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UM ESPINHO DE MARFIM e outras histórias

Marina Colasanti

Como uma rainha de Micenas

Tendo falecido a esposa muito amada, desejou que partisse para a última viagem com o fausto de uma rainha. Rodeou-lhe o

 pescoço de gargantilhas e colares que desciam sobre o peito ocultando as vestes. ncheu-lhe de an!is os dedos que n"o mais

dobrariam falanges. brincos, pulseiras, enfeites cobriram aquele corpo agora mais resplandecente do que em vida. #epois,

 para que nada lhe faltasse na longa travessia, depositou ao seu redor jarros, pratos, taças, talheres do mais puro ouro, semesquecer pentes e um espelho para a sua vaidade.

$ id!ia de apartar-se da esposa para sempre era-lhe, por!m, insuport%vel. &uerendo-a pelo menos ao alcance da suasaudade, mandou construir no canto mais frondoso do jardim uma capela, em cuja cripta de p'rfiro abrigou o esquife,

separado dele apenas por um port"o(inho de ferro batido.

, disposto a enfrentar o luto intermin%vel, começou o aprendi(ado de uma nova vida em que a vo( amada n"o ecoaria.

Talve( justamente devido a esse sil)ncio, cedo surpreendeu-se com a rapide( com que aprendia.$ vida parecia-lhe de fato mais nova a cada dia. *em bem um ano tinha-se esgotado, quando lhe ocorreu que, como ele

tanto havia avançado, tamb!m a esposa teria a essa altura cumprido parte de sua viagem. +elo que j% n"o lhe seriamnecess%rias algumas das coisas que consigo levara para uso simb'lico. m ranger de ferros, entrou na cripta e selecionou

uns poucos pratos, um frasco, sem dúvida devidamente usados no al!m.

#esse modo, foi sucessivamente recolhendo os objetos de ouro que, gastos pela defunta e j% sem serventia para ela,afiguravam-se como muito proveitosos para si. m garfo hoje, uma taça amanh", um pente agora, um jarro depois, acabouenfim chegando s j'ias pessoais.

 *a semi-escurid"o da cripta, pulseiras e adereços brilhavam frouamente, folgados os an!is nos dedos descarnados, pousada ainda a tiara sobre a fronte. /'ias demais, pensou ele contrito. 0em dúvida, nada condi(entes com uma mulher que,

onde quer que se encontrasse, estaria entrando na velhice. $ssim pensando, retirou as mais pesadas. 1oltando tempos depois

 para buscar as menos comprometedoras. por último as insignificantes. $t! chegar ao despojamento total.

 *o esquife, agora, restava apenas o espelho de ouro. Mas de que serve um espelho para uma mulher simples e velha, j%despida de vaidades2, perguntou-se.

Tendo pronta a resposta, pegou o espelho pelo cabo, e saiu sem fechar o port"o atr%s de si.

 A moça tecel

$cordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atr%s das beiradas da noite. logo sentava-se ao tear.

3inha clara, para começar o dia. #elicado traço cor da lu(, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto l% fora a

claridade da manh" desenhava o hori(onte.

#epois l"s mais vivas, quentes l"s iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.0e era forte demais o sol, e no jardim pendiam as p!talas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cin(entos do algod"o

mais felpudo. m breve, na penumbra tra(ida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordavasobre o tecido. 3eve, a chuva vinha cumpriment%-la janela.

Mas, se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os p%ssaros, bastava a moça tecer comseus belos fios dourados para que o sol voltasse a acalmar a nature(a.

$ssim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para tr%s, a moça passava os seus dias.

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 *ada lhe faltava. *a hora da fome tecia um lindo peie, com cuidado de escamas. eis que o peie estava na mesa, pronto

 para ser comido. 0e sede vinha, suave era a l" cor de leite que entremeava o tapete. noite, depois de lançar seu fio de

escurid"o, dormia tranq4ila.Tecer era tudo o que fa(ia. Tecer era tudo o que queria fa(er.

Mas, tecendo e tecendo, ela pr'pria troue o tempo em que se sentiu so(inha, e pela primeira ve( pensou como seria bom

ter um marido ao lado. *"o esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as l"s e

as cores que lhe dariam companhia. aos poucos seu desejo foi aparecendo, chap!u emplumado, rosto barbado, corpo

aprumado, sapato engraado. stava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram  porta.

 *em precisou abrir. 5 moço meteu a m"o na maçaneta, tirou o chap!u de pluma, e foi entrando na sua vida.$quela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua

felicidade.

feli( foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. +orque, descoberto o poder 

do tear, em nada mais pensou a n"o ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

- ma casa melhor ! necess%ria - disse para a mulher. parecia justo, agora que eram dois. igiu que escolhesse as mais belas l"s cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.Mas, pronta a casa, j% n"o lhe pareceu suficiente.

- +ara que ter casa, se podemos ter pal%cio2 - perguntou. 0em querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra comarremates em prata.#ias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e p%tios e escadas, e salas e poços. $ neve ca6a l% fora,e ela n"o tinha tempo para chamar o sol. $ noite

  chegava, e ela n"o tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes

acompanhando o ritmo da lançadeira.

$final o pal%cio ficou pronto. , entre tantos c7modos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta

torre.- para que ningu!m saiba do tapete - disse. , antes de trancar a porta a chave, advertiu8

- 9altam as estrebarias. n"o se esqueça dos cavalos:0em descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o pal%cio de luos, os cofres de moedas, as salas decriados. Tecer era tudo o que fa(ia. Tecer era tudo o que queria fa(er.

, tecendo, ela pr'pria troue o tempo em que sua triste(a lhe pareceu maior que o pal%cio com todos os seus tesouros.  pela primeira ve( pensou como seria bom estar so(inha de novo.

0' esperou anoitecer. 3evantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas eig)ncias. descalça, para n"o fa(er 

 barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

#esta ve( n"o precisou escolher linha nenhuma. 0egurou a lançadeira ao contr%rio e, jogando-a velo( de um lado para o

outro, começou a desfa(er seu tecido. #esteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. #epois desteceu oscriados e o pal%cio e todas as maravilhas que continha. novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim al!mda janela.

$ noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. *"o teve tempo de se

levantar. la j% desfa(ia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus p!s desaparecendo, sumindo as pernas. R%pido, o nada

subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chap!u.nt"o, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. foi passando-a devagar entre os fios, delicado

traço de lu(, que a manh" repetiu na linha do hori(onte.

 Para sentir seu le!e "eso

;uardava o rouinol numa caiinha. Tudo o que queria era andar com o rouinol empoleirado no dedo. Mas, se abrisse a

caiinha, ah: certamente fugiria.

nt"o amorosamente cortou o dedo. , atrav!s de uma m6nima fresta, o enfiou na caiinha.

 O "assarinho

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Começou di(endo que tinha um passarinho na cabeça. &ueiava-se. 5 passarinho batia asas, a cabeça do6a.

 *ingu!m lhe deu atenç"o.+arou at! de se queiar. ;emia, conversava com o passarinho que a habitava. Morreu sufocada, o nari( entupido de alpiste.

 Menina de !ermelho a caminho da #ua

sta ! uma hist'ria que n"o quero contar, uma pequena hist'ria sem fatos, espessa como um m)nstruo, que n"o pretendoassumir. Tentei livrar-me dela, afund%-la e ao fastio que me causa. *"o consegui. #esnecess%ria como !, ainda assim

insiste em eistir. 9oi por isso que botei um anúncio no jornal. #i(ia8 <+rocura-se narrador. igem-se mod!stia e pra(er 

descritivo. +agamento a combinar. +rocurar... endereço... etc!tera<.

0' um apresentou-se. Teria preferido, me caberia melhor, fosse mulher. Mas n"o tive escolha, fiquei com ele. =omem e um pouco ineperiente, me vi obrigada a insistir na minha vontade, concis"o de estilo e docilidade nos ramos. a vesti-lo com

nova roupagem. > assim, pois, de saia rosa e lenço nos cabelos, que o apresento8 m"e de duas filhas pequenas que poucoir"o agir, levando-as para brincar num parquinho de divers?es, s%bado tarde, naquela eata tarde, naquele eato momento

em que a hist'ria quer acontecer, e onde ele se torna, por contrato e escolha, seu respons%vel.5 parque, instruo meu s'cio, ! pequeno, nem se poderia a rigor cham%-lo de divers?es, porque lhe faltam cores e aquela

m6nima alegria necess%ria ao divertir. Tem poucos jogos. m carrossel movido a h!lice, esp!cie de ventilador giganteinstalado ao alto em armaç"o prec%ria. a grande bolha de pl%stico. *"o quero que descreva como a luminosidade batia, se

de chapa ou de lado, e n"o precisa perder-se em consideraç?es rom@nticas sobre a decad)ncia dos parques. &uero apenasque d) a entender, atrav!s da h!lice, talve(, a pobre(a algo s'rdida do lugar. , por favor, n"o comece com refer)ncias

temporais.

<+ena ter vindo de sand%lias de salto alto, pensei sentindo a poeira infiltrar-se entre os dedos, viscosa pasta de suor sobre a

sola. inutilmente sacudi o p!. $s meninas corriam adiante, indecisas entre os brinquedos, prontas para pedir um e outro,ecitadas com a possibilidade de ganhar mais do que o previsto. *"o havia muito na verdade. *o espaço espremido entre

dois muros, terreno baldio que aos cantos abrigava capim e cheiro de urina, girava um carrossel sem cavalos, tocando ah!lice assentos de caiote. Canoas, p)ndulo de correntes, cortavam o ar em foice. *o  stand de tiro, os alvos picotados

lembravam fome de ratos. , ao redor de um cercado, caniços com barbante esperavam pescadores da sorte para fisgar 

chaveiros e canecas de pl%stico. $o fundo, por!m, a grande bolha inflada era atraç"o que valia seus tr)s reais.<

 *"o valori(e demais a bolha. la ! velha e suja como tudo mais ali, visivelmente comprada j% gasta, de outro parque maior. cuidado com os lugares-comuns, <cortar o ar< n"o ! bom, voc) poderia ter usado uma forma mais nova. *em precisa de

tanta delicade(a. melhor di(er mijo do que urina, sobretudo nesta hist'ria. Mas vamos em frente. 1oc), a m"e, quer pagar  para que as filhas possam entrar na bolha e pular, ! para isso que a bolha serve. +rocura, n"o v) bilheteria, chama, bate

 palmas. 1em um homem. u sei que voc) gostaria de descrev)-lo, um velho, ou um homem assim e assado, de olhar meio

enviesado, e baiinho. Mas eu n"o quero. +or enquanto permito apenas que diga que tinha as calças amarradas de corda. o

quanto basta.<Aranca e amarela, com visores transparentes. 5u sujamente branca, com remendos. $ssim seria a superf6cie lunar, imenso

colch"o inflado onde a perna afunda, debaio da redoma de uma bolha. +orque assim estava escrito8 B+ise na 3ua por RD,EEB. eu, querendo pagar a viagem das minhas duas astronautas, procurei a bilheteria, falso

 quiosque em meio quele nada, e n"o encontrando ningu!m voltei tentando atrair a atenç"o pela simples presença. =avia

t"o pouca gente no parque. +ensei em chamar, bater palmas, mas constrangida com a id!ia do meu pr'prio alarido fiquei

ali parada junto s meninas, olhando em volta com ar que pretendia autorit%rio, mas que sabia apenas desamparado. 0eriado parque o homem que vinha sem me olhar, mais preocupado em segurar as calças2<

 *"o sei por que voc) omitiu o detalhe da corda. > forte, marca bem a personagem. sse seu <segurar as calças< di( pouco,

dilui. n"o se alongue tanto. 5 leitor quer clima, press"o. squeça as descriç?es. 1amos, agora ponha suas filhas na bolha.<Cabeça enviesada como um ovo no ninho dos ombros, recebeu meu dinheiro sem sorrir. empurrando um pl%stico...<

+%ra, p%ra. *"o quero ele s!rio. #e jeito nenhum. Troque isso. fundamental. 5 homem sorri, ri estranhamente o tempo

todo, de uma forma adulcorada. di( coisas que voc) n"o entende. Tem um ar maligno, matreiro, ou talve( servil, escolhavoc) a palavra melhor, mas sorri sempre, com falsa bonomia. <Cabeça enviesada como um ovo no ninho dos ombros,

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estendeu a m"o sorrindo em busca do dinheiro. 3evantou um pl%stico mais solto, branca l6ngua sobreposta, e forçando com

os braços abriu o talho da bolha.<

<Aufido, siroco pesado de suor. ste era o h%lito da 3ua. scapava pelos l%bios eangues da fenda, encobria em uivo as palavras que o homem di(ia gesticulando, epondo a boca, nari( encrespado. &ueria as horas2 $pontei para o rel'gio.

estava aos berros tentando responder naquele corredor de vento, quando a m"o, seca, agarrou de repente o braço da minha

menina.< Muito bem, gostei dessa m"o introdu(indo o desejo. 0' n"o sei o que voc) vai fa(er com ela, o que ela pretende.Resolva, mas lembre-se de que suas filhas n"o s"o personagens.

<Menina que j% entrava. puando-a de volta desli(ou para a perna, fechou-se no joelho, a outra m"o j% pronta em garra

alcançando o torno(elo. <> para tirar os sapatos - ouvi enfim enquanto ele desafivelava as sand%lias, e empurrando a pequena para dentro vedava talho e vento - s' pode entrar descalça, sen"o rasga o pl%stico.<

Ftimo, as duas est"o afinal brincando, isoladas na bolha, seguras. +ode dei%-las l%, por enquanto. *"o vamos precisar delas. Mas, atenç"o, voc) n"o tinha reparado, a teu lado, olhando pelo visor as tuas filhas que pulam, est% uma menina. #e

vermelho, um tom carmim, vestida com uma malha, descalça. dentes cariados. Tem GE anos. Cuidado com essa idade,

 porque o olhar dela tem mais. +equenos seios. la quer entrar na bolha. &uer muito. n"o tem dinheiro. Mas quer, e vai ter 

que pagar de outro jeito. la sabe disso. 1oc), n"o.

<Rolam, afundam rindo as duas na pouca gravidade do colch"o ondeante, braços abertos, passos embriagados, gritos presosem curva na redoma. Mas n"o sou s' eu, m"os espalmadas sobre o visor fosco, que acompanho a viagem das meninas. $meu lado ela tamb!m olha gulosa.<

</% estava no parque quando cheguei, figurinha vermelha brincando com outras crianças nas canoas volantes. #e( anos

talve(, de longe mais. 5 carmim do batom pesa nos l%bios, mas os seios ainda n"o s"o seios, e a cintura no alto espera

crescimentos. +or que tem uma m%scara vermelha levantada sobre a testa, se o carnaval j% passou2 $ tela encerada, recortadaem folhas, esmaga mechas úmidas, e como uma borboleta pousada ao acaso se contrap?e ao rasgado dos olhos. *"o parece

sentir frio, eposta na malha

 curta. 5lha levantada sobre a ponta dos p!s, o corpo todo encostado superf6cie curva, as coas nuas coladas contra a

 bolha, enquanto a boca se abre amolecida de vontade.< st% ali ao teu lado, e voc)s duas n"o t)m nada a ver uma com a

outra. Mas ! uma criança. *"o esqueça disso, ela vai ser criança o tempo todo, apesar do que vier a acontecer. comocriança se aproima da m"e que voc) !, procura apoio, ou quem sabe, uma possibilidade de conseguir dinheiro. <mamenina, como as minhas. &ue me olha e sorri corada, ou maquilada2 di(endo pequenas coisas sem peso, coisas a que

respondo mais com a atenç"o do que com palavras, porque n"o temos muito a nos di(er. ma menina que n"o ! minha, e

que logo abandono car)ncia de assunto, caladas as duas, prolongando o sorriso e desviando aos poucos a cabeça, fingindo

que j% n"o nos olhamos mais.< 1oc) n"o a olha diretamente para n"o se envolver, para n"o ter que inclu6-la no teu s%bado,

elemento estranho, fora das previs?es. Mas tamb!m n"o a larga. #ebruçada sobre a esquina do teu pr'prio olho, sorrateira e

vora(, voc) a acompanha sorvendo aos poucos, em lento entendimento, a metamorfose sem saltos em que um novo jogo seinicia.

Comece a moviment%-la. $faste-a, traga-a de volta. *"o a deie ficar parada. Menina, ela vai ao espaço do parque, ao

encontro dos brinquedos. Mulher, vem para junto do seu desejo, forjando a chave que ir% satisfa()-lo.

<u a vejo, por!m, quando esquecida da bolha corre breve. 1ai ao carrossel, que gira sem crianças. n"o podendo entrar o

acompanha por fora, m"o encostada apenas no rendado da cerca, rosto erguido em perfil. 5s p!s em trote, volteia lentamente

ao compasso gritante, cavalinho mais gracioso do que aqueles enfeitados de espelhos, que o carrossel j% teve em diasmelhores. Mas n"o demora muito. 0eu corpo tem urg)ncias, tempos mais r%pidos que o um-dois-tr)s da valsa. Corre,

debanda, sacode a leve crina. , olhando a 3ua de longe, se abaia, cata uma tala de pau esquecida e a atira com viol)ncia

contra o muro.< Hsso, ela est% mordendo o freio. 5 corpo dela relincha, se empina, se estica. la galopa ao redor,

 preparando-se. logo, abaiada a cabeça, manso o passo, vem buscar sua grama mais verde. < a pressinto de volta,

tra(ida devagar pelo desejo, chegando-se em rodeios, como se por acaso. +7s o rosto mais manso, o olhar lavado, fe(

infantil o queio.<<1em ao visor primeiro. Como antes, levanta o corpo sobre a curva dos p!s, e s' agora percebo que n"o ! necess%rio, baio

o olho transparente que devassa o interior da bolha. Mas encostada assim, t"o debruçada, n"o se interessa pelo jogo infantil

das duas meninas. 5lha atrav!s, de lado, para o homem.< > a hora da primeira tentativa. la n"o tem muita esperança de

conseguir, mas vai tentar. a maneira de testar o velho, de di(er eu quero. Hnvente um di%logo. Areve, porque n"o ! com

 palavras que eles se entendem. Mas o quanto baste para marcar o primeiro toque. < logo, lenta, fingindo indiferença,

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enroscando nas pernas cada avanço, se aproima da entrada. $ m"o se esgueira por baio da l6ngua de pl%stico.< 0e

esgueira n"o, se enfia, se mete, se introdu(. <$ m"o se enfia por baio da l6ngua de pl%stico, a coa avança devagar tra(endo

os quadris, o corpo todo força disfarçado as beiras do talho, tentativa de varar.<<- *"o pode - di( o homem em vo( baia, sem sair do lugar. ela se sobressalta estendendo-lhe um riso.<

<- 0' no pr'imo giro - di( ele, e mostra dentes. - #epois das outras duas que est"o l% dentro.<

 Tudo ! muito t)nue ainda, muito impreciso. dif6cil ver aquilo que, por proibido, se esconde. Mas aos poucos, sedu(ida,voc) v). *a maneira que eles t)m de quase n"o se olharem, no jeito espiralado dela, voc) v). 0eja bem claro agora. *"o !

hora de ficar rebordando estilo. $ coisa ! simples8 um homem e uma menina enovelando um desejo. mpine os dois, d)

linha a eles. T)m bem com que se enrolar. Mas trabalhe mais a menina. &uero que seja ela a primeira, a mais forte, a docearanha.

<1em a menina em passos lentos, fiando ao redor do homem a seda com que prender% seu olhar. +%ra, estica uma perna,

arqueia a linha descalça do p!, e com unhas de esmalte traça espirais na poeira do ch"o. 9incada como um compasso, a outra

 perna ! eio do corpo macio. *"o o encara. $jeita a m%scara com dedos em ponta, afofa cachos ineistentes. #epois, num

repente, baia a viseira rubra sobre o rosto, e entre frestas condu( o brilho verde dos olhos at! cravar o alvo, atenç"o do

homem que a ela se ata. > agora, bem segura a ponta da meada, que ela desce o queio no peito marcando de leve um

sorriso, e lentamente começa a girar.< *"o, n"o era voc) que eu queria para contar esta hist'ria. &uisesse assim t"o delicada,eu mesma escrevia. +rocurei, porque precisava de algu!m que quisesse fermentar esterco, adubar um fato vil. vem voc) a6

com essa tapeçaria medieval, se esgueirando entre palavras, mascarando com imagens. vergonha2 incompet)ncia2 5

que ! isso que voc) tem2 m narrador profissional com medo de uma menina. Mas a menina est% sedu(indo um velho

 porque quer pisar na 3ua. 1) se p?e isso na tua cabeça. se passa isso para o teto. <9irme, desenhando seu pr'prio

movimento em vinco fundo no ch"o, roda sobre si mesma e fecha o c6rculo. $t! dar-lhe as costas.<< de costas, empinados quadris, que espera a gula dele depositar-se em visgo sobre as pernas. *"o tem pressa. Chupa o

dedo, finge roer as unhas, quati de dentinhos cariados. #eia que ele lhe estude bem a pele, que afunde o olhar na concha

rosa, reverso do joelho, que suba denso, palmilhando as coas, que se embrenhe um instante. 0' ent"o, súbita e recatada,

 pua para baio o c's vermelho da malha, em defesa de pudores. levantando a cabeça me sorri, rostinho aberto.<

+ronto, agora voc) pode ficar com vergonha. $ m"e est% vendo, e n"o fa( nada. +oderia chamar a menina, conversar, pagar a entrada dela. Mas isso seria reconhecer que sabe o que est% se passando, que o tempo todo, enquanto ela se jogava no perigo, voc) desenhava atenta aos detalhes, afiava a ponta do seu l%pis na linha dos olhos, na pose do p!, mais interessada

em roubar o fato do que em evit%-lo. $gora ela sorri para voc), bem criança. *"o quer te agradar. &uer teu %libi. 0orrindo

de volta voc) est% assinando seu atestado de inoc)ncia, afirmando que sim, ela ! uma criança igual s outras, uma boa

menina que merece teu carinho. nada do que voc) viu aconteceu. voc), sem forças, sorri. <ma menina como as

minhas, brincando s%bado tarde no parque de divers?es. ma menina de coas gordas que pede o meu sorriso. > isso que

estou vendo, s' isso. *"o h% por que esta secura na boca, este anotar.< la n"o est% com secura. st% úmida, seivando secretaao sol do parque, presa com o homem na teia viscosa. 0ua nas ailas. +onha isso, esta palavra ailas, n"o, melhor, sovacos,

que voc) odeia ainda mais, que acha t"o 'bvia. u sei que voc) n"o quer escrever como eu mando, que j% se acha dono da

hist'ria. Mas o fato, quem tem o fato sou eu. sem mim voc) n"o tem nada para contar, sem mim, voc) n"o eiste. <ste

anotar desenhado de m%scaras e p!s. *ada, n"o h% nada sobre o que fantasiar. *enhum gesto concreto. 0' uma malha

vermelha esticada de leve sobre seios, e duas flores de pano amarradas ao pulso com uma fita. +ulso que o

  homem agora segura, sem forçar, firme apenas, debruçando-se sobre o ouvido encoberto pelas mechas. que ela lheentrega, d'cil por momentos, logo puando o braço e o corpo em riso de recusa, sacudindo do ouvido as suas palavras, mas

tra(endo no gesto a m"o escura que, r%pida, se encaia na curva da cintura.<

3eve ela embora, n"o a deie ficar muito tempo junto dele. por etapas que se insinua, avançando um pouco mais a cada

ve(, quase n"o concedendo, mas deiando crer. le n"o. 9ica parado. o centro, o poder. *"o se move, n"o se apressa. 0abeque ela vai voltar at! conseguir o que quer. tem seu preço.

<m momento, e ela j% se afasta dançante, coçando na nuca o cabelo louro, vincado pela aur!ola do el%stico. *o  stand detiro, o único cliente encostou a carabina, e concentra sua atenç"o no alvo moreno da moça do parque, encarregada das

armas. > para l% que ela vai. u a olho quando se aproima, e agatanhada se dirige ao rapa(. *"o sei o que se di(em. 1ejo

que o rapa( a segura debaio dos braços, levantando-a devagar por tr%s. $t! que ela, espremida entre o corpo dele e o

 balc"o, alcance a carabina, e encostando-a no ombro possa dar seu tiro.<

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<+ercebe o homem2 *"o parece. 0em virar a cabeça, sem procur%-la no olhar, move seus passos achatados recebendo

dinheiro dos pais que aos poucos chegam, desafivela sand%lias sorrindo, bondoso porteiro daquela 3ua que ela quer acima

de todos os brinquedos do parque, e que, ele sabe, a trar% de volta.<<#e volta vem ela, cortando em diagonal a dist@ncia. Tra( na corrida outra menina, que a segue, que a segura um instante e

logo foge, perseguida tamb!m. *"o v"o longe. *o espaço junto bolha, que agora com pais e crianças ficou subitamente

apertado, se procuram em voltas, se oferecem torcendo o corpo para escapar m"o que avança, se tocam entre gritos,tentando vencer na garantia do pique. esbarram, e tropeçam tumultuando a ordem da pequena fila j% formada, at! que o

homem abandona seu posto junto entrada, e eercendo publicamente seu papel de bom guardi"o epulsa a brincadeira.<

<$fasta-se a outra menina, enquanto ela, serena e quieta, entra, como se de direito, entre as crianças descalças que, bilhetena m"o, esperam bem-comportadas a ve( de penetrar no cosmos. *"o pede, n"o olha para ele. Aalança de leve a cabeça

acompanhando a música do parque. #epois se aquieta, a m%scara vermelha j% levantada em coroa. devagar, chamando por ele em silencioso silvo, o brilho da l6ngua descola os l%bios, hesita no canto, e segue acariciante lambendo restos de batom,

 passando, forçando, insistindo, sugando em seu pr'prio sumo escamas de carmim.<

<sgotou-se o tempo lunar das minhas meninas, que paridas entre ventos pelo talho v)m a mim afogueadas. $vança

ordenada a fila. ntre as outras crianças que, cabeça frente, mergulham no bafo quente, o homem deiar% enfim que ela

entre. Mas ser% a última, retida at! o fim, para que ele possa meter o braço na fenda fingindo ajuda, e alcanç%-la entre pl%sticos. #epois deiar% que pule seus vinte minutos no macio da bolha, grito afogado, sem sequer olhar no visor.<$gora saia voc) do parque. M"e de dever cumprido, a caminho de casa, com as filhas pela m"o. $ menina vai so(inha. +ara

ela tamb!m o s%bado acabou. 1oltar% no domingo, para colher mais onde plantou.

