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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Roberta Scatolini Um estudo da corporeidade com educadores: uma experiência com o Teatro do Oprimido. SÃO PAULO 2012

Um estudo da corporeidade com educadores: uma ......À Professora Ana Bock, pela sua militância vigorosa e suavidade como educadora, que fez toda a diferença quando eu cheguei à

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Roberta Scatolini

Um estudo da corporeidade com educadores: uma experiência

com o Teatro do Oprimido.

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Roberta Scatolini

Um estudo da corporeidade com educadores: uma experiência

com o Teatro do Oprimido.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação, sob orientação da Prof.ª. Doutora Heloisa Szymanski.

SÃO PAULO

2012

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Folha Linha Onde se lê Leia-se

103 19-20 Freire, XX FREIRE, 1987

97 9 Construção

corporal

Construção

Cultural

19

Nota de rodapé Inédito-viável é uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem,

Inédito-viável é uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (FREIRE, 1987)

 

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

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Dedico este trabalho ao meu pai, que fez sua passagem no meio

desta caminhada, e a minha mãe.

Juntos, eles me ensinaram sobre o amor.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Heloisa, pela sensibilidade, respeito, flexibilidade e rigor

durante todo o processo desta pesquisa, demonstrando coerência entre a teoria e a prática.

À Professora Mimi, por todas as contribuições na qualificação, e pelo

entusiasmo e alegria em suas aulas. Ao Professor Sérgio de Carvalho, que aceitou prontamente o convite

para compor a banca de qualificação e foi muito delicado em suas ricas contribuições.

À Professora Ana Bock, pela sua militância vigorosa e suavidade como

educadora, que fez toda a diferença quando eu cheguei à pós-graduação. À amiga e parceira Mariam, um agradecimento muito especial, pelo

compartilhar contínuo das inquietações e luta, além da disponibilidade nas contribuições teóricas e consultas técnicas.

Aos companheiros de mestrado, pelas trocas e aprendizados. Em

especial à Sandra, Suzana, Fernanda e Malu, pela generosidade e prontidão. À Denise, que nos cafés semanais esteve sempre disposta a me lembrar

de que, embora não seja fácil, viver é fascinante. Ao Ricardo, grande parceiro da vida e da arte, por compartilhar desde o

primeiro tijolo desta construção, sempre cirandando a vida comigo. Aos participantes desta pesquisa, que compartilharam sua corporeidade

de coração aberto e com brilho nos olhos, muito brilho. À Cristiane Santos pela simpatia, delicadeza e revisão cuidadosa. Ao querido amigo Erick, por sua contribuição fundamental nos últimos

instantes do trabalho, e pelo compartilhar constante. À fiel amiga Fran, pela caminhada construída com ternura, em diferentes

espaços de resistência. Aos meus queridos amigos e familiares, que esperaram pacientemente a

conclusão deste trabalho. A meu pai, minha mãe e meu irmão, por nunca medirem esforços para

me ajudar, numa relação de amor incondicional. Ao Merije, meu companheiro da vida e da poesia, pela presença e

paciência diária neste percurso repleto de anseios, euforia, cansaço e ausências.

Ao Instituto Paulo Freire, pela flexibilidade com minhas horas de

trabalho, possibilitando esta realização. À Capes, pela concessão de Bolsa.

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“O corpo não translada, mas muito sabe,

adivinha se não entende.”

Guimarães Rosa

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi compreender como se desenvolveu a percepção da corporeidade com quinze educadores de um Centro de Educação Infantil (CEI), um Centro da Criança e do Adolescente (CCA) e duas Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEF). Realizou-se um estudo qualitativo, de cunho interventivo, inserido num projeto de pesquisa mais amplo – Projeto Articulação e Diálogo – que visa acompanhar o processo construtivo de propostas articuladas entre diferentes contextos educativos, em uma comunidade da periferia da cidade de São Paulo. A pesquisa constituiu-se na realização de uma Oficina de Teatro do Oprimido, desenvolvida em sete momentos, de três horas cada um, totalizando vinte e uma horas, além de dois Encontros Reflexivos coletivos, que foram gravados, transcritos, lidos e reescritos, dando origem a textos-síntese de cada um dos nove momentos. Em seguida, as unidades de significado encontradas foram agrupadas em “constelações” e analisadas à luz do referencial de Paulo Freire e Augusto Boal. A análise revelou que a Oficina de Teatro do Oprimido permitiu aos participantes perceberem a mecanização de seus corpos, decorrente de uma prática profissional burocratizada, que prioriza a racionalidade e limita a capacidade criativa e autêntica de se personificarem no mundo. E a partir disso, despertaram para o fato de que a mecanização de seus sentidos impede seus educandos de viverem suas corporeidades em plenitude. Também compreenderam a corporeidade enquanto construção cultural, que requer o exercício pedagógico da problematização, de maneira a contribuir para a ruptura de opressões imobilizadoras, que impedem os sujeitos de “serem mais” Desse modo, a experiência com a corporeidade ensejou novos olhares para as práticas pedagógicas dos educadores, que constataram a força expressiva e criativa do corpo, como agente da ação transformadora. PALAVRAS-CHAVE: Corporeidade. Educação Libertadora. Teatro do Oprimido. Paulo Freire.

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ABSTRACT The objective of this research was to understand how the perception of corporeity developed with fifteen educators from a Child Education Center (CEC), a Children and Adolescents Center (CAC) and two municipal primary schools. We conducted a qualitative study of intervening nature, inserted in a broader research project - Project Articulation and Dialogue - which aimed to monitor the construction process of articulated proposals between different educational contexts, in a community in the outskirts of São Paulo. The research consisted in conducting a Workshop of Theatre of the Oppressed, developed in seven moments of three hours each, totaling twenty-one hours, and two collective and Reflective Meetings, which were recorded, transcribed, read and rewritten, giving origin to synthesis texts for each one of them. Then the units of meaning found, were grouped in "constellations" and analyzed in the light of Paulo Freire and Augusto Boal. The analysis revealed that the Theatre of the Oppressed workshop allowed participants to realize the mechanization of their bodies, due to a bureaucratic practice, which emphasizes rationality and limits the creativity and authentic to personify the world. And from there, awakened to the fact that the mechanization of their senses deprives their students to live their corporeality in its fullness. They also understood corporeality as cultural construction, which requires the exercise of problematization, in order to contribute to the rupture of paralyzing oppression, which prevent the subjects of "being more." Thus, the experience with the corporeality allowed educators new transformative and creative pedagogical approaches.

KEYWORDS: Corpo reality. Theatre of the Oppressed. Liberating Education. Paulo Freire.

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LISTA DE TABELA

Tabela 1 – Perfil dos participantes da oficina de teatro.............................. 41

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................... 1.1 Apresentação..................................................................................... 1.2 Objetivos............................................................................................ 2. REFERENCIAL TEÓRICO.................................................................. 2.1 Pressupostos para uma educação libertadora.................................. 2.2 A busca pela desmecanização dos sentidos no Teatro do Oprimido 2.3 Corporeidade e Educação................................................................. 2.3.1Educador e corporeidade................................................................ 3. MÉTODO............................................................................................. 3.1 Pesquisa-Intervenção........................................................................ 3.1.1 Teatro do Oprimido......................................................................... 3.1.2 Entrevista Reflexiva........................................................................ 3.2 Contexto da Pesquisa....................................................................... 3.2.1 Participantes................................................................................... 3.3 Desenvolvimento da oficina.............................................................. 3.3.1 Descrições da Oficina..................................................................... 3.3.1.1 Descrição do primeiro encontro................................................... 3.3.1.2 Descrição do segundo encontro.................................................. 3.3.1.3 Descrição do terceiro encontro.................................................... 3.3.1.4 Descrição do quarto encontro..................................................... 3.3.1.5 Descrição do quinto encontro...................................................... 3.3.1.6 Descrição do sexto encontro....................................................... 3.3.1.7 Descrição do sétimo encontro..................................................... 3.4 Caminhos para a manifestação do fenômeno................................... 4. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE...................................................... 4.1 Sínteses do desenvolvimento da oficina........................................... 4.1.1 Síntese do primeiro encontro......................................................... 4.1.2 Síntese do segundo encontro......................................................... 4.1.3 Síntese do terceiro encontro.......................................................... 4.1.4 Síntese do quarto encontro............................................................ 4.1.5 Síntese do quinto encontro............................................................. 4.1.6 Síntese do sexto encontro.............................................................. 4.1.7 Síntese do sétimo encontro............................................................ 4.2 Sínteses das Entrevistas Reflexivas................................................. 4.2.1 Síntese da primeira Entrevista Reflexiva coletiva.......................... 4.2.2 Síntese da segunda entrevista Reflexiva - Devolutiva................... 4.3 Constelações..................................................................................... 5. DISCUSSÃO....................................................................................... 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................

11 11 15 16 16 20 24 27 29 29 30 36 37 40 41 43 44 46 48 50 53 59 54 55 57 57 57 59 60 62 64 66 67 68 68 78 80 96 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 105 APÊNDICES............................................................................................ 109 A – Folder de apresentação da oficina.................................................... 109 B – Ficha do perfil do participante da oficina........................................... 110 C – Texto teatral da cena do Teatro-Fórum............................................. 111 ANEXOS................................................................................................. 117 A – Poema Ver Vendo............................................................................. 117 B – Textos utilizados no Aquecimento Ideológico.................................... 118

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1. INTRODUÇÃO

1.1 Apresentação

A escolha pelo tema dessa dissertação não é algo que surgiu

inesperadamente, mas sim, construção de toda uma vida, experimentada por

meio de um corpo-sujeito.

A paixão pelo teatro é algo antigo, pois desde criança costumava brincar

com as amigas e primos, organizando esquetes, me vestindo de personagens

e adaptando historinhas infantis. Nas brincadeiras de rua também me envolvia

com esportes coletivos e demais brincadeiras com o corpo. Contudo, sempre

apreciei de longe os palcos, grupos e encenações, pois era muito tímida e não

tinha coragem de me expor, apenas desejo. E, na escola, nunca gostei de

participar das aulas de educação física e, sempre que possível, inventava

desculpas para não me envolver nos campeonatos ou quaisquer atividades que

expusessem minha corporeidade, apesar de não ter essa consciência naquele

momento da vida.

No início da década de 1990, com 16 anos e cursando o terceiro

colegial, hoje denominado de ensino médio, decidi participar, paralelamente, de

um curso livre no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o

TUCA, que acontecia aos sábados, em período integral. Com um desejo

pulsante por essa linguagem artística, me fortaleci na companhia de uma

amiga e resolvi enfrentar a timidez. Tive assim, minha primeira experiência

técnica com o teatro: professores profissionais, aulas de voz, dramaturgia,

interpretação e expressão corporal. Experiências que me fascinavam por um

lado e por outro eram desafiadoras diante de minha vergonha e pouca

experiência com atividades corporais.

Permaneci no curso por apenas seis meses, pois a amiga, que convenci

a se matricular comigo, teve de parar e assim desisti de continuar sozinha.

Essa interrupção fez a minha relação com o teatro ficar acomodada durante

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alguns anos futuros, voltando a reaparecer na época da escolha pela formação

universitária, especialmente diante de diversas opiniões que colocavam em

questão se a escolha teatral poderia significar também uma opção profissional.

Na dúvida, acabei optando pela faculdade de Psicologia.

Durante os anos de formação, as atividades que envolviam o corpo, tais

como dinâmicas de grupo, psicodrama, psicossomática, sociodrama sempre

me interessavam muito, além da minha experiência psicoterapêutica –

individual e grupal – na linha psicodramática. E, cada vez mais, a vontade de

me reaproximar do teatro e atuar tornava-se inquietante dentro de mim, de

maneira que, mesmo sabendo das condições financeiras desfavoráveis de

minha família, expus para minha mãe sobre esse desejo e obtive total apoio

para prestar exame numa escola técnica que julgávamos bem conceituada.

Inscrevi-me, fiz os exames e passei. Então minha mãe, professora de escola

pública, resolveu assumir o desafio comigo e, a partir daí, foram três anos de

formação muitíssimos prazerosos e importantíssimos na minha formação de

vida. Foi por meio dessa vivência com o teatro que, entre outras coisas,

conheci e tomei consciência da minha corporeidade, com seus limites, marcas

culturais, capacidade de expressão, criatividade, desejos e superações.

Em 1998, dois anos após finalizar minha formação em Psicologia e em

Teatro, eu fui trabalhar com projetos sociais voltados para a formação de

educadores, no Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC) da PUC/SP. O NTC é

um núcleo composto por diferentes profissionais, numa perspectiva

interdisciplinar de planejamento participativo e construção coletiva e, na

preparação de uma das formações de educadores, fui convidada para elaborar

e desenvolver uma oficina de teatro para professores.

Como a Escola de Teatro que cursei tinha uma preocupação exclusiva

com a formação de atores, o meu repertório pedagógico não dava conta da

demanda proposta e exigiu muito estudo e pesquisa. Foi nesse momento em

que comecei a procurar referências e iniciei minhas leituras no Teatro do

Oprimido, criado por Augusto Boal.

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Para elaboração dessa primeira experiência eu estudei toda obra do

Teatro do Oprimido e realizei a formação oferecida pelo Centro do Teatro do

Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio). E, conforme fui me apropriando da

proposta do Teatro do Oprimido, o que mais me interessou foi a reflexão de

Augusto Boal (1998) acerca da relação entre a alienação política com a

alienação do corpo, no sentido de que, para que as pessoas interfiram no

mundo, é preciso que primeiramente percebam esse mundo. Pois, para o autor,

o cotidiano da sociedade capitalista torna o corpo alienado da visão do todo e

isso interfere na tomada de consciência.

Foi necessário também refletir sobre as diversas possibilidades de se

trabalhar com o teatro e, principalmente, a necessidade de buscar uma

proposta que fosse coerente com o trabalho oferecido no Núcleo e seu

referencial freireano. Pois, até então minha experiência com o teatro era

voltada para atuação e não para educação.

A partir disso elaborei, junto a um grande amigo parceiro da vida e da

arte, uma oficina de teatro para trabalhar com a corporeidade dos educadores,

privilegiando o autoconhecimento de seus corpos – que trazem marcas das

suas histórias e do meio social que pertencem –, com a pretensão de que essa

vivência lhes permitisse uma relação com seus corpos, enquanto corpos

conscientes e expressivos.

As oficinas foram realizadas nas formações de educadores sociais que

os profissionais do NTC desenvolviam por todo o Brasil, com professores da

rede pública de ensino, profissionais da saúde, profissionais da segurança

pública e também em cursos específicos de Teatro do Oprimido, oferecidos

pela PUC. Havia uma preocupação entre nós, eu e o meu parceiro, no sentido

de, além da vivência com os jogos e exercícios do Teatro do Oprimido, garantir

espaços para a problematização e a reflexão dessas vivências, prática

fundamental numa educação libertadora, e que havíamos sentido falta na

experiência com o CTO-Rio. Isso porque para nós esse trabalho tinha um

compromisso pedagógico.

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Foi quase uma década desenvolvendo atividades com educadores de

todo o Brasil, quando em 2006, fui convidada para trabalhar no Instituto Paulo

Freire, em projetos ligados à arte/educação e cultura, onde dei continuidade às

experiências com o teatro e a educação.

Essa trajetória profissional me possibilitou perceber o quanto os

educadores não têm oportunidades, em suas formações, de vivenciar

atividades que incluem uma relação consciente com seus corpos e também as

suas dificuldades em trabalhar com a corporeidade de seus educandos. Os

próprios professores apontam ter dificuldades em desenvolver atividades com

seus alunos que incluem movimento, criatividade, diálogos corporais,

autoconhecimento, exercício dos sentidos. Ao mesmo tempo afirmam que

essas experiências – quando oferecidas – proporcionam prazer e aprendizado.

A partir dessas experiências percebi o quanto essa temática realmente

interessava aos educadores. A cada oficina desenvolvida era perceptível a

mecanização dos corpos deles, que não tinham uma consciência de sua

corporeidade e muito menos da corporeidade de seus educandos – fato que

dificulta a relação dialógica e emancipatória de ensino-aprendizagem, já que a

comunicação também se dá por meio do corpo. Segundo Paulo Freire (1989), o

processo pedagógico deve partir da cultura do educando, da leitura do mundo

dele, que não se restringe às palavras e às letras, mas a uma realidade mais

ampla de seu mundo. Nesse sentido, a corporeidade faz parte do mundo do

educando, contribui para revelar esse mundo, pois “cultura é também a

maneira que o Povo tem de andar, de sorrir, de falar, de cantar. [...] Cultura é a

ginga dos corpos do povo ao ritmo dos tambores” (FREIRE, 1989, p.42). E

também será, a partir de um corpo consciente, que se dará a presença

transformadora dos sujeitos no mundo.

Essa relação de negação da corporeidade dos educandos impede os

educadores de ter uma compreensão totalizadora sobre essas pessoas, pois,

ao negarem o corpo dos educandos, os veem de maneira fragmentada,

excluindo a dimensão sensível do humano. Dimensão que para o teatrólogo

Augusto Boal é “essencial para a libertação dos oprimidos”, pois “amplia e

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aprofunda sua capacidade de conhecer” (BOAL, 2009, p.16) e, diria ainda, de

se expressar.

Posteriormente, ingressei no Programa de Educação: Psicologia da

Educação, com o desejo de aprofundar-me numa pesquisa de mestrado que

buscasse compreender a percepção dos educadores sobre sua corporeidade,

a partir da vivência do Teatro do Oprimido, que tem muita proximidade

conceitual com a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.

No mestrado fui convidada pela Professora Doutora Heloisa Szymanski,

para realizar a pesquisa-intervenção junto ao Grupo de Pesquisas em Práticas

e Atenção Psicoeducacional à Família, Escola e Comunidade (ECOFAM), do

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUCSP,

coordenado por ela desde 1993. Convite ao qual aceitei.

Esse grupo tem desenvolvido trabalhos de intervenção junto aos

professores, educadores sociais, gestores, familiares, estudantes, pertencentes

à determinada região periférica de São Paulo. Os Encontros Reflexivos têm

sido a metodologia predominante das ações, no intuito de promover o diálogo

entre os diferentes sujeitos do processo educativo. Eles acontecem com base

na troca de experiências entre os(as) participantes, com vistas à reflexão e

ação de todos pela superação dos desafios enfrentados na formação de

crianças, adolescentes e jovens.

1.2 Objetivos

O presente estudo tem como objetivo investigar como se desenvolveu a

compreensão da corporeidade, ao longo de uma experiência com o Teatro do

Oprimido com educadores pertencentes a duas escolas públicas de ensino

fundamental, um Centro da Criança e do Adolescente, e uma Creche,

pertencentes ao Grupo ECOFAM.

A questão que permeou a análise da pesquisa foi: “Como a corporeidade

foi compreendida pelos participantes a partir da Oficina de Teatro do

Oprimido”?

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1. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Pressupostos para uma Educação Libertadora

“A conscientização é um compromisso histórico (...), implica que os homens assumam seu papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece (...), está baseada na relação consciência-mundo.” (FREIRE, 2006b)

Como todas as áreas de conhecimento existentes, a educação pode

transitar por diversas e divergentes concepções filosóficas e epistemológicas,

portanto, é fundamental explicitarmos o lugar em que nos situamos.

Partimos da Pedagogia do Oprimido, criada e sistematizada pelo

educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), que compreende a educação

como um ato político em busca da humanização. Nesta proposta educativa, os

homens e as mulheres são concebidos como sujeitos históricos e, por serem

inacabados, são capazes de criar e recriar a sua própria existência no e com o

mundo (FREIRE, 1987).

Essa compreensão de homem e mundo interrelacionados fundamenta-

se na fenomenologia e na dialética marxista, grandes influências do

pensamento freireano. Assim, optamos por trazer os princípios fundantes da

dialética, para contribuir com a compreensão da Pedagogia do Oprimido.

Conforme Gadotti, em seu livro Pedagogia da Práxis (2004), “o pressuposto

básico da dialética é que o sentido das coisas não está na consideração de sua

individualidade, mas na sua totalidade” (p.104). E, além da totalidade a

dialética compreende que todas as coisas estão em movimento e podem se

transformar alcançando sempre uma mudança qualitativa, que para acontecer

necessita daquilo que o autor chama de “lei fundamental da dialética” (p.105),

que é o princípio da contradição. Nesse sentido Freire compreende a história

como um processo de construção, que está sempre em movimento e pode ser

transformada pelos sujeitos, que ao transformar se transformam, num processo

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interativo entre a objetividade e subjetividade, permeado pela contradição.

Ao justificar a Pedagogia do Oprimido (1987), Freire aponta a

desumanização como uma construção histórica que se estabelece a partir de

relações de dominação entre opressores e oprimidos. Relações que negam a

característica ontológica dos seres humanos em direção ao “ser mais”,

incutindo-lhes uma falsa ideia de que existem apenas dois tipos de seres,

desiguais e determinados, o “ser menos” que seria o oprimido em

contraposição ao opressor.

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E essa luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. (FREIRE, 1987, p.30).

Desse modo, para Freire, o processo educativo só terá coerência se

promover nos sujeitos o reconhecimento de suas opressões e, principalmente,

as causas dela. Pois, assim, acredita-se que o oprimido se reconhecerá como

hospedeiro e potencial reprodutor do opressor, mas não incorrerá no risco de

aderir a essa postura, e sim de superá-la na construção de um ser libertado

(FREIRE, 1987).

Paulo Freire também utilizou a terminologia de “Educação Bancária” ao

se referir à concepção tradicional de Educação, por entender que essa forma

de educação parte de uma lógica prescritiva nas relações entre educador e

educando, segundo a qual o educador é o ser pensante, dotado de saber, que

deposita nos educandos conteúdos prontos e acabados, com o intuito de

mantê-los alienados à sua própria cultura e adaptá-los à sociedade,

reproduzindo a dicotomia entre opressor e oprimido (FREIRE, 1987). Dessa

maneira os oprimidos são educados para reproduzirem a ideologia e a cultura

dominante, buscando para si aquilo que pertence aos opressores e não o que

faz parte da sua vivência e cultura, que é tido como algo pormenorizado para

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eles.

A Educação e a cultura são intrinsicamente relacionadas na obra de

Paulo Freire, que busca romper com o pensamento etnocêntrico ao afirmar que

“cultura, no seu sentido mais amplo, antropológico, é tudo o que o homem cria

e recria” (FREIRE, 2011, p.56), de maneira que “todos os povos têm cultura”,

pois “cultura é a forma como o povo entende e expressa o seu mundo e como

o povo se compreende nas suas relações com o seu mundo” (FREIRE, 1989,

p.42). Nesse sentido, Freire compreende que a cultura é um instrumento de

dominação dos opressores, ao mesmo tempo em que é a possibilidade de

libertação dos oprimidos.

Em contraposição à educação bancária, a Pedagogia do Oprimido

propõe uma prática educativa centrada no diálogo. Por compreender o diálogo

enquanto “exigência existencial” (FREIRE, 1987) – que permite à humanização

–, a palavra deve ser um direito assegurado ao educando, numa prática que

rompa com a hierarquização da relação professor e aluno e se comprometa

com a sua pronúncia no mundo. É por meio de uma linguagem dialógica que o

educador favorece que os educandos expressem seus saberes e, juntos,

mediatizados pelo conhecimento sistematizado, possam refletir e agir. “A

existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco

pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os

homens transformam o mundo” (p.78).

Apesar de o método Paulo Freire ter sido, inicialmente, construído para a

alfabetização de adultos – exatamente pela compreensão do educador de que

o analfabetismo é um produto social, que gera seres sem voz e sem direito à

participação, portanto seres desumanizados e sem dignidade –

gradativamente, ele passou a ser compreendido como uma teoria do

conhecimento e foi apropriado por outras áreas do conhecimento, dentro ou

fora da Educação. Um dos grandes diferenciais de sua proposta de

alfabetização de adultos é o fato de romper com a prática das cartilhas

infantilizadas descontextualizadas da vivência dos adultos e, por meio do

diálogo, construir pontes entre os saberes dos educandos e o conhecimento

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sistematizado, objetivando, para além da leitura e escrita da palavra, a

interpretação da mesma pelos educandos, numa relação dialética com o

mundo deles pois, para Freire, “a leitura do mundo precede sempre a leitura da

palavra” (FREIRE, 1989, p.13) e é uma etapa central do seu processo de

ensino-aprendizagem.

É também por meio do diálogo que se dá a conscientização, conceito

central da educação libertadora. A conscientização seria o conhecimento crítico

das barreiras que precisam ser superadas para que os oprimidos alcancem sua

libertação. É o processo onde o educador e o educando tomam distância do

mundo e o questionam para melhor conhecê-lo. É um processo de transição

entre a consciência intransitiva ou ingênua, que seria o senso comum, para um

estágio de consciência crítica, etapa imprescindível à ação dos sujeitos em

busca do inédito-viável1.

O caminho a ser percorrido para o processo de conscientização exige do

sujeito educador uma postura e prática condizente com a proposta

metodológica freireana, pela qual a problematização é fundamental para a

construção do conhecimento. É por meio de perguntas que o educador viabiliza

o pensar reflexivo nos educandos, que provocados a buscar respostas se

implicam “num constante ato de desvelamento da realidade” (FREIRE, 1987, p.

70).

Segundo Freire não basta refletir e alcançar a consciência crítica, mas o

que realmente permite a efetivação da Pedagogia da Libertação é a ação

transformadora dos sujeitos, que se dá por meio da ação-reflexão-ação, a

práxis. E isso acontece no “momento onde a prática de desvelamento da

realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da

transformação” (1981, p.117). Dessa maneira, a Pedagogia do Oprimido

cumpre o seu objetivo de humanização.

1 Inédito-viável é uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e

quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (FREIRE, 1987).

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Nesta perspectiva, a Pedagogia do Oprimido é proposta educativa que

exige que o educador promova um processo pedagógico através do qual, junto

aos educandos, possam desvelar a realidade sócio-histórica que fazem parte,

compreendendo as forças conjunturais que os constituem enquanto sujeitos e,

a partir disso, exerçam suas possibilidades de escolhas, rupturas, decisões e

ação no mundo.

Mas onde se dá esse processo de Leitura do Mundo e a orquestração

dos níveis de consciência que devem resultar na transformação do mundo?

Onde se situam os sentidos humanos que percebem o mundo? Essas

problematizações, mediatizadas pelo conhecimento, por meio da curiosidade e

pesquisa, impulsionaram o diálogo da pesquisadora entre as propostas

freireanas e uma possível relação com o corpo. Assim, o próximo tema

discorrerá sobre as contribuições do Teatro do Oprimido para a prática da

Pedagogia Libertadora.

2.2 A busca pela desmecanização dos sentidos no Teatro do Oprimido

“Todo dia ela faz tudo sempre igual: me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã” (Chico Buarque de Holanda)2.

