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Iara Inchausti Ribeiro Vilhena
UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM SUA
IMAGEM
Universidade Federal de Minas Gerais
Escola de Belas Artes
Mestrado em Artes
2013
Iara Inchausti Ribeiro Vilhena
UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM SUA
IMAGEM
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Artes da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em
Artes.
Área de Concentração: Arte e
Tecnologia da Imagem.
Orientadora:
Profa. Dra. Daisy Leite Turrer
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes /UFMG
2013
Ribeiro, Iara, 1980- Um estudo sobre o retrato e as questões que envolvem sua imagem [manuscrito] / Iara Inchausti Ribeiro Vilhena. – 2013. 111 f. : il.
Orientadora: Daisy Leite Turrer. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2012.
1. Retratos (Pintura) – Teses. 2. Imagem (Filosofia) – Teses. 3. Semelhança (Física) – Teses. 4. Espaço e tempo em arte – Teses. 5. Tempo na arte – Teses. 6. Pintura – Teses. I. Turrer, Daisy, 1950- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. III. Título.
CDD: 750.118
Para meus pais, que trouxeram arte para minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à profa. Dra. Daisy Turrer, grande orientadora, que se tornou também uma
grande amiga, por ter acompanhado desde o início o desenvolvimento desta
pesquisa, sempre me incentivando, esclarecendo e apontando caminhos, com
dedicação, generosidade e extrema competência; a ela, toda minha gratidão.
Ao meu pai José Maria Ribeiro, a quem eu devo a minha paixão pelos retratos, e
com quem, hoje, compartilho essa paixão.
À minha mãe Fátima Inchausti, pelo apoio e incentivo constantes, e pela grande
ajuda nas traduções.
Ao meu marido Adriano Vilhena, companheiro de todas as horas, pela presença,
pelo apoio e amor que me fortalecem.
À profa. Dra. Wanda Tófani e à profa. Dra. Maria do Carmo Freitas pelas contribuições
valiosas na qualificação.
À profa. Tânia Araujo, pelo incentivo.
À profa. Dra. Lúcia Pimentel, que, ao orientar minha monografia, contribuiu para
despertar meu interesse pelo mestrado.
À Zina Souza, à José Sávio Santos e à Klausmax Coelho pela disponibilidade em
ajudar sempre que preciso.
Ao grupo de estudos Imagem, Escrita, Livro, orientado pela profa. Dra. Daisy Turrer,
pelos estudos partilhados, especialmente à Neide Souza, pelo texto que me
apresentou.
À Capes-Reuni, pelo auxílio financeiro que me permitiu maior dedicação à pesquisa.
Às profas. Dras. Magali Melleu Shen e Maria Regina Emery Quites, coordenadoras da
minha bolsa, pela confiança.
Ao meu irmão Humberto Inchausti, pela torcida.
Aos colegas da pós-graduação, por compartilharem as agonias e alegrias durante
esses dois anos de estudos.
À Consuelo Salomé, pela revisão.
À Lana, pela companhia.
Um retrato, isso foi percebido pouco a pouco, não é semelhante porque ele
se faria similar ao rosto, mas a semelhança só começa e só existe com o
retrato e apenas nele, ela é sua obra, sua glória ou sua desgraça, ela está
ligada à condição da obra, exprimindo o fato de que o rosto não está aí, ele
está ausente, ele só aparece a partir da ausência que é precisamente a
semelhança, e essa ausência é também a forma pela qual o tempo se
apreende, quando se distancia o mundo e, dele, nada mais resta a não ser
esse desvio e esse distanciamento.
Maurice Blanchot
RESUMO
Esta dissertação se propõe a estudar as questões emergentes do retrato
pintado com relação à presença, ausência, semelhança, distância e tempo. Através
das formulações teóricas de Maurice Blanchot sobre as duas versões do imaginário,
de Georges Didi-Huberman sobre a trama do olhar, e de Jean-Luc Nancy sobre a
desestabilização da noção da semelhança, essas questões serão abordadas
levando em consideração o caráter ambíguo da imagem.
PALAVRAS-CHAVE: retrato, presença, ausência, semelhança, distância, tempo.
RESUMÉ
Cette dissertation vise à étudier les questions issues du portrait peint par
rapport à la présence, l’absence, la ressemblance, la distance et le temps. À travers
les formulations théoriques de Maurice Blanchot en ce qui concerne les deux
versions de l’imaginaire, ainsi que celles de Georges Didi-Huberman à propos de la
trame du regard et celles de Jean-Luc Nancy sur la déstabilisation de la notion de
ressemblance, ces questions seront abordées en tenant compte du caractère de
l’image marqué par l’ambiguité.
MOTS-CLÉS: portrait, présence, absence, ressemblance, distance, temps.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. José Maria Ribeiro. Retrato de Kiki ...................................................... 18
Figura 2. José Maria Ribeiro. Retrato de Maria Lúcia .......................................... 20
Figura 3. José Maria Ribeiro. Retrato de Sr. Inhô ................................................ 24
Figura 4. David Allan. A origem da pintura .......................................................... 26
Figura 5. Claude Monet. Camille Monet em seu leito de morte ........................... 27
Figura 6. Iara Ribeiro. Retrato de Edilson ............................................................ 29
Figura 7. Rembrandt. Noli me Tangere ................................................................ 36
Figura 8. Paolo Veronese. Noli me tangere ......................................................... 36
Figura 9. Jean-Baptiste C. Corot. Orfeu guiando Eurídice no mundo dos mortos 37
Figura 10. Rembrandt. Cristo aparecendo para Maria Madalena ........................ 41
Figura 11. Albrecht Dürer. 32ª prancha da Pequena Paixão ............................... 41
Figura 12. Abraham G. Bloemaert. Ceia em Emaús ............................................ 44
Figura 13. Johannes Gummp. Autorretrato .......................................................... 47
Figura 14. Johannes Gummp. Autorretrato (detalhe) .......................................... 49
Figura 15. André Derain. Retrato de Matisse ....................................................... 54
Figura 16. Henri Matisse. Autorretrato ................................................................. 54
Figura 17. Iara Ribeiro. O pintor (Retrato de José Maria)..................................... 54
Figura 18. José Maria Ribeiro. Autorretrato ......................................................... 54
Figura 19. Raphael. Retrato de mulher (Velata) .................................................. 57
Figura 20. Leonardo da Vinci. Monalisa ............................................................... 58
Figura 21. Caravaggio. Narciso ........................................................................... 63
Figura 22. Iara Ribeiro. Retrato de D. Rita ........................................................... 81
Figura 23. Paxíteles. Hermes (detalhe) ............................................................... 86
Figura 24. Vênus de Milo ..................................................................................... 88
Figura 25. Vitória de Samotrácia .......................................................................... 88
Figura 26. Petrus Christus. Retrato de Jovem mulher ......................................... 89
Figura 27. Giovanni Bellini. Doge Leonardo Loredan .......................................... 96
Figura 28. Iara Ribeiro. Autorretrato .................................................................... 108
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................ 10
Capítulo I
Presença/ausência .......................................................................................................... 15
Capítulo II
Semelhança ..................................................................................................................... 39
Capítulo III
Distância .......................................................................................................................... 60
Capítulo IV
Tempo .............................................................................................................................. 80
Considerações Finais ...................................................................................................... 105
Referências ...................................................................................................................... 109
10
INTRODUÇÃO
Os retratos sempre estiveram ao meu redor. Meu pai é retratista, portanto
cresci entre retratos que eu via surgir em telas como aparições, e lá elas ficavam, a
espreitar o mundo e a me impressionar. Eu gostava de acompanhar o “nascimento”
daquelas imagens, e com elas parecia nascer também todo o mistério que as
envolvia: quem era aquela pessoa, como era sua personalidade, que
acontecimentos já vivera e quais ainda viveria? Cada rosto retratado parecia ter o
que dizer, e parecia querer dizer muito mais do que o que se via na superfície da
tela.
Dessa forma, o retrato sempre exerceu em mim uma grande atração que
acabou por determinar a minha formação profissional: tornei-me retratista. Pintar
retratos talvez tenha sido a forma que encontrei de estreitar o contato com todo esse
mistério que os envolve, e dele participar. Porém, este ofício não diminuiu o meu
fascínio, pelo contrário, continuo me deparando com os mesmos questionamentos, e
o mesmo espanto que sempre senti ao estar diante de um retrato.
Por isso, tomo emprestadas as palavras de Roland Barthes e transcrevo-as
para iluminar as questões que envolvem a minha experiência de estar diante de um
retrato, embora ele as tenha pronunciado em relação à fotografia: o retrato “sempre
me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente”.1 Ele tem
uma força, uma presença, algo inalcançável. A pessoa retratada está ali, na minha
frente, fixada na tela, mas parece estar, ao mesmo tempo, se constituindo de um
algo outro que não sei bem o que é, que não posso ver materializado, algo estranho
que parece impregnar toda a imagem, e que me escapa.
O espanto que o retrato suscita vem de um estranhamento da própria imagem
retratada, de uma ambiguidade que nela se manifesta, sobretudo no que diz respeito
à presença e à ausência: diante de um retrato, somos remetidos à presença de uma
pessoa que, no entanto, não está realmente ali. Portanto, a imagem retratada nos
aponta uma presença, ao mesmo tempo em que afirma uma ausência.