$cabou, se eu quiser. $g4entei at! aqui calado, engolindo teus desaforos. Mas o fim chegou, dono da hist'ria. n"o ! mais

uma hist'ria, ! um conto. 5 que ! que voc) tinha2 m fato2 Mas fato todo mundo tem, acontece a toda hora na cara dagente. 5 que

 voc) n"o tem ! vo( para contar. isso quem tem sou eu. st% a6 teu fato, como voc) viu ou inventou. Mas agora ! meu

conto, hist'ria das minhas palavras, que eu acabo como quiser.

<> tarde quando saio, levando minhas filhas pela m"o. la fica. 3% longe, na canoa que sobe esticando correntes, sua figura

vermelha sangra o ar.<

 No sil$ncio %ue o sol %ueima

 *o meio do trigal, pernas abertas, abrigava p%ssaros. ra sempre assim. Com a chegada do ver"o sentia-se f!rtil,ensolarada de desejo, m"e da terra.

deitava-se entre as hastes r6gidas, as espigas túrgidas, espera. 3ogo, pardais vinham aninhar-se entre suas coas,

fa(endo-a suspirar com a doce car6cia das asas. smagava entre os l%bios p!talas de papoulas, e gemia. 9remir de plumas,

 pequenos bicos, breves pios, del6cias. as l6nguas do sol sobre seus seios.

Mas era s' ao entardecer, quando o gavi"o em v7o desenhava c6rculos de sombra sobre o ouro, lançando-se como pedraentre suas carnes para colher o mais tonto dos pardais, que as hastes estremeciam enfim, inclinando as espigas ao supremogrito.

 Uma história de amor

;anhei a estola de peles viva. Como se tra( para casa a galinha cacarejante com as patas amarradas, assim meu marido

entrou com as duas martas. m v"o tentei enrodilh%-las no pescoço para ver como ficariam depois. ram ariscas. +ude

apenas constatar a boa qualidade do p)lo, lustroso, farto, sem estragos. tranc%-las na gaiola.

Cev%-las, disse meu marido. Hsso ! preciso. &uero v)-las bem gordas nos teus ombros fartos.

+regou as patinhas no fundo de madeira cuidando de n"o danific%-las. começou a meter-lhes comida goela abaio.Comiam elas, comia eu. &uero te ver bem roliça, di(ia, e me enchia de bombons. ma lu( acesa impedia o sono das martas.

$s noites de amor n"o me deiavam dormir. ngord%vamos. $s grades da gaiola j% vincavam os dorsos. $ cama fa(ia-se

 pequena. $ primeira marta morreu. $ outra ocupou-lhe o espaço. Comida era tudo o que v6amos. 5 tempo servido em

colheradas, arquej%vamos. $ segunda marta morreu. nt"o meu marido aproimou-se luminoso de pai"o e, cuidando de

n"o danific%-las, pregou minhas m"os no fundo da cama.

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 No dorso da &unda duna

5 sol atravessava lentamente o c!u. abaio dele, bem abaio, um emir com sua caravana atravessava o deserto. $

claridade era envolvente como um sono. Mas de repente, pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura de

um homem recortar-se no dorso de uma duna. #e um homem e de uma cabra.

&ue parasse a caravana, ordenou o emir. m homem so(inho no deserto ! um homem morto.

- Mas n"o estou so(inho, nobre senhor - respondeu o homem levado presença do emir. este, tendo logo pensado que uma cabra n"o ! companhia suficiente em meio s areias, penitenciou-se no segredo da sua

mente. Certamente aquele era um homem santo que vagava em penit)ncia, e tinha a companhia da sua f!.$ssim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. , diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns p"es e um

odre de %gua. m breve, a caravana partia.

5 homem apertou as espirais do turbante, puou uma ponta do pano sobre a boca e, acompanhado pela cabra, recomeçou a

andar.5 sol tinha refeito seu percurso muitas ve(es e estava do outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase pisoteou

o homem que dormia com a cabeça encostada na barriga da cabra. 5 primeiro cavaleiro puou as r!deas, saltou na areia. 5homem acordou num susto. 5 tropel parou.

- m homem so(inho entre as dunas ! um homem inútil - disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto. o

convidou para que se juntasse ao bando.

Mas, quando o homem recusou a oferta, acrescentando que certamente era um inútil embora n"o estivesse so(inho, o chefedos piratas achou que debochava dele, e mandou que o surrassem. 0em demora e sem ru6do, pois cascos n"o ecoam na areia,

o tropel partiu.5s ferimentos da surra h% muito haviam cicatri(ado, no dia em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho. ,

assim como ele a viu chegar com pra(er, tamb!m os peregrinos consideraram a presença daquele homem e daquela cabra

como um sinal prop6cio, e decidiram acampar ao seu lado no dorso da duna.

$rmadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. 5s peregrinos sentaram-se ao redor, acomida passou de m"o em m"o. 0' quando ela acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fa(endo no deserto.

o sol ainda n"o havia se posto, e a lua ainda n"o havia surgido, quando o homem começou a contar.=avia sido um homem pr'spero de uma pr'spera cidade, uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio ao

deserto. Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus filhos, tinha sempre gr"os na despensa, e a figueira junto porta da

sua casa a cada ano dava frutos. m dia, chamado pelos neg'cios, havia partido em longa viagem. , ao regressar, n"o

mais havia encontrado sua cidade. 0' depois de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os minaretes, as casas e a figueira. Toda a sua vida estava debaio da areia. Mas onde, na

areia2 havia começado a procurar.

- > por isso que at! hoje anda no deserto2 - perguntou o velho chefe da caravana.

 5s dentes do homem brilharam lu( da lua que j% se havia levantado.- $ndo porque ainda sou morador da minha cidade - respondeu. Hnclinou-se, encostou o ouvido na areia, quedou-se atento por alguns minutos. - =% muito os encontrei - disse, erguendo-se.0orriu novamente. *o ventre daquela duna, debaio da caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a figueira.

stavam seus filhos e sua mulher. ele podia ouvi-los a dist@ncia. $trav!s da areia que os separava, podia ouvir os gritosdos preg?es, as preces dos muezins, o riso da mulher e das crianças que certamente agora haviam crescido.

- Caminho para isso. +ara estar sempre acima deles. +ara escutar sua vida. - $s dunas - acrescentou - vagueiam pelodeserto. eu vou, acompanhando a minha.

+ouco faltava para a manh". $o alvorecer, os peregrinos partiram. Mas o vento tinha ouvido o relato do homem. a

 pr'ima caravana que por ali passou j% n"o o encontrou. $ duna soprada gr"o a gr"o havia eriçado sua crista, cobrindo o

homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes. abrindo caminho para eles, lentamente, at! seu ventre. Deserti&icaço

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5 deserto começou a infiltrar-se na casa por baio da porta, areia tangida por invis6vel sopro. $briram, espiaram o

elevador, eaminaram as escadas. *ada. *em areia nem vento. m casa, porta fechada, halitava o siroco.

$brasiva debaio dos p!s, suave concha nos cantos, a areia acumulava-se. #esapareceram as flores do tapete, secaram asfolhagens do sof%. &uando o deserto sufocou os p%ssaros da tapeçaria, nenhum verde restava na sala. 0em chuva, breve

morreria tamb!m o o%sis do quarto.

9ormada a primeira duna, o pai troue a cabra e o cabritinho amarrados de corda. ;arantiriam o leite. $ m"e, arrancandocortinas, providenciou panos, folgadas roupas, turbantes que protegiam a cabeça e a boca. 5s olhos, na claridade,

trabalhavam para descobrir entre frestas algum alimento para as cabras. noite acendiam em fogueiras o que restava dos

m'veis.Mas logo a duna começou a mover-se. #esfa(iam-se as ondas do cimo para ondularem mais adiante. ra hora de partir.

#esmontaram a tenda, amarraram as cabras, ergueram nos ombros os odres de leite. em fila pelo corredor seguiram amar! da duna. $campariam onde ela parasse. Tornariam a partir com ela, viajantes no ritmo de luas e s'is. $ssim para

sempre, acompanhados pelo balido das cabras e pela urg)ncia do vento, vida n7made que apenas começava.

 O camelo

 *"o esperava encontrar o camelo. mbora meu closet n"o tenha portas, eu n"o o tinha visto entrar. +astava os su!teres.

Compreendi a necessidade de l". Mas o di%logo era dif6cil com ele assim metido no espaço estreito, voltando-me o posterior. 0ubi num banco, galguei-lhe as costas. escorregando pela suave geografia encontrei-me no aconchego das

corcovas. 5 camelo pastava na escurid"o felpuda, o dorso ruminava entre minhas pernas. u toda envolta por peles e p)los,gordura macia, resvalei em tal beatitude que, abocanhando um chumaço de p)los do camelo, pus-me a ruminar docemente.

 Um es"inho de mar&im

$manhecia o sol e l% estava o unic'rnio pastando no jardim da +rincesa. +or entre flores olhava a janela do quarto onde

ela vinha cumprimentar o dia. #epois esperava v)- la no balc"o, e, quando o pe(inho pequeno pisava no primeiro degrau daescadaria descendo ao jardim, fugia o unic'rnio para o escuro da floresta.m dia, indo o Rei de manh" cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unic'rnio na moita de l6rios.

&uero esse animal para mim. imediatamente ordenou a caçada.#urante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unic'rnio nas florestas e nas campinas. ;alopavam os cavalos, corriam os

c"es e, quando todos estavam certos de t)-lo encurralado, perdiam sua pista, confundiam-se no rastro.

#urante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor das fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do

unic'rnio.m dia, mais nada. *enhuma pegada, nenhum sinal da sua presença. sil)ncio nas noites.

#esapontado, o rei ordenou a volta ao castelo. logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. $ princesa, penali(ada com a derrota do pai, prometeu que

dentro de tr)s luas lhe daria o unic'rnio de presente.

#urante tr)s noites trançou com os fios de seus cabelos uma rede de ouro. #e manh" vigiava a moita de l6rios do jardim.

no nascer do quarto dia, quando o sol encheu com a primeira lu( os c%lices brancos, ela lançou a rede aprisionando ounic'rnio.

+reso nas malhas de ouro, olhava o unic'rnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.$ princesa aproimou-se. &ue animal era aquele de olhos t"o mansos retido pela artimanha de suas tranças2 1eludo do

 p)lo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao c!u.

#oce l6ngua de unic'rnio lambeu a m"o que o retinha. $ princesa estremeceu, afrouou os laços da rede, o unic'rnio

ergueu-se nas patas finas.&uanto tempo demorou a princesa para conhecer o unic'rnio2 &uantos dias foram precisos para am%-lo2

 *a mar! das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. 5u apenas conversavamem sil)ncio de amor, ela na grama, ele deitado a seus p!s, esquecidos do pra(o.

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$s tr)s luas, por!m j% se esgotavam. *a noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa.

#esconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unic'rnio que comia l6rios tinha cheiro de flor, e escondido entre os

vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.$manh" ! o dia. &uero sua palavra cumprida, disse o rei - virei buscar o unic'rnio ao cair do sol.

0a6do o rei, as l%grimas da princesa desli(aram no p)lo do unic'rnio. ra preciso obedecer ao pai, era preciso manter a

 promessa. 0alvar o amor era preciso.0em saber o que fa(er, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua triste(a. $ lua apagou-se. 5 sol mais uma ve(

encheu de lu( as corolas. como no primeiro dia em que se haviam encontrado a princesa aproimou-se do unic'rnio.

como no segundo

 dia olhou-o procurando o fundo dos seus olhos. como no terceiro dia segurou- lhe a cabeça com as m"os. nesse último

dia aproimou a cabeça do seu peito, com suave força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no

coraç"o, enfim florido.

&uando o rei veio em cobrança de promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feie de l6rios.

 De '(ua nem to doce

Criava uma sereia na banheira. Trabalho, n"o dava nenhum, s' a aquisiç"o dos peies com que se alimentava. Mansa desde

 pequena, quando colhida em rede de camar"o, j% estava treinada para o cotidiano da vida entre a(ulejos.Cantava. Melop!ias, a princ6pio. &ue aos poucos, por influ)ncia do r%dio que ele ouvia na sala, foi trocando por músicas de

Roberto Carlos. Aaiinho, por!m, para n"o incomodar os vi(inhos.

$ssim se ocupava. com os cabelos, agora p%lido ouro, que trançava e destrançava sem fim. <0empre achei que sereia era

loura<, dissera ele um dia tra(endo tinta e %gua oigenada. ela, sem sequer despedir-se dos negros cachos no refleo da

%gua da banheira, começara d'cil a passar o pincel.

0' uma ve(, nos anos todos em que viveram juntos, ele a levou at! a praia. #e carro, as escamas da cauda escondidasdebaio de uma manta, no pescoço a coleira que havia comprado para prevenir um recrudescer do instinto. Aaiou um

 pouco o vidro, que entrasse ar de maresia. Mas ela nem tentou fugir. 3igou o r%dio e ficou olhando as ondas, enquanto

flocos de espuma ca6am dos seus olhos.

 Por)m i(ualmente

> uma santa. #i(iam os vi(inhos. #. ul%lia apanhando. > um anjo. #i(iam os parentes. #. ul%lia

sangrando.

+or!m igualmente se surpreenderam na noite em que, mais b)bado que de costume, o marido, depois de surr%-la, jogou-a pela janela, e #. ul%lia rompeu em asas o v7o de sua trajet'ria.

 Maria* Maria

Manh" de março. a campainha toca.

- &uem !2 - pergunta Maria j% ansiosa, na verdade inquirindo ao mundo por que me chamam em casa, o que querem de mim2- $ senhora foi escolhida - responde o rapa(, t"o louro atr%s da corrente que ret!m porta e segurança.9ui escolhida para qu)2, pensa Maria, n"o ouço r%dio, n"o entro em concurso, fui escolhida n"o, mentira.

- 5brigada, n"o quero comprar nada - e Maria empurra a porta. &ue n"o se fecha, porque o rapa( botou o p! na fresta.- 5uça, n"o ! nada para vender.- *"o, obrigada.- *"o ! para pagar.- *em assim.Maria fa( força. 5lha ostensivamente o p! dele, sand%lia. #epois o rosto, cabelos anelados ao redor.

- Com licença - di( Maria perguntando-se o que ser% que ele quer, e reparando na bele(a dos cachos, que cachos

harmoniosos, pensamento que corre so(inho como torneira esquecida aberta, por tr%s de outros pensamentos mais cortantes,

de desconfiança, defesa.

- &uer fa(er o favor de tirar o p!2 - Maria usa sua vo( mais autorit%ria para sobrep7-la ao medo crescente.

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- $ senhora n"o est% entendendo. u sou um anjo do 0enhor.m maluco. ra s' o que me faltava. 3ogo hoje que estou so(inha em casa. ssa cidade est% virando um hosp6cio. $ssim

 pensa Maria. Mas di(8

- 5lha, meu amigo...le repete - u sou um anjo do 0enhor. ent"o, lentamente, sorri.Maria nem pensa que aquele sorriso ! uma primavera. 0ente-se apenas trespassar de mansid"o, ensolarada. Maria sorri.

- #esculpe - di(. , por dentro, como fui ser t"o rid6cula2 - #esculpe - repete. - 5 que ! mesmo que voc) queria2- +osso entrar2 - a pergunta parece t"o l'gica, t"o absolutamente serena, que Maria se apressa a tirar a corrente, abrir a porta. o rapa( entra na casa de Maria.

- 1oc) quer um caf!2 - pergunta Maria. - ma %gua2- &uero que voc) sente aqui ao meu lado, Maria, porque tenho uma coisa importante para te di(er.Maria nem se pergunta como ele sabe seu nome, esse homem t"o lindo. Maria n"o tem nenhuma interrogaç"o mais, s' o

desejo de sentar ali no sof% da sala, junto quele rapa( de camiseta e cachos, e respirar seu h%lito.- Maria - di( ele -, voc) n"o vai acreditar, mas eu te troue um presente.

  *"o, Maria n"o acredita. Mas isso n"o fa( diferença, porque a m"o do rapa( ! quente na sua coa e o h%lito dele ! perfume

e flor, e a boca dele, ah: a boca dele ! um fruto do 0enhor.

#espejada: 3ogo agora: 3ogo agora que a barriga retesada e plena como um ovo est% prestes a culminar sua tarefa. Mariaquase n"o acredita, n"o quer acreditar, mas a carta est% ali, tinha acertado tudo com o senhorio, mas a carta est% na m"o dela,

! isso, n"o tem como voltar atr%s, n"o d% mais para ficar s' esperando o nen!n chegar, agora ! preciso arrumar outroapartamento. depressa.

Maria l) os classificados, recorta anúncios poss6veis. sai. +ega 7nibus, pega metr7, anda, anda, sobe escadas, fala com

 porteiros, entra em elevadores, abre portas. $bre portas sobre apartamentos va(ios, cheirando a j% habitados, poeira nas

frinchas. a cada um se pergunta, ser% nesse que quero ficar2 *"o, lhe responde uma cor de parede. *"o, a estreite(a de

uma sala. *"o, um corredor escuro, uma banheira rachada. $t! que um dia, depois de tantas portas inutilmente abertas, sim,

lhe di( uma janela sem cortinas aberta sobre %rvores, sim, um piso claro, sim sim, o sol derramado nas paredes. 0im, parecedi(er-lhe do centro de tudo o seu beb). assim Maria sabe que j% encontrou uma casa para receb)-lo.

+recisar% ainda fa(er a mudança, juntar suas coisas, depois acompanhar o caminh"o com seu pr'prio carro, pequena

 prociss"o atrav!s do tr@nsito da cidade, durante a qual os cristais mais delicados, que levou consigo num balaio, tilintam

como minúsculos sinos. st% justamente tentando definir lugares para os objetos na casa ainda ca'tica, quando o corpo

mo6do eige que ela ponha as m"os nos rins e, projetando a barriga para a frente para aliviar o peso, Maria percebe que uma

sombra se avoluma por dentro do ventre. ma sombra que ainda n"o ! dor, mas que cresce e, insistente, chama.#eitada de lado como o m!dico mandou, Maria respira pausadamente enquanto a dor maior lhe d% repouso. uma tr!gua

apenas, ela sabe, logo a onda tentar% submergi-la outra ve(, vinda do p!, da terra que ela sequer toca, mas que est% nela,

 passado de semeadura e colheita que habita toda mulher. $gora ! tempo de colher. Como o $njo disse que aconteceria, o

filho est% maduro para a lu(.

5 m!dico aproima-se de Maria, fala com a enfermeira. Maria n"o lhe presta atenç"o, como se n"o o ouvisse. Maria est%com a atenç"o voltada para dentro, ouvindo a conversa sem som do beb) que nela, e com ela, luta para derrubar as muralhasdo corpo materno e libertar-se. Maria est% ocupada demais em abrir-lhe passagem, para poder conversar com o m!dico,

di(er-lhe como se sente. +ois Maria se sente como o beb), sem palavras.

0abe, por!m que chegou a hora. *a maca, rumo sala de parto, Maria pensa apenas no seu desejo de v)-lo, peg%-lo no

colo, ela que h% tantos meses o tra( no regaço.

9rio, lu( intensa, o corpo t"o do6do que quase o desconhece. 9orça, Maria, ! preciso fa(er força. 5s músculos tensos, os

dentes cerrados, o pescoço quase estourando. de repente aquela sensaç"o l6quida, macia, de peie esgueirando-se,saltando, como se a dor e o sangue e as v6sceras de Maria se esva6ssem por entre suas pernas, deiando-a va(ia e

apa(iguada.

- > uma menina - ouve o m!dico di(er do fundo da lu(.ma menina2: nt"o, pensa Maria quase com al6vio antes de resvalar para o torpor, ent"o n"o era verdade, nada do que o

$njo disse era verdade, eu n"o fui escolhida, sou apenas uma m"e qualquer, m"e da minha filha amada, que bem-vinda seja.

 3% vem Maria com sua filha no colo entrando no apartamento novo. 5lha em volta. &ue desordem, n"o repare, querida. oteu bercinho que n"o chegou, a loja acabou n"o entregandoI tamb!m, com essa confus"o toda de *atal... n"o h% de ser nada,

mam"e vai dar um jeito.

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Maria deita sobre o sof% a nenen enrolada na manta. 1) um caiote va(io, ainda com palha da mudança, arrasta-o para o

meio da sala, afofa a palha, p?e almofadas por cima e, com gestos de quem quara roupa ao sol, abre sobre as almofadas o

lençol(inho branco, bordado, que estava guardado numa gaveta com sach) cheiroso, para o primeiro dia.

- +ronto, querida, est% feita a tua caminha, pode dormir sossegada.Maria tira a manta, deita a nenen no berço improvisado, sem cobri-la sequer, que a tarde ! quente.Miau, fa( o gato roçando nas pernas de Maria. s' ent"o ela se lembra que o pobre(inho deve estar morto de fome, ele e o

cachorro, s's no apartamento desde que ela foi para a maternidade, aos cuidados apenas do porteiro.

- #esculpem, vou cuidar de voc)s tamb!m, n"o precisam ficar com ciúmes. *a co(inha, Maria despeja a raç"o na tigela, abre uma lata de sardinhas para o gato, bate de leve com o prato no ch"o.Chama, psss, psss. *em gato nem cachorro obedecem. Chama de novo, fa( barulho com o prato. *ada. &ue ser% que h% com

esse bichos, se pergunta Maria. Hntrigada, vai at! a sala. *"o chega a entrar, por!m, retida por um instante na porta, em

devoç"o.

3% est% o caiote, onde ela o deiou. Mas o gato de um lado e o cachorro do outro bafejam delicadamente sobre a menina. acima dela, pairando ofuscante na tarde que se vai, esparge sua fúlgida lu( uma estrela.

- nt"o era verdade: 5 $njo n"o mentiu:$joelha-se Maria perto da filha. 0im, o $njo disse a verdade. 0agrada ! a menina que esperneia entre linhos. Como estava

 prometido, la chegou. 3ouvor aos c!us, pois a Messias est% entre n's.

 An+o da (uarda

#o poleiro ele n"o fugiria. ;arantiam sua perman)ncia a argola de ferro no p! e a ponta da asa cortada. 0em ele, que solid"o

insuport%vel seria sua vida.0im, era outra mulher. 3avava, passava, cantava na co(inha e crescia plantas.

3onge estavam os dias de choro e desespero. #istante aquela tarde em que, o formicida pronto na co(inha, a campainhatocara interrompendo o gesto. da porta, louro e alado, o adolescente lhe dissera8

- *"o chore. 1im lhe ajudar. 0ou seu $njo da guarda. A ,usca da ra-o

0ofreu muito com a adolesc)ncia. /ovem, ainda se queiava.

#epois, todos os dias subia numa cadeira, agarrava uma argola presa ao teto e, pendurado, deiava-se ficar.$t! a tarde em que se desprendeu esborrachando-se no ch"o8 estava maduro.

 Entre a es"ada e a rosa

&ual ! a hora de casar, sen"o aquela em que o coraç"o di( <quero<2 $ hora que o pai escolhe. Hsso descobriu a +rincesa natarde em que o Rei mandou cham%-la e, sem rodeios, lhe disse que, tendo decidido fa(er aliança com o povo das fronteiras

do *orte, prometera d%-la em casamento ao seu chefe. 0e era velho e feio, que import@ncia tinha frente aos soldados que

traria para o reino, s ovelhas que poria nos pastos e s moedas que despejaria nos cofres2 stivesse pronta, pois breve o

noivo viria busc%-la.#e volta ao quarto, a +rincesa chorou mais l%grimas do que acreditava ter para chorar. mbotada na cama, aos soluços,

implorou ao seu corpo, a sua mente, que lhe fi(essem achar uma soluç"o para escapar da decis"o do pai. $final, esgotada,adormeceu.

na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo ficou. ao acordar de manh", os olhos ainda ardendo de tanto chorar,

a +rincesa percebeu que algo estranho se passava. Com quanto medo correu ao espelho: Com quanto espanto viu cachos

ruivos rodeando- lhe o queio: *"o podia acreditar, mas era verdade. m seu rosto, uma barba havia crescido.+assou os dedos lentamente entre os fios sedosos. j% estendia a m"o procurando a tesoura, quando afinal compreendeu.

