permanece, pela sua própria característica, rebelde à

metodologia científica. Vemos, assim, que embora a ciência seja, como afirmamos,

indispensável para apreender a verdade, ela não é suficiente. A própria insatisfação com a

ciência que vemos crescer nas últimas décadas

é a expressão da vontade de verdade, e é maior e atinge mais longe do que aquilo que pode ser satisfeito dentro das ciências. Marxismo, psicanálise e todos os outros muitos movimentos dessa espécie não seriam tão eficientes, se não se dirigissem a uma outra ânsia de verdade, que reclama os seus direitos. Quais são os limites da ciência em que essas

23 Nas palavras de Karl Jaspers: “a ciência torna-se para nós condição de toda verdade da filosofia mesma. Sem ciência não é mais possível hoje veracidade no filosofar. Confessamo-nos irrestritamente favorável à ciência moderna como caminho para a verdade.” (Op.cit., p.40). 24 Op. Cit., p.40.

109

teorias se oferecem a nós? Estes: a ciência, quando é pura, não atinge o Ser mesmo, não atinge a verdade inteira, mas apenas objetos no mundo, num progredir sem fim. Originalmente, queremos mais do que ciência.25

É necessário, portanto, buscar algo além do que a ciência pode nos apresentar

sobre o mundo. Mas onde poderíamos encontrar este “algo mais”? Eis aqui o dilema de boa

parte do pensamento crítico da segunda metade do século XX. Este “algo mais” não se

encontra na negação da ciência, tampouco no obscuro, no irracional ou no misticismo. O

“algo mais” é a própria racionalidade.

Esta razão que aqui descrevemos através, principalmente, do pensamento de

Jaspers e de Morin, é uma razão que reconhece, acima de tudo, sua vulnerabilidade ao não-

racional, mas que, por ter esta consciência, luta exatamente contra a tentação de se deixar

arrastar pelo irracional. Imbricada à sua vulnerabilidade ao não-racional aparece, por assim

dizer, a própria instabilidade da razão; ambas decorrem da inconstância inerente ao tecido

entremeado entre o refletido e o irrefletido que constitui o alicerce dinâmico da própria

racionalidade. Uma vez que o refletido só se dá a partir da vida vivida que, por sua vez, se

renova a todo o momento, decorre a impossibilidade da reflexão intelectiva esclarecer e,

desta forma, conquistar definitivamente o irrefletido.26 Não existe, portanto, nada no nosso

“mundo interior” que não tenha nascido na fecunda zona de comunhão entre corpo e

mundo. Como afirma Regis de Morais27,

não há em nosso chamado mundo interior qualquer conteúdo, nem conhecimentos, nem emoções, nem intuições, nem certezas, nada há ali que não tenha nascido da comunhão entre corpo e mundo. Daí percebemos que a artificial divisão: mundo interior e mundo exterior, não é mais do que algo criado para fins explicativos ou didáticos – uma

25 Ibidem, p.42. 26 Segundo André Dartigues: “é das profundezas da vida que o precede e o envolve que vem o pensamento, estando entendido que suas construções não conseguirão jamais conquistar e esclarecer perfeitamente aquilo que constitui sua própria fonte.” (Op.cit., p.65) Ainda sobre o mesmo assunto Rubem Alves afirma que “nas linhas da psicanálise podemos dizer que na razão encontramos as emoções em busca de um fundamento lógico. Se é verdade, como Pascal afirmava, que ‘o coração tem razões que a própria razão desconhece’, verdade é também que o coração cria a razão como sua aliada. Razão, pequena razão, brinquedo e instrumento da Grande Razão, o corpo (Nietzsche). Se isto é verdade, torna-se necessário concluir que a racionalidade se assenta sobre fundamentos que não podem ser esclarecidos por esta mesma racionalidade.” (O enigma da religião, p.164). 27 Arte: a educação do sentimento, p.13.

110

facilitação de linguagem, digamos, mas que, pelas armadilhas da própria linguagem, acabou cindindo de fato nossa visão de mundo

O sentir é, portanto, parte necessária e integrante do processo de

intelectualização, ou seja, de toda experiência mental do homem. O sentir é nossa primeira

relação com o mundo; antes de ser “pensado” o mundo nos chega como um objeto sensível,

mesmo que nossas formulações simbólicas procurem quase que imediatamente dar uma

tradução inteligível para a experiência vivida. Sendo assim é que podemos afirmar que não

existe nada na nossa mente que não tenha estado, em primeiro lugar, nos nossos sentidos.

Uma vez que os significados sentidos são fruto do padrão dinâmico do próprio sentir e

estão, por isso mesmo, sujeitos a constantes mudanças, a própria significação inteligível

adquire um caráter instável do qual resulta também a própria instabilidade da razão.

Vemos que dificilmente poderíamos conciliar a teoria exposta acima com a

tradicional crença de oposição entre o raciocínio e as emoções. Susanne Langer28 é quem

nos explica que costumeiramente se supõe que

a fria razão e o cálido sentimento (no sentido de emoção)... sejam tendências antagônicas da mente humana, e as pessoas geralmente admiram uma, confiando em suas sugestões, ao passo que desacreditam e depreciam a outra. Místicos religiosos, muitos artistas e alguns filósofos em nosso próprio século, notadamente Bergson e seus discípulos, consideram toda concepção abstrata como uma falsificação essencial da realidade, e contam com algum sentimento inarticulado, um produto do instinto ou da intuição, para guiar-lhes não apenas o comportamento prático, mas também o conhecimento da natureza das coisas. Cientistas, educadores e filósofos analíticos, talvez também muitos homens de negócio, assumem justamente a posição oposta, e consideram o pensamento abstrato e a razão fria – na verdade, quanto mais fria melhor – como o mais seguro guia de ação e o árbitro da verdade num mundo de fatos indisputáveis. Eles usualmente admitem que suas ações e mesmo suas crenças se inclinam a seguir os engodos do sentimento inspirado pela ‘situação concreta’ mais que o ditames da razão baseada na ‘lógica abstrata’; mas isto é porque certa parte de emoção interfere inevitavelmente com o pensamento lógico da pessoa.

Vê-se, portanto que se trata, aqui, não somente de reivindicar o não-racional.

Deve-se, sim, repensar a própria condição da razão. Entendemos, pois, o vivido (irrefletido) 28 Idem, p.67.

111

no sentido de uma dimensão anterior à consciência reflexiva, e que serviria, desta forma, de

suporte para qualquer conhecimento. Não haveria, assim, uma fronteira bem demarcada

entre o vivido e o refletido; ambos estariam indissociavelmente emaranhados e

constituindo, por vezes, etapas de um mesmo processo. Certamente esta é uma afirmação

extremamente delicada e recai, facilmente, num problema semântico. No entanto, mesmo

se compreendermos esta fronteira de forma dinâmica e complexa, os atritos entre vivido e

refletido permanecem. Isto porque nossa dimensão simbólica lingüística não é capaz de

lidar satisfatoriamente com nossa dimensão sensível.

Desta forma, ao priorizar a dimensão prosaica da existência em detrimento da

poética, o homem moderno também abdicou, por assim dizer, da capacidade de estabelecer

um diálogo mais direto com a dimensão sensível da sua personalidade. Nos dois primeiros

capítulos deste presente trabalho tentou-se demonstrar que esta desvalorização do saber

sensível caminhou pari passu com as necessidades e crenças da sociedade moderna. O que

se defenderá aqui, a partir de agora, é que se faz necessário reabilitar o sensível como

importante fator da existência humana e que, para tal necessitamos do poético e da sua

expressão por excelência, a arte.

A linguagem prosaica é extremamente impotente – e, diga-se de passagem, nem

é sua intenção – para descrever e detalhar os sentimentos. Já a arte, que “é primordialmente,

a concretização dos sentimentos (não-acessíveis à linguagem [prosaica]) em formas

expressivas”29 parece permitir que o homem explore “aquela região anterior ao

pensamento, onde se dá seu encontro primeiro com o mundo.”30 A arte tenta, desta maneira,

justamente construir formas que possam mais diretamente representar nossos sentimentos.

“Através da arte temos como que uma visão do mundo de nossos sentimentos, temos

formas que nos permitem ‘ver de fora’ a inefável dimensão do nosso sentir.”31

Dufrenne, ao pensar sobre a experiência estética afirma que o estético

singulariza-se como poética. Segundo suas próprias palavras, “habitar poeticamente o

mundo (como queria Hölderlin com a poesia, e como pretendeu Merleau-Ponty com a

29 João Francisco Duarte Jr., Fundamentos estéticos da educação, p.103. A palavra entre colchetes é nossa; apesar de não figurar no original, acredita-se que esteja de acordo com as considerações do autor. 30 Ibidem, p.103. 31 João Francisco Duarte jr, O que é beleza, p.47.