Seria essa presença evocada, ainda que camuflada em sua própria ausência,
o que atrai as pessoas ao retrato, o que as faz ansiar por seu próprio retrato ou pelo
1 BARTHES, 1984, p. 123. “A fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova,
inesgotavelmente.”
11
retrato de alguém que estimam? Para sobreviverem, ou fazer sobreviver através da
imagem? Frequentemente recebo encomendas para retratar pessoas que já
faleceram, o que me faz pensar sobre a relação retrato/morte: o que se espera
desse retrato? Seria uma tentativa de ter de volta a pessoa retratada? De mantê-la
sempre aqui? Teria o retrato realmente esse poder de presentificar alguém que não
está mais presente? Ou ele afasta essa pessoa cada vez mais ao nos apontar sua
distância intransponível, sua ausência?
Ao sentir a presença suscitada pelo retrato, estabelecemos uma relação entre
este e a pessoa retratada, relação que passa pela questão da semelhança. Como se
dá a semelhança nos retratos? É suficiente a cópia dos traços físicos do modelo, ou
é necessário captar um algo a mais? Em que consistiria esse algo a mais? E é
essencial para o retrato a semelhança com o modelo?
Por mais semelhante que seja ao seu referente, o retrato guarda uma
distância em relação a este, pois, na tela temos só uma imagem, o modelo não se
encontra lá. Portanto, o retrato nos apresenta de forma próxima – na imagem –, algo
que na verdade está distante – o modelo. Seria esse o motivo que confere às
imagens retratadas um ar de além, um distanciamento de tudo e de todos?
O retrato é ambíguo também na questão temporal, já que ele atravessa o
tempo, ao nos mostrar agora – no presente –, uma pose do passado, que ficará
eternizada em direção ao futuro. Ele congela um momento e parece nos trazer esse
momento de novo, embora nos lembre que esse tempo já passou, não existe mais.
O retrato nos permite um contato com um tempo que subverte a linearidade
cronológica, onde passado, presente e futuro não se sucedem gradualmente, e sim
se entrecruzam e coexistem, e talvez seja por isso que o retrato parece escapar ao
tempo, parece ser atemporal.
Logo, a imagem do retrato nos evoca simultaneamente a presença e a
ausência, o próximo e o distante, o semelhante e o dessemelhante, o passado, o
presente e o futuro e ainda uma atemporalidade. São essas as questões que fazem
emergir o sentimento de encanto/espanto que envolve o objeto deste estudo.
Vale a pena observar que um retrato pode ser pintado, desenhado, gravado,
esculpido e também fotografado, mas aquele que mais me instiga, e que move os
meus questionamentos é o retrato pintado: é ele o meu principal interesse, e é sobre
ele que escrevo essa dissertação, embora contribuições de outras técnicas sejam
por vezes levadas em conta. As questões que envolvem a fotografia perpassam as
12
que envolvem o retrato pintado, pois ela também encarna a ambiguidade da imagem
quanto à presença, à ausência, à semelhança, à distância e ao tempo. Por isso,
muitas vezes serão trazidas ao texto reflexões acerca da fotografia, até mesmo
porque, hoje, a maioria dos retratos é pintada tendo como referência fotos do
modelo, e assim, o retratista interage com as questões já existentes na foto, as quais
terminam por incidir em sua tela.
Torna-se importante ressaltar que, devido à ambiguidade que a própria
palavra “retrato” carrega, podendo ser empregada para designar tanto uma pintura
quanto uma fotografia, opto por empregá-la no presente texto somente para me
referir ao retrato pintado, que é o meu objeto de estudo.
Para fundamentar neste estudo as questões instigantes que envolvem o
retrato, elejo como corpus teórico os seguintes autores e obras: Maurice Blanchot
com O Espaço Literário2, em especial o texto As duas versões do imaginário3;
Georges Didi-Huberman com O que vemos o que nos olha4, nos textos A inelutável
cisão do ver5, O evitamento do vazio: crença ou tautologia6, e A dupla distância7; e
Jean-Luc Nancy, com Le regard du portrait8, e Noli me tangere: Essai sur la levée du
corps9.
Blanchot foi eleito por trazer um pensamento sobre os níveis de ambiguidade
da imagem, cujo desdobramento se dá em duas versões que não podem ser
separadas nem hierarquizadas como primeira e segunda, pois, para ele, nela
coexistem dois processos simultâneos: aquele em que a imagem parece nos trazer
o objeto de volta, remetendo-nos à sua presença, e aquele em que ela o afasta para
sempre, apontando para sua ausência.
A escolha de Didi-Huberman se deu por este abordar a trama do olhar, ao
propor que tudo que olhamos também nos olha. E que aquilo que cada coisa nos
devolve ao olhar ultrapassa a visibilidade e está relacionado com quem olha, o que
vai configurar formas diferentes de se ver a mesma imagem. Essa trama do olhar,
segundo o autor, está intrinsecamente ligada a uma dupla distância, ao apresentar
de forma próxima algo que está longínquo, e é inapreensível.
2 BLANCHOT, 1987
3 BLANCHOT, 1987, p. 255-265
4 DIDI-HUBERMAN, 1998a
5 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29-35
6 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48
7 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 147-168
8 NANCY, 2000
9 NANCY, 2003b
13
Jean-Luc Nancy foi escolhido tanto pela contundência de seu estudo sobre o
retrato envolvendo as noções de semelhança, ausência, morte e olhar, quanto pela
sua instigante leitura do Evangelho de São João, na qual desestabiliza a noção de
semelhança.
Em diálogo com as noções complexas sobre o estatuto da imagem de
Blanchot, Didi-Huberman e Nancy, também participam do texto, para a
fundamentação desta pesquisa: Walter Benjamin – através da leitura de Didi-
Huberman dos textos A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica10 e
Sobre alguns temas em Baudelaire11 – pela importância de suas reflexões sobre a
noção de aura e sua relação com a distância; André Rouillé – com o texto Tensões
da fotografia12 – por seus questionamentos sobre a imagem fotográfica que apontam
para a ambiguidade da imagem tal como formulada por Blanchot; Régis Debray –
com Vida e morte da imagem13 – pela referência histórica e pela relação que o autor
estabelece entre a morte e o nascimento da imagem; Eudoro de Souza – com o
texto Lonjura e outrora14 – por apresentar noções pertinentes ao estudo do retrato
envolvido na trama do tempo e do espaço; Oscar Wilde – com O retrato de Dorian
Gray15, clássica ficção em que o autor propõe uma intriga em torno da imagem
retratada, subvertendo a questão do tempo e da semelhança.
E ainda as reflexões de Roland Barthes sobre a fotografia atravessam todo
este texto e iluminam o objeto deste estudo, ao serem mescladas às dos outros
autores que foram eleitos para compor o corpus teórico. A leitura de seu livro A
Câmara Clara – Notas sobre a fotografia16 foi fundamental para que eu começasse a
pensar e a elaborar essa pesquisa, pois as questões por ele levantadas sobre a
fotografia terminam por esbarrar nas questões que me suscita o retrato pintado, quer
seja ele feito a partir de um modelo ou a partir de uma fotografia.
Torna-se importante destacar que esta dissertação não teve por intento
focalizar o retrato numa perspectiva histórica, uma vez que isso exigiria um desvio
do meu interesse em relação às questões suscitadas pela imagem sob o ponto de
vista dos teóricos citados. Questões essas que independem de datas e fatos
10
BENJAMIN, 1994, p.165-196 11
BENJAMIN, 1989, p. 103-149 12
ROUILLÉ, 2009, p. 189-229 13
DEBRAY, 1994 14
SOUZA, 1981, p. 03-07 15
WILDE, 1972 16
BARTHES, 1984
14
históricos, estando para além e para aquém da cronologia. Adentrar na história do
retrato se configuraria como uma outra abordagem, o que, entretanto, não me
impediu de fazer, quando necessário, algumas pequenas pontuações e
contextualizações.
A dissertação está estruturada nos seguintes capítulos:
- Capítulo I. Presença/ausência: seu paradoxo nos retratos e a relação entre a
morte e o retrato. Neste capítulo serão apresentadas as formulações de Blanchot em
As duas versões do imaginário, e as de Didi-Huberman em O que vemos, o que nos
olha.
- Capítulo II. Semelhança: o que é necessário para um retrato se configurar
como semelhante a seu modelo, como se dá essa semelhança. Neste capítulo,
serão estudadas as formulações de Nancy sobre o retrato, presentes em Le regard
du portrait, e sua análise sobre a cena bíblica, no livro Noli me tangere: essai sur la
levée du corps.
- Capítulo III. Distância: a distância que o retrato nos impõe, a lonjura
inalcançável que ele carrega e que o faz ter um ar de além, mesmo estando diante
de nós. Neste capítulo serão estudadas as noções de aura de Benjamin, fascínio de
Blanchot e dupla distância de Didi-Huberman.
- Capítulo IV. Tempo: os tempos que perpassam o retrato, a subversão do
tempo linear nele implicada. Neste capítulo será abordada a noção do tempo em
Blanchot, assim como a intriga entre retrato e tempo apresentada por Oscar Wilde
no livro O retrato de Dorian Gray.
15
Capítulo I.
PRESENÇA / AUSÊNCIA
[...] a aparente espiritualidade, a pura virgindade formal da imagem está originalmente ligada à estranheza elementar e ao peso informal do ser presente na ausência.