$quela era a sua resposta. +odia vir o noivo busc%-la. +odia vir com seus soldados, suas ovelhas e suas moedas. Mas,quando a visse, n"o mais a quereria. *em ele nem qualquer outro escolhido pelo Rei.

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0alva a filha, perdia-se, por!m a aliança do pai. &ue tomado de horror e fúria diante da jovem barbada, e alegando a

vergonha que cairia sobre seu reino diante de tal estranhe(a, ordenou-lhe abandonar o pal%cio imediatamente.

$ +rincesa fe( uma troua pequena com suas j'ias, escolheu um vestido de veludo cor de sangue. , sem despedidas,atravessou a ponte levadiça, passando para o outro lado do fosso. $tr%s ficava tudo o que havia sido seu, adiante estava

aquilo que n"o conhecia. *a primeira aldeia aonde chegou, depois de muito caminhar, ofereceu-se de casa em casa para

fa(er serviços de mulher. +or!m ningu!m quis aceit%-la porque, com aquela barba, parecia-lhes evidente que fosse homem. *a segunda aldeia, esperando ter mais sorte, ofereceu-se para fa(er serviços de homem. novamente ningu!m quis aceit%-

la porque, com aquele corpo, tinham certe(a de que era mulher.

Cansada mas ainda esperançosa, ao ver de longe as casas da terceira aldeia, a +rincesa pediu uma faca emprestada a um pastor, e raspou a barba. +or!m, antes mesmo de chegar, a barba havia crescido outra ve(, mais cacheada, brilhante e rubra

do que antes. nt"o, sem mais nada pedir, a +rincesa vendeu suas j'ias para um armeiro, em troca de uma couraça, umaespada e um elmo. , tirando do dedo o anel que havia sido de sua m"e, vendeu-o para um mercador, em troca de um

cavalo.

$gora, debaio da couraça, ningu!m veria seu corpo, debaio do elmo, ningu!m veria sua barba. Montada a cavalo, espada

em punho, n"o seria mais homem, nem mulher. 0eria guerreiro.

guerreiro valente tornou-se, medida que servia aos 0enhores dos castelos e aprendia a manejar as armas. m breve, n"ohavia quem a superasse nos torneios, nem a vencesse nas batalhas. $ fama da sua coragem espalhava-se por toda parte e a precedia. /% ningu!m recusava seus serviços. $ couraça falava mais que o nome.

 +ouco se demorava em cada lugar. 3utava cumprindo seu trato e seu dever, batia-se com lealdade pelo 0enhor. +or!m

suas vit'rias atra6am os olhares da corte, e cedo os murmúrios começavam a percorrer os corredores. &uem era aquele

cavaleiro, ousado e gentil, que nunca tirava os trajes de batalha2 +or que n"o participava das festas, nem cantava para asdamas2 &uando as perguntas se fa(iam em vo( alta, ela sabia que era chegada a hora de partir. ao amanhecer montava

seu cavalo, deiava o castelo, sem romper o mist!rio com que havia chegado.

0omente so(inha, cavalgando no campo, ousava levantar a viseira para que o vento lhe refrescasse o rosto acariciando os

cachos rubros. Mas tornava a bai%-la, t"o logo via tremular na dist@ncia as bandeiras de algum torre"o.

$ssim, de castelo em castelo, havia chegado quele governado por um jovem Rei. fa(ia algum tempo que ali estava.#esde o dia em que a vira, parada diante do grande port"o, cabeça erguida, oferecendo sua espada, ele havia demonstrado preferi-la aos outros guerreiros. ra a seu lado que a queria nas batalhas, era ela que chamava para os eerc6cios na sala de

armas, era ela sua companhia preferida, seu melhor conselheiro. Com o tempo, mais de uma ve(, um havia salvo a vida do

outro. parecia natural, como o fluir dos dias, que suas vidas transcorressem juntas.

Companheiro nas lutas e nas caçadas, inquietava-se por!m o Rei vendo que seu amigo mais fiel jamais tirava o elmo.

mais ainda inquietava-se, ao sentir crescer dentro de si um sentimento novo, diferente de todos, devoç"o mais funda por

aquele amigo do que um homem sente por um homem. +ois n"o podia saber que noite, trancado o quarto, a princesaencostava seu escudo na parede, vestia o vestido de veludo vermelho, soltava os cabelos, e diante do seu refleo no metal

 polido, suspirava longamente pensando nele. Muitos dias se passaram em que, tentando fugir do que sentia, o Rei evitava

v)-la. outros tantos em que, percebendo que isso n"o a afastava da sua lembrança, mandava cham%-la, para arrepender-se

em seguida e pedia-lhe que se fosse.

+or fim, como nada disso acalmasse seu tormento, ordenou que viesse ter com ele. , em vo( %spera, lhe disse que h% muito

tempo tolerava ter a seu lado um cavaleiro de rosto sempre encoberto. Mas que n"o podia mais confiar em algu!m que seescondia atr%s do ferro. Tirasse o elmo, mostrasse o rosto. 5u teria cinco dias para deiar o castelo.

0em resposta, ou gesto, a +rincesa deiou o sal"o, refugiando-se no seu quarto. *unca o Rei poderia am%-la, com sua barba

ruiva. *em mais a quereria como guerreiro, com seu corpo de mulher. Chorou todas as l%grimas que ainda tinha para

chorar. #obrada sobre si mesma, aos soluços, implorou ao seu corpo que a libertasse, suplicou a sua mente que lhe desse

uma soluç"o. $final, esgotada, adormeceu.

na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo brotou. ao acordar de manh", com os olhos inchados de tanto chorar,a +rincesa percebeu que algo estranho se passava. *"o ousou levar as m"os ao rosto. Com medo, quanto medo: aproimou-

se do escudo polido, procurou seu refleo. com espanto, quanto espanto: viu que, sim, a barba havia desaparecido. Mas

em seu lugar, rubras como os cachos, rosas lhe rodeavam o queio.

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 *aquele dia n"o ousou sair do quarto, para n"o ser denunciada pelo perfume, t"o intenso, que ela pr'pria sentia-se

embriagar de primavera. perguntava-se de que adiantava ter trocado a barba por flores, quando, olhando no escudo

com atenç"o,

  pareceu-lhe que algumas rosas perdiam o viço vermelho, fa(endo-se mais escuras que o vinho. #e fato, ao amanhecer,

havia p!talas no seu travesseiro.

ma ap's a outra, as rosas murcharam, despetalando-se lentamente. 0em que nenhum bot"o viesse substituir as flores quese iam. $os poucos, a r'sea pele aparecia. $t! que n"o houve mais flor alguma. 0' um delicado rosto de mulher.

ra chegado o quinto dia. $ +rincesa soltou os cabelos, trajou seu vestido cor de sangue. , arrastando a cauda de veludo,

desceu as escadarias que a levariam at! o Rei, enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo.

 Canço "ara Hua Mu.#an

#on(ela, quando soube que o inimigo ameaçava as fronteiras do seu pa6s, vestiu a couraça de couro de rinoceronte, cingiu

o elmo, e partiu para a guerra.

#urante anos seus negros cabelos esvoaçaram nas batalhas. 5s generais compuseram canç?es em seu louvor. muitos

cavalos trocou, que tombavam sob as flechas. *os e!rcitos, ao p! das fogueiras, contavam-se os seus feitos.Mas, rechaçado o inimigo, apagaram-se as fogueiras, e os soldados voltaram para as suas casas. +endurada num prego, a

couraça sem serventia se cobre de poeira. Muitos fios brancos rajam os cabelos da don(ela. &ue n"o aprendeu a fiar. &uen"o aprendeu a tecer. que agora debaio de um salgueiro dorme e dorme, com sua espada epulsando inimigos para al!m

das fronteiras do sonho.

 /erdadeira história de um amor ardente

 *unca tivera namorada, esposa, amante. #esde jovem vivia s'. ntretanto, passando os anos, sentia-se como se mais s'

ficasse, adensando-se ao seu redor aquele mesmo sil)ncio que antes lhe parecera apenas repousante. , vindo por fim a

triste(a instalar-se no seu cotidiano, decidiu providenciar uma companheira que, partilhando com ele o espaço, epulsasse a

intrusa lamentosa.m loja especiali(ada adquiriu grande quantidade de cera, corantes, e todo o material necess%rio. m breves estudos nos

almanaques e tratados aprendeu a t!cnica. logo, trancado noite em sua casa, começou a moldar aquela que preencheria

seus desejos.

+ronta, surpreendeu-se com a bele(a que quase inconscientemente lhe havia transmitido. $ suavidade opalinada, r'sea

 palide( que aqui e ali parecia acentuar-se num rubor, n"o tinha semelhança com a %spera pele das mulheres que porventura

conhecera. *em a eleg@ncia altiva desta podia comparar-se rusticidade quase grosseira daquelas. ra uma dama de nobresil)ncio. s' tinha olhos para ele.

+erdidamente a amou. 5 calor dos seus abraços tornando aquele corpo ainda mais macio, conferia-lhe uma maleabilidadeem que todo toque se imprimia, formando e deformando a amada no fluo do seu pra(er.

/% h% algum tempo viviam juntos, quando uma noite a lu( faltou. Começava ele a cansar- se de tanta docilidade. Começava

ela a empoeirar-se, turvando em manchas acin(entadas os tons antes translúcidos. m certo t!dio havia-se infiltrado na vida

do casal. &ue ele tentava justamente combater naquela noite empunhando um bom livro, no momento em que a l@mpadaapagou.

0entado na poltrona, com o livro nas m"os prometendo del6cias, ainda hesitou. #epois levantou-se, e tateando, com o

mesmo isqueiro com que h% pouco acendera o cigarro, inflamou a trança da mulher, iluminando o aposento.

$rrastou-a ent"o para mais perto de si, refestelou-se na poltrona. , sereno, começou a ler lu( do seu passado amor, que

queimava lentamente.

 Nunca descuidando do de!er

/amais permitiria que seu marido fosse para o trabalho com a roupa mal passada, n"o dissessem os colegas que era esposadescuidada. #ebruçada sobre a t%bua com olho vigilante, dava caça s dobras, desfa(ia pregas, aplainando punhos e peitos,

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afiando o vinco das calças. , a poder de ferro e goma, envolta em vapores, alcançava o ponto m%imo da sua arte ao

arrancar dos colarinhos liso brilho de celul'ide.

Hmpec%vel, transitava o marido pelo tempo. &ue, embora respeitando ternos e camisas, começou sub-repticiamente amarcar seu avanço na pele do rosto. m dia notou a mulher um leve afrouar- se das p%lpebras. 0emanas depois percebeu

que, no sorriso, fran(iam-se fundos os cantos dos olhos.

Mas foi s' muitos meses mais tarde que a presença de duas fortes pregas descendo dos lados do nari( at! a boca tornou-seineg%vel. 0em nada di(er, ela esperou a noite. Tendo finalmente certe(a de que o homem dormia o mais pesado dos sonos,

 pegou um paninho úmido e, silenciosa, ligou o ferro.

 Na estr)ia

I

 *a noite da estr!ia o le"o tremia tanto de emoç"o que, num bater de dentes, acabou decepando a cabeça do domador.

II

 *a noite da estr!ia, ao serrar sua mulher em duas, o m%gico percebeu que s' gostava da parte de cima.

III *a noite da estr!ia, depois que todos se foram e as lu(es se apagaram, a bailarina deitou- se no fio e adormeceu.

 Amor e morte na "'(ina de-essete

 *o dia em que 0elena saiu no jornal, n"o ganhou foto na primeira p%gina. &uin(e linhas somente, no canto esquerdo. Mas

foi l% dentro, na p%gina de(essete, abaio do t6tulo, que o marido a viu com seu decote, o rosto meio escondido na m"o,

chorando por outro homem.

$ foto havia sido tirada ao lado do picadeiro. 1iam-se atr%s da cabeça dela um pedaço da lona, o alto das grades. Rodeadade gente, 0elena n"o percebera que estava sendo fotografada, havia tantas lu(es ali. *em pensara que sairia no dia seguinte

na p%gina GJ e que o marido a veria. 5u pensara, mas como um problema a resolver em outra hora, envergonhada quase de

que esse pensamento surgisse quando s' lhe cabia pensar no outro, no outro que ali estava, seus p!s.

<Como conseguem chegar t"o depressa2:<, perguntara-se admirado o dono do circo, ele que s' conseguia deslocar suas

gentes lentamente. correra para alcançar as camionetes de T1, antes mesmo que acabassem de estacionar entre os trailers eabrissem as portas. $presentou-se ao primeiro que saltou. m erro. *em esse nem o segundo que saltou, a quem tamb!m se

apresentou, tinham qualquer import@ncia, carregadores de equipamentos, nenhum deles se lembraria dele no futuro, na hora

de dar uma not6cia sobre o ;ran CircusI o rep'rter, cad) o rep'rter2 $ rep'rter j% estava l% dentro empurrando o microfone

diante do rosto desfeito de 0elena, tentando arrancar-lhe qualquer coisa que durasse pelo menos dois minutos, qualquer 

coisa mais que aquele olhar escondido pelas p%lpebras inchadas, que aquele balbuciar quase incoerente.$ssim mesmo a mat!ria saiu no notici%rio do dia seguinte, na hora do almoço. *"o deu para jogar no hor%rio nobre, noite- tivesse acontecido na seç"o matin) teria ca6do como uma luva, mas as coisas teimam em acontecer depois das vinte horas e

no dia seguinte j% parecem frias.ssa, por!m, ainda estava quente quando foi servida com o arro( e o feij"o para todo o bairro de 0elena.

la, 0elena, n"o tinha voltado para casa, n"o tinha vindo dormir. Tinha passado a noite entre pessoas que n"o conhecia,

rostos que se dirigiam a ela, que fa(iam perguntas eigindo respostas quando ela nem bem ouvia, vo(es e presenças que a

condu(iam de uma sala a outra. ma noite sem feitio, sem nada que a ligasse a todas as noites anteriores da sua vida,encharcada de caf! e copos dB%gua, sem que a deiassem so(inha por um minuto, embora s' disso ela precisasse, ficar

so(inha e tomar sua alma entre as m"os. Mas n"o, a noite inteira sente-se, venha, beba isso que vai lhe fa(er bem, data de

nascimento, carteira, assine, por favor, outra ve(, siga por aqui. salas e salas e corredores e l@mpadas no alto. #epois umúltimo corredor e um carro, j% começava o dia, e ela tinha dito n"o, n"o, para a minha casa n"o, e tinha pedido que a

deiassem na casa de uma amiga, porque n"o podia chegar no bairro quela hora, com aquele vestido. <sse vestido,

0elena, s' para sair comigo<, havia dito o marido no dia em que 0elena sa6ra do quarto com o decote emoldurado na

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estampa viva, os quadris moldados de vermelho. <Mesmo assim...<, e observara seu caminhar at! o sof%, procura de uma

restriç"o poss6vel para opor ao seu desejo. <Mesmo assim, est% muito curto.<

0elena displicente, afivelando as sand%lias altas, <*"o tem bainha para descer<. , cru(ando as pernas, <;ostou n"o2<

  $s pernas de 0elena epostas, coas esmagadas contra o couro sint!tico do sof%. st"o colando, pensara o marido,

imaginando-as úmidas sobre o assento.

ra mentira que tivesse mandado a costureira fa(er o vestido com um pano de liquidaç"o, como havia dito ao marido. Masn"o podia contar que havia sido dado pelo amante. Como poderia2

 *em ia deiar de receber o presente, um agrado, como dissera ele pagando na caia a roupa que a havia mandado escolher.

+ara sair comigo, acrescentara tocando-lhe a cintura.+equenas mentiras. Ks ve(es n"o pequenas. Ks ve(es nem mentiras. +alavras, nada mais do que isso, palavras que ela

organi(ava seu modo. *"o era grave. ;rave teria sido magoar qualquer dos dois. +ois se gostava de ambos. ;rave teria

sido magoar a si mesma.

 *o princ6pio, talve(, um pouco de m%goa a habitava, uma quase dor, por n"o poder di(er ao marido <tenho um amor<, e

 partilhar com ele sua emoç"o, por se sentir obrigada a resistir, embora pouco, quando tudo o que queria era a entrega. o

medo, medo de ser descoberta, medo ainda maior de ser arrastada por seu desejo em alguma direç"o que n"o pudesse

controlar. Mas t"o bom ter o amante todo ard)ncias, que logo qualquer outro sentimento desaparecera. agora, passadostantos anos, t"o assentada ela no querer dos dois, surpreendia-se quase de que n"o vivessem todos juntos na mesma casa,

 partilhando a mesa al!m da cama.

0elena nem se lembrava como havia chegado at! a arena, se descendo ou rolando do alto da arquibancada, se passando por 

cima das pessoas ou se levada por elas. #e repente estava ali, na beira do grupo compacto que se havia fechado de imediato

ao redor do fato como uma parede de bailarinas, palhaços, espectadores. logo estava no meio do c6rculo, ela e o homemdos alamares no casaco, que a segurava pelo braço, que vociferava, que talve( a sacudisse, ou era ela que com seu tremor 

sacudia a m"o dele. 5s holofotes acesos. $cesos nos seus olhos, e as l%grimas lascando em estrelas toda aquela lu(, todos

aqueles rostos. #epois a T1, as rijas serpentes dos cabos pelo ch"o, ao redor dos p!s, a moça insistindo. a lu( ainda mais

forte.

 *a delegacia, tamb!m, havia lu( em seus olhos. 5 que queriam, o que procuravam entre suas p%lpebras2 0ou uma mulher casada, repetia. Tenho marido. Me deiem ir. Mas n"o, isso ela di(ia para si mesma, isso ela repetia calada pela angústia,como uma ladainha, em busca do seu refúgio, tenho marido, tenho. $ eles, em resposta a tanto que queriam saber, s' soube

dar seu endereço, que nem era preciso dar, estava na bolsa, e como ! que a bolsa fora parar na delegacia se ela n"o se

lembrava de carregar bolsa alguma ao atirar- se do alto da arquibancada2 Tinha telefone tamb!m. eles ligaram.

5 homem atendeu. $l7, disse, e era o mesmo homem de sempre, aquele que os vi(inhos conheciam, seu /onas da casa tr)s,

um pouco rude mas respeitador, marido da dona 0elena. $tendeu com a vo( de dono com que um homem atende ao telefone

da pr'pria casa. $l7. era ainda ele, /onas, como sempre havia se conhecido. Aastou por!m ouvir a resposta do lado de l%, para que a ameaça o alcançasse como um dardo. #elegacia2 *"o era um press%gio, era a realidade do medo que lhe tomava

os joelhos, o peito. , medida que o outro falava, conciso, indo logo ao essencial, /onas sentiu que deiava de ser o /onas

que sempre havia acreditado ser, tornando-se algu!m que ainda n"o conhecia. 0em que o interlocutor pudesse perceber,

uma metamorfose se operava do lado de c% da linha, e esse homem, /onas, de fone na m"o, via-se despido da sua

 segurança como a serpente ! despida da pele, e nu, com sua branca carne viva, j% n"o era o marido respeitado e invejado

 pela vi(inhança, mas algu!m de quem se rir pelas costasI n"o era o macho que sempre havia esgotado as vontades da suaf)mea, mas apenas um homem que go(ava. pulso da serenidade, /onas encontrou-se ao desabrigo. 0ei, respondeu depois

de um longo sil)ncio que o outro, de l%, tentava quebrar para ter certe(a de ter sido entendido. 0ei, repetiu. , pela primeira

ve(, sabia.

5 cara n"o vem, o policial disse para o outro desligando. Tinha falado com /onas na frente de 0elena sem constrangimento,como se ela n"o ouvisse ou como se o que tinha a di(er ao marido n"o fosse constrangedor para ela. *"o era. 9alassem alto

vontade. $ relaç"o dela com /onas n"o estava ali. *"o estava do outro lado da linha. 0eu marido, o companheiro seu, aesperava adiante em algum momento, %rduo momento em que teriam que se encontrar. Mas aquela mesma relaç"o que ela

 projetava para o futuro estava inteira ali, no seu mudo repetir tenho marido, na vontade de que ele viesse, a levasse para

casa, a tirasse daquele lugar. /onas: invocou de novo sufocada em choro, me ajuda.

0eu marido, dona, disse o policial como se tivesse lido seu pensamento, n"o vem.

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1inte e sete anos de casados, o peso dele afundando a cama de um lado, o suor encardindo os colarinhos. *"o ! suor, di(ia

ele, ! poeira l% do serviço. 1inte e sete anos de seo, lu( acesa, e carne assada aos domingos. =omem que sentava mesa

 para comer e deitava em cima dela para go(ar. Tudo com fartura. m bom marido, /onas, ciumento, meio bruto, mas bom. dela.

/onas botou o fone no gancho e apagou a lu(. 5 nome de 0elena subiu por dentro dele como um v7mito, esbarrou nos

dentes trancados, na boca dura, fe(-se insulto, cuspe, soluço. +assou a noite assim, sentado no sof%, de cuecas, chorando noescuro. falando com 0elena, brigando com 0elena, sacudindo-a pelos braços, rasgando-lhe a roupa, dando-lhe tapas na

cara, fodendo-a como se fode uma prostituta, e implorando, perguntando por que, por que se ele n"o lhe deiava faltar 

nada. Chegou a dar tiro, nela, nos dois, a surpreend)-los na cama, a peit%-los na entrada do motel. +assou a noite culpando-os, culpando-se, ferindo-se nas palavras. 0entiu frio, enrolou-se numa toalha do banheiro, os p!s continuaram gelados,

encolheu os p!s sobre o sof%. $quecido no nicho morno e úmido da toalha abraçou seu pr'prio corpo, teve pena de si. +or fim, adormeceu.

> bom que durma /onas, porque sua provaç"o n"o acabou. $manh" a foto de 0elena sair% no jornal, na p%gina de(essete do

 jornal que algu!m ler% no 7nibus, algu!m do bairro, e que todos no bairro ir"o correndo comprar na banca, gulosos da

hist'ria de 0elena, do seu retrato. antes mesmo que cheguem os rep'rteres o telefone chamar%, tirando-o do limbo quente

do sono, e ser% um amigo, um parente querendo confort%-lo, que ainda estar% falando quando a campainha da porta tocar,alertando /onas para o duro dia que se arma sua frente. #ia em que, isso ele ainda n"o sabe, 0elena em prantos ser%atirada pelo notici%rio das GLhDE na sua mesa que ningu!m pensou em arrumar para o almoço.

0' uma hora, havia dito a amiga, embora a manh" j% estivesse clara. 0' para relaar. 0elena, so(inha enfim, esforçava-se

 para dormir, para livrar-se do peso que a oprimia inteira, esquecer-se de si no corpo estendido. Mas a cama era estreita, o

travesseiro hostil, e a lu( que entrava pela janela sem cortinas vetava qualquer tentativa de fuga. Continuou deitada, por!m,olhos fechados. +ensassem na sala que ela dormia, falassem

 em vo( baia. $usente para os outros, sentindo de leve as t%buas do estrado atrav!s do colchonete, podia afinal regressar

sua vida, recuperar #aniel, e refa(er o percurso daquela noite tentando escapar s suas pr'prias palavras, tentando impedir 

que #aniel as ouvisse.

/untos h% vinte e cinco anos. ra isso que estavam comemorando. m vestido novo, um jantar, e o circo. $ssim era #aniel,sempre pronto a se divertir, a comemorar, como um menino. Aodas de prata, a cada ano um presente, uma tarde especial para selar a data do primeiro encontro, para di(er-lhe, uma ve( mais, que era dela o seu coraç"o. 0em nunca lhe eigir nada,

sobretudo n"o o fim do seu casamento, e n"o porque a quisesse casada com outro, ele que solteiro podia acolher uma

mulher. Mas porque sabia am%-la como ela era, com /onas e o seu jeito de querer /onas, com uma casa que n"o podiam

 partilhar, com seus hor%rios apertados, sua necessidade de escamotear os presentes, de inventar hist'rias para justificar as

aus)ncias.

ncontravam-se duas ve(es por semana. $ princ6pio s' no motel, porque o desejo abrasava, e em qualquer outro lugar temiam ser vistos. #epois, com o tempo, desgastaram-se os temores, parecia t"o natural que se amassem. ent"o um

 bar(inho, uma churrascaria longe do bairro. um cinema, dançar. #aniel, pensou 0elena cobrindo os braços com a colcha,

era onde ela remoçava. mais uma ve( o definiu, agora naquilo que seria sua mem'ria, alegre, amoroso, sempre

inventando moda. sentiu seu corpo nas m"os dele, e sentiu os p!s dele encostando nos seus debaio da mesa, das mesas

tantas daqueles vinte e cinco anos. teve vontade de chorar, mas n"o chorou.

- 9oi tudo muito r%pido - repetiu o dono do circo ao rep'rter do tabl'ide que pelo telefone lhe fa(ia as mesmas perguntas j%feitas anteriormente pelos outros todos. 0entado no trailer da administraç"o, sem casaco de alamares, sem botas, era apenasmais um homem de jeans.

- *"o houve tempo de tomar qualquer atitude. $ segurança estava atenta, mas n"o deu para salvar o homem. *ingu!m podiaimaginar...

- 0im, ! claro que estavam armados, num circo contamos com muito imprevisto, nunca uma coisa assim, isso nuncaaconteceu em circo nenhum, e com toda aquela gente de p!, aos gritos, os seguranças n"o podiam atirar, imagine acertar 

algu!m...- 3% vem o senhor insistindo nisso. *"o, eu j% lhe disse antes e repito. *"o h% perigo nenhum para os espectadores, nuncahouve.

