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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE GRADUAO EM DIREITO
Lucas Gonzaga Censi
UM ESTUDO SOBRE A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL
Florianpolis
2014
2
LUCAS GONZAGA CENSI
UM ESTUDO SOBRE A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL
Trabalho de Concluso apresentado ao Curso
de Graduao em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina, como requisito
obteno do ttulo de Bacharel em Direito
Orientadora: Prof. Dr. Jeanine Nicolazzi Philippi
Florianpolis
2014
3
Autor: Lucas Gonzaga Censi
Ttulo: Um estudo sobre a tanatopoltica neoliberal
Trabalho de Concluso apresentado ao Curso
de Graduao em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina, como requisito
obteno do ttulo de Bacharel em Direito.
Florianpolis, 11 de julho de 2013.
___________________________________________
Prof. Dr. Jeanine Nicolazzi Philippi
4
5
nonna Palma Censi,
pelas aventuras entre galinhas, patos e marrecos.
v Euclere Gonzaga,
por ter me ensinado e estimulado leitura.
O sentido que dou vida
me foi transmitido por essas duas mulheres:
imaginar, escrever, criar.
6
Preferiria no.
- Bartleby, o Escriturrio -
7
RESUMO
Esta monografia possui como objetivo investigar o significado da vida biolgica humana para
a conjuntura poltico-econmica neoliberal e discorrer sobre qual estrutura jurdica capaz de
inseri-la no ordenamento jurdico. Para isso, o primeiro captulo desenvolver estudo sobre a
teoria poltica neoliberal e abordar duas correntes tericas relevantes: as aes de Estado do
ordoliberalismo e a abordagem econmica dos comportamentos. No segundo captulo, por sua
vez, focar-se- nas categorias prprias noo de biopoder, tanto nos termos do filsofo
francs Michel Foucault quanto nas percepes de Giorgio Agamben. Nessa etapa da
investigao, tambm, sero abordadas as teses eugnicas do nacional-socialismo, bem como
se esboar os fundamentos jurdicos que caracterizaram a perseguio da pureza racial
prpria a essa ideologia. O terceiro captulo, por fim, ter por objetivo compreender a
contemporaneidade brasileira, levando em conta os conflitos militares envolvidos nas
ocupaes das favelas cariocas.
Palavras-chave: Neoliberalismo; governamentalidade; biopoder; estado de exceo; favela;
tanatopoltica.
8
SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................9
1. O NEOLIBERALISMO..............................................................................11
1.1. UMA TEORIA POLTICA DO NEOLIBERALISMO................................................11
1.2. A ABORDAGEM ECONMICA DOS COMPORTAMENTOS E A TEORIA DO
CAPITAL HUMANO...............................................................................................................18
1.3. A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL.......................................................22
2. DO POVO RAA: SOBERANIA, EXCEO E VIDA NUA............26
2.1. O BIOPODER...............................................................................................................26
2.2. O ESTADO DE EXCEO E A RELAO DE BANDO: MEDIAO ENTRE
SOBERANIA E VIDA NUA....................................................................................................29
2.3. OS DIREITOS DO CIDADO E DO HOMEM EM SUA DIMENSO
BIOPOLTICA .........................................................................................................................34
2.4. DAR FORMA RAA...............................................................................................37
2.4.1. O CAMPO COMO PARADIGMA BIOPOLTICO...................................................39
3. ESTADO DE EXCEO PERMANENTE...............................................44
3.1. A REDEMOCRATIZAO BRASILEIRA E O NEOLIBERALISMO.......................44
3.2. A FAVELA: DE SOLUO HABITACIONAL A UMA QUESTO POLICIAL........48
3.2.1. MERCADOS A QUALQUER CUSTO.........................................................................51
3.3. A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL...........................................................................57
4. CONCLUSO................................................................................................60
5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................64
8
9
INTRODUO
Em Saturno Devorando um Filho, Goya nos apresenta uma imagem
desconcertante. Nela, um homem de propores gigantes, de aspecto sujo e amedrontador,
agarra com as duas mos um corpo nu, ensanguentado e j decapitado, levando a sua boca a
parte restante do brao esquerdo de sua vtima sacrificial.
Trata-se de uma evocao da gnese do panteo helnico. Segundo a mitologia,
Saturno, tit do tempo e filho mais novo de Urano, havia conquistado o posto de senhor sobre
os demais irmos ao castrar o prprio pai e, ciente do risco de sofrer o mesmo golpe, devorava
os prprios filhos ao nascerem.
A pintura de Goya, ento, bastante condizente ao nimo do Senhor do Tempo. O
corpo magro, com o torso arqueado sobre seu filho e as pernas ajoelhadas no cho; os olhos
arregalados e desfocados, fitando um espao para fora da tela quem sabe ansiando o
observador do quadro; as mos que se fecham sobre o sacrifcio e, com seus contornos
vermelhos, causam a impresso de estarem esmagando o corpo do filho; a boca escancarada,
carente de qualquer lbio, dente ou lngua, retratada como um espao negro e vazio.
A relao entre Saturno e seu filho annimo, como se v, ambgua: ainda que
represente a total sujeio de uma vtima ao seu algoz, denuncia a compulso desesperada de
um soberano para manter sua autoridade. Para Goya, o Senhor do Tempo obedece a sua fome
com a avidez e o temor prprios queles que sabem que, devorando tudo e todos, um dia
restar-lhe- nada.
* * *
Possivelmente parecer estranho, mas, para o autor, esta monografia em Direito
tratar sobre o que foi brevemente exposto acerca da obra de Goya, pois sua principal
indagao diz respeito ao significado que a vida biolgica tem para o poder poltico e de que
forma ela capturada pelo ordenamento jurdico.
A relao entre vida e poltica foi amplamente abordada por Michel Foucault,
principalmente entre os anos de 1977 e 1981, naqueles processos descritos na passagem de
um Estado territorial para um Estado populacional e os quais empurraram a espcie
10
humana e seus indivduos ao centro das estratgias polticas para a consolidao do
capitalismo.
A relao entre vida biolgica e Direito, todavia, ainda que seja o cenrio do livro
Vigiar e Punir, no foi destacada centralmente nas anlises do terico francs, visto que seu
interesse estava mais direcionado s manifestaes capilares e menos formais das relaes de
poder. Em seus prprios termos, seria necessrio, por uma questo de mtodo [...] fazer uma
anlise ascendente do poder, [...] 1.
Diante dessa escolha metodolgica de Foucault que, para responder ao interesse
dessa pesquisa, dedicou-se ateno aos estudos de Giorgio Agamben sobre o biopoder, uma
vez que o terico italiano procura a mediao jurdica entre a vida humana e a autoridade
capaz de inscrev-la politicamente na ordem social.
O interesse do autor pelo tema desta investigao decorre do desconforto diante
das promessas das democracias contemporneas e as suas manifestaes reais na teoria do
direito e no controle social. Afinal, em que pese o longo processo de reconhecimento de
direitos e de liberdades formais - ou mesmo o desenvolvimento econmico acompanhado de
uma relativa redistribuio de renda experimentado pelo neodesenvolvimentismo no Brasil -, a
violncia militar contra parcelas significativas das populaes parece tomar contornos cada
vez mais amplos e frreos.
Nesse sentido, a resposta padro do senso comum jurdico de que os surtos de
violncia institucional no passariam de situaes pontuais no parece dar conta da realidade,
visto que a ilegalidade tornou-se um procedimento padro do prprio direito brasileiro.
Conforme se argumentar ao longo desta monografia, s possvel conceber a constncia da
antijuridicidade como uma exceo tornada regra.
O real esforo dessa investigao, portanto, reside em seu ltimo captulo, uma
vez que l est uma tentativa de aplicar as categorias de Foucault e Agamben
contemporaneidade brasileira. O resultado, como se arriscar demonstrar, obriga-nos a
considerar uma flexo na caracterizao do biopoder, principalmente em sua incidncia na
multiplicidade de viventes.
1 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, p. 27.
11
CAPTULO 1:
O NEOLIBERALISMO
1.1. UMA TEORIA POLTICA DO NEOLIBERALISMO
Existe um certo tipo de anlise recorrente a qual, algumas vezes, pretende-se
radical que, estudando o neoliberalismo, enquadra-o como um retorno economia liberal
clssica, onde o prefixo neo representaria pouco mais do que uma enfeite para os novos
tempos. Dessa maneira, no plano econmico o neoliberalismo no seria mais do que a
reativao de velhas engrenagens e teorias acerca da produo de bens; na dimenso
sociolgica, a generalizao de relaes mercantis no tecido social; no aspecto poltico, a
reduo do Estado aos interesses de mercado.
Pois bem, este trabalho no opta por essa abordagem. Entende-se, aqui, que o
neoliberalismo possui uma estrutura bastante distinta do liberalismo do sculo XVIII, vez que
parte de um projeto diferente de racionalidade governamental, ainda que tambm centrado na
relao entre Estado e mercado.
A teoria do liberalismo clssico est assentada no questionamento de como
delimitar, dentro de uma sociedade, um espao, tornando-o livre da atuao estatal. Por detrs
do princpio poltico do laissez-faire existe a hiptese de que quanto mais um indivduo seguir
o prprio interesse, maior ser o lucro conquistado, tanto para si mesmo quanto para o outro.