Maurice Blanchot
Ao se retratar uma pessoa ou ao olharmos o seu retrato pintado, somos
remetidos à sua presença, sentimos essa presença. Uma presença ilusória, na
medida em que a pessoa real não está verdadeiramente no quadro: o que temos é
só a sua imagem: inapreensível e longínqua.
Jean-Luc Nancy, em seu livro Le Regard du Portrait17, afirma que retratar é
“tornar presente. Retratar é tirar a presença para fora – seja ela a presença de uma
ausência”.18 Diante de um retrato somos postos em contato com um jogo paradoxal,
que nos remete à presença do modelo, e à sua ausência. O retrato nos traz
realmente uma presença, mas é a presença da ausência do retratado.
Maurice Blanchot, no texto As duas versões do imaginário19, analisa essa
dualidade da imagem que lhe confere o poder de se desdobrar em duas versões,
pois, ao mesmo tempo em que ela parece nos trazer o objeto de volta, também nos
traz a sua ausência. É a ambiguidade da imagem que nos faz deparar com esse
paradoxo presença/ausência:
... a imagem pode, certamente, ajudar-nos a recuperar idealmente a coisa, de que ela é então a sua negação vivificante, mas que, ao nível para onde nos arrasta o peso que lhe é próprio, corre também o constante risco de nos devolver, não mais a coisa ausente, mas à ausência como presença, ao duplo neutro do objeto em que a pertença ao mundo se dissipou.
20
17
NANCY, 2000 18
NANCY, 2000, p. 51. [Portraiturer] “c’est rendre présent. Portraiturer, c’est tirer la présence au dehors – fût-elle présence d’une absence.” (Todas as referências e citações de obras e artigos de língua francesa são traduzidos pela autora com a supervisão de Fátima Inchausti, salvo indicação contrária). 19
BLANCHOT, 1987, p. 255-265 20
BLANCHOT, 1987, p. 264
16
A imagem funda-se na ausência do objeto. Assim, para que exista a imagem, é
necessário que o objeto não esteja mais lá: “A imagem pede a neutralidade e a
supressão do mundo [...]”.21 A imagem tem um poder duplo, ela tanto nos aproxima
quanto nos mantém afastados do objeto, que é reafirmado por sua
inapreensibilidade e desaparecimento. E é no distanciamento que a imagem
apreende o objeto.
A análise comum, segundo Blanchot, determina que a imagem venha depois
do objeto, que ela surja a partir dele.22 É preciso que o objeto seja dado primeiro,
para depois se ter sua imagem. Sob essa perspectiva há uma hierarquia que coloca
a imagem como sendo a continuação do objeto, e portanto dependente dele. Porém
o autor desestabiliza essa análise e essa hierarquia ao esclarecer que a imagem é
ao mesmo tempo o próprio objeto e sua imagem, ela é contemporânea ao objeto, ou
seja, coexiste com ele, e não a partir apenas dele.
A coisa estava aí, que nós apreenderíamos no movimento vivo de uma ação compreensiva e, tornada imagem, ei-la instantaneamente convertida no inapreensível, inatual, impassível, não a mesma coisa distanciada mas essa coisa como distanciamento [...].
23
Blanchot está desta forma demonstrando que o caráter ambíguo da imagem
não nos permite escolher entre uma coisa ou outra: “[...] essa duplicidade não é tal
que se possa pacificá-la por um ‘ou isto ou aquilo’ capaz de autorizar uma escolha e
de apagar da escolha a ambiguidade que a torna possível”.24 A imagem para o
autor, tanto diz respeito à presença quanto à ausência, estatuto mesmo que a
constitui. Blanchot não trabalha com o pensamento da exclusão entre uma coisa ou
outra, e sim, com a tensão advinda da coexistência dos opostos:
Aqui, o que fala em nome da imagem, ‘ora’ fala ainda do mundo, ‘ora’ nos introduz no meio indeterminado da fascinação, ‘ora’ nos concede o poder de dispor das coisas em sua ausência e pela ficção, retendo-nos assim num horizonte rico de sentido, ‘ora’ nos faz resvalar para onde talvez estejam presentes, mas em suas imagens; [...].
25
21
BLANCHOT, 1987, p. 255 22
BLANCHOT, 1987, p. 257 23
BLANCHOT, 1987, p. 257 24
BLANCHOT, 1987, p. 264 25
BLANCHOT, 1987, p. 265
17
O retrato carrega essa ambiguidade da imagem: ao nos apresentar uma
pessoa, ele está ao mesmo tempo nos apontando para o seu referente e para sua
imagem retratada, para sua presença e para sua ausência simultaneamente.
O poder da imagem de restituir o objeto de volta, ainda que pelo paradoxo da
presença e da ausência é também trabalhado por Didi-Huberman quando este
constata que o ato de ver, embora a princípio pareça nos dar o objeto, na verdade
nos tira o mesmo:
[...] A experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é, quando ver é perder. Tudo está aí.
26
O olhar para Didi-Huberman sofre de uma inelutável cisão: a que “[...] separa
dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”.27 Para o autor, “[...] o ato de ver
só se manifesta ao se abrir em dois”28: tudo que vemos também nos olha, nos
devolve o olhar, e o que é devolvido com esse olhar tem a ver conosco, com nossa
vivência, e vai além do que é visto fisicamente ali.
A expressão em francês ce qui nous regarde significa o que nos olha, mas
também pode significar o que tem a ver conosco, o que nos diz respeito, o que nos
concerne. Didi-Huberman trabalha com a dualidade desta expressão29, dualidade
que é perdida na tradução para o português, mas que é essencial para um melhor
entendimento do pensamento do autor. Quando olhamos alguma coisa, o que nos
olha de volta é o que está intrinsecamente relacionado às nossas experiências e
nossas sensações.
Como exemplo, Didi-Huberman destaca uma passagem de Ulisses, romance
de James Joyce, em que o personagem olha o mar, mas o que o olha de volta são
os olhos de sua mãe morta30. Ou seja, a forma como ele olha as coisas, e a forma
26
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 34 27
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29 28
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29 29
O próprio nome do livro de Didi-Huberman Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (traduzido como O que vemos, o que nos olha), traz em si essa dualidade da expressão em francês, que é o que realmente se trata no livro: o que vemos também nos olha, e esse olhar vai nos remeter a algo que nos diz respeito. 30
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 32
18
como essas coisas se apresentam ao seu olhar remetem a um fato particular de sua
vida, a perda de sua mãe.
Nessa perspectiva, o pensamento de Didi-Huberman sobre o que nos olha,
como aquilo que nos concerne, coincide com o pensamento de Blanchot sobre a
imagem, como podemos verificar através do fragmento a seguir: “A imagem fala-nos,
e parece que nos fala intimamente de nós. [...] Assim nos fala ela, a propósito de
cada coisa, de menos que a coisa, mas de nós [...]”.31
É importante, ainda, citar o pensamento de Nancy sobre o caráter duplo do
olhar, inteiramente em sintonia com as formulações de Didi-Huberman e Blanchot:
“Eu não posso olhar sem que isso me olhe”.32
Nesse sentido, tanto Didi-Huberman quanto Blanchot e Nancy reafirmam as
noções de que a imagem nos olha e nos fala de nós próprios.
Se todas as coisas que olhamos também nos olham, podemos pensar no
retrato como algo que nos olha duplamente: enquanto objeto, e enquanto rosto
iluminado pelo olhar – o órgão da visão se encontra no rosto. Nesse sentido, esse
poder das coisas de nos olharem é intensificado pelo retrato: ele realmente nos olha
(FIG. 01), tal como nos esclarece Nancy: “antes de qualquer coisa, o retrato olha: é
só o que ele faz, ele se concentra, se envia e se perde nisso”.33
31
BLANCHOT, 1987, p. 256 32
NANCY, 2000, p. 75. “Je ne peux regarder sans que ça me regarde.” 33
NANCY, 2000, p. 72. “Avant toute autre chose, le portrait regarde: il ne fait que cela, il s’y concentre, il s’y envoie et il s’y perd.”
FIGURA 01. José Maria Ribeiro. Retrato de Kiki. Acrílica sobre tela, 2005. Fonte: Acervo do artista
19
Essa questão do olhar do retrato me remete a uma experiência pessoal. Ao
visitar uma galeria institucional de retratos, dentre os quais eu havia pintado alguns,
um funcionário local perguntou-me por que a maioria dos retratados olhava para
nós, e somente um não olhava. Sem me dar a chance da resposta, ele explicou que
sabia o porquê – aquele que não olhava direto para nós era o único dentre os
retratados que já havia morrido. O funcionário, sem perceber, estava instigado pelas
mesmas questões que envolvem o objeto desta pesquisa. Na verdade o que ele
questionava era o olhar e a morte. O olhar daquele retratado que já havia morrido
estava além, em outro lugar, parecia não olhar mais diretamente para esse mundo.
A observação do funcionário deve-se a uma coincidência, mas me fez pensar
que todo olhar de um retrato impele-nos a um movimento para trás, a uma busca
pelo que se passa por trás daquele olhar. O olhar perdido do retratado em questão
levou o funcionário a desdobrar sua história e a atribuir o motivo desse olhar à sua
morte.
Porém, se todos os retratos nos olham, o olhar de um retrato de alguém que
já morreu parece mais profundo. Parece significar mais. Como se o retrato pudesse
quase nos falar, nos dizer tudo que o morto não mais poderá falar. No retrato o
olhar parece aprisionado na tela, tudo quer dizer, mas nada pode dizer, o retratado
parece querer se comunicar pelo olhar, espera ser compreendido em silêncio.