Paulo Freire e Augusto Boal (1931-2009) foram contemporâneos. Mais

do que isso, tiveram trajetórias parecidas na construção de suas concepções e

metodologias. Ambos realizaram trabalhos no Movimento de Cultura Popular

(MCP) do Nordeste, com as Ligas Camponesas e, enquanto Freire desenvolvia

atividades voltadas para alfabetização, Boal, com o Teatro de Arena (1953-

1970), utilizava técnicas teatrais para a conscientização das mesmas

populações. Após a interrupção de seus trabalhos pela ditadura, ambos foram

exilados do Brasil e continuaram seus projetos pela América Latina, Europa e

mundo afora. E foi neste período que Boal batizou sua proposta teatral de

Teatro do Oprimido em homenagem a Paulo Freire, conforme sugestão de seu

2 Trecho da música Cotidiano, 1971.

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editor Daniel Diniz (BOAL, 2008).

É importante ressaltar que o nosso trabalho e o de Freire tem uma identidade grande. Um contribuiu para o outro, mas não que um tenha gerado o outro. Eu tenho uma admiração imensa pelo Paulo Freire, pelo método dele, pelas suas ideias, pela combatividade, lucidez, sensibilidade, humanismo. (BOAL, 2008, p.10).

Assim como Paulo Freire, Boal se interessou pela questão dos

oprimidos. Contudo, iremos nos deter aqui ao papel do corpo no Teatro do

Oprimido e, mais precisamente, em como ele pode colaborar com a educação

transformadora. E, mais adiante, no capítulo referente ao método,

discorreremos com mais detalhes sobre o Teatro do Oprimido.

Para Boal “o ser humano é antes de tudo um corpo” (1996, p.42), com

cinco propriedades principais: sensibilidade, emoção, racionalidade,

sexualidade e semovência. São elas que permitem que o corpo humano

registre sensações e, por meio da percepção, realize uma atividade sensorial

denominada atividade estética. Pela atividade estética o ser humano se

encontra em um espaço dotado de propriedades que “estimulam o saber e o

descobrir, o conhecimento e o reconhecimento – induzindo ao aprendizado” (p.

34).

É também no corpo humano que a arte do teatro encontra sua principal

fonte de expressão e, no caso específico da proposta do Teatro do Oprimido, a

intenção é oportunizar o fazer teatral para pessoas/corpos que na maioria das

vezes nunca tiveram essa experiência.

No contato com diferentes corpos, Boal se deparou com movimentos e

expressões mecânicas que limitavam o fazer teatral; pessoas sem consciência

de seus corpos e de suas “alienações musculares” (BOAL, 1975, p.132),

constituídas pelo tipo de trabalho que realizavam. Especializados sempre em

alguma coisa em detrimento de outra, de acordo com a profissão, tratava-se de

corpos alienados do todo e rígidos diante do ato da percepção e da criação,

constatação que impulsionou o dramaturgo a iniciar o processo do Teatro do

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Oprimido com uma etapa de conhecimento do corpo dos atores.

(...) para que se possa dominar os meios de produção teatral, deve-se primeiramente conhecer o próprio corpo, para poder depois torná-lo mais expressivo. Só depois de conhecer o próprio corpo e ser capaz de torná-lo mais expressivo, o "espectador"

3 estará habilitado a praticar

formas teatrais que, por etapas, ajudem-no a liberar-se de sua condição de "espectador" e assumir a de "ator", deixando de ser objeto e passando a ser sujeito, convertendo-se de testemunha em protagonista. (BOAL, 1975, p. 131).

Ao mesmo tempo em que, no Teatro do Oprimido, o ator prepara o seu

corpo para tornar-se mais expressivo, para criar outros personagens, ele

também toma consciência do seu corpo, da sua identidade e de suas

limitações (BOAL, 1975), tendo a oportunidade de refletir sobre o quanto seu

trabalho determina seu corpo e aliena seus sentidos, adquirindo o que Freire

chama de consciência crítica.

Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos sofrem e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos. Escutamos, sentimos e vemos segundo nossa especialidade. Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar. Essa adaptação, por sua vez, leva à atrofia e à hipertrofia. (BOAL, 1998, p.89).

A esse estado de atrofia podemos compreender como uma alienação do

corpo, contudo, uma condição que pode ser superada, pois assim como uma

célula atrófica não pode ser considerada morta, apesar de sua funcionalidade

estar reduzida, os sentidos do corpo também podem ser exercitados e

estimulados para superar sua alienação.

A palavra alienação vem do latim – alienare, alienus –, e significa

pertencer ao outro, transferir ao outro o domínio de. Para Basbaum alienação é

quando:

3 Futuramente o autor passou a utilizar o termo espect.-ator, conforme explicitaremos no

capítulo referente ao método deste trabalho.

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O homem perde sua consciência pessoal, sua identidade e personalidade, o que vale dizer, sua vontade é esmagada (...) o homem perde parcial ou totalmente sua capacidade de decisão. É ainda sua integração absoluta no grupo: ele se massifica, passa a pertencer à massa e não a si mesmo. Diz-se ainda que o homem está alienado quando deixa de ser seu próprio objeto para se tornar objeto de outro. (...) Ele é coisificado. (1981, p. 17-18).

Freire diz que “o homem alienado é um homem nostálgico, nunca

verdadeiramente comprometido com seu mundo” (1980, p.44), pois está

sempre em busca de se tornar aquilo que a cultura dominante o faz crer que é

o certo, aquilo que faz parte da realidade do opressor, constituindo-se num ser

que quer ser o outro. Dessa maneira a alienação impede que homens e

mulheres tenham uma percepção total do mundo, condição imprescindível para

o processo de conscientização e transformação do mesmo.

Nesse sentido, o Teatro do Oprimido propõe uma reflexão em que a

alienação dos corpos e dos sentidos está intrinsicamente relacionada com a

alienação política dos sujeitos. Pois, é com os sentidos que se faz a Leitura do

Mundo, que se percebe a si e aos outros, e é no corpo que reside a capacidade

de interação com o mundo e também da ação transformadora. Em seu livro

Educação e Mudança, Paulo Freire nos permite pensar que a desmecanização

do corpo é algo imprescindível no processo de uma educação libertadora

quando afirma que a pessoa alienada tem sua criatividade inibida e isso,

“geralmente, produz uma timidez, uma insegurança, um medo de correr o risco

da aventura de criar, sem o qual não há criação. (...) a alienação estimula o

formalismo, que funciona como uma espécie de cinto de segurança...”

(FREIRE, 2011, p.31).

Dessa maneira, pela própria exigência da linguagem teatral e pelo seu

compromisso político, o Teatro do Oprimido oferece uma práxis teatral que

pode contribuir com a Pedagogia do Oprimido, por meio da re-harmonização4

de um corpo “atuante, falante, leitor e „escritor‟” (FREIRE, 1993, p.25), capaz

de conhecer, analisar, interpretar, questionar e transformar o mundo.

4 Termo utilizado por Boal em seu livro Jogos Para Atores e Não-atores: “Para que o corpo seja

capaz de emitir e receber todas as mensagens possíveis, é preciso que seja re-harmonizado” (1998, p.89).

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2.3 Corporeidade e Educação

“É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro.” (FREIRE, 1993, p. 08-09).

O termo corpo é polissêmico, podendo ser usado para definir diversas

coisas. Se consultarmos um dicionário veremos que, quando empregado, pode

se referir a um cadáver, um animal, um conjunto de órgãos humanos, entre

outros significados. No entanto, neste trabalho, nos referimos a um corpo vivo e

em ação no mundo e, para expressar isso, adotamos a terminologia

corporeidade.

Por corporeidade compreende-se um corpo que carrega vivências,

sentimentos, pensamentos e desejos. O ser humano nasce com um corpo

inacabado, que vai se constituindo de significados ao longo de sua experiência,

de acordo com as características socioculturais onde está inserido. Para Hugo

Assmann (1933-2008), ao utilizarmos o termo corporeidade buscamos ainda

“expressar um conceito pós-dualista do organismo vivo” e “superar as

polarizações semânticas contrapostas (corpo/alma; matéria/espírito;

cérebro/mente)” (ASSMANN, 1998, p. 150), comumente usadas ao longo da

história.

No decorrer da história, foram inúmeras as concepções de corpo

constituídas, entretanto não vamos nos deter em explicá-las minuciosamente

neste trabalho, mas sim em destacar alguns conceitos que contribuam mais

diretamente com a temática da pesquisa.

Ao revisitarmos a compreensão de corpo na história do pensamento

humano, notamos que desde a Antiguidade Grega a filosofia tratou a questão

da humanidade com uma notória separação entre corpo e alma, matéria e

espírito, conhecimento sensível e conhecimento inteligível (GONÇALVES,

1994). Todavia, foi com René Descartes (1596-1650), considerado o pai da

filosofia moderna, nos séculos XVI e XVII, que o pensamento ocidental se viu

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diante de uma cisão radical entre corpo e alma. Com seu cogito: “Penso, logo

existo”, o filósofo ditou uma concepção de homem “fragmentado em si e

isolado do mundo” (GONÇALVES, 1994, p.51), ao afirmar ser a mente o centro

da realidade, de modo que o mundo sensível seria subjugado à razão, criando

uma relação hierarquizada da razão sobre o sentir. E, como afirma Berti: “ao

separar radicalmente as dimensões corpo e alma, a perspectiva cartesiana

reforçou a ideia de funcionamento corporal, de máquina, que atua com

princípios mecânicos próprios” (2009, p.20).

Passados quatro séculos do pensamento cartesiano, a concepção

dualista do ser humano segue com grande influência na sociedade ocidental. É

fato que a forte presença do culto ao corpo na sociedade atual tende a passar

uma ilusão de que a sobrevalorização do corpo pela razão seja algo superado.

No entanto, a busca incessante pela beleza física, seja por meio de

intervenções cirúrgicas, colocação de implantes ou pela prática excessiva de

atividades físicas combinadas com ingestão de suplementos alimentares, só

reforça a visão fragmentada do ser humano, como dono de um corpo que

parece ser exterior a si, numa relação de coisificação. E, nesse sentido, essa

adoração ao corpo torna-o “mercadoria para o consumo, para o prazer e para a

fantasia alienada” (GONÇALVES, 1994, p.32).

A escola, como instituição social, mantém uma relação dialética com a

sociedade a que pertence, de modo que a sua concepção de corpo reproduz a

fragmentação histórica entre o corpo e a mente, ao mesmo tempo em que é um

espaço em potencial para a superação desse dualismo. Essa fragmentação se

reflete na própria organização curricular dos espaços educativos, onde é

bastante comum que as atividades com o corpo fiquem restritas às aulas de

educação física e algumas vezes às de artes. Esse fato é demarcado na

própria revisão de literatura sobre a temática da corporeidade e da educação,

que é aprofundada prioritariamente nos estudos vinculados à área da

Educação Física.

Nesse sentido, as práticas educativas condizentes a essa concepção

dualista de corpo são coerentes à concepção tradicional de educação, segundo

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a qual o conhecimento do mundo acontece de maneira fragmentada. A

concretização disso se dá pela distribuição dos corpos dos alunos e

professores nos espaços educativos, pela preponderância do uso da palavra

em detrimento de outras linguagens e pela organização do tempo escolar e

divisão das matérias. Como afirma Gonçalves (1994), “a aprendizagem de

conteúdos é uma aprendizagem sem corpo” (p.34), “desligada da experiência

dos sentidos” (p.35).

Ao negar a experiência sensitiva e priorizar as operações cognitivas o

processo educativo nega a totalidade humana, a corporeidade. E, como afirma

o filósofo Merleau-Ponty (1908-1961), a relação dos sujeitos com o mundo é

corporal, pois

A vida concreta é sempre encarnada, isto é, não há pensamento que não conte com a experiência sensível. (...) antes de pensar, preciso perceber, isto é, mergulhar através do meu corpo num mundo que me envolve, sem que eu possa verdadeiramente negá-lo. (RAMOS, 2010, p.35-36).

Nesse sentido o processo educativo deve compreender o ser humano

enquanto unidade e não fragmentos, de maneira que as relações educativas se

deem entre seres que sentem, pensam e agem, numa relação dialética com o

mundo. E entender que é no corpo que se dá esse entrelaçamento, essa

condição de unidade.

Ao reproduzir a prática da Educação Bancária, que nega o corpo dos

educandos, a educação ignora as dimensões individuais, expressivas, criativas

e históricas da corporeidade. Essa atitude provoca uma massificação de

corpos, que, ao se comportarem da mesma maneira – sentar igual, andar da

mesma forma, entre outros –, consequentemente são levados a pensar da

mesma forma. E assim cria-se uma relação mecânica com o próprio corpo e o

corpo do outro, em que permanecer rígido fisicamente implica uma rigidez

mental. Assim, essa prática cotidiana faz com que os alunos introjetem em

seus corpos a ideologia autoritária dominante e o medo à liberdade, suficientes

para manter o status quo e não avançar em direção ao “ser mais” (FREIRE,

1987).

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2.3.1 O Educador e a Corporeidade

Não podemos desvincular a função central do educador no processo de

ensino-aprendizagem, com o seu papel diretivo para uma educação

transformadora.

Assim como a escola está integrada à sociedade, os educadores

também estão, numa relação dialética, aos valores e condicionamentos

produzidos pela cultura. Portanto, eles também trazem em seus corpos as

marcas da negação histórica da corporeidade.

Com uma formação profissional fragmentada, poucos educadores

tiveram a oportunidade de refletir sobre o papel da corporeidade. Desta

maneira, reproduzem uma prática pedagógica dualista, se relacionando com

seus alunos enquanto corpos manipuláveis, separados da mente. Assim, não

conseguem compreender o que cada gesto ou movimento de seus educandos

tem a revelar sobre eles ou como essa leitura possa vir a contribuir com um

processo educativo emancipatório. Pelo contrário, lidam com os corpos dos

alunos com a intenção te torná-los passivos e submissos, desencorajando-os

do ato criativo (GONÇALVES, 1994). E, quando esses corpos não são

obedientes, logo são considerados com alguma anormalidade. Como exemplo

disso, podemos citar o termo Transtorno de Déficit de Atenção com

Hiperatividade (TDAH), que, popularizado entre os educadores, costuma ser

usado para rotular os educandos que se recusam a se manterem quietos e

disciplinados. Além disso, busca-se na medicalização a solução para essa

questão.

Considerando a qualidade vital de inconclusão do ser humano, que é um

ser condicionado, mas não determinado (FREIRE, 1996), uma alternativa

possível à superação dessa prática reprodutivista dos educadores seria

oportunizar a reflexão crítica dos mesmos sobre suas práticas. Pois, como

afirma Freire, “A prática docente crítica, implicante do pensar certo5, envolve o

5 “Pensar certo significa procurar descobrir e entender o que se acha mais escondido nas

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movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e pensar sobre o fazer” (p.38).

Dessa maneira, as chances de o processo educativo colaborar com a

superação da dualidade corpo/mente, que se propaga há tantos séculos nos

espaços educativos, e promover a presença de corpos conscientes, vivos,

criativos e expressivos na ação e transformação do mundo tornam-se mais

promissoras.

coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos” (FREIRE, 1989, p. 77).

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2. MÉTODO

“... – O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho

que devo tomar para sair daqui? – perguntou Alice. – Isso depende muito de para onde você quer ir – respondeu o Gato”.

Lewis Carrol

Para o professor Joel Martins (1920-1993), pesquisar é como andar

inúmeras vezes em torno de uma indagação, por diferentes sentidos e

dimensões, de maneira que sua compreensão sobre o que se interroga nunca

seja totalmente respondida. A este processo que o pesquisador traça para

encontrar possíveis respostas às suas indagações chamamos de método, e

este estará sempre relacionado com determinadas visões de mundo e alguma

concepção de conhecimento (BICUDO, 2005).

Nessa dissertação optamos por uma pesquisa qualitativa, na qual a

preocupação com a análise da experiência ocupará um lugar central no seu

desenvolvimento (MOUSTAKAS apud SZYMANSKI e CURY, 2004). A pesquisa

qualitativa surgiu na segunda metade do século XX como uma necessidade de

as ciências humanas encontrarem metodologias condizentes com a sua

compreensão sobre a condição humana. Pois, até então, a única maneira de

se compreender o objeto de pesquisa, nas ciências naturais e exatas, era como

algo “objetivo e externo ao sujeito”, enquanto para as ciências humanas ele

seria “o próprio sujeito e as manifestações culturais de seu entendimento”

(BICUDO, 2005, p.20). Nesse sentido, nessa modalidade de pesquisa faz-se

necessário que o pesquisador supere os parâmetros de investigação

relacionados à neutralidade e à objetividade, característicos das pesquisas

positivistas, por uma ação crítica e implicativa, afirmadora do caráter político

que constitui qualquer pesquisa (RODRIGUES e SOUZA, 1987).

3.1 Pesquisa-intervenção

Para a investigação do tema central desta dissertação partimos dos

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pressupostos da pesquisa-intervenção, segundo a qual o conjunto de

procedimentos utilizados é organizado em ações interventivas, que, além de

contribuir para a construção de conhecimentos científicos, pretendem colaborar

com as práticas educativas dos sujeitos participantes.

A pesquisa-intervenção considera que a construção do conhecimento se

consolida com a prática; portanto, será nas experiências subjetivas dos sujeitos

participantes que o pesquisador buscará sentido para sua indagação.

Para tanto, o processo investigativo-interativo foi realizado por meio de

uma oficina de introdução ao Teatro do Oprimido e duas Entrevistas Reflexivas

coletivas, nas quais a prática dialógica e participativa é constituinte das

relações estabelecidas entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa,

conforme a proposta político-pedagógica de Paulo Freire.

A questão indagadora que norteou o desenvolvimento da pesquisa e a

Entrevista Reflexiva Coletiva foi: “Como a corporeidade foi compreendida pelos

participantes, ao longo de uma experiência com a oficina de Teatro do

Oprimido?”.

Antes do início da intervenção foram apresentados os Termos de

Consentimento Livre e Esclarecido a todos os participantes e coordenadores

das instituições envolvidas nesta pesquisa, garantindo que não seriam

identificados e que todas as informações coletadas fossem utilizadas com

sigilo.

Após assinados tais termos, os encontros foram gravados, fotografados

e, posteriormente, transcritos para elaboração da análise, com base no

referencial teórico apresentado anteriormente.

A seguir discorreremos sobre a metodologia do Teatro do Oprimido e da

Entrevista Reflexiva.

3.1.1 Teatro do Oprimido

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Augusto Boal iniciou sua trajetória de teatrólogo no Brasil no ano de

1953, em São Paulo, como diretor na Companhia de Teatro de Arena (1953-

1972). Foi na interação com diferentes públicos, de diversos lugares, que

concebeu gradativamente as ideias do Teatro do Oprimido (TO). Sendo assim,

consideramos relevante traçar um breve resumo sobre a Companhia de Teatro

de Arena.

O Teatro de Arena é uma das importantes companhias teatrais que, junto

ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e ao Teatro Oficina, marcou a cena

teatral paulista e nacional a partir da década de 1950. Conhecido por seu

posicionamento político de esquerda, a favor das classes menos favorecidas,

durante os seus quase vinte anos de existência passou por diversas fases em

busca de uma estética própria.

Com a chegada de Boal à Cia, o grupo passou a experimentar técnicas

realistas de interpretação com base no método do diretor russo Konstantin

Stanislavski (1863-1938), ao qual Boal teve proximidade por meio do Actor´s

Studio, durante sua pós-graduação nos EUA; momento em que também

estudou dramaturgia com John Gassner, na Columbia University.

Entre 1958 e 1961, a companhia viveu sua “Fase Nacional”, que se

destaca pelos Seminários de Dramaturgia e montagem de textos nacionais

inéditos. Época em que foi criticada por ter uma preocupação maior com os

conteúdos do que com a forma que eles eram transmitidos (CAMPOS, 1988).

De 1961 a 1964, houve um racha entre os membros do Arena, que em parte se

instalaram no Rio de Janeiro, fundando o Centro Popular de Cultura (CPC),

ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Entretanto, aqueles que

permaneceram no grupo, como Boal, deram andamento à fase conhecida

como “A Nacionalização dos Clássicos”. Neste estágio, influenciada pelas

ideias do Teatro Popular, a preocupação central da Companhia era a de

reinterpretar textos dramatúrgicos de diferentes países e épocas, aproximando-

os das questões políticas brasileiras emergentes naquele momento histórico.

Fase em que a Cia teatral se distanciou do realismo e passou a ter mais

influências do dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1863-1956). Em

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busca de um teatro engajado, e diante de um momento expressivo das Ligas

Camponesas, o grupo passou a excursionar pelo Nordeste com apresentações

populares. Posteriormente ao Golpe Militar de 1964, diante das dificuldades

com a censura, montam Arena Canta Zumbi, que junto com Arena conta

Tiradentes, inauguraram a fase do Sistema Coringa (CAMPOS, 1988).

Com o Sistema Coringa, Boal pretendia utilizar a proposta do

distanciamento brechtiano, fazendo com que todos os atores representassem o

mesmo personagem, por meio de um revezamento de papéis. “Cada

personagem é, em sua totalidade, uma construção que se faz coletivamente e

em cena” (CAMPOS, 1988, p.10), exceto o protagonista. Assim, com uma

estrutura fixa, os chamados musicais do Arena propuseram uma nova estética

para a companhia. Nessa perspectiva, seis meses antes do Ato Institucional

nº5, em 1968, apresentaram a I Feira Paulista de Opinião, com principal

objetivo de expressar-se sobre o momento político que o Brasil vivia e debater

saídas para um teatro de atuação política.

Nesta mesma época o Teatro de Arena iniciou as práticas com o Teatro

Jornal, num esforço de continuar a fazer teatro político. Mesmo diante da

censura acirrada, o grupo prosseguiu com seus sonhos, pois, segundo Campos

(1988), não queriam apenas falar ao povo, mas passar ao público seus meios

de fazer teatro. “Se não sabíamos o que dizer, sabíamos ensinar a dizer”,

afirma Boal (2000, p.271) – o que já anunciava a proposta do Teatro do

Oprimido.

Em 1971 Augusto Boal foi preso e banido do Brasil e, em 1972, o Teatro

de Arena encerrou sua trajetória. Foi durante o exílio de Boal que o Teatro do

Oprimido nasceu oficialmente.

O Teatro do Oprimido parte da premissa de que todos os seres humanos

são atores porque agem e espectadores porque observam (BOAL, 1996) e

propõe um conjunto de jogos, exercícios e técnicas que pretendem oferecer

elementos para que qualquer pessoa tenha condições de exercer sua

capacidade expressiva e, por meio da ação teatral, ensaie futuras ações para

transformação da vida real.

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Para Boal “O teatro nasce quando o ser humano descobre que pode

observar-se a si mesmo: ver-se em ação. (...) Percebe onde está, descobre

onde não está e imagina onde pode ir”. (BOAL, 1996, p.27). Nesse sentido, o

TO é uma prática teatral que busca proporcionar aos sujeitos, atores e não

atores, um melhor conhecimento de si e do mundo, na perspectiva de

transformarem esse mundo num lugar mais justo e propulsor de felicidade.

Segundo seu criador, os dois princípios fundamentais do TO são a

“transformação do espectador em protagonista da ação teatral e a tentativa de,

através dessa transformação, modificar a sociedade e não apenas interpretá-

la” (BOAL, 1998, p.319), numa transição de objeto passivo para sujeito da ação

transformadora.

Dessa maneira, a técnica proposta pretende oferecer condições para

que os oprimidos se apropriem da prática teatral e, a partir disso, ampliem sua

capacidade de expressão. E, para isso, Boal criou um “Plano geral de

conversão do espectador em ator”, que se divide em quatro etapas:

PRIMEIRA ETAPA - Conhecimento do Corpo: sequência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação; SEGUNDA ETAPA - Tornar o Corpo Expressivo – sequência de jogos em que cada pessoa começa a se expressar unicamente através do corpo, abandonando outras formas de expressão mais usuais e cotidianas; TERCEIRA ETAPA - O Teatro como linguagem – aqui se começa praticar o teatro como linguagem viva e presente, e não como produto acabado que mostra imagens do passado; Primeiro Grau - Dramaturgia simultânea: os espectadores “escrevem”, simultaneamente com os atores que representam; Segundo Grau - Teatro-Imagem: os espectadores intervêm diretamente, “falando” através de imagens feitas com os corpos dos demais atores ou participantes; Terceiro Grau - Teatro-Debate: os espectadores intervêm diretamente na ação dramática, substituem os atores e representam, atuam! QUARTA ETAPA - Teatro como discurso – Formas simples em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações. (BOAL, 1975, p.131-132)

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Cada uma dessas etapas é formada por jogos e exercícios. Por

exercícios compreende-se “todo movimento físico, muscular, respiratório,

motor, vocal que ajude aquele que o faz a melhor conhecer e reconhecer seu

corpo”, sendo “uma reflexão física sobre si mesmo. Um monólogo.” Já os jogos

podem ser compreendidos por tratarem “da expressividade dos corpos como

emissores e receptores de mensagens. Os jogos são um diálogo, exigem um

interlocutor” (BOAL, 1998, p.87). Enquanto os exercícios têm um cunho de

introversão, os jogos são momentos de maior extroversão. Embora haja essa

divisão, na prática há jogos nos exercícios e vice-versa, de forma que o autor

adotou a expressão joguexercícios para melhor designá-los.

A partir da longa experiência do seu criador, os joguexercícios foram

estruturados para desenvolverem a capacidade de expressão e a

desmecanização do corpo do ator, que é resultado da repetição de gestos e

expressões cotidianas.

Boal agrupou seu conjunto de joguexercícios em cinco categorias.

Sendo elas: I. Sentir tudo que se toca; II. Escutar tudo que se ouve; III.

Ativando os vários sentidos; IV. Ver tudo que se olha; V. A memória dos

sentidos.

As categorias I, II e IV são compostas por joguexercícios que buscam

exercitar prioritariamente o tato, a audição e a visão, respectivamente; a

categoria III trabalha com atividades que privam a visão no intuito de estimular

o desenvolvimento dos demais sentidos e a capacidade dos espect-atores6

perceberem o mundo em sua volta; a categoria V propõe joguexercícios que

relacionem memória, emoção e imaginação com objetivo de preparar uma cena

e também uma ação futura real.

Cada categoria reúne diferentes jogos e exercícios:

6 Termo criado por Augusto Boal com objetivo de superar a dicotomia entre espectador (aquele

que observa) e ator (aquele que age), convergindo o ato de observar e de agir como capacidades de um mesmo sujeito.

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35

Categoria I: Exercícios gerais, caminhadas, massagens, jogos de

integração, jogos com a gravidade.

Categoria II: Exercícios e jogos de ritmo, melodia, som, ritmo da

respiração e ritmos internos.

Categoria III: Série do cego e série do espaço.

Categoria IV: Sequência do espelho; sequência da modelagem;

sequência das marionetes, jogos de imagem, jogos de máscaras e

rituais; imagem do objeto polissêmico e jogos de integração de elenco.

Além dos joguexercícios, a QUARTA ETAPA reúne algumas técnicas

específicas do Teatro do Oprimido, que permitem tratar de temáticas de

interesse dos grupos que a praticam, e oferecem a possibilidade dos espect-

atores exercerem uma participação ativa, com direito à voz e opinião. Dentre

essas técnicas, explicitaremos brevemente as três que foram desenvolvidas na

oficina.