112

filosofia) é experimentar uma situação originária que não se resolve num ato como os que a

necessidade ou o hábito suscitam, mas que se quer dizer.”32 Para concluir, portanto, que

“nenhuma disposição conceitual poderá traduzir esse sentimento fundamental do mundo,

porque todo conceito está voltado à inteligência dos objetos. Somente a linguagem poética

pode exprimi-lo.”33

Afirmamos anteriormente, mais especificamente no terceiro capítulo, que a

obra de arte é caracterizada por ser fruto de uma intencionalidade estética direcionada a um

certo objeto que se tornará, uma vez estabelecida a experiência estética, um objeto estético.

Defendemos também que a arte só pode ser afirmada, portanto, enquanto fenômeno

estético-artístico. E podemos adicionar agora que a experiência estética nos lança num

estado que nos transporta para além das fronteiras entre inteligível e sensível, promovendo,

assim, o desenvolvimento na capacidade significadora do homem uma vez que amplia o

conhecimento humano para dimensões além daquelas possibilitadas pela prosa e pela nossa

percepção prática. Um dos grandes méritos da arte é, portanto, o de ampliar a percepção

que temos do mundo e de nós mesmos, fazendo-nos, assim, “redescobrir esse mundo em

que vivemos mas que somos sempre tentados a esquecer.”34

Numa época na qual o mundo é novamente sentido como ameaçador, no qual

eclodem conflitos, ao menos de significação, entre progresso técnico-científico e identidade

histórica e entre tecnologia e natureza, parece ser necessário repensar a própria questão da

linguagem poética como importante e indispensável dimensão não só do ser humano

individual mas de toda a sua cultura. Nessa direção aponta Alain Touraine35 quando

observa que

a partir de Nietzsche e de Freud, o indivíduo deixa de ser concebido apenas como um trabalhador, um consumidor ou mesmo um cidadão, deixa de ser unicamente um ser social; ele se torna um ser de desejo, habitado por forças impessoais e linguagens, mas também um ser individual, privado. Isso obriga a redefinir o Sujeito. Ele era o elo que ligava o indivíduo a um universal. Deus, a razão, a história; ora, deus

32 Mikel Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.333. 33 Mikel Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.333. 34 Merleau-Ponty, Conversas 1948, p.2. 35 Alain Touraine, op. cit., p.139.

113

está morto, a razão se tornou instrumental e a História está dominada pelos Estados absolutos.

Como, nessa situação, pode o indivíduo escapar às leis de seu interesse que são também as de utilidade social? A maioria dos pensadores recorreu à idéia de que o ser humano deve reencontrar sua natureza profunda, reprimida ou pervertida pelo reforço dos controles sociais, graças sobretudo à arte: é preciso fazer da vida uma obra de arte, reencontrar pela beleza as correspondências que unem o homem ao mundo.

Também refletindo sobre a idéia de um ideal poético para o homem Subirats36

comenta que

quando o reino temporal da razão histórica se confunde com a não-liberdade, com o fim do homem e a destruição da vida, quando a secularização não significa mais que a realização do inferno no reino da terra, a transcendência de um ideal poético de plenitude humana se converte no último bastião de resistência contra esse reino. Todavia, esse postulado transcendente não é o de uma realização moral do sujeito na esfera ideal de uma transcendência espiritual. Seu critério definitivo de verdade da última esperança de emancipação humana é a ruptura com a continuidade histórica de um progresso que hoje exibe abertamente suas conseqüências devastadoras para a humanidade, é a ruptura com a continuidade histórica da dialética da dominação e da morte. Eis uma tarefa complexa que define o âmbito de uma teoria crítica da cultura moderna, numa base ao mesmo tempo epistemológica, ética e estética.

Mesmo que o atual momento histórico não seja, a rigor e unanimemente,

entendido como um momento de crise, muitos pensadores se ocuparam, nas últimas

décadas, com o questionamento do projeto moderno, freqüentemente, apontando a

sensação de falta de sentido e um certo desnorteamento do homem contemporâneo como

evidências dessa suposta crise. Conseqüentemente, parece estar ocorrendo uma

intensificação no processo de reavaliação dos próprios rumos da humanidade, a qual tem

apontado a valorização da linguagem poética como uma alternativa frente à crise do projeto

moderno. Mas o que há de particular no estado poético que faz com que o estético seja

entendido, nas palavras de Subirats, como sendo parte de um “último bastião de

resistência”?

36 A cultura como espetáculo, p.138.

114

O estado poético, fruto da experiência estético-artística, evoca dimensões

desconhecidas ao pensamento prosaico do dia-a-dia, focalizando, desta forma, a esfera na

qual é possível restabelecer a união do homem com o mundo. Isto porque, no estado

poético, nossas vivências são significadas a partir do solo irrefletido da existência humana.

No dizer de Frayze-Pereira37,

são imagens que formam a primeira repercussão do mundo no homem. E é do artista criador libertar essas imagens fixando-as nas formas que solicitam, abrir por essa via um mundo no qual o espectador, o leitor, isto é, seu outro, possa, por sua vez, penetrar, elaborar percepções e pensamentos, refletir e interrogar.

A arte, portanto, é um fenômeno no qual se conjugam as faculdades humanas,

podendo ser entendida como um elo entre sonho e realidade, entre o inconsciente e o

consciente e, por fim, entre o sensível e o inteligível. Havíamos afirmado anteriormente que

coadunar, de forma mais harmônica, essas esferas do humano é o requisito maior da própria

racionalidade que necessita, portanto, da valorização de uma razão conciliadora, capaz de

ultrapassar os limites impostos pela crença numa suposta compartimentalização do homem

em forças opostas. Se este for, de fato, um objetivo passível de ser logrado, não podemos

deixar de considerar o fenômeno estético um importante auxílio para a constituição dessa

razão. Isto porque, como nos explica Dufrenne38, “o objeto belo é aquele que realiza, no

apogeu do sensível, a adequação total do sensível e do sentido e que, assim, suscita o livre

acordo da sensibilidade e do intelecto.” Sendo assim, e aqui está o núcleo do presente

estudo, a experiência estética, entendida como uma experiência fundamental da existência

humana, pode ser um importante fator constituinte de uma razão que deve, por analogia, ser

nomeada razão estética.

A razão estética pode ser compreendida como fruto possível do fenômeno

estético. Em outras palavras: é através da intencionalidade poética que a razão estética tem

a possibilidade de se exercer. Valorizar a consciência estética pode significar, desta forma,

para o homem que vive no nosso atual momento histórico, uma maior possibilidade de

37 Frayze-Pererira, op. cit., p.334. 38 Op. cit., p.51.

115

estabelecer um significado para sua própria existência, permitindo-lhe buscar o sentido da

sua existência não só na compreensão lógica proporcionada pelos nossos processos

inteligíveis, mas também nos sentimentos, ou seja, na dimensão irrefletida da sua

existência. Ao simbolizarmos através da arte o irrefletido, ele torna-se consciente e,

portanto, refletido – ainda que esta reflexão não se dê no modo lógico-conceitual, mas no

estético-analógico (ou, segundo Morin, no modo da linguagem poética).

Devemos, então, trazer de volta à discussão a questão do desprezo ao corpo

enquanto fonte de significação promovido pela mentalidade moderna39. Atualmente é

praticamente unânime a idéia de que a arte não é puramente fruto do intelecto, o que

equivale dizer que o objeto estético tampouco é apreendido de forma puramente inteligível,

pois é condição da experiência estética o próprio envolvimento do corpo. Neste sentido,

Sabato40 defende que “não se faz a arte, nem a sentimos, com a cabeça, mas com o corpo

inteiro; com os sentimentos, os pavores, as angústias e até os suores.” No entanto, a razão

submetida a uma lógica rígida e entendida como sinônimo de intelecção, garantiu, por

assim dizer, que o corpo fosse contraposto à própria razão. Como desse desprezo ao corpo

resulta, em última instância, um desprezo ao próprio sujeito41, vimos nascer, na

modernidade, a crença numa razão desenraizada e abstrata, por assim dizer, uma razão-

sem-sujeito. Não sem motivos, pois, veio à luz uma série de sistemas filosóficos que

propugnavam explicitamente a morte do sujeito.