Como já foi pontuado, a imagem funda-se em uma ausência. E podemos dizer
que a ausência maior é a morte. A morte exemplifica de forma contundente o fato de
que a ausência sempre decorre de uma presença. É preciso que algo tenha
realmente existido para que possamos sentir sua falta.
Muitas vezes familiares ou amigos encomendam retratos de pessoas que já
faleceram (FIG. 02). Eles querem fixar essa lembrança, possuí-la através de um
quadro, um desenho, permitindo àquele que não está mais neste mundo, nele
permanecer. Seria uma vontade de eternizar a pessoa? De prorrogar sua existência,
de tê-la de novo? Pois, de acordo com Blanchot, a imagem seria “[...] a coisa
presente em sua ausência, apreensível porque inapreensível, aparecendo na
qualidade de desaparecida, o retorno do que não volta [...]”.34 Talvez seja este
retorno do que não volta o motivo que faz as pessoas encomendarem um retrato de
alguém que já morreu.
34
BLANCHOT, 1987, p. 257
20
A relação do retrato com a morte está presente desde a antiguidade. Régis
Debray, em seu livro Vida e Morte da Imagem35, lembra-nos que a morte está ligada
ao nascimento da imagem: as sepulturas, sarcófagos, urnas funerárias foram nossos
primeiros museus, e os defuntos nossos primeiros colecionadores, já que com eles
eram sepultados vários objetos para prestar serviço na vida após a morte. A arte
nasce, portanto, funerária. “O nascimento da imagem está envolvido com a morte.
Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a
vida”.36 Segundo o autor, a imagem primitiva utilizava o osso, o chifre, peles de
animais, ou seja, materiais que eram obtidos pela morte. O cadáver foi matéria prima
do nosso primeiro objeto de arte, que foi a múmia do Egito, “cadáver feito obra”.37
Nossas primeiras telas foram mortalhas e nossos primeiros conservadores foram os
embalsamadores. Logo, a morte está ligada ao nascimento da imagem, é sua
35
DEBRAY, 1994 36
DEBRAY, 1994, p. 20 37
DEBRAY, 1994, p. 28
FIGURA 02. José Maria Ribeiro. Retrato de Maria Lúcia. Acrílica sobre tela, 2011. Fonte: Acervo do artista
21
propulsora. “A invenção da efígie, essa contrametamorfose do informe à forma e do
flexível ao rígido, preserva os interesses vitais da espécie”.38
A ligação da morte especificamente com os retratos, com a imagem do morto,
faz parte das religiões fundadas sobre o culto dos antepassados, que exigiam que
eles sobrevivessem através da imagem. Um molde em cera do rosto do morto era
transportado no funeral e mantido a salvo depois. Na cultura grega, mesmo sendo
uma cultura vitalícia, apaixonada pela vida e pela visão (para o grego viver é ver, e
morrer é perder a vista) o óbito também governava39:
Ídolo vem de eídolon que significa fantasma dos mortos, espectro, e somente em seguida, imagem, retrato. O eídolon arcaico designa a alma do morto que sai do cadáver sob a forma de uma sombra imperceptível, seu duplo, cuja natureza tênue, mas ainda corporal, facilita a figuração plástica. A imagem é a sombra; ora, sombra é o nome comum do duplo.
40
Na Roma Imperial havia a tradição do funus imaginarium, que consistia na
apoteose póstuma do imperador falecido, na qual um duplo do morto (um manequim
do morto) era incinerado com grandes pompas, enquanto o corpo real era enterrado.
“É em imagem que o imperador subia da fogueira para o céu, em imagem por que
em pessoa. Queda dos corpos, ascensão dos duplos”.41
E ainda nos ritos fúnebres dos reis da França (entre a morte de Carlos VI e a
de Henrique IV) também era feito de cera pintada, um duplo exato do morto, que era
velado por quarenta dias (já que a decomposição não permitia que o corpo real
ficasse exposto por todo esse tempo). Era esse duplo, vestido com os adornos e
portando as insígnias do poder que pertenciam ao morto, que recebia as
homenagens. Acreditava-se que a alma do morto ocupava esse manequim, tendo a
cópia, portanto, mais valor que o original. A imagem era tida “como substituto vivo do
morto”.42
Nessas tradições “a ‘verdadeira’ vida está na imagem fictícia e não no corpo
real”.43 A imagem aparece aqui com um poder surpreendente de substituição: nela, a
vida se mantinha para além da morte.
38
DEBRAY, 1994, p. 31 39
DEBRAY, 1994, p. 23 40
DEBRAY, 1994, p. 23 41
DEBRAY, 1994, p. 25 42
DEBRAY, 1994, p. 25 43
DEBRAY, 1994, p. 26
22
Podemos considerar esses duplos dos ritos fúnebres, como as primeiras
formas de retratos, e perceber então que o retrato nasceu com a morte, com a
necessidade de prorrogar a existência das pessoas: “[...] um prolongamento
sublimado, mas ainda físico, de sua carne”. Pela imagem, “o vivo apreende o morto.
(...). Há realmente transferência de alma entre o representado e sua
representação”.44 É como se o morto fosse sua imagem, como se essa imagem (no
caso o retrato) guardasse em si tudo de mais precioso do seu referente. Quando se
morre, vira-se imagem.
Desta forma, o retrato surge da necessidade do homem de perpetuar, de
manter os mortos ainda no mundo, amenizando assim a brusca interrupção que a
morte causa.
Didi-Huberman em seu texto O evitamento do vazio: crença ou tautologia45,
analisa a reação dos homens quando diante da morte: segundo ele, uma cisão se
abre em nós ao nos depararmos com um túmulo. Este nos mostra que perdemos o
corpo que ele recolhe em seu fundo. E também nos impõe a dura constatação de
que um dia seremos semelhantes a esse morto que agora olhamos: estaremos
mortos também. Portanto, esse pavor diante da morte vem do fato de depararmos
com o desconhecido, sobre o qual não temos controle, e só sabemos ser ele o
nosso futuro.
A cisão que se abre em nós ao nos depararmos com um túmulo, com uma
morte, pode provocar dois tipos de reação, de acordo com Didi-Huberman, cada
uma delas relacionada a um tipo de mentalidade: a do homem da crença e a do
homem da tautologia46. Este último tenta ater-se ao que vê, ao túmulo em si,
acreditando que não exista nada além daquele volume que ele enxerga ali à sua
frente: “É decidir, diante de um túmulo, permanecer em seu volume enquanto tal, o
volume visível, e postular o resto como inexistente”.47
Já o homem da crença quer ir além da cisão aberta, quer ir além daquele
túmulo físico que enxerga ali. Ele quer superar aquilo que ele vê, e o faz
imaginariamente: “[...] equivale portanto a produzir um modelo fictício no qual tudo –
volume, vazio, corpo e morte – poderia se reorganizar, subsistir, continuar a viver no
44
DEBRAY, 1994, p. 26 45
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48 46
Cf. DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48 47
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 38
23
interior de um grande sonho acordado”.48 Equivale a imaginar uma vida após a
morte, a pensar que a pessoa que morreu não está ali, dentro daquele túmulo, e
sim, em algum outro lugar para onde se dirigem os que já partiram (no céu, no
paraíso, ou nos lugares que a crença reserva para os que morrem). Talvez
possamos pensar que as pessoas alternam momentos de crença e de tautologia,
pois ambas, nas palavras de Didi-Huberman, tentam escapar “a essa cisão aberta
em nós pelo que nos olha no que vemos”49: a morte.
A atividade de produzir imagens, segundo o autor, tem muito a ver com esse
escape pretendido pela pessoa que perde alguém. É uma forma de afastar o morto
(através da sua imagem) do lugar real em que ele está: dentro de uma tumba, sem
vida, e mantê-lo “vivo”; e, ao mesmo tempo, é uma forma de deixar de encarar a
realidade angustiante de se estar diante da morte, e de saber que ela é o destino de
todos nós.
Um retrato de alguém que já morreu vem, portanto, cumprir essa função: fixá-
lo em vida, em uma imagem viva, para afastá-lo da morte na qual ele já está
mergulhado. “Vemos então por toda parte os corpos tentando escapar, em imagens,
evidentemente, aos volumes reais de sua inclusão física, a saber, as tumbas [...]”.50
É como se a vida perdida do morto se transferisse para a imagem, “onde o corpo
será sonhado como permanecendo belo e bem feito, cheio de substância e cheio de
vida”.51 A imagem mascara a realidade daquele corpo, desvia nosso pensamento do
seu atual estado, faz “o retrato do morto evadir-se em direção a um alhures de
beleza pura, mineral e celeste... Enquanto seu rosto real continua, este, a esvaziar-
se fisicamente”.52
Debray, ao refletir sobre imagem e morte, reafirma o mesmo ao dizer que
fazer “[...] um duplo do morto para mantê-lo vivo e, por efeito indireto, deixar de ver
esse não-sei-o-quê em si”.53 O duplo do morto é uma forma de negação da morte,
da real condição desse corpo agora, pois a imagem real e atual do morto é
angustiante para seus familiares e amigos. É quase impraticável pensar essa
transformação, essa decomposição, essa violência a esse corpo até então tão
próximo. É preferível se ater a outras imagens dele, para desviar a atenção do real
48
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 40 49
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 41 50
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 42 51
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 40 52
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 43 53
DEBRAY, 1994, p. 29
24
lugar onde ele se encontra agora. Nas palavras de Debray, “[...] nós opomos à
decomposição da morte a recomposição pela imagem”54, o que também pode ser
lido em Didi-Huberman quando este elucida que “desaparecer (dispersar-se como
vida) equivale a assemelhar-se (solidificar-se como imagem)”.55
Portanto, ao se pintar o retrato de uma pessoa que já faleceu, é como se
estivéssemos fixando essa pessoa viva, é como se ela não tivesse morrido. Pois,
como ainda afirma Debray: “A imagem é o que é vivo de boa qualidade, vitaminado,
inoxidável. Enfim, fiável”.56 Ela nos dá uma certa segurança, pois ter um retrato de
alguém que já morreu nos faz lembrar da vida que ele teve, é como se nos desse
uma garantia de que aquela vida realmente existiu.