Ao lermos a Riqueza das Naes, podemos perceber que:
No caso de quase todas as outras raas de animais, cada indivduo, ao atingir a
maturidade, e totalmente independente e, em seu estado natural no tem necessidade
da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade
quase constante da ajuda dos semelhantes, e intil esperar esta ajuda simplesmente
da benevolncia alheia. Ele ter maior probabilidade de obter o que quer se
conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que e
vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. isto o que faz
toda pessoa que prope um negcio a outra. D-me aquilo que eu quero e voc ter
isto aqui, que voc quer - esse o significado de qualquer oferta desse tipo; e dessa
forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos servios de que
necessitamos. No da benevolncia do aougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que
esperamos nosso jantar, mas da considerao que eles tm pelo seu prprio
interesse. Dirigimo-nos no a sua humanidade, mas a sua autoestima, e nunca lhes
falamos das nossas prprias necessidades, mas das vantagens que adviro para eles.2
2 SMITH, Adam. A riqueza das Naes. Volume I. So Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 74.
12
A ironia que esse interesse individual escapa ao controle e conscincia de seu
agente, pois a vontade e a atuao de cada um est atrelada a uma contingncia de elementos
externos. Esse sujeito econmico, ento, est localizado em [...] um duplo involuntrio: o
involuntrio dos acidentes que lhe sucedem e o involuntrio do ganho que ele produz para os
outros sem que tenha pretendido.3
nesse sentido, portanto, que o deixar-fazer liga-se ao outro famoso conceito de
Adam Smith, a mo invisvel. Usualmente se interpreta essa metfora como uma causalidade
otimista no campo econmico a qual, apesar de inapreensvel aos indivduos, totalmente
transparente a um observador cuja mo invisvel tece uma trama com todos esses interesses
dispersos.4 Todavia, tal leitura soa incompleta, pois ressalta uma possibilidade de
racionalidade e de providncia dos processos econmicos, quando se esquece da necessria
ignorncia do interesse coletivo ao agente econmico. A invisibilidade desta mo
completamente indispensvel na exata medida em que impede a perseguio do bem comum.
No que tange a esses agentes, por sua vez, no apenas aos indivduos ou s
corporaes mercantis, mas aos atores polticos a mo tambm precisa ser invisvel. Em um
primeiro momento, o governo no deve regular o jogo dos interesses individuais na medida
em que o egosmo que trabalha de forma eficaz para a sociedade. Avanando alguns passos,
Smith conclui, tambm, que impossvel ao Estado desenvolver um ponto de vista total
acerca dos elementos econmicos e administr-los, justamente porque [...] para a
consumao conveniente dessa tarefa, no h nenhuma sabedoria humana e nenhum
conhecimento que baste. 5
As teses neoliberais, por sua vez, invertem essa relao. Isso , se o liberalismo
tradicional concebia o mercado como um espao indecifrvel e intocvel, a questo agora ser
exatamente a oposta, justamente porque o conceito essencial e fundador do mercado ser
alterado.
Para os tericos do liberalismo clssico, a essncia do mercado estava nas relaes
de troca, na [...] troca livre entre dois parceiros que estabelecem por sua prpria troca uma
equivalncia entre dois valores 6, e ao Estado no se prescrevia outra poltica seno, no
mximo, a superviso das liberdades das relaes mercantis e o impedimento de formao de
monoplios.
3 FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 378.
4 Ibidem, p. 379.
5 SMITH apud FOUCAULT, Ibidem, p. 395, nota 34.
6 Ibidem p. 161.
13
J para os economistas do sculo XX, o fundamento do mercado no est na troca,
mas na concorrncia, na exata medida em que esta forma de relao garante a regulao
econmica pela estabilidade dos preos, os quais, [...] na medida em que h concorrncia
plena e inteira, so capaz [sic] de medir as grandezas econmicas e, por conseguinte, regular
as escolhas.7
Todavia, os neoliberais devem ser reconhecidos por seu pragmatismo, vez
admitem que a concorrncia no um fenmeno natural, no sendo o resultado de um jogo
dos instintos ou comportamentos humanos. Isso significa dizer, portanto, que [...] a
concorrncia como lgica econmica essencial s aparecer e s produzir seus efeitos sob
certo nmero de condies cuidadosa e artificialmente preparadas. 8 Ela , por isso,
consequncia de uma srie de investimentos.
Deve-se atentar, ento, ao ponto crucial de diferenciao entre o neoliberalismo e
o liberalismo clssico: de um mercado sob vigilncia distante do Estado para um Estado sob
vigilncia estrita do mercado. 9 A concorrncia, por ser historicamente frgil e politicamente
cara aos neoliberais, exige constantes intervenes para sua permanncia. Foucault, ento,
afirma que o laissez-faire uma:
Posio ingnua aos olhos neoliberais, cujo problema no saber se h coisas em
que no se pode mexer e outras em que se tem o direito de mexer. O problema
saber como mexer. o problema da maneira de fazer, o problema, digamos, do
estilo governamental.10
Para demonstrar a natureza desse estilo governamental, o terico francs
apresenta as teses dos neoliberais alemes, cuja corrente terica ficou conhecida por
ordoliberalismo. A conjuntura de implementao dessas teses, pode-se imaginar, eram
bastante dramticas; afinal, precisava-se reconstruir um estado a partir do vcuo tico e
poltico deixado pelo nacional-socialismo. As dificuldades dessa exigncia mediam-se pela
reconverso de uma economia de guerra para uma economia de paz, reedificao de um
potencial econmico desmantelado, integrao de novos dados tecnolgicos, demogrficos e
geopolticos que garantissem a soberania nacional desde que no conduzissem ao gigantismo
governamental.
A fobia em relao ao estado, tpica das construes tericas de Ludwig Von
Mises e Friedrich Hayek, assim sendo, servia de nimo ideolgico e econmico
7 Ibidem, p. 162.
8 Ibidem, p. 164.
9 Ibidem, p. 159.
10 Ibidem, p. 184.
14
administrao da Alemanha Ocidental recm-sada da guerra. O vis da interveno de
mercado desse modelo neoliberal foi teorizado e aplicado no seio da convergncia entre o
receio do totalitarismo e a exigncia de reconstruo do estado alemo. 11
H que se
apresentar, por isso, duas formas de intervenes de governo: primeiro, sobre as duas espcies
de aes econmicas conformes; segundo, acerca da poltica social.
No que toca questo das aes econmicas conformes, tratam-se de medidas
sintetizadas em um texto pstumo de Walter Eucken chamado Grundstze der
Wirtschaftspolitik Os Fundamentos da Economia Poltica, de acordo com os ttulos
traduzidos para o portugus. Em Os Fundamentos, o economista alemo afirma que o governo
desse novo liberalismo, constantemente ativo e vigilante, deve intervir de duas maneiras: ou
atravs de aes reguladoras ou por meio de aes ordenadoras.
A primeira modalidade de atuao governamental, denominada de ao
reguladora, pode ser definida como aquela destinada a estimular as condies internas,
necessariamente econmicas, da concorrncia de mercado, levando estabilidade de preos.
Conforme leciona Foucault:
necessrio ento, diz ele [Eucken], intervir no nos mecanismos da economia de
mercado, mas nas condies do mercado. Intervir nas condies do mercado vai
significar, de acordo com o prprio rigor da ideia kantiana de regulao, identificar,
admitir e deixar agir para favorec-las e de certo modo lev-las ao limite e plenitude da sua realidade as trs tendncias que so caractersticas e fundamentais nesse mercado, a saber: tendncia reduo dos custos, tendncia reduo [das
margens] do lucro da empresa e, por fim, tendncia provisria, pontual, a aumentos
do lucro, seja por uma reduo decisiva e macia dos preos, seja por uma melhoria
da produo. So essas trs tendncias que a regulao do mercado, que a ao
reguladora deve levar em conta, na medida em que elas so as tendncias prprias da
regulao do mercado. 12
O objetivo nico de uma ao reguladora deve ser a estabilidade de preos,
entendida no como uma fixidez, mas como o controle da inflao, e h dois exemplos de
instrumentos bastante conhecidos realidade brasileira para a persecuo desse fim: a poltica
de oferta de crdito subsidiado e a reduo de impostos. Nessa receita, porm, h que se evitar
os instrumentos empregados pela planificao a saber, tabelamento de preos, subsdio a um
setor do mercado, criao sistemtica de empregos e investimento pblico na medida em
que obstruem a livre concorrncia de mercado. 13
11
Ibidem, p. 109-112. 12
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 190. 13
Ibidem, p. 191.
15
Mais interessante ao foco desse trabalho so as aes ordenadoras o segundo
grupo das aes polticas conformes propostas por Eucken , as quais podem ser definidas
como aquelas cuja funo tambm intervir nas condies do mercado, mas em permetros
mais gerais, mais estruturais em relao queles citados anteriormente. Pois no se pode
esquecer que o projeto neoliberal, declaradamente, visa sustentar o mercado enquanto
regulador econmico e social; o que no significa dizer, entretanto, que este seja reconhecido,
pelos prprios tericos liberais do sculo XX, como um fenmeno natural ou um elemento
fundante da sociedade. Com o perdo pela repetio, [...] ele [o mercado] constitui, no topo,
uma espcie de mecanismo sutil muito seguro, mas s se funcionar bem, se nada vier
perturb-lo. 14 A interveno governamental, portanto, deve garantir as condies de
existncia do mercado, isto , aquilo que os neoliberais chamam de moldura.
Em Os Fundamentos da Poltica Econmica, Eucken discorre sobre a situao da
agricultura na Alemanha e, sobre o objeto de ao poltica apto a equalizar esse ramo de
produo economia de mercado, 15
afirma:
Sem dvida, h limites para a ao da poltica econmica sobre os dados globais.