- Como, nem ontem noite2 5ntem noite, meu amigo, n"o foi quest"o de perigo. 9oi uma fatalidade, uma loucura, umacoisa que ningu!m podia evitar.u podia ter evitado. Mas como ! que eu ia imaginar uma coisa dessas, me di(, como2 *a sala da amiga, 0elena, sentada,embola o lenço nas m"os enquanto junta forças para voltar para casa, para saltar de um t%i diante da porta e tocar a

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campainha, para esperar que /onas abra, que por caridade abra. isso que 0elena quer fa(er agora, ir para casa, tomar um

 banho, trocar de roupa. Mudar% de id!ia depois, mas por enquanto ! o que ela quer. porque ainda n"o tem coragem, e

 porque sabe que depois, com /onas, ter% que se controlar, falar de uma outra maneira sobre o que aconteceu, vai repetindo para a amiga uma ve( mais aquilo tudo que lhe contou ao chegar, mais pausadamente agora. &ue ela estava t"o feli(, #aniel

meendo com ela por causa do decote - a m"o de 0elena sobe, pousa no colo descoberto meendo, que aquilo era um

 perigo, que n"o a queria na rua so(inha bonitona daquele jeito, bonitona, tinha dito assim mesmo, e ela, naquela idade, tinha se sentido como se fosse

verdade, bonitona, os outros homens todos do restaurante reparando. Tinha sido sempre assim com ele, desde a primeira

ve(, aquele jeito brincalh"o de falar... *o in6cio mesmo da frase, 0elena percebe, com súbita culpa, que se referiu a #aniel no passado, como se cedo o estivesse

abandonando. =esita, entre trair-lhe a morte ou tentar mant)-lo vivo falando dele no presente. Mas o passado j% venceu.

0elena parou por instantes. 5lha as m"os, as unhas que tinha feito para a ocasi"o, agora t"o sem sentido, unhas vermelhas

numa hora dessas. rev) a pr'pria m"o sobre a mesa segurando a de #aniel. Tinham tomado cerveja, ! verdade, mais que

de costume, mas restaurante ! assim mesmo, demora para chegar a comida, a pessoa fica bebendo, #aniel nunca tinha sido

de muita bebida. o que tinha demais beber um pouquinho al!m da conta, se era uma noite de festa e depois ainda iam ao

circo29alei aquilo com ele, n"o foi por mal, n"o foi. 0elena abaia a cabeça, cobre os olhos com o lenço ainda meio embolado, os

olhos secos, como se o lenço pudesse atrair as l%grimas e alivi%-la. stava lindo o circo, aquela gente toda, a música, o

 barulho, o cheiro quente das feras. #esde menina que ela n"o ia, e sempre tinha gostado tanto, sempre tinha tido tanta

vontade. Mas /onas n"o gosta dessas coisas, voc) sabe o jeito do /onas, foi por isso que #aniel quis me levar, pra me

agradar, ele sempre fe( tudo pra me agradar. $gora, as l%grimas v)m e 0elena nem se lembra do lenço.0empre fe( tudo. Tinha o m%gico, circo sem m%gico nem parece circo, #aniel ficou imitando, fingindo que tirava os

 papei(inhos do ingresso de dentro da manga, di(endo para 0elena que na bolsa dela tinha um pombo. #aniel ria tanto dos

 palhaços. Teve cavalos, aquela coisa toda de trap!(io. chegou a hora das feras. #emoraram para armar as grades em volta

do picadeiro, dois cachorros amestrados distra6am o público, o bater dos ferros encobria a música. ent"o estava pronto.

5 domador entrou primeiro. Chegou esvoaçando uma capa de cetim, parou no meio do picadeiro, um assistente veio por tr%s, tirou a capa. *o instante em que a capa se abriu, o domador estalou o chicote no ar. 0elena teve a impress"o de que eleestava nu, s' o cinto largo rodeando-lhe os quadris e a tira de couro atravessada no peito. $ sunga era quase da mesma cor 

da pele.

5s le?es entraram um de cada ve( pelo corredor gradeado. #e cabeça baia, os flancos nervosos, as patas macias

avançando cautelosas sobre a serragem. $lguns rosnavam, quase correndo, %vidos, debandando na sa6da ao estalar do

chicote. ram cinco.

 *o sil)ncio da sala, que s' sua vo( interrompe, 0elena ouve outra ve( os gritos do domador organi(ando as feras em seuslugares, estalando o chicote quando elas erguem as garras ameaçadoras. 3embra-se do seu olhar, dela, 0elena, acariciando as

cicatri(es que marcam as coas dele abaio da sunga. Mas isso n"o conta para a amiga. +ara a amiga repete o que #aniel

disse para ela, que ia comprar pipocas, e ela ainda falou que n"o, n"o fa(ia quest"o, logo agora, e ele j% se esgueirava entre

as pessoas, com licença, e ela como podia adivinhar2, ela voltou a olhar para o picadeiro.

0im, ela tinha dito antes para ele, mas no mesmo jogo de amor e ficç"o com que ele a tinha chamado de bonitona no

restaurante, ela tinha dito para ele, olhando o domador e vendo como as feras lhe obedeciam a contragosto, fero(es, elatinha dito, em tom faceiro e desafiador tinha sim, tinha perguntado se por amor a ela ele seria capa( de tamb!m enfrentar 

feras.

  5lhava para o domador quando ouviu o primeiro grito. $s pessoas na frente dela se levantaram de um salto, gritando,

tirando-lhe a vis"o, todos se levantavam, ela tamb!m, mais para ver o que acontecia do que por espanto. foi assim, por entre ombros e cabeças, que ela viu #aniel j% no fim do corredor gradeado e inutilmente gritou gritou enquanto ele

avançava no picadeiro. O ti(re

Minha intimidade com o tigre era falsa. mbora fosse meu por direito e papel passado. *"o confiei. Temi pela

intocabilidade do rosto, import@ncia das duas únicas m"os. mantive o afago leve de quem est% pronto a retir%-lo.

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 *o entanto ele nunca me traiu. m nenhum momento fingiu uma docilidade que n"o tinha. *em quando se aproimava em

 passos longos quase corridos e eu lhe temia o peso. *em quando erguia a pata retribuindo e afastando minhas car6cias.

 *em mesmo quando, afirmando sua posse, me transferiu de uma s' bocada para o úmido calor de suas entranhas.

 História mais lon(a "ara %ue,rar o ritmo

Chove.

5s primeiros bichos chegam ao celeiro da montanha. j% a %gua sobe nas plan6cies e os rios abandonam seus leitos. Mas oceleiro ! úmido e quente, madeira podre, cheiro de toca, e os animais se sentem protegidos. Chegam, farejam na porta

escura, e logo entram misturando-se a seus pares.

Chove.

+oucos nos primeiros dias, se aquecem uns contra os outros, p)lo, pena, couro, escama. Mas a chuva continua e mais bichoschegam, enchendo o celeiro que estala debaio da tempestade e da press"o.

 *ingu!m ouve quando o gato come o rato. *a noite seguinte, quando o gato ! morto pelo c"o, os outros animais, entretidoscom a luta do tigre e do elefante, nada percebem. *o alarido que acompanha a vit'ria do tigre, a jib'ia fecha suas espirais

sobre o coelho, sem que o estalar dos ossos seja notado pelos demais.Chove.

$ %gua sobe ao redor do celeiro, imenso lago. 5 ronco do trov"o abafa o rosnar da pantera que salta sobre a ga(ela.squivo, o chacal bebe o sangue. *a escurid"o do celeiro a coruja abre os olhos fechando a garra sobre o dorso do esquilo,

o javali enterra as presas no flanco da raposa, o morcego se espoja na jugular do boi.Chove. Mas as nuvens se esgarçam no hori(onte, e uma lu( distante ilumina as %guas.

3% fora o sil)ncio. C% dentro balidos, gemidos, rosnados, latidos. gil, o macaco escapa da onça. R%pido, o condor se abate

sobre ele. 5 veneno da tar@ntula mergulha a marmota em sono definitivo, a picada da lacraia paralisa o cavalo, e o

escorpi"o ameaçado pelo tatu volta contra si o pr'prio ferr"o. 5 chifre do búfalo afunda na macie( do carneiro. $ girafadobra-se ao peso do lince. $ garça desfolha-se sob a fúria do lobo. $ hiena ri seu longo pranto.

+erdida a viol)ncia, a chuva se fa( fina e lenta garoa. lentamente o urso aperta o tamandu% prenhe de formigas, o rinoceronte esmaga o crocodilo farto de p%ssaros, a lagartia

engole o grilo devorador de mosquitos. *a palha, o quati n"o pressente o aproimar-se do falc"o, nem v) a cobra que lhe

disputa a presa.

9ina e espaçada, a chuva p%ra. $os poucos a %gua baia, o primeiro verde surge na lama. nt"o a pomba desabrocha súbitasasas em farfalhar de v7o, para logo voltar com um raminho no bico, procura de um lugar entre as telhas, para o ninho.

mbaio, no celeiro, o le"o ferido de morte estraçalha as carnes do último advers%rio.

 Onde os oceanos se encontram

5nde todos os oceanos se encontram, aflora uma ilha pequena. $li, desde sempre, viviam 3@nia e 3is6ope, ninfas irm"s a

serviço do mar. &ue, no manso regaço da praia, vinha depositar seus afogados.

Cabia a 3@nia, a mais forte, tir%-los da arrebentaç"o. Cabia a 3is6ope, a mais delicada, lav%-los com %gua doce de fonte,

envolv)-los nos lenç'is de linho que ambas haviam tecido. Cabia a ambas devolv)-los ao mar para sempre., na tarefa que nunca se esgotava, passavam as irm"s seus dias de poucas palavras.

9oi num desses dias que 3@nia, vendo um corpo emborcado aproimar-se flutuando, entrou nas ondas para busc%-lo, eagarrando-o pelos cabelos o troue at! a areia. /% estava quase chamando 3is6ope, quando, ao vir%-lo de rosto para cima,

 percebeu ser um homem jovem e lindo. T"o lindo como nunca havia visto antes. T"o lindo, que preferiu ela pr'pria buscar 

%gua para lavar aquele sal, ela pr'pria, com seu pente de concha, desembaraçar aqueles cachos.

+or!m, ao envolv)-lo no lençol ocultando- lhe corpo e rosto, t"o grande foi seu sofrimento que, num susto, descobriu-seenamorada.

 *"o, ela n"o devolveria aquele moço, pensou com fúria de decis"o. r%pida, antes que 3is6ope chegasse, correu para umal6ngua de pedra que estreita e cortante avançava mar adentro.

- Morte: - chamou em vo( alta chegando na ponta. - Morte: 1enha me ajudar. *"o demorou muito, e sem ru6do a Mortesaiu de dentro dB%gua.

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- Morte - disse 3@nia em @nsia -, desde sempre aceito tudo o que voc) me tra(, e trabalho sem nada pedir. Mas hoje, em trocade tantos que lhe devolvi, peço que seja generosa, e me d) o único que meu coraç"o escolheu.Tocada por tamanha pai"o, concordou a Morte, instruindo 3@nia8 na mar! va(ante deveria colocar o corpo do moço sobre a

areia, com a cabeça voltada para o mar. &uando a mar! subisse, tocando seus cabelos com a primeira espuma, ele voltaria

vida. $ssim fe( 3@nia. assim aconteceu que o moço abriu os olhos e o sorriso.Mas, em ve( de sorrir s' para ela que o amava tanto, desde logo sorriu mais para 3is6ope, e s' para 3is6ope parecia ter 

olhos.#e nada adiantavam as insist)ncias de 3@nia, as desculpas com que tentava afast%-lo da irm". #e nada adiantava enfeitar-

se, cantar mais alto que as ondas. &uanto mais eigia, menos conseguia. &uanto mais o buscava para si, mais outra ele

 pertencia.

nt"o um dia, antes do amanhecer, ajoelhada sobre a ponta da pedra, 3@nia chamou novamente8

- Morte: Morte: 1enha me atender.

, quando a 0ilenciosa chegou, em pranto e raiva pediu-lhe que atendesse s' ao último de seus pedidos. 3evasse a irm". mais nada quereria.

0edu(ida por tamanho 'dio, concordou a Morte. instruiu8 deveria deitar a irm" sobre a areia lisa da mar! va(ante, com os

 p!s voltados para o mar. &uando, subindo a %gua, o primeiro beijo de sal a aflorasse, la a levaria.

assim foi que 3@nia esperou uma noite de luar, quente e perfumada, e chegando perto de 3is6ope lhe disse8

 - st% t"o linda a noite, minha irm", que preparei tua cama junto brisa, l% onde a areia da praia ! mais fina e mais lisa.

, condu(indo-a at! o lugar onde j% havia posto seu travesseiro, ajudou-a a deitar-se, cobriu-a com o linho do lençol.

m seguida, sorrateira, esgueirou-se at! uma %rvore que crescia na beira da praia, e subiu at! o primeiro galho, escondendo-

se entre as folhas. #e olhos bem abertos, esperaria para ver cumprir-se a promessa.Mas a noite era longa, na brisa vinha cheiro de jasmim, o mar apenas murmurava. aos poucos, agarrada ao tronco, 3@nia

adormeceu.#orme 3@nia na %rvore, dorme 3is6ope perto dB%gua, quando um raio de luar vem despertar o moço que dorme, quase a

cham%-lo l% fora com todo o seu encanto. ele se levanta e sai. estonteado de perfumes caminha, vagueia lentamente pela

ilha, at! chegar praia, e parar junto a 3is6ope. *o sono, o rosto dela parece fa(er-se ainda mais doce, boca entreaberta numsorriso.0em ousar despert%-la, o jovem se deita ao seu lado. #epois, bem devagar, estende a m"o, at! tocar a m"o delicada que

emerge do lençol.0obe o amor no seu peito. *a noite, a mar! sobe.

/% era dia quando 3@nia, empoleirada no galho, despertou. 3u( nos olhos, procurou na claridade. 1iu o travesseiro

abandonado. 1iu o lençol flutuando ao longe. #a irm", nenhum vest6gio.

- $ Morte fe( o combinado - pensou, descendo para correr ao encontro do moço.Mas n"o correu muito. #iante de seus passos, estampada na areia, deparou-se com a forma de dois corpos deitados lado a

lado. $ mar! j% havia apagado os p!s, breve chegaria cintura. Mas na areia molhada a marca das m"os se mantinha unida,

como se espera das ondas que subiam.

 A "ai0o da sua !ida

$mava a morte. Mas n"o era correspondido.

Tomou veneno. $tirou-se de pontes. $spirou g%s. 0empre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.

&uando finalmente desistiu da pai"o entregando-se vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coraç"o.

 Para %ue nin(u)m a %uisesse

+orque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar.

$pesar disso, sua bele(a chamava a atenç"o, e ele foi obrigado a eigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos desaltos altos. #os arm%rios tirou as roupas de seda, das gavetas tirou todas as j'ias. vendo que, ainda assim, um ou outro

olhar viril se acendia passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou- lhe os longos cabelos.

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$gora podia viver descansado. *ingu!m a olhava duas ve(es, homem nenhum se interessava por ela. squiva como um

gato, n"o mais atravessava praças. evitava sair. T"o esquiva se fe(, que ele foi deiando de ocupar-se dela, permitindo

que flu6sse em sil)ncio pelos c7modos, mimeti(ada com os m'veis e as sombras.ma fina saudade, por!m, começou a alinhavar-se em seus dias. *"o saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que

tivera por ela.

nt"o lhe troue um batom. *o outro dia um corte de seda. K noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o querestava dos cabelos.

Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. 3argou o tecido numa gaveta,

esqueceu o batom. continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a c7moda.

 A ra"osa

 *unca aceitou o leite que eu teimava em lhe dar. #esde o primeiro dia quis carne. Morta, mas s ve(es pequenos animais

que obtenho com repugn@ncia e jogo no quarto procurando seus olhos que n"o me entregam a avide(.#epois, eu sei, atr%s da porta fechada ela caça.

$ssim ! a minha raposa, nunca minha. +equena, arisca mostrou-me logo os dentes num rosno assoprado, som de desafioque mal passava pela garganta fechada. ;ostei da raiva, da selvageria que arqueava o dorso de magras costelas. +ensei que

seria bom domestic%-la, fa()-la servil, c"o meus p!s, amiga. a troue no colo, feli( por vencer com a força suaresist)ncia.

5 leite na tigela. Hntato na manh" seguinte, v!u sujo salpicado de insetos mortos, cheirando a a(edo. 1inco do leite na tigeladebaio da torneira, limpe(a, leite fresco, minha insist)ncia prolongando-se na chantagem da fome. novamente o leite

intocado, a sua const@ncia de carn6voro. $t! o dia da carne, que n"o comeu na minha frente, mas da qual n"o deiou restos.

9i( tudo para conquist%-la. 0' eu lhe dou comida. 0' eu entro no quarto onde me recebe esquivando-se a um canto, o dorso

tenso, os dentes mostra. =% anos mantenho a vo( igual em chamado mon'tono que se faça amigo. =% anos me esforço paraque me queira.

um dia aconteceu o bicho vivo. *"o sei como me ocorreu, mas depois pareceu-me imposs6vel n"o ter percebido antes quea caça era a sua necessidade primeira. resolvi satisfa(er o desejo nunca manifesto. Comprei o coelho na loja de animais,

escolhido ao acaso na gaiola entre outros que teriam melhor sorte. $ culpa pela decis"o de um destino misturava-se uma

ansiedade nova pelo pra(er que lhe daria, pela cumplicidade no sangue do ser vivo, uma ansiedade carn6vora.

9ingiu n"o ver, toda ela presa ao ponto branco refugiado a um canto. , porque eu me interpunha entre ela e seu momentode instinto, rosnou em 'dio.

9echada a porta atr%s de mim, a viol)ncia da caçada que intu6a me imp7s a obtenç"o de novos animais.0ei que n"o dorme noite. $nda. #e uma parede a outra as patas marcam seu tempo, brilham os olhos no escuro que n"o

ouso interromper. quando p%ra ! sempre debaio da janela.

1idros abertos, vene(ianas fechadas, encontro s ve(es o vinco de suas unhas na madeira dura, o sinal dos dentes. > por ali

que conta fugir.5 quarto nunca varrido acumula seu cheiro. 5s p)los mortos suavi(am os cantos. 5s panos que lhe dou e que estraçalha

nos dentes logo se confundem com a palha. *as paredes, a marca das patas denuncia o esforço de evas"o.K noite, no sono da casa, ela marcha seu cativeiro entre as quatro muralhas. $ intervalos ergue-se nas patas traseiras, diante

da janela, testa a resist)ncia, fareja o ar que vem de fora. 5 trinco ! forte. Mas sua vontade ! maior que a minha e um dia a

vene(iana ceder% sob seu peso ou eu mesma a esquecerei aberta. Hm'vel no jardim por um instante juntar% ent"o suas

lembranças procura do rumo, sem saber que a cidade cresceu ao redor e que ela nunca mais achar% o caminho da floresta. 

1ela* das ,rancas mos

ra bonita e jovem como um amanhecer. os homens da aldeia, todos, suspiravam por ela. 5s solteiros a olhavam de

frente, tentando apoderar-se do seu olhar. 5s casados a olhavam de vi!s, escondendo o brilho dos olhos sob as p%lpebrasabaiadas. 5s velhos e os meninos a olhavam noite em seus sonhos.

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la, por!m, n"o olhava ningu!m. Cuidava do seu fa(er com alegria, cantava, caminhava leve com p!s descalços. +ouco

conversava com as outras mulheres da aldeia.

ssas tamb!m a olhavam. Mas com olhos escuros. 1iam a mocinha fa(er-se mulher. 1iam seus homens cada ve( maisatra6dos. viam-se mais feias, porque o espelho era ela.

#epois aconteceu que um moço largasse a junta de bois no meio do campo para segui-la at! o rio. =ouve a noite em que um

marido n"o voltou para casa, suspirando a noite toda debaio da sua janela. #ois jovens brigaram a faca e se disse quehavia sido por ela. 5 louco da aldeia enforcou-se e todos s' pensaram em um motivo.

K noite, as mulheres reuniram-se enquanto ela dormia. decidiram seu destino. *o escuro ainda, a arrancaram da cama e a

epulsaram da aldeia, que nunca mais voltasse. $os homens, no dia seguinte, disseram que havia partido com um viajante. n"o houve mais bois abandonados no meio do campo, os maridos todos regressaram para suas casas noite, as brigas

 passaram a ser por causa da terra. um dia um homem perdeu a ra("o e a aldeia voltou a ter o seu louco.Tudo era tranq4ilidade. $t! o dia em que um dos homens saiu para caçar e n"o voltou. +rocuraram por ele no bosque,

 procuraram por ele no rio. nada encontraram. 0' sua arma, debaio de um arbusto.

+assados muitos meses, quando j% ningu!m falava no desaparecimento, outro foi cortar lenha. n"o voltou.

#essa ve( s' procuraram entre as %rvores. ncontraram o machado. Mas dele, nem sinal.

#urante muito tempo falou-se no homem que havia sumido. Muitos evitaram ir ao bosque. #epois, aos poucos, o fato foise afastando na mem'ria da aldeia, e as coisas voltaram a ser como antes. como antes um homem foi ao bosque, e como antes desapareceu, e como antes nada dele se encontrou.

ra o terceiro a desaparecer na aldeia. =averia outro depois. mais um. $s mulheres choravam com seus negros

olhos.

 *ingu!m mais queria ir ao bosque. +or!m, estando por acabar as provis?es de suas casas, dois homens decidiram que juntos o perigo seria menor. sa6ram para caçar.

Muitas ve(es haviam percorrido aquelas trilhas. Mas, por mais que conhecessem todos os ninhos e tocas, naquele dianenhuma criatura de p)lo ou pena cru(ou seu caminho. , procurando, embrenharam-se mais do que pretendiam.

m deles ia na frente. 5 outro, o acompanhava. 0em que o primeiro percebesse, o segundo foi ficando para tr%s e, atra6do

 por um ru6do, meteu-se entre as folhagens.0eu grito n"o demorou. Correu o primeiro para ajud%-lo. Mas, chegando ao lugar de onde vinham os chamados, viu ametade superior do amigo, que agitava os braços e

 gritava por socorro, enquanto a outra metade desaparecia na boca de uma enorme serpente.

+ensou em atirar, mas temeu atingir o companheiro ou atiçar a fúria da serpente, que poderia cort%-lo ao meio. nt"o

agarrou-o pelas m"os e, cravando os p!s no ch"o, começou a puar.

+uou, puou, puou. aos poucos viu a cintura do amigo sair da verde moldura daquela boca, depois apareceram os

quadris, as coas, as pernas.tenuado, deiou-se cair, enquanto o amigo acabava de se libertar.

Mas, ao levantar a cabeça, viu que este, embora fora da serpente, sacudia os p!s e lutava tentando soltar-se de alguma coisa

mais.

$proimou-se. 0aindo da boca da cobra, duas m"os prendiam-se aos torno(elos do amigo.

$gora eram dois a puar. +uava uma m"o o primeiro, puava a outra m"o o segundo. palmo a palmo um terceiro

homem foi saindo como o outro havia sa6do. ra aquele que por último desaparecera da aldeia.3impavam-se os dois de suor e poeira, quando viram que o homem tamb!m sacudia os p!s, presos os torno(elos por duas

m"os que despontavam da boca da serpente.

$gora que eram tr)s a puar, nem parecia necess%rio fa(er tanta força. Mas era. afinal ca6ram os tr)s eaustos, e o homem

que acabava de sair viu que seus torno(elos estavam presos, e os quatro começaram a puar.

Cinco homens vieram lu( dessa forma. *a mesma ordem em que ao longo dos meses haviam desaparecido da aldeia. ,

quando o quinto saiu, viu que ao redor dos seus torno(elos, como pulseiras de marfim, duas m"os delicadas e brancas seapertavam.

9oram sete a puar. surpresos perceberam que, medida que os p%lidos braços sa6am da boca escura, encolhia-se, tragada

 para dentro dela mesma, a cauda da serpente.

5s braços nem haviam surgido inteiros, e j% despontava uma cabeça de longa cabeleira, revelava-se um doce rosto de

mulher. *ova delicade(a movia os sete homens. &uando a mulher enfim foi liberada, reconheceram a moça da aldeia, que

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acreditavam ter partido com um viajante. , estando ela nua, procuraram no ch"o algo com que cobri-la. Mas no ch"o n"o

havia nada. *em mesmo a longa pele da serpente.

 Por%ue era &rio nas horas mais ardentes

9oi na estaç"o de %guas, ao repousar contra um tronco, que ela conheceu aquele boa constrictor. ra discreto, persuasivo emuito sedutor. 3ogo tornaram-se amantes.

Todas as tardes, quando langor e achaques prendiam os h'spedes em seus quartos, ela ia encontr%-lo no canto mais sombriodo parque. o mormaço, o beijo b6fido, as espirais amorosas que mal lhe permitiam respirar levavam-na a del6cias nunca

 pressentidas.

$ hora da partida forçou a constataç"o8 j% n"o podia abrir m"o de pra(er t"o intenso. nrolado o boa numa valise, viajou

com ele at! sua casa, e o instalou no banheiro. $li ele poderia fugir para o terraço em caso de perigo, ou esquivar-se atr%sda banheira. $li poderiam se amar livres de riscos, sem observ@ncia de tempo, trancada a porta a toda curiosidade.