O Teatro-Jornal, conforme já mencionamos anteriormente, foi

desenvolvido durante o período pós-Golpe Militar no Brasil, quando a censura

era bastante acirrada e as temáticas políticas não tinham mais espaço na cena

teatral. No Teatro Arena, Boal e parceiros improvisavam cenas teatrais, a partir

de manchetes de jornais sobre a conjuntura política que viviam, com objetivo

de garantir o debate político por meio do teatro. As cenas eram realizadas em

espaços alternativos, tais como universidades, igrejas e escolas.

A técnica de Teatro-Imagem foi mais profundamente desenvolvida

quando o dramaturgo realizou atividades com indígenas do Peru, Colômbia,

Venezuela e México, durante seu exílio. Nessas experiências, a dificuldade na

compreensão de diversos dialetos fez com que a imagem corporal fosse

estimulada como recurso para facilitar a comunicação entre Boal e diferentes

povoados. A técnica consiste essencialmente em estimular o uso do corpo

como forma essencial de expressão, privando o uso de palavras. Dessa forma

os atores exercitam sua capacidade de expressão e evitam um teatro

excessivamente verbal, que Boal chama de rádio-fórum. Há diversas variantes

da técnica.

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O Teatro-Fórum é a mais popular de todas as técnicas do TO, difundida

em mais de 80 países. Consiste num espetáculo teatral desenvolvido a partir

de uma situação de opressão real, em que a plateia é convidada a entrar no

lugar do personagem oprimido e experimentar novas possibilidades de

rompimento da opressão apresentada. Trata-se de uma transgressão

simbólica, pela qual o espectador invade o “lugar sagrado” do ator e ensaia

futuras transgressões que terá de fazer na vida. Para Boal a principal função do

Teatro-Fórum é proporcionar aos espect-atores “o aprendizado dos

mecanismos pelos quais uma opressão se produz, a descoberta de estratégias

para evitá-la e o ensaio dessa prática“ (BOAL, 1998, p.28)

3.1.2 A Entrevista Reflexiva

Por Entrevista Reflexiva compreende-se um conjunto de procedimentos

organizados por Szymanski ao longo de suas experiências no desenvolvimento

de projetos e orientações de pesquisas qualitativas. Este procedimento tem

sido adotado no caso de estudos “de significados subjetivos e de tópicos

complexos demais para serem investigados por instrumentos fechados num

formato padronizado” (BANISTER et al., 1994 apud SZYMANSKI, 2008, p.10).

Constitui-se numa forma de entrevista interativa, na qual os participantes

devem ser compreendidos como sujeitos e não como meros informantes. Nela

é importante que o entrevistador propicie um ambiente de confiança para que

os entrevistados sintam-se confortáveis para se expressarem e contribuírem

com dados importantes para a pesquisa. A dimensão da subjetividade expressa

na entrevista deve ser considerada na construção do conhecimento.

Pode-se dizer que se trata uma entrevista semidirigida, individual ou

coletiva, como é o caso desta pesquisa. O procedimento não requer um roteiro

fechado, porém, para um bom desempenho, o entrevistador deve ter clareza

dos objetivos da entrevista, assim como da questão desencadeadora, pois “ela

deve ser o ponto de partida para o início da fala dos participantes, focalizando o

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ponto que se quer estudar e, ao mesmo tempo, ampla o suficiente para que ele

escolha por onde deseja começar” (SZYMANSKI, 2008, p. 27). Sempre que for

necessário o pesquisador deve propor a retomada do foco para o objetivo da

pesquisa.

Durante o desenvolvimento da entrevista o pesquisador deve ir

gradativamente apresentando sua compreensão aos entrevistados, colocando-

se numa situação de atenção e escuta deles. Essa prática também contribuirá

com o caráter reflexivo da entrevista, pois quando o entrevistado se depara

com sua fala na fala do outro, tem a oportunidade de elaborar novas narrativas.

E “o movimento reflexivo que a narração exige acaba por colocar o

entrevistado diante de um pensamento organizado de uma forma inédita até

para ele mesmo” (SZYMANSKI, 2008, p.14). Segunda a autora, é importante

que o pesquisador faça uma distinção entre a compreensão e a interpretação.

A compreensão caminha por uma direção de descrição e síntese daquilo que

acabou de ser dito e ocorre numa relação de “diálogo e empatia, capacidade

de se colocar no lugar” (DEMO, 1992 apud SZYMANSKI, 2008).

Como forma de assegurar a fidedignidade da entrevista, deve-se solicitar

autorização aos participantes para a gravação e futura transcrição dos

conteúdos da entrevista. E, ainda, como maneira de cumprir com os princípios

éticos da pesquisa, é imprescindível que haja um encontro para devolutiva aos

participantes.

3.2 Contexto da Pesquisa

Esta pesquisa foi desenvolvida no contexto mais amplo de um Grupo de

Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional à Escola,

Família e Comunidade (ECOFAM), coordenado pela Professora. Dr.ª Heloísa

Szymanski, do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Educação da

PUC-SP. Esse grupo realiza pesquisas interventivas numa comunidade de

baixa renda, localizada na zona norte de São Paulo, desde 1993.

Inicialmente o ECOFAM tinha como objetivo principal desenvolver

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trabalhos com as famílias, posteriormente a proposta se ampliou, agregando

outras parcerias, e o objetivo passou a ser a construção de subsídios para

práticas dialógicas e articuladas entre as instituições de ensino formais e

informais que fazem parte da comunidade.

A comunidade está localizada na região noroeste da capital paulista,

pertencente a um dos maiores distritos de São Paulo, com aproximadamente

21 km quadrados e uma população em torno de 254 mil habitantes. Em 28 de

fevereiro de 1964 foi elevada a 40º distrito da capital, sendo delimitada pela

Freguesia do Ó, Pirituba e Perus. É composta por famílias com altas taxas de

vulnerabilidade social, que sofrem dificuldades de ordem social, econômicas e

culturais (GASONATO, 2007).

O espaço físico da comunidade não foi uma experiência nova para mim,

que sempre realizei trabalhos comunitários em São Paulo e demais estados

brasileiros. No caso dessa região específica, desde criança acompanhava

minha mãe no seu trabalho em uma escola pública muito próxima de lá.

Contudo, a trajetória que realizei desta vez, durante o caminho de minha casa,

localizada na zona sul de São Paulo, até chegar à sede da Associação

Cardume, revelou que muitas coisas chegaram até a periferia nesses últimos

trinta anos.

Conforme saía da Marginal Tietê e ia adentrando nos bairros que

conduzem para a Comunidade, era notável a quantidade de comércio e

serviços encontrados no caminho. Numa das grandes avenidas que cortam

essa região é impressionante o número de lojas de grandes redes que marcam

presença na região: McDonald´s, Casas Bahia, Mercado Dia, Extra, Sonda,

Bancos, além de lojas de roupas, concessionárias de veículos, locadoras de

DVDs, pizzarias, inúmeras papelarias e serviços de impressão e internet.

Conforme a comunidade vai se aproximando, após uma sequência de

subidas e uma paisagem serrana que surge, o número de pessoas andando no

meio das ruas e de carros estacionados na via aumentam significativamente.

São corpos de homens e mulheres de diferentes idades, crianças, jovens e

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muitos cachorros espalhados pelas ruas estreitas e asfaltadas. A falta de

sinalização e distração com que as pessoas circulam pelos espaços delas me

levava a reduzir a velocidade imediatamente, além de redobrar a minha

atenção na condução do veículo. Diferente do comércio das grandes vias de

acesso que relatei anteriormente, neste percurso os mercadinhos, quitandas,

vendas, casas do norte ocupavam os espaços de garagens das casas e

serviam à população local. Bem na frente da Associação Cardume, um ponto

final de ônibus revela que, embora distante do centro, os moradores de lá

tinham condução pública para se deslocarem para outros lugares – resultado

de organização e conquista da comunidade, de acordo com relatos dos

participantes da oficina.

A distância entre a Associação Cardume do Centro de Educação Infantil

e do Centro da Criança e do Adolescente é bastante curta, com cerca de

seiscentos metros entre si. Trata-se de prédios bem cuidados, limpos e

organizados. A sala onde as oficinas foram desenvolvidas pertencia ao espaço

da Associação. Ampla, com duas mesas grandes, algumas cadeiras e

prateleiras com inúmeros livros catalogados, sobre diversos assuntos e para

diferentes idades. Nas paredes sempre havia exposições de trabalhos

elaborados pelas crianças e/ou adolescentes participantes das atividades

desenvolvidas pela Associação. E, conforme solicitei, em todos os encontros

tínhamos um aparelho de som e colchonetes à nossa disposição. Além de um

delicioso lanche oferecido para o grupo.

A questão da comunicação parecia fluir muito bem entre a equipe de

mulheres ligada à Associação, pois a cada encontro se organizavam conforme

as demandas e as agendas semanais, sempre garantindo alguém para abrir os

portões, outra(s) para preparar(em) o lanche e assim por diante. Algo que me

chamava atenção era a quantidade de chaves e cadeados utilizados para

trancar os prédios, pois, segundo o grupo, já haviam sido roubados algumas

vezes.

O grupo de participantes que trabalhavam nas três instituições

mencionadas era exclusivamente de mulheres as quais vinham todas

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caminhando a pé ou de ônibus, já que moravam bem próximas do trabalho,

algumas na esquina. Já os professores que vinham da EMEF Manoel de

Barros e da Frida Kahlo chegavam juntos de carro, diretamente após o término

de suas atividades.

A relação comunitária era tão explícita que, cada vez que estacionava

meu carro na rua, uma senhora sentada no banco e observando algumas

crianças brincarem, imediatamente me cumprimentava e se colocava à

disposição para chamar alguém, embora nunca houvéssemos sido

apresentadas formalmente.

O som da rua era de crianças brincando, grilos e às vezes rádio alto,

devido ao fato do ponto final de ônibus se localizar ao lado da Associação, com

um pequenino bar que era a parada de descanso dos motoristas e cobradores.

Por vezes esse barulho incomodou em alguns momentos das oficinas.

3.2.1 Participantes

Participaram desta pesquisa quinze trabalhadores da educação,

pertencentes ao Centro de Educação Infantil (CEI), Centro da Criança e do

Adolescente (CCA), ambos ligados à Associação Cardume e às Escolas

Municipais de Ensino Fundamental Manoel de Barros e Frida Kahlo, sendo que

a última estava participando pela primeira vez do projeto ECOFAM.

O critério de escolha dos participantes se deu por atuarem nos

equipamentos que compõem o Projeto ECOFAM e pelo interesse de

participarem da oficina, sendo livre adesão. Houve um diálogo entre

pesquisadores, direção da escola e liderança comunitária para apresentação

da proposta e decisão do dia da semana e horário mais adequados para todos.

Em seguida apresentamos uma tabela com o perfil do público

participante.

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Tabela 1- PERFIL DOS PARTICIPANTES DA OFICINA DE TEATRO DO OPRIMIDO 1. SEXO

Feminino Masculino 13 02

2. ESTADO CIVIL Solteiro Casado União Estável Separado

03 07 03 02 3. TEM FILHOS

Sim Não 11 04

4. NÚMERO DE FILHOS 01 filho 02 filhos 03 filhos

04 05 02 5. AUTODENOMINAÇÃO ETNICORRACIAL

Branca Negra Mestiça Morena Clara

Parda

06 05 01 01 02 6. RELIGIÃO *

Católica Evangélica Protestante Ateu Agnóstico 09 04 02 01 01

Budista Candomblecista Umbandista Kardecista 01 01 01 01

7. ESCOLARIDADE Médio Completo Superior

Incompleto Superior Completo

Pós-graduação completa

03 02 09 01 8. TEMPO QUE TRABALHA COM EDUCAÇÃO

Até 1 ano De 02 a 10 anos

De 10 a 15

anos

De 16 a 25 anos

Mais de 25 anos

03 01 03 03 02 9. CARGO ATUAL

Professor de Desenvolvimento

Infantil

Professor de Fundamental I

e II

Gestor de

Escola

Auxiliar Administrativo

Educador socioeducativo

01 07 02 01 04 *Um dos participantes assinalou todas as religiões.

3.3 Desenvolvimento da Oficina de Teatro do Oprimido

A Oficina de Teatro do Oprimido elaborada para este estudo é uma

proposta de vivência e reflexão do teatro enquanto forma de expressão

humana, dotado de fundamentos próprios. Ela é fruto de oficinas elaboradas

para educadores, atores e interessados na linguagem teatral, constituídas e

ministradas pela pesquisadora anteriormente a este estudo.

A oficina teve como principais objetivos a compreensão do teatro como

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um processo de descobertas e espaço de recriação de uma percepção de si e

do mundo; estimulação do uso da linguagem corporal como forma de

autoconhecimento e de comunicação; sensibilização dos participantes para as

mecanizações cotidianas, situando o teatro como forma de resistência a estas

mecanizações; estimulação da reflexão crítica sobre o processo de ensino-

aprendizagem, favorecendo as relações dialógicas presentes no cotidiano;

estimulação da leitura do mundo e criação do espaço estético; compreensão do

contexto que foram criadas as técnicas do Teatro do Oprimido e apreensão dos

elementos técnicos que compõem a linguagem teatral.

Considerando a identificação e a trajetória profissional da pesquisadora

com a proposta pedagógica freireana, a condução da oficina prezou pela

dialogicidade e problematização. Cada jogo ou exercício proposto buscou

trabalhar com os limites individuais de cada participante, ao mesmo tempo em

que os estimulassem a experimentar novas possibilidades, pois assim como a

Pedagogia do Oprimido propõe um processo de ensino-aprendizagem que

respeite o educando, Boal também afirma que, no Teatro do Oprimido, “nada

deve ser feito com violência ou dor em um exercício ou jogo; ao contrário,

devemos sempre sentir prazer e aumentar nossa capacidade de compreender”

(BOAL, 1998, p. X)7.

O critério de escolha dos jogos, exercícios e demais técnicas do arsenal

do Teatro do Oprimido priorizou a possibilidade da experiência dos

participantes com a corporeidade, além da coerência com os objetivos de cada

um dos encontros e da totalidade da oficina. Nem sempre os jogos foram

realizados como a bibliografia orientava, mas sim adequados aos propósitos da

pesquisa e alguns até mesmo criados pela pesquisadora.

Nos jogos “As duas Revelações de Santa Tereza”, “Hipnotismo

Colombiano”, “Carro Cego”, “Floresta de Sons” e na técnica do “Teatro-fórum”,

onde a separação entre opressor e oprimido é bem demarcada, houve um

cuidado especial por parte da pesquisadora no sentido de evitar que se

7 Neste livro Boal usa algarismos romanos na numeração das páginas iniciais.

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constituísse uma lógica dualista na relação opressor/oprimido. Nos momentos

planejados para a reflexão coletiva sobre a vivência desses jogos, a educadora

problematizou a dimensão dialética da relação opressor/oprimido e, no caso

específico do Teatro-fórum, onde a técnica exige um recorte dicotômico entre a

personagem do opressor e a do oprimido, foi bastante explícito aos

participantes que essa divisão se tratava de um requisito didático para que o

objetivo da cena fosse bem sucedido. Para a pesquisadora essa reflexão é

imprescindível na condução do Teatro do Oprimido.

Cada encontro foi estruturado em três momentos. Inicialmente sempre

era proposto um aquecimento, com objetivo de preparar o corpo para às

atividades seguintes, evitando possíveis lesões físicas, e de facilitar a

disponibilidade dos participantes para se envolverem com os jogos e exercícios

propostos na sequência. Em seguida, eram desenvolvidos joguexercícios e

técnicas teatrais do arsenal do Teatro do Oprimido e de outros jogos

aprendidos ou criados em diferentes espaços de teatro. Finalmente, todos os

encontros eram concluídos com uma reflexão coletiva sobre a vivência.

Dentro do arsenal do Teatro do Oprimido foram apresentadas e

experimentadas as técnicas do Teatro-Imagem, Teatro-Jornal e Teatro-Fórum.

Sempre que trabalhamos com alguma temática, a escolha do assunto foi feita

pelos sujeitos participantes da oficina, pois “tratando-se de um teatro que se

quer libertador, é indispensável permitir que os próprios interessados

proponham seus temas” (BOAL, 1998, p.5).

O processo foi realizado em sete encontros, com três horas de duração

cada um, totalizando vinte e uma horas. A seguir cada um dos encontros terá

sua estrutura apresentada com detalhes.

3.3.1 Descrição da Oficina

Apresentaremos o plano de trabalho de cada um dos sete encontros que

compuseram a Oficina de Teatro do Oprimido, incluindo o detalhamento dos

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jogos, exercícios e técnicas vivenciadas pelos participantes.

3.3.1.1 Plano de trabalho do 1º encontro (realizado em 30/03/11)

1. Contextualização da Oficina no Projeto ECOFAM;

2. Apresentação oral do grupo e das expectativas para oficina;

3. Tempestade de ideias sobre “O que é Teatro” para o grupo;

4. Joguexercício “O batizado mineiro”: Atores em círculo; cada um, em

sequência, dá dois passos à frente, diz seu nome, diz uma palavra que

comece com a primeira letra do seu nome e que corresponda a uma

característica que possui ou crê possuir, fazendo um movimento rítmico

que corresponda a essa palavra. Os demais atores repetem duas vezes:

nome, palavra e movimento. Quando já tiverem passado todos, o

primeiro volta, mas agora numa posição neutra, e são os demais que

devem se lembrar da palavra, nome e gesto (Jogo do arsenal do Teatro

do Oprimido (BOAL, 1998));

5. Joguexercício “Hipnotismo colombiano”: Um ator põe a mão a poucos

centímetros do rosto de outro; este, como hipnotizado, deve manter o

rosto sempre à mesma distância da mão do hipnotizador, os dedos e os

cabelos, o queixo e o pulso. O líder inicia uma série de movimentos com

as mãos, retos e circulares, para cima e para baixo, para os lados,

fazendo com que o companheiro execute com o corpo todas as

estruturas musculares possíveis, a fim de equilibrar e manter a mesma

distância entre o rosto e a mão. A mão hipnotizadora pode mudar, para

fazer, por exemplo, com que o ator hipnotizado seja forçado a passar por

entre as pernas do hipnotizador. As mãos do hipnotizador não devem

jamais fazer movimentos muito rápidos, que não possam ser seguidos.

O hipnotizador deve ajudar seu parceiro a assumir todas as posições

ridículas, grotescas, não usuais: são precisamente estas que ajudam o

ator a ativar estruturas musculares pouco usadas e a melhor sentir as

mais usuais. O ator vai utilizar certos músculos esquecidos do seu

corpo. Depois de uns minutos, trocam-se o hipnotizador e o hipnotizado.

Alguns minutos mais, os dois atores se hipnotizam um ao outro: ambos

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estendem sua mão direita, e ambos obedecem à mão um do outro (Jogo

do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

6. Joguexercício “O carro cego”: Uma pessoa atrás de outra. Por trás, o

motorista guiará os movimentos do carro cego, precisando os dedos no

meio das costas (o carro segue sempre reto), no ombro esquerdo (vira à

esquerda – quanto mais perto do ombro, mais fechada será a curva), o

ombro direito (similar), ou uma mão no pescoço (marcha à ré). Como

muitos carros cegos circularão ao mesmo tempo, é preciso evitar

colisões. O carro deve parar quando o motorista para de tocá-lo. A

velocidade será controlada pela maior ou menor pressão dos dedos nas

costas (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

7. Joguexercício “Floresta de sons”: O grupo se divide em duplas: um

parceiro será cego, e o outro o guia. Este emite sons de um animal –

gato, cachorro, passarinho ou qualquer outro –, enquanto seu parceiro

escuta com atenção. Então os cegos fecham os olhos, e os guias, ao

mesmo tempo, começam a fazer seus sons, que devem ser seguidos

pelos cegos. Quando o guia para de fazer sons, o cego também deve

parar. O guia é responsável pela segurança do parceiro (cego) e deve

parar de fazer sons se o seu cego estiver prestes a esbarrar em outro,

ou a bater em algum objeto. O guia deve mudar constantemente de

posição. Se o cego segue os sons com facilidade, o guia deve-se manter

o mais distante possível, com a voz quase inaudível. O cego deve se

concentrar somente no seu som, mesmo se ao seu lado houver vários

outros. O exercício tem como objetivo despertar e estimular a função

seletiva da audição (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL,

1998));

8. Joguexercício “A máquina dos ritmos”: um espect-ator vai até o centro e

imagina que é uma peça de engrenagem de uma máquina complexa.

Faz um movimento rítmico com seu corpo e, ao mesmo tempo, o som

que essa peça da máquina deve produzir. Os outros atores prestam

atenção, em círculo, ao redor da máquina. Um segundo ator se levanta

e, com o seu próprio corpo, acrescenta uma segunda peça à

engrenagem dessa máquina, com outro som e outro movimento que

sejam complementares e não idênticos. Um terceiro ator faz o mesmo e

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um quarto, até que todo o grupo esteja integrado em uma mesma

máquina, múltipla, complexa, harmônica (Jogo do arsenal do Teatro do

Oprimido (BOAL, 1998));

9. Breve apresentação das categorias dos joguexercícios e do conceito de

expect-ator, do Teatro do Oprimido;

10. Diálogo reflexivo do encontro (O que chamou atenção em si e no

outro?).

3.3.1.2 Plano de trabalho do 2º encontro (realizado em 06/04/11)

1. Joguexercício “Bons-Dias”: Cada pessoa deve dar a mão e dar boa-noite

a outra, dizendo o seu nome, um lugar e uma música que lhe é especial.

Não pode largar a mão dessa primeira pessoa antes de apertar a de

outra para dar boa-noite, e assim por diante, formando-se redes de

apertos de mão (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

2. Joguexercício de aquecimento e alongamento: O grupo deve circular

pelo espaço, explorando-o sem deixar nenhum espaço vazio. Todos

deverão caminhar com rapidez (sem correr), de maneira que seus

corpos estejam sempre mais ou menos equidistantes de todos os outros

e espalhados pela sala. De tempos em tempos, o diretor dirá “Para!” e

todos deverão parar, procurando fazer com que não haja nenhum

espaço vazio. Em seguida o diretor intercala o comando para andarem

em câmara lenta, acelerado e normal (Jogo do arsenal do Teatro do

Oprimido (BOAL, 1998));

3. Joguexercício “Quantos “as” existem num “a”?”: Em círculo, um dos

espect-atores vai até o centro e exprime um sentimento, sensação,

emoção ou ideia, usando somente um dos muitos sons da letra “a”, com

todas as inflexões, movimentos ou gestos com que for capaz de se

expressar. Todos os demais, no círculo, repetirão o som e a ação duas

vezes, tentando sentir também aquela emoção, sensação, sentimento

ou ideia que originou o movimento e o som. Outro espect-ator vai para o

centro do círculo e expressa outros sentimentos, sensações, ideias ou

emoções, seguido novamente pelo grupo, duas vezes. Quando muitos já

tiverem criado os seus próprios “as”, o diretor passa às outras vogais (e,

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i, o, u), depois passa a palavra “sim” querendo dizer “sim”, a “sim”

querendo dizer “não”, a “não” querendo dizer “não”, e a “não” querendo

dizer “sim” (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

4. Joguexercício “Completar Imagens”: Dois espect-atores cumprimentam-

se, apertando-se as mãos. Congela-se a imagem. Pede-se ao grupo que

diga quais os possíveis significados que a imagem pode ter. Várias

possibilidades são exploradas. Imagens são polissêmicas, e os seus

significados dependem não só delas mesmas, mas dos observadores.

Um dos atores da dupla sai e o diretor pergunta à plateia sobre

significados possíveis da imagem que resta, agora solitária. O diretor

convida o ator que desejar a entrar na imagem em outra posição – o

primeiro continua imóvel –, dando-lhe outro significado. Depois, sai o

primeiro ator e um quarto entra na imagem, sempre saindo um, ficando o

outro, entrando o seguinte. Depois dessa demonstração, todos se

juntam em pares e começam com uma imagem de um aperto de mãos.

Um parceiro se retira da imagem, deixando o outro. Agora, em vez de

dizer o que pensa que esta nova imagem significa, o parceiro que saiu

retorna e completa a imagem, mostrando o que vê como um possível

significado seu; coloca-se numa posição diferente, com uma relação

diferente com o parceiro que está com a mão estendida, mudando o

significado da imagem. Então, o segundo parceiro sai dessa nova

imagem, observa e, depois, reentra na imagem e a completa, mudando

o significado outra vez. E assim por diante, um parceiro de cada vez,

estabelecendo um diálogo de imagens. Não importa que a maneira que

o ator escolheu para completar a imagem não tenha um significado

literal – o importante é deixar o jogo correr e as ideias fluírem (Jogo do

arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

5. “Teatro-Imagem”: Dividimos os participantes em dois subgrupos,

sorteando dois temas: Sexualidade e Meio-ambiente. Em seguida os

grupos são orientados a debaterem sobre o tema e montar uma cena

congelada, como se fosse uma fotografia, sobre como percebem que tal

questão é tratada na sociedade, uma imagem real que envolva um

recorte do assunto. É reservado algum tempo para cada grupo concluir a

tarefa. Depois cada grupo, separadamente, monta a cena real e fica

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congelado. Os demais participantes observam a cena e fazem a leitura

coletiva, em voz alta, do que a imagem revela para cada um. Num

segundo momento os grupos são convidados para pensarem e

elaborarem qual seria a cena ideal para a questão abordada. Depois de

prontos, ambos apresentam a cena congelada, da mesma maneira que

fizeram anteriormente. Enquanto um grupo monta e congela a cena, o

outro comenta o que percebe. Na terceira etapa, os grupos deverão

pensar sobre o que poderia gerar a mudança da cena real para a cena

ideal, e então criar uma transição entre as duas cenas. Finalmente cada

grupo apresentará a cena partindo da imagem real congelada, com uma

transição em câmera lenta para a imagem ideal também congelada

(Técnica do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

6. Leitura da poesia “Ver vendo”8, de Otto Lara de Rezende;

7. Diálogo reflexivo do encontro.

3.3.1.3 Plano de trabalho do 3º encontro (realizado em 13/04/11)

1. Joguexercício de aquecimento e alongamento: Deitados de costas,

completamente relaxados cada um põe as mãos sobre o abdômen,

expele todo o ar dos pulmões e lentamente inspira, enchendo o

abdômen até não poder mais; expira em seguida; repete lentamente

esses movimentos diversas vezes. Faz o mesmo com as mãos sobre as

costelas, enchendo o peito, especialmente a parte de baixo, diversas

vezes. Idem, com as mãos sobre os ombros ou para cima, tentando

encher a parte superior dos pulmões. Finalmente, faz as três respirações

em sequência, sempre pela ordem anterior (Jogo do arsenal do Teatro

do Oprimido (BOAL, 1998));

2. Joguexercício “Massagem em círculo”: Em círculo, um atrás do outro,

cada um põe a mão sobre o ombro daquele que esta à sua frente,

mantendo certa distância. Com os olhos fechados, tentam descobrir os

pontos endurecidos do corpo do colega da frente; no pescoço, ao redor

das orelhas, na cabeça, nos ombros, na coluna vertebral – e massageia-

8 Consta como ANEXO A.

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49

o durante alguns minutos. O diretor determina que todos deem meia-

volta até que todo círculo tenha virado na direção contrária. Retoma-se a

massagem por mais alguns minutos (Jogo do arsenal do Teatro do

Oprimido (BOAL, 1998));

3. Joguexercício “Ímã afetivo”: O grupo caminha pela sala de olhos

fechados, por alguns minutos, procurando não esbarrar uns nos outros.