Já a razão que aqui propomos não só redime o corpo como fonte de

conhecimento mas o assume como um de seus mais importantes constituintes e vai, desta

forma, ao encontro do apelo que nos faz Rubem Alves42; “devemos retornar ao corpo. Não

há outra maneira de se abranger o significado da vida e de se descobrir em que consiste ser

39 Segundo Duarte Jr. nossa modernidade preteriu “quase todo saber corporal em função do conhecimento simbólico, racional e abstrato produzido pela nossa intelecção, num modo inteiramente apartado daquilo revelado pelos sentidos humanos em sua plena acepção.” (O sentido dos sentidos, p.126). 40 O escritor e seus fantasmas, p.154. 41 Segundo Luijpen: “Sem corpo nem mundo o sujeito não é aquilo que ele mesmo é, ou seja, sujeito humano, precisando, pois, do que ele não é – corpo e mundo – a fim de poder ser sujeito.” (op. cit., p.52). 42 A gestação do futuro, p.158.

116

e agir como um ser humano.” Esta razão assume, portanto, todo um mundo que nos é

revelado pelo corpo e ainda não significado pelo intelecto. Como explica Le Breton43,

como a língua, o corpo é uma medida do mundo, uma rede jogada sobre a multidão de estímulos que assaltam o indivíduo ao longo de sua vida cotidiana e que só retém em suas malhas os que lhe parecem mais significativos. A cada instante, o indivíduo interpreta seu meio por intermédio de seu corpo e age sobre ele de acordo com as orientações provenientes de sua educação ou de seus hábitos. (...) O corpo não é, portanto, uma matéria passiva, submetida ao controle da vontade, obstáculo à comunicação, mas, por seus mecanismos próprios, é de imediato uma inteligência do mundo. Esse conhecimento sensível inscreve o corpo na continuidade das intenções do indivíduo confrontado a seu ambiente; ele orienta em princípio seus movimentos ou suas ações sem impor a necessidade preliminar de uma longa reflexão. De fato, na vida cotidiana, os mil movimentos e ações que enriquecem a duração do dia são feitos sem a mediação aprofundada do cogito – encadeiam-se naturalmente na evidência da relação com o mundo.

A reabilitação do modo de existir do corpo e, conseqüentemente, a valorização

do sensível44, permite uma relação mais fluida entre as significações sensíveis da

experiência vivida e os conteúdos inteligíveis. A parcela do conhecer pré-reflexiva e pré-

conceptual que encontra sua gênese no mesmo solo irrefletido que serve de morada para as

emoções e os sentimentos – o corpo – é, desta forma, articulada com o conhecimento

inteligível, permitindo que o corpo retome sua parcela na constituição da razão. A

racionalidade, portanto, não promove a contraposição entre intelecto e corpo, mas os

aproxima; a inteira razão sabe que necessita atentar para o corpo para ser razão.

A experiência estética proporcionada pela arte, que promove uma articulação

entre o sensível, originário da presença do corpo no mundo, com o inteligível, fruto dos

processos intelectuais de significação desta presença, parece ser fundamentalmente

necessária para lograr esta valorização do conhecimento sensível, uma vez que o universo

43 Op. cit., p.190 [grifo nosso]. 44 Segundo Frayze-Pereira, “voltado para uma ‘reabilitação ontológica do sensível’, o projeto de Merleau-Ponty mostra-nos que o Sensível não é nem um mundo confuso que precisa ser posto em dúvida, nem organização dos objetos dos sentidos pelo entendimento, nem conjunto atomizado de partes extra-partes. O sensível é o modo de existir do corpo e das coisas. Para usar uma expressão de Paul Ricoeur, a propósito do Sensível em geral: ‘é a ambigüidade de seu modo de ser que é exemplar’. Isto é, sua existência paradoxal, condenada ao modo de presença-ausente – visível-invisível, intersensorial e intersubjetivo, união do múltiplo.” (Op. cit., p.187).

117

sensível se constitui, primordialmente, de imagens e memórias que dificilmente podem ser

“traduzidos” para símbolos lingüísticos-conceituais. A arte, que busca concretizar os

sentimentos numa forma, permite que nossa consciência inteligível se relacione com estas

memórias sensíveis de forma mais global e abrangente do que nos permite nosso

pensamento rotineiro baseado nos conceitos e em processos lógicos. Devemos, aqui,

lembrar novamente a fundamental diferença entre a linguagem prosaica e a linguagem

poética: a arte, expressão por excelência da segunda, não tem o intuito de precisar ou

definir, como a prosa. A arte não diz, mas mostra. “E o que ela mostra, o que ela nos

permite, é uma visão direta dos sentimentos; nunca um significado conceitual.”45 O que

leva Langer46 a comentar que

a função primordial da Arte é objetivar o sentimento de modo que possamos contemplá-lo e entendê-lo. É a formulação da chamada ‘experiência interior’, da ‘vida interior’, que é impossível atingir pelo pensamento discursivo, dado que suas formas são incomensuráveis com as formas da linguagem e de todos os seus derivativos (por exemplo, a Matemática, a Lógica Simbólica). A Arte objetiva a senciência e o desejo, a consciência do mundo, as emoções e os humores, que geralmente são tidos por irracionais, visto que as palavras não nos podem dar clara idéia deles. Mas a premissa tacitamente pressuposta em tal juízo – qual seja: que tudo aquilo que a linguagem não pode expressar é amorfo e irracional – parece-me errônea. Creio que a vida do sentimento não é irracional; apenas, as suas formas lógicas diferem muito das estruturas do discurso. Elas são, contudo, tão semelhantes às formas dinâmicas da Arte que esta constitui-se no seu símbolo natural. Através das artes plásticas, da música, da ficção, da dança ou das formas dramáticas, podemos conceber o que sejam a vitalidade e a emoção.

Por fim, se a questão é estabelecer um elo entre o inteligível e o sensível, não

podemos deixar de dirigir nossa atenção para as Cartas sobre a educação estética do

homem (1795) de Friedrich Schiller. Antes de propriamente nos debruçarmos sobre o

conteúdo das cartas, escritas numa linguagem arguciosa e num exemplo de rara intimidade

entre conteúdo e estilo, deve-se salientar que a própria característica do texto exige um

45 João Francisco Duarte Jr, Fundamentos estéticos da educação, p.83. 46 Ensaios Filosóficos, p.87.

118

elevado número de citações no intuito de minimizar as possibilidades de se cometer uma

injustiça para com o texto original.

Embora escritas num espírito kantiano, as cartas já anunciam um certo relutar

quanto ao moto iluminista da razão soberana47. Mostrando ainda uma desconfiança com os

rumos que estava tomando a Revolução Francesa, Schiller parece sintetizar a questão

principal desta sua obra na seguinte passagem:

de onde vêm, pois, este domínio ainda tão geral dos preconceitos e esta turbação das mentalidades, à revelia de toda a luz que filosofia e experiência acendem? Nosso tempo é ilustrado; vale dizer que foram encontrados e tornados públicos os conhecimentos que seriam suficientes, ao menos para a correção de nossos princípios práticos; o espírito da livre investigação destruiu os conceitos fantasiosos que por muito tempo vedaram o acesso à verdade e minou o solo sobre o qual erguiam seu trono a mentira e o fanatismo; a razão purificou-se das ilusões dos sentidos e dos sofismas enganosos, e a própria filosofia, que a princípio nos rebelara contra a natureza, chama-nos de volta para seu seio com voz forte e urgente – onde a causa de, ainda assim, continuarmos bárbaros?48

A resposta para esta questão Schiller acredita ter encontrado na repressão dos

sentimentos típica de sua época. O filósofo havia, desta forma, pressentido, ainda no século

das Luzes, o que o presente estudo vem tentando demonstrar como uma característica do

próprio período moderno. No entanto, Schiller também aponta o oposto, a domínio do

sentimento sobre a reflexão como uma outra forma de dissociação do homem. Em ambas, o

homem estaria, segundo o filósofo, vivendo em “oposição a si mesmo”. Deixemos,

entretanto, que o próprio Schiller49 nos explique com suas palavras que “o homem... pode,

por duas maneiras, viver em oposição a si mesmo: como selvagem, quando seus

sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios

destroem seus sentimentos.” Podemos, neste sentido, compreender a seguinte observação

de Mattei50:

47 Segundo Marc Jimenez: “Friedrich von Schiller redige suas Cartas sobre a educação estética do homem num espírito kantiano. Mas já se anuncia a crítica das teses kantianas e das Luzes em geral” (Op. cit., p.145). 48 Friedrich Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade, p.61. 49 Idem, p.46. 50 Idem, p.73-74.