Mas cada uma delas [sic] influencivel. Mesmo o clima de um pas pode ser
influenciado pela interveno humana. A fortiori, outros fatores, como a quantidade
de populao, seus conhecimentos e aptides, etc. O maior campo de ao
oferecido pelo sexto dado, a ordem jurdica e social.16
14
Ibidem, p. 192. 15
Para explicar o conceito de moldura, o professor francs sintetiza o raciocnio de Eucken: O que uma poltica de moldura? Creio que o exemplo aparecer claramente se tomarmos um texto de Eucken, justamente
em suas Grundstze, isto , um texto de 1952, em que ele retoma o problema da agricultura, da agricultura
alem, mas, diz ele, isso vale tambm para a maioria das agriculturas europeias. Pois bem, diz ele, essas
agriculturas, no fundo, nunca foram integradas normalmente, completamente, exaustivamente economia de
mercado. Elas no o foram por causa das protees aduaneiras que, em toda a Europa, delimitaram, recortaram a
agricultura europeia, os espaos agrcolas europeus; protees aduaneiras que se tornavam indispensveis ao
mesmo tempo pelas diferenas tcnicas e, de modo geral, pela insuficincia tcnica de cada uma das agriculturas.
Diferenas e insuficincias, todas elas ligadas existncia de uma superpopulao que tornava intil e, na
verdade, indesejvel a interveno, a insero desses aperfeioamentos tcnicos. Por conseguinte, se se quiser o texto data de 1952 fazer a agricultura europeia funcionar numa economia de mercado, o que ser preciso fazer? Ser preciso agir sobre dados que no so diretamente dados econmicos, mas so dados condicionantes
para uma eventual economia de mercado. Ser preciso agir sobre o qu, portanto? No sobre os preos, no
sobre determinado setor, assegurando o apoio a esse setor pouco rentvel tudo isso so intervenes ruins. As boas intervenes vo agir sobre o qu? Pois bem, sobre a moldura. Isto , em primeiro lugar, sobre a populao.
A populao agrcola numera demais pois ento ser preciso diminu-la por meio de intervenes que possibilitem uma migrao, etc. Ser preciso intervir tambm sobre as tcnicas, pondo disposio das pessoas
certo nmero de ferramentas, pelo aperfeioamento tcnico de certo nmero de elementos relacionados aos
adubos, etc; intervir sobre a tcnica tambm pela formao de agricultores e pelo ensino que lhes ser
proporcionado, que lhes possibilitar modificar de fato as tcnicas [agrcolas]. Em terceiro lugar, modificar
tambm o regime jurdico das terras, em particular com leis sobre a herana, com leis sobre o arrendamento das
terras, tentar encontrar os meios de fazer intervir a legislao, as estruturas, a instituio de sociedades por ao
na gricultura, etc. Em quarto lugar, modificar na medida do possvel a alocao dos solos e a extenso, a
natureza e a explorao dos solos disponveis. Enfim, no limite, preciso intervir sobre o clima. Ibidem, p. 193. 16
EUCKEN apud FOUCAULT, Ibidem, p. 214, nota 42.
16
Quantidade de populao, conhecimentos, aptides, ordem jurdica e, at mesmo,
o clima: todos esses elementos so dados globais, no diretamente econmicos, os quais so
influenciveis segundo a dinmica do mercado. Para os neoliberais, no manejo das aes
ordenadoras, o raciocnio no dado o estado de coisas, qual o sistema econmico mais
adequado. Trata-se do inverso: uma vez que o processo de regulao econmico-poltico
e no pode ser seno o mercado, como alterar as bases materiais, culturais, tcnicas e
jurdicas. 17
No que toca s polticas sociais, a segunda interveno governamental
exemplificada por Foucault, pode-se conceitu-las como medidas de Estado que estabelecem
como objetivo repartir parte do acesso de cada cidado aos bens de consumo, sendo possvel
dimension-las em trs aspectos. Primeiro, tratam-se de contrapesos a processos econmicos
que, por si mesmos, induzem os efeitos de desigualdade e, de maneira geral, desarticulam a
sociedade civil. Segundo, seu o principal instrumento a transferncia de elementos de renda
e a socializao de certos bens de consumo, como sade, cultura, educao. Por fim, terceiro
aspecto, uma economia atravessada por polticas sociais admite a elevao dessa
redistribuio de riqueza conforme for maior crescimento econmico. 18
Contra esses trs aspectos as novas teorias econmicas logo lanaram dvidas e
trataram de redimension-las conforme seu projeto social. Primeiro porque uma poltica
social, para se integrar economia neoliberal, no pode lhe servir de contrapeso e no deve
ser definida como um processo de compensao. A promessa de relativa equalizao e o
acesso a certos bens de consumo no pode ser trabalhada enquanto objetivo, justamente
porque o processo de regulao econmica o mecanismo de preos deve ser dado pela
concorrncia, a qual pressupe em seu terreno o constante embate de diferenas entre os
agentes econmicos. Em um famoso adgio neoliberal, A desigualdade a mesma para
todos.
Em segundo lugar, a ferramenta da pretensa poltica social neoliberal no ser,
conforme bem se percebe, a socializao do consumo e da renda; ser, muito pelo contrrio, a
privatizao. Isto , no se convocar mais o Estado ou os demais cidados para que garantam
a qualidade de vida ou minimizem os seus riscos. Doenas, danos materiais, educao,
segurana, energia eltrica, telefonia: o mximo possvel de campos vitais sero destinados
economia para que todo indivduo com rendimentos adequados possa, seja individualmente
17
Ibidem, p. 193. 18
Ibidem, p. 195.
17
ou em sociedades de ajuda mtua, garantir-se a partir de si mesmo contra os riscos que
existem. 19
Trata-se de [...] conceder a cada um uma espcie de espao econmico dentro do
qual podem assumir e enfrentar os riscos. 20
Esses dois elementos o abandono de qualquer tentativa de equalizao e o
deslocamento de deveres sociais do Estado para a contratao de servios privados
conduzem concluso de que a nica poltica social cabvel para o neoliberalismo o
crescimento econmico. Ser ele que, por si s, permitir aos indivduos alcanar um padro
de renda que lhes d acesso propriedade privada, aos seguros individuais, capitalizao
pessoal ou familiar, com as quais podero absorver esses riscos que antes cabia ao Estado
absorver. Trata-se, nas palavras de Foucault, de uma poltica social privatizada. 21
Tudo que foi exposto, ento, permite-nos suspeitar da crena de que o
neoliberalismo significa menos governo, menos Estado. A comparao entre as aes
econmicas conformes aquelas intervenes governamentais dirigidas, direta ou
indiretamente, economia e o crescimento econmico como sinnimo nico de poltica
social demonstra a natureza do governo neoliberal. Para o professor francs:
[...] o neoliberalismo, o governo neoliberal no tem de corrigir os efeitos
destruidores do mercado sobre a sociedade. Ele no tem de constituir, de certo
modo, um contraponto ou um anteparo entre sociedade e processos econmicos. Ele
tem de intervir sobre a prpria sociedade em sua trama e em sua espessura. No
fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a
cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores
e nisso que a sua interveno vai possibilitar o que o seu objetivo: a constituio de um regulador de mercado geral da sociedade. Vai se tratar, portanto,
no de um governo econmico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas, isto
, o governo tem apenas de reconhecer e observar as leis econmicas; no um
governo econmico, um governo de sociedade. 22
Investir maciamente sobre a sociedade para garantir que o seu princpio
regulador seja a concorrncia: eis o que est em jogo para o governo neoliberal. Para
Foucault, no se est mais diante de uma sociabilizao equalizada pela dinmica dos
processos de troca de mercadorias; vive-se em uma poca [...] submetida dinmica
concorrencial. No uma sociedade de supermercado uma sociedade empresarial, 23 onde o
sujeito que se pretende constituir no o do liberalismo clssico, homem da troca ou do
consumo, mas aquele do empresariamento.
19
Ibidem, p. 197. 20
Ibidem, p. 198. 21
Ibidem, p. 199. 22
Ibidem, p. 199. 23
Ibidem, p. 201.
18
Isso quer dizer, conforme veremos ao longo desse trabalho, que o que est em
questo a constituio de uma trama social onde as unidades de base tenham exatamente a
forma de empresas. A estratgia para a manuteno do capitalismo no ter mais o seu foco
no investimento em colossais conglomerados nacionais ou internacionais, e tampouco
apostar em empresas estatais. No se est simplesmente na sociedade regida pela
uniformidade, na sociedade de massa, na sociedade de consumo, na sociedade de
mercadorias, na sociedade do espetculo, na sociedade dos simulacros. O atual
multiculturalismo capitalista24
conjuga todas essas formas em uma equao cujo resultado,
prega-se, o fim das ideologias. 25
O tempo presente, enfim, o de uma sociedade indexada concorrncia de
mercado generalizada, a qual promete aos homens multiplicidade e singularizao, porm sem
avis-los de que so essas as condies de seu assujeitamento.
1.2. A ABORDAGEM ECONMICA DOS COMPORTAMENTOS E A TEORIA DO
CAPITAL HUMANO
Buscou-se enfatizar nas pginas recentes que o neoliberalismo, ao focar na
concorrncia uma matriz reguladora da sociedade, desconstri a necessidade do laissez-faire
de Adam Smith. Longe de exigir inatividade do Estado, essa corrente poltica prev um
constante governo daqueles fatores de moldura, daqueles elementos no-econmicos que
garantam as condies apropriadas concorrncia nas mais diversas tramas sociais.
Por certo que a corrente neoliberal americana tambm se debruou em aspectos
macroeconmicos capazes de erguer esse novo capitalismo; todavia, pode-se perceber em
alguns de seus tericos como Becker, Schultz e Robbins uma abordagem das relaes
sociais capaz de conduzir o projeto de novo liberalismo a uma radical capilaridade por dentro
das relaes individuais. Tal qual Foucault afirma, trata-se de uma maneira pela qual os
neoliberais americanos utilizam a economia de mercado e as anlises que lhe so
caractersticas para compreender relaes no mercantis, vulgarmente chamadas de sociais. 26
24
Sobre esse tema, bastante interessante a leitura de Condio Ps-Moderna, de David Harvey. 25
ANDERSON, Perry. Balano do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Ps-
neoliberalismo: as polticas sociais e o Estado democrtico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 09-23. 26
Ibidem, p. 329.