É bom que todos estejam de braços cruzados, com as mãos cobrindo os

cotovelos, para que as pessoas mais baixas não levem cotoveladas nos

olhos. Quanto mais as pessoas caminharem devagar, menos se

machucarão. Nessa primeira parte do jogo, quando duas pessoas se

esbarrem, deverão se separar imediatamente – o polo está negativo.

Elas devem se movimentar na sala sempre evitando tocar as outras; não

podendo ver, os espect-atores passam a perceber o mundo exterior

através dos outros sentidos. Após alguns minutos, o diretor anunciará

aos participantes que o ímã está positivo. A partir desse momento, as

pessoas que se tocarem deverão ficar coladas umas nas outras por

alguns momentos. Isso é difícil porque os participantes não podem parar

de se mover. É proibido tocar-se com as mãos, é melhor que usem

outras partes do corpo. Finalmente, o diretor dará o sinal para parar.

Todos param onde estão, e cada um tentará encontrar um rosto, só um,

com as mãos. Então começa a parte mais bonita do jogo – tocando o

rosto do outro, tentarão imaginar como é esse rosto, desde a sua forma

geral até os menores detalhes fisionômicos. As pessoas podem tocar o

rosto e a cabeça, mas não o corpo. Depois de alguns minutos, o diretor

mandará que abram os olhos e comparem a imagem que construíram

em suas mentes com a que está à sua frente (Jogo do arsenal do Teatro

do Oprimido (BOAL, 1998));

4. Apresentação de corpos que chamaram atenção durante a semana

anterior: O grupo é convidado, para demonstrar com o próprio corpo,

pessoas que chamaram sua atenção durante o intervalo das oficinas.

Apresenta quem quiser;

5. Retomada da discussão dos conteúdos apresentados pelo Teatro-

Imagem, na semana anterior;

6. Diálogo reflexivo do encontro.

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50

3.3.1.4 Plano de trabalho do 4º encontro (realizado em 18/04/11)

1. Joguexercício de Relaxamento: Deitados no chão, com a música “Intro”

do grupo Funk como Le Gusta, o grupo deve seguir às orientações da

música, que os guia para um estado de relaxamento. Em determinado

momento o diretor aciona um alarme sonoro de despertador e incita o

grupo a levantar rapidamente, como se estivessem perdendo a hora.

2. Joguexercício da caminhada: Os participantes são orientados para andar

pelo espaço de diferentes formas: pontas dos pés, calcanhar, bordas

internas e bordas externas. Revezar entre o tipo de andar como passo

do camelo (pé direito e mão direita. Pé esquerdo e mão esquerda. O

camelo avança primeiro o lado esquerdo, depois o lado direito); passo

de elefante (como o exercício anterior, só que ao contrário: pé direito

com a mão esquerda, pé esquerdo com a mão direita. É assim que anda

o elefante.); passo do caranguejo (as duas mãos e os dois pés no chão.

Anda-se como os caranguejos, para a esquerda e para a direita. Nunca

para frente ou para trás); passo do macaco (caminhar para frente com

as mãos sempre tocando o chão, a cabeça traçando uma linha

horizontal em relação ao solo, como os macacos, que se deslocam

melodiosamente). Alterna-se conforme orientação (Jogo do arsenal do

Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

3. Joguexercício “Um, dois, três de Bradford”: Em duplas, face a face.

Primeiro os dois espect-atores de cada dupla contam até três, em voz

alta, alternadamente: O primeiro dirá “um”; o segundo, “dois”; o primeiro,

“três”; o segundo, “um”; o primeiro, “dois”; o segundo, “três”, e assim por

diante. Devem tentar contar o mais rápido possível. Em seguida, em vez

dizer “um”, o primeiro espect-ator passará a fazer um som e um gesto

rítmicos, e nenhum dos dois dirá mais a palavra “um”, que se

transformará em um movimento rítmico e um som inventado pelo

primeiro espect-ator. O som e ação criados pelo primeiro no início dessa

segunda sequência devem ser repetidos fielmente sempre no lugar do

“um”. Em seguida o segundo espect-ator inventará outro som e

movimento para serem feitos toda vez que deveria ser falado o “dois”. A

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51

dupla jogará por alguns minutos tentando ser a mais dinâmica possível.

Um dos dois substituirá o “três” por outro som e outro gesto. Então

teremos um tipo de dança, somente com sons e movimentos rítmicos,

sem nenhuma palavra (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL,

1998));

4. Joguexercício “As duas revelações de Santa Tereza”: O título não tem

nada de religioso, mas está relacionado com um bairro do Rio de

Janeiro, onde foi inventado. Formam-se duplas e, em cada uma, os

parceiros decidirão somente: a) quem interpreta o quê, quem é um e

quem é o outro – não podem os dois ser pais ou alunos etc.; cada um

deve ser um dos polos do binômio. A improvisação começa quando os

dois se encontram e conversam sobre assuntos que esses personagens

geralmente conversam e a fazer o que acreditam que esses

personagens habitualmente façam, incluindo todo tipo de lugar – comum

e clichê. Depois de alguns minutos o diretor dirá: “Um dos dois pode

fazer a primeira revelação”. Então, um dos parceiros deverá revelar ao

outro alguma coisa, de grande importância, que tenha o potencial de

mudar a relação. O outro parceiro deverá mostrar o que imagina ser a

reação mais provável, dentro da improvisação. Depois de alguns

minutos o diretor pedirá ao segundo parceiro que faça sua revelação,

que deve ser tão importante quanto a anterior, e a primeira pessoa

reagirá de acordo com o que imagina. Neste jogo foram propostos os

seguintes papéis para as duplas: patrão e empregado; polícia e ladrão;

religioso e fiel (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

5. Joguexercício “Objetos do cotidiano”: Os participantes são convidados a

espalharem os objetos que fazem parte do cotidiano deles, trazidos para

a oficina, conforme solicitação na semana anterior. Após espalhados, os

espect-atores devem circular pelo espaço e escolher um dos objetos

expostos, pegá-lo e explorá-lo na sua finalidade comum, colocando seu

corpo em relação ao utilitário. Numa relação de movimentos repetidos

devem criar uma personagem a partir desse objeto, alguém que faria

uso do mesmo.

6. Joguexercício “O baile na Embaixada”: Este jogo se baseia num fato que

dizem ter realmente acontecido em uma recepção em uma embaixada

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latino-americana durante o tempo da repressão fascista e das guerrilhas.

A relação é fácil de perceber. Cada espect-ator participará com a

personagem que criou no jogo anterior. Vão todos ao baile da

embaixada, onde são recebidos com todas as cerimônias – e se

esforçam para parecerem agradáveis, bem-educados, respeitando todos

os protocolos. São anunciados ao entrar, se encontram, se misturam,

conversam: tudo é diplomacia. O que os convidados não sabem é que o

garçom é um membro de um movimento revolucionário; ele serve as

bebidas, os salgadinhos e, na hora do bolo, que serve em pequenas

fatias, ninguém desconfia, mas sente os efeitos: no bolo foi colocada

uma droga alucinógena. A primeira rodada de bolo é servida, tirando a

inibição dos convidados, que começam a agir de forma um tanto

estranha, iniciando-se uma enérgica luta entre as vontades conscientes

dos personagens e os seus desejos inconscientes, que começam a se

manifestar com destemor. A segunda rodada de bolo contém mais um

pouco de droga, e os convidados revelam mais de si mesmos, agindo

como realmente gostariam de agir, sem nenhum protocolo inibidor; seus

desejos vêm à superfície e eles deixam cair suas máscaras e

respeitabilidade. A terceira rodada de bolo talvez nem faça falta...

Finalmente vem o café, que restaura a moralidade e os recoloca em

condições sociais aceitáveis. Cada rodada é iniciada pelo diretor em

intervalos apropriados. O importante nesse jogo não é descambar para a

irracionalidade, mas trabalhar no limite da luta razão versus desejos

(Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

7. Joguexercício “Homenagem a Magritte”: Na versão original que consta

no livro de Boal, esse jogo começa com uma garrafa de plástico vazia,

dizendo que “Esta garrafa não é uma garrafa, então o que será?”, e

cada participante terá o direito de usar a garrafa em relação ao seu

próprio corpo, fazendo a imagem que quiser – estática ou dinâmica,

dando ao objeto garrafa o sentido que quiser: um bebê ou uma bomba,

uma bola ou um violão, um telescópio ou um sabonete. Depois da

garrafa, podem-se usar outros objetos. Nesta adaptação, ao invés da

garrafa, o jogo é feito com os objetos que trouxeram de casa e utilizaram

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53

nos exercícios anteriores (Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido

(BOAL, 1998));

8. Diálogo reflexivo do encontro;

9. Teatro-Jornal: São espalhadas algumas notícias e fotografias retiradas

de jornais e da internet no centro da sala, trazidas pelos participantes,

de acordo com o interesse de cada um. Pede-se que todos circulem e

escolham aquelas cuja temática mais interessa discutir no grupo. De

maneira democrática são escolhidas as duas notícias de maior interesse

do grupo, que, divididos em dois subgrupos, terão que transformá-las

em duas cenas. Após um tempo destinado para preparação, cada grupo

apresentará a cena criada (Técnica do arsenal do Teatro do Oprimido

(BOAL, 1998));

3.3.1.5 Plano de trabalho do 5º encontro (realizado em 24/04/11)

1. Joguexercício de aquecimento e alongamento (idem ao alongamento

descrito nos encontros anteriores);

2. Ensaio e reapresentação das cenas do Teatro-jornal, criadas na semana

anterior, com acréscimo de figurinos, adereços, caracterização, cenário

e marcação.

3. Diálogo reflexivo do encontro.

3.3.1.6 Plano de trabalho do 6º encontro (realizado em 04/05/11)

1. Joguexercício de aquecimento e alongamento (idem ao descrito nos

encontros anteriores);

2. Joguexercício “O cacique”: Em círculo, uma pessoa sai da sala e o grupo

escolhe o cacique, que será a pessoa que iniciará todas as mudanças

gestuais e todos os movimentos rítmicos no círculo. A pessoa que saiu é

chamada de volta e observa para tentar descobrir quem é o cacique

(Jogo do arsenal do Teatro do Oprimido (BOAL, 1998));

3. Joguexercício “Orquestra de nomes”: Pede-se um voluntário para reger

o grupo como numa orquestra, onde a música será o nome dele. Sem

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54

usar a palavra, apenas com gestos e o som cantado de seu nome, ele

deverá comandar a orquestra. Depois muda o maestro;

4. Técnica de ensaios “Teatro de Surdos”, “Para e Pensa” e “Interrogatório”:

Técnicas realizadas com as cenas improvisadas a partir das histórias de

opressão, compartilhadas na dinâmica de escolha de temas para o

Teatro-Fórum. No caso do “Teatro de Surdos” os atores deverão

desenvolver a cena sem o uso de palavras ou mímicas, num exercício

de valorização da imagem. Na técnica do “Para e Pensa”, o diretor

deverá solicitar que os atores congelem a cena em determinados

momentos que considerar “ricos em pensamentos escondidos do que

revelados pelo diálogo” (BOAL, 1998, p.207) e os atores deverão falar

tudo que vem à cabeça, enquanto personagens, revelando os

pensamentos ocultos, o que acarretará numa maior dinâmica para

atuação. Quando o diretor diz “continua”, todos devem voltar à ação da

cena de onde haviam parado. No “Interrogatório”, o ator será

interrogado, sem sair do personagem, pelo diretor e grupo, sobre o que

pensa dos outros personagens, sua vida, ideologia, acontecimentos da

cena, gostos e qualquer outra coisa. A intenção é contribuir com a

criação da personagem (Técnicas do arsenal do Teatro do Oprimido

(BOAL, 1998));

5. Diálogo reflexivo do encontro.

3.3.1.7 Plano de trabalho do 7º encontro (realizado em 11/05/11)

1. Joguexercício de aquecimento e alongamento;

2. Joguexercício “Zip, zap e boing”: Em círculo, os participantes devem

enviar “aplausos” entre eles, com foco, numa sequência contínua, onde

quem recebe manda para o outro. Sempre que for enviado o “aplauso”

para qualquer participante da roda que não seja àqueles imediatamente

posicionados ao lado esquerdo e direito do emissor, o movimento deverá

acompanhar a palavra “zip”. No caso de enviar o movimento para a

pessoa da esquerda ou da direita, é a palavra “zap” que deverá compor

o movimento e, por último, sempre que o movimento for retornado para a

mesma pessoa que mandou, deverá ser usada a palavra “boing”. Este

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55

jogo colabora com o exercício da atenção, foco, ritmo e integração do

grupo;

3. Ensaio final da cena9 para o Teatro-Fórum: Marcação de espaço,

caracterização, sonoplastia, inclusão de signos, coro etc.;

4. Aquecimento ideológico10: Leitura da Lei Maria da Penha e de outros

textos e poesias referentes à violência doméstica contra a mulher.

Momento que tem como objetivo aquecer os espect-atores sobre a

questão ideológica da cena que será apresentada (Arsenal do Teatro do

Oprimido (BOAL, 1998));

5. Apresentação do Teatro-Fórum: Apresentação da cena ensaiada para o

fórum, que deve caracterizar a natureza de cada personagem e

identificá-lo com clareza, para que o espect-ator reconheça a ideologia

de cada um. A cena deverá apresentar uma falha política ou social, para

que os espect-atores sintam-se estimulados a encontrar soluções e criar

novas possibilidades de confrontar a opressão.

Após a apresentação convencional do espetáculo, o curinga (mestre de

cerimônias do espetáculo) perguntará aos espect-atores se estão de

acordo com as soluções propostas pelo protagonista e, no caso provável

de uma resposta negativa, deverá convidá-los a entrar em cena e tomar

o lugar do protagonista, oferecendo uma solução melhor do que a

apresentada. O objetivo do Fórum não é ganhar ou perder, mas

possibilitar o exercício e aprendizado de todos. Após cada intervenção o

curinga deverá fazer uma síntese da intervenção proposta em diálogo

com os espect-atores, numa postura muito parecida com a de um

educador. (Técnica do Arsenal do Teatro do Oprimido, BOAL, 1998);

6. Diálogo reflexivo do encontro.

3.4 Caminhos para a compreensão do fenômeno

O procedimento para análise dos dados qualitativos coletados nesta

pesquisa foi pautado na proposta de Szymanski, Almeida e Prandini, que

concebem a análise como “o processo que conduz à explicitação da

9 Consta como APÊNDICE C.

10 Consta como ANEXO B.

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56

compreensão do fenômeno pelo pesquisador” (2008, p.71).

Para as autoras esse processo se constitui em um conjunto de ações

que, no caso deste estudo, teve início com o processo de transcrição das

impressões dos participantes, gravadas em cada um dos sete encontros que

compuseram a Oficina do Teatro do Oprimido, e das duas Entrevistas

Reflexivas coletivas, incluindo a devolutiva. Depois de feitas as transcrições,

elaboramos uma síntese de cada um dos nove momentos transcritos.

Considerando que a questão central desta pesquisa é a investigação da

experiência da corporeidade com os educadores participantes da Oficina de

Teatro do Oprimido, optamos por trabalhar com foco nos conteúdos das duas

Entrevistas Reflexivas. Entretanto, essa opção não exclui eventuais recortes

dos dados emergentes dos encontros da oficina de teatro, que possam

contribuir com a análise.

Depois de realizadas leituras e releituras no texto de referência das

Entrevistas Reflexivas, organizamos as falas, que convergiram num mesmo

tema, em constelações. O termo „constelação‟ substitui „categoria‟, pois,

segundo Szymanski (2004) as constelações possibilitam arranjos mais

variados, pois “à semelhança de um céu estrelado, várias constelações podem

ser delimitadas, dependendo de analista para analista” (p.3). Essa seria a fase

denominada de explicitação dos significados.

Concluída a organização das constelações, realizamos uma Entrevista

Reflexiva de devolutiva com a presença de oito participantes da Oficina de

Teatro do Oprimido, apresentando-lhes as constelações pré-analisadas, no

intuito de validar a interpretação resultante da compreensão da pesquisadora,

garantindo a fidedignidade da pesquisa.

A Entrevista de devolutiva também foi transcrita e transformada num

texto de referência que complementou e alterou as constelações anteriores.

Em seguida partimos para a fase de análise final ou discussão, elaborada a

partir dos referenciais metodológicos de Paulo Freire e Augusto Boal.

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3. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

"Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara."

José Saramago

Neste capítulo apresentaremos as sínteses11 dos sete encontros que

constituíram a Oficina do Teatro do Oprimido (TO), as duas Entrevistas

Reflexivas sobre a compreensão dos educadores referente à experiência com

a corporeidade e, por último, as constelações que emergiram no processo de

análise. As constelações apresentadas serão desenvolvidas na discussão.

4.1 Sínteses da Oficina de Teatro do Oprimido

4.1.1 Síntese do primeiro encontro (realizado em 30/03/2011)

Os participantes da Associação Cardume foram muito receptivos com

todo o grupo, oferecendo um saboroso café. Por ser o primeiro dia, houve um

pequeno atraso por parte dos educadores da EMEF Frida Kahlo, que estavam

se localizando no bairro.

Iniciei a oficina com uma breve apresentação sobre minha trajetória

profissional, o Projeto ECOFAM e o tema da minha pesquisa de mestrado.

Expliquei sobre o termo de consentimento e solicitei a autorização de todos

para gravar e fotografar os encontros. Em seguida os participantes se

apresentaram, dizendo o nome, formação, profissão e expectativas com

relação à oficina. Sobre as expectativas foi recorrente o desejo em adquirir

aprendizados para a vida pessoal e profissional e superar a timidez. Na

sequência realizamos uma “tempestade de ideias” sobre o que os participantes

compreendiam por teatro e as respostas foram: encenação; comunicação;

expressão; representação; vivência; mensagem; movimento; público; memória;

emoção; curiosidade; reflexão; temos uma sociedade do corpo tão reprimido e

11

As transcrições originais serão entregues à Banca Examinadora e disponibilizadas aos

participantes da pesquisa.

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maltratado do ponto de vista da moralidade cristã, que o teatro é o momento de

uma grandeza humana, de expressar emoções (...); vibração; liberdade;

expressar dimensões: riso; choro; imaginação; realização; improviso; tem uma

força, um poder, que às vezes permite discutir temas que não se conseguiria

numa reunião, quando vai pra ação acontece.

A partir disso apresentei a concepção do teatro do oprimido e a proposta

da oficina, de acordo com o folder12 que haviam recebido. Em seguida convidei

o grupo para experimentar alguns joguexercícios. Durante as atividades, o

grupo esteve bem envolvido e apenas a Carmem13 não pode participar por

estar com restrições médicas, porém ficou observando.

No diálogo reflexivo sobre a vivência pedi que relatassem sobre o que

havia chamado atenção em si e no outro. Célia iniciou falando que seria

interessante filmar a vivência para que todos pudessem observá-la depois.

Disse que, enquanto observava o grupo, sentiu vontade de participar. Élida

disse até esqueceu que estavam sendo gravados.

Bete falou sobre os diferentes parceiros que formou dupla nos jogos e

destacou que o fato de estar de vestido não impediu que se concentrasse e

nem limitou sua participação. Martha destacou ter achado legal o fato de ter

que confiar no outro, por estarem de olhos fechados. Elisa concordou sobre a

dificuldade de terem de fechar os olhos e confiar no outro em alguns jogos e

considerou que o grupo estava bem sintonizado e com vontade de participar.

Ernesto avaliou que houve confiança entre as pessoas, pois normalmente se

fecham os olhos em situações raras de confiança e conforto, como quando se

deita no colo da mãe ou quando beija o amado. Disse ainda ter gostado e

sentido prazer durante os jogos além de ter procurado se concentrar ao

máximo nas ações. Martha apontou que, durante o processo dos jogos, os

participantes começaram a se olhar de maneiras diferentes e então “parece

que quebra aquela barreira, você muda aquele olhar inicial, aquela tampa, uma

barreira, não sei a palavra, parece que tira...”. Para Ernesto ela estava se

referindo ao “pré-conceito” que se tem quando se vê uma pessoa pela primeira

vez. Malu destacou que, diferentemente dos outros, no caso dela a maior

12

Consta como APÊNDICE A. 13

Por questões éticas os nomes dos participantes da pesquisa e das instituições envolvidas

são fictícios.

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dificuldade não foi com relação à confiança e à entrega, mas sim na

“composição da cena”, que acontecia no jogo “Máquina de Ritmos”,

considerando que o fato de usar mais o corpo do que a palavra dificultou.

Martha questionou se os joguexercícios haviam trabalhado o sentido e pontuou

que, quando se fecham os olhos, “a gente fica mais atenta por necessidade”.

Faltando pouco tempo para finalizar o encontro, introduzi o conceito de

Augusto Boal relacionado às Cinco Categorias: ver o que se olha; sentir o que

se toca; ouvir o que se escuta; ativando os vários sentidos e a memória dos

sentidos. Em seguida, enfatizei a importância do conceito de espect-ator para o

Teatro do Oprimido, afirmando que Célia não tinha sido uma mera espectadora

no encontro, pois “observar é um grande aprendizado” e todos iriam mudar de

papel e observar. Finalizei lendo um trecho do folder sobre o papel do teatro e

solicitando que todos trouxessem um objeto do cotidiano para o próximo

encontro, além de refletirem sobre as mecanizações durante a semana. Por

último cada um falou uma palavra para fechar o encontro e todos despediram-

se com beijos e abraços num clima muito harmonioso.

4.1.2 Síntese do segundo encontro (realizado em 07/04/2011)

Após a realização de alguns joguexercícios o grupo foi dividido em dois

subgrupos para desenvolverem uma das técnicas do Teatro-Imagem. Enquanto

um grupo trabalhou com o tema do meio-ambiente o outro tratou da

sexualidade.

No diálogo reflexivo discorreram sobre a experiência com o Teatro-

Imagem. Joaquim contou que, dentro do tema sexualidade, o grupo optou por

mostrar, inicialmente, uma cena de um baile funk, retratando a exploração do

corpo. Em seguida, na cena ideal, mostraram outro baile, “mais sutil, sem apelo

sexual”. Malu complementou dizendo que abordaram aquilo que julgam ser

vulgar no comportamento de seus alunos, já que, por terem outros valores,

acabam criticando e às vezes não dando abertura para eles se expressarem.

Com relação à cena ideal, contou que pensaram num baile romântico, com

cavalheiro dançando de rosto colado, música lenta, “um baile da saudade”.

Entretanto, ao refletir sobre isso percebeu que, para tornar a cena ideal,

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60

tiveram que mudar a faixa etária das personagens.

Elisa, que participou do grupo com o tema sobre meio-ambiente, avaliou

que foi fácil por se tratar de um tema que já vem sendo trabalhado.

Com relação às atividades anteriores ao Teatro-Imagem, Ernesto

chamou atenção para a timidez do grupo, incluindo a dele, nos exercícios que

sugeriram expressar sons junto com a respiração. De modo geral apontaram

que houve uma ênfase maior no trabalho corporal e que olhar no olho do outro

é algo difícil. Para Ernesto o excesso de risos em alguns momentos dos

joguexercícios pode acontecer devido a um “pudor moral”, essa “coisa de uma

maldade sexual, dificuldade de lidar com o corpo... aí você sorri, disfarça”.

Martha considerou que, embora tenham ocorrido risos, achou que o grupo teve

mais concentração do que na semana anterior, pois foram sendo lembrados

por mim (Roberta), a toda hora, sobre a importância do foco. Elisa compartilhou

que se sentiu um pouco incomodada com sua própria falta de criatividade em

expressar sons no jogo “Sons da Floresta” – o que para Ernesto tinha mais a

ver com repressão do que falta de criatividade. Nesse sentido Simone

concordou com Ernesto, afirmando que sabe que pode se soltar mais, porém a

timidez a bloqueia. Questionados sobre a experiência da automassagem e

alongamento, Rosana disse que, apesar de detestar massagem e não gostar

que coloquem a mão em suas costas, e muito menos em seu pé, a experiência

de se tocar foi algo novo. Outros participantes falaram sobre a sensação de

relaxamento quando se tocaram. Célia contou que nos jogos em dupla ficou

preocupada em até onde poderia tocar sua parceira.

Solicitei que escolhessem uma notícia de jornal para o trabalho com o

Teatro-Jornal da semana seguinte e finalizei com a leitura do poema Ver vendo,

de Otto Lara Rezende14. Todos aplaudiram e Ernesto propôs um abraço

coletivo.

4.1.3 Síntese do terceiro encontro (realizado em 13/04/2011)

No diálogo reflexivo coletivo sobre os joguexercícios iniciais deste

encontro, Simone disse que havia achado as atividades tranquilas e relaxantes,

14

Consta como ANEXO A.

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61

conseguindo ouvir até os grilos da rua. Outros participantes concordaram

dizendo que se tratava de um lugar privilegiado e ela complementou que,

embora morasse ali, nunca havia parado para pensar naquele som

anteriormente.

Elisa relatou que havia se sentido mais à vontade neste encontro e para

se guiar com os olhos fechados buscou o calor das pessoas, se esquecendo

até mesmo de que havia homens no grupo.

De modo geral destacaram a experiência de tocar o rosto de outra

pessoa, sentindo o cabelo, o tamanho do rosto, na tentativa de saber com

quem jogavam. A curiosidade esteve bem presente na relação em dupla, em

saber com quem jogavam, já que estavam de olhos fechados.

Para Rosana o seu companheiro “foi muito legal”, pois perguntou se

podia massageá-la e ela o autorizou. “Me superei”, afirmou. Ernesto disse que

procurou ser cuidadoso com ela, pois ela já havia alertado o grupo sobre sua

dificuldade com o toque. Para ele o fato de um de seus parceiros ser homem

não interferiu em nada no jogo, sendo tranquilo.

Alguns participantes afirmaram que tiveram mais dificuldades em ser

tocado, enquanto que, para outros, tocar foi mais difícil. No caso de Joaquim,

considera mais complicado tocar, principalmente quando é o homem que toca a

mulher. Pondera que deve-se ter cuidado.

Simone disse que tinha receio em revelar suas imperfeições, quando

tocada: “A hora que ela foi tocar no meu nariz (rindo) eu já fui pensando que ela

ia perceber que meu nariz era grandão” (risos).

Elisa compartilhou uma experiência com seus alunos, numa

apresentação de tango, durante a qual sentiu que eles não se entregaram,

fizeram “repeteco do movimento”, “tinham os passos como uma coisa

mecânica”. Concluiu dizendo que considera que eles, professores, não tinham

“quebrado” o suficiente neles mesmos para poder passar para os alunos.