Ao mesmo tempo, um retrato de alguém que ainda é vivo também se
relaciona com a morte, pois, mesmo que ele esteja vivo no momento da realização
do quadro, irá morrer dentro de algum tempo, e provavelmente, o retrato sobreviverá
a ele, e todas essas questões do retrato do morto passarão a fazer parte daquela
imagem (FIG. 03).
54
DEBRAY, 1994, p. 30 55
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 40 56
DEBRAY, 1994, p. 26
FIGURA 03. José Maria Ribeiro. Retrato de Sr. Inhô. Óleo sobre tela, 1984. Fonte: Acervo do artista
25
Um retrato está sempre relacionado com uma ausência: o retratado não está
realmente presente na pintura. Essa ausência pode ser devido à morte, ou mesmo
um distanciamento, como nos mostra Nancy:
O retrato é feito para guardar a imagem na ausência da pessoa, seja essa ausência um afastamento ou a morte. Ele é a presença do ausente, uma presença in absentia que não é portanto somente encarregada da reprodução dos traços, mas de apresentar a presença enquanto ausente: de evocá-la (e mesmo de invocá-la) e também de expor, de manifestar a retirada onde se mantém esta presença. (...). É assim que o retrato imortaliza: ele torna imortal na morte”.
57
É interessante trazer ao texto a lenda de Dibutades58, considerada como a
origem da pintura, contada por Plínio o Velho em seu 35º livro das Histórias
Naturais: Dibutades sabia que seu prometido iria partir em breve para uma longa
viagem. No último encontro dos dois, a moça aproveita a sombra projetada do rosto
do rapaz na parede para marcar com um carvão sua silhueta, pois, já sabendo de
sua ausência futura, ela queria conservar algum traço de sua presença atual (FIG.
04). Sob esse olhar, o retrato nasce da necessidade de construir uma imagem de
alguém que irá se ausentar – por um afastamento ou pela morte. Esta é a lenda
sobre o nascimento da pintura, que se dá através de um retrato, já nos remetendo
para a questão da presença e da ausência, o que pode ser confirmado por Philippe
Dubois ao dizer que a “imagem pretende ultrapassar seu referente, eternizá-lo,
congelá-lo na representação, portanto substituir, como traço detido, sua ausência
inelutável”.59 E essa ausência, como nas palavras de Nancy, tanto pode ser devido a
um afastamento quanto devido à morte.
57
NANCY, 2000, p. 53-54. “Le portrait est fait pour garder l’image en l’absence de la personne, que cette absence soit un éloignement ou la mort. Il est la présence de l’absent, une présence in absentia qui n’est donc pas seulement chargée de la reproduction des traits, mais de présenter la présence en tant qu’absente: de l’évoquer (voire de l’invoquer), et aussi d’exposer, de manifester le retrait où se tient cette présence. [...] C’est ainsi que le portrait immortalise: il rend immortel dans la mort”. 58
Encontram-se referências sobre essa lenda em DEBRAY, 1994, p. 38, DUBOIS, 2008, p.117-122, e AZARA,2002, p.53, com algumas diferenças entre elas: em Debray e em Dubois a moça é filha de um oleiro de Sícion, em Dubois ela é chamada de Dibutades, e em Azara ela é filha do rei de Corinto, Boutades. 59
DUBOIS, 2008, p. 121
26
De acordo com Nancy, mais do que imortalizar uma pessoa, o retrato vai
apresentar a morte (imortal) nela. Ao pretender “revivificar” o modelo, o retrato está
na verdade apontando para sua morte, pois esta lhe é inerente. Contudo, ele está
ligado à morte em um sentido mais geral, e não apenas no sentido específico da
morte do retratado. Desta forma, o retratado está então imortalizado na morte. Para
esclarecer um pouco mais, Nancy assinala a diferença entre um retrato e uma
máscara mortuária: “A máscara toma a impressão do morto (obra tirada da morte), o
retrato coloca a própria morte na obra: a morte na obra em plena vida, em plena face
e em pleno olhar”.60
Nancy esclarece-nos ainda que os retratos expressamente ligados à morte
(os que trazem como elemento um crânio, por exemplo) não são muito numerosos, e
ele relaciona isso ao fato de que a morte já está presente em todos os retratos, já
faz parte deles, não necessitando de mais uma representação literal no quadro. “Na
60
NANCY, 2000, p. 54. “Le masque prend l’empreinte du mort (l’ouvrage frappé de la mort), le portrait met la mort elle-même à l’oeuvre: la mort à l’oeuvre en pleine vie, en pleine figure et en plein regard.”
FIGURA 04. David Allan. A origem da pintura, 1745. Fonte: DUBOIS, 2008, p. 119 e 359
27
maior parte do tempo, tudo se passa de preferência como se a morte (a ausência
infinita) não tivesse que ser um tema do retrato, visto que ela já é a presença ou a
substância (a subjetividade) dele”.61
O retrato de Camille Monet em seu leito de morte (FIG. 05), pintado por
Claude Monet, é um exemplo de retrato que tem a morte como tema: o artista pintou
sua mulher morta. Talvez tenha sido a forma que ele encontrou de lidar com a morte
da esposa, pois, como já foi assinalado, Didi-Huberman relaciona a atividade de
produzir imagens com um escape pretendido pela pessoa que está em contato com
a cisão que a morte provoca. Mas, o que quero assinalar aqui é o fato de ele ter
pintado a esposa morta. A maioria dos retratos quer fixar uma imagem da pessoa
viva, como forma de ludibriar a morte, e não é o caso desta obra de Monet. Se todo
retrato já traz em si a morte inerente, neste especificamente ela é duplicada. Monet
imortaliza sua esposa na morte.
61
NANCY, 2000, p. 55 (Em rodapé no 2). “La plupart du temps, tout se passe plutôt comme si la mort
(l’absence infinie) n’avait pas à être un thème du portrait, puisqu’elle en est déjà la présence ou la substance (la subjectité).”
FIGURA 05. Claude Monet. Camille Monet no seu leito de morte. Óleo sobre tela, 1879. Fonte: HEINRICH, 1995, p. 46
28
De acordo com a reflexão de Nancy de que o retrato está ligado à morte em
geral, concluímos que mesmo o retrato de alguém que ainda é vivo vai sempre
remeter à morte. O retrato de um jovem aos vinte anos o mata naqueles vinte anos.
Ele com vinte anos não existe mais. Ao mesmo tempo podemos pensar que ele foi
imortalizado aos vinte anos, e nesse sentido, ele continua a existir para sempre com
seus vinte anos. Deparamo-nos assim com mais um paradoxo do retrato: ao mesmo
tempo em que ele “mata” alguém que está vivo, ele também “revive” alguém que
está morto – e nos dois casos estamos lidando com a morte inerente ao retrato, que
ora se desdobra para a frente (morte) e ora se desdobra para trás (vida).
Retomando as formulações teóricas de Blanchot sobre a ambiguidade da
imagem, que a princípio nos evoca a presença do objeto (nesse caso a pessoa
retratada), mas que também nos traz a sua ausência (a pessoa não está ali, apenas
sua imagem), constatamos que essa “vida” que se pretende dar a um retrato de
alguém que já morreu é ilusória. No entanto, mesmo que esse retrato reafirme a
ausência da pessoa, ele de alguma forma, em algum momento, vai confortar os que
aqui ainda estão, trazendo-a de volta, ainda que ilusoriamente. Esta é uma das
funções da imagem, como nos mostra Blanchot:
Assim, a imagem preenche uma da suas funções, que é a de apaziguar, de humanizar o informe não-ser que impele em nossa direção o resíduo ineliminável do ser. Ela limpa-o, torna-o conveniente, amável e puro, e permite-nos crer, no âmago de um sonho feliz que a arte autoriza com demasiada frequência, que à margem do real e imediatamente atrás dele encontramos, como uma pura felicidade e uma soberba satisfação, a eternidade transparente do irreal.
62
A imagem conforta. É nesta eternidade transparente do irreal que se apega
quem está buscando, através de uma imagem, o que se perdeu. Ter um retrato de
alguém que já morreu, servir-se de sua imagem, ou de imagens da vida após a
morte, são parte do processo de luto, são formas de atenuar a crua dor de se
deparar com a morte. Isto pode ser confirmado em Didi-Huberman, quando este nos
fala sobre o homem da crença:
O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens
62
BLANCHOT, 1987, p. 256
29
corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos.