 *unca antes tomara ela tanto banho. &ueiava-se em vo( alta de calor, sujeira, cansaço. , controlando o passo que sentiaurgente, entrava no banheiro. 5 rodar da chave e um breve apelo bastavam para que o boa desli(asse em sua direç"o. 3isa e

fria carne a possu6a ent"o, coleando nas suas curvas, escorrendo rija sobre a pele. $rdente, ela cravava as unhas na felpa dotapete, enquanto a %gua do chuveiro aberto encobria silvos e suspiros.

ma tarde, por!m, etempor@neo, entrou o marido no banheiro. ao som da chave, acreditando tratar-se da amada, o boas7frego de amor saiu do esconderijo. #epararam- se os dois num mesmo espanto. R%pido, o homem correu ao quarto,

apanhou o rev'lver. #ois estampidos, um filete de sangue. 0obre o branco piso j% n"o farfalham escamas. $ mortelentamente suga a força túrgida. Como uma pincelada escura ja(, fl%cido, o corpo do boa.

ma v6tima, um trof!u. &ue o defensor do lar recolheu e enviou a um especialista, a fim de que, tirado e curtido o couro,

dele se fi(essem sapatinhos de salto alto e um belo cinto para sua mulher.

m ocasi?es de gala pede-lhe, orgulhoso, que os use. *"o sabe que ao rodear a cintura com a pele escamada ela suspiraenamorada. , apertando bem a fivela, est% mais uma ve( presa no sufocante ampleo do seu amante.

 Na lua cheia tal!e-

- +ena o senhor vir hoje, n"o tem quase nada mais. 5 melhor j% foi, levaram. Tivesse vindo antes...0imples mas arrumada, o cabelo preso, bem preso, a roupa bem limpa, as m"os bem seguras uma na outra, a mulher quehavia nos recebido porta hesitava, marcando com as palavras a inutilidade da nossa presença, enquanto o corpo se

esgueirava para o lado convidando-nos a entrar.

+or tr%s dela, bem junto, segurando-a pela cintura como se a um anteparo, um homem jovem, cabeça encolhida entre os

ombros.

- Mentira - disse o homem jovem. *"o era uma acusaç"o. *"o havia raiva na vo(. +ontuava a frase, apenas. $ mulher pareceu

nem ouvir.T6nhamos ido casa dela por causa de uns m'veis para vender. $ssim nos haviam aconselhado na praça. &ue eram m'veis

 bons, antigos, que valia a pena. $ mulher queria se desfa(er. agora, j% dentro de casa, avançando alguns passos, ela nosdi(ia que n"o havia m'vel nenhum, s' uma mesa. &ue n"o era boa.

- Tinha a sala de jantar completa. Étagère, cristaleira. Coisa fina, de fam6lia.- Mentira.5 jovem escondeu-se ainda mais por tr%s da mulher.$ sala, penumbrosa. $ porta aberta para um corredor. o desconforto da situaç"o que - j% sab6amos - n"o levaria a nada,

mas da qual ainda n"o consegu6amos nos etrair.

- Tinha muita coisa mesmo. Moldura dourada, poltronas douradas, o espelho grande.

- Mentira.+arecia dif6cil imaginar algo dourado naquela casa lavada por tempo e descaso. &uem se olharia no espelho2 0eparando as

m"os em gestos breves que indicavam o caminho, a mulher condu(iu-nos pelo corredor at! outra sala. 5 jovem veio junto.

0obre o assoalho de t%buas uma talhada de lu(. $s paredes nuas, sem marcas. M'vel algum.

- 0obrou a cama, o senhor quer ver2$lheio por um instante, acompanhando com

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o p! a mancha eata da lu(, o jovem perdeu o refr"o.

/% n"o quer6amos ver cama nenhuma. Mas parecia rude di()-lo, agora que hav6amos penetrado na casa, invadindo com

nossa gan@ncia de turistas essa aus)ncia de tudo.$ mulher foi na frente, abriu uma porta, a única fechada at! ent"o. 5 quarto era pequeno e escuro. 0em janelas. m

 basculante, no alto, fosqueado de poeira. um cheiro de mato. 9olhas e ervas amontoadas cobriam o ch"o, engoliam a base

das paredes. Mais que um quarto parecia um ninho seco. *o meio, com as pernas surgindo duras como as de uma avedaquele entrelaçar, a cama. *ua, sem colch"o. Cama que tamb!m n"o 6amos querer, que n"o era bem o que procur%vamos,

dissemos tentando ser gentis.

- Melhor assim - respondeu a mulher, sem l%stima. +arecia quase aliviada que nada quis!ssemos. N 9ica para ela -acrescentou./untou as m"os novamente. +arada, olhava a sombra do quarto, os cantos arredondados pelas folhas.

-  ma noite, ela vem. ;osta de mato. u sei. 0erpenteia nas folhas, se enovela, gosta do calor. 9oi por isso que botei isso a6, para ela querer ficar.

- Mentira - disse o rapa( por tr%s dela, e quase n"o se ouviu porque tinha escondido o rosto entre a nuca e o ombro damulher. la desli(ou para tr%s o braço esquerdo, protegendo-o.

- +ena o senhor ter vindo hoje, quarto minguante, n"o vai dar para ver, n"o aparece de jeito nenhum.- Mentira.Com a suavidade de um gesto consueto a mulher desprendeu o rapa(. 0a6mos, ela fechou a porta. *o alto o basculante

continuava aberto.

+assamos pela co(inha fria, sem cheiro de comida, acreditando estar no caminho da sa6da. la parou, apontou um ponto no

quintal, para n's impreciso.

- $li - disse como se houvesse algum marco. - > ali o lugar dela.Manteve a m"o erguida por instantes, firme. *ada diferenciava o ponto indicado. *ada se destacava em meio quele restode horta. ;irass'is pendiam quase secos entre canteiros, mato e alguns magros tomateiros partilhavam o espaço a(ulado

 pelas couves.

- Minha linda serpente. - $lgo pr'imo de um sorriso suavi(ou o rosto da mulher. - 1em por causa da flor, por causa do

 perfume da flor quando est% aberta. u j% sei, fico esperando por ela.1oltou-se para n's.

- Tinha muito m'vel aqui em casa, sof% de palhinha, aparador. Tudo antigo. Tudo bom. 9oi pena voc)s terem vindo hoje, quenem quarto crescente !. Tudo j% se foi. 5 senhor ia gostar do aparador - fe( uma pausa, pareceu sorrir de leve. - $ sementeda flor ganhei. 0ei l% quem deu. +lantei debaio do cajueiro, esqueci dela, sementinha boba de nada.- Mentira - veio a vo( abafada entre o corpo dela e a porta.

- +lantei e esqueci, pra que ia lembrar2 $6 deu lua cheia. 9oi a lua aparecer, e eu senti aquele cheiro, aquele perfume todo.ntrava dentro de casa feito %gua, pelas janelas, pelas frestas, o perfume, o perfume t"o forte que tonteava. 0a6 procurando,entrei pelo mato. vi a flor. 5 luar clareando tudo. $ flor linda demais, clara que nem a lua. &uase pisei na serpente.- Mentira.- 3evei aquele susto. Mal deu para ver. Mas ela tinha pernas. 9ugiu.- Mentira.sboçamos um movimento, virando corpo e cabeça, entendesse que quer6amos ir embora, sem obrigar-nos a di()-lo. *"ohavia sa6da pelo quintal. $ mulher nos condu(iu de volta atrav!s da co(inha, atrav!s do corredor, da sala, varando o longo

va(io daquela casa.

- 5 senhor ia gostar dos espelhos. *a flor seguinte, da outra lua, vi de novo. depois, sempre. Toda lua, toda flor, ela est% l%.0ai de dentro dela. #e dentro da flor, quero di(er. 0' pode ser. 5u ent"o vem por causa do perfume, chega perto que nemeu. Mas tem pernas, isso tem, que j% vi. brilho de ouro.- Mentira.

 +aramos ainda por um instante na varanda bem varrida, as t%buas de madeira suave veludo de tantas m6nimas farpas.

- 5 senhor precisa voltar. Mas na lua cheia. 9icam todos aqui em casa at! de noite, para ver ela. a mesa, tem certe(a que n"ovai levar2

- =oje n"o, a senhora mesma disse, o dia n"o est% bom. *a lua cheia talve(...- Mentira.

 No aconche(o da (rande me

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#urante quarenta anos gerou filhos que, ampla e generosa, continuava a abrigar no ventre passado o tempo da gestaç"o. +or 

que atir%-los no mundo se, m"e, a todos podia conter e alimentar2

$chando, por!m necess%rio dar-lhes boa educaç"o, fe( quatro ve(es o serviço militar para atender s necessidades c6vicasdos seus filhos homens, e completou oito cursos de corte e costura para garantir o futuro de suas filhas mulheres.

/% estava quase chegando velhice, quando a doçura de netos começou a lhe parecer mais desej%vel do que tudo. *"o

resistindo, deitou-se enfim no centro da cama e, abertas as poderosas coas, começou o esforço. m v"o suou lenç'is efronhas, em v"o inchou as veias do pescoço. +assadas horas, passados dias em que sem descanso lutava para epelir,

compreendeu8 por amor e segurança seus filhos se recusavam a dei%-la. *unca seria av'.

nt"o a triste(a abateu-se sobre ela. magreceram as pernas, emagreceram os braços. 0' a barriga n"o emagreceu, vagandoimensa pela casa. Mas a pele se fe( cada ve( mais fina, e em certas horas da manh", quando a lu( bate clara e penetrante

sobre o ventre de opalina, j% se podem ver os rapa(es garbosos na ordem unida, e as moças que cosem infind%veiscamisolas.

 No h' nada no ,os%ue

Areve seria noite. Mas ainda era doce atardar-se do lado de fora da casa, deiar-se ficar na última lu(. 5 ar at! ent"o mornodesembainhou suas primeiras l@minas. 5 capim alto e queimado pelo ver"o ondulou leve. $ mulher cru(ou os braços sobre

o peito. 5 homem, sentado no degrau da entrada, recostou-se contra a porta. *"o falavam. 9oi ent"o que o cachorro latiu.1oltou a cabeça para o pequeno bosque de abetos, orelhas erguidas, e latiu.

 *"o h% nada ali, seu bobo, venha c%:, ordenou o homem desejando que o c"o se calasse e fosse restabelecida a quietudeanterior. Hnclinou-se para a frente, estalou os dedos. 5 c"o n"o se moveu.

1ai ver, tem alguma coisa no bosque, disse a mulher. ele sabia que havendo suspeita de alguma coisa no bosque caberia a

ele ir verificar.

 *"o tem nada, o que voc) quer que tenha2, respondeu sabendo que se o c"o latisse novamente n"o lhe restaria alternativasen"o levantar-se e caminhar at! a mancha a(ulada dos abetos. 5 c"o latiu.

$ mulher agora olhava firme em direç"o ao bosque.5 homem levantou-se, avançou at! onde estava o c"o, chamou-o enquanto continuava andando. 5 c"o n"o o seguiu. +raga

de cachorro:, murmurou o homem. foi.

5 bosque estava mais escuro do que tinha pensado. $li a noite havia-se antecipado, desli(ando enevoada entre os troncos.

5 homem esfregou os braços com as m"os para combater o frio, aspirou fundo o perfume de resina. $ndou um pouco aesmo, procura nem sabia de qu). u devia vir mais aqui, pensou sentindo debaio da sola o ch"o escorregadio e liso,

coberto de agulhas. m galho estalou, alguma coisa volteou no ar. 5 homem pensou vagamente que seria bom deitar-senaquelas sombras, que faria isso algum dia. saiu do bosque. stava a meio caminho quando o c"o latiu outra ve(.

$ partir daquela tarde foi como se um marco houvesse sido plantado em algum lugar entre os troncos. m marco de perigo

que mantinha alerta os sentidos do c"o.

3atia. Trotava diante da casa, de um lado a outro, como se defendendo a porta. $vançava súbito, saltava para tr%s, depoisdeitava-se quase encoberto pelo capim, o focinho entre as patas, os olhos atentos. rosnava.

#e nada adiantaram as admoestaç?es, as ordens. 5 homem quis prend)-lo na coleira. 5 c"o debateu-se tentando soltar-secom os dentes, puando, at! abrir chagas no pescoço, obrigando o homem a libert%-lo. +arecia mulher que o melhor era

mant)-lo dentro de casa, chamava, batia com o prato de comida, sedu(ia-o. Mas por pouco tempo. 5 animal raspava a

 porta com as patas, cainhava metendo o focinho na fresta, e a mulher penali(ada cedia.

5 que tem esse bicho2, perguntavam-se impacientes. 1%rias ve(es o homem voltou ao pequeno bosque. $ mulher chegou air com ele. 1asculharam. *ada. +erigo nenhum que se visse.

5 c"o, inquieto. Mal comia. 5 olhar sempre pronto a abandonar o que quer que estivesse olhando, para voltar-se naqueladireç"o, na direç"o da mancha a(ulada, da suave rigide( dos abetos.

 Começou a latir tamb!m noite, quando certamente n"o podia ver. Mas os sentidos do c"o, pensaram os donos. o sono

tornou-se dif6cil. $ inquietaç"o do animal pesava sobre a casa. $ ameaça rondava, uma ameaça que eles n"o podiam ver,

mas que se corporificava no focinho tenso do c"o, nas orelhas erguidas capa(es de captar mensagens que a eles, osameaçados, escapavam.

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Talve( fosse melhor cortar as %rvores, sugeriu um dia o marido no caf! da manh", com a cabeça baia e a boca quase metida

na 6cara. =avia pensado nisso durante a noite, insone. $pesar do tom, era mais que uma sugest"o.

$s %rvores:2, eclamou a mulher, defensiva, como se ele tivesse lhe dito para cortar os cabelos. 0"o t"o bonitas nossas%rvores.

+ronto, j% haviam virado nossas %rvores. $gora seria mais dif6cil convenc)-la. sforçou- se para ser paciente, que os abetos

estavam ficando velhos, alguns j% se entortavam, breve um ou outro desabaria, era um perigo, o pequeno bosque n"o seriamais o mesmo ainda que o deiassem como estava. depois, a vista. ncobriam a vista. 0eria bom ter o hori(onte livre.

0obretudo - e o homem sabia que esse era o argumento definitivo -, ! arriscado um bosque hoje em dia. +ode abrigar 

qualquer coisa.1ieram os homens. 5 ru6do das serras mec@nicas sobrepujou qualquer outro durante dias. 5 ar encheu-se de p' dourado, o

cheiro de resina ardia nas narinas. =avia uma quase alegria nesse ir e vir de oper%rios e m%quinas, apesar da melancoliacom que a mulher olhava s ve(es, encostada no umbral, enquanto o terreno era despido de seus cabelos a(uis. #epois,

tudo voltou ao normal.

Começava o outono. *os fundos da casa empilhava-se a lenha com que alimentariam a lareira. 3entamente atenuava-se o

cheiro de resina. $gora, da janela - o frio n"o permitia que se atardassem l% fora olhavam o entardecer, viam o sol j% mais

 p%lido descendo por tr%s do hori(onte livre. ra um belo espet%culo, embora a sensaç"o de desamparo que os tomava por estarem assim no descampado.ma tarde, a primeira em que acenderam a lareira inaugurando as novas reservas, o c"o deitado sobre o tapete sobressaltou-

se de repente. rgueu a cabeça. 9oi at! a porta. 9arejou de um lado e outro. &uer sair, disse a mulher. 5 homem levantou-se,

abriu a porta. 5 c"o saiu de um salto. Cuidado com o frio, advertiu a mulher sentindo a lufada. 5 homem ainda viu o c"o,

orelhas erguidas, olhando para a campina que se inclinava ao vento, na eata direç"o onde antes havia estado o bosque.9echou a porta contendo-a com a m"o espalmada. ent"o ouviu o cachorro latir.

 Uma !ida ao lado

9ina, a parede. , al!m dela, a vida do vi(inho.Hrritante a princ6pio. Ru6dos, pancadas, tosse, tudo interferindo, infiltrando-se. #epois, aos poucos, familiar.

0abia-lhe o banho, as refeiç?es, as horas de repouso. $ cada gesto, um som. no som, recriado, o via mover-se em

geometrias id)nticas s suas. $ sala, o quarto, o corredor. Cada ve( mais ligava-se ao vi(inho, absorvendo seus h%bitos.

5uvia bater de louças e se apressava co(inha, vinham vo(es moduladas e ligava a televis"o. K noite s' conseguia dormirdepois do baque dos sapatos do outro, o ranger da cama assinalando que se metera entre lenç'is.

+erdia-o, por!m, quando sa6a porta afora. +assos, tinir de chaves, l% se ia o vi(inho. 0em ele, va(ios a sala e o quarto, a parede emudecia, separando sil)ncios.

1oltava ao fim do dia, pontual. +assos, tinir de chaves. le ent"o acendia a lu( ao estalar do interruptor do outro, e juntos

 punham a casa em andamento.

Tentava, s ve(es, seguir-lhe as andanças. spiava pelo olho m%gico estudando a paci)ncia com que esperava o elevador, postava-se janela para ver que direç"o tomava, em que 7nibus subia.

, justamente numa tarde em que espreitava, viu o outro atravessar em m% hora a rua movimentada, hesitar, correr e ser atropelado por um furg"o.

+ercebeu que precisava trabalhar r%pido. 0em hesitar, arrancou as portas dos arm%rios, as cortinas, pegou a caia de

ferramentas, e começou a serrar, liar, bater, colar.

Tudo estava pronto quando ouviu o cai"o do outro chegar para o vel'rio. 0obre a mesa da sala, na eata posiç"o em que odo vi(inho deveria estar, colocou seu pr'prio cai"o. #epois abriu a porta de par em par e, vestido no terno a(ul-marinho,

deitou-se cru(ando as m"os sobre o peito.$inda teve tempo de pensar que tinha esquecido de engraar os sapatos. j% os primeiros visitantes começavam a chegar,

entrando com a mesma triste(a nos dois apartamentos, para prantear defuntos t"o iguais.

 Um cantar de mar e !ento

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#esfraldava a vela com os mesmos gestos amplos com que outras abrem a toalha sobre a mesa ou o lençol na cama. 1ela

 branca com uma branca lua bordada. assim que escurecia fa(ia- se ao largo.

 *"o levava redes, n"o levava an(ol no barco pequeno. Cestos somente, grandes. em sil)ncio, escuro adentro, navegavaat! chegar onde o mar ! fundo como a noite.

$li, recolhida a vela, ondulando suavemente deriva, punha-se a cantar.

Cantava baiinho, a moça pescadora, mas logo, tra(idos pelas malhas invis6veis da sua vo(, os peies começavam a saltar fora dB%gua pulando para dentro do barco, lu(idias estrelas que iam se perder no colo da pescadora, escorrendo entre as

 pregas da sua saia e iluminando por r%pidos instantes o fundo úmido do barco.

#urante a noite toda a moça cantava. 0eu primeiro sil)ncio despertava o sol. ra hora de voltar, vela enfunada.0empre, ao chegar ao pequeno porto da aldeia, sua pescaria revelava-se maior que a dos outros barcos. #esembarcava

cestos cheios, transbordantes, mesmo quando os demais n"o precisavam sequer desembarcar seus cestos va(ios. 5 mar nunca era avaro para ela. $varos fa(iam-se, por!m, os olhares dos outros pescadores.

stando ao largo, numa noite como as outras em que, de t"o farto o barco, ela colhia um ou outro peie do fundo e o

devolvia ao mar, um brilho diferente surpreendeu seu olhar. ntre tanta prata de escama, um súbito cintilar de ouro.

Tateando entre os corpos lu(idios buscou o peie que acabara de cair no seu regaço e, n"o sem espanto, viu que tra(ia um

anel na boca.m anel cin(elado em que ramos de flores retinham uma pedra verde. m precioso anel que a ningu!m podia devolver. um pouco largo para a sua m"o delicada, onde s' coube no dedo m!dio.

$quela manh", ao chegar no porto, a moça tra(ia mais do que apenas cestos cheios. m toda a aldeia, o único brilho de ouro

era seu. um outro brilho, escuro, acendeu-se nos olhos dos pescadores.

Mas, sem perceb)-lo, ela continuou desfraldando sua vela ao anoitecer e recolhendo-a de manh", vivendo mais alegre nomar do que na terra, tendo as estrelas como guia e sua vo( como companheira.

$t! que, depois de algum tempo, em outra noite igual a todas as que haviam passado, novamente um toque de ourocoruscou colhendo sua atenç"o, e, quando ela pegou o peie que por último havia saltado no seu regaço, viu, menos

surpresa dessa ve(, que tra(ia uma chave na boca.

ma chave toda trabalhada. ma rica chave de ouro sem dono ou fechadura. &ue a moça, desatando a fita que lhe prendiao cabelo, pendurou no pescoço.Mais ainda que o anel, a chave pendente como um colar feriu o olhar dos outros pescadores. $ inveja os unia. Murmurantes

e obl6quos, maldi(endo o mar que s' moça entregava seus tesouros, decidiram entreg%-la ao mar, que a guardasse semnunca mais devolver. 0erraram o mastro do seu barco o quanto bastava para lev%-la ao largo e partir-se com os ventos do

amanhecer. pela primeira ve( sorriram vendo no escuro porto a vela branca que se abria.

 Como se obedecesse ordens, o barco navegou at! o largo e, quando a pescadora içou a vela para colher os ventos da manh",

 partiu-se num estalo. 0em mastro, n"o havia meio de voltar.la poderia ter chorado, e n"o chorou. 0entou-se pensando que a vela que sempre lhe havia garantido a vida agora lhe

serviria de mortalha. Mas de repente sentiu tantas leves, lev6ssimas, batidas contra o casco, e percebeu at7nita que navegava

em direç"o terra. 5lhando na %gua, debruçada sobre a borda, compreendeu. +eies pequenos e grandes, muitos peies, a

empurravam.

 *enhuma alegria a recebeu na aldeia. 5 desapontamento reforçou o desejo dos pescadores. , antes mesmo que o mastro

tivesse sido trocado, aproveitaram-se de um momento em que ningu!m estava junto ao barco, furaram seu casco em v%rios pontos, e cuidadosamente taparam os furos com miolo de p"o amassado com serragem. #essa ve(, sequer sorriram quando a

vela fe(-se ao largo. ao largo ainda n"o havia chegado, quando o miolo de p"o, amolecido, desfe(-se deiando entrar a

%gua aos borbot?es.

$ moça bem poderia ter gritado, tamanho o susto. *"o gritou. Tentava em v"o tapar um ou outro furo com a saia ou o

chal!, quando percebeu que a %gua j% n"o entrava aos borbot?es, j% n"o entrava de todo. Tateando, compreendeu. +eies

haviam-se metido nos furos, tapando-os com o pr'prio corpo.#essa ve(, n"o havia ningu!m no porto quando a moça chegou, porque era noite. Mas, na manh" seguinte, mais

enraivecidos ainda ficaram os pescadores vendo que, contra todos eles, o mar teimava em favorec)-la. &uando dias depois,

consertado o casco, ela se fe( ao mar, o leme havia sido trabalhado para desprender-se e afundar.

+ercebeu-o a pescadora vendo-o desaparecer no a(ul, quando estava em alt6ssimo mar e j% n"o adiantava perceber. 0em

leme, seria levada pelas correntes, atirada contra os arrecifes ou devorada pelo sol.

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1ontade de chorar n"o lhe faltou. Mas, antes que tivesse tido tempo de fa()-lo, um golfinho aflorou e mergulhou ao lado do

 barco, depois frente, do outro lado e novamente frente. R%pida, enquanto o golfinho continuava aflorando e

mergulhando ao seu redor, ela atou um cabo proa, atirou-o na %gua. logo o golfinho colheu o cabo na boca e começou arebocar.

 *avegaram a noite inteira, ela em sil)ncio para n"o aumentar o peso do barco, o golfinho frente cintilante entre mar e lu(

de lua. $ manh" ainda n"o havia chegado, quando ela viu ao longe, escura sobre o escuro, recortar-se a silhueta de umailha. *"o era para o porto da aldeia que avançavam.

ra para uma praia pequena. m que o barco, enfim abandonado pelo golfinho e seguindo seu impulso, suavemente

encalhou.$reia lisa e clara, sem marcas. ma escadaria de pedra que se escondia ao alto entre flores. /ardins ao redor, floresta. ,

mais que o empalidecer do c!u, o canto dos p%ssaros anunciando o reinado do dia.$ moça prendeu na cintura a barra da saia, e saltou. +!s nB%gua, empurrou o barco areia acima, atou o cabo firmemente num

rochedo. 0' depois de garantir seu único bem, caminhou at! a escadaria, começou a subir.

&uantos degraus: #istra6a-se olhando o jardim, parava para debruçar-se sobre o perfume das flores. ei-la chegar ao alto,

beira de um gramado que se estendia at! o pequeno pal%cio - ou grande vila - diante de cuja porta fechada parou.

  Chamou, primeiro baiinho. #epois mais alto. $lguns p%ssaros esvoejaram. $ vo( dela perdeu-se entre as %rvores. *ingu!m atendeu. Aateu com a pesada aldrava de bron(e. 5uviu as pancadas ecoando l% dentro. 5 eco abafado foi a única

resposta.