Martha refletiu sobre sua experiência com crianças pequenas no CEI,

expondo que, enquanto educadores, podam as crianças de se tocar, de se

conhecer, até mesmo por falta de tempo. Cristina também dividiu uma

experiência com alunos de primeiro ano, numa escola muito violenta onde os

professores selecionaram jogos que trabalhassem essa questão do toque, da

calma, do saber ouvir e tal, durante um ano, e tiveram bons resultados.

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Após refletirmos sobre as atividades, retomamos a discussão do Teatro-

Imagem, desenvolvido na semana anterior, com enfoque nos conteúdos

trabalhados e não na técnica, que já havia sido discutida.

No caso da temática da sexualidade, o grupo refletiu acerca da

intolerância do educador diante dos valores de seus alunos; apontou-se a falta

de preparo do profissional para lidar com a sexualidade bem como da família,

enquanto pais e mães, com seus filhos.

Referente ao tema do meio-ambiente conversamos sobre a cena

elaborada, que transforma um espaço desmatado num parque reciclado para

crianças brincarem. Problematizei que, durante a apresentação da cena, o

grupo que assistia havia dito que não tinha conseguido identificar o agente

transformador da cena real para a cena ideal. Dialogamos sobre as diferentes

concepções de meio-ambiente: a naturalista, que exclui o homem e suas

relações; a individualista, que restringe a responsabilidade para o indivíduo; e a

socioambiental segundo a qual o homem e suas relações fazem parte do meio-

ambiente.

Elisa pontuou que achava que as pessoas precisam primeiro passar por

uma mudança pessoal, para depois agir. Cristina complementou afirmando que

as pessoas estão condicionadas, e o fato de pensar sobre os hábitos pode

contribuir para que mudem seus comportamentos. Joaquim abordou a questão

da produção e do consumismo e o desafio de educar as crianças, pois,

segundo ele, “o homem vai ficando cada dia mais alienado e nem percebe mais

de onde vêm essas coisas [leite, alimentos, produtos], parece que tudo brota...

você vai ao mercado e acha de tudo!”. Elisa concluiu dizendo que “o papel de

educador é exatamente fazer com que essas informações se transformem em

conhecimento. Isso muda a postura”.

4.1.4 Síntese do quarto encontro (realizado em 18/04/11)

Durante o diálogo reflexivo coletivo o grupo revelou ter ficado bastante

incomodado com a interrupção brusca do relaxamento pelo som de

despertador. Comentaram que levaram um “susto”, “choque”, “desequilíbrio”.

Questionados sobre o sentimento que o exercício gerou, Márcia afirmou que

sentiu raiva; Bete disse que fez como em casa, optou por deixar tocar “mais

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cinco minutinhos”. Joaquim sentiu-se estressado e Élida decepcionada. Elisa

disse que, apesar da frustração, ficou curiosa para saber o que se pretendia

com a proposta. A partir disso refletiu sobre os choques que sofrem no dia-a-

dia. Concluíram que, no caso da atividade, se tratou de um choque sonoro,

que, segundo Ernesto, interfere no corpo, “vai chegando, atropelando”, dizendo

também que achou legal ver como o corpo lida com os comandos que chegam

cotidianamente.

Ao lembrarmos que a escola tem um sinal sonoro, a equipe da EMEF

Manoel de Barros contou que lá não tem. Malu disse que na EMEF Frida Kahlo

tem um sinal manual e “dependendo do humor que a pessoa está, ele toca

meia hora”.

Em seguida partimos para a reflexão sobre os demais joguexercícios.

Com relação à sequência das diferentes caminhadas, a maioria se cansou

bastante e se percebeu mal preparada fisicamente, além de notar dificuldades

com a coordenação, motivo de muitos risos no grupo. Élida pontuou que “esse

negócio de experimentar o corpo é uma coisa que o adulto não tem costume de

fazer, e a criança, não... Você vê a criança andando assim, depois assim...

depois de costas, depois rodando, rodando...”

Sobre o jogo “1,2,3 de Bradford”, tiveram a impressão de que a

concentração da dupla é importante para que o jogo aconteça.

O jogo das “Duas Revelações de Santa Tereza” foi considerado muito

divertido e alguns foram identificando que, nos três papéis, atuaram como o

suposto opressor, enquanto outros foram sempre os supostos oprimidos.

Contudo, no desenvolvimento do jogo perceberam que nem sempre o

empregado acatava o patrão ou o fiel obedecia ao seu mentor. As revelações

contribuíam para essa mudança de relação.

Sobre o exercício com os objetos que trouxeram de casa, Ana percebeu

que a função do objeto [colher de pau] que usou era muito repetitiva, causando

dor no seu cotovelo e no ombro. Márcia disse, ao escolher os óculos, que logo

pensou em pegar um livro para ler. Para Bete, que pegou uma Bíblia, foi muito

difícil o jogo: “Queira ou não a gente tem aquele respeito por aquele livro, sabe

o conteúdo daquele livro. Eu confesso que eu senti dificuldade em como

interagir com ele sendo outra coisa, porque eu sabia o que significava aquele

objeto universal”. Dessa forma afirmou ter sentido medo, inicialmente, mas

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depois conseguiu “entrar na brincadeira”.

Ernesto destacou que para fazer teatro bem feito é necessário romper

com algumas coisas: “Essas coisas que a sociedade monta em cima da gente

e se você não trabalhar legal isso dentro do teatro você não consegue fazer

cenas, às vezes, pra transmitir uma mensagem crítica”. Falou também sobre a

importância da dimensão da contradição humana para o movimento: “Se você

começa achar que não é permitida em momento nenhum essa contradição em

você, vai começar a trabalhar com valores absolutos, né? E aí não permite

você rever coisas que você tinha tão como verdade e, por causa de um

convívio com outra pessoa, aquela verdade deixou de ser tanta verdade”.

Em seguida o grupo foi direcionado para atividade com o Teatro-Jornal.

Diante das notícias que trouxeram, escolheram as que interessavam e,

divididos em dois subgrupos, criaram um esquete para apresentar ao grupo.

Após apresentarem as cenas, devido à proximidade do encerramento da

oficina, propus que déssemos continuidade ao trabalho na semana seguinte.

4.1.5 Síntese do quinto encontro (realizado em 24/04/11)

Após aquecimento, os dois subgrupos se reuniram para montar as cenas

criadas na semana anterior, desta vez com figurinos, adereços, revisão da

estrutura, ensaio e cenário.

Cena 1: Dois grupos de mulheres na praia conversam sobre corpo,

silicone, cirurgias estéticas, malhação e falam mal do corpo de outras

mulheres. Entra reportagem falando: “Boa tarde! A busca do ideal estético

atingiu tal exagero, que qualquer pneuzinho ou pé-de-galinha já é motivo para

a corrida, até mesmo irresponsável para a mesa de cirurgia. Existe marketing

violento. Os profissionais querem ganhar dinheiro rápido e fácil. O que a gente

vê hoje é um exagero muito grande, uma verdadeira loucura. São pessoas que

nem têm o que consertar, apelando para cirurgia, pois querem ficar com o

corpo maravilhoso, ou querem colocar peito, bunda, tudo bem mais fácil,

fazendo a cirurgia, do que malhar. Isso tem que ter um limite. Agora,

chamamos nossa repórter Camila que está no litoral paulista, para falar desse

assunto com os nossos telespectadores”.

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Camila (repórter): “Temos mulheres que fazem o impossível para se

sentir a musa do verão. Vamos entrevistar pessoas que fazem loucura pra se

sentir poderosas”. Mulher 1: Expõe silicone na bunda, que provoca

comentários, inclusive nas mulheres; Mulher 2: recheou os seios; marido diz

que gosta das mulheres que enchem a cama; Mulher 3: Tem medo e não tem

dinheiro, então malha na academia; Mulher 4: Diz ser perfeita, então faz dieta,

da água, da alface; Mulher 5: Opta por fórmulas medicamentosas; A opinião

dos homens, representada pelo vendedor ambulante de biquinis e de

protetores solares diz: “Acho maravilhoso, esse visual mexe com a gente. Você

se acaba. Eu valorizo onde tem o negócio de pegar...” A reportagem termina

orientando uma dieta balanceada, consciente, com auxílio de médicos e

atividades físicas.

Cena 2: Numa barraca de uma feira livre vendedores anunciam frutas.

Fregueses são exigentes na escolha dos produtos e funcionário reclama que o

dono não separou as frutas ruins para jogar fora. São saqueados por pessoas

maltrapilhas. Muda de cena. O cenário é alterado para o espaço de uma sala

de aula. Um professor dialoga com seus alunos do ensino médio sobre o

desperdício. Questiona o padrão mercadológico que joga muitas frutas fora pra

agradar a clientela, enquanto muitas pessoas passam fome. Ele problematiza

com os alunos que sugerem alternativas.

Na reflexão coletiva sobre a experiência, o grupo apontou ter percebido

algumas mudanças positivas nas cenas da semana anterior. Acharam que

estavam mais organizadas cenicamente e que o figurino e a caracterização

contribuiu com o desempenho dos atores e a apresentação como um todo.

Além das cenas estarem “mais amarradas” e “claras”.

Os participantes destacaram o fato de a Malu ter vestido um maiô para a

cena em que participou, e expor seu corpo sem nenhuma vergonha.

Com relação à técnica do teatro-jornal, Elisa narrou ter gostado e

achado “desafiador” e “intrigante” o fato de pegar uma reportagem, ler, se

aprimorar do conteúdo, debater com o grupo, criar em cima. Simone comentou

sobre a frustração inicial pela maioria escolher uma notícia que não era a de

preferência dela, ponderando que depois aceitou, já que se trata de

“democracia”. Cristina pontuou que para dar conta de uma história com

começo, meio e fim, conforme a orientação do exercício, foi preciso priorizar

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apenas uma notícia e focar nela.

Ernesto avaliou que esse tipo de trabalho é muito importante para a

escola, porque exercita a decisão e a construção coletiva. Para ele tratar

alguns temas por meio da “representação” pode ser “muito melhor do que você

ficar explicando o texto”, embora deva discuti-lo depois de apresentar.

Em seguida passamos para a etapa de escolha do tema para a cena do Teatro-

Fórum. Expliquei o conceito de opressão para Boal e como nasceu a técnica do

fórum, depois partimos para a atividade de escolha da cena.

Após apresentação das duas cenas escolhidas, Rosana compartilhou

que foi se “emocionando com a história de cada um” e Elisa destacou que

“observaram que muitas histórias de opressão começam dentro de casa, com a

própria família”. Pedi que trouxessem materiais para a montagem das duas

cenas que seriam desenvolvidas na semana seguinte e agradeci ao grupo por

compartilhar de sua intimidade. Retomei a importância do sigilo diante das

histórias de opressão compartilhada.

4.1.6 Síntese do sexto encontro (realizado em 04/05/11)

Após aquecimento os grupos se dividiram para elaboração das cenas

escolhidas na semana anterior. A primeira cena apresentou uma mulher de 30

anos, casada e mãe de duas filhas, de seis e doze anos. Ela é constantemente

maltratada por seu marido, que reclama de tudo, só se relaciona com as filhas

e se aproxima dela apenas para manter relações sexuais. A segunda cena

mostra uma família com mãe, pai, avó e filhos. O pai chega do trabalho e

desconsidera o cansaço da filha, que estuda e trabalha, obrigando-a a fazer

trabalhos noite adentro para ele, no computador, já que o mesmo não tem

conhecimento de tecnologia.

Durante a apresentação das cenas os expect-atores participaram das

técnicas de Ensaio, fazendo perguntas aos personagens e estimulando a

construção dos mesmos.

No diálogo reflexivo do encontro, Élida pontuou que conforme você vai

criando o personagem fica mais fácil interpretá-lo. Elisa comentou que, devido

à inexperiência deles no uso da corporeidade, acha que quando a fala é

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introduzida fica mais seguro e fácil de interpretar. Ernesto avaliou que ao

recorrerem à fala deixam o corpo de lado. Ana ponderou que “alguns

elementos necessários para o entendimento da cena às vezes não tem como

você expressar corporalmente”.

Ernesto relatou que as técnicas de ensaio tornavam o exercício mais

difícil, pois tinham que representar e responder ao mesmo tempo. No geral,

todos expressaram gostar das técnicas de ensaio e das contribuições delas

para a encenação.

Pontuei sobre a importância do corpo do opressor e do oprimido de

expressar essa relação de poder no Teatro-Fórum, de maneira que o espect-

ator perceba isso e sinta-se provocado a entrar em cena para experimentar

formas de romper a opressão.

Em seguida fizemos uma votação para a escolha da cena que seria

apresentada no Fórum, aberta à intervenção dos participantes. Inicialmente

houve empate e, depois de as pessoas argumentarem sobre suas opções, a

cena número um foi a escolhida.

4.1.7 Síntese do sétimo encontro (realizado em 11/05/11)

O espaço do Centro Comunitário sofreu alguma reforma e tivemos que

realizar esse último encontro na CEI. Foi necessário um bom tempo no início

para adequar o espaço físico para as atividades e, principalmente, para a cena

do Teatro-Fórum. Coletivamente, o grupo foi organizando o espaço cênico que

representaria a casa, cenário da cena. Não foi possível usar a trilha sonora,

pois o DVD, que seria usado para isso, queimou.

Retomamos a questão da opressão para Augusto Boal e partimos para o

último ensaio da cena. Antes da apresentação final, da sessão do Teatro-

Fórum, fizemos o aquecimento ideológico, onde o grupo leu alguns textos e

poesias referentes à violência doméstica e à Lei Maria da Penha.

Após a apresentação da cena e dos aplausos, exercendo a função do

curinga, perguntei se haviam concordado com o desfecho da cena e, tendo em

vista a resposta negativa de todos, os convidei para entrarem na cena e

mudarem o desfecho.

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Ao todo foram três intervenções, de Martha, Ana e Malu. Cada uma

tentou alternativas diferentes e trouxe questões para a reflexão do grupo.

Finalizadas as intervenções, com a proximidade do horário de

encerramento da oficina, alguns participantes fizeram uso da palavra. Ernesto

destacou que a postura menos submissa da Amélia interpretada por Ana

desequilibrou a postura do marido autoritário. “Acho legal até pra gente pensar

uma realidade. Quando a gente introduz um elemento novo dentro da situação,

né... Ele ficou desapontado quando ela sentou e não o chamou pra comer,

perdeu até o rebolado...”, afirmou. Joaquim, que fez o personagem do marido

opressor, respondeu “apesar de ser uma representação, quando ela foi pra

mesa eu fiquei assim: Pô, mas... Essa Amélia vai quebrar as minhas pernas

agora”.

Ernesto fez uma síntese de suas impressões referentes às intervenções

de Martha e de Malu. Para ele Martha trouxe alguns elementos novos para a

cena, que vinham desde demonstrar seus sonhos até ser mais atirada com o

corpo e de usar mais argumentos. A Malu teve o diálogo como foco principal e,

apesar disso não funcionar muito com aquele opressor, ele considera que se

trata de uma ferramenta importante para romper a opressão. Além disso,

ressaltou que as crianças da cena, quando sentiram a força da mãe na

intervenção de Ana, reagiram corporalmente diferentes.

Simone aproveitou para dizer que reparou que, durante a cena, a filha

mais nova começou a reproduzir a postura autoritária do pai com relação à

mãe. Por fim, concluímos o encontro falando sobre a funcionalidade do Teatro-

Fórum e a importância do curinga para o envolvimento dos espect-atores.

4.2 Sínteses das Entrevistas Reflexivas Coletivas

4.2.1 Síntese da primeira Entrevista Reflexiva Coletiva (realizada em

18/05/2011)

A Entrevista Reflexiva contou com a presença de catorze participantes

dos quinze que realizaram a Oficina de Teatro. Conforme planejado, iniciamos

a reflexão a partir da seguinte questão desencadeadora: “Como vocês

compreenderam a corporeidade ao longo dessa experiência de sete encontros,

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durante a Oficina de Teatro?”.

De maneira espontânea cada participante foi relatando suas ideias

livremente. O grupo já estava bem aquecido, integrado e alegre. Além disso, os

participantes levaram comidas para se confraternizarem antes e após o

encontro.

Elisa iniciou falando que a oficina havia sido importante enquanto

ferramenta de comunicação: “(...) porque, apesar da gente sempre dizer que a

gente fala com o corpo, fala com os olhares, é diferente quando você observa a

importância que tem isso na hora que você quer transmitir uma mensagem. Na

hora que a gente fica ali representando ou tentando transmitir uma

mensagem...”. “O personagem que eu vou interpretar, a corporeidade é

fundamental: como eu coloco o corpo, a expressão, o olhar”. “(...) fui

construindo isso, passei a: dar uma importância muito maior à postura do

corpo, à maneira de se colocar. (...) eu nunca me imaginei tendo presença de

palco, e olha que eu era uma pessoa que fazia questão de ficar no cantinho,

não quero sempre aparecer; mas é importante sim a gente saber se colocar,

articular mais a voz, (...) olhar no olho de quem você está falando pra entender

o que as pessoas estão compreendendo o que você quer passar. Se você está

dialogando com o outro com o olhar, o corpo é fundamental”.

Bete discorreu sobre como transpôs a experiência para a sala de aula.

Para ela, embora trabalhe com educação infantil e a oficina tenha sido para

adultos, reconheceu atividades que já realizava com seus educandos e nem

sabia que trabalhavam determinadas questões. Disse que após a oficina

sentiu-se mais motivada em desenvolver as atividades com as crianças: “Tudo

o que a gente fazia aqui eu testava durante a semana com eles lá. Então eu vi

que dá pra fazer (...) basta a gente estar aberto pra aprender e depois também

pra tá ensinando.” Segundo ela, as atividades permitiram trabalhar melhor sua

voz e fazer caretas, recursos que percebeu chamarem a atenção de seus

alunos. “Até na minha maneira de contar história, eu estou procurando ler bem

a história antes pra dramatizar melhor. Não quero ficar mais presa no livro.

Mostro a figura sim, mas se eu puder fazer gesto com eles...”. “Tinha coisas

que eu não conseguia fazer porque eu tinha vergonha, independente se é com

criança ou com adulto, hoje em dia eu já consegui quebrar essa barreira”.

Ernesto falou sobre a timidez, para ele, bem presente nos encontros e

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que foi um obstáculo para que as pessoas aproveitassem mais, embora avalie

que houve avanços. Considera que a timidez é consequência da repressão do

corpo e se dá pelo “acúmulo cultural” da família, comunidade e escola. Para ele

o corpo pode “falar num novo referencial”, mostrando um sujeito que pode agir

e ser transformador, sem esquecer que quando age está “levando valores

diversos (...), culturais.” Nesse sentido, Joaquim concordou que a repressão é

algo que as pessoas vão construindo durante anos e que cada um “carrega

isso que colocaram em você desde criança”, muitas vezes sem consciência e

que a oficina possibilitou entender sobre isso na interação com outras pessoas.

Refletiu que o curso é interessante para educadores como ele, pois estão muito

expostos na sala de aula, diante de quase quarenta alunos e, “por mais que

não pareça, eles (os alunos) estão te olhando, eles estão te percebendo”. No

entanto, com a oportunidade da reflexão, é possível buscar um contato mais

direto com o aluno, olhá-lo no olho, se colocar com “uma postura menos

autoritária e mais flexível”. Coisas que no cotidiano, sem tempo para refletir, por

estar “no automático”, fica mais difícil. Dessa maneira, avalia que muitas das

situações trabalhadas na oficina relacionadas aos “conflitos do dia-a-dia”, foram

fundamentais para o trabalho de professor.

O que mais chamou a atenção de Malu foi o quanto seu corpo estava

“travado”. Relacionou isso com a sua falta de prática com atividades físicas nos

últimos tempos e ficou incomodada ao sentir dores após “uma coisa até boba,

de alongar”. Isso a fez refletir sobre o quanto que a voz e a fala são usadas na

sala de aula “e o corpo tá lá né, totalmente congelado, duro”. Disse ainda que

costumava ir ao teatro, mas “não se preocupava tanto em perceber o corpo das

pessoas” e com o curso “entrou outro olhar”, “coisas que eu não observava eu

vou passar a observar”. Assim como Ernesto, exprimiu seu desejo pela

continuidade do trabalho, dizendo que, quando começaram experimentar,

“simplesmente acabou”.

Questionada por mim sobre o que seria esse experimentar ao qual se

referia, Malu disse que era inclusive “o tocar o outro”. Segundo ela as pessoas

tocam comumente “seu irmão, sua mãe, seu marido, sua filha, outra mulher” e,

mesmo durante as atividades propostas, a tendência era procurar pessoas

mais próximas para realizar os exercícios juntas. No entanto, durante o

desenvolvimento da oficina, em algum momento decidiu “procurar alguém

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diferente”. Situação que acha difícil, por preconceitos e bloqueios de cada um.

Sendo assim, achou interessante “o experimentar tocar uma pessoa que você

teve um primeiro contato naquele dia”. Concluiu dizendo que para ela a

representação foi pouco experimentada.

Ernesto pediu a fala novamente e pontuou que para ele o fato do grupo

ter sido formado por “livre adesão”, sem ser “obrigado a fazer”, facilitou a

“dedicação dos participantes nos exercícios” e o toque entre estranhos, fluindo

com muita facilidade. Com referência a alguns autores, afirmou que “a

aprendizagem ocorre quando você quer aprender”. “Mais do que para

aprender, é querer aprender.”

Rosana compartilhou que, conforme já havia dito ao grupo, não gostava

de tocar. Contudo, na experiência com a massagem, seu parceiro foi muito

delicado ao perguntar para ela se estaria tudo bem tocá-la, e ela, ao permiti-lo,

“quebrou uma barreira”. Após essa atividade, ela conseguiu propor um

relaxamento para o grupo de adolescentes que trabalha no CCA, e fez em si

mesma “pra mostrar pra eles”. Além disso, também se viu numa situação, em

sua casa, pedindo para seu sobrinho massagear seu pé. Então quebrou suas

próprias barreiras e constatou que a dificuldade “não era nem tocar nas outras

pessoas”, mas em si mesma.

Elisa relatou que a vivência com a oficina a fez refletir sobre a sua

experiência na escola, quando propôs que seus alunos apresentassem um

tango. Percebeu que, diferentemente da oficina, onde o representar aconteceu

somente depois de praticarem alguns exercícios, “na escola não dá nem tempo

de desenvolver uma técnica”; pois estão sempre com pressa, distribuem o

roteiro, dão o texto, e já esperam que eles venham prontos. Para ela “você tem

que construir a personagem”, e no tango deveriam ter passado por essa etapa.

Diz: “Hoje, eu já faria isso de uma maneira completamente diferente. Antes de

distribuir roteiros, de distribuir os papéis, a gente ia vivenciar um pouco dessas

técnicas, experimentar o lidar com o corpo, soltar a voz e depois construir com

as crianças. Eu acho assim, a gente que pensa muito o teatro na escola, tem

que pensar nisso também.” Citou ainda uma experiência pessoal, enquanto

professora de história, com a temática da escravidão. Diante das dificuldades

dos alunos de refletirem sobre o mandingueiro, na capoeira, sugeriu que eles

arrastassem as cadeiras e jogassem capoeira. Então, percebeu que o grupo

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que experimentou foi o que melhor explicou o que era a mandinga e a ginga na

avaliação. Concluiu então, que a experiência com a corporeidade era

fundamental para a educação.

Malu narrou que compartilhava as atividades da oficina com sua filha,

estudante do ensino médio, todas as semanas, e que a mesma chegou a pedir

para ela contribuir com o grupo de teatro do qual participa na escola.

Entretanto, ela diz que não gostaria de dirigi-los, mas sim “compartilhar” com o

grupo os exercícios que fizeram na oficina, “que é a questão do corpo! (...)

como lidar com isso (...) como se soltar. E assim, tirar essa questão do

bloqueio”, pois considera que, durante o desenvolvimento da oficina, superou

sua timidez. Provocada pelos participantes pelo fato de ter colocado maiô

durante uma cena, Malu disse que, embora não tenha um corpo “de modelo,

nem escultural”, já com quarenta e cinco anos, não tem vergonha de seu corpo,

e atribui isso a sua formação familiar. Entre os pais e irmãos nunca se

“esconderam uns dos outros” e por isso acredita que é “resolvida sexualmente”

num casamento de vinte anos (Nesse momento houve muitas manifestações

de risadas no grupo).

Célia pediu a fala, pois, ao contrário de Malu, afirmou ter um tabu com a

questão do toque. Expôs que, mesmo nas atividades de teatro que desenvolve

no CCA, percebe que tem um pouco de opressão. Que durante as dinâmicas

usava muito a fala, pela dificuldade de expor seu corpo e de tocar. Embora

ache natural, se pega com questões “da cultura, da família”. No entanto, depois

que passou a frequentar o grupo, avalia que atualmente se entrega mais

quando vai aplicar uma dinâmica. “Então essa aceitação de você mesma

aceitar o seu corpo, você falar, gesticular, colocar o grupo pra fazer uma

dinâmica aonde você tá presente com o corpo, com a fala, com o corpo, você

tem um resultado muito melhor.” Citou o exemplo de uma dinâmica que

realizou com os alunos, do rótulo e do patinho feio, que tinha que beijar e

abraçar. Para ela o fato de ter trabalhado isso em si mesma fez com que

alcançasse seu objetivo na atividade com os alunos. “A partir do momento que

eu comecei a só não falar, mas a participar junto com eles, o próprio grupo, „Ah,

olha a professora tá fazendo isso‟, então eles fazem também”.

Martha relatou que antigamente não tinha dificuldades, enquanto

educadora, “de rolar no chão, brincar, de ter esse contato com as crianças”.

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Todavia, depois de passar por alguns problemas, se fechou e, com a oficina,

pode resgatar isso. Aponta que, quando se tornou coordenadora, pelo fato de

trabalhar muito com papel, falar muito e se expressar muito pouco com o corpo,

ficou bloqueada. Embora sempre valorizasse a questão do trabalho com o

corpo nas crianças, nunca pensou nisso com relação ao próprio corpo.

Portanto, foi importante participar da oficina e resgatar a questão do trabalho

com o corpo, não só da criança, do “olhar no olho”, “ficar na altura dela”, que é

algo que sempre fez, mas também do adulto. Considera que está no

“automático”, em consequência da correria, e muitas vezes nem escuta direito

o que as pessoas lhe dizem e depois pensa: “Nossa! Fulano falou alguma coisa

pra mim só que eu não...”. Então acha importante parar, ouvir, olhar no olho da

pessoa e às vezes até mesmo parar e observá-la, como a pessoa se mexe, se

locomove, enfim, se expressa. E que, apesar de ainda estar no “automático”, o

que lhe faz mal, a oficina tem contribuído bastante.

Martha enfatizou que, quando se trabalha com a criança, a questão da

corporeidade é diferente da de quando se trabalha com adulto. Principalmente

quando é homem e mulher. Assim como é diferente quando não se conhece

uma pessoa de quando se tem um laço a mais com ela.

Márcia discorreu sobre sua dificuldade em se soltar, o que atribui, em

parte, aos seus limites físicos, que geraram medo de se machucar em algumas

atividades. Embora quando questionada sobre sentir-se travada em todos os

momentos, respondeu que não, que em algumas situações se soltou mais,

como nas duas cenas que realizou, da praia e da Amélia, e no jogo das “Duas

Revelações de Santa Tereza”.