19
E essa anlise econmica de objetos no econmicos anunciada de forma nem
um pouco tmida. Em A Abordagem Econmica dos Comportamentos Humanos, 27
Gary
Becker categrico:
Na realidade, eu cheguei concluso de que a economia to abrangente que
aplicvel a todo o comportamento humano, seja ele um comportamento envolvendo
preos de dinheiro ou custos de oportunidade imputados, decises repetidas ou
pouco freqentes, decises grandes ou pequenas, fins emocionais ou mecnicos,
pessoas ricas ou pobres, homens ou mulheres, adultos ou crianas, pessoas
brilhantes ou estpidas, pacientes ou terapeutas, empresrios ou polticos,
professores ou alunos. 28
O autor americano admite que, para chegar a essa concluso alargada,
necessrio admitir um conceito tambm alargado de economia. Assim, so apresentadas trs
definies: (1) a alocao de bens materiais para a satisfao de demandas materiais; (2) o
setor de mercado; e (3) a alocao de recursos escassos para a satisfao de fins concorrentes,
alternativos.
A primeira hiptese, para o economista, muito estreita e pouco satisfatria, uma
vez que no visualiza o mercado de bens imateriais. A ltima delimitao lhe , por sua vez, a
mais apropriada, pois aborda a cincia econmica pela natureza do problema a ser
solucionado a limitao de bens e por ser a mais abrangente de todas. 29
Dessa forma, a anlise econmica possui como ponto de partida e como referncia
geral o estudo da maneira pela qual os indivduos promovem suas escolhas, alocando recursos
escassos para a satisfao de fins alternativos. No se trata, portanto, de compreender um
determinado processo de produo de riqueza; economia dada a tarefa de investigao
[...] da anlise da racionalidade interna, da programao estratgica da atividade dos
indivduos. 30
De acordo com a hiptese de Becker, a conduta humana parte de dois
pressupostos simples. O primeiro o reconhecimento de que todo o comportamento busca a
maximizao de seu resultado, sempre buscando valer-se de uma relao ideal de eficincia
entre o custo e o objetivo almejado. O segundo pressuposto de que os preos e outros
instrumentos de mercado determinam a disponibilidade dos recursos escassos dentro de uma
27
Nessa monografia se est trabalhando com a edio original, em ingls, cujo ttulo The Economic Approach
to Human Behavior. Todas as citaes apresentadas so tradues livres dessa obra. 28
BECKER, Gary Stanley. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The Universtity of Chicago
Press, p. 8. 29
Ibidem, p. 4. 30
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 307.
20
sociedade, razo pela qual constrangem os desejos e coordenam as aes dos agentes
econmicos, tal qual as [...] funes designadas estrutura nas teorias sociolgicas. 31
Quando aplicada ao conceito de trabalho, essa anlise econmica trouxe mais uma
importante distncia entre as teorias neoliberais e os postulados do liberalismo clssico.
importante ter em mente que para a economia poltica clssica, a qual se assenta
majoritariamente nos estudos de Ricardo, o trabalho sempre foi definido de maneira
quantitativa e segundo a varivel temporal; 32
contudo, se considerar-se, tal qual os
neoliberais, que a tarefa da economia analisar a estratgia e raciocnio dos indivduos na
alocao de recursos escassos para a satisfao de fins alternativos, ento se deve
compreender o trabalho a partir do ponto de vista de quem trabalha.
O trabalhador no ser encarado, portanto, conforme um objeto de oferta e
procura pela sua fora de trabalho; para os neoliberais, o trabalhador ser um sujeito
econmico ativo, o que implica dizer que seu salrio no lhe representa o preo de venda da
sua mo de obra: , to somente, uma renda. Resgatando o conceito de Irving Fisher, 33
se por
renda entende-se o produto ou rendimento de um capital, percebe-se que o salrio ser
rendimento de um patrimnio representado pelo [...] conjunto de todos os fatores fsicos e
psicolgicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele trabalho. 34
A decomposio do trabalho em capital e renda reflete uma consequncia
importante dentro da ordem de governo neoliberal, pois, sendo definido como o somatrio de
elementos que habilitam algum a um determinado salrio, trata-se de um [...] capital
humano na medida em que, justamente, a competncia-mquina de que ele renda no pode
ser dissociada do indivduo humano que seu portador. 35 Dessa maneira, estar dentro dos
clculos do trabalhador agregar aptides e competncias sobre si prprio, de modo que possa
elevar seus rendimentos sobre o patrimnio que constitui o seu corpo, a sua intelectualidade e
as suas emoes.
Na compreenso de Theodore Schultz, advogando pela teoria do capital humano:
Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, no pela difuso da propriedade
das aes da empresa, como o folclore colocaria em questo, mas pela aquisio de
conhecimentos e de capacidades que possuem valor econmico. Esse conhecimento
31
BECKER, Gary Stanley. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The Universtity of Chicago
Press, p. 5. 32
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 303. 33
Irving Fisher (1867-1947) foi um economista, professor da Universidade de Yale, cuja produo acadmica
inaugurou o pensamento econmico conhecido por monetarismo. 34
Ibidem, p. 308. 35
Ibidem, p. 312.
21
e essa capacidade so em grande parte o produto de investimento e, combinados
com outros investimentos humanos, so responsveis predominantemente pela
superioridade produtiva dos pases tecnicamente avanados. 36
Nesse sentido, essa categoria de investimento tambm entraria nos lares e nas
fases mais imaturas do ser humano:
Uma classe particular de capital humano, consistente do capital configurado na criana, pode ser a chave de uma teoria econmica da populao. A formao do capital configurado na criana pelo lar, pelo marido e pela mulher comearia com a criao dos filhos e prosseguiria ao longo de sua educao por todo o perodo da
infncia. Uma abordagem de investimento relativamente ao crescimento da
populao acha-se, atualmente, trilhando um novo caminho. 37
H a possibilidade de se falar, tambm, dos cuidados mdicos e higinicos, [...]
que aparecem assim como elementos a partir dos quais o capital humano poder primeiro ser
melhorado, segundo ser conservado e utilizado pelo maior tempo possvel. 38 Schultz
tambm menciona a questo, vez que as atividades sanitrias implicam em consequncias
quantitativas e qualitativas, apontando, tambm, que a alimentao adicional possui carter de
bem produtor, principalmente nos pases subdesenvolvidos. 39
Trata-se de uma complementao bastante interessante teoria neoliberal alem e,
ironicamente, em um movimento inverso. Se as exposies de Eucken partem da
macroeconomia em direo disperso de unidades de base formatadas em empresas, as
teses americanas iniciam-se em comportamentos individuais para reverberar em polticas
governamentais estruturais baseadas em uma teoria econmica da populao, conforme
a citao de Schultz.
Isso permite reiterar a hiptese de que o neoliberalismo no sinnimo de menos
governo; na verdade, sequer libertrio em suas teorias.
36
SCHULTZ, Theodore. O capital humano Investimentos em educao e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 35. 37
Ibidem, p. 9. 38
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 316. 39
SCHULTZ, Theodore. O capital humano Investimentos em educao e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 43.
22
1.3. A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL
Na primeira seo deste captulo, buscou-se demonstrar a teoria macroeconmica
bsica do neoliberalismo: a necessidade de atuao do Estado na sociedade, tendo em vista o
seu objetivo de ressaltar uma regulao social baseada na concorrncia, vez que ela seria o
elemento fundamental economia e regulao de preos. Para Foucault, tal poltica teria
como consequncia, portanto, a formatao de uma sociedade de sujeitos no da troca, mas do
empresariamento.
Posteriormente, quando se mencionou as teses americanas que utilizam a
economia de mercado e os saberes que lhe so prprios para explicar condutas e prticas
sociais genricas, ficou demonstrada a reformulao do conceito de trabalhador.
Considerando-o um agente econmico ativo, os neoliberais americanos afirmam a inerente
capacidade subjetiva de investir sobre si mesmo elementos que lhe gerem mais renda. Todo o
indivduo , segundo essa corrente terica, empresrio de si.
Ora, pode-se perceber que tais teorias se complementam. Ao mencionar medidas
governamentais que interfiram na moldura do mercado, Eucken cita como exemplo a [...]
quantidade de populao, seus conhecimentos e aptides, etc., 40 ou seja, h instrumentos
pelos quais o Estado gerencia as massas de indivduos no intuito de alcanar determinado fim.
Em um nvel individual, por sua vez, as teses comportamentais americanas compreendem a
vida enquanto uma competncia-mquina geradora de renda, a qual no pode ser dissociada
do humano que seu portador. 41
Conclui-se, portanto, que a vida um recurso administrvel, porm esse no um
fato novo, criado por uma teoria poltica neoliberal; trata-se, na verdade, do cerne da poltica
ocidental desde o incio da modernidade. Valendo-se da obra datada de 1555, O Espelho
Poltico Contendo Diversas Maneiras de Governar, de Guillaume de La Perrire, Foucault
define como governo [...] a correta disposio das coisas, das quais [sic] algum se encarrega
para conduzi-las a um fim adequado, 42 sendo que:
[...] aquilo a que o governo se refere no , portanto, o territrio, mas uma espcie de
complexo constitudo pelos homens e pelas coisas. Quer dizer tambm que essas
coisas de que o governo deve se encarregar, diz La Perrire, so os homens, mas em
suas relaes, em seus vnculos, em suas imbricaes com essas coisas que so as
40
Ibidem, p. 214, nota 42. 41
Ibidem, p. 312. 42
FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 127.