119

na linha de Vico, que havia pressentido, no mesmo século, a escalada de uma ‘segunda barbárie’ – a ‘barbárie da reflexão’, muita mais perigosa que a ‘barbárie dos sentidos –, Schiller opusera essas duas formas contrárias da depravação humana: a da selvageria, que desencadeia a violência anárquica dos sentimentos, e a da barbárie, que desfaz todas as energias criadoras fechando-se sobre o Eu.

Para compreendermos melhor o pensamento de Schiller devemos,

primeiramente, compreender as duas diferentes forças que impulsionam o homem para a

realização de seus objetivos e que, desta maneira, devem ser chamados de impulsos. Nas

palavras do próprio Schiller51,

o primeiro destes impulsos, que chamarei sensível, parte da existência física do homem ou de sua natureza sensível, e está empenhando em submetê-lo às limitações do tempo, em torná-lo matéria: não quer dar-lhe matéria, pois para isto já seria necessária uma livre atividade da pessoa que a recebe e distingue da própria identidade. Matéria não significa, aqui, mais que modificação ou realidade, que preencha o tempo; este impulso exige, portanto, que haja modificação, que o tempo tenha um conteúdo. Este estado de tempo meramente preenchido chama-se sensação, e é somente através dele que se manifesta a existência física.

Embora seja este primeiro impulso o que “desperta e desdobra as disposições da

humanidade, é também ele que torna impossível sua perfeição”.52 Desta forma,

quando... este instinto age exclusivo, existe necessariamente a máxima limitação; o homem neste estado nada mais é que uma unidade quantitativa, um momento de tempo preenchido – ou melhor, ele não é, pois sua personalidade fica negada enquanto é dominado pela sensibilidade e arrastado pelo tempo.53

Quando dominado somente pelo impulso sensível o homem se opõe à sua

própria personalidade, Vive, portanto, exclusivamente no presente e limita, desta maneira,

toda a gama de determinações possíveis a um único momento: o presente.

51 Idem, p.76. 52 Ibidem, p.77. 53 Ibidem, p.77.

120

Já “o segundo impulso poderíamos chamar de formal; tem ponto de partida no

ser absoluto do homem ou na sua natureza racional e visa libertá-lo, harmonizar a

diversidade de suas aparências e afirmar sua pessoa contra toda variação em seu estado.”54

Embora Schiller tenha usado aqui a expressão vernünftigen Natur ou, na tradução acima,

natureza racional, o presente estudo entende que o autor se refere, aqui, à natureza

intelectiva do homem que, sem dúvida é um importante constituinte da razão, mas que não

deve ser plenamente identificada com a razão. Uma possível evidência que Schiller poderia

ter pensado desta forma é a afirmação, na XIV carta, de que a “relação de reciprocidade

entre os dois impulsos é uma tarefa da razão, que o homem só pode realizar plenamente na

perfeição da sua existência.”55 A razão, no original Vernunft, não aparece identificada

assim, com nenhum dos dois impulsos, mas sim como uma instância, por assim dizer,

superior, uma vez que trata de estabelecer uma relação de reciprocidade entre ambas.

Como vimos, é no impulso formal que ocorre a afirmação da personalidade e no

qual encontramos uma tendência a negar o tempo e a modificação. Desta forma, se o

“sentimento pode apenas dizer: isto é verdade para este sujeito e neste momento”56, uma

vez que bastaria um outro momento e um outro sujeito para que fosse afirmada uma

sensação diferente, Schiller defende que “o pensamento... afirma, isto é, ele decidiu para

sempre e eternamente, e a validez de seu juízo é penhorada pela própria personalidade que

resiste a toda transformação.57

Schiller aponta que “à primeira vista, nada nos parecerá mais contraditório que

as tendências destes dois impulsos, na medida em que um visa a modificação, enquanto o

outro quer a imobilidade”.58 Eis aqui uma questão que merece nossa atenção: trata-se de um

antagonismo originário e necessário? Caso a resposta seja afirmativa

é óbvio que para assegurar a unidade do homem não resta outro meio senão o de subordinar incondicionalmente o impulso sensível ao racional. Daí, contudo, poderá nascer apenas a uniformidade, nunca a harmonia, e o ho4mem ficará eternamente partido. Embora a subordinação seja

54 Ibidem, p.78. 55 Ibidem, p.85. 56 Ibidem, p.78. 57 Ibidem, p.78-79. 58 Ibidem, p.79.

121

necessária, deverá ser recíproca: pois conquanto os limites não possam fundar o absoluto e a liberdade não possa depender do tempo, é também verdade que o absoluto não poderá, por si só, fundar os limites, que o estado no tempo não poderá depender da liberdade. Ambos os princípios são mútua e simultaneamente coordenados e subordinados, isto é, estão em relação de reciprocidade: sem forma não há matéria, sem matéria não há forma. 59

Na opinião de Schiller é justamente uma tarefa da cultura garantir e assegurar

os limites entre os impulsos, tratando ambos com igual justiça. A cultura, assim,

não busca afirmar apenas o impulso racional contra o sensível, mas também este contra aquele. Sua tarefa, portanto, é dupla: primeiramente, resguardar a sensibilidade das intervenções da liberdade; segunda, defender a personalidade contra as forças da sensação. Uma tarefa ela realiza pela educação da faculdade sensível, a outra, pela educação da faculdade racional.60

Schiller havia, ainda no século XVIII, alertado que “os dois impulsos

necessitam... de limitação e, quando pensados como energias, de um ponto de repouso;

aquele [o impulso sensível], a fim de não burlar o domínio da legislação; este [o impulso

formal], para não penetrar o campo da sensibilidade.”61 No decorrer deste trabalho,

demonstrou-se que nossa cultura moderna, ao invés de tentar garantir o diálogo e a

equanimidade destas duas faculdades, promoveu uma excessiva valorização da nossa

faculdade inteligível, identificando, desta forma, o repouso do impulso sensível com o que

Schiller chamou de um “embotamento da sensação”. No entanto, o próprio Schiller havia

defendido que

o repouso do impulso sensível não deve... ser o efeito de uma incapacidade física e de um embotamento da sensação, pois mereceria então desprezo; deve ser um passo da liberdade, uma atividade da pessoa que modera, por seu vigor moral, a intensidade dos sentidos e toma às impressões, pelo domínio, a profundidade, para dar-lhes superfície.62

59 Ibidem, p.80 (nota de rodapé). 60 Ibidem, p.80-81. 61 Ibidem, p.84. 62 Ibidem, p.84.

122

Como vimos, enquanto o impulso sensível deseja a modificação e tente a

afirmar o tempo presente como realidade última, o impulso formal tende a negar a

passagem do tempo, pretendendo, desta forma, a manutenção da personalidade em

detrimento da variação do estado pessoal.63 Qual o caminho, portanto, para o equilíbrio

entre estes dois impulsos tão antagônicos? Na opinião de Schiller existiria um terceiro

impulso, nomeado impulso lúdico64, no qual os dois primeiros se conjugam e que “aspira a

superar o tempo e combinar ao ser absoluto o devir, a modificação à identidade.”65 Cada

um destes impulsos tem seus próprios objetos, como Schiller nos explica na passagem

transcrita abaixo:

o objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida em seu significado mais amplo; um conceito que significa todo o ser material e toda a presença imediata nos sentidos. O objeto do impulso formal, expresso por um conceito geral, é a forma (figura), tanto em seu significado próprio como metafórico; um conceito que compreende todas as disposições formais dos objetos e todas as suas relações com as forças do pensamento. O objeto do impulso lúdico, representado num esquema geral, é a forma (figura) viva; um conceito que denomina todas as disposições dos fenômenos, tudo que entendemos no mais amplo sentido por beleza.66

Desta forma, a beleza da forma como é entendida por Schiller e também por

este estudo, não é fruto exclusivamente do impulso sensível, ou seja, da vida vivida;

tampouco é mera figura impulsionada pelo impulso formal. A beleza é, sim, “objeto

comum de ambos os impulsos, e, portanto, do impulso lúdico.”67

Esta característica de mediadora entre o impulso formal e o impulso sensível

que a beleza exerce, garante que, através da experiência do belo, tanto o homem sensível

seja conduzido à forma e ao pensamento quanto o homem intelectivo recupere o mundo

63 Segundo Schiller: “o impulso sensível quer que haja modificação, que o tempo tenha conteúdo; o impulso formal quer o tempo negado, para que não haja modificação.” (Idem, p.86). 64 Segundo Schiller: “este nome é plenamente justificado pela linguagem corrente, que costuma chamar de jogo tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objetivamente contingente, ainda assim não tem necessidade interior nem exterior.” (Idem, p.90). 65 Ibidem, p.86. 66 Ibidem, p.88. 67 Ibidem, p.90.