63
Nessa perspectiva, ter um retrato de alguém que já morreu, é uma forma de
lidar com essa morte. Através da minha experiência como retratista, sei que é bem
comum esse tipo de encomenda: filhos, esposos, irmãos ou pais, pedem um retrato
do familiar que já se foi (FIG. 06). Esse retrato é geralmente colocado na casa, em
um lugar de destaque. Ao mesmo tempo em que, como já foi dito, esse retrato traz
um conforto ao parecer deixar o retratado mais próximo, ele também vai de certa
forma, contribuir para que os que aqui ficaram consigam lidar melhor com essa
morte. Ao ver o retrato com frequência, a presença/ausência que ele carrega é mais
assimilada, mais digerida, a morte é encarada de frente, e não escondida e fechada
em um quarto, como muitas vezes é feito com os pertences do morto. A perda passa
a ser encarada com mais naturalidade, pois ela está ali, materializada naquele
quadro, dia após dia, e torna-se algo normal daquele cotidiano. De acordo com
Debray, “o trabalho do luto passa, assim, pela confecção de uma imagem do outro
valendo como liberação”.64 Através de imagens, tenta-se superar a perda.
63
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 48 64
DEBRAY, 1994, p. 30
FIGURA 06. Iara Ribeiro. Retrato de Edilson. Acrílica sobre tela, 2008. Fonte: Acervo da artista
30
E também o retrato localiza o morto. Devolve a ele um lugar naquela casa,
que ele não frequenta mais. Ali falta alguém que antes preenchia o espaço com sua
presença real, com seu corpo físico. Agora não há mais ninguém.
A morte, nas palavras de Blanchot, “suspende a relação com o lugar, se bem
que a morte nele se apoie pesadamente como na única base que lhe resta”.65 Um
morto, um cadáver que vemos diante de nós não está no seu lugar. Na verdade, ele
está aqui na nossa frente, mas ele está em outro lugar, que não sabemos qual. “A
presença cadavérica estabelece uma relação entre aqui e parte nenhuma”.66 O
morto já não é desse mundo, no entanto resta aqui ainda um despojo como que um
elo de ligação com a possibilidade de um outro mundo, um outro lugar inacessível e
desconhecido. Ele está aqui, mas ele não é o mesmo que em vida. Depois que o
morto é enterrado, essa sua relação com o lugar continua incerta para nós que aqui
ficamos. Sabemos localizar onde seu corpo está enterrado, no entanto aquele corpo
inerte não é mais ele, não é o vivo em si, aquele de quem sentimos a falta. E, em
breve, nem mesmo aquele corpo estará ali. “O lugar que ocupa é preparado por ele,
deteriora-se com ele e, nessa dissolução, ataca, mesmo para nós que ficamos, a
possibilidade de permanência”.67 Continuamos sem saber onde ele está. Para onde
foi? Temos a necessidade de localizar tudo. E a morte rompe com essa localização.
Já que não podemos localizar a pessoa que morreu, já que essa nossa
necessidade não será suprida realmente, procuramos localizar sua imagem.
Encontrar um lugar para a imagem do morto, para um retrato seu, é deixá-lo
novamente em algum lugar reconhecido, é dar de novo a ele essa relação humana
com o lugar, essa relação que ele tinha enquanto vivo. É uma forma de fazê-lo
permanecer. Colocar seu retrato na parede, o fixar ali, naquele espaço próximo a
nós, estabelecer de novo com ele uma relação de lugar própria dos vivos é devolver-
lhe um espaço em meio aos vivos. Se uma pessoa falta, e não há como tê-la de
volta, coloca-se em seu lugar uma imagem, seu retrato, como que para preencher
sua falta, materializar sua perda: “como se a imagem estivesse aí para preencher
uma carência, aliviar um desgosto”.68 Um retrato de alguém que não está mais
presente, o tira de seu não-lugar. A ausência daquela pessoa que morreu nunca
65
BLANCHOT,1987, p. 258 66
BLANCHOT,1987, p. 258 67
BLANCHOT,1987, p. 261 68
DEBRAY,1994, p. 38
31
poderá se tornar presença de novo, a não ser enquanto imagem – um desenho, uma
pintura, uma foto.
As pessoas que perdem alguém passam a ter um carinho especial pelos
retratos e fotografias do morto: é para o que dirigem seus cuidados e seu afeto a
partir de então. Por vezes elas até conversam com essas fotos e retratos. É a forma
que encontram para suprirem essa necessidade, terem algo que substitua o
interlocutor, com quem o diálogo foi abruptamente interrompido para todo o sempre.
Como nos esclarece Debray, esse é o resquício mágico da imagem, a qual desde os
nossos antepassados serviu como uma mediadora entre o mundo visível e o
invisível, entre o aquém e o além69.
Nas palavras de Maurice Blanchot, “permanecer não é acessível àquele que
morre”.70 E fixar a imagem em um retrato é talvez uma tentativa dessa permanência.
Mesmo que o que permaneça seja só a imagem, a ambiguidade que ela carrega vai
permanecer também, trazendo-nos ao mesmo tempo a presença e a ausência do
retratado.
Quando uma pessoa encomenda seu próprio retrato, podemos talvez pensar
que, embora inconscientemente, ela está buscando essa permanência. Em imagem,
ela irá permanecer para além da morte. Não será esquecida (o esquecimento é uma
forma de morte), de alguma maneira estará aqui, marcando sua presença (ainda que
a presença de sua ausência). De acordo com Debray, a transposição em imagem
“[...] é o melhor que acontece ao homem do Ocidente porque sua imagem é sua
melhor parte: seu ego imunizado, colocado em lugar seguro”.71 A imagem, nossa
própria imagem, nos dá segurança, pois ela resiste - e nós não resistimos: “[...]
Somente aquele que passa, e sabe disso, quer permanecer”.72 É por saber da
fugacidade da vida que queremos salvaguardar nossa imagem. É claro que não há
certeza de que uma pintura, uma escultura, vá durar para sempre: “Nenhuma
técnica de representação do mundo é imortal. Somente o é a necessidade de
imortalizar o instável, estabilizando-o”.73 Mas é quase certo que elas vão sobreviver
a nós, lembrando e prolongando nossa existência, ainda que em imagem.
69
Ler mais a esse respeito em DEBRAY, 1994, p. 32-35. 70
BLANCHOT, 1987, p. 258 71
DEBRAY, 1994, p. 26 72
DEBRAY, 1994, p. 28 73
DEBRAY, 1994, p. 40
32
Porém, ao desejar essa sobrevivência através de uma imagem, seja ela uma
fotografia ou uma pintura, a pessoa está ao mesmo tempo se deparando com a
morte, a morte daquele momento, como nos mostra Roland Barthes, em seu livro A
Câmara Clara74, ao falar sobre a fotografia: “No fundo, o que encaro na foto que
tiram de mim [...] é a Morte”.75 Assim é também com um retrato pintado, ele
estabelece uma relação com a vida e com a morte simultaneamente.
Para fazer retratos de pessoas que já morreram, baseio-me em fotografias
que os familiares guardam do morto. Barthes chama a fotografia de “[...] imagem que
produz a Morte ao querer conservar a vida”.76 Seu objetivo é fixar um momento, uma
pessoa. Mas na verdade a fotografia nos diz que aquele momento não existe mais,
aquela pessoa ou já morreu, ou ainda vai morrer. Mesmo em uma foto cujo modelo
ainda se encontre vivo, radiante, saudável, estamos vendo “[...] um futuro anterior
cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose [...], a fotografia me
diz a morte no futuro”.77
Barthes também está lidando com a ambiguidade da imagem revelada pela
fotografia, ao dizer que ela leva a crer que o objeto está vivo (pois ele foi real, a
fotografia atesta que ele um dia existiu), ao mesmo tempo em que sugere que ele já
está morto (pois já é passado, aquele momento não existe mais), ou seja, ela nos
remete simultaneamente à vida e à morte, à presença e à ausência do objeto
fotografado:
“[...] ao atestar que o objeto foi real, ela [a fotografia] induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar esse real para o passado (“isso foi”), ela sugere que ele já está
morto”.78
Estas questões da presença e ausência se encontram, portanto, também na
fotografia, como observado por Philippe Dubois, em seu livro O ato fotográfico79:
74
BARTHES, 1984 75
BARTHES, 1984, p. 29 76
BARTHES, 1984, p. 138 77
BARTHES, 1984, p. 142 78
BARTHES, 1984, p. 118 79
DUBOIS, 2008
33
Ver, ver, ver – algo que necessariamente esteve ali (um dia, em algum lugar), que está tanto mais presente imaginariamente quanto se sabe que atualmente desapareceu de fato – e jamais poder tocar, pegar, abraçar, manipular essa própria coisa, definitivamente desvanecida, substituída para sempre por algo metonímico, um simples traço de papel que faz as vezes de única lembrança palpável”.
80
Quando o retrato é pintado a partir de uma foto, essas questões de presença
e ausência são duplicadas, as questões que concernem à fotografia se somam às
do retrato. Também o retrato pintado carrega esse jogo entre o tempo da pose, que
existiu, e o tempo atual, que implica que aquela pessoa retratada pode não mais
estar no mundo.
Não é mais possível fotografar alguém que já morreu, pois o referente não
existe mais. Mas é possível ter novos retratos pintados dessa pessoa, feitos a partir
de fotografias de quando era viva. Esse pode ser um dos motivos pelos quais as
pessoas querem retratar alguém que já morreu: é uma forma – talvez a única – de
fazer surgir uma nova imagem daquela pessoa.