23
riquezas, os recursos, os meios de subsistncia, o territrio, claro, em suas
fronteiras, com suas qualidades, seu clima, sua sequido, sua fecundidade. So os
homens em suas relaes com estas outras [sic] coisas que so os costumes, os
hbitos, as maneiras de fazer ou de pensar. E, enfim, so os homens em suas
relaes com estas outras coisas que podem ser os acidentes ou as calamidades como
a fome, as epidemias, a morte.43
Esse complexo constitudo pelos homens e pelas coisas precisamente o conceito
de populao, a qual deve ser percebida como finalidade e instrumento de governo, e no
como mera demonstrao de fora da nao. Finalidade de governo na medida em que
melhorar o destino da populao o prprio objetivo da governamentalidade. 44
E
instrumento de governo justamente porque a obteno dessa finalidade dar-se- atravs de
instrumentos dirigidos direta ou indiretamente populao: campanhas de natalidade,
controle dos fluxos migratrios, vigilncia sobre a higiene, novos projetos urbansticos,
instrumentos de seguridade social.
Reafirmando, a populao dotada de interesses, anseios e aspiraes, mas, ao
mesmo tempo, um objeto manejvel:
[Ela aparece] como consciente, diante do governo, do que ela quer, e tambm
inconsciente do que a fazem fazer. O interesse como conscincia de um dos
indivduos que constitui a populao e o interesse como interesse da populao,
quaisquer que sejam os interesses e as aspiraes individuais que a compem, isso
que vai ser, em seu equvoco, o alvo e o instrumento fundamental do governo das
populaes. 45
A conduo dessa massa de homens, conforme razovel suspeitar, no se d ao
acaso e espera-se ter demonstrado isso pelas construes tericas apresentadas nas duas
sees anteriores desta monografia. Pois, no que tange ao projeto neoliberal, definiu-se que
sua principal poltica de sociedade a abertura de espaos, no interior da trama social, para os
mecanismos de concorrncia de mercado, sendo tal processo desencadeado pela generalizao
da forma empresa. Dessa maneira, pode-se definir uma governamentalidade neoliberal a
partir de duas instncias.
A primeira diz respeito configurao de uma grade de racionalidade interna
governamentalidade neoliberal a qual [...] deve permitir testar a ao governamental, aferir
43
Ibidem, p. 128-129. 44
No sentido dessa compreenso da populao enquanto finalidade do governo, interessante a afirmao de
Rousseau: Qual o fim da sociedade poltica? A conservao e prosperidade de seus membros; e qual o sinal mais seguro de que eles conservam e prosperam? Seu nmero e populao. No busqueis noutra parte to
disputado sinal. Propores observadas, o governo sob o qual, sem meios estranhos, sem naturalizao, sem
colnias, os cidados multiplicam e povoam mais, infalivelmente o melhor; aquele, onde o povo diminuiu e se
arruna o pior. Calculadores, agora vos pertence contar, medir, comparar. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social - ou Princpios do Direito Poltico. So Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p. 79. 45
FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 140.
24
sua validade, deve permitir objetar atividade do poder pblico seus abusos, seus excessos,
suas inutilidades, seus gastos pletricos. 46 Trata-se de formar uma matriz de inteligibilidade
capaz de ponderar a utilidade e a eficincia das aes de Estado, precisamente nos termos do
jogo de oferta e demanda, nas condies de eficcia quanto aos dados desse jogo, nas
dimenses dos custos implicados por essa interveno do poder pblico no campo do
mercado. A crtica dirigida governamentalidade, importante ressaltar, no tem sua origem na
poltica ou no direito:
uma espcie de tribunal econmico permanente em face do governo. Enquanto o
sculo XIX havia procurado estabelecer, em face e contra a exorbitncia da ao
governamental, uma espcie de jurisdio administrativa que permitisse aferir a ao
do poder pblico em termos de direito, temos aqui uma espcie de tribunal
econmico que pretende aferir a ao do governo em termos estritamente de
economia e de mercado. 47
A segunda instncia de definio da governamentalidade neoliberal, por sua vez,
trata da constituio do sujeito e da sua subjetividade. Ainda que se tenha dito que o intuito da
governamentalidade seja melhorar o destino da populao, por bvio que h um interesse
subjacente nessa melhoria, pois a cada sujeito est ligada uma corporeidade, a qual est
implicada a sua utilizao econmica. O corpo investido por relaes de poder e dominao,
em larga medida, por conta de sua fora de produo, que s possvel explorar mediante
processos de sujeio, nos quais, muitas das vezes, as prprias necessidades vitais so
utilizadas como um instrumento poltico. Por isso, o corpo s se torna fora til se , ao
mesmo tempo, produtivo e submisso. 48
nesse sentido que Foucault recomenda certa cautela:
Mas no devemos nos enganar: a alma, iluso dos telogos, no foi substituda por
um homem real, objeto de saber, de reflexo filosfica ou interveno tcnica. O
homem de que nos falam e que nos convidam a liberar j em si mesmo o efeito de
uma sujeio bem mais profunda do que ele. Uma alma o habita e o leva existncia, que ela mesma uma pea no domnio exercido pelo poder sobre o
corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia poltica; a alma, priso do
corpo. 49
Pelas caractersticas dos objetos que a determinam, a governamentalidade
neoliberal possui a especificidade de articular os mecanismos de subjetivao atravs da
inteligibilidade prpria s teorias econmicas. Conforme se trabalhou acerca da teoria
econmica dos comportamentos humanos, viu-se que as dinmicas da subjetividade so
46
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 338 47
Ibidem, p. 339. 48
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Nascimento da Priso. Petrpolis: Editora Vozes, 1997, p. 29. 49
Ibidem, p. 32.
25
compreendidas atravs do raciocnio da alocao de recursos escassos a finalidade
alternativas; nesse sentido, seres humanos so assimilados na forma de empresas de si.
Assim sendo, o espao de vivncia dessa multiplicidade deve ser modulado ao mximo na
estrutura do mercado, pois esse o meio no qual as relaes se medeiam pelas regras da
concorrncia. Desta maneira, os mecanismos de anlise e interferncia social so oriundos das
variveis probabilsticas prprias s teorias econmicas: dficit, nvel de salrios, nvel de
desemprego, nvel de atividade econmica, rendimento per capita, juros mdios, taxas de
cmbio, inflao geral e setorial de preos, balana comercial, taxa concorrencial.
Ainda que sua genealogia remonte modernidade e esteja revestida de um
discurso sofisticadamente atual, a governamentalidade do neoliberalismo rearticula uma srie
de tecnologias de poder. Pela radicalidade com que reescreve o exerccio da soberania e pela
acuidade com que operacionaliza o biopoder, esses sero os temas de estudo do prximo
captulo.
26
CAPTULO 2:
DO POVO RAA: SOBERANIA, EXCEO E VIDA NUA
2.1. O BIOPODER
Conforme j se mencionou brevemente, o fato de a populao ser abordada como
recurso administrvel tanto por tericos neoliberais quanto por pensadores do sculo XVI traz
a suspeita de que a governamentalidade uma estratgia de poder bastante consolidada, pelo
menos nos Estados ocidentais. Ao objetivo de conduo dos homens em um dado territrio,
nesse sentido, foi fundamental a rearticulao de instituies e saberes ao longo da
modernidade. 50
Para Foucault, o desenvolvimento do capitalismo industrial s foi possvel atravs
da insero controlada dos corpos humanos nos aparelhos de produo, ensejando um
equilbrio entre os fenmenos populacionais e os processos econmicos. A ateno
despendida ao corpo exigiu a mais diversa gama de tticas e investimentos, sendo que:
[...] foi-lhe necessrio o crescimento tanto de seu reforo quanto de sua
utilizabilidade [sic] e sua docilidade; foram-lhe necessrios mtodos de poder
capazes de majorar as foras, as aptides, a vida em geral, sem por isto torn-las
mais difceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado,
como instituies de poder, garantiu a manuteno das relaes de produo, os
rudimentos de antomo e de bio-poltica, inventados no sculo XVIII como tcnicas
de poder presentes em todos os nveis do corpo social e utilizadas por instituies
bem diversas (a famlia, o Exrcito, a escola, a polcia, a medicina individual ou a
administrao das coletividades), agiram no nvel dos processos econmicos, do seu
desenrolar, das foras que esto em ao em tais processos e os sustentam;
operaram, tambm, como fatores de segregao e de hierarquizao social, agindo
sobre as foras respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relaes de
dominao e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulao dos homens do
capital, a articulao do crescimento de grupos humanos expanso das foras
produtivas e a repartio diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possveis
pelo exerccio do bio-poder com suas formas e procedimentos mltiplos. O
investimento sobre o corpo vivo, sua valorizao e a gesto distributiva de suas
foras foram indispensveis naquele momento. 51
Essa captura da vida humana pelo poder poltico foi categorizada pelo terico
francs como biopoder e se trata de um acrscimo significativo ao exerccio da soberania,
50
FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 142. 51
FOUCAULT, Michel. A Histria da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988,
p. 153-154.
27
pois ultrapassa o seu direito tpico, a saber, a deciso sobre a vida e a morte dos sditos. Nos
termos da teoria poltica clssica possvel dizer que, em relao ao poder do soberano, no
se plenamente vivo nem plenamente morto, uma vez que [...] simplesmente por causa do
soberano que o sdito tem direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar
morto. 52 De forma mais incisiva, contudo, importante perceber que a real essncia desse
poder reside na execuo capital do sdito. O direito de julgar morte o que separa o
soberano de outras autoridades estabelecidas. Por consequncia, somente se est vivo porque
ainda no se foi morto pela ordem poltica; nesse sistema, viver fruto de uma omisso do
exerccio da soberania. S se vive porque assim se deixou e s se morre porque assim foi feito.
A soberania clssica pode ser definida pelo adgio deixar viver ou fazer morrer.