123

sensível. Desta forma, “a beleza... liga estados que são opostos e nunca podem unir-se”68,

ou seja, a experiência estética não une o sensível e o inteligível no sentido de fundi-los, mas

estabelece, sim, um elo entre eles. Existe, portanto, uma zona intermediária entre o impulso

sensível e o impulso formal na qual o sensível e o inteligível coexistem de forma ativa e

que só pode ser adentrado pela experiência do belo. Esta zona intermediária é o estado

estético, estado no qual, nas palavras do próprio Schiller69

não há força... que lute contra forças, nem carência em que pudesse irromper o tempo. Irresistivelmente seduzidos por um, mantidos à distância por outro, encontramo-nos em estado simultâneo de repouso e movimento máximos, surgindo aquela maravilhosa comoção para a qual o entendimento não tem conceito e a linguagem não tem nome.70

Como vimos, Schiller afirma a necessidade de um desenvolvimento harmônico

entre o inteligível e o sensível e reconhece, na potencialidade da arte em conduzir-nos a um

estado estético, a possibilidade se criar um elo entre estas duas forças opostas.

Podemos ainda anotar que, para Schiller, a repressão ou a supressão da natureza

sensível significaria, para o homem, a perda da liberdade. Conseqüentemente, se a vida

moral fosse conquistada pelo mero desprezo ou pela mera supressão dos impulsos sensíveis

apareceria desprezada também a liberdade do homem. Podemos então nos perguntar: qual o

caminho para a verdadeira moral, baseada não na necessidade, mas na liberdade? Na quarta

carta Schiller aponta a totalidade de caráter como o meio de se evitar a confusão moral e

coloca em cena a educação estética como o caminho para uma moral baseada na liberdade.

É somente a partir da totalidade de caráter, proporcionado pelo estado estético, que o

homem pode atingir o estado da liberdade. Em pelo menos duas passagens encontramos a

corroboração desta idéia. Na primeira delas, ainda na segunda carta, Schiller71 promete que

mostrará “que para resolver na prática o problema político é necessário caminhar através do

68 Ibidem, p.100. 69 Op. cit., p.93-94. 70 “N.T. Schiller revela aqui uma profunda intuição da essência do estado estético: a intensa empatia com o objeto estético e, ao mesmo tempo, a manutenção da distância em face dele. Esta atitude ao mesmo tempo emotiva e contemplativa, de entrega e de retrocesso, na apreciação da obra de arte, é confirmada pela atual pesquisa fenomenológica. (p.94)” 71 Op. cit., p.39.

124

estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade”. Numa segunda passagem o autor afirma

que “é preciso encontrar totalidade de caráter, portanto, no povo que deva ser capaz e digno

de trocar o Estado da necessidade pelo Estado da liberdade.”72

Schiller aponta, desta forma, o desenvolvimento dos dois impulsos

fundamentais – o sensível e o formal – como o fundamento da liberdade. Como ele mesmo

nos explica, a liberdade

principia somente quando o homem está completo e já tem desenvolvidos seus dois impulsos fundamentais; ela estará ausente, pois, enquanto ele for incompleto e tiver excluso um dos dois impulsos, podendo ela ser reconstituída por tudo aquilo capaz de torná-lo de novo completo.73

Por fim, vale salientar que Schiller afirma, na sua XXIII carta, que “a passagem

do estado passivo da sensibilidade para o ativo do pensamento e do querer dá-se... somente

pelo estado intermediário de liberdade estética”74, para afirmar, logo após, que não existe,

portanto, “maneira de fazer racional o homem sem torná-lo, antes, estético”.75 Ou em outras

palavras: não existe maneira de lograr o estabelecimento da razão sem que o homem atinja,

primeiramente, o estado estético. Percebe-se, portanto, que a tese defendida neste presente

trabalho muito se assemelha com as idéias apresentadas por Schiller nas suas cartas.

Certamente vimos, nos parágrafos acima, assim como em todo este capítulo, e

talvez na contramão do que freqüentemente vem sendo pensado sobre a razão, uma

profunda defesa da razão como força de libertação e de emancipação do homem. Esta não é

uma tese nova, isto é certo; os iluministas a defendiam ainda no século XVIII. No entanto,

toda a defesa da razão aqui proposta é amparada no que Sérgio Paulo Rouanet chama de

“consciência neomoderna” a qual, em suas palavras,

é a consciência de uma modernidade que refletiu sobre si mesma, sobre suas origens e seus desvios. Ela [a consciência neomoderna] dispõe de toda uma experiência acumulada ao longo de dois séculos. Sabe que o

72 Ibidem, p.47. 73 Ibidem, p.108. 74 Ibidem, p.119. 75 Ibidem, p.119.

125

progresso material não foi necessariamente acompanhado de maior liberdade, mas não se demitiu da ciência e da técnica. Sabe que a razão não é um cogito totalmente transparente a si mesmo e funciona muitas vezes como a máscara do irracional, mas não renunciou à razão: ao contrário, a partir de Marx e Freud pode fundar um racionalismo infinitamente mais rico que o Iluminismo clássico.76

Este autor afirma, ainda na mesma obra, a possibilidade de se compreender esse

movimento nascido com a consciência neomoderna, como sendo um novo Iluminismo.

Deixemos que novamente ele nos explique que

a razão do novo Iluminismo não pode ser a do século XVIII, que desconhecia os limites internos e externos da racionalidade e não sabia distinguir entre razão e ideologia. A nova razão deveria ter as características que atribuí à razão sábia: capaz de crítica e autocrítica, apta a devassar em suas verdadeiras estruturas das leis e instituições, armada para desmascarar os discursos pretensamente racionais e consciente de sua vulnerabilidade ao irracional.77

A razão, como vimos, encontra, no caminho até sua consolidação, um feroz

adversário e só pode se consolidar se atentar para este adversário. Como Jaspers78 o afirma,

“esse adversário, nós o defrontamos no mundo, porém, mais perigoso ainda, se aloja em

cada um de nós, Se pensamos tê-lo vencido, já sucumbimos a ele.” A não-razão nasce

quando a razão deixa de ser sustentada pela própria existência concreta do homem. Neste

sentido podemos entender que uma civilização baseada no princípio de racionalização – e

não na verdadeira racionalidade – não poderia se mostrar uma civilização que não fosse, em

última instância, irracional. Mas de onde o adversário da razão tira suas forças? Numa

citação um tanto extensa, mas de extrema importância, é novamente Jaspers79 quem

responde a esta questão:

Há em nós alguma coisa que deseja: não a razão, mas o mistério;

76 Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.273. 77 Sérgio Paulo Rouanet, Op. cit., p.31. 78 Op. cit., p.71. 79 Idem, p.72.

126

não um pensamento penetrante, claro, mas o sussurro; não a reflexão que vê e escuta, aberta a tudo, mas o caprichoso

abandono a uma obscura multiplicidade; não a compreensão humana, que modera as suas exigências, mas

uma onisciência gnóstica no absurdo; não a ciência, mas a feitiçaria com máscara científica; não a

eficácia racionalmente fundada, mas a magia; não a fidelidade digna de confiança, mas a aventura; não a liberdade, que é uma só coisa com a razão, a lei e a escolha da própria historicidade, mas um cego excesso de liberdade, ao mesmo tempo que uma obediência cega, sob uma opressão que não tolera questão alguma.

Qual a razão desse desejo de mistério, sussurro, absurdidade, feitiço, magia, aventura e, por fim, de cego excesso de liberdade ao mesmo tempo que de cega obediência?

Sempre que a razão não é mais sustentada e preenchida pelo ser autêntico de um homem, resvalando para o mero entendimento, nasce do mundo desse entendimento a insuportável insatisfação. A razão, não mais compreendida, aparece agora como vazia, como um nada, um mundo de abstrações, de formas pálidas, indiferentes, que se acumulam ao infinito.

O fundamento do nosso ser anseia por plenitude, presença e corporeidade. Mas o acesso a essas coisas é dúplice. Ou se tornam verdadeiras como plenitude genuína, sob a direção da razão e como construção na continuidade histórica, por obra da razão; ou se transformam em ilusão, na dispersão e desorientação da multiplicidade e da eventual variação, sem a razão e contra a razão.