Quando recebo uma encomenda para retratar alguém que já morreu, sei que
tenho de ser cuidadosa com esse retrato. Pois sei que, na verdade, o que aqueles
familiares querem restituir através desse retrato não se tem como conseguir: eles
querem o retorno do que não volta. Logo, o trabalho do pintor, tomando
emprestadas as palavras de Nancy, deve “[...] tornar intensa a presença de uma
ausência enquanto ausência”.81
Na verdade, como nos lembra Nancy: “Os mortos estão mortos, mas
enquanto mortos eles não cessam de nos acompanhar, e nós não deixamos de
partir com eles”.82 Continuamos ligados aos mortos, e é o que nos faz querer ter
suas imagens, retratos pintados ou fotografias, para que, de uma forma ou de outra,
eles continuem perto de nós, nem que seja através de uma proximidade dada pela
distância, pela falta. Portanto, um retrato (e também fotos, filmagens) de uma
pessoa, atinge outro estatuto quando esta morre, pois passa a ser seu único vestígio
no mundo, uma espécie de mediação entre o mundo dos mortos e dos vivos.
A morte exige uma mediação para tornar-se mais aceitável, o além exige a
mediação de um aquém: “A imagem – primeiramente esculpida; em seguida pintada
80
DUBOIS, 2008, p. 313 81
NANCY, 2003b, p. 84. “[...] rendre intense la présence d’une absence en tant qu’absence.” 82
NANCY, 2003b: p. 64. “Les morts sont morts, mais en tant que morts ils ne cessent de nous accompagner, et nous ne cessons pas de partir avec eux.”
34
– é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos [...]”.83 Essa
mediação é feita através das imagens, e o retrato, nesse sentido, é um grande
mediador.
Sobre essa mediação, torna-se importante abordar uma passagem do livro
Noli me Tangere: Essai sur la levée du corps84, de Jean-Luc Nancy, em que o autor
elucida-nos, através do Evangelho de São João85, esse outro estatuto que a
imagem adquire com a morte. Neste ensaio, Nancy nos fala da presença/ausência
como uma intriga da imagem. Jesus aparece ressuscitado diante de seu túmulo
vazio para Maria Madalena. Ela, a princípio, não o reconhece, e pensa ser o
jardineiro. Era ele, mas ao mesmo tempo não era ele, já que ele estava morto. Sob
esse olhar, Blanchot, assinala que, ao estar diante de um morto (e no caso
específico do ensaio de Nancy, diante de um ressuscitado), nosso luto e nossos
cuidados não mais reconhecem o que visam, e fazem a presença cadavérica ser a
do desconhecido.86 Jesus ressuscitado era um desconhecido para Maria Madalena.
Ela o conhecia vivo, aquele que estava ali à sua frente ela nunca havia encontrado
antes.
Quem (ou o que) era aquele então que aparece no sepulcro? Jesus, mas não
mais ele mesmo. Seu espírito? Não um espírito, como nos mostra Nancy no
fragmento a seguir:
[...] só um corpo pode tocar ou não tocar. Um espírito não pode nada disso. Um “puro espírito” dá somente o índice formal e vazio de uma presença inteiramente fechada em si. Um corpo abre essa presença, ele a apresenta, ele a coloca fora de si, ele a distancia dela mesma[ ...].
87
Talvez não importe saber realmente quem ou o que apareceu para Maria
Madalena no sepulcro. O importante é saber que essa aparição apresentava a
ausência de Cristo, a presença de sua ausência. Nesse sentido, Blanchot contribui
83
DEBRAY, 1994, p. 33 84
NANCY, 2003b 85
Jo 20, 13-18 86
BLANCHOT, 1987, p. 259 87
NANCY, 2003b, p.79. “[...] seul un corps peut être abattu ou levé, parce que seul un corps peut toucher ou ne pas toucher. Un esprit ne peut rien de tel. Un ‘pur esprit’ donne seulement l’index formel et vide d’une présence entièrement close sur soi. Un corps ouvre cette présence, il la présente, il la met hors de soi, il l’écarte d’elle même [...].”
35
para um melhor entendimento desta cena bíblica analisada por Nancy ao falar sobre
a aparição:
O que se chama aparição é isso mesmo: é o “tudo desapareceu” que se torna, por sua vez, aparência. E a aparição diz precisamente que, quando tudo desapareceu, ainda existe alguma coisa: quando tudo falta, a falta faz aparecer a essência do ser que é de ser ainda onde falta, de ser enquanto dissimulado [...].
88
Quando algo desaparece, a ausência deste algo torna-se presente de forma
tão intensa, tão sentida, que é como se fosse concreta, como se ela aparecesse.
Tomando emprestadas as palavras de Blanchot, é uma “[...] ausência que se vê
porque ofuscante”.89
O retrato daquele que não está mais entre os vivos é feito a partir de sua falta,
vem ficar no lugar dessa falta, como uma aparição, como se estivesse concretizando
essa ausência, transpondo-a para a tela. Ao morrer, a ausência do morto passa a
existir para sempre, ela “aparece”.
Ao perceber que era Jesus quem estava lá, Maria Madalena estende o braço
em sua direção, e ele a adverte de não o tocar, não o deter, porque ele já está em
partida, ele parte em direção ao Pai (FIGS. 07 e 08). “Tocá-lo, retê-lo, seria aderir à
presença imediata, assim como seria crer no toque (crer na presença do presente),
seria perder a partida segundo a qual o toque e a presença vêm a nós”.90 Em uma
imagem não se toca. Mesmo se for tocado, Jesus não vai ser apreendido; ele é só
uma imagem, que implica sua perda.
A mesma intriga da imagem é também encontrada no episódio de Emaús91,
no qual Cristo ressuscitado caminha e conversa com dois discípulos sem ser
reconhecido, e somente quando estão à mesa para jantar, e Jesus reparte o pão, é
que eles o reconhecem. E no momento em que é reconhecido, ele desaparece.
Podemos interpretar que, assim que o reconheceram, e quiseram apreendê-lo como
se fosse o real, ele desaparece, pois, a imagem não é para ser apreendida, não
88
BLANCHOT, 1987, p. 255 89
BLANCHOT, 1987, p. 24 90
NANCY, 2003b, p. 29. “Le toucher, le retenir, ce serait adhérer à la présence immédiate, et de même que ce serait croire au toucher (croire à la présence du présent), ce serait manquer la partance selon laquelle la touche et la présence viennent à nous.” 91
Lc 24, 13-35
36
pode sê-lo. Se ela o for, perde seu estatuto enquanto imagem, e desaparece, é
como se não existisse.
Podemos ainda convocar o mito de Orfeu, por trazer-nos questões
relacionadas à presença, ausência, morte e desaparecimento. Após a morte de
FIGURA 07. Rembrandt. Noli me Tangere. Óleo sobre tela, 1651. Fonte: www.pubhist.com
FIGURA 08. Paulo Veronese. Noli me tangere. Óleo sobre tela, cerca de 1570. Fonte: www.wikipedia.org
37
Eurídice, Orfeu desce ao mundo dos mortos para buscá-la, e consegue a permissão
de trazê-la de novo à vida com a condição de não olhá-la durante a travessia entre
os dois mundos (FIG. 09). Já quase no final do trajeto ele não resiste e volta o olhar
para ela, que no mesmo instante desaparece. Olhar para Eurídice era uma tentativa
de apreendê-la, e ela não era para ser apreendida. Sua presença dependia de não
ser vista, dependia de sua “invisibilidade” que é também uma forma de ausência. Ela
está morta. Agora Orfeu só dispõe dela em imagem, aquela imagem onírica, que
não pode ser fixada, uma imagem que não volta à vida real que tinha antes, por
mais que se deseje isso. E, como nos sonhos em que acordamos no momento em
que vamos realizar algo que queremos, Orfeu a perde quando a olha, quando, ao
olhá-la, deseja tê-la de novo, da forma como era antes, e ela escapa.
Nesse sentido, a leitura de Blanchot do mito de Orfeu é pertinente para se
pensar na questão da imagem e da morte, na medida em que Orfeu não quer
Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo cotidiano, ele a quer:
FIGURA 09. Jean-Baptiste Camille Corot. Orfeu guiando Eurídice no mundo dos mortos. Óleo sobre tela, 1861. Fonte: www.ibiblio.org
38
[...] em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, [...] quer vê-la, não quando ela está visível mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida familiar mas como a estranheza do que exclui toda a intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua morte.
92
Segundo Blanchot, o mundo julga Orfeu por sua impaciência, mas na leitura
do autor, Orfeu na verdade queria Eurídice em imagem, inalcançável, para continuar
a cantar por ela. Eurídice está morta, e Orfeu sabe que não é mais possível tê-la de
novo.
Associo esse desejo de Orfeu por Eurídice, ao mesmo desejo de quem
encomenda o retrato de alguém que não está mais presente. Como se sabe que não
é mais possível ter a pessoa real, na vida cotidiana, procura-se por ela em sua
presença velada, na presença de sua ausência, em imagem. O que se quer na
verdade é a realidade (a presença real da pessoa), mas o que se pode ter é só o
véu (o retrato, a imagem – a ausência).
92
BLANCHOT, 1987, p. 172
39
Capítulo II.
SEMELHANÇA
Dans un bon portrait, la ressemblance mobilise tous les traits pour les tirer vers l’absence – ‘dedans’ et ‘dehors’ à la fois, derrière et devant le tableau – dont la ressemblance est proprement la semblance et l’assemblage.