/% ia afastar-se, quando alguma coisa na grande fechadura dourada chamou sua atenç"o. 5lhou com cuidado, tentando

lembrar-se de onde havia visto desenho semelhante. num súbito lampejo reconheceu o mesmo delicado trabalho da chave

que tra(ia ao pescoço.0olta a fita, a chave de ouro rodou suave na fechadura. 0em um estalo sequer, a porta abriu-se. , metendo antes a cabeça

 para ver se algum perigo a espreitava l% dentro, a pescadora descalça avançou lentamente sobre o m%rmore.

norme vest6bulo, colunas, arcos e, por tr%s de reposteiros de veludo, as altas janelas por onde entrava a lu( ainda verde da

manh". 5nde estariam as gentes dessa casa2 +oeira fina sobre os m'veis e os pisos, sem pegadas, sem marcas de m"os.

Tudo arrumado, por!m. estanque no sil)ncio.$travessou o vest6bulo, entrou num sal"o, sobressaltou-se com seu refleo nos espelhos. $s velas nos castiçais estavamgastas e ningu!m as havia substitu6do. ntrou em outra sala, escura, com os reposteiros abaiados, quase tropeçou numa

cadeira, distinguiu um piano. =avia lu( al!m da porta. Caminhou cuidadosa at! l%. ent"o, da soleira, antes mesmo de

olhar o resto da sala, ela o viu.

ra o retrato grande de um homem esbelto e jovem, um homem moreno. $li estava, de p! contra a parede, v6vido como se

ela o visse chegar por algum corredor. sua presença pareceu-lhe subitamente ocupar n"o apenas aquela sala, mas as outras

salas por onde havia passado e todas as salas e c7modos que intu6a naquela casa, todo m6nimo recanto, epandindo-se nos jardins e descendo pela escadaria. aproimando-se percebeu aquilo que seu coraç"o estava de alguma forma tentando lhe

di(er, que na m"o esquerda do homem brilhava entre ramos de ouro a pedra verde de um anel, o mesmo anel que ela sentia,

 pesado e um pouco largo, rodeando seu dedo m!dio.

 *aquele dia, sequer pensou em partir. #eiou-se ficar longamente na sala, diante do retrato. #epois vagueou pela casa,

atravessou a sombra da magn'lia no p%tio interno, procurou seu pr'prio rosto na superf6cie escura do laguinho, e subiu

degraus, desceu degraus, foi s co(inhas, assombrou- se com as enormes pias enutas, as centenas de pratos empilhadosnos arm%rios. Comida n"o havia, nem cheiro dela. =% muito nenhuma lenha ardia naquele fog"o. Mas a figueira fora da

 porta estava carregada, os figos rachados escorriam mel, e ela fartou-se, bebendo depois %gua nas m"os em concha. *"o

ousou servir-se de uma das taças.

stava cansada, afinal. 5 dia logo acabaria. , tendo entrado em um dos quartos, deitou-se na cama, e adormeceu.

0onhou com o moço do quadro. 9ora da moldura, sentado diante dela, mas com aquela mesma camisa branca que usava na

tela, aquele mesmo olhar sedoso, e uma vo(, uma vo( que era como um murmúrio de mar, e lhe di(ia coisas que ela n"oconseguia compreender, mas via desenhar-se nos l%bios rosados.

$cordou no dia seguinte. *"o havia ningu!m sentado diante dela. 9oi at! a sala cheia de livros. 5 moço continuava de p!,

contido pela moldura dourada. Mas seu olhar pareceu-lhe aceso como o havia visto em seu sonho, e olhando os l%bios

lembrou-se de como se moviam e desejou, desejou muito, saber o que haviam dito.

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  *ovamente gastou quase todo o dia caminhando pela casa, embora tendo se demorado tanto na sala do retrato. quando a

hora da fome chegou, escolheu um prato de porcelana, um delicado c%lice de cristal, e sentada so(inha na grande mesa de

m%rmore negro comeu as uvas ainda mornas de sol que havia colhido na parreira, bebeu a %gua fresca que havia ido buscar na nascente.

K noite, deitada na cama, debaio do dossel, sonhou que o moço entrava no quarto com o mesmo passo anunciado no

retrato, e que sentado a seu lado lhe di(ia coisas que ela ainda n"o entendia, mas que acariciavam, com quanta suavidade,seu coraç"o.

 *"o havia ningu!m ao seu lado quando acordou. Mas na sala, olhando o jovem da tela, percebeu que agora sabia como ele

caminhava. seu passo a acompanhou quando passeou nos jardins, quando parou diante dos espelhos do sal"o esperandov)-lo junto de si.

 *aquele dia pensou que deveria consertar o barco e partir. Mas pareceu-lhe que poderia ocupar-se disso no dia seguinte,depois que tivesse sonhado mais uma noite com o moço, depois que tivesse entendido o que ele tinha para lhe di(er.

comeu rom"s, coroando seu prato de rubis, e em ve( de %gua bebeu vinho da adega, tingindo sua taça de sangue.

$ssim, dia ap's dia, a pescadora adiava sua partida, alimentando-se das frutas que encontrava no jardim, dos ovos que

colhia nos ninhos. a cada dia mais intensamente desejava a chegada da noite, quando ent"o receberia em seu sonho e seu

quarto o jovem do quadro, e deiaria que as palavras indecifradas penetrassem seu peito, incendiando- lhe o coraç"o.5 barco n"o havia sido consertado, e o ver"o chegava ao fim. $s frutas escasseavam. Areve, n"o houve mais nenhuma no jardim que começava a amarelar. 9oi preciso recorrer aos cogumelos e procurar os raros ovos nos penhascos junto ao mar.

#o alto, ela olhava para o barco ainda atado ao rochedo.

$gora, pelas janelas atr%s dos reposteiros, o vento queiava-se. $ casa fa(ia-se fria. Mas noite ela sonhava com o jovem

senhor daquelas salas envolto em um casaco de peles, que lhe abria os braços e a acolhia. ela se sentia aquecida comonunca havia estado.

0abia, ainda assim, que era preciso consertar o barco. *o fero( mar do inverno jamais conseguiria alcançar o porto da suaaldeia. , quando o dia chegou em que n"o houve nada para colocar no prato de porcelana, nem ra("o nenhuma para

sentar-se mesa de m%rmore, o barco na praia j% tinha um leme.

$ moça pescadora percorreu as salas pela última ve(. Todas, menos a do retrato. 9echou a grande porta de entrada, colocoua chave ao pescoço. desceu a escadaria.0em se dar ao trabalho de recolher a barra da saia, empurrou o barco para dentro da %gua, saltou a bordo. #e p!, no casco

que ondeava nervoso sobre o mar encapelado, desfraldou a vela branca com sua branca lua bordada. 3entamente afastou-se da ilha.

logo fe(-se noite. *oite debaio das nuvens negras, noite sobre o negro mar. Raros rel@mpagos. a gelada alfange do

vento cortando o ar e a carne, ferindo o casco que o leme a custo continha, borrifando de %gua, encharcando de sal. T"o frio

estava, que para aquecer-se a pescadora começou a cantar. 9io de vo( na tempestade, que a ningu!m chegaria. Mas, comose ouvisse o eco da sua pr'pria vo(, uma canç"o pareceu chegar- lhe no vento. 5lhou em volta, debruçou-se sobre o mar.

na %gua escura como os seus sonhos o viu, homem do quadro e da noite, que lhe abria os braços e o casaco de espuma.

Mergulhou a m"o estendendo-a para ele. 0entiu que o anel escorria do dedo

  para o fundo. nt"o ela pr'pria deiou-se desli(ar para aqueles braços, enquanto o vento encobria as palavras que ele lhe

di(ia, as palavras todas que pela primeira ve( ela conseguia entender.

 Meiose

Começou fingindo que n"o era t"o s'. 1oltava do escrit'rio, preparava o jantar, botava a mesa com capricho, deiava tudo pronto, e tornava a sair. #escia no elevador, s ve(es ia at! a esquina comprar alguma coisa para acrescentar ao jantar, subia,

e com ligeiro sorriso punha a chave na porta, certo de que algu!m havia preparado tudo para ele.

1iver tornou-se mais leve.m dia botou velas na mesa. *o dia seguinte, descendo at! a esquina, comprou flores. 9altava, por!m o segundo lugar

mesa.

 *a segunda-feira, saindo do escrit'rio, entrou numa butique e comprou um vestido a(ul-claro, discreto. 9oi com ele esand%lias de salto baio que preparou o jantar. +ercebeu que precisaria de um avental.

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$ presença feminina evidenciava-se na casa. Aotando a chave na porta vindo da esquina era recebido por bilhetes

carinhosos, meu bem o jantar est% no forno ! s' esquentar, ou delicadamente maternais, cuidado para n"o manchar a toalha

de vinho. noite despindo-se pendurava suas roupas junto s dela. *"o se encontravam, por!m.

a necessidade da presença fa(ia-se insuport%vel.

 *a segunda-feira saiu mais cedo do escrit'rio. Comprou longas luvas brancas, um vestido de cetim e brincos de pena de pav"o. Trabalhou a noite inteira, cortando, costurando. $o anoitecer tudo estava pronto. 0aiu, comprou champanha, uma

orqu6dea. voltou.

 *a meia-lu( encheu as taças. $ m"o enluvada esbarrou na sua, retraiu-se, deiou-se prender. Aaiou o som da vitrola. $m"o branca acariciou- lhe o rosto, desceu procurando a nuca. $ pena de pav"o roçou-lhe a face, brindaram. 5 perfume era

fundo. #ançaram levemente, maneira delicada de condu(i-la ao quarto. o grande espelho do arm%rio refletiu o homem de smoking e a mulher de longo abraçados com volúpia.

#e manh" viu no ch"o o meio smoking costurado com a metade do vestido de cetim. Recolheu a luva. , apertando na m"o

os dedos va(ios, soube que a tinha para sempre.

 Sem asas* "or)m

#ura aldeia era aquela em que s mulheres n"o era permitido comer carne de aves - n"o fossem as asas subir-lhes ao pensamento. #ura aldeia era aquela em que, apesar da proibiç"o, voltando da caça ao final da tarde e sem nada mais ter 

conseguido abater, o marido entregou mulher uma ave, para que a depenasse e a co(esse e fosse alimento de ambos. assim a mulher fe(, metendo os dedos por entre as penas ainda brilhantes, arrancando-as aos punhados, e entregando

%gua e ao fogo aquele corpo agora morto, que a fogo e %gua nunca havia pertencido, mas sim ao ar e terra.

Tivesse olhado para o alto por um minuto, tivesse detido por um instante sua tarefa e levantado o olhar, e teria visto pela

 janela bandos daquelas mesmas aves migrando rumo ao 3este. Mas a mulher s' olhava para as coisas quando precisavaolh%-las. n"o precisando olhar o c!u n"o ergueu a cabeça.

Co(ida a carne da ave, regalou-se engolindo os bocados sem quase mastigar, firmou os dentes nos ossos, sugou o tutano. 5marido n"o. Repugnou-lhe a carne t"o escura. 3imitou-se a molhar o p"o no caldo, maldi(endo sua pouca sorte de caçador.

+assados dias, a mulher nem mais se lembrava do seu raro banquete. 5utras carnes assavam e eram ensopadas na co(inha

daquela casa, na co(inha que era quase toda a casa. Mas uma inquietaç"o nova lhe despontava no coraç"o. Hnterrompia seus

afa(eres de repente, como nunca havia feito. +aradas breves, quase nada. m suspender do queio, um vibrar de pestanas.m alerta. Resposta do corpo a algum chamado que ela sequer ouvia. $ agulha ficava parada no ar, a colher suspensa sobre

a panela, as m"os metidas na tina. a cabeça, cabeça que agora se movia com a delicade(a que s' um pescoço mais longo poderia lhe dar, espetava o ar.

$ mulher olhava ent"o para aquilo de que n"o precisava. olhava como se precisasse. 0' por instantes, a princ6pio. m

seguida, um pouco mais.

#emorando-se, olhou primeiro adiante. $diante de si. adiante daquilo que tinha diante de si. +or uns tempos pousando oolhar nos m'veis, nos poucos m'veis daquela casa e nos objetos que houvesse em cima deles. #epois varando-os, varando

as paredes, olhou para a dist@ncia em linha reta. 5 que via n"o di(ia. 5lhava, sacudia num gesto suave a cabeça. tornava aabai%-la. $ agulha descia, a colher mergulhava na panela, as m"os afundavam da tina.

Talve( levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou a olhar para os lados. 5lhava para o lado esquerdo, demorava-

se, im'vel. , súbita, voltava-se para o lado direito.

 *ingu!m lhe perguntava o que estava olhando. 5 único olhar que nela parecia importar para os outros ainda era o antigo,de quando s' olhava o que era necess%rio.

assim um dia aquela mulher para a qual ningu!m olhava olhou o c!u. 0em que tivesse chovido ou fosse chover. 0em quehouvesse rel@mpagos. 0em que sequer houvesse nuvens ou o tempo fosse mudar, ela olhou para o c!u.

#elicado fa(ia-se seu pescoço agora que o movimentava ligeiro condu(indo a cabeça nas suas perscrutaç?es. ra um

 pescoço p%lido, protegido da lu( por tantos anos de cabeça baia. sobre esse pescoço a cabeça como que se estendia

olhando para cima, com a mesma reta intensidade com que havia começado varando paredes.

 5lhava, pois para o alto, quando um bando das aves passou sobre a casa rumo ao 3este.

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=% muito as folhas haviam-se banhado de cobre, o solo começava a fa(er-se duro no frio. as aves de carne escura

seguiam no c!u em direç"o ao sol.

#e p!, a mulher olhava. continuou olhando at! que as aves empalideceram na [email protected] vento batia os longos panos da sua saia, estalava as asas franjadas do seu ale. *"o, ela n"o voou. como poderia2 0aiu

andando, apenas. scura como a tarde, acompanhando seu pr'prio olhar, saiu andando para a frente, sempre para a frente,

rumo ao 3este. Por "reço de ocasio

Comprou a esposa numa liquidaç"o, pendurada que estava, junto com outras, no grande cabide circular. 0uas posses n"o

lhe permitiam adquirir lançamentos novos, modelos sofisticados. Contentou-se, pois com essa, fim de estoque, mas preço

de ocasi"o.m casa, por!m, longe da agitaç"o da loja - homem escolhendo mulher, homem pagando mulher, homem metendo mulher 

em saco pardo e levando s ve(es mais de uma para aproveitar o bom neg'cio - percebeu que o estado da sua compradeiava a desejar.

<> claro<, pensou reparando na sujeira dos punhos, no amarrotado da pele, nos tufos de cabelos que mal escondiam rasg?esdo couro cabeludo, <les n"o iam liquidar coisa nova.<

Conformado, deitou-a na cama pensando que ainda serviria para algum uso. , abrindo-lhe as pernas, despejou l% dentro,uma por uma, brancas bolinhas de naftalina.

 1ela como uma "aisa(em

Casou com ela porque pressentiu, debaio da seda do vestido, uma certa @nsia ind'cil das carnes, desejo de epans"o aindan"o reali(ado. , embora no princ6pio, ainda magra, lhe parecesse agulha perdida no palheiro dos lenç'is, logo percebeu

que n"o se enganara.

9ome e gula habitavam a esposa. Com que pra(er os l%bios fa(iam-se em ponta sugando sopas, mamando o licor dos bombons, chupando os ossos das aves enquanto a l6ngua procurava o secreto tutano. Com quanta volúpia aqueles mesmosl%bios se arreganhavam abrindo espaço para que os pequenos dentes pontiagudos afundassem nas carnes, arrancassem

nacos do p"o, dilacerassem as frutas, partindo, mascando, moendo incessantes, sempre sob o comando de um novo desejo., como se tocados pelo pr'prio movimento dos mailares, estufavam-se os peitos, enchiam- se as coas, o corpo todo

ampliava suas fronteiras. Curvas surgiam onde antes se adivinhava o perfil dos ossos, volumes inchavam as antigas

 plan6cies. /% n"o cabiam as roupas, fa(iam-se pequenos os sapatos.

0edu(ido, ele acompanhava o levedar. *"o precisava mais procur%-la entre os lenç'is. 5nde quer que se virasse, onde quer que apoiasse a m"o, l% estava ela macia, enorme, acolhedora, cheia de sali)ncias onde segurar, cheia de consist)ncias em

que afundar os dedos.#esdobrando-se o corpo da mulher, fe(-se necess%rio cama maior. , quando mesmo essa n"o foi mais capa( de cont)-la,

outra foi encomendada, perfa(endo superf6cie de muitos metros quadrados, e eigindo, por sua pr'pria dimens"o, ser

colocada na sala. $gora, impossibilitada de levantar-se, j% que as pernas n"o lhe suportariam o peso, a mulher consumia em

sua imensa cama as bandejas de guloseimas que o marido, sol6cito e constante, providenciava. *em sobravam farelos, queela catava com a ponta dos dedos e, entrefechando os olhos, depositava et%tica sobre a l6ngua.

Mais e mais aumentava a mulher. =% muito havia estourado a pulseirinha que ele lhe pusera no torno(elo. =% muitodesistira de vestidos ou camisolas. *ua, sua branca imensid"o ja(ia sobre os lenç'is, perdido o seo entre as dobras da

carne, invadido o espaço por ancas e n%degas.

5lhando o p%lido ventre que em dunas se estendia como um deserto, o homem pensava que em breve tamb!m aquela cama

n"o seria suficiente. Teria ent"o que transportar a mulher para o ar livre, onde nada tolhesse o seu crescer. haveria de chegar o dia da sua maior beatitude, quando, deitado no cume do seio esquerdo, veria o sol se p7r atr%s do

direito.

 #on(e como o meu %uerer

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Regressava ao castelo com suas damas, quando do alto do cavalo o viu, jovem de longos cabelos beira de um campo. ,

embora os tantos jovens do castelo, a partir daquele instante foi como se n"o houvesse mais nenhum. *enhum al!m

daquele.K noite, no banquete, n"o riu dos saltimbancos, n"o aplaudiu os músicos, mal tocou na comida. $s m"os p%lidas

repousavam. 5 olhar vagava distante.

- &ue tens, filha, que te vejo t"o pensativa2 - perguntou-lhe o pai.- 5h: pai, se soubesses: - eclamou ela, feli( de partilhar aquilo que j% n"o lhe cabia no peito. contou do rapa(, do seulindo rosto, dos seus longos cabelos.5 que o pai pensou n"o disse. Mas no dia seguinte, senhor que era daquele castelo e das gentes, ordenou que se decapitasseo jovem e se atirasse seu corpo ao rio. $ cabeça entregou filha em bandeja de prata, ele que sempre havia satisfeito as

suas vontades.

- $qui tens o que tanto desejavas. sem esperar resposta, sem sequer procur%-la em seus olhos, retirou-se.

0a6do o pai, a castel" lavou aquele rosto, perfumou e penteou os longos cabelos, acarinhou a cabeça no seu colo. K noite

 pousou-a no travesseiro ao lado do seu, e deitou-se para dormir.+or!m no escuro, fundos suspiros barraram a chegada do seu sono.

- +or que suspiras, doce moço2 - perguntou voltando-se para o outro travesseiro.- +orque deiei a terra arada no meu campo. as sementes preparadas no celeiro. Mas n"o tive tempo de semear. no meucampo nada crescer%.- *"o te entristeças - respondeu a castel". - $manh" semearei teu campo. *o dia seguinte chamou sua dama mais fiel, pretetou um passeio, e sa6ram ambas a cavalo.$pearam no campo onde ela o havia visto a primeira ve(. $ terra estava arada. *o celeiro encontraram as sementes. $

castel" calçou tamancos sobre seus sapatinhos de cetim, n"o fosse a lama denunci%-la ao pai. durante todo o dia lançousementes nos sulcos.

K noite deitou-se eausta. j% ia adormecer quando fundos suspiros a retiveram beira do sono.

- +or que suspiras, doce moço, se j% semeei teu campo2

- +orque deiei minhas ovelhas no monte, e sem ningu!m para tra()-las ao redil ser"o devoradas pelos lobos.- *"o te entristeças. $manh" buscarei tuas ovelhas. *o dia seguinte chamou aquela dama que mais que todas lhe era fiel, e pretetando um passeio sa6ram juntas al!m dosmuros do castelo.

0ubiram a cavalo at! o alto do monte. $s ovelhas pastavam. $ castel" cobriu sua saia com o manto, n"o fossem folhas e

espinhos denunci%-la ao pai. #epois com a ajuda da sua dama reuniu as ovelhas e, levando o cavalo pelas r!deas, desceu

com o rebanho at! o redil. &ue t"o cansada estava noite, quando o suspiro fundo pareceu cham%-la:

- +or que suspiras, doce moço, se j% semeei teu campo e recolhi tuas ovelhas2- +orque n"o tive tempo de guardar a última palha do ver"o, e apodrecer% quando as chuvas chegarem.

-  *"o te entristeças. $manh" guardarei a tua palha.&uando no dia seguinte mandou chamar a mais fiel, n"o foi preciso eplicar-lhe aonde iriam. +retetando desejo de ar 

livre, afastaram-se ambas do castelo.5s feies de palha, amontoados, secavam ao sol. $ castel" calçou os tamancos, protegeu a saia, enrolou tiras de pano nas

m"os, n"o fossem feridas denunci%-la a seu pai. começou a carregar os feies para o celeiro. $ntes do anoitecer tudo

estava guardado, e as duas regressaram ao castelo. *em assim manteve-se o sil)ncio no escuro quarto da castel".

- +or que suspiras, doce moço2 - perguntou ela mais uma ve(. +or que suspiras se j% semeei teu campo, recolhi tuas ovelhas eguardei tua palha2

- +orque uma tarefa mais ! necess%ria. acima de todas me entristece. $manh" dever%s entregar-me ao rio. 0' ele sabe ondemeu corpo espera. 0' ele pode nos juntar novamente antes de entregar-nos ao mar.

- Mas o mar ! t"o longe: - eclamou a castel" num lamento. naquela noite foram dois a suspirar.

$o amanhecer a castel" perfumou e penteou os longos cabelos do moço, acarinhou a cabeça, depois a envolveu um linhos brancos e chamou a dama.5s cavalos esperavam no p%tio, o oficial da guarda esperava no port"o. - 1amos entregar alguma comida para os pobres -

disseram-lhe. sa6ram levando seu fardo.

0eguindo junto margem, afastaram-se da cidade at! encontrarem um remanso. $li apearam. $bertos os linhos,

entregaram ao rio seu conteúdo. 5s longos cabelos ainda flutuaram por um momento, agitando-se como medusas. #epois

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desapareceram na %gua escura. #e p!, a castel" tomou as m"os da sua dama. &ue lhe fosse fiel, pediu, e talve( um dia

voltassem a se ver. $gora cada uma tomaria um rumo. +ara a dama, o castelo. +ara ela, o mar.

- Mas ! t"o longe o mar: - eclamou a dama.Montaram as duas. $ castel" olhou a grande plan6cie, as montanhas ao fundo. m algum lugar al!m daquelas montanhas

estava o mar. em alguma praia daquele mar o moço esperava por ela.

- $ dist@ncia at! o mar - disse t"o baio que talve( a dama nem ouvisse - se mede com meu querer. esporeou o cavalo.

 Fundaç2es

 *ove andares eclusivos luo. +rontos.

Chegou o primeiro caminh"o de mudança. #esceram os m'veis, desceram os tapetes, desceram os quadros, desceram osespelhos, desceram os cristais, desceram os baús. #esceu o cofre. tudo subiu para o primeiro andar, primeira laje.

ncostou o segundo caminh"o de mudança, que na verdade eram dois. #esceu a coleç"o de armas antigas, desceu a

coleç"o de santos barrocos, desceu a coleç"o de trajes teatrais, desceu a coleç"o de plantas carn6voras. #esceu o cofre. tudo

subiu para o segundo andar, segunda laje.9reou a carreta da mudança em que vinha o puro-sangue da dona da casa. #esceu o puro-sangue, desceram os arreios do

 puro-sangue, desceram os pr)mios do puro- sangue, desceram os amplos pastos do puro-sangue, desceram a f)meas que o puro- sangue cobriria. #esceu o cofre. tudo subiu para o terceiro andar, terceira laje.

$pitou o trem da mudança que tinha v%rios vag?es. #esceu a lona, desceram os acrobatas, desceram os an?es tra(idos na

coleira pelas feras, desceram os coelhos com o m%gico na cartola, desceu a mulher do m%gico carregando as duas partes em

que o m%gico a serraria, desceu o palhaço repetindo o segredo do cofre. tudo subiu para o quarto andar, quarta laje.$tracou o navio da mudança, #esceram as capas de peles da estrela, desceram suas roupas, seus sapatos, desceram as

unhas postiças, os c6lios postiços, os seios postiços, os olhos postiços, os dentes postiços, o brilho postiço. #esceu o cofreverdadeiro. tudo subiu para o quinto andar, quinta laje.

$joelharam-se os camelos da mudança. Aaiaram os odres, as veladas do har!m, baiou o minarete, o o%sis, os eunucos queguardariam o cofre. tudo subiu para o seto andar, seta laje.