Eis aqui a encruzilhada entre razão e não-razão. Sabemos, entretanto, que a

razão encontra sua força, e não sua fraqueza, na existência concreta do homem e na

presença que o mundo estabelece para a própria corporeidade humana. A racionalidade,

portanto, não é sinônimo de intelecção e só pode nascer do diálogo entre inteligível e

sensível do qual resulta a possibilidade de se englobar a significação que o homem faz de

suas experiências vividas. Mas, acima de tudo, devemos estar sempre cientes de que “a

todo momento estamos interiormente diante desta encruzilhada: a possibilidade de sermos

nós mesmos mediante a razão.”80

80 Idem, p.73.

127

CONCLUSÃO

Assim, a multiplicidade de sentidos que a obra de

arte descortina faz-nos continuamente um convite: para que nos deixemos conduzir pelos intrincados caminhos dos sentimentos, onde habitam novas e vibrantes possibilidades de nos sentirmos e de nos conhecermos como humanos.

João Francisco Duarte Jr.

Uma sociedade que negligencia a iluminação e a

identificação dos sentimentos mediante a arte, entrega-se aos descaminhos das emoções amorfas, que assustam como vultos no escuro. Tais sociedades celebram um pacto problemático com certo irracionalismo que irrompe do desconhecimento de si.

Regis de Morais

128

Não é intuito desta conclusão simplesmente resumir tudo o que foi discutido

anteriormente; a tentativa de sintetizar todos os tópicos discutidos no decorrer dos capítulos

precedentes dificilmente poderia ser realizada de forma satisfatória, uma vez que os temas

apresentados se somam na tentativa de construir uma linha de pensamento na qual forma

expositiva e conteúdo aparecem intrinsecamente emaranhados. Os principais tópicos

apresentados serão, entretanto, retomados na medida que colaborarem para que sejam

tecidas nossas considerações finais. Deve-se ainda salientar que a própria natureza do

presente estudo garante a impossibilidade de este apresentar uma conclusão clara e

objetiva. Ao invés disto, terminamos justamente propondo uma hipótese: a de que a

experiência estética é fundamental para o desenvolvimento equilibrado entre as duas

faculdades básicas do homem – a intelecção e a sensibilidade – e, conseqüentemente,

fundamental para o estabelecimento de uma razão que se exerça de forma plena.

Retornamos, pois, à proposta apresentada no parágrafo de abertura da introdução. Essa

coincidência, entretanto, não significa que os objetivos deste trabalho não foram atingidos.

Como já afirmado, reside em seu desenvolvimento a sua finalidade maior: a apresentação

de uma defesa das suas propostas. Podemos entender, portanto, que pouco resta a esta

conclusão a não ser esclarecer qualquer posicionamento que tenha ficado pendente ou tecer

considerações a respeito do que fazer, daqui para frente, a respeito do que foi discutido.

Pode-se julgar que o tratamento dispendido às questões abordadas é demasiado

heterogêneo para que este trabalho seja considerado coeso no que tange à sua exposição.

No entanto, é necessário dizer que, de forma alguma, foram esgotadas as possibilidades e

visões sobre os temas aqui abordados. Freqüentemente preferimos mencionar rapidamente

trabalhos que, na realidade, são muito mais profundos e complexos e outras tantas vezes

preferimos deixar abordagens extremamente interessantes de lado pela exigüidade de

espaço. Em parte, esta falta pode ser explicada pelo grande número de pensadores que se

ocuparam com as questões debatidas.

Podemos entender que a razão foi, aqui, pensada e discutida a partir do uso da

própria razão. Com o objetivo de minimizar esta aparente aporia, pensadores que se

ocuparam com uma crítica da razão freqüentemente criaram um termo alternativo para

descrever um entendimento diferenciado de razão. Este foi o caso de Nietzsche com sua

129

“grande razão”, de Ortega y Gasset com sua “razão vital” ou de Maffesoli com sua “razão

sensível”, entre outros. Contrapondo conceitos diferentes de razão, esperavam diminuir as

chances de adentrarem num beco sem saída, situação na qual suas teorias apresentariam

uma contradição intrínseca. É quase desnecessário dizer que esta também foi, pelo menos

parcialmente, a justificativa para se nomear uma “nova razão” – no caso, a razão estética.

Eis a condição mesma da razão estética aqui delineada: o estabelecimento de

um diálogo entre refletido e irrefletido, entre inteligível e sensível. Embora seja factível a

razão se ocupar de seu fundamento irrefletido, uma grande parcela do que a constitui

sempre permanecerá rebelde aos processos racionais. Assim, da natureza mesma da razão

decorre a impossibilidade de defini-la; a razão não basta para esgotar a razão. No entanto, a

abdicação da tentativa de se compreender esta dimensão rebelde é, ao mesmo tempo, a

abdicação da possibilidade de conquista da razão. Neste sentido apontamos a atribuição da

experiência estética na constituição da razão estética; é na experiência estética que a parcela

da dimensão irrefletida irredutível à conceitualização tradicional, encontra a possibilidade

de ser conscientizada. Sendo assim, a tentativa foi apontar, na experiência estética, a

possibilidade de a razão estética se exercer.

Qual a relação do que foi dito com a arte? Para responder a esta questão pode-

se pedir auxílio a Michel Foucault1 que, durante sua última entrevista, no ano de 1984,

demonstrou espanto pelo fato de que

em nossa sociedade a arte só tenha relação com os objetos e não com os indivíduos ou com a vida; e também que a arte seja um domínio especializado, o domínio dos especialistas que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que um quadro ou uma casa são objetos artísticos, mas não a nossa vida?

Acredita-se que os objetivos deste trabalho estejam, de certa forma,

conectados com o ideal de se “fazer da vida uma obra de arte” presente na fala de Foucault.

Isto porque, como aponta Frayze-Pereira2, obviamente a proposta de Foucault

1 Apud Frayze-Pereira, op. cit.,p.156-157. 2 Op.cit., p.157.

130

não significa apelar a qualquer forma frívola ou ornamental de esteticismo. Ao contrário, ‘fazer da vida uma obra de arte’ é um trabalho que exige deixar surgir a multiplicidade do ser que nos constitui desde o nosso corpo e reconhecer nela uma forma capaz de dar fundamento e coesão às suas múltiplas expressões.

Tentamos ainda demonstrar que, se a tentativa de deixar “surgir a

multiplicidade do ser” não pode ser fruto de uma rejeição do sensível tampouco pode

significar o rompimento com a dimensão racional e lógica do conhecimento. Busca-se

assim, a articulação e o equilíbrio entre ambas. Neste sentido, a valorização das disciplinas

das áreas de humanidades e de artes provavelmente constitua um contrapeso essencial à

cultura tecnocrática. Que fique claro, portanto, que não defendemos, em nenhum momento,

um rompimento ou uma objeção à ciência ou mesmo à técnica. Fazemos eco às

considerações de Rouanet3 quando este afirma que não defende

qualquer hostilidade às disciplinas científicas [mas]... sim, uma oposição de princípio ao transbordamento da ciência e da técnica além de sua esfera específica de validade. Em seu sentido integral, a razão é a unidade da razão científica, prática e estética. Não podemos aceitar monopólio de nenhuma das partes, como ocorreria se a razão científica quisesse impor-se como único padrão de racionalidade, submetendo a totalidade da vida a seus imperativos funcionais.

Como vimos, durante o desenrolar da modernidade “o inteligível e o sensível

vieram, pois, sendo progressivamente apartados entre si e mesmo considerados setores

incomunicáveis da vida, com toda a ênfase recaindo sobre os modos lógicos-conceituais de

se conceber as significações.”4 A razão foi, inclusive, por vezes identificada com a própria

dimensão inteligível, que por sua vez foi, em outros momentos, identificada com o modo de

a ciência e a técnica operarem. Esta redução parece ter garantido o que Rouanet chamou de

“transbordamento da ciência e da técnica além de sua esfera específica de validade”. O

perigo deste transbordamento é a própria irracionalidade. Assim, atualmente vem se

percebendo que o princípio racionalista sobre o qual se pensou estar edificando a

civilização moderna freqüentemente produziu o efeito contrário do esperado:

3 Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.322. 4 João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.163.

131

irracionalidade. Subirats5 apontou este fenômeno como o surgimento de um “conflito entre

racionalização integral da cultura e a irracionalidade de seus fenômenos objetivos”.