De modo inverso, com a captura da vida pelo exerccio do poder poltico, a
frmula clssica da soberania ser alterada, pois lhe caber, agora, gerir as potncias vitais das
massas humanas e, no por acaso, o desenvolvimento do biopoder acaba por restringir a
aplicao da pena de morte. 53
Dessa forma, por ter como novo fundamento a obrigao de
conservar, proteger, reforar, multiplicar e ordenar a vida, a soberania moderna ser definida
como um poder de fazer viver ou deixar morrer.
Essa transformao, como de se esperar, no se deu repentinamente e, pelo
menos no campo das tecnologias de poder, possvel observar duas formas especficas de se
lidar com o corpo. A primeira modalidade de manifestao do biopoder atinge considervel
desenvolvimento no final do sculo XVII 54
e caracterizada por um regime de constante
esquadrinhamento do corpo em sua individualidade atravs de procedimentos dirigidos ao
controle do espao, do movimento e do tempo. Trata-se de um regime disciplinar que se
centrou no corpo tratando-o como uma mquina, o qual pode ter suas dinmicas controladas,
suas aptides ampliadas, suas foras estorcidas, sua utilidade e docilidade paralelamente
fomentadas, sua existncia integrada ao modo de produo de riquezas. 55
Essa poltica anatmica do corpo humano teve como espaos de aplicao as
escolas, os hospitais, os locais de trabalho especialmente as fbricas , as academias
militares, os crceres; enfim, de forma mais abrangente, todo espao fechado que, gestando
indivduos hierarquicamente, permitisse sua repartio, sua observao e sua identificao. O
modelo ideal dessa organizao disciplinar foi proposto pela arquitetura benthaminiana do
52
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 202. 53
FOUCAULT, Michel. A Histria da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988,
p. 150. 54
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 203. 55
Ibidem, p. 151.
28
Panptico, o qual se caracteriza por um anel perifrico dividido em celas incomunicveis
entre si, porm expostas s sesses exterior e interior; no centro desse anel, uma torre cuja
altura permite a uma autoridade vigiar cada sujeito trancafiado sem, no entanto, ser exposta.
Nos termos de Foucault:
Da o efeito mais importante do Panptico: induzir no detento um estado consciente
e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automtico do poder.
Fazer com que a vigilncia seja permanente em seus efeitos, mesmo se
descontnua em sua ao; que a perfeio do poder tenda a tornar intil a atualidade
de seu exerccio; que esse aparelho arquitetural seja uma mquina de criar e
sustentar uma relao de poder independente daquele que o exerce: enfim, que os
detentos se encontrem presos numa situao de poder de que eles mesmo so os
portadores. Para isso, ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro
seja observado sem cessar por um vigia; muito pouco, pois o essencial que ele se
saiba vigiado; excessivo, porque ele no tem necessidade de s-lo efetivamente. Por
isso Bentham colocou como princpio de que o poder devia ser visvel e
inverificvel. 56
A segunda forma de exerccio do biopoder, por sua vez, surge na segunda metade
do sculo XVIII. Sem excluir a tcnica disciplinar, trata-se de uma tcnica que a integra e a
refora ainda mais nas esferas capilares da sociedade atravs de operaes dirigidas em uma
escala geral. Ela no se dirige ao homem-corpo, mas ao homem-espcie; para o filsofo
francs, essa biopoltica:
[...] se dirige multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se resumem
em corpos, mas na medida em que ela forma, com contrrio, uma massa global,
afetada por processos de conjunto que so prprios da vida, que so processos como
o nascimento, a morte, a produo, a doena, etc. Logo, depois de uma primeira
tomada do poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualizao,
temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, no individualizante, mas
que massificante. 57
Os alvos de controle da biopoltica, como se v, so diversos dos da disciplina.
Por meio das medies estatsticas, das estimativas demogrficas, dos clculos de pirmide
etria, o campo de interveno desse poder o conjunto de eventos humanos e coletivos, os
quais alguns so universais e outros so acidentais; observados no homem indivduo, so
aleatrios e imprevisveis, mas, tomados no plano coletivo, so constantes de fcil
constatao. 58
Para ilustrar o foco da biopoltica, pode-se perceber que a morbidade, a partir
do sculo XVIII, no encarada unicamente pelos surtos de epidemias caractersticos da
Idade Mdia; medida que a medicina social comeou a controlar os tempos de morte
56
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Nascimento da Priso. Petrpolis: Editora Vozes, 1997, p. 191. 57
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 204. 58
Ibidem, p. 206.
29
iminente, o governo viu-se capaz de considerar as endemias, ou seja, aquelas doenas que
constantemente se alojavam em uma populao, porm sem a fora para matar seus
indivduos. No mais como sinnimo de morte, a doena ser atacada por ser um evento
permanente de [...] subtrao das foras, diminuio do tempo de trabalho, baixa de energias,
custos econmicos, tanto por causa da produo no realizada quanto dos tratamentos que
podem custar. 59
A funo desse aparato globalizante de biopoder, por sua vez, reside na previso
dos fenmenos ligados vida e na interveno sobre as determinaes desses fenmenos
gerais espcie. Trata-se, ento, de desenvolver instrumentos reguladores que fixem um
equilbrio, que determinem uma curva mdia, que assegurem compensaes; trata-se, enfim,
de instalar e aperfeioar dispositivos de previdncia em torno do aleatrio que inerente a
uma populao humana com o objetivo de otimizar um estado de vida. 60
Em linhas gerais, essa a abordagem de Michel Foucault sobre a transmutao da
frmula da soberania poltica. No mais um julgamento de vida e morte sobre o sdito, o
poder soberano irradiar seus efeitos atravs da manuteno e da conduo das vidas que
compem a nao.
Nas prximas pginas, porm, seremos obrigados explorar um campo que
desnuda a limitao do estudo foucaultiano sobre o biopoder. Ironicamente, isso no implica
na desconstruo da hiptese at aqui sustentada; pelo contrrio, retomaremos o conceito de
soberania em sua concepo radical para demonstrar que o biopoder uma forma que
antecede modernidade.
2.2. O ESTADO DE EXCEO E A RELAO DE BANDO: MEDIAO ENTRE
SOBERANIA E VIDA NUA
Em que pese ter abordado constantemente o direito, Foucault empreendeu tal
tarefa nos campos concretos das relaes de poder, buscando ao mximo esquivar-se da
anlise tradicional baseada em modelos jurdico-institucionais. Em seus prprios termos, o
professor francs afirma:
59
Ibidem, p. 205. 60
Ibidem, p. 207.
30
O sistema do direito e o campo judicirio so o veculo permanente de relaes de
dominao, de tcnicas de sujeio polimorfas. O direito, preciso examin-lo, creio
eu, no sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos
procedimentos de sujeio que ele pe em prtica. Logo, a questo, para mim,
curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da
obedincia dos indivduos submetidos a essa soberania, e fazer que aparea, no lugar
da soberania e da obedincia, o problema da dominao e da sujeio. Assim sendo,
era necessrio certo nmero de precaues de mtodo para procurar seguir essa
linha, que tentava curto-circuitar a linha geral da anlise jurdica ou desviar dela.61
no ponto cego da pesquisa de Foucault, na convergncia entre o biopoder e a
soberania, que Giorgio Agamben dedica seu esforo intelectual. Dessa forma, a inquietao
do autor italiano pode ser definida como [...] qual o ponto em que a servido voluntria dos
indivduos comunica com o poder objetivo? 62
Para Agamben, fundando-se na elaborao terica de Carl Schimitt, a soberania
produz um paradoxo: na medida em que o ordenamento jurdico reconhece no soberano o
poder de proclamar o estado de exceo e de suspender o direito, o soberano est, ao mesmo
tempo, dentro e fora do ordenamento jurdico; [...] o soberano, tendo o poder legal de
suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. 63
A justificativa para tal suspenso reside no fato de que uma norma de direito no
possui sua aplicao contida em si, vez que, sendo geral, apenas manifesta um determinado
sentido a casos particulares; dessa maneira, depende de uma situao de estabilidade das
relaes da vida qual possa ser aplicada a sua regulamentao. Citando Schmitt, Agamben
destaca que:
Esta normalidade de fato no um simples pressuposto que o jurista pode ignorar;
ela diz respeito, alis, diretamente sua eficcia imanente. No existe nenhuma
norma que seja aplicvel ao caos. Primeiro se deve estabelecer a ordem: s ento faz
sentido o ordenamento jurdico. preciso criar uma situao normal, e soberano
aquele que decide de modo definitivo se este estado de normalidade reina de fato.
Todo direito direito aplicvel a uma situao. O soberano cria e garante a situao como um todo na sua integridade. Ele tem o monoplio da deciso ltima.
Nisto reside a essncia da soberania estatal, que, portanto, no deve ser propriamente
definida como monoplio da sano ou do poder, mas como monoplio da deciso,
onde o termo deciso usado em um sentido geral que deve ser ainda desenvolvido. 64
61
Ibidem, p. 24. 62
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010,
2 edio, p. 13. 63
Ibidem, p. 22. 64
SCHMITT, apud AGAMBEN, ibidem, p. 23.