Questionando Marcia e o grupo sobre os possíveis motivos de ela ter se

sentido mais solta em determinados momentos, surgiram várias opiniões para

justificar a situação. Élida sugeriu que as situações que Márcia citou sentir-se

mais solta envolviam personagens, o que para ela facilitava a exposição.

Márcia disse que improvisar era bem mais fácil do que chegar lá na hora e

falar, que era melhor quando imaginava uma cena na sua cabeça, como se

fosse um filme. E que gostava mais de dirigir. Célia lembrou que, na cena da

praia, Márcia havia trazido a ideia e montado o esqueleto, e os demais

executado e feito alguns enxertos, contudo a ideia era dela – o que, segundo

ela, pode ter contribuído para sentir-se mais solta, por talvez estar mais

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preparada. Elisa concordou com Célia.

Élida contou sobre a dificuldade em usar o corpo. Para ela foi muito

difícil o momento em que tinham de usar somente o corpo, sem a fala. Porém,

mesmo com muita dificuldade, afirma que conseguiram. Narrou também que

percebeu que, quando se faz uso da fala, se usa menos o corpo. Pois, no caso

da cena muda que fizeram da Amélia, “conseguiram demonstrara tudo com o

corpo”.

Ana compartilhou que fala muito com o corpo, “que na quadra fala com a

perna, com tudo”, pois se grita, às vezes o aluno está do outro lado e não lhe

escuta, e às vezes fazendo um gesto, o aluno entende. Para ela o processo

ajudou a ter um novo olhar para o seu corpo, que avalia ter deixado de lado no

cotidiano. Afirmou que, apesar de ser professora de educação física, desde que

entrou na prefeitura parou com todas as suas práticas corporais. E no curso

voltou a sentir vontade de retomar tais práticas. “Tanto que amanhã eu já tenho

agendado uma aula de pilates por conta do curso”, afirmou. Constatou que, ao

mesmo tempo em que estava lidando com o corpo, a todo o momento,

percebendo como os alunos se relacionam com o corpo, deixava a relação

como o próprio corpo de lado, por causa da profissão. Assim, o curso contribuiu

para que ela voltasse a perceber sua noção de corpo, que havia perdido por

causa das ações cotidianas. Outra questão referente à oficina, principalmente

com relação à última parte do Oprimido, foi de que parou para pensar nas

relações de opressão, como estar ou não sendo opressora com seus alunos.

Atitudes simples que, na correria da troca de sala, a cada 45 minutos, acabam

passando e poderiam ser de outro jeito. Isso também foi importante para refletir

sua relação em casa, com a mãe e com o namorado.

Quando questionada sobre por que achava importante realizar

atividades, Ana respondeu que sempre que praticava atividade física tinha uma

“sensação de bem-estar” muito melhor. Que às vezes você não sabe por que

está ansiosa, irritada, e é pela falta da atividade física, de colocar o corpo em

ação.

Ana afirmou que a corporeidade esteve presente em todo momento da

oficina, pois estavam sempre refletindo não só no movimento, mas na ação que

gerava o movimento. A corporeidade envolve não só o movimento em si, mas o

que leva a fazer esse movimento: a intenção, o gesto, tudo o que está

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envolvido. Para ela em todos os exercícios tinha uma intencionalidade, “a gente

não estava fazendo um movimento ou um exercício pelo exercício, tinha um

objetivo final para aquilo”, assegurou. Isso fez com tivessem a noção do próprio

espaço. E, no caso dela, trouxe sensações e percepções de seu próprio corpo,

que estavam perdidas no caminho das escolas.

Simone disse que, embora tenha se identificado com um pouquinho da

fala de cada um, iria falar do final, da peça da Amélia. Revelou que foi ela quem

trouxe a história e que no princípio teve dúvidas em expor sua história, por se

tratar de algo muito pessoal, mas como era algo que vivia e a fazia sentir mal,

oprimida por seu marido, conseguiu contar, confiar. Para ela, quando parou

para pensar, foi um diferencial em sua vida, em seu relacionamento, quando a

coordenadora questionou assim: “Quem gostaria de ir lá? Quem quer ir lá

mudar a história? Quem quer fazer diferente?”. Neste momento “caiu sua ficha”

e ficou observando cada uma das “Amélias”. Para ela foi como levar um “tapão”

quando uma das “Amélias” “fez todo diferencial”, “como ela conseguiu conduzir

aquele relacionamento, aquele casamento de uma forma assim, como todos

nós, como cada um de nós temos esse poder de fazer isso e não sabemos. E

às vezes usar o corpo, a fala, a expressão, como fizemos desde o início, como

isso é importante, é fundamental pra você mudar sua própria história! Finalizou

dizendo que já havia mudado a sua história (risadas).

Neste momento algumas pessoas ficaram surpreendidas em saber que

a história da Amélia, encenada no Teatro-Fórum, havia sido compartilhada pela

Simone. Malu disse que, embora nunca imaginasse que a história encenada

era da Simone, só agora havia entendido o porquê a atuação tinha sido tão

boa. Para ela nenhuma outra participante faria tão bem o papel da Amélia, por

se tratar de uma história real. Outras pessoas concordaram e Célia disse ter

inclusive se incomodado com a atuação dela.

Simone disse que chegou a sentir a emoção de verdade e em certo

momento sentiu pena de si mesma, e foi ruim. “Eu senti, sabe, você viver

aquilo de novo, aquela emoção que alguém te magoa e você sentir aquilo de

outra forma. E aí você dá oportunidade do outro ir lá mudar a história e por que

não você?”, afirmou.

Para Bete a cena da Amélia foi um momento de reflexão para vida de

todos. Ela acredita que todo mundo teve seu momento ali, em alguma cena,

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em algum ato, cada um se viu. Em todas as etapas do curso, todo dia do curso.

Houve momentos, tanto de fala, quanto de gesto, que ela passou por situações

em sua vida também. “Então, eu vi que eu venci aquele tabu, aquele jeito de

falar, de conversar. Por quê? Quando você reprime muito, lá na frente vai fazer

mal até pra sua saúde. E nós educadores, entre aspas, que trabalhamos na

área da educação, muitos nos veem como super-heróis, mas nós somos seres

humanos também”, falou. Continuou dizendo que era preciso aprender a tirar a

repressão de dentro de si para não sofrer futuramente. “A gente já sofre hoje e

muitas vezes não entende o porquê de muita coisa”. Para ela não basta querer

transformar só o próximo, mas é preciso transformar-se. Fez referência ao

primeiro dia do curso no qual, embora estivesse com uma roupa não adequada

e seu parceiro lhe dissesse que iria “acabar com ela”, conseguiu atingir o seu

objetivo. “Foram muitas barreiras vencidas logo no primeiro encontro. E eu

falei: Puxa, consegui. Teve aquele impacto, depois não.” Ernesto (seu parceiro

no jogo) disse que a intenção era provocá-la.

Joaquim relatou ter achado interessante a atuação da Simone, muito

passiva, diferente do que ele estava acostumado, pois sua mulher funcionava a

360 graus, e ele era o devagar da casa. Assim, afirmou que “fazer isso daqui é

completamente o avesso do que eu vivo, entendeu? Eu sou o oprimido,

digamos assim...”.

Neste momento ocorreram diversas piadas sobre Joaquim ser o

opressor ou o oprimido e ele se justificou dizendo que em sua casa era ele o

“Amélio”.

Rose disse ter se interessado pela oficina quando viu no folheto que se

baseava em Boal. Ela já havia lido muitas coisas sobre ele, mas achou difícil na

teoria, sentiu dificuldades de interpretar aquilo e levar para as crianças. E então

pensou em ver aquilo na prática. Nesse sentido, a oficina lhe trouxe outra visão

daquilo que tinha lido, sendo muito gratificante. “Pra mim foi uma oportunidade

de vivenciar na prática. De visualizar aquilo que dá certo, entendeu? Porque

você fica insegura com ele. Eu vou por isso em prática e se não dá certo?

Sabe, você fica, né! E você pondo na prática, igual aqui é, esclareceu um

monte de coisa. Umas dúvidas grandes que eu tinha. Então pra mim valeu a

pena e que pena que não pode mais continuar (risadas). Eu queria ver outras

coisas...”

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Cristina disse que também era da área das artes e havia ficado muito

tempo sem a parte de teatro, trabalhando mais com artes plásticas. Para ela foi

importante conhecer os jogos e gostaria que a oficina continuasse.

Compartilhou que se expressa muito através do olhar, que percebeu que às

vezes é opressor, e avaliou ser importante poder parar e pensar sobre sua

expressão.

Após essa fala todos ficaram em silêncio e, percebendo que Ernesto

esteve escrevendo alguma coisa durante a fala de cada um, pediram que ele

lesse.

Ernesto leu o seguinte texto: “Corporeidade. Eu e o corpo. O corpo e o

tabu. O tabu e a rigidez. Corpo, tabu, rigidez. Corpo e cultura: corporeidade. A

sociedade dá o tom: tem família, instituições, movimentos, valores. Desejo vivo.

Desejo morte. Toca o corpo, descarta outros. Descarta vida, descarta viva.

Rigidez morre na luz. Luz apagada cultiva tabu. Tabu gera rigidez da alma.

Alma precisa conhecer, falar, valorar. Na rigidez limita, perde sonhos. Não

semeia cultura, o corpo fica cinza. A rua escura, o ato proibido. Amarga. Corpo

vazio, gente sem tinta. Sociedade opressão. Não para nós. Nós, corpos.

Corporeidade em relações. Tambores, desejos, outros quereres. Letras,

buscas, estarmos juntos. Sinais, labirintos, conhecimentos. Arte, descobertas,

equilíbrio. Línguas, partilhas, valores. Olhares, gentes, múltiplos. Espaços,

ritmos, percepções. Voz, representações, transformações. Identidades.

Diferentes „eus‟. Eu e o corpo. Corporeidade e o fazer libertário na certeza do

humanizar”.

Após as palmas, Ernesto disse que apenas resumiu o que todos falaram.

Encaminhando a discussão para o final da entrevista, perguntei ao grupo

se gostariam de comentar sobre o texto ou qualquer outra coisa referente à

experiência com a corporeidade.

Ernesto questionou o grupo sobre o que estavam produzindo juntos,

enquanto se relacionavam. Em resposta a ele os participantes disseram:

conhecimento; dinâmica; criando vínculo; cultura; identidade; história. Então,

Ernesto pontuou que para ele todos estavam fazendo “uma partezinha da

história” ali. E esse “momento de viver junto é produzir a corporeidade”,

afirmou. Prossegui dizendo que para ele o grupo mostrou que, ao mesmo

tempo em que tem uma história, abafada, oprimida, tem uma capacidade de

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“virar a mesa”. Continuou:

“E aí a corporeidade é esse movimento. De ir trazendo a sua cultura,

essa capacidade de expressar, seja corporal, seja na voz, sabe? Mas

expressar de uma maneira muito clara, muito alegre, muito grande para essa

produção humana assim. Então eu vejo esse movimento. Então assim, quando

eu falo, a gente fez cultura aqui, a gente fez história, nós trocamos

conhecimentos, a gente se espelha no outro, reflete no outro. Quem se permitiu

mais, levou mais, aproveitou mais conhecimento do grupo, acumulou mais.

Isso para mim é corporeidade. Quando ela fala isso: „Esse cuidado que eu

estou quando eu falo com o meu aluno‟, „O meu olhar‟. Eu acho que esse

exercício pra mim é a expressão mais forte desse fazer, assim, concreto do

conceito”.

Depois disso, finalizamos a Entrevista com abraços e demonstrações de

afeto.

4.2.2 Síntese da segunda Entrevista Reflexiva Coletiva Devolutiva

(realizada em 09/02/2012)

O Encontro foi realizado no mesmo espaço da Associação Cardume

onde foram desenvolvidas as Oficinas de Teatro, e contou com a presença de

oito dos catorze participantes da intervenção. Embora tentássemos adequar

uma data que contemplasse todos, isso não foi possível devido à diversidade

de compromissos e à agenda do grupo. Todas as ausências foram justificadas.

Os anfitriões prepararam um café para recepcionar o coletivo, e cada

participante levou um prato ou bebida para colaborar, conforme combinado via

e-mail.

Iniciei o diálogo expondo que o objetivo do encontro era revisar e

acrescentar ideias e conceitos à compreensão dos participantes reveladas na

primeira entrevista, buscando garantir a fidedignidade do que eles

verdadeiramente pensavam sobre o assunto.

Em seguida apresentei ao grupo as constelações que havia organizado,

a partir dos conteúdos coletados na primeira entrevista, com foco na questão

de como tinha sido a experiência da corporeidade para eles, na Oficina de

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Teatro do Oprimido. Fomos lendo e dialogando sobre cada uma das seguintes

constelações pré-analisadas: 1) Corpo como meio de comunicação; 2)

Mecanização dos sentidos/Alienação; 3) contribuições das atividades

desenvolvidas na oficina para a prática profissional; 4) corpo como construção

cultural (tabus, gênero, sexualidade etc); 5) ação transformadora pelo corpo; 6)

o processo de ensino-aprendizado é diferente para cada um; 7) superação da

timidez; 8) percepção do próprio corpo; 9) relação com o corpo do outro; 10)

pouco tempo para a experiência; 11) autossuperação na oficina; 12) relação de

grupo;13) compreensão sobre opressor/oprimido; 14) intencionalidade da ação.

A partir da exposição dialogada, o grupo pontuou algumas questões que

geraram acréscimos e alterações ao conteúdo apresentado. Com relação à

constelação referente às “Contribuições das atividades desenvolvidas na

oficina para a prática profissional”, Ernesto relatou que percebia que, quando

os professores encaminham algum estudante para a sala da diretoria, os

mesmos já chegam nesse espaço com a expressão apavorada. Sendo assim,

passou por uma experiência recente onde, ao invés de receber o aluno na

cadeira localizada de frente para a mesa de gestor, optou por sentar-se lado a

lado com ele, e essa atitude desencadeou outro tipo de relação, menos

autoritária e mais dialógica.

Referente à constelação denominada de “Superação da Timidez”, o

grupo problematizou se a ruptura da timidez não seria uma etapa da “Ação

transformadora pelo corpo”. Concluímos que, embora essa superação não seja

um pré-requisito para a ação transformadora, ela realmente faz parte desse

processo de transformação.

Dialogando sobre a recorrente manifestação do grupo pelo “pouco

tempo para a experiência da oficina”, apontaram que isso exprimia o desejo

/deles em continuar a desenvolver o trabalho com a corporeidade, pois esse

conceito havia se tornado muito especial para eles, conforme afirmou Ernesto,

tendo a concordância dos demais participantes. Elisa compartilhou que havia

assistido recentemente a um filme onde a questão da corporeidade era um

aspecto muito especial a ser observado. Para ela o fato de realizar a oficina fez

toda a diferença em sua percepção sobre o filme. Disse ainda que o desejo de

continuidade da oficina também se relaciona com a intenção de experimentar

aspectos da oficina em seu trabalho pedagógico e poder contar com um

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retorno no espaço de formação.

Quase na conclusão do encontro, Élida questionou que sentiu falta das

pessoas falarem sobre a dimensão do sentir. Para ela todos experimentaram

muito a questão do sentir durante as atividades das oficinas, mas não

verbalizaram sobre essa experiência. Todos concordaram que sentiram, mas

não souberam definir o porquê de não mencionarem isso, apesar de

considerarem uma questão importante.

Mais uma vez abordaram o desejo de dar prosseguimento à experiência

e combinaram de tentar se encontrar para viabilizar isso.

4.3 Constelações

Apresentaremos aqui o conjunto das constelações agrupadas pela

pesquisadora, a partir da sua compreensão de conteúdos explicitados nas

Entrevistas Reflexivas. Para cada uma das constelações, fizemos uma síntese

com unidades de significação desveladas nos depoimentos.

1) CORPO COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO: Nesta constelação estão

reunidas falas que demonstram a compreensão do corpo como

possibilidade de expressão.

“Acho que como uma ferramenta essencial na comunicação.”

“Apesar da gente sempre dizer que a gente fala com o corpo, fala

com os olhares, é diferente quando você observa a importância que

tem isso na hora que você quer transmitir uma mensagem”.

“A corporeidade é fundamental: como eu coloco o corpo, a

expressão, o olhar.”

“Olhar no olho de quem você está falando pra entender o que as

pessoas estão compreendendo do que você quer passar. Se você

está dialogando com o outro com o olhar, o corpo é fundamental.”

“E uma coisa assim: eu era muito bloqueada, então o teatro, ia mais

pra olhar, de repente ouvir, e não me preocupava tanto em perceber

o corpo das pessoas. Eu acho que aí entrou outro olhar. Desde que

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eu comecei o curso aqui eu ainda não fui ao teatro, mas, com

certeza, como espectadora, quando eu entrar de novo vai ser

diferente. Coisas que eu não observava eu vou passar a observar.”

“Quando a gente teve que usar só o corpo e não podia usar a fala,

senti muita dificuldade de, às vezes, ter de expressar alguma coisa e

não ter condições. “- Como que eu vou falar isso com o corpo? Com

o rosto?” E a gente conseguiu, né. A gente acabou conseguindo,

mas...”

“Eu na quadra falo com a perna, com tudo, porque se eu gritar, às

vezes, o aluno está do outro lado e não vai me ouvir e, às vezes, eu

de lá, fazendo um gesto o aluno entende. Ou eu olhando pra ele de

longe, ele já entende e sabe o que ele tem que fazer ou o que ele

não tem que fazer. Isso também ajuda.”

“Esse expressar-se. Expressar com o corpo.”

Síntese da constelação: Corpo que comunica; expressa; consciência dessa

capacidade expressiva do corpo; novos significados na percepção dos corpos;

capacidade de expressar-se com o corpo.

2) MECANIZAÇÃO DO CORPO NO COTIDIANO: Nesta categoria

reunimos falas que se referem a ações repetitivas e irrefletidas do

cotidiano do educador, que, inserido num mundo burocratizado, prioriza

o uso da linguagem verbal.

“Por exemplo, a forma como você se põe diante dos alunos. Ou você se

põe de uma forma autoritária ou de uma forma um pouco mais flexível,

né. Muitas vezes você tá no automático e você não percebe isso.”

“Porque a gente trabalha muito com papel, fala muito, se expressa muito

pouco com o corpo sabe. Não tem muito esse tempo pra fazer isso. E às

vezes também, ou quando faz, até mesmo quando eu trabalhava como

educadora mesmo fazia, mas não tinha muita noção, não valorizava

muito essa questão de trabalhar com o corpo, de se expressar com o

corpo. Valorizava às vezes na criança, mas não em mim mesma”.

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“Até hoje mesmo, conversando hoje com a colega, a gente estava

falando que a gente tá numa correria tão grande aqui, que a gente tá no

automático. Muitas vezes, ela fala comigo ou qualquer pessoa fala

comigo: “- Olha, eu preciso disso” e eu “- Ah, tá bom, tá bom,”. Eu nem...

eu ouvi o que a pessoa falou, mas eu não gravei aquilo. Aí depois: “-

Nossa! Fulano falou alguma coisa pra mim só que eu não...”. Né, então

parar, ouvir, olhar no olho da pessoa. Às vezes até mesmo parar e

observar a pessoa, como a pessoa se mexe, se locomove, enfim, se

expressa, né, com o corpo, e eu acho muito importante isso. Pra mim foi

muito enriquecedor, me ajudou bastante nessa questão. Eu ainda estou

nesse automático né, que está me fazendo bastante mal, mas reduziu

bastante”.

“A fala é automática”.

“E percebe-se que, quando você usa a fala, você usa menos o corpo. A

gente se mexeu muito mais (risada) daquela vez que a gente fez o papel

lá do caso da Amélia. A gente usou só o corpo, sem a fala. Nossa, o

quanto a gente se mexeu! Tudo, demonstrar tudo. Queria jogar vídeo-

game, a gente queria jogar vídeo-game, a gente ia lá... E depois, quando

tinha a fala já não usava tanto né, já não gesticulava tanto, era muito

menos”.

“Mas como a gente já está habituado com a fala, quando a gente atribui

à fala, você tira o corpo de lado. “- Vou usar mais a fala, a voz.” Até na

sala de aula a gente faz isso né, usa bem mais a voz”.

“O que me ajudou, no meu caso, que trabalho o dia inteiro com o corpo,

é de ter um novo olhar pro meu corpo novamente. Porque eu tinha

parado de pensar nele. Eu, professora de educação física, desde

quando eu entrei na prefeitura eu parei com todas as minhas práticas

corporais, todas. E no curso voltou essa minha necessidade, essa minha

vontade de estar voltando pra essas práticas que eu tinha deixado. Tanto

que amanhã eu já tenho agendado uma aula de pilates por conta do

curso. Que eu sentia essa falta, como estão fazendo falta pra mim essas

práticas todas. Eu estou a todo o momento lidando com o corpo,

percebendo como os alunos se relacionam com o corpo, e eu mesma

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estava deixando a minha relação como o meu corpo assim, de lado, por

causa da profissão mesmo”.

“Então, nesse curso pra mim, o que mais saiu foi essa questão de eu

voltar a perceber essa minha noção de corpo, que eu tinha perdido por

causa das minhas ações cotidianas, muito, perdi bastante, porque eu

não estava fazendo mais nada; e principalmente, na última parte do

Oprimido, o que eu parei pra pensar, por exemplo, nas relações.”

Acho que seria realmente muito legal pra gente que trabalha com

educação ver essas fotos com calma, por causa dessa coisa que você

falou da simbologia do corpo. Ninguém ficou debaixo e falou: „Eu sou o

patrão, viu, filho da puta‟... Ficou por cima, né? „Eu sou polícia‟... Porque

isso tem um debate grande das escolas, o jeito que a gente trata as

crianças. Se você trata com esse corpão enorme, e uns mais enorme

ainda, de cima pra baixo, não precisa nem falar muito, né?

Síntese da constelação: Consciência da postura corporal no trabalho;

autovalorização da sua expressão corporal; automatização da percepção;

automatização da comunicação; sobreposição da expressão verbal sobre a

corporal; contradição entre o que se propõe para os educandos e a

prática/ação pessoal; percepção da negação do corpo nas ações cotidianas.

3) CONTRIBUIÇÕES DA CORPOREIDADE PARA A PRÁTICA

PROFISSIONAL: Nesta constelação reunimos falas sobre a contribuição

das atividades que envolveram o corpo para a prática profissional.

“Pra mim foi uma coisa muito rica porque houve momento em que eu me

via dentro da sala de aula com as minhas crianças. Embora seja

educação infantil, tudo, mas teve atividades que eu dava e nem sabia

que faziam parte de tudo isso. Então eu vi, „-Nossa, eu já fiz isso‟... Hoje

eu sei o que é”.

“Era uma coisa que eu aprendi lá no passado, vi que pra eles servia,

fazia com eles e hoje eu trabalhei assim, de outra maneira”.

“Então o que ficou desse aprendizado pra gente? Hoje, eu já faria isso

de uma maneira completamente diferente. Antes de distribuir roteiros, de

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distribuir os papéis, a gente ia vivenciar um pouco dessas técnicas,

experimentar o lidar com o corpo, soltar a voz e depois construir com as

crianças. Eu acho assim, a gente que pensa muito o teatro na escola,

tem que pensar nisso também. Não dá pra você chegar, querer aquela

coisa rapidinha, maluca que é a escola”.

“Pra nós, acho, como educadores, quando você entra na sala de aula;

esse curso eu acho interessante porque a gente entra na sala de aula e

toda hora a gente está na frente de trinta, trinta e cinco, dependendo do

lugar quarenta pessoas, né? São alunos aí. Por mais que não pareça

eles estão te olhando, eles estão te percebendo, né? Então eles estão

ali, vendo o que você faz, se você está com uma espinha na testa, eles

estão te observando e é bom pra você. Se você está com olho roxo

(risadas)... Então quando você entra na sala de aula, se você olhar

direto no olho do aluno, você ter esse contato com ele, então, se ele

está fazendo alguma coisa de errado e você vai e olha direto nele e fala:

„- Olha, não é assim‟, é outra história. Ele começa a te ver de outra

forma”.

“E depois que eu comecei a frequentar aqui, o grupo, eu vou aplicar uma

dinâmica hoje, eu me entrego mais. Então essa aceitação de você

mesma aceitar o seu corpo, você falar, gesticular, colocar o grupo pra

fazer uma dinâmica onde você tá presente com o corpo, com a fala, com

o corpo, você tem um resultado muito melhor”.

“Eu nunca tive dificuldade assim, anteriormente, em sala de aula

mesmo, como educadora, de rolar no chão, brincar, de ter assim esse

contato com a criança e tal. Mas aí, depois de certo tempo, eu acho que,

por alguns problemas pessoais também que eu vivenciei e tal, eu

também me fechei muito. E participar dessa oficina foi muito gostoso

porque também me trouxe de volta, eu resgatei essas coisas que, vamos

dizer, essas barreiras que eu não tinha anteriormente e que eu passei a

ter”.

“Por exemplo, essa semana eu fiz duas dinâmicas do rótulo e do patinho

feio. Então, estava o rótulo, estava „beije-me‟, „abrace-me‟. O que tinha

escrito você tinha que fazer com aquela pessoa. E, se eu não tivesse

trabalhado isso comigo, eu não teria conseguido o objetivo que eu

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consegui ontem e hoje com eles. Porque o próprio grupo tem: „- ai, eu

não vou beijar ninguém, não!‟, „- não vou abraçar‟, „- ai não, sai fora!‟ E

eu falei: „- Mas por quê?‟ Por que não tocar o outro, por que não sentir?”.

“Todo dia você tá lá. Você já vem de casa muitas vezes e já pensa „-Pô‟,

você já vem com aquele preconceito, com aquela coisa formada „-Pô,

essa sala é terrível, eu vou ter que lidar com eles!‟ E aquilo vai criando

em você uma rejeição que você, quando chega, parece aquela piada do

macaco, né. Então você já vai chegando à sala e antes que alguém fale

alguma coisa você já tá armado, você já tá... O moleque fez alguma

coisa, você já quer jogar ele pela janela. Então, assim, você começa

refletir um pouco mais: „- Pera aí, por que que eles estão assim?...

vamos tentar enxergar de outra forma, tentar lidar com isso de uma

forma melhor‟. Tiveram várias situações, esses conflitos do dia-a-dia que

a gente trabalhou aqui, que pra nós foi muito importante.”

“Na última parte do Oprimido, o que eu parei pra pensar, por exemplo,

nas relações. Hoje mesmo com os alunos, eu parei: „- Tô oprimindo,

estou oprimindo, estou oprimindo‟. Que às vezes passa, às vezes, uma

coisa tão simples, uma atitude tão simples já pode estar rolando uma

atitude de opressão, que às vezes não é necessária estar fazendo, que

a gente pode lidar de outra maneira. Às vezes, na correria, a cada 45

minutos eu tenho que pegar outra sala pra trabalhar e, na correria,

acaba passando, e aí, com essas discussões que nós tivemos, eu

acabei parando mais pra pensar nessa questão que eu estava também

deixando um pouco de lado, né. Às vezes, pra querer organizar a sala,

pra querer que as coisas aconteçam, a gente acaba cometendo algumas

coisas e os alunos também.