+araram os c"es dos tren's da mudança. #esceram as focas, os buracos no gelo pelos quais as focas respiravam, os arp?es pelos quais as focas morriam, os iglus onde se fa(iam os arp?es e os icebergs dos quais eram feitos os iglus e o navio preso

na banquisa no qual estava o cofre. Tudo subiu para o s!timo andar, s!tima laje.Troueram o cofre da mudança. nada do que continha foi visto pelos que s' isso queriam ver, porque vinha envolto num

 pl%stico amarelo que o isolava dentro de uma caia de amianto que o protegia dentro de uma caia blindada, que o garantia

dentro de um caiote de manzanas Rio

 *egro que assegurava o disfarce de folhas de jornal. tudo subiu para o oitavo andar, oitava laje.+ousou o helic'ptero da mudança. o pr'prio dono desceu tra(endo com cuidado o pequeno vaso de vidro soprado no

vale da Mesopot@mia. com cuidado subiu levando-o at! o último andar.#ebaio desse peso o primeiro andar afundou lentamente, levando o segundo, tra(endo o terceiro, laje a laje, aos poucos

cobertas por completo, formando s'lido embasamento para o novo pr!dio de nove andares que j% em planta, antes da planta,

estava completamente vendido. 

Entre o leo e o unicórnio

 *o meio da noite de núpcias, o rei acordou tocado pela sede. /% ia se levantar quando, junto cama, do lado da sua rec!m-

esposa, viu deitado um le"o.

- *a certa - pensou o rei mais surpreso do que assustado -, estou tendo um pesadelo. , mudando de posiç"o parainterromper o sonho mau, deitou a real cabeça sobre o real travesseiro. m seguida, adormeceu.

#e fato, na manh" seguinte, o le"o havia desaparecido sem deiar cheiro ou rastro. o rei logo esqueceu t)-lo visto.squecido ficaria se, dali a algum tempo, acordando noite entre um suspiro e um ronco, n"o deparasse com ele no mesmo

lugar, fulvo e vigilante. #essa ve(, custou mais a adormecer.

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&uando a rainha despertou, o rei contou-lhe do estranho visitante noturno que j% por duas ve(es se apresentara em seu

quarto.

- 5h: 0enhor meu marido - disse-lhe esta constrangida -, n"o ousei revelar antes do casamento, mas desde sempre esse le"ome acompanha. Mora na porta do meu sono, e n"o deia ningu!m entrar ou sair. +or isso n"o tenho sonhos, e minhas noitess"o escuras e ocas como um poço.+enali(ado, o rei perguntou o que poderia fa(er para livr%-la de t"o cruel carcereiro.

- &uando o le"o aparecer - respondeu ela pegue a espada e corte-lhe as patas. *aquela mesma noite, antes de deitar, o rei botou ao lado da cama sua espada mais afiada. , assim que abriu os olhos na

semi-escurid"o, (ac: #ecepou as patas da fera de um s' golpe. #epois, mais sossegado, retomou o sono.#urante algum tempo dormiu todas as noites at! de manh", sem sobressaltos. Mas numa madrugada quente em que os

edredons de pluma pareciam pesar sobre seu corpo, acordando todo suado viu que o quarto real estava invadido por 

de(enas de beija-flores e que um ename de abelhas se agrupava na cabeceira. #epressa cobriu a cabeça com o lençol, e

debaio daquela esp!cie de mortalha atravessou as horas que ainda o separavam do nascer do dia. 0' ao perceber o primeiro

espreguiçar-se da rainha, emergiu de dentro da cama, contando-lhe da bicharada.

- que dormindo ao seu lado, meu caro esposo, cada ve( mais doces e mais floridos se fa(em meus sonhos - eplicou ela,sorrindo com ternura.

ele, desvanecido com tanto amor, pousou- lhe um beijo na testa. Muitos meses se foram, tranq4ilos.+or!m uma noite, tendo jantado mais do que devia mesa do banquete, o rei acordou em meio ao sil)ncio. 3evantou-se

disposto a tomar um pouco de ar no balc"o, quando, caracoleando sobre o m%rmore real do aposento, viu aproimar-se um

unic'rnio a(ul. *"o ousou tocar animal t"o ineistente. *"o ousou voltar para a cama. +erpleo, saiu para o terraço, fechou

rapidamente as portas envidraçadas, e encolhido num canto esperou que a manh" lhe permitisse interpelar a rainha.

 N > a montada da minha imaginaç"o N escusou-se ela. - 3eva meus sonhos l% onde eu n"o tenho acesso. ;alopa a noite

inteira sem que eu lhe tenha controle.T"o bonito pareceu aquilo ao rei, que na noite seguinte, quer por desejo, quer por acaso, no momento em que a mulher 

adormeceu, ele acordou. 3% estava o unic'rnio

 com seu chifre de cristal, batendo de leve os cascos, pronto para a partida. #essa ve( o rei n"o temeu. 3evou-lhe a m"o ao

 pescoço, alisou o suave a(ul do p)lo, e de um salto montou.nic'rnios de sonho n"o relincham. $quele levantou a cabeça, sacudiu a crina e, como se pisasse nos caminhos do vento,

 partiu a galope.;aloparam a noite toda. Mas antes que o sol nascesse, quando a escurid"o apenas começava a derreter-se no hori(onte, os

cascos mais um ve( pousaram no m%rmore. a real cabeça deitou-se no travesseiro.- 0onhei que vossa majestade fugia com a montada da minha imaginaç"o - disse a rainha ao esposo, de manh". - Mas estou bem contente de v)-lo agora aqui ao meu lado- acrescentou numa rever)ncia.5 rei, por!m, mal conseguia esperar pelo fim do dia. T"o rica e vasta havia sido a viagem, que s' desejava montar novamente naquele dorso, e, a(ul no ar a(ul, descobrir novos rumos. +ela primeira ve( as tarefas da coroa lhe pareceram

 pesadas, e tediosa a corte. #a rainha, s' desejava que, r%pido, adormecesse.#essa forma, noite ap's noite, partiu o rei nas costas do unic'rnio, para s' retornar ao amanhecer.

, a cada noite, mais diferente ficou.

/% n"o queria guerrear, nem dançar nos sal?es. /% n"o se interessava por caçadas ou tesouros. Trancado so(inho na sala do

trono durante horas, pensava e pensava, galopando na lembrança, livre como o unic'rnio.Ressentia-se, por!m a rainha com aquela aus)ncia. #oente, quase, de tanta desatenç"o, mandou por fim chamar a mais fiel

de suas damas de companhia. em grande segredo deu-lhe as ordens8 deveria esconder-se debaio da cama real, cuidando

 para n"o ser vista. ali esperar pelo sono da rainha. T"o logo esta adormecesse, veria surgir um le"o sem patas. &ue n"o

temesse. +egasse as patas que ja(iam decepadas sua frente, e, com um fio de seda, as costurasse no lugar.

Tendo obtido da moça a promessa de que tudo faria conforme o eplicado, deitou-se a rainha logo ao escurecer,

 pretetando grande cansaço. *o que foi imediatamente acompanhada pelo rei.Custava por!m o sono a chegar. 1irava-se e revirava-se o casal real sobre o colch"o, enquanto embaio a dama de

companhia esperava. , de tanto esperar, o sono acabou chegando primeiro para ela, que, sem perceber, adormeceu.

$cordou noite altaI quando h% muito o unic'rnio tinha vindo buscar o seu ginete. $ssustada, n"o querendo faltar com a

 promessa e ouvindo o ressonar da rainha, rastejou para fora da cama. 3% estava o le"o, deitado e im'vel. 3% estavam as

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 patas sua frente. Rapidamente pegou a agulha enfiada com o longo fio de seda, e em pontos bem firmes costurou uma

 pata. #epois a outra.

3e?es de sonho n"o rugem. $quele levantou a cabeça, sacudiu a juba e firme sobre as patas retomou a sua tarefa deguardi"o. *enhum sonho mais sairia das noites da rainha. *enhum entraria. *em mesmo aquele em que um unic'rnio a(ul

galopava e galopava, levando no dorso um rei para sempre errante.

 Semelhança

I

1ivia di(endo que eu parecia uma pantera. &ue o andar, que os olhos. u deitava a cabeça no ombro dele e miava baiinho.

II1ivia di(endo que eu parecia uma pantera. &ue o andar, que os olhos. eu me apanterava toda para agrad%-lo.

III1ivia di(endo. Mas s' acreditei no dia em que, saltando do arm%rio, cravei-lhe os dentes na carne e o devorei.

 Al)m do muro* os coiotes

 *"o ! uma janela estreita. > alta. T"o alta que parece fa(er-se mais fina em direç"o ao teto. Tem postigos de madeira grossa

abertos sempre, vene(ianas de madeira verde, sempre encostadas. ! s' uma, naquele quarto. Mas n"o ! da janela que

devemos nos ocupar, e sim da lu( que por ela entra. 5u quase n"o entra. +ois ! essa lu( pouca que, ocupando com seu

volume aqu%tico e denso todo o quarto, estabelece as dimens?es. com tal inquebr%vel autonomia que, abrindo a porta para

entrar e percebendo que a escura transpar)ncia n"o escoa nem se transfere ao outro c7modo, somos levados a crer que n"o

s"o as paredes que a cont)m, embora espessas, mas que, derrubadas estas, ela se manteria igualmente s'lida, de p! como

uma caia ou bloco. nessa caia que ele vive. 5 homem jovem de cabeça branca.

Talve( fosse mais justo colocar tudo no passado. Mas por que, se a janela ainda est% l%, com suas vene(ianas meio

encostadas, naquele segundo andar do pr!dio antigo, e se a lu( l% dentro ! certamente a mesma, faltando apenas o

rodamoinho mais claro que se formava no centro do quarto, leve brilho prateado que denunciava a cabeça contra o espaldar 

da poltrona2le n"o fechava a porta do quarto. ra um homem gentil. Mantinha-a entreaberta, soubessem todos que cultivava ali

sil)ncio igual ao da sua aus)ncia. *em era recluso. Ha rua, comprava jornal, fa(ia suas refeiç?es mesa junto aos outros.

0ua vida mais intensa, por!m, aquele eventual fremir que altera o olhar ou fa( vibrar a aba do nari(, mantinha-se oculta.

 *"o atr%s dos 'culos, porque raramente os usava. $tr%s do p%lido a(ul dos olhos, ent"o.

0' no quarto se eercia.$gora todos se perguntam o que ele fa(ia ali. +arece dif6cil acreditar que fi(esse t"o pouco. &ue fi(esse t"o menos do que o pouco que havia feito no passado. &ue ficasse sentado, como ficava, abanando-se lentamente com o leque chin)s de onde o

desenho j% desbotara.3evantava-se da mesa levando sua 6cara de ch%, uma revista, despedia-se dos demais com um sorriso educado que n"o se

endereçava a nenhuma das pessoas presentes, mas somente consuetude do pr'prio sorriso, e ia sentar-se no aconchego

uterino da poltrona.

u sempre soube que n"o lia a revista. *"o ali. como poderia sem claridade e sem acender a lu(2 0egurava o leque emuma m"o, a revista na outra. , embora at! as movesse, n"o era delas que se ocupava, nem elas invalidavam com seus

gestos a entrega muscular do corpo. ra seu olhar que agia. 0eu olhar, que dificilmente se reconheceria a(ul naquele

escuro, tinha ent"o palpitaç?es. *a tarde em que, j% de p! e sorridente, me convidou a acompanh%-lo, atendi com pra(er. Talve( tivesse curiosidade de ver o

que se escondia l% dentro ou talve( quisesse apenas ser gentil como ele era comigo, sem comprometimento, mas com

suavidade. /% n"o lembro. 3embro, isso sim, de ter entrado com um certo cuidado f6sico, como quem penetra em recintosagrado. 0into ainda meus passos lentos, a sensaç"o do pescoço estendido para a frente. Cheirava a madeira antiga o quarto,

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um cheiro de guardado e ess)ncias como o de certas gavetas. +assados anos, n"o sei ao certo se as paredes eram de fato

 pintadas de verde escuro ou se assim me pareceram. Certo mesmo ! que havia

  muitos livros empilhados sobre os m'veis, ocupando uma cadeira, o tampo da escrivaninha. algumas fotografias emmolduras de prata. m quarto como tantos, afinal, com drapear de panos meio esbatidos na sombra, cortina ou colcha. Mas

n"o era para olhar o quarto que ele havia me chamado.

&ueria me mostrar alguma coisa. *"o chegou a di()-lo, mas estava impl6cito no tom com que me chamou para acompanh%-lo, na leve ansiedade que, do olhar, lhe contaminou o sorriso. /% algumas ve(es eu havia percebido aquele mesmo olhar,

quando falava do seu passado, quando me mostrava um objeto ou um papel que havia pertencido sua fam6lia, ou quando,

n"o sem vaidade, eibia algum de seus trabalhos, ele t"o habilidoso, t"o capa( com as m"os.#essa ve( eu tamb!m levei minha 6cara de ch% para o quarto. *"o nos demoramos em conversasI qualquer conversa - senti

isso claramente - teria que vir depois. 5 que ele queria que eu visse estava em cima de um banquinho, coberto por uma capa

de pl%stico. &ue ele tirou, n"o sem uma certa teatralidade.

ra uma casa. $ maquete de uma casa. *"o chegava a dois palmos de altura. ;raciosa, angulosa, cheia de telhados e

reentr@ncias, com grandes vidraças e um muro ao redor. $qu!m do muro, o jardim. Menos que um jardim, algumas %rvores

apenas, descarnadas, %rvores de inverno que ele havia feito com galhos secos.

> uma casa para as montanhas, me disse, parado por um instante, deiando que eu a olhasse antes de começar a eplic%-la. logo abriu o telhado com dedos delicados para que eu visse l% dentro o quarto, o banheiro. fe( girar sobre si uma parede

eterna mostrando onde seriam a biblioteca, o jirau sobre a biblioteca, a lareira.

> a casa que eu faria se voltasse s Montanhas Rochosas, disse tamb!m. me fe( reparar no p%tio interno, e eu pensei que

era uma boa id!ia o muro porque nas Rochosas os coiotes, como se houvesse coiotes nas Rochosas, pensei ainda, mas

talve( haja.> uma bela casa para se ter nas montanhas, Rochosas ou n"o, eu disse a ele. acrescentei, n"o sabia que voc) tinha

voltado a fa(er maquetes. *"o voltei n"o, respondeu, s' esta. tomamos ch% em p! olhando a casa como se estiv!ssemos

sentados diante da lareira debaio do jirau.

#epois, descendo as escadas e chegando rua, percebi, como se algu!m - e n"o eu mesmo - estivesse me chamando a

atenç"o para um fato que por desimportante eu ia apagando antes de registar, que havia poeira sobre aquele pl%stico. $ casa,ent"o, estava pronta h% algum tempo. s' agora, por alguma ra("o, ele havia sentido necessidade de me mostrar.+or que eu comentaria com algu!m2 m pequeno gesto de nostalgia, um r%pido voltar antiga habilidade. *"o era mais do

que isso.

$ 6cara de ch% na m"o, o sorriso, os passos discretos, e o leque. Hmagino que tenha continuado assim. *"o nos vimos por 

algum tempo.

um dia me disseram que ele havia desaparecido. 0em que se soubesse como, sem que se soubesse eatamente quando.

0aiu de casa, n"o voltou. $l!m da sua aus)ncia, n"o havia qualquer evid)ncia. +arecia estar h% v%rios dias no quarto. $ porta continuava encostada e n"o havia por que estranhar, j% que ele sa6a cada ve( menos. ntretanto, quando se

 preocuparam e foram procur%-lo, nenhum refleo prateado brilhava contra o espaldar escuro da poltrona. $ revista, sobre a

cama. 5 leque, no ch"o. 5 quarto, va(io. *ingu!m havia ouvido nada, o sil)ncio continuava a fluir igual a todos os

 sil)ncios que haviam habitado aquele quarto. *ingu!m o havia visto sair - mas era t"o comum que sa6sse com seus passosleves, evitando at! mesmo deiar estalar o trinco da porta para n"o ser percebido.

9ui at! l% confortar os familiares. , em parte para escapar ao peso da situaç"o, em parte para concluir a relaç"o querepentinamente se havia tornado abstrata, pedi para recolher no quarto um livro que lhe havia emprestado. 5 mesmo cheiro

antigo. $s vene(ianas encostadas. 5s vidros abertos. $gua escura parecia estagnar entre as paredes. $ cama estava feita.

$panhei meu livro sobre a escrivaninha, onde algu!m havia pousado o leque. 5lhei brevemente os retratos emoldurados

 procurando o dele, que n"o achei. 1irei-me para sair. foi nesse gesto sem qualquer intenç"o, nesse gesto casual em que minha cabeça girou lentamente e meu olhar distra6do

cortou a penumbra em diagonal, como um machado caindo sobre um tronco, que eu vi, num relance vi, debaio do pl%sticoempoeirado, talve( al!m do muro, acesa, uma lu(.

 Hidra

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0empre chegando em casa noite, ela o desafiava com sua força, centro de atenç"o e de todo o afeto, televis"o-fulcro da

fam6lia adorante.

 *ingu!m o olhava, ningu!m reverenciava sua chegada de chefe, lutador do sustento. Mal viravam a cabeça na sua direç"o, petrificados por prefios e jingles. n"o havia alternativa que n"o se agregar ou ser despre(ado.

ma noite, cansado do repúdio, ergueu a espada e, entre gritos e prantos, zapt, cortou a televis"o ao meio.

0oluços cercaram as duas partes inertes no tapete, sem que alma piedosa arrancasse a tomada inutilmente cravada na parede. 9oi dormir aliviado, dono do reconquistado sil)ncio.

 *"o haveria por!m de receber em pa( o novo dia. $ntes do amanhecer vo(es o arrancaram do sono e do pijama. Correu

abotoando compostura. *a sala, loqua(es e un6ssonas, desabrochavam duas televis?es.&ue no gume e na ponta estilhaçou, respingado de súbitas centelhas.

m dia de pa(. *"o mais lhe concederam os destroços. *em mais necessitavam para em sil)ncio recriar suas forças emúltiplas erguer novas cabeças.

$gora, quando chega perdedor, sete televis?es falam e cantam no centro da fam6lia. le se aproima de cabeça baia, pua

a cadeira e senta- se de costas. 5 espelho da parede lhe devolve a novela. &ue ele acompanha sem coragem de perder o

cap6tulo, sem forças para olh%-la nos olhos.

 /3deo e 'udio

 *a T1 da sala a pol6cia locali(ava finalmente os bandidos escondidos no apartamento. *a T1 do quarto o detetive

aproimava-se da sala onde o man6aco mantinha presa a ref!m. *a porta da sala o assaltante encostou a arma contra o peitoda empregada que atendeu campainha.

5 assaltante e a empregada entraram na sala. *a T1 a pol6cia começou a atirar contra a porta do apartamento. 5 assaltante

rendeu a fam6lia, encostou todos contra a parede de m"os levatadas, menos a filha que estava no quarto, onde na T1 o

detetive chegava-se por tr%s sem ser percebido.5 assaltante mandou a empregada buscar a filha no quarto. 5 detetive prendeu o silenciador no cano da arma. 5 assaltante

rasgou a blusa da filha com um pu"o. $ porta começou a ceder sob os tiros da pol6cia. 5 assaltante passou um braço aoredor da cintura da filha, mantendo o rev'lver encostado na sua t)mpora e os olhos na porta. 5 detetive encostou o

silenciador na t)mpora do man6aco. $ porta veio abaio. $ fam6lia, de cara para a parede, viu o reboco rendilhar-se em

 balas e sangue, ouviu gritos e passos.

Mas o prefio musical dos comerciais veio libert%-los da posiç"o inc7moda. 9oi o tempo de lavar rostos e m"os, arrumar adesordem. 5 cad%ver do assaltante esconderam debaio da cama. Tratariam dele depois da novela.

 De,ai0o da "ele* a lua

Chegado o tempo, uma moça se fe( mulher. Mulher n"o como as outras, por!m. T"o clara a sua pele: por baio dessa pele, vinda da pr'pria carne, uma luminosidade que aflorava em certos dias, e nos seguintes se intensificava, dia a dia, lu( a

lu(, at! alcançar o esplendor de tantas chamas frias, de tantas im'veis estrelas. nt"o os cabelos da mulher se fa(iam mais

cheios, leite gotejava dos seus seios, e as bacias e as tinas da sua casa transbordavam.

$quela mulher tinha a lua debaio da pele., estando uma tarde porta da sua casa, quando o sol j% se punha, foi vista pelo homem mais rico da regi"o, que ia

 passando a cavalo. *unca ele havia encontrado uma mulher como aquela, mais semelhante s p!rolas do que s outras mulheres.

Hmediatamente, a quis em casamento.

 *a escurid"o do quarto nupcial, por!m, surpreendeu-se o homem percebendo que a pele da esposa n"o era tomada pelas

sombras mas, ao contr%rio, destacava-se ainda mais p%lida do que ele a havia visto quela tarde. com o passar das noitessua surpresa tornou-se espanto, enquanto a mulher se fa(ia mais e mais clara, iluminando a princ6pio as superf6cies

 pr'imas, e logo derramando sua luminosidade de prata em todo o quarto.<ssa mulher<, pensou o homem cheio de desconfiança, <vai acabar brilhando mais com sua lu( do que eu com meu

dinheiro.<

0em demora, alegando que ela s' lu(ia para impedi-lo de dormir e que o levaria morte, desfe( o casamento.

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#e novo em casa, a mulher que tinha a lua debaio da pele iluminou sua solid"o durante algum tempo. Mas n"o tardou

muito para que a lu( percorresse em direç"o oposta os mesmos caminhos que a haviam tra(ido, recolhendo-se escurid"o

do corpo, e deiando a mulher apagada e pronta para longos sonos.Cedo passou seu tempo de repouso. uma noite, prudentemente fechadas as janelas para que sua plena lu( n"o perturbasse

as trevas alheias, foi vista por um ladr"o que passava rente ao muro.

ra uma fresta apenas, que deiava va(ar a lu( por entre os postigos. Mas bastou a l@mina daquele raio para chamar aatenç"o do ladr"o. $proimou-se sorrateiro, espiou para dentro. l% estava a mulher, lu(indo.

<&ue belo dinheiro posso tirar dela eibindo-a nas feiras:<, pensou faiscando seu olhar de gato.

sperou at! que se deitasse, que estivesse bem dormida. nt"o forçou um trinco, abriu um batente, entrou com passos levese, atirando em cima dela uma capa preta, carregou- a na escurid"o.

Morava em uma cabana longe dali. Chegando, prendeu a mulher ao p! da mesa com uma corrente, atirou-se na cama ecomeçou a roncar. Roncou o que restava da noite, roncou todo o dia seguinte. 0' acordou ao anoitecer, hora de ladr"o

trabalhar. saiu, n"o sem antes avisar mulher que quando tivesse roubado dinheiro suficiente para comprar um cavalo,

uma carroça e algumas roupas vistosas iria eibi-la nas feiras.

1oltou de manh" com os bolsos cheios e alguma comida. 0em di(er palavra, p7s-se a roncar. o mesmo aconteceu nos dias

seguintes. #esse modo, dormindo com o sol e saindo ao escurecer, o ladr"o n"o percebeu que a lu( da mulher perdia pouco a pouco a intensidade que haveria de fa()-lo

rico. na noite em que, afinal, tendo juntado o dinheiro necess%rio, resolveu ficar em casa, deparou-se com uma mulher 

igual a qualquer outra, sem o m6nimo brilho, apenas mais p%lida que as demais. *a feira, quem ia pagar para ver uma

mulher apenas p%lida2

9urioso, soltou a corrente e empurrou sua prisioneira porta afora.#e novo em casa, a mulher que tinha a lua debaio da pele. $pagada e sonolenta. Mas n"o por muito tempo.

#essa ve(, quando as tinas começaram a transbordar e a cabeleira derramou-se cheia, ela nem esperou o p7r-do-sol.

Trancou bem a porta, fechou bem fechados os postigos das janelas, vedou cada frincha. &ue ningu!m a visse:

 *"o sabia que no alto, entre as telhas, a lu( escapava denunciando-a. 0' havia sono ao redor, quando algu!m

 bateu porta.3evantou-se a mulher, cautelosa. $briu uma fresta.K sua frente, um cavalo negro. no alto da sela, envolta em um manto t"o escuro que mal se lhe distinguiam os contornos,

uma dama.

$ntes mesmo que a mulher avançasse no umbral, sua pele estremeceu por sobre a lua, sua luminosidade ondejou como

refleo de lago. ela soube quem tinha vindo busc%- la.

5 cavalo sacudiu a crina, impaciente. $ dama debruçou-se, chamando-a. 0em voltar-se para olhar sua casa, a mulher 

estendeu a m"o, e montou no cavalo da *oite.

 Os sentidos

Todos os s%bados de manh" ia buscar o mar no fundo da concha. ncostava a vulva nacarada ao ouvido, fechava os olhos,

e durante horas ficava ouvindo as ondas, perdido at! sentir gosto de sal.

9altava, por!m alguma coisa.

+rocurou nos anúncios de jornal, nas revistas especiali(adas, escreveu cartas. +or fim conseguiu o que queria.

$gora aos s%bados de manh" veste o calç"o, senta no sof% e, enquanto a m"o direita segura a concha junto ao rosto, a

esquerda pua a corrente presa ao p! da gaivota para que ela grite estridula, canto de liberdade sobre espumas.