31
Essa suspenso da lei criada, como se depreende do texto de Schmitt, um
dispositivo que responde possibilidade de caos, o qual ofende diretamente eficcia
imanente da norma na medida em que retira a sua base de incidncia. A possibilidade de
instaurao do estado de exceo, por essa razo, uma medida inerente ao Estado de Direito,
uma vez que nele a lei inafastvel; trata-se de uma situao peculiar de excluso, onde a
norma tem seu contedo neutralizado pelo soberano justamente como forma de garantir a sua
vigncia: suspendido o seu contedo, mantm-se garantida a sua existncia. O estado de
exceo , por isso, a dramtica criao de uma situao de normatizao efetiva do real, 65
onde um ato revestido de pura fora de lei busca materializar um comando cuja referncia foi
suspensa: 66
A afirmao segundo a qual a regra vive somente da exceo deve ser tomada, portanto, ao p da letra. O direito no possui outra vida alm daquele que consegue
capturar dentro de si atravs da excluso inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e,
sem ela, letra morta. Neste sentido verdadeiramente o direito no possui por si nenhuma existncia, mas o seu ser a prpria vida dos homens. A deciso soberana traa e de tanto em tanto renova esse limiar de indiferena entre o externo e o
interno, excluso e incluso, nmos e phsis, em que a vida originariamente
excepcionada no direito. 67
O plano de existncia cercado pela exceo possui a particular caracterstica de
no ser definido nem como uma situao de fato e nem como uma situao de direito, pois
precisamente a instituio do limiar de indiferena entre estas. A exceo soberana no tem
por finalidade controlar ou neutralizar o excesso; somente atravs da amlgama entre
faticidade e juridicidade consegue definir o espao no qual o sistema jurdico-poltico resgata
a sua aplicao realidade. 68
Dessa forma, se a exceo o fundamento do poder soberano,
ento a soberania no uma categoria exclusivamente poltica, nem um conceito jurdico,
nem uma potncia fora do direito, nem uma norma suprema do ordenamento jurdico: ela
um instituto originrio no qual o direito se vincula existncia e a internaliza atravs de sua
prpria derrogao. 69
Por isso, viver sob a sombra de uma lei sem significado no pode representar
outra condio seno o mesmo que estar abandonado ao limiar entre o no pertencimento e a
65
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. So Paulo: Boitempo Editorial, 2 edio, 2008, p. 58. 66
O estado de exceo um espao anmico onde o que est em jogo uma fora de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: fora de lei). Ibidem, p. 61. 67
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010,
2 edio, p. 34. 68
Ibidem, p. 25. 69
Ibidem, p. 35.
32
pertena, entre a liberdade da prpria sorte e a exposio potncia total da norma. A relao
do bando, figura do antigo direito germnico a qual representava tanto o comando do lder
quanto a excluso da comunidade, faz ressoar atravs da soberania essa ambiguidade: uma
vida completa merc tanto da excluso quanto da captura da lei. 70
Tal existncia, para Agamben, encontrada em um instituto do direito romano
arcaico no qual o carter do sagrado ligado a uma vida humana. Resgatando o verbete homo
sacer do compndio Sobre o Significado das Palavras escrito pelo gramtico Sexto Pompeu
Festo, l-se o seguinte:
Homem sacro , portanto, aquele que o povo julgou por um delito; no lcito
sacrific-lo, mas quem o mata no ser condenado por homicdio; na verdade, na
primeira lei tribuncia se adverte que se algum matar aquele que por plebescito sacro, no ser considerado homicida. Disso advm que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado de sacro.
71
Sem dvida, o homo sacer uma figura enigmtica. Ainda que julgado pelo povo
pelo cometimento de um delito, no permitido imputar-lhe uma pena; 72
mesmo eleito como
sagrado, no h condenao contra qualquer um que o matar. A sacralidade, portanto, era o
assujeitamento a uma dupla exceo: tanto uma vida no punvel pelas regras de direito
quanto uma vida no protegida contra o homicdio de seus pares. Ao mesmo tempo, o homo
sacer capturado pela norma na justa medida em que a prpria lei afirma no lhe ser
aplicvel. 73
H, por sua vez, outra condio de existncia em Roma bastante significativa, pois
o vitae necisque potestas o direito de vida e de morte, usualmente confundido como
originrio do poder soberano , ao designar o incondicional poder de morte do pater familias
sobre os filhos homens, tambm ilustra a incluso da vida humana na comunidade atravs da
sua excluso ao amparo da lei. essencial considerar:
Que este poder absoluto e no concebido nem como a sano de uma culpa nem
com a expresso do mais geral poder que compete ao pater enquanto chefe da
domus: ele irrompe imediatamente e unicamente da relao pai-filho (no instante em
70
Ibidem, p. 35. 71
Ibidem, p. 186. Na verso em latim, original: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque faz este um immolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur si quis eum , qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit. Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appelari solet. Ibidem, p. 74. 72
As formas mais antigas de execuo capital de que temos notcia (a terrvel poena cullei, na qual o condenado, com a cabea coberta por uma pele de lobo, era encerrado em um saco com serpentes, um co e um
galo, e jogado ngua; ou a defenestrao Rupe Tarpea) so, na realidade, antes ritos de purificao que penas de
morte no sentido moderno: [...] Ibidem, p. 83. 73
Ibidem, p. 84.
33
que o pai reconhece o filho varo alando-o do solo adquire sobre ele o poder de
vida e de morte) e no deve, por isso, ser confundido com o poder de matar que pode
competir a marido ou ao pai sobre a mulher ou sobre a filha surpreendidas em
flagrante adultrio, e ainda menos com o poder do dominus sobre seus servos.
Enquanto estes poderes concernem ambos jurisdio do chefe de famlia e
permanecem, portanto, de algum modo no mbito da domus, a vitae necisque
potestas investe ao nascer todo cidado varo livre e parece assim definir o prprio
modelo do poder poltico em geral. No a simples vida natural [das mulheres, dos
servos], mas a vida exposta morte (a vida nua ou a vida sacra) o elemento
poltico originrio. 74
Toda essa exposio sobre a vida nua reitera a estrutura de incluso atravs da
excluso, e supera a mera analogia com a forma da soberania. Soberano e vida nua so
categorias necessariamente conexas na medida em que a primeira quem decide sobre o
estado de exceo e a segunda criada a partir dele. Soberana a esfera na qual se pode
matar sem cometer homicdio e sem celebrar um sacrifcio, e sacra, isto , matvel e
insacrificvel, a vida que foi capturada nessa esfera. 75
A genealogia jurdico-institucional do biopoder, centrada na deciso soberana,
revela que:
[...] a vida humana se politiza somente atravs do abandono a um poder
incondicionado de morte. Mais originrio que o vnculo da norma positiva ou do
pacto social o vnculo soberano, que , porm, na verdade somente uma dissoluo
[da norma positiva ou do pacto social]; e aquilo que esta dissoluo implica e produz
- vida nua, que habita a terra de ningum entre a casa e a cidade , do ponto de vista da soberania, o elemento poltico originrio.
76
Chega-se, aqui, a uma primeira concluso de Agamben: o investimento poltico
sobre a vida anterior modernidade, pois j encontrado no homo sacer e no sujeito
poltico romano. Caber s prximas linhas, ento, resituar a figura do homem sacro e da vida
nua nos termos polticos que a modernidade constri sobre os escombros das antigas
monarquias.
74
Ibidem, p. 88-89. 75
Ibidem, p. 85. 76
Ibidem, p. 91.
34
2.3. OS DIREITOS DO CIDADO E DO HOMEM EM SUA DIMENSO
BIOPOLTICA
Foucault alerta para o fato de que, desde a Idade Mdia, o pensamento jurdico foi
erguido em torno do poder rgio. A favor das monarquias, o retorno ao direito romano foi o
empreendimento a partir do qual se reconstruiu a armadura constitutiva do poder feudal,
monrquico, administrativo e, ao final, absolutista. Posteriormente, quando o poder jurdico
foi retirado do controle rgio, quando as revolues da modernidade voltaram-se contra as
monarquias, a questo ser sempre os limites a esse poder e as competncias que cabem
soberania. Que os juristas tenham sido os servidores do rei ou tenham sido seus adversrios,
de qualquer modo sempre se trata do poder rgio nesses grandes edifcios do pensamento e do
saber jurdicos. 77
No sculo XVIII, no calor da disputa terica e material por um novo destino
poltico, a mesma teoria da soberania continua a ser invocada; porm, dessa vez, trata-se de
interpor ao poder absolutista um projeto alternativo, o da distribuio democrtica do
exerccio soberano. Nas palavras de Rousseau:
Por qualquer lado que cheguemos ao princpio, sempre se toca a mesma concluso:
isto , que o pacto social estabelece entre os cidados uma igualdade tal, que eles se
obrigam todos debaixo das mesmas condies, e todos devem gozar dos mesmos
direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto , todo ato
autntico da vontade geral obriga ou favorece igualmente todos os cidados, de
maneira que o soberano s conhece o corpo da nao e no distingue nenhum
daqueles que o compem. Que pois rigorosamente um ato de soberania? No
uma conveno do superior com o inferior, mas uma conveno do corpo com cada
um de seus membros; conveno legtima, porque se escora no contrato social; justa,
por ser a todos comum; til, porque no pode ter outro alvo seno o bem geral; e
slida, porque a fora pblica e o poder supremo lhe servem de garantia. Enquanto
os vassalos esto sujeitos a tais convenes, no obedecem a ningum, salvo
prpria vontade; [...]78
Ora, viu-se que ao longo do sculo XVIII foi desenvolvida uma nova estrutura
geral do poder, centrada no corpo para adestrar e explorar suas foras. Mais do que
meramente punir, essa emergente mecnica servia ao capitalismo industrial como forma de
extrair das massas tempo e trabalho, alm de prepar-las para uma nova conformao social
baseada no enclausuramento, na produo e na vigilncia constantes. Tratava-se, enfim, do
77
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 23. 78
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. So Paulo: Editora Martin Clare Ltda., 2008, 3 edio, p. 41-
42.