Síntese da constelação: novos olhares para a prática profissional; constatação

da importância do processo quando se trabalha com a linguagem teatral;

percepção sobre a presença do corpo do educador e do educando no espaço

educativo; presença consciente do corpo na atividade educativa; trabalhar a

própria corporeidade para poder trabalhar com a do educando; ver o aluno

antes de pré-conceber; refletir sobre a própria prática promove mudança.

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4) CORPO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL (TABUS, GÊNERO,

SEXUALIDADE, FAIXA ETÁRIA ETC.): Nesta constelação reunimos

falas referentes a um corpo que carrega marcas da cultura em que está

inserido, no que se refere a gênero, sexualidade, religião, faixa etária e

valores.

“... eu acho que acenderam várias luzinhas dessa junção dessa parte

materializada com valores, com referências culturais, com valores que

eu tenho da minha... Do meu acúmulo cultural da minha família, da

minha comunidade ou na escola que eu estou. (...) E aí eu reafirmo essa

coisa do corpo poder falar, falar assim, porque às vezes a gente observa

um corpo que fala oprimido.”

“Eu acho que essa questão da pessoa se reprimir é anos, né? Você vem

com isso dentro de você. Você carrega isso que colocaram em você

desde criança, né? Muitas coisas você nem percebe, eu acho que você

joga meio numa lixeira e vai ficando lá. Quando você tem um encontro

assim, que você começa a interagir com as pessoas, você começa a

entender algumas coisas”.

“Diferente dela, eu tinha um tabu, muito... A questão do corpo, de tocar.

Nas atividades que a gente faz aqui no CCA, assim, de teatro, até

mesmo com a faixa etária que eu estou trabalhando agora, eu faço,

numa boa, mas sempre com aquela opressão. Eu faço e eu sentia

dificuldade com a turma que eu trabalho hoje. As dinâmicas, a dinâmica

mexe muito com o corpo, no início eu só falava, pela minha própria

dificuldade de expor meu corpo e de tocar. Assim, porque até então, eu

acho natural, mas a cultura, a família, como a Tereza falou aqui, quer

queira, quer não, você é pega de surpresa. Você se vê lá atrás: „- Não,

eu jamais poderia ter feito isso, não tá certo‟”.

“Não esquecer que, quando eu estou agindo, eu estou levando valores

diversos, né, portanto, culturais, acumulados”.

“Eu acho que assim, essa questão do corpo, embora eu não tenha um

corpo de modelo, nem escultural, 45 anos; eu sei o peso dos 45 anos,

eu não tenho essa vergonha do corpo! Acho que isso é uma coisa que

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vem desde a família: irmãos, pai, mãe, a gente nunca se escondeu um

do outro. Então eu falo assim, eu acho que eu sou resolvida

sexualmente porque, graças a minha família, a gente não tinha

bloqueio”.

“Quando a gente trabalha com a criança, você tá lidando com a criança,

a questão da corporeidade é diferente de quando você trabalha com

adulto. Principalmente quando é homem e mulher. Então tem aquela

coisa: „Hum é homem.‟ Ou até mesmo quando você não conhece a

pessoa. Se você tem um laço a mais, se você conhece mais a pessoa,

mas quando você não conhece a pessoa, você tem aquela barreira.

Quando você não conhece, independente se é homem ou mulher, você

fica sempre com o pé atrás”.

Síntese da constelação: Percepção de que o corpo revela a cultura; corpo

oprimido por valores e tabus familiares e sociais; reconhecimento dos

bloqueios e limites em tocar e ser tocado enquanto uma construção social;

reconhecimento do corpo como ele é.

5) AÇÃO TRANSFORMADORA PELO CORPO15: Nesta constelação

apresentamos falas que se referem a um corpo atuante e criativo na

transformação e superação pessoal.

“Então assim: nosso corpo ele é muito oprimido. Então acho que o

corpo poder falar num novo referencial. Quando ela fala: „- vou

levantar, vou erguer, vou falar pra fora‟, de mostrar esse sujeito

que pode agir, dar um retorno pro seu pedaço e fazer essa

mudança, assim, que é um agente transformador. Uma mudança

inicialmente que nasce daqui, que é nossa.”

“Uma vez que eu experimentei, mesmo que sem querer ali, jogar

com o corpo primeiro e depois fazer a reflexão. Mostrou que os

resultados finais foram bem melhores. É isso”.

“Olha a ficha da Amélia, da Amélia mesmo, caiu (risadas) quando

ela disse: „- Quem quer ir lá mudar a história? Quem quer fazer

15

Aqui agrupamos três constelações que, embora tenham alguma especificidade, revelam alguma dimensão da ação transformadora pelo corpo.

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diferente?‟ Eu fiquei observando cada uma das „Amélias‟. De

repente eu levei um tapão quando aquela ali fez todo aquele

diferencial, como ela conseguiu conduzir aquele relacionamento,

aquele casamento de uma forma assim, como todos nós, como

cada um de nós temos esse poder de fazer isso e não sabemos.

E, às vezes, usar o corpo, a fala, a expressão, como fizemos

desde o início, como isso é importante, é fundamental pra você

mudar sua própria história! E vou falando hein, já mudei hein!”

“Quando ela fala isso: „- Esse cuidado que eu estou quando eu

falo com o meu aluno‟, „- O meu olhar‟. Eu acho que esse

exercício pra mim é a expressão mais forte desse fazer, assim,

concreto do conceito.”

“E aí a corporeidade é esse movimento. De ir trazendo a sua

cultura, essa capacidade de expressar, seja corporal, seja na voz,

sabe. Mas expressar de uma maneira muito clara, muito alegre,

muito grande para essa produção humana, assim. Então eu vejo

esse movimento. Então, assim, quando eu falo, a gente fez

cultura aqui, a gente fez história, nós trocamos conhecimentos, a

gente se espelha no outro, reflete no outro. Quem se permitiu

mais, levou mais, aproveitou mais conhecimento do grupo,

acumulou mais. Isso para mim é corporeidade”.

“E nós educadores, entre aspas, que trabalhamos na área da

educação, muitos nos veem como super-heróis, mas nós somos

seres humanos também. Então, tipo assim, quando você se

depara com essas situações, é totalmente diferente. Você tá aí na

frente de um grupo, é uma coisa, a hora que você vai atuar é

totalmente diferente. Se a gente não aprender a tirar essa

repressão de dentro de nós, lá na frente a gente vai sofrer sim. A

gente já sofre hoje e muitas vezes não entende o porquê de muita

coisa, mas o legal que ela falou é que a gente tá transformada.

Então, não querer transformar só o próximo, mas a nós mesmos,

né, transformar dentro de nós. O que eu achei superinteressante

no curso foi isso, que no decorrer de cada encontro nosso, deu

pra perceber isso.

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“Fica mais claro pra mim, vivenciar, por a mão na massa e fazer,

do que só ler. Eu tenho essa dificuldade. Pra mim foi uma

oportunidade de vivenciar na prática”.

5.a SUPERAÇÃO DA TIMIDEZ: Nesta constelação reunimos falas

referentes a momentos em que os participantes consideram ter

superado a timidez.

“Até hoje mesmo, num momento em que eu estava trocando a

roupinha deles, eu fiz várias coisas com eles ao mesmo tempo,

então isso pra mim foi uma barreira que eu quebrei; no sentido

assim, devido à timidez, foi uma coisa que eu quebrei com eles,

assim no meu profissional. Tinha coisas que eu não conseguia

fazer porque eu tinha vergonha, independente se é com criança

ou com adulto, hoje em dia eu já consegui quebrar essa barreira.

Pra mim foi muito bom.”

“A gente, acho, que teve momento de muita timidez, inclusive no

aquecimento, quando você propõe que as pessoas pudessem

respirar com mais soltura, vamos dizer assim, era uma timidez. E

isso é um movimento que a gente foi, apesar do curtíssimo prazo,

a gente foi melhorando um pouco.”

“Eu achei muito interessante! E, assim, tirar essa questão do

bloqueio, que eu cheguei assim bloqueada, lá, timidazinha, no

meu canto, tipo „não me toque‟.”

5.b SUPERAÇÃO DE LIMITES/DESAFIOS: Nesta constelação

apresentamos falas que evidenciam situações onde os participantes

puderam superar alguns limites e desafios.

“E na hora de fazer uma atividade quem que você procura?

Alguém do seu grupo mais próximo. E eu acho que teve um

momento em que tivemos essa sacada: „- Opa, espera aí, não

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vou procurar a ciclana e o beltrano, me deixa procurar alguém

diferente‟.

“Quebrei a barreira de mim mesma. Então, mais do que isso, não

era nem tocar nas outras pessoas, acho que era de tocar em mim

mesma.”

“Porque eu falei: „- Eu posso‟. Entendeu? Não é porque eu estou

com uma roupa não adequada, que eu não vou fazer. Eu vou

atingir o objetivo, sim. E eu gostei, não senti dor no corpo nem

nada”.

“Foram muitas barreiras vencidas logo no primeiro encontro. E eu

falei: „- Puxa consegui‟. Teve aquele impacto...”.

Síntese da constelação: Disponibilidade para interagir com a corporeidade de

pessoas desconhecidas ou pouco íntimas; superação dos limites com a própria

corporeidade; transição do corpo tímido e oprimido para um corpo destemido,

que se expressa com consciência e força; a força da fala e da expressão

corporal como transformadora; a contribuição das atividades com a

corporeidade para a superação da timidez; determinação para enfrentar

desafios e satisfação ao superá-los.

6) RELAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM: Nesta constelação as falas se

referem às particularidades no processo de ensino-aprendizagem.

“Quer dizer, assim, a aprendizagem ocorre quando você quer aprender.

Não é o outro que vai dizer pra você: „- Agora você tem que aprender‟

(mulher: „- concordo plenamente!‟). E aí você tem que mobilizar a

pessoa pra querer. Mais do que para aprender, é querer aprender”.

“Acho que algumas pessoas, na minha avaliação, aproveitaram um

pouco mais. Conseguiram romper mais rápido essas coisas. Outros eu

acho que ainda seguraram a onda, ou tá tão impregnado, tão dentro,

que não é fácil o corpo falar assim, de forma, pra cima né”.

Síntese da constelação: O processo de transformação é diferente para cada

pessoa; o desejo de aprender é significativo no processo de ensino-

aprendizagem.

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7) A PERCEPÇÃO DO PRÓPRIO CORPO: Nesta constelação

apresentamos falas que evidenciam a percepção que os participantes

tiveram a respeito do próprio corpo.

“Eu vi o quanto eu estou travada. E até um simples exercício dava medo

de fazer, aquela coisa né „- Meu Deus.‟. E eu confesso, eu não sei

exatamente, não lembro em que momento, mas teve um momento em

que eu fui pra casa e eu falei: „- ai eu estou com dor‟. Dor na perna, por

que?”.

“Então trabalhar essa ideia do corpo foi pra mim interessante, e perceber

o quanto eu estou engessada.”

“Houve uma barreira que eu não sei se é um pouco da minha falta de

mobilidade mesmo, porque tem algumas coisas que eu não posso fazer

por limites físicos”.

“O que mais saiu foi essa questão de eu voltar a perceber essa minha

noção de corpo, que eu tinha perdido por causa das minhas ações

cotidianas, muito, perdi bastante, porque eu não estava fazendo mais

nada”.

“Às vezes você não sabe por que você está ansiosa, por que você está

mais irritada, e às vezes vem pela falta da atividade física mesmo, de

colocar o corpo em ação”.

“Às vezes eu não tinha noção do meu tamanho, por exemplo, quando eu

cheguei à faculdade não via que eu podia abrir o braço e tacar a mão na

cabeça de alguém que estava do meu lado. Então essas percepções

também foram buscando alguns resgates das coisas que eu tinha na

faculdade. Foram importantes. Dessas sensações e percepções do

próprio corpo que eu tinha perdido um pouco assim, no caminho, assim,

das escolas”.

Síntese da constelação: A percepção e consciência dos limites e possibilidades

do corpo; percepção da integração entre corpo e emoção; reencontro com a

própria corporeidade.

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8) RELAÇÕES COM A CORPOREIDADE DO OUTRO: Nesta constelação

destacamos falas sobre a importância da experiência de se relacionar

com outros corpos.

“E isso eu acho que foi interessante. O experimentar tocar uma pessoa

que você teve um primeiro contato naquele dia”.

“Eu acho que é um experimentar até mesmo tocar o outro. Por que você

toca quem? O seu irmão, sua mãe, seu marido, sua filha, outra mulher,

as técnicas nos levaram a experimentar...”

“E resgatar essa questão de trabalhar com o corpo, de expressar com o

corpo, usando menos a fala. A questão de troca de olhares, de você

olhar no olho da pessoa, que é uma coisa que a gente fala muito que a

gente tem que fazer muito com a criança, pra conversar, tem que ficar

na altura da criança e falar olhando nos olhos dela. Isso eu sempre tive.

Mas a questão da valorização, do quanto isso é importante, mesmo para

um adulto.

Síntese da constelação: A experiência de se relacionar com corpos

desconhecidos; importância de uma postura totalizadora nas relações, que

inclui o corpo todo, desde o olhar.

9) POUCO TEMPO PARA A EXPERIÊNCIA COM A CORPOREIDADE:

Nesta constelação apresentamos o desejo de continuidade da

experiência com a corporeidade.

“Eu acho que foi muito pouco! Eu não sei se vai ser o suficiente

para o seu trabalho, né, somente esses sete encontros”.

“Eu acho que falta muito. E a questão de experimentar, o que a

gente experimentou pouco foi o representar. Acho que isso a

gente experimentou16 pouquíssimo: o representar. Mas, como eu

disse, pra mim foi super válido”.

“Eu queria que continuasse também”.

Síntese da constelação: A experiência com a corporeidade despertou o desejo

de continuidade.

16

O grupo utilizou a expressão representar para se referir aos momentos da Oficina de Teatro onde foram realizadas cenas teatrais.

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10) QUALIDADE DA RELAÇÃO ENTRE OS PARTICIPANTES: Nesta

constelação apresentamos falas que reconhecem a importância da

qualidade das relações no processo pedagógico.

“Quando você realiza um trabalho que o grupo se dispõe a fazer, ele

quer fazer, ele não está sendo obrigado a fazer. E aí eu acho que a

coisa flui com muita facilidade. Você mesmo, Roberta, citou várias

vezes: „- Esse grupo teve uma tranquilidade pra fazer isso‟.”

“E consegui contar, confiei, sabe aquela coisa de que, poxa, eu pensei

ainda, com uma amiga que estava no meu grupo, a gente trabalha aqui,

aí eu pensei: „- É uma coisa tão pessoal que, de repente, pode entrar

nos bastidores aí, falando uma coisinha ou outra...‟. Mas eu não tive

isso. Eu pensei, falei assim: „- Mas eu confio‟.”

“A gente cria vínculo”.

“Essa cena da Amélia me fez pensar, também, que foi um momento de

reflexão pras nossas vidas, por que? Eu creio que todo mundo teve seu

momento ali. Em alguma cena, em algum ato cada um se viu. Em todas

as etapas do curso, todo dia do curso, eu mesma fui uma delas. Teve

momentos, tanto de fala, quanto de gesto, que eu passei por situações

na minha vida também”.

“(...) só você compreendendo e dando conta que somos contraditórios

em algumas questões é que podemos nos mover, sair do lugar. Porque

se você começa achar que não é permitida em momento nenhum essa

contradição em você, vai começar a trabalhar com valores absolutos,

né? E aí não permite você rever coisas que você tinha tão como verdade

e, por causa de um convívio com outra pessoa, aquela verdade deixou

de ser tanta verdade”.

Síntese da constelação: Disponibilidade no trabalho coletivo; estabelecimento

de vínculo e confiança grupal; a relação grupal favorece o reconhecimento de

si mesmo; a relação com o outro permite a mudança.

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11) SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA OPRESSOR/OPRIMIDO: Nesta

constelação as falas indicam que houve uma compreensão da relação

dialética entre opressor/oprimido.

“Outra coisa que eu queria colocar: eu tenho facilidade, os alunos falam,

né, que eu me expresso muito através do olhar. Que, às vezes, eu olho

assim e eu não sei até que ponto está sendo... Que nem, hoje com os

pequenos eu já olhei... “- Tô oprimindo”. Deixa parar um pouco... É outra

coisa que ajuda... É a gente refletir um pouco mais em relação a isso.

Dar uma parada...”

“Então é muito bom você perceber „Opa, pera aí, deixa ver se eu estou

oprimindo, me deixa ver se eu sou opressor agora...‟ Você para e pensa

antes, né? Você não tinha esse olhar. Eu pelo menos não tinha esse

olhar”.

Síntese da constelação: Reconhecimento do opressor hospedado em si

mesmo; o corpo opressor na prática pedagógica.

12) INTENCIONALIDADE DA AÇÃO: Nesta constelação a fala se refere a

um corpo sujeito, que age com consciência.

Em todos os momentos a gente estava refletindo não só no movimento,

mas na ação que gerou o movimento. Porque a corporeidade envolve

todos esses, não só o movimento em si, mas o que leva a fazer esse

movimento: a intenção, o gesto, tudo o que está envolvido. Em todos os

exercícios a gente percebeu que tinha uma intencionalidade, a gente

não estava fazendo um movimento ou um exercício pelo exercício. Tinha

um objetivo final para aquilo e aí a gente foi percebendo, tendo a noção

do nosso próprio espaço, várias outras discussões estavam envolvidas

nos exercícios.

Síntese da constelação: Reflexão sobre a totalidade do corpo-sujeito.

13) DIMENSÃO DO SENSÍVEL: Nesta constelação apresentamos uma fala

que se refere à experiência do sensível na Oficina de Teatro.

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“Élida questionou que sentiu falta das pessoas falarem sobre a

dimensão do sentir. Para ela todos experimentaram muito a questão do

sentir durante as atividades das oficinas, mas não verbalizaram sobre

essa experiência. O grupo concordou que sentiram, mas não soube

definir o porquê de não mencionarem isso, apesar de considerarem uma

questão importante”.

Síntese da constelação: Dificuldade de expressar a experiência de sentir.

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4. DISCUSSÃO

“Às vezes usar o corpo, a fala, a expressão, como fizemos desde o início, como isso é importante, é fundamental para você mudar sua própria história!” 17Simone

“Corporeidade e o fazer libertário na certeza do humanizar”. Ernesto

Neste capítulo apresentaremos a discussão das constelações

encontradas nas Entrevistas Reflexivas, realizadas com os participantes desta

pesquisa, em diálogo com o referencial teórico explicitado no início desta

dissertação. A indagação sobre como a corporeidade foi compreendida pelos

participantes da Oficina de Teatro do Oprimido permeou as reflexões

desenvolvidas.

Os dados das entrevistas foram organizados em treze constelações,

conforme apresentamos no capítulo anterior, sendo elas: A percepção do

próprio corpo; Corpo como construção cultural; Corpo como meio de

comunicação; Qualidade da relação entre os participantes; Relações com a

corporeidade do outro; Mecanização do corpo no cotidiano; Contribuições da

corporeidade para a prática profissional; Intencionalidade da ação; Ação

transformadora pelo corpo, que inclui a Superação da timidez e de

limites/desafios; Relação ensino-aprendizagem; Pouco tempo para a

experiência com a corporeidade; Superação da dicotomia opressor/oprimido; e

Dimensão do Sensível. É importante pontuar que esses agrupamentos

exercem uma função preponderantemente didática para o desenvolvimento da

análise, já que as constelações se interrelacionam. E nesse sentido, nem todas

as constelações organizadas serão destacadas.

Para Paulo Freire o processo pedagógico comprometido com a

17

Fala dos participantes da oficina, que por questões éticas tiveram seus nomes verdadeiros

substituídos.

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transformação dos homens e mulheres implica o conhecimento da realidade

dos educandos, de maneira que o educador, ao adentrar no mundo dos

educandos, poderá colaborar com o desvelamento das opressões que

permeiam suas relações, e juntos caminharem para o processo de libertação.

Nesse sentido a corporeidade é fundamental, pois é por meio do corpo que o

sujeito assimila a cultura, “se apropriando dos valores, normas, costumes

sociais, num processo de incorporação (a palavra é significativa) (DAOLIO,

1995, p.37), de maneira que, “atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade

na qual esse corpo está inserido.” (p.39)

Na constelação denominada “Corpo como construção corporal” os

depoimentos dos participantes fazem inúmeras referências a essa percepção,

de que o corpo revela a cultura e pode ou não ser oprimido por valores e tabus

familiares e sociais. Isso se desvela quando afirmam:

“Eu acho que assim, essa questão do corpo, embora eu não tenha um corpo de modelo (...) eu não tenho essa vergonha do corpo! Acho que isso é uma coisa que vem desde a família: irmãos, pai, mãe, a gente nunca se escondeu um do outro. Então, eu falo assim, eu acho que eu sou resolvida sexualmente porque, graças a minha família, a gente não tinha bloqueio.”

“Quando você trabalha com a criança a questão da corporeidade é diferente de

quando você trabalha com o adulto. Principalmente, quando é homem e mulher. Então tem aquela coisa: „Hum é homem‟.”

Daí a necessidade que o educador tem de promover “a leitura do corpo

com os educandos, interdisciplinarmente, rompendo dicotomia, rupturas

inviáveis e deformantes” (FREIRE, 1993, p.49), fazendo uma “leitura” do corpo

como se fosse um texto, nas interrelações que compõem o seu todo (p.49),

promovendo, assim, o reconhecimento dos bloqueios e limites relacionados a

idade, sexo, gênero, faixa etária e outros tabus, enquanto uma construção

social.

Na constelação “Mecanização do corpo no cotidiano”, os educadores

revelam ter percebido que há uma sobreposição da expressão verbal sobre a

corporal em seus cotidianos, além de constatarem a negação do corpo nas

ações cotidianas. Eles relatam que estão habituados a usar a fala

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prioritariamente, na vida e na sala de aula, deixando o corpo de lado. Prática

que atribuem ao fato de trabalharam muito com “o papel”, no dia-a-dia corrido

das escolas. De acordo com Boal, “ao desenvolver sempre os mesmos

movimentos, cada pessoa mecaniza o seu corpo para melhor executá-los,

privando-se então de possíveis alternativas para cada situação original” (1998,

p.61) – fato que se evidencia quando uma das participantes constata:

“Eu, professora de educação física, desde quando eu entrei na prefeitura, eu parei com todas as minhas práticas corporais, todas (...). Eu estou a todo o momento lidando com o corpo, percebendo como os alunos se relacionam com o corpo, e eu mesma estava deixando a minha relação como o meu corpo assim, de lado, por causa da profissão mesmo. Então, nesse curso pra mim, o que mais saiu foi essa questão de eu voltar a perceber essa minha noção de corpo, que eu tinha perdido por causa das minhas ações cotidianas”.

Isso nos permite pensar que a leitura sobre a própria corporeidade é

uma etapa fundamental para a superação da alienação do corpo, pois sem a

consciência desse agir autômato, e do que ele implica, é provável que não se

busque a mudança.

Nesse sentido a constelação denominada de “A percepção do próprio

corpo” revela que houve um movimento de percepção e consciência dos

educadores sobre os limites e possibilidades de seus corpos. Conforme

demonstra a fala de uma educadora:

“Eu vi o quanto eu estou travada; até um simples exercício dava medo de fazer. (...) não me lembro em que momento, mas teve um momento que eu fui pra casa e eu falei: „ai, eu estou com dor‟. Dor na perna, por que?”

Neste exemplo percebemos que, ao refletir sobre a experiência vivida na

Oficina de Teatro, surge um questionamento da participante sobre a sua

situação, de modo que “o autoconhecimento assim adquirido permite-lhe ser

sujeito... permite-lhe imaginar variantes ao seu agir, estudar alternativas”

(BOAL, 1996, p.27). E é a partir desse saber sobre si mesma, que se torna

possível pensar sobre o que se pretende ser futuramente, pois como nos diz

Freire, “temos de saber o que fomos e o que somos, para saber o que

seremos” (FREIRE, 2011, p. 42).

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Do mesmo modo que a percepção sobre o próprio corpo demonstrou ser

significativa na experiência com a corporeidade, foi na “Relação com a

corporeidade do outro” que outros aspectos se desvelaram.

“E resgatar essa questão de trabalhar com o corpo, de expressar com o corpo, usando menos a fala. A questão da troca de olhares, de você olhar no olho da pessoa, que é uma coisa que a gente fala muito que a gente tem que fazer muito com a criança... Pra conversar, tem que ficar na altura da criança e falar olhando nos olhos dela. Isso eu sempre tive. Mas a questão da valorização, do quanto isso é importante, mesmo para um adulto”.

Essa fala reflete que a experiência com o outro, permitiu à educadora

perceber o quanto é significativa a relação que se estabelece entre os corpos,

desmistificando que a corporeidade é algo exclusivo das relações com

crianças, pois independe da faixa etária.

Na constelação “Qualidade da relação entre os participantes”,

percebemos que a disponibilidade para o trabalho coletivo e a confiança grupal

favorecem a experiência coletiva. Na fala que se segue isso é explicitado.

“consegui contar, confiei, sabe aquela coisa de que, poxa, eu pensei ainda, com uma amiga que estava no meu grupo, a gente trabalha aqui, aí eu pensei: „É uma coisa pessoal, que de repente, pode entrar nos bastidores aí, falando uma coisinha ou outra...‟ Mas eu não tive isso. Eu pensei, falei assim: „Mas eu confio‟.”

A questão da comunhão é algo precioso na proposta da

Educação Libertadora, pois para Freire o processo de libertação não se dá

isolado, já que “O homem não é uma ilha” (FREIRE, 2011, p.34), mas sim, na

dialogicidade entre educador-educando e educando-educandos, mediatizados

pelo conhecimento, numa relação de comunhão e de busca.

Na constelação “Relação ensino-aprendizagem”, notamos que a

experiência vivida pelos participantes revelou que o processo de transformação

é singular, e varia de pessoa para pessoa.

“Acho que algumas pessoas, na minha avaliação, aproveitaram um pouco

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mais. Conseguiram romper mais rápido essas coisas [valores e cultura, acumulados ao longo]. Outros eu acho que ainda seguraram a onda, ou tá tão impregnado, tão dentro, que não é fácil o corpo falar assim, de forma pra cima, né?”.

Nesse sentido, como nos afirma Boal, “o corpo tem ritmos individuais,

personalizados” e cada um tem o seu “ritmo psíquico de receber e processar

informações (sensoriais e racionais), e o de atuar, agir, responder a essas

informações” (BOAL, 1998, p.153).

A constelação “Contribuições da corporeidade para a prática

profissional” reúne falas dos participantes que se referem à constituição de

novos significados para práticas profissionais já conhecidas e realizadas por

eles. Assim se expressaram:

“Era uma coisa que eu aprendi lá no passado, vi que para eles servia, fazia com eles e hoje eu trabalhei assim, de outra maneira”. “Hoje eu faria isso de uma maneira completamente diferente. Antes de

distribuir roteiros, de distribuir os papéis, a gente ia vivenciar um pouco dessas técnicas, experimentar o lidar com o corpo, soltar a voz e depois construir com as crianças. Eu acho assim, a gente que pensa muito o teatro na escola, tem que pensar nisso também. Não dá pra você chegar, querer aquela coisa rapidinha, maluca que é a escola.”