 Uma en(rena(em

#esmontou a cabeça, peça por peça. $(eitou, poliu, limpou com flanelas. #epois começou a montar. +ronta, viu que uma

engrenagem tinha ficado na mesa. +ensou em recomeçar. Tentou. *"o conseguiu. 9altava, para saber desmontar, aquela

engrenagem principal

 #u- de lanterna* so"ro de !ento

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Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua aus)ncia a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do

lado de fora da casa. <+ara tra()-lo de volta,< murmurou. foi dormir.Mas, ao abrir a porta na manh" seguinte, de- parou-se com a lanterna apagada. <9oi o vento da madrugada,< pensou

olhando para o alto como se pudesse v)-lo soprar.

K noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a dist@ncia, haveria de indicar ao seu homem o caminho decasa.

1entou de madrugada. Mas era t"o tarde e ela estava t"o cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das %rvores, nem o gemido

das frestas, nem o ranger da argola da lanterna. de manh" surpreendeu-se ao encontrar a lu( apagada. *aquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o c!u l6mpido, as claras estrelas. <*a certa n"o ventar%,<

disse em vo( alta, quase dando uma ordem. encostou a chama do f'sforo no pavio.0e ventou ou n"o, ela n"o saberia di(er. Mas antes que o dia raiasse n"o havia mais nenhuma lu(, a casa desaparecia nas

trevas.

$ssim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual

const@ncia, apagava.

Talve( meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna, a mulher viu ao longe, recortada contra a lu(que lanhava em sangue o hori(onte, a escura silhueta de um homem a cavalo. m homem a cavalo que galopava na suadireç"o.

$os poucos, apertando os olhos para ver melhor, distinguiu a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da couraça.

ra um soldado que vinha. 0eu coraç"o hesitou entre o medo e a esperança. 5 f7lego se reteve por instantes entre os l%bios

abertos. j% podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. ra seu marido que vinha.$peou o marido. Mas s' com um braço rodeou-lhe os ombros. $ outra m"o pousou na empunhadura da espada. *em fe(

menç"o de encaminhar-se para a casa.&ue n"o se iludisse. $ guerra n"o havia acabado. 0equer havia acabado a batalha que deiara pela manh". Coberto de poeira

e sangue, ainda assim n"o havia vindo para ficar. <1im porque a lu( que voc) acende noite n"o me deia dormir,< disse-

lhe quase r6spido. <Arilha por tr%s das minhas p%lpebras fechadas, como se me chamasse. 0' de madrugada, depois que ovento sopra, posso adormecer.<$ mulher nada disse. *ada pediu. ncostou a m"o no peito do marido, mas o coraç"o dele parecia distante, protegido pelo

couro da couraça. <#eie-me fa(er o que tem que ser feito, mulher,< disse sem beij%-la. #e um sopro apagou a lanterna.Montou a cavalo, partiu. $densavam-se as sombras, e ela n"o p7de sequer v)-lo afastar-se recortado contra o c!u.

$ partir daquela noite, a mulher n"o acendeu mais nenhuma lu(. *em mesmo a vela dentro de casa, n"o fosse a chama

acender-se por tr%s das p%lpebras do marido.

 *o escuro, as noites se consumiam r%pidas. com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. 0em saber ao certoquanto tempo havia passado, ela sabia por!m que era tanto.

 , passado outro tanto, num final de tarde em que soleira da porta despedia-se da última lu( no hori(onte, viu desenhar-se

l% longe a silhueta de um homem. m homem a p! que caminhava na sua direç"o. +rotegeu os olhos com a m"o para ver 

melhor e aos poucos, porque o homem avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baia, o contorno dos ombros

cansados. Contorno doce, sem couraça. =esitou seu coraç"o, retendo o sorriso nos l%bios - tantos homens haviam passado

sem que nenhum fosse o que ela esperava. $inda n"o podia ver-lhe o rosto, oculto entre barba e chap!u, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, liberando o coraç"o. ra seu marido que voltava da guerra.

 *"o precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar. Caminharam at! a casa. /% iam entrar, quando ele se reteve. 0em

 pressa voltou-se, e, embora a noite ainda n"o tivesse chegado, acendeu a lanterna. 0' ent"o entrou com a mulher. fechou

a porta.

 Sem no!idades no &ront

sperava que o marido voltasse da guerra. #urante os primeiros anos, quando ele certamente n"o chegaria, preparou

compotas. #epois, a partir do momento em que o regresso se tornava uma possibilidade iminente, assou p"es, e a cadasemana uma torta de peras, enchendo a casa com o perfume açucarado que, antes mesmo do seu sorriso, lhe daria as boas-

vindas.

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m dia chegou o vi(inho da frente. *o outro chegou o vi(inho do lado. seu marido n"o chegou. 1oltaram os g)meos

morenos. 1oltaram os tr)s irm"os louros. seu marido n"o voltou. $os poucos, todos os homens da pequena cidade

estavam de volta suas casas. Menos um. 5 seu.+aciente, ainda assim ela espanava os vidros de compotas, abria em cru( a massa levedada, e descascava p)ras.

=% muito a guerra havia terminado quando a silhueta escura parou hesitante frente ao seu port"o. $ntes que sequer batesse

 palmas, foi ela receb)-lo, de avental limpo. puando-o pela m"o o troue para dentro, fe( que lavasse o rosto na piamesmo da co(inha, sentasse mesa, enfim um homem no espaço que a ele sempre fora dedicado. ncheu-lhe o copo de

vinho, serviu-lhe a fatia de torta. +rofunda pa( a invadia enquanto o olhava comer esfaimado. , esforçando-se para n"o

 perceber que aquele n"o era o seu marido, começou a fa(er-lhe perguntas sobre o front.

 4entando se se(urar numa alça lil's

ntrou no elevador.

$ um canto, outra mulher segurava firme debaio do braço uma enorme bolsa de couro lil%s.

- &ue ousadia, uma bolsa lil%s - sorriu ela.

- $cabei de di(er a um homem que o amo - respondeu a outra. - nt"o entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. u precisava sentir nas m"os a minha aud%cia. *"o sorriu. $garrou-se n%ufraga na alça.

 A mulher ramada

1erde claro, verde escuro, canteiro de flores, arbusto entalhado, e de novo verde claro, verde escuro, imenso lençol do

gramadoI l% longe o pal%cio. $ssim o jardineiro via o mundo, toda ve( que levantava a cabeça do trabalho.

via carruagens chegando, silhuetas de damas arrastando os mantos nas al!ias, cavaleiros partindo para a caça.

Mas a ele, no canto mais afastado do jardim, que a seus cuidados cabia, ningu!m via. +lantando, podando, cuidando do

ch"o, confundia-se quase com suas plantas, mimeti(ava-se com as estaç?es. se s ve(es, distra6do, murmurava so(inhoalguma coisa, sua vo( n"o se entrelaçava música distante que vinha dos sal?es, mas se deiava ficar por entre as folhas,sem que ningu!m a viesse colher.

/% se fa(ia grande e frondosa a primeira %rvore que havia plantado naquele jardim, quando uma dor de solid"o começou a

enrai(ar-se no seu peito. passados dias, e passados meses, s' n"o passando a dor, disse o jardineiro a si mesmo que j% era

tempo de ter uma companheira. *o dia seguinte, tra(idas num saco duas belas mudas, o homem escolheu o lugar, ajoelhou- se, cavou cuidadoso a primeira

cova, mediu um palmo, cavou a segunda, e com gestos s%bios de amor enterrou as ra6(es. $o redor afundou um pouco aterra, para que a %gua de chuva e rega mantivesse sempre molhados os p!s de rosa.

9oi preciso esperar. Mas ele, que h% tanto esperava, n"o tinha pressa. quando os primeiros, t)nues, galhos despontaram,

carinhosamente os podou, dispondo-se a esperar novamente, at! que outra brotaç"o se fi(esse mais forte.#urante meses trabalhou condu(indo os ramos de forma a preencher o desenho que s' ele sabia, podando os espig?esteimosos que escapavam harmonia eigida. aos poucos, entre suas m"os, o arbusto foi tomando feitio, fa(endo surgir 

dos p!s plantados no gramado duas lindas pernas, depois o ventre, os seios, os gentis braços da mulher que seria sua. +or último, cuidado maior, a cabeça, levemente inclinada para o lado.

5 jardineiro ainda deu os últimos retoques com a ponta da tesoura. $jeitou o cabelo, arredondou a curva de um joelho.

#epois, afastando-se para olhar, murmurou encantado8

- Aom-dia, Rosamulher.

$gora, levantando a cabeça do trabalho, n"o procurava mais a dist@ncia. 1oltava-se para ela, sorria, contava o longo sil)ncio

da sua vida. quando o vento batia no jardim, agitando os braços verdes, movendo a cintura, ele todo se sentia vergar de

amor, como se o vento o agitasse por dentro.$cabou o ver"o, fe(-se inverno. $ neve envolveu com seu m%rmore a mulher ramada. 0em plantas para cuidar, agora que

todas descansavam, ainda assim o jardineiro ia todos os dias visit%-la. 1iu a neve fa(er-se gelo. 1iu o gelo desfa(er-se em

gotas. , um dia em que o sol parecia mais morno do que de costume, viu de repente, na ponta dos dedos engalhados, surgir 

a primeira brotaç"o da primavera.

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m pouco, o jardim vestiu o cetim das folhas novas. m cada tronco, em cada haste, em cada pedúnculo, a seiva empurrou

 para fora p!talas e pistilos. mesmo no escuro da terra os bulbos acordaram, espreguiçando-se em pequenas pontas verdes.

 Mas, enquanto todos os arbustos se enfeitavam de flores, nem uma s' gota de vermelho brilhava no corpo da roseira. *ua,obedecia ao esforço do seu jardineiro que, temendo viesse a floraç"o romper tanta bele(a, cortava rentes todos os bot?es.

#e tanto contrariar a primavera, adoeceu por!m o jardineiro. , ardendo de amor e febre na cama, inutilmente chamou por 

sua amada.Muitos dias se passaram antes que pudesse voltar ao jardim. &uando afinal conseguiu se levantar para procur%-la, percebeu

de longe a marca da sua aus)ncia. mbaralhando- se aos cabelos, desfa(endo a curva da testa, uma rosa embabadava suas

 p!talas entre os olhos da mulher. j% outra no seio despontava.+arado diante dela, ele olhava e olhava. +erdida estava a perfeiç"o do rosto, perdida a epress"o do olhar. Mas do seu amor 

nada se perdia. 9lorida, pareceu-lhe ainda mais linda. *unca Rosamulher fora t"o rosa. seu coraç"o de jardineiro soube

que nunca mais teria coragem de pod%-la. *em mesmo para mant)-la presa em seu desenho.

nt"o docemente a abraçou descansando a cabeça no seu ombro. esperou.

sentindo sua espera a mulher-rosa começou a brotar, lançando galhos, abrindo folhas, envolvendo-o em bot?es, casulo de

flores e perfumes.

$o longe, raras damas surpreenderam-se com o súbito esplendor da roseira. m cavaleiro reteve seu cavalo. +or uminstante pararam, atra6dos. #epois voltaram a cabeça e a atenç"o, retomando seus caminhos. 0em perceber debaio das

flores o estreito abraço dos amantes.

 Uma !e- "or semana* no cre"5sculo

Todas as terças-feiras, quando no princ6pio da tarde sa6a para encontrar-se com o amante, colocava na bolsa o coraç"o.

$ssim era mais f%cil de ofertar.

Chegava, trocava os primeiros abraços e, antes que os dedos desfi(essem bot?es, colhia o coraç"o entre o lencinho rendadoe as chaves de casa, para coloc%-lo, palpitante, sobre a mesinha-de-cabeceira.

$li ficava, l@mpada votiva assistindo ao rito dos amantes, at! que o esvair-se do dia submergisse o quarto no sangue

crepuscular, tornando imposs6vel saber se dele, ou do sol morrente, vinha a tr)mula lu(.

9a(ia-se hora de partir. Recomposta a ordem das roupas, ela suspirava ajeitando a voilette sobre os olhos e, antes de calçar 

as luvas, recolhia o coraç"o. 5 estalo do fecho trancava na bolsa, at! a pr'ima semana, o amor eterno. Arilhava sobre o

m%rmore da mesinha a mancha úmida.

 A"oiando.se no es"aço !a-io

#urante mais de LE anos partilhou a cama com sua esposa chinesa. , embora Ching- +ing-Mei n"o lhe tivesse dado filhos,

sabia o quanto ela os desejara. 1%rias ve(es, ao longo daquele tempo, dissera-lhe ter estado gr%vida, perdendo a criança emlament%veis acidentes. ele piedosamente fingira acreditar, para n"o ferir sua delicada sensibilidade oriental.

;entilmente, amavam-se. Recato, escurid"o, jogos de leques. $ssim se procuravam desde sempre na pesada penumbra do

quarto. Corpos nunca revelados, n!voa de incenso, o amor envolto em v!us e cortinados, conservando o mist!rio dos

 primeiros dias.+or!m, adoecendo Ching-+ing-Mei, eigiu o m!dico que se abrissem janelas e se fi(esse lu(, tornando poss6vel o eame.

, embora ele se mantivesse do lado de fora da porta, em discreta espera, n"o lhe foi permitido escapar revelaç"o tra(ida

 junto com o diagn'stico.

$ paciente logo sararia, comunicou-lhe o m!dico, por!m ele considerava seu dever comunicar-lhe que, lu( da medicina e

n"o obstante a graça e a doçura ineg%veis, sua esposa Ching-+ing-Mei era, na verdade, um homem.

$tordoado, cambaleou sentindo esboroar-se o cerne do amor, estendeu as m"os frente. Mas em que apoiar-se, se ele pr'prio, apesar da barba e dos bigodes, e sem que sua amada jamais desconfiasse, era, e tinha sido ao longo daqueles anos

todos, mulher2

 4erceiro diedro

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;irou a chave, abriu a porta. em vertigem procurou a segurança da maçaneta. $ sala estava de cabeça para baio. ntre

estuques, o lustre florescia erguendo pingentes. $s cortinas subiam em direç"o ao tapete. Mesa cadeiras poltrona

 penduravam-se, tombantes as franjas do sof%. o flamboyant do quadro lançava no verde c!u sua copa de ra6(es.Temeu entrar. Mas, n"o tendo outra casa que fosse sua, deu um passo e fechou a porta. #evagar, a descoberta em cada p!,

começou a subir pela parede.

 Como um colar

> cega, di(iam todos. Mas cega a +rincesa n"o era. #esde o dia do seu nascimento n"o havia aberto os olhos. *"o porque

n"o pudesse. $penas porque n"o sentia necessidade. +ois j% no primeiro momento vira tantas coisas bonitas por tr%s das

 p%lpebras fechadas, que nunca lhe ocorrera levant%-las. ra como se a janela dos seus olhos fosse voltada para dentro, e

debruçada nessa janela ela passasse seus dias, entretida. Mas isso os outros n"o sabiam., n"o sabendo, lamentava-se em segredo o Rei seu pai, chorava escondida a Rainha sua m"e. 0em jamais revelar seu

sofrimento diante da filha, para que n"o viesse mais essa dor somar-se a sua suposta desgraça.$o longo dos primeiros anos, os melhores m!dicos do reino foram chamados para eamin%-la. Tentaram pomadas,

receitaram poç?es, recomendaram mudanças de ar, prescreveram banhos frios, eigiram banhos quentes. +or!m, comonada conseguisse curar aquilo que n"o estava doente, cansaram de lutar contra sua pr'pria ignor@ncia e, declarando o caso

único na ci)ncia m!dica, desinteressaram-se dele.$ partir de ent"o, viveu serena a +rincesa, mais e mais descobrindo daquele mundo s' seu, mais e mais querendo descobrir.

, enquanto acumulava por dentro seu tesouro, outro tesouro, por fora, se fa(ia. +ois todos os anos, desde que havianascido, seu pai lhe dava o mesmo, precioso, presente de anivers%rio. ra sempre igual a cerim7nia. 5s sinos do reino

repicavam festejando a data, o Rei e a Rainha, acompanhados de cortes"os, entravam nos seus aposentos. $o lado do Rei,

um pajem com uma almofada de veludo cor de sangue. , sobre a almofada, pequena lua translúcida e luminescente, uma

 p!rola. &ue o Rei colhia entre dois dedos e, para admiraç"o da corte, depositava na palma da m"o da sua filha.- &uando completares quin(e anos - di(ia cada ve(, abraçando-a -, mandarei fa(er com elas o mais lindo colar de que jamais

se teve not6cia.$nu6am sorridentes a Rainha e os cortes"os, imaginando o esplendor da j'ia a ser feita com as raras p!rolas do 5riente.

9inda a cerim7nia, quando todos j% se haviam retirado, a +rincesa guardava sua p!rola junto com as outras, em uma caia

de mogno forrada de cetim. 0em pensar mais nela at! o pr'imo anivers%rio.

$ssim, mais de quator(e anos haviam passado. era uma manh" de inverno do d!cimo quinto ano, quando a +rincesa, que esquentava as m"os no braseiro, ouviu uma leve

 batida na janela.0il)ncio. 5utra batida seca, como se um galho tocado pelo vento. Mas n"o havia %rvores perto da janela, nem ventava.

a batida insistia.

$ +rincesa foi at! a janela, abriu-a. $ntes que suas m"os começassem a tatear, uma bicada gentil veio encontr%-las, penas

macias roçaram nelas. ma ave que ela n"o saberia nomear arrulhou, passou a cabecinha contra seus dedos, e começou a bicar o m%rmore do peitoril coberto de neve.

- +obre(inha: - pensou a +rincesa. - Com fome nesse frio. sem ter nada para comer. $fligia-se, sem saber o que lhe dar.Mas de repente, com um sobressalto de alegria, lembrou-se das p!rolas, aqueles gr"os todos que o pai havia-lhe dado.

 0em hesitar, foi at! a caia de mogno, tirou uma p!rola e, na palma da m"o, assim como a recebia do pai, ofereceu-a ao

 pombo.

m toque do bico, e l% se foi, da palma, o leve peso. 3ogo, o farfalhar das asas e um súbito vento no rosto disseram +rincesa que seu visitante tamb!m tinha ido.

0orrindo, fechou a janela.

Mas passados alguns dias, numa tarde em que o vento uivava pelas frestas, novamente as pancadinhas na janela pareceramcham%-la. ela recebeu entre as m"os seu doce amigo, e lhe deu uma p!rola para comer, e entre rufiar de penas ele se foi.

 *evou, ventou. 1oltou o sil)ncio a deitar-se no jardim. no sil)ncio o biquinho bateu nos vidros, a +rincesa sorriu feli(.

a cena toda se repetiu mais uma ve(. *em foi a última. #urante aquele m)s, e ainda no outro, o pombo veio visitar a +rincesa. Cada ve( levava uma p!rola.

Cada ve( demorava-se mais.

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#essa forma, a caia de mogno j% estava va(ia na manh" em que os sinos repicaram e a +rincesa lembrou-se subitamente

que era o seu anivers%rio. *"o demorou muito, o Rei e a Rainha e os cortes"os entraram nos seus aposentos. 0obre a

almofada, uma p!rola. Mas, dessa ve(, depois de coloc%-la na m"o da filha, o Rei, em vo( alta, pediu-lhe as outras quator(e, pois era chegada a hora de mandar o ourives real fa(er o colar.

0obressaltou-se a +rincesa. Como di(er ao pai, diante de todos, que n"o as tinha mais2 9echadas as p%lpebras sobre o seu

segredo, mentiu pela primeira ve(. &ue o pai voltasse dali a tr)s dias, pois n"o lembrava onde tinha guardado a caia demogno, e certamente demoraria para ach%-la.

5 pai, pensando nas limitaç?es da filha para encontrar os objetos, concordou penali(ado, e saiu com toda a corte.

$ssim que ficou so(inha, a +rincesa abriu a janela. Mas de nada adiantou chamar. #e nada adiantou bater palmas. *enhumfarfalhar de v7o amarfanhou o sil)ncio.

nt"o uma l%grima rolou lenta sob as p%lpebras fechadas, depois outra, e outra. &uentes ainda sobre os c6lios, logoesfriavam no vento frio do inverno, descendo geladas pelo rosto, at! congelarem antes mesmo de alcançarem o peitoril.

9oram as l%grimas congeladas que ela encontrou, percorrendo o m%rmore com os dedos. Mas sentiu-as t"o redondas e lisas,

que as confundiu com as p!rolas e eultou de alegria, certa de que seu amigo tinha devolvido os preciosos gr"os.

9echou depressa a janela, guardou seu achado na caia de mogno. &uando seu pai viesse, j% tinha o que lhe dar.

Mas quando, dali a tr)s dias, o Rei recebeu a caia, nela n"o encontrou nada al!m de uma pocinha dB%gua encharcando ocetim.5nde estavam as p!rolas2 $ beira da fúria, o pai eigia eplicaç?es. a +rincesa n"o teve outro recurso sen"o contar-lhe

como havia recebido a visita de uma ave, como esta arrulhava no frio e como, para matar sua fome, lhe havia dado, um por 

um, todos os gr"os.

nt"o ela n"o sabia o valor daqueles gr"os2:, vociferou o Rei, sem mais conter a indignaç"o. , nem bem havia sa6do dosseus aposentos, j% aos brados chamava o Ministro, eigindo que os arqueiros reais caçassem o pombo. #aria um pr)mio

valioso a quem lhe trouesse as quator(e p!rolas.+ombo, pensou a +rincesa ouvindo as ordens do pai, era esse o nome do seu amigo. +ombo, que os arqueiros procuraram

 para matar.

 nvolveu-se num ale branco de l", abriu a porta envidraçada que dava para o jardim. +ela primeira ve(, era preciso olhar.3entamente, sem susto ou surpresa, abriu os olhos. $ sua frente, tudo era apenas uma longa ondulaç"o de neve. &ueofuscava, mas que em algum lugar guardava um pombo.

#esceu os poucos degraus, começou a caminhar. +arava s ve(es, batia palmas. $ neve alta abafava seus chamados.

$fundando, tropeçando, arrastando saias e ale, afastou-se do pal%cio. Talve( agora j% estivesse no campo. +assou por uma

sebe de espinheiros. $diante, alguns arbustos. Chegou a um pequeno bosque. $s %rvores negras agitavam no vento os

galhos descarnados. *ovamente a +rincesa bateu palmas. Mas, dessa ve(, um farfalhar seu conhecido fe(-se ouvir. eis

que, entre o negro e o branco, um belo pombo cin(ento veio volteando para pousar-se em sua m"o estendida.$o longe, o arqueiro escondido atr%s de um tronco viu a mancha cin(enta movendo-se contra o fundo imaculado. *"o viu a

silhueta da +rincesa que, envolta no ale branco, confundia-se com a neve.

Tirou a seta da aljava, retesou a corda. 5 pombo pousou suas patinhas de lacre nos dedos que o esperavam, ainda bateu as

asas para equilibrar-se. Com silvo de serpente, a seta o atingiu.

m estremecimento, um voar de penas e sangue, um rasgar de carnes. 1arado o corpo cin(ento, nem assim se aplacou a

fome da ponta de ferro. &ue avançou ainda. Hndo cravar-se no coraç"o da +rincesa.Aatem no vento os negros galhos. Ca6da sobre a neve, desfeito o casulo do ale, a +rincesa fecha lentamente os olhos que

havia demorado tanto para abrir. Mas pela ferida no peito do pombo rola uma p!rola, depois outra, outra mais. &uator(e

 p!rolas escorrem como gotas sobre o alvo colo da +rincesa. preciosas se aninham ao redor do pescoço. Como um colar.

 Um ti(re de "a"el

0abendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materiali(ar o

tigre. *"o se preocupou com descriç?es de p)lo ou patas. +referiu introdu(ir a fera pelo cheiro. o teto impregnou-se do

 bafo carn6voro, que parecia ealar por entre as linhas. #epois, com cuidado, foi aumentando a estranhe(a da presença dotigre na sala rococ' em que havia decidido locali(%-lo. #e uma palavra a outra, o felino movia-se irresist6vel, farejando o

dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.

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m ve( de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensaç"o de movimento com uma frase curta. m ve( de imitar o

terr6vel miado, fe( tilintar os cristais acompanhando suas passadas. $ssim, escolhendo o outro as palavras com o mesmo

sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas, criava-se a realidade antes ineistente.5 quarto par%grafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o

tamborete de petit point. j% a fera aparentemente domesticada tensionava os músculos para obedecer, quando, numa r%pida

torç"o do corpo, lançou-se em direç"o oposta. $ntes que chegasse a v6rgula, havia estraçalhado o sof%, derrubado a mesacom a estatueta de 0Ovres, feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. 5 tigre apossava-se da sua

nature(a. /% n"o havia controle poss6vel. 5 autor s' podia acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de palavras a bela

decoraç"o rococ' que havia t"o pra(erosamente constru6do, enquanto sua criatura crescia, dominando o teto.Hmpotente, via, aos poucos, espalharem-se no papel cacos de m'veis e porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair por 

terra a moldura entalhada. *"o havia mais ali um animal e'tico na sala de um pal%cio, mas um animal fero( em seu campode batalha.

5 escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera, para que ele pudesse retomar o dom6nio da narrativa, quando a

viu virar-se na sua direç"o, baiar a cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.

$ntes que pudesse fa(er qualquer coisa, a enorme pata do tigre abatendo-se sobre ele obrigou o teto ao ponto final.

 3!a Masina ! doutora em 3etras, professora adjunta no Hnstituto de 3etras da 9R;0, bacharel em #ireito e cr6ticaliter%ria.