35
biopoder disciplinar, o qual foi amplamente amparado por essa nova teoria da soberania na
medida em que ela permitia [...] sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de
direito que mascarava os procedimentos dela, que apagava o que podia haver de dominao e
de tcnicas de dominao na disciplina e, enfim, que garantia a cada qual que ele exercia,
atravs da soberania do Estado, seus prprios direitos soberanos. 79 nesse sentido, por
exemplo, que devem ser lidas as polticas pblicas de assistncia como a Lei dos Pobres -, a
preocupao com a sade social, a substituio do suplcio pblico pelo confinamento no
crcere; no uma humanizao da soberania, mas um novo arranjo nas tcnicas de
assujeitamento ao poder.
bastante significativo, todavia, refletir sobre a dimenso biopoltica da
Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789. J a comear pelo seu ttulo,
parece implcita uma ambiguidade na insero das palavras homem e cidado, pois no est
claro se os dois termos distinguem estatutos polticos diversos ou se formam, em vez disso,
uma combinao nica, onde o primeiro j est englobado no segundo. 80
Ao abrir suas disposies com Os homens nascem e so livres e iguais em
direitos., a declarao francesa institui que um fato da vida biolgica, o nascimento, que
fundamenta o surgimento de direitos. O segundo artigo, por sua vez, determinando que A
finalidade de toda associao poltica a conservao dos direitos naturais e imprescritveis
do homem., demonstra que na figura dos cidados os integrantes da associao poltica
que a vida qualificada politicamente e os direitos so conservados. E, por ter inscrito o
nascimento natural no ncleo da associao poltica, a terceira clusula pode instituir que O
princpio de toda a soberania reside, essencialmente, na nao, conferindo nao cuja raiz
vem do latim natio, aquele que nasceu o encerramento da cadeia iniciada pelo nascer do
homem. 81
A cidadania, ento, no uma simples sujeio autoridade de um sistema de
leis; trata-se do estatuto poltico que fundamenta a forma moderna de soberania e a
consequente inscrio de determinados viventes em um ordenamento jurdico delimitado.
preciso, portanto:
[...] cessar de ver as declaraes de direitos como proclamaes gratuitas de valores
eternos metajurdicos, [...], para ento consider-las de acordo com aquela que a
79
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 33. 80
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2
edio, 2010, p. 123. 81
Ibidem, p. 124-125.
36
sua funo histrica real na formao do moderno Estado-nao. As declaraes dos
direitos representam aquela figura original da inscrio da vida natural na ordem
jurdico-poltica do Estado-nao. Aquela vida nua natural que, no antigo regime,
era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criao, a Deus, e no mundo
clssico era (ao menos em aparncia) claramente distinta como zo da vida poltica
(bos), entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se alis [sic] o
fundamento terreno de sua legitimidade e da sua soberania.82
Essa centralidade da noo de cidadania, acompanhada do seu vnculo ao
biopoder da soberania, permite a compreenso do fato de que, to logo foram declarados os
direitos do homem e do cidado, iniciou-se o debate jurdico sobre a distino entre direitos
passivos e ativos83
.
Deve-se afastar destas distines de direitos a concluso de uma ofensa ao
princpio democrtico e igualitrio que a Revoluo prometia instituir; afinal o que est em
questo para o exerccio de poder operado pela soberania a constante incluso-exclusiva de
formas de vida. Na diferenciao entre a cidadania plena e a incompleta est em jogo a
continuidade de uma prerrogativa para delimitar qual vida est dentro e qual est fora.
Conforme foi trabalhado no comeo deste segundo captulo, a ordem jurdica precisa garantir
a sua incidncia em todo o fato significativo da realidade e, naquelas situaes limtrofes s
quais no h referncia normativa, preciso lanar mo da exceo, fazendo vigir uma norma
sem contedo algum.
atravs da estrutura do ato de pura fora de lei vazia que devem ser captados os
fenmenos do biopoder, sejam nas formas da disciplina ou da biopoltica. Em cada louco
normalizado, em cada delinquente corrigido, em cada doente examinado, em cada operrio
explorado: uma vida nua.
Longe de solucionar a mortfera relao entre vida nua e soberania, a modernidade
espalha-a para as mais capilares relaes sociais. Ser no sculo XX, com as experincias
totalitrias, que essa manifestao de poder ser radicalizada.
82
Ibidem, p. 124. 83
[...] les droits naturels et civils sont ceux pour le maintien desquels la societ forme; et les droits politiques, ceux par lesquels la societ se forme. Il vaut miex, pour la clart du langage, appeler les premiers droits passifs et
le seconds droits actifs... Tous les habitants dum pays doivent jouir des droits de citoyen passif... tous ne sont
ps citoyens actifs. Les femmes, du moins dans ltat actue, les enfants, les trangers, ltablissement public, ne
doivent pont influencer activement sur la chose publique. SIEYES, apud AGAMBEN, Ibidem, p. 127.
37
2.4. DAR FORMA RAA
Nas palavras de Alfred Rosenberg, o principal terico racial do nazismo, [...] a
viso de mundo nacional-socialista parte da convico de que solo e sangue constituem o
essencial do Germnico, e que , portanto, em referncia a estes dois datismos que uma
poltica cultural e estadual deve ser orientada. 84 sintomtico considerar, ento, que a
frmula ius soli (o nascimento em certo territrio) e ius sanguinis (o nascimento lastreado de
genitores cidados) so os critrios para identificar, desde o direito romano, a cidadania e sua
consequente autorizao participao da vida na ordem poltica.
Dessa forma, o incio do sculo XX o laboratrio poltico para o rompimento da
continuidade entre o nascimento e a nacionalidade, o que coloca em evidncia o teor ficcional
da origem da soberania moderna. Bastante significativo, nesse sentido, o alastramento de
leis por toda a Europa que autorizavam a desnaturalizao e desnacionalizao em massa dos
prprios cidados. A figura dos refugiados representa uma existncia inquietante na medida
em que [...] rompendo a continuidade entre homem e cidado, entre nascimento e
nacionalidade, eles pem em crise a fico originria da soberania moderna. 85 E
desarticulando de forma irremedivel at o tempo contemporneo o nexo entre nascimento e
cidadania, somente aps a completa desnacionalizao o que implicava, inclusive, na perda
da cidadania residual das leis de Nuremberg era autorizado o envio dos judeus aos campos
de concentrao ou de extermnio.
Dentro desse panorama, tambm, interessante dedicar espao anlise do
programa de eutansia do Terceiro Reich, pois as circunstncias, to pouco favorveis aos
valores eugnicos da poltica nacional-socialista, demonstram que as razes humanitrias de
Hitler e Himmler estavam fundamentadas pela expanso do biopoder. Afinal, a legislao de
proteo sade do povo alemo proibia o casamento com pessoas portadoras de doenas
hereditrias, alm do fato de que boa parte dos doentes submetidos ao programa no possuam
condies de se reproduzirem. H que se considerar, tambm, os seus custos financeiros e
logsticos levados a cabo em plena invaso da Europa Ocidental. Enfim, ainda que houvesse
qualquer senso de piedade frente aos doentes incurveis, a relativa ineficincia do Euthanasie-
Programm assinalava o disseminado exerccio da deciso soberana sobre a vida nua. 86
84
ROSEMBERG, apud AGAMBEN, Ibidem, p. 126. 85
Ibidem, p. 128. 86
Ibidem, p. 137.
38
A constante interveno sobre a populao permite perceber a singularidade da
governamentalidade nazista, cujos dirigentes percebiam muito claramente o cruzamento entre
vida e poltica. Assim, cumpre citar a compreenso de Verschuer, mdico responsvel por
pesquisas eugenistas em Frankfurt, sobre o papel do Estado nacional-socialista na questo
racial:
O novo Estado no conhece outro dever alm do cumprimento das condies necessrias conservao do povo. Estas palavras do Fhrer significam que todo ato poltico do Estado nacional-socialista serve a vida do povo... Ns sabemos hoje
que a vida de um povo garantida somente se as qualidades raciais e a sade
hereditria do corpo popular (Volkskrper) so conservadas. 87
Reiterando que a herana gentica da espcie no puramente biolgica, mas
atravessada pela poltica e pelo direito, categorizou o cientista: Poltica, ou seja, o dar forma
vida do povo. 88
Assim, por perceberem no corpo popular um fator que no era somente biolgico,
apresentava-se imperioso aos nazistas a promulgao de normas que controlassem a sade
hereditria. Que em 14 de julho de 1933 tenha sido promulgada a lei para preveno da
descendncia hereditariamente doente prevendo a esterilizao de cidados que
apresentassem risco sade gentica do povo alemo , em 18 de outubro de 1933 fosse
proibido o matrimnio com portadores de doenas hereditrias e, em 1935, fossem
promulgadas as Leis de Nuremberg para configurao da cidadania plena e proteo do
sangue e honras alems, apenas deixa claro que [...] at os cidados de sangue ariano
deveriam mostrar-se dignos da honra alem (deixando pender implicitamente sobre cada um a
possibilidade de desnacionalizao).89
A ateno pormenorizada da historiografia convencional s leis de discriminao
dos hebreus ofusca a concluso de que a doutrina de purificao racial afetava todo o ser
humano no territrio alemo; valendo-se da hiptese sustentada por esta monografia, significa
dizer que toda a vida estava inscrita pela possibilidade de suspenso do ordenamento jurdico
e, portanto, era nua e sacra insacrificvel, porm matvel. Pois se o fim ltimo do Estado
era a conservao das qualidades raciais e hereditrias do povo, cuja forma determinada
pela poltica, ento tal tarefa deveria ser desempenhada tambm no interior das populaes
germnicas:
87
Ibidem, p. 143. 88
Ibidem, p. 144. 89
Ibidem, p. 145.
39
Depois de um exame de raios X em toda a nao, o Fuehrer receberia uma lista de
pessoas doentes, particularmente os portadores de molstias do pulmo e do corao.
Segundo essa nova lei de sade do Reich (...) essas famlias j no podiam
permanecer misturadas ao pblicos [sic] nem gerar crianas. O que ser feito delas
objeto de futuras ordens do Fuehrer.90
Essa fantica e constante redefinio sob