A tentativa de se superar a natureza através da tecnologia também acabou por

revelar perigosos efeitos colaterais como, por exemplo, a ameaça de colapso ambiental, ora

tão evidente.

Mesmo se a natureza exterior e humana pudesse ser totalmente substituída por uma natureza artificial – insólito projeto formulado pelas vanguardas – o resultado seria ambíguo e paradoxal. Uma cultura completamente racionalizada conforme critérios tecnológicos poderia, certamente, celebrar sua independência com respeito à natureza, porém não se livraria do sentimento de temor, da angústia produzida por sua força incontrolável ou superioridade face às capacidades limitadas do ser humano. De fato, o que realmente sucedeu no seio das sociedades desenvolvidas é que a angústia frente ao poder incontrolável da natureza, ou às forças irracionais no indivíduo transferiu-se à própria máquina como sua expressão simbólica.6

O que Subirats chamou angústia – e que tentamos caracterizar como ansiedade

no segundo capítulo – marca a tônica de uma humanidade que começa a questionar o

próprio rumo que a cultura vem tomando. Esta ansiedade, em larga escala, está ligada à

fragilização do indivíduo, decorrente da contraposição entre razão e sensibilidade.

Podemos, inclusive, entender como fruto deste conflito, a dificuldade que temos atualmente

para compreender o que está acontecendo no mundo. Este, bem como a própria existência,

tornam-se incertos. Esta incerteza realimenta, por sua vez, a ansiedade que o homem

experimenta. Deste modo, a fuga deste ciclo bem poderia se efetuar mediante o diálogo

entre inteligível e sensível, com a conseqüente ampliação da razão. Neste sentido, o homem

que reprime sua dimensão sensível na pretensão de seguir, invariavelmente, os apelos que

lhe faz seu intelecto, deixa de considerar um importante aspecto de sua vida, estando

fadado, em nossos dias, à ansiedade. Buscando resolver tal ansiedade, o homem

contemporâneo, incerto de seus valores e inseguro quanto à sua capacidade, acaba por

buscar em agentes externos os guias ideais para seu caminho. Em larga escala isto

5 Da Vanguarda ao Pós-moderno, p.43. 6 Eduardo Subirats, Da vanguarda ao pós-moderno, p.43-44.

132

explicaria o atual refortalecimento de igrejas salvacionistas que propõem, ao mesmo tempo,

valores morais e uma ordem transcendente, e ainda a sujeição aos ditames da publicidade

que procura vender produtos que confeririam ao seu portador uma identidade, um status ou

uma qualificação. Ronda o perigo de uma nova Idade Média. O homem contemporâneo

lenta e perigosamente vai, cada vez mais, abrindo mão das valiosas propostas iluministas de

emancipação. A cristalização na intelecção gera um afastamento da liberdade que pode

resultar do uso da razão plena. É este entendimento de razão que leva Rouanet7 a defender

o Iluminismo como

a proposta mais generosa de emancipação jamais oferecida ao gênero humano. Ela acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstição. Propôs ideais de paz e tolerância, que até hoje não se realizaram. Mostrou o caminho para que nos libertássemos do reino da necessidade, através do desenvolvimento das forças produtivas. Seu ideal de ciência era de um saber posto a serviço do homem, e não o de um saber cego, seguindo uma lógica desvinculada de fins humanos. Sua moral era livre e visava uma liberdade concreta, valorizando como nenhum outro período a vida das paixões e pregando uma ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo estado, o fiel não fosse oprimido pela religião, e a mulher não fosse oprimida pelo homem.

Entenda-se: a proposta fundamental do Iluminismo, a do uso da razão como

condição de uma vida autônoma, deve ser mantida. Todavia, baseada numa ampliação do

conceito mesmo de razão.

Devemos atentar, ainda, para o outro lado da questão: aquele indivíduo que

abdica dos processos inteligíveis e torna-se, desta forma, refém de sua dimensão sensível.

Esvai-se, neste caso, a própria possibilidade de a razão se exercer. Perde-se, pois, uma

condição básica para a liberdade. E abandonar a liberdade possibilitada pelo uso da razão

plena é preparar o homem para a submissão a qualquer tipo de autoridade externa. Como

explica Jaspers8,

7 Op. cit., p.27. 8 Op. cit., p.77.

133

com o abandono da liberdade da razão, a antifilosofia prepara o homem para a escravidão política. No declive mítico, faz naufragar o conhecimento da liberdade. Ensina o homem a retirar-se para o terreno da indiscutibilidade de uma fé irracional. Depois, quando não se vive mais da liberdade, em breve não se sabe mais o que ela é. E porque nos sentimos vazios, porque perdemos a nós mesmos e à verdade, queremos, em nosso temor, ser subjugados. Sem percebê-lo, ao renunciar à razão, renuncia-se também à liberdade. Estamos prontos para qualquer totalitarismo, e seguimos, em comum com o rebanho, o carneiro-guia, para a desgraça, o crime e a morte vergonhosa.

Certamente há de se concluir que inteligível e sensível são dois importantes

aspectos da vida e que precisamos aprender a deixá-los em bons termos. A questão,

portanto, não é a identificação da razão com a experiência inteligível, mas a identificação

da razão com o diálogo entre inteligível e sensível. Não será esta a razão a qual Kant se

referia? Como Rouanet nos explica, “o lema sapere aude refere-se à razão em seu sentido

amplo, e não exclusivamente à razão científica”9. O mesmo autor completa, logo em

seguida que

sem razão não há emancipação, e sem emancipação não há razão. Nesse sentido, não há por que opor Kant a Kant. Mas razão não é sinônimo de razão tecno-científica. Um logos mutilado não oferece nenhuma garantia de emancipação. Não há pior irracionalismo que o conduzido em nome de uma razão científica que usurpa as prerrogativas da razão integral.10

Igualmente grave é o fato de que, levado a cabo o projeto de uma sociedade

racional a partir de um entendimento restrito de razão, negou-se também uma saída

construtiva para os instintos reprimidos sobre os quais repousam nossa civilização. Esta não

é uma situação que pode ser mantida sem graves conseqüências individuais e coletivas.

Como permitir que estes impulsos se manifestem sem ruir as próprias bases da nossa

civilização? Há aqui de se apontar a própria arte como um meio de acessar simbolicamente

dimensões que nossa capacidade inteligível não é capaz de atingir. A arte surge então como

uma tentativa de examinar e compreender a condição humana. Cabe, portanto, a seguinte

reflexão:

9 Op. cit, p.209. 10 Ibidem, p.210.

134

terá a arte um papel a desempenhar na evolução do homem e da humanidade? Deverá a estética assumir uma função política? Kant respondia negativamente a estas duas perguntas, de acordo com os próprios princípios de sua filosofia. Schiller responde resolutamente de forma positiva. Considera ele, de maneira muito moderna, que a criação artística autônoma é também um fator de transformação da sociedade. 11

Para que não reste nenhuma sombra de dúvida: não se pretendeu, aqui, afirmar

que sobre a experiência estética deve recair a responsabilidade de garantir, no futuro, a

solução dos problemas da nossa cultura. Deve-se, entretanto, resgatar o potencial de

contestação da arte como aliado na construção de um novo entendimento de existência e,

em última instância, de razão. Se a questão passa a ser a contestação do instituído,

aparentemente não existe nada mais subversivo do que falar em experiência estética ou, em

outras palavras, em beleza como uma forma de conhecimento e de formação do homem

contemporâneo. A valorização da experiência do belo na arte não é um afastamento do

senso crítico; a experiência estética, encarada como possibilitadora da razão é também uma

condição da gênese da razão ampla e, conseqüentemente, do senso crítico. Pois anterior a

esta razão maior é a necessidade de a intelecção estabelecer um diálogo com o sentimento.

E a experiência estética, que permite o acesso a dimensões não redutíveis à linguagem

conceitual e à lógica, parece ser a condição desse diálogo.

Enfim: como colocar em prática as propostas que se enfileiraram nas páginas

precedentes? Esta não é uma pergunta de fácil resposta. Podemos, entretanto, entender que

este projeto só pode ser fruto da valorização de uma nova mentalidade que aspire à razão

plena enquanto possibilidade e se lance à busca dos meios para sua conquista. Esta

valorização deve partir do nosso mundo da vida, das nossas relações sociais para atingir

dimensões mais amplas, proporcionadas por um projeto político que saiba dar valor a um

projeto educacional baseado nesta mesma mentalidade.