Neste relato podemos dizer que houve um processo de conscientização

sobre os significados da atividade proposta, superando o senso comum.

Numa outra fala que destacamos abaixo o participante demonstra que a

experiência lhe permitiu constatar a presença do corpo do educador e do

educando, no processo educativo, quando afirma que:

“Esse curso eu acho interessante porque a gente entra na sala de aula e toda hora a gente está na frente de trinta, trinta e cinco, dependendo do lugar quarenta pessoas, né? São alunos aí. Por mais que não pareça, eles estão te olhando, eles estão te percebendo, né? Então eles estão ali, vendo o que você faz, se você está com uma espinha na testa, eles estão te observando e é bom pra você. Se você está com olho roxo (risadas)... Então quando você entra na sala de aula, se você olhar direto no olho do aluno, você ter esse contato com ele (...) ele começa a te ver de outra forma”.

Estes exemplos nos remetem à importância que Paulo Freire dá para o

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processo de formação contínua dos educadores, que deve acontecer por meio

da reflexão crítica sobre a prática.

Nesse sentido ainda, apresentamos a seguir, um relato que revela que a

oportunidade da educadora vivenciar sua corporeidade foi preponderante para

o seu desempenho educativo, no que se refere à afetividade trabalhada com os

educandos.

“Por exemplo, essa semana eu fiz duas dinâmicas do rótulo e do patinho feio. Então, estava o rótulo, estava „beije-me‟, „abrace-me‟. O que tinha escrito você tinha que fazer com aquela pessoa. E se eu não tivesse trabalhado isso comigo, eu não teria conseguido o objetivo que eu consegui ontem e hoje com eles. Porque o próprio grupo tem: „- ai, eu não vou beijar ninguém não!‟, „- não vou abraçar‟, „- ai não, sai fora!‟ E eu falei: „- Mas por quê? Porque não tocar o outro, porque não sentir?‟.”

Na constelação “Ação transformadora pelo corpo”, notamos que a

experiência da Oficina de Teatro permitiu aos participantes perceberam e

experimentarem a força do corpo enquanto presença expressiva e criativa no

mundo. Ao colocarem seus corpos no ato criativo, os relatos que se seguem

evidenciam isso:

“Então assim: nosso corpo é muito oprimido. Então, acho que o corpo pode falar num novo referencial. Quando se fala: „vou levantar, vou erguer, vou falar para fora‟, de mostrar esse sujeito que pode agir, dar um retorno pro seu pedaço e fazer essa mudança, assim, que é um agente transformador. Uma mudança inicialmente que nasce daqui, que é nossa.” “Eu fiquei observando cada uma das „Amélias‟. De repente eu levei um tapão quando aquela ali fez todo aquele diferencial, como ela conseguiu conduzir aquele relacionamento, aquele casamento de uma forma assim, como todos nós, como cada um de nós temos esse poder de fazer isso e não sabemos. E às vezes usar o corpo, a fala, a expressão, como fizemos desde o início, como isso é importante, é fundamental pra você mudar sua própria história! E vou falando, hein, já mudei, hein!”

Assim, percebemos que a efetivação da mudança se dá na ação

concreta do corpo, quando ele rompe com seu imobilismo e deixa de ser

apenas um objeto para se tornar sujeito da transformação. E, para isso,

segundo Freire, “a educação deve ser desinibidora e não restritiva. Sendo

necessário aos educadores, dar oportunidade para que os educandos sejam

eles mesmos”, de modo que não sejam impedidos de criar de “fazer história

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pela sua própria atividade criadora” (FREIRE, 2011, p.41).

Na constelação “Superação da dicotomia opressor/oprimido”,

destacamos alguns depoimentos que demonstram que os participantes

compreenderam a existência de uma relação dialética entre opressor/oprimido.

Como a fala dessa educadora nos mostra: “Opa, pera aí, deixa ver se eu estou

oprimindo, me deixa ver se eu sou opressor agora...” Você para e pensa antes

né. Você não tinha esse olhar. Eu pelo menos não tinha esse olhar”.

Nesse sentido, ao superar a visão dicotômica entre opressores e

oprimidos, os participantes terão mais condições de perceberem seus corpos

como hospedeiros da ideologia autoritária dominante, conforme nos alerta

Freire (2009), e assim, evitarem uma prática pedagógica corporificada no

autoritarismo castrador e imobilizador.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“é preciso que a escola progressista, democrática, alegre, capaz, repense toda a questão das relações entre corpo consciente e mundo. Que reveja a questão da compreensão do mundo, enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e também sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interações com ele”. (FREIRE, 1993, p.49)

Ao longo deste estudo podemos refletir a respeito dos significados que

esta experiência com a corporeidade desvelou para o conjunto de seus

participantes. Conforme pressuposições levantadas pela pesquisadora nas

páginas introdutórias do trabalho, viver e refletir coletivamente a corporeidade,

durante a oficina de Teatro do Oprimido, foi para muitos dos educadores a

primeira oportunidade de participarem de uma formação com esse enfoque, e

demonstrou favorecer o ensejo de novos olhares para suas práticas

pedagógicas.

A relação com a própria corporeidade permitiu que percebessem as

mecanizações de seus corpos, consequentes de uma prática profissional

burocratizada, que prioriza a racionalidade e limita a capacidade criativa e

autêntica de se personificarem no mundo. E a partir disso, despertaram para o

fato de que a mecanização de seus sentidos impede seus educandos de

viverem suas corporeidades em plenitude.

Na construção coletiva constituída durante a oficina, os participantes

compreenderam a corporeidade enquanto expoente da cultura, com seus

valores e tabus construídos socialmente, e que requer o exercício da

problematização no fazer educativo, de maneira a contribuir para a ruptura de

opressões imobilizadoras, que impedem os sujeitos de “serem mais” (Freire,

1987). E, nesse sentido, favorecidos pela experiência de um fazer teatral

libertador, experimentaram com o próprio corpo a força expressiva e criativa,

que permite a ação transformadora.

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Assim, a experiência desenvolvida para esse estudo aponta

contribuições para que os educadores encontrem na corporeidade um caminho

de transição da consciência transitiva para a consciência crítica, e cheguem à

práxis.

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APÊNDICE A – Folder de apresentação da oficina de teatro e

corporeidade

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APENDICE B – Ficha de Perfil do Participante da Oficina

PERFIL DO PARTICIPANTE OFICINA DE TEATRO – 1º sem/ 2011

1. Identificação

Nome completo:

Data de Nascimento:

RG:

Naturalidade (cidade onde nasceu):

2. Estado civil

( )Casada/o...( )Solteira/o .( )União estável ( )Viúva/o ( )Separada/o

3. Tem filhos?

( )Não

( )Sim. Quantos? Idade(s):

4. Qual a sua origem étnicorracial?

5. Qual seu credo/religião?

( )Católica ( )Evangélica ( )Umbandista ( )Candomblecista

( )Kardecista ( )Protestante...( )Budista ( )Nenhuma (agnóstico)

( )Ateu ( )Outra:

6. Escolaridade:

( )Fundamental Incompleto ( )Fundamental Completo ( )Médio Incompleto

( )Médio Completo . ( )Superior Incompleto ( )Superior Completo Curso:

( )Pós-graduação Incompleta ( )Pós-Graduação Completa Área:

Atualmente você está estudando? ( )Sim ( )Não

Qual o curso?

7. Trabalha na área da Educação há quanto tempo?

Instituição de trabalho:

Profissão:

Cargo atual:

Assinatura: Data:

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APÊNDICE C – Texto teatral da cena do Teatro-Fórum

Texto teatral do espetáculo do Teatro-fórum (autoria coletiva do grupo) Criança 1: Você me ensina a jogar esse jogo?

Criança 2: (impossível entender a fala)

Criança 1: Por quê?

Criança 2 : Você não sabe... Ó, é muito difícil, é pra criança grande.

Criança 1: Ah, mas eu queria tanto aprender.

Criança 2: Depois eu ensino

(Batidas na porta)

Criança 1: O pai chegou!

Homem: Oi crianças, tudo bem com vocês? Oi filha, como que você tá, trouxe

seu presente.

Criança 2: Só pra Maria?

Homem: Só pra Maria, já dei o seu semana passada, você não lembra?

Criança 2: Ah, lembro...

Criança 1: Mas, de novo um carrinho?

Homem: É, um carrinho pra você. Você não gostou do carrinho?

Criança 1: Mais um?

Homem: Mais um pra sua coleção, qual é o problema? Você devia agradecer,

mais um carrinho!

Criança 1: Mas eu tinha pedido a Barbie!

Homem: Barbie? Que Barbie filha? O carrinho não tá bom? Olha que bonito

esse carrinho, você pode carregar tanta coisa nele. Por que você não gosta de

carrinho? Ãh? Vocês estão brincando de quê?

Criança 2: Tô jogando Resta Um.

Criança 1: Ela não quis me ensinar pai!

Homem: Por que você não quis ensinar pra sua irmã? Por quê? Tô falando

com você! Por que você não quis ensinar?

Criança 2: Porque ela não tem idade pai. Ela é pequena e não sabe jogar.

Homem: Ah, ela não tem idade!

Criança 1: Isso não é justo pai!

omem: Ensina pra sua irmã a jogar, faça favor! Faz o seguinte: vocês vão

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brincando aí que eu vou mexer no computador, tá? Depois a gente janta, tá

bom?

Criança 2 : Pai, depois eu preciso falar uma coisa pra você...

Homem: Tá, depois, agora não. Amélia!

Mulher: Sim, amor!

Homem: Pega um copo de água pra mim.

Mulher: Amor, pode ser suco?

Homem: Por que suco, eu não pedi água?

Mulher: A água acabou e eu não tive tempo de encher as jarras.

Homem: O que você fez o dia inteiro, que você não encheu as jarras?

Mulher: Eu estive ocupada o dia todo, limpando essa casa!

Homem: Mas, se faltar água uma semana você vai deixar todo mundo com

sede uma semana?

Mulher: Mas só foi hoje amor, não é hábito faltar água!

Homem: Quer dizer então que hoje ninguém vai tomar água, vai tomar só

suco, então?

Mulher: Amor é só hoje, amor.

Homem: Tá bom vai, dá essa... Tira o meu sapato.

Mulher: Tá machucando o seu pé?

Homem: Ah, o dia inteiro andando, né? Enquanto você fica aí em casa, eu fico

o dia inteiro trabalhando. Como é que está esse jogo aí?

Criança 2: Tô ganhando!

Homem: Tá ganhando? Você ensinou pra sua irmã?

Criança 1: Não!

Homem: Não? Vamos fazer o seguinte, vamos parar com a brincadeira e

vamos jantar tá bom?

Crianças: Ah!

Homem: Guarda o presente. O quê é que foi? Tá reclamando do quê?

Criança 2: Nada!

Homem: Ah, bom! Deixa isso aí, depois sua mãe guarda vai! Vamos, vamos lá

pra mesa, vai! Amélia a janta, Amélia!

Mulher: Ai amor, já vou!

Homem: É, e vocês se comportem na mesa, tá? Faça favor!

Criança 2: Tô com fome!

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Homem: Vocês estão com fome? Vocês não comeram durante o dia não?

Criança 2: Comi. Eu comi pai!

Homem: Sua mãe não deu comida pra vocês? Você não deu comida pra essas

meninas não? Elas estão morrendo de fome!

Criança 2: A gente almoçou.

Criança 1:É que ela falou que vai fazer uma comida especial!

Mulher: É a comida da vovó, gente!

Homem: Vovó? Mas que vovó? A minha mãe ou a sua? Hein, Amélia?

Criança 1: Tá com uma cara boa pai!

Homem: Cara boa? Precisa ver o gosto, né? Cara tudo bem...

Mulher: Eu liguei pra sua mãe e ela me deu a receita direitinho. Ai, aquela torta

deliciosa!

Homem: Você incomodou minha mãe pra pegar a receita de um bolo? Você

não sabe fazer um bolo, uma torta?

Mulher: Aquela torta deliciosa, que você adora!

Homem: E você acha que vai ficar igual?

Mulher: Amor tá igual! Tá uma delícia! Eu até levei um pedaço pra sua mãe e

ela provou.

Homem: Coitada, ela não quis fazer desfeita.

Mulher: Calma Maria! Olha a educação, Maria!

Criança 1: Mãe enxuga o prato, a senhora não enxugou direito!

Homem: Mas porque os pratos delas estão molhados?...Formiga...

Mulher: Amor, acabei de lavar a louça! Crianças, acabei de lavar a louça!

Criança 2: Tá bom mãe, eu enxugo.

Mulher: Ó, o primeiro pedaço pra você amor.

Homem: Obrigado!

Mulher: Maria!

Criança 2: Mãe, tá uma delícia!

Homem: Nossa, tá uma porcaria isso aí!

Mulher: Amor!

Homem: Não tá, não chega nem aos pés do da minha mãe.

Criança 1: Acabei mãe!

Homem: Acabou? Mas porque você não come direito? Tá morrendo de fome?

Ô, essa boca cheia! E você, não vai comer, não? Você falou que tinha uma

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coisa pra me falar, que você quer falar?

Criança 2: Pai, deixa eu te falar...

Homem: Ãh?

Criança 2: É que na sexta-feira vai ter um baile lá na escola...

Criança 1:Eu quero ir!

Homem: Deixa sua irmã falar primeiro!

Criança 2: E é com todos os meus amigos...

Criança 1: Posso ir?

Homem: Deixa sua irmã terminar.

Criança 2: A Maria não vai porque é só pro pessoal da minha escola, da minha

idade, entendeu?

Homem: Só pra sua idade? E o que é que vocês vão fazer lá?

Criança 2: ...Música...

Homem: Música? O que mais? Que horas que é esse baile?

Criança 2: seis horas

Homem: E vai voltar pra casa que horas?

Criança 2: Volto cedo.

Homem: Cedo, que horas?

Mulher: Oito horas

Homem: Ah, esse negócio de voltar oito horas é conversa, sempre acaba

voltando mais tarde! Depois fica lá se engraçando com os meninos, você sabe

onde isso vai dar!

Criança 1:Eu posso ir, pai? Eu cuido dela!

Homem: Claro que não! Você é uma criança ainda. Fica quieta!

É o seguinte: Foi a sua mãe que deixou você ir nesse baile? Foi você Amélia,

que deixou essa menina ir nesse baile?

Criança 2: Ela falou pra eu pedir para o senhor!

Mulher: O que é que tem, amor?

Homem: Que é que tem? Que é que tem?

Criança 2:Pai, todas as minhas amigas vão!

Homem: E daí que suas amigas vão? Qual o problema delas irem? O

problema é que você não vai!

Criança 1: Ah pai, deixa ir, eu também vou!

Homem: Vocês não vão pra lugar nenhum! Vocês vão é dormir agora! Faça

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favor, vão escovar os dentes pra dormir! E você Amélia, vê se cuida direito

dessas meninas aí. Vamos, vamos escovar os dentes, vamos! Vamos, vamos!

Para! Vai, escovem os dentes rapidinho! Sem brincadeira aí no banheiro.

Criança 1: Foi ela pai!

Homem: Joana...

Criança 1: Mas, você falou que ia me ensinar a jogar.

Homem: Amanhã.

Criança 1: Mas, só um pouco!

Homem: Amanhã!

Criança 1: Mas, você prometeu!

Homem: Deita!

Criança 1: Mas, nem um pouco?

Homem: Deita. Tchau, boa noite. Deixa de ser malcriada, hein! Tchau.

Criança 1: Amanhã você me ensina a jogar?

Homem: Amanhã? Vou ver. Não é assim também. Oh, Amélia, e esse... Aqui,

no meio da casa?

Mulher: Calma amor sou só uma! Calma!

Homem: Eu vou tomar banho, tá? Améliaaaaa!!

Mulher: Que amor?

Homem: A toalha.

Mulher: Ah, já... Aqui amor!

Voz 1 da consciência da mulher: Hoje acho que vai ser diferente

Voz 2 da consciência da mulher: Ele não reparou em você de novo!

Voz 1 da consciência da mulher: Hoje, pelo jeito que tá tomando banho, vai

ser diferente!

Voz 2 da consciência da mulher: Ele não tá nem aí pra você, nem te repara.

Voz 1 da consciência da mulher: Eu acho que ele vai me pegar hoje, de jeito,

estou sentindo, vai ter um carinho bom!

Voz 2 da consciência da mulher: Até parece, ele nem sabe que você existe!

Voz 1 da consciência da mulher: Estou inteirinha pra ele hoje. Sei que vai ser

bom, ficar toda hoje, molhadinha, é claro!

Homem: Oh, Amélia, tá louca?

Vai tomar banho, vai. Era só o que faltava. Amélia (cantando no banho):

Quando a gente ama é claro que a gente cuida...

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Homem: Amélia! Tá com algum problema? Vai logo!

Mulher: Já vou!

Homem: Amélia!

Mulher: Oi amor!

Homem:Tá demorando...

Mulher: Ai, ele adora! Ai, amor, comprei um creme!

Homem: Creme?

Mulher: É, da natura, uma delícia!

Homem: Mas, pra que você comprou isso Amélia?

Mulher: Pra cuidar da pele.

Homem: Cuidar da pele, Amélia, pô?

Mulher: Cheirosa!

Homem: Você pensa que meu dinheiro é capim, Amélia, fica comprando

creme? Tá maluca, é?

Mulher: Não posso comprar nada pra mim!

Homem: Você pode comprar. Você já não tem bastante coisa aí? Não tem

comida, coisas pras crianças. Tá faltando alguma coisa aí?

Mulher: Você compra coisas pra você...

Homem: Amélia, eu trabalho, eu tenho salário, Amélia. Você não tem, então

para de gastar meu dinheiro. (Mulher fala junto, não dá pra entender o áudio)

Criança 1: Manhê, eu quero fazer xixi!

Criança 2: Cala boca Maria!

Homem: Ô, ô, dá pra vocês dormirem. Para de perturbar!

Mulher: Filha, vai ao banheiro. Acende a luz do corredor e vai sozinha, você já

tá ficando mocinha!

Homem: E se fizer barulho vai apanhar, hein!

Mulher: Não precisa gritar com ela!

Homem: Ah Amélia, tá louco, você não educa essas crianças! Deita vai.

Mulher: Nem vem achar que é assim...

Homem: Deita logo, vai!

Mulher: Ah não vem não, que não tem!

Homem: Como não vem que não têm, tá louca?

Mulher: Grosso!

Homem: Grosso? Amélia, vamos aproveitar que as crianças estão dormindo, a

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gente aproveita pra fazer um menino. O que você acha?

Mulher: Não!

Homem: Não, por quê?

Mulher: Pra vir outra menina e você...

Homem: Não interessa! A gente faz outro, e outro...

Mulher: E pra cuidar das crianças?

Homem: Você Amélia. Você fica em casa pra que? Pra cuidar das crianças!

Vamos!

Mulher: Eu fico aqui... E você não valoriza o meu trabalho...

Homem: Ah Amélia! Vamos, vamos!

Mulher: Eu não quero!

Homem: Você quer sim! Por que você não quer? Você é obrigada! Você é

casada Amélia!

Mulher: Eu não quero! Desse jeito eu não quero...

Homem: Não quer o quê? Tem que ser! Desse jeito? Que jeito? Porque você

não gosta? Ah...

Mulher: (chorando; gritando algumas palavras inaudíveis) Você é um grosso...

Coral canta: Amélia que era mulher de verdade, Amélia não tinha a menor

vaidade...

Fim!

ANEXO A – Poesia Ver Vendo, de Otto Lara de Rezende

De tanto ver, a gente banaliza o olhar - vê... Não vendo. Experimente ver, pela

primeira vez, o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é: O que

nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da

nossa retina é como um vazio. Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma

porta. Se alguém lhe perguntar o que você vê no caminho, você não sabe. De

tanto ver, você banaliza o olhar. Sei de um profissional que passou 32 anos a

fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre,

pontualíssimo, o porteiro. Dava-lhe bom-dia e, às vezes, lhe passava um

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recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro faleceu. Como era ele? Seu

rosto? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos nunca

conseguiu vê-lo. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia, em

algum lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser, também, que

ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e baixa a voltagem.

Mas há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o

espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez, o que de tão

visto, ninguém vê. Há pai que raramente vê o filho. Marido que nunca viu a

própria mulher. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos... É por aí que se

instala no coração o monstro da indiferença. (Otto Lara Rezende)

ANEXO B – Textos utilizados para o Aquecimento Ideológico

1) Alguns Tipos de Violência Cometida Contra a Mulher

A violência contra a mulher pode de se manifestar de várias formas e com diferentes graus de severidade. Estas formas de violência não se produzem isoladamente, mas fazem parte de uma seqüência crescente de episódios, do qual o homicídio é a manifestação mais extrema.

Violência de gênero Violência de gênero consiste em qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher à, tanto no âmbito público como no privado. A violência de gênero é uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, em que a subordinação não implica na ausência absoluta de poder.

Violência intrafamiliar A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra. O conceito de violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre, mas também às relações em que se constrói e efetua. Violência doméstica A violência doméstica distingue-se da violência intrafamiliar por incluir outros membros do grupo, sem função parental, que convivam no espaço doméstico. Incluem-se aí empregados(as), pessoas que convivem esporadicamente, agregados. Acontece dentro de casa ou unidade doméstica e geralmente é

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praticada por um membro da família que viva com a vítima. As agressões domésticas incluem: abuso físico, sexual e psicológico, a negligência e o abandono.

Violência física Ocorre quando uma pessoa, que está em relação de poder em relação a outra, causa ou tenta causar dano não acidental, por meio do uso da força física ou de algum tipo de arma que pode provocar ou não lesões externas, internas ou ambas. Segundo concepções mais recentes, o castigo repetido, não severo, também se considera violência física. Esta violência pode se manifestar de várias formas: • Tapas • Empurrões • Socos • Mordidas • Chutes • Queimaduras • Cortes • Estrangulamento • Lesões por armas ou objetos • Obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados, álcool, drogas ou outras substâncias, inclusive alimentos. • Tirar de casa à força • Amarrar • Arrastar • Arrancar a roupa • Abandonar em lugares desconhecidos • Danos à integridade corporal decorrentes de negligência (omissão de cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros).

Violência sexual A violência sexual compreende uma variedade de atos ou tentativas de relação sexual sob coação ou fisicamente forçada, no casamento ou em outros relacionamentos. A violência sexual é cometida na maioria das vezes por autores conhecidos das mulheres envolvendo o vínculo conjugal (esposo e companheiro) no espaço doméstico, o que contribui para sua invisibilidade. Esse tipo de violência acontece nas várias classes sociais e nas diferentes culturas. Diversos atos sexualmente violentos podem ocorrer em diferentes circunstâncias e cenários. Dentre eles podemos citar: • Estupro dentro do casamento ou namoro; • Estupro cometido por estranhos; • Investidas sexuais indesejadas ou assédio sexual, inclusive exigência de sexo como pagamento de favores; • Abuso sexual de pessoas mental ou fisicamente incapazes; • Abuso sexual de crianças; • Casamento ou coabitação forçados, inclusive casamento de crianças; • Negação do direito de usar anticoncepcionais ou de adotar outras medidas de

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proteção contra doenças sexualmente transmitidas; • Aborto forçado; • Atos violentos contra a integridade sexual das mulheres, inclusive mutilação genital feminina e exames obrigatórios de virgindade; • Prostituição forçada e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual; • Estupro sistemático durante conflito armado.

Violência psicológica É toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano á auto-estima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: • Insultos constantes • Humilhação • Desvalorização • Chantagem • Isolamento de amigos e familiares • Ridicularização • Rechaço • Manipulação afetiva • Exploração • Negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros) • Ameaças • Privação arbitraria da liberdade (impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal, gerenciar o próprio dinheiro, brincar, etc.) • Confinamento doméstico • Criticas pelo desempenho sexual • Omissão de carinho • Negar atenção e supervisão

2) Texto extraído do Manual para Atendimento às Vítimas de Violência na Rede de Saúde Pública do DF/ Laurez Ferreira Vilela (coordenadora) – Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2008.

O índice de violência contra a mulher chegou a tal ponto que a Organização Mundial de Saúde fez um estudo onde revela que a cada 15 segundos uma mulher é vítima de violência doméstica.

Em um país em que as estatísticas apontam que a cada 15 segundos uma mulher é agredida, figurando, em 70% dos casos, o marido ou atual companheiro como agressor, desenvolver mecanismos de combate e prevenção contra essa triste realidade, longe de ser uma opção, representa uma necessidade urgente?

A banalização desse tipo de violência, por conta de suas inexpressivas sanções, levou à invisibilidade o crime de maior incidência no país e o único que tem perverso efeito multiplicador. Suas sequelas, das mais variadas ordens, não se restringem à pessoa da ofendida, vão além, pois comprometem todos os membros da entidade familiar, principalmente as crianças, que terão a tendência de repetir o comportamento que vivenciaram dentro de casa?,

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explicou o desembargador Hollanda, um dos oradores da solenidade de inauguração do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

Esse fenômeno da violência contra a mulher fez com que os países mais desenvolvidos do mundo se reunissem para discutir suas causas e apontar mecanismos para coibi-la, surgindo dessas discussões a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

3) Depoimento de Maria da Penha Maia Fernandes, que dá nome à Lei Federal 11.340/2006, na II Conferência de Políticas para as Mulheres do Tocantins.

"Senti muita emoção. Porque antes da lei me sentia órfã da justiça. A minha colaboração se deu pela persistência. A Violência está relacionada à força física e à cultura, que faz com o que homem sinta-se superior à mulher. Essa vitória é de todos os movimentos sociais. Iniciei uma luta solitária, em 1983, que fui vítima de agressão, nessa época não tinha delegacia especializada da mulher, que só foi ser criada em 1985. Hoje, me sinto vitoriosa por ser mulher e por ter colaborado com essas mudanças que estão acontecendo. Hoje o comportamento de homens e mulheres precisa de outros valores. Viver sem violência é mais do que viver sem nenhum tipo de agressão. É viver com respeito e consideração. É não acreditar na superioridade masculina."

4) Estigma (poema de autoria de Andréa Motta)

Por sendas oblíqüas, violência urbana violência doméstica. Delitos, impunidade e dor, na penumbra das cidades.

Pelas esquinas, rostos anônimos, corpos lanhados pelas marcas do desamor.

Não importa a idade, classe social. Mulheres, tomadas pelo medo, têm a alma amargurada, a carne rasgada.

Nos olhares castigados, não há lágrimas nem sorrisos. Só um silencioso pedido de socorro

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entre sonhos adormecidos.

O tempo, é como sopro, leva sem remorsos, o silêncio da noite, os hematomas, as escoriações, as mãos vazias...

(não importa a identidade, o coração partido, o medo a desventura) -

E, sem sofismas, na alvorada traz a denúncia, porta à liberdade!