Jean-Luc Nancy
A expectativa quando se faz um retrato é a de que ele esteja parecido, tenha
alguma semelhança com a pessoa retratada. Esta é uma das suas condições
primeiras, como nos mostra Nancy, em seu ensaio Le Regard du Portrait, ao
destacar que a semelhança parece ser a questão do retrato, e que este pode
aparecer como o único gênero da pintura que teria uma finalidade prática bem
determinada93: “[...] a semelhança imperiosamente desejada com a singularidade
individual [...]”.94 A ligação entre semelhança e retrato sempre foi tão grande, que,
como refere o autor, no século XVI a palavra semelhança significava também
retrato, e ele cita o exemplo da expressão “semelhança feita ao vivo”.95
Como o retrato alcança essa semelhança com o modelo? A princípio, espera-
se que, se copiarmos com habilidade técnica precisa as formas do rosto e os traços
físicos do modelo, estaremos garantindo ao retrato a verossimilhança desejada.
Logo, essa semelhança dependeria em grande parte da capacidade técnica do
pintor. Mas, isso seria suficiente para o retrato configurar-se semelhante à origem?
É somente a correspondência física que importa, ou seria necessário um algo a
mais?
Para estudar estas questões, recorro mais uma vez à análise de Nancy sobre
a cena Bíblica Noli me Tangere, na qual ele destaca, para além da ambiguidade da
imagem quanto à presença/ausência, também o paradoxo da imagem quanto à
semelhança. Para acompanhar o pensamento de Nancy, cito aqui o fragmento do
93
Esta finalidade levou o retrato a enfrentar julgamentos em relação ao seu valor artístico. Cf. NANCY, 2000, p. 38. Encontramos referência a esse assunto também em AZARA, 2002, p. 20-21, onde o autor aponta que até o século XIX o retrato era considerado um gênero menor, pois era praticado por motivos extra-artísticos, já que os retratistas estavam a serviço da realeza e da Igreja, e deviam reproduzir fielmente os traços do modelo, não podendo deixar solta sua capacidade criativa. 94
NANCY, 2000, p. 38. “[...] la ressemblance impérieusement desirée avec la singularité individuelle [...].” 95
NANCY, 2000, p. 49. “Ressemblance faite sur le vif”.
40
Evangelho de São João que narra o momento em que Jesus aparece ressuscitado
para Maria Madalena:
Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo,
e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés.
Então eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.
Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus.
Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.
Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Rabôni (que quer dizer Mestre).
Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.
Então saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe dissera estas cousas.
96
O que interessa a Nancy nesta cena é o fato de Maria Madalena não
reconhecer Jesus de imediato. Ela o confunde com o jardineiro (FIGS. 10 e 11). Por
que ela não o reconhece? Ele estaria diferente? Alguma mudança no seu
semblante, algo que justificasse o engano de Maria Madalena? Nancy propõe duas
hipóteses: uma na qual Maria Madalena, sabendo que Jesus estava morto, não mais
esperava vê-lo vivo, “[...] nem sequer dispunha desta ‘pré-visão’ ou desse conceito
anterior à imagem que permite ou que impõe a identificação”. E a outra hipótese
seria a de que Jesus não estava inicialmente reconhecível, “sendo ao mesmo tempo
e de fato ele próprio”.97
De acordo com a primeira hipótese, percebo que a semelhança não diz
respeito só ao objeto e a seu referente; diz respeito também a quem o observa, a
quem está diante dele. Por mais que fosse Jesus quem estivesse lá, Maria
Madalena não o reconheceu, pois ela não estava mais preparada para encontrá-lo,
96
Jo 20, 11-18 97
NANCY, 2003b, p. 47. “[...] elle ne dispose même pas de cette “pré-vision” ou de ce schème d’avant l’image qui permet ou qui impose l’idéntification; ou bien, Jésus lui-même n’est d’abord pas reconnaissable, tout en étant bel et bien lui-même.”
41
para vê-lo, já que não estava mais entre os vivos. Na verdade, não podia ser ele,
este era um encontro impossível de acontecer. E como Madalena nem contava com
essa possibilidade, a aparência física não importou nesse momento. Portanto, o não
reconhecimento acontece devido a quem observa, à Maria Madalena, a uma idéia já
assimilada de que Jesus não poderia mais ser visto.
A segunda hipótese também nos leva à questão da semelhança. Como, sendo
ele próprio, ele não estava reconhecível? Algo havia mudado no seu semblante?
Uma diferença essencial ele carregava: não estava mais vivo. Por mais que a
aparência fosse a dele, ao mesmo tempo já não era mais ele. Era apenas a sua
imagem, tal como nos esclarece Blanchot, ao tomar como exemplo a imagem do
despojo98 (um corpo morto) para trabalhar a ambiguidade da imagem com relação à
semelhança e dessemelhança: “algo está diante de nós, que não é bem o vivo em
pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o mesmo que o que era em vida, nem
98
Cf. BLANCHOT, 1987, p. 257-259
FIGURA 10. Rembrandt. Cristo aparecendo para Maria Madalena. Óleo sobre tela, 1638 Fonte: www.wikipedia.org e NANCY, 2003b
FIGURA 11. Albrecht Dürer. 32ª prancha da Pequena Paixão. Xilogravura, 1509-1511. Fonte: NANCY, 2003b
42
um outro, nem outra coisa”.99 A morte transforma a pessoa em um desconhecido,
em um estranho que guarda o paradoxo de ainda ser ele, mas não mais como era
em vida.
É importante destacar como as reflexões de Blanchot sobre o despojo estão
inteiramente em sintonia com as de Nancy em Noli me Tangere. Cristo, embora
ressuscitado, em seu “corpo glorioso”,100 passou pela experiência da morte, e
portanto, carrega essa estranheza inerente ao despojo, uma dessemelhança dentro
da própria semelhança:
Tudo acontece como se sua semelhança a si mesmo fosse por um momento suspensa e flutuante. Ele é o mesmo sem ser o mesmo, ele está alterado em si mesmo: não é assim que aparece um morto? Não é esta alteração ao mesmo tempo insensível e impressionante – o aparecer daquilo ou daquele que propriamente não aparece mais, o aparecer de um aparecido e desaparecido – que traz o mais propriamente e o mais violentamente a marca da morte? O mesmo que não é mais o mesmo, a dissociação do aspecto e da aparência, a ausência do rosto diretamente sobre a face, o corpo se afundando no corpo, deslizando sob ele. A partida inscrita na presença, a presença apresentando sua licença. Ele já partiu, ele não está mais lá onde ele está, ele não é mais como ele é. Ele está morto, quer dizer que ele não é aquilo nem aquele que ao mesmo tempo ele é ou ele apresenta. Ele é sua própria alteração e sua própria ausência. Ele não é nada mais do que sua própria impropriedade.
101.
Esse novo estatuto que a morte impõe coloca o morto como que em
suspensão, ele não se encaixa mais nas categorias mundanas, ele não é uma coisa
ou outra, ele carrega em si a ambiguidade que a morte lhe trouxe: ele é e ele não é
ao mesmo tempo.
A semelhança é nesse caso abalada pela morte, pois, por mais que ainda
conservasse sua imagem, ou melhor, por mais que Cristo agora fosse apenas sua
99
BLANCHOT, 1987, p. 258 100
Termo cristão usado para descrever o corpo de Cristo após a ressurreição. Segundo Nancy, “glorioso” designa “[...] a própria matéria do corpo que se torna completamente outra. Ela não é mais material, não é mais um corpo.” (NANCY, 2011, p. 35). “[...] la matière même du corps qui devient complètement autre. Elle n’est plus matérielle, ce n’est plus un corps.” 101
NANCY, 2003b, p.48-49. “Tout se passe comme si sa ressemblance à lui-même était un moment suspendue et flottante. Il est le même sans être le même, il est altéré en lui-même: n’est-ce pas ainsi qu’apparaît un mort? N’est-ce pas cette altération à la fois insensible et saisissante – l’apparaître de ce(lui) qui proprement n’apparaît plus, l’apparaître d’un apparu et disparu – qui porte le plus proprement et le plus violemment l’empreinte de la mort? Le même qui n’est plus le même, la dissociation de l’aspect et de l’apparence, l’absentement du visage à même la face, le corps s’enfonçant dans le corps, glissant sous lui. La partance inscrite sur la présence, la présence présentant son congé. Il est déjà parti, il n’est plus là où il est, il n’est plus comme il est. Il est mort, c’est-à- dire qu’il n’est pas cela ni celui qu’en même temps il est ou il présente. Il est sa propre altération et sa propre absence: il n’est proprement que son impropriété.”
43
imagem, isto não foi suficiente para que Maria Madalena o reconhecesse. Ela só foi
reconhecê-lo quando ele a chamou pelo nome. O reconhecimento é realizado por
um algo a mais, que escapou à visibilidade, que foi além da aparência. Pela sua
voz? Mas ele já havia falado com ela antes, lhe perguntado por que chorava. Se
fosse só pela voz ela já o teria reconhecido. Talvez ao ouvir o seu nome: “Maria”,
nome dito por aquele que tantas outras vezes a havia chamado. Algo naquele
chamado a fez reconhecê-lo, a fez coincidir novamente a voz e a aparência naquele
que ela conhecia.
Nancy cita outro episódio bíblico, o de Emaús, em que Jesus