Tentamos apresentar aqui uma hipótese na qual estivesse contemplado o

aumento da consciência de nossas responsabilidades perante os outros e, em última

11 Marc Jimenez, op. cit., p.161.

135

instância, da responsabilidade em relação ao nosso próprio planeta. Sem dúvida, trata-se de

uma proposta utópica. No entanto, como Regis de Morais12 confessa, “sinto que, nos dias

atuais, estamos colocados frente a um trágico dilema: a utopia ou nada. Não vislumbro

como discutirmos nossas possibilidades futuras, nem vejo como debatermos as questões

ecológicas sem a recorrência ao pensamento utópico.” Há, porém, que se distinguir entre a

utopia e a fantasia alienante.13 “Consideramos utópicas todas as idéias situacionalmente

transcendentes (não apenas projeções de desejos) que, de alguma forma, possuam um efeito

de transformação sobre a ordem histórico-social existente”14 É na simples possibilidade de

efetuar, de fato, uma transformação que reside a diferença entre a utopia e uma fantasia

alienante. A utopia nos transporta em direção a possibilidades distintas, apontando para

uma negação daquilo que já é instituído ou está prestes a se instituir. Por isso, conclui Regis

de Morais15 que

acusar o pensamento utópico de falta de realismo é não haver compreendido suas colocações. Não podemos julgar uma utopia pelo seu grau de realismo. Devemos julgá-la, isto sim, pelo seu grau de negação da realidade e pela sua capacidade de motivar mudanças.

Ligada à própria crítica da modernidade aparece, portanto, uma vontade de

mudança, fruto da insatisfação gerada por uma cultura desenvolvida de forma

desequilibrada.16

Por fim, vale apontar que existe, no nosso atual momento histórico, no mínimo

dois grupos de distintas previsões; ainda estamos expostos ao otimismo de pensadores que

vêem, no devir da cultura, um futuro no qual os valores até aqui construídos pela nossa

sociedade moderna podem nos livrar da aparente irracionalidade de seus fenômenos

objetivos, ao mesmo tempo em que aumenta, cada vez mais, o número dos defensores de

12 Ecologia da mente, p.73. 13 “De minha parte, estou muito de acordo com... o sociólogo Karl Mannheim, quando este garante existir radical diferença entre fantasia alienante e utopia.” (Regis de Morais, op.cit., p.75.) 14 Karl Mannheim apud Regis de Morais, op.cit., p.75. 15 Regis de Morais, Filosofia da ciência e da tecnologia, p.125-126. 16 Afirma ainda Regis de Morais: “há um desejo, uma vontade real e perceptível de mudança, talvez decorrente do imenso cansaço com um mundo desequilibradamente desenvolvido: com ciência e tecnologia avançadíssimas nas mãos de pigmeus.” (Ecologia da mente, p.78-79).

136

uma visão apocalíptica baseada, principalmente, na gravidade das questões sociais,

ecológicas ou individuais, que refutam completamente a possibilidade de a ordem instituída

mitigar os conflitos da nossa civilização. Mesmo esta visão apocalíptica não está isenta de

ser utópica; ela encerra um chamado por novos valores que sejam capazes de reverter o

processo que nos levou à eclosão da presente crise mundial. Freqüentemente se aponta a

arte como fundamental para esta renovação de valores. Nesta direção, argumenta Herbert

Read17, para quem o

processo de renovação numa civilização já estabelecida é realizado pelos artistas, e é por isso que a vitalidade de uma civilização depende sempre do funcionamento livre do processo estético. É por esse motivo que uma civilização sem arte perece e uma civilização tecnológica perecerá a menos que possa arranjar uma saída, ou melhor uma entrada, para o espírito formador da imaginação.

A faculdade estética deve, portanto, ser estimulada e educada; não há que se

deixá-la atrofiar. Através das portas da percepção esta faculdade é possibilitada; através do

diálogo com a intelecção ela ajuda a gestar a razão estética.

A vontade de um futuro diferente está vinculada à ação no presente. No entanto,

o homem, ao olhar para o presente, vê-se impelido à ansiedade pelo confronto com suas

responsabilidades. Imaginávamos que o poder sobre a vida e o rumo da sociedade estava

colocado na mão da razão e bastava, ao homem, o desejo de usá-la. Percebemos, junto com

Freud, que não basta desejar, deve-se conquistar o controle sobre a própria vida através da

conquista da razão. É hora de percebermos que nossas responsabilidades não terminam no

que tange os rumos da nossa própria vida. Devemos, sim, entendê-las como cruciais para a

sobrevivência da própria civilização. E em direção a este alvo convém disparar-se as setas

de uma razão estética.

17 A redenção do robô, p.100.

137

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo:

Brasiliense, 1981. _____________. O enigma da religião. Campinas: Papirus, 1984. _____________. A gestação do futuro. Campinas: Papirus, 1987. BEARDSLEY, Monroe C. “Aesthetic Experience Regained”. In The journal of aesthetics

and art criticism, Vol. 28, No. 1. (Autum, 1969), pp.3-11. BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido:

a orientação do homem moderno. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1991. CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.

São Paulo: Martins Fontes, 1994. DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia?. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca LDTA,

1973. DUARTE JR., João Francisco. O que é Beleza. São Paulo: Brasiliense, 1986. _____________. Fundamentos estéticos da educação. Campinas: Papirus, 1988. _____________. Itinerário de uma crise: a modernidade. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1997. _____________. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba: Criar, 2001. DUFRENNE, Mikel. O poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. _____________. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2004. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2005. FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte, Dor: Inquietudes entre Estética e Psicanálise. São

Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

138

GALILEI, Galileu, “O Ensaiador”, In Bruno, Galileu, Campanella (Coleção “Os Pensadores”), São Paulo: Abril Cultural, 1978. HERMANN, Nadja. “Razão e Sensibilidade: Notas Sobre a Contribuição do Estético Para a

Ética”. In Educação & realidade, v.27, n. 1 Janeiro/Junho de 2002. Porto Alegre: FACED / UFRGS

ISER, Wolfgang. “O ressurgimento da estética”. In: Denis L. Rosenfield (org.) Ética e

Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. JASPERS, Karl. Razão e anti-Razão em nosso tempo. Rio de Janeiro: textos de Filosofia

Contemporânea – MEC, 1958. JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo, RS: UNISINOS, 1999. JONES JR., R.L., “Phenomenological balance and aesthetic response”, In The journal of

aesthetic education, Vol. 13, No. 1. (Jan., 1979), pp.93-106. KANT Immanuel, “What is Enlightenment”, In: Contemporary Civilization Staff /

Columbia College (org.). Contemporary civilization reader. American Heritage Custom Publishing, 1994

LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva, 1971. _____________. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980. LAPLANCHE, L., PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. Santos: Martins Fontes,

1970. LASCH, Christopher. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo:

Brasiliense, 1986. LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003. _____________. O sentido do corpo . In IHU on-line, Ano 4 – No. 110, 9 de agosto de

2004. [original revista Construire, No19, 9 de Maio de 2000]. LUIJPEN, W. Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: EPU (Ed. Da

Universidade de São Paulo), 1973. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998. MATTÉI, Jean-François. “Civilização e barbárie”. In: Denis L. Rosenfield (org.) Ética e

Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.

139

MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas: 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MORAIS, J. F. Regis de. Filosofia da ciência e da tecnologia. Campinas: Papirus, 1988. _____________. Arte: a educação do sentimento. São Paulo: Ed. Letras &Letras, 1992. _____________. Ecologia da mente. Campinas: Editorial Psy, 1993. MORIN. Edgar. Ciência com consciência. Portugal: Publicações Europa-América, 1990. _____________. O método 4: as idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998. _____________. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegra: Sulina,

1999. _____________. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. MORIN. Edgar, WULF, Christoph. Planeta: a aventura desconhecida. São Paulo: Editora

UNESP, 2003. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. READ, Herbert. A redenção do robô. São Paulo: Summus, 1982. RODRIGUES, Antonio E. M., FALCON, Francisco J.C. A formação do mundo moderno: a

construção do ocidente dos séculos XIV ao XVIII. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. ROUANET, Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SABATO, Ernesto. Nós e o universo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. _____________. Homens e engrenagens. Campinas: Papirus, 1993. _____________. O escritor e seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: Ed.

Unesp, 1996. SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2004. SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1984. _____________. Paisagens da solidão: ensaios sobre filosofia e cultura. São Paulo: Duas

Cidades, 1986.

140

_____________. A cultura como espetáculo. São Paulo: Nobel, 1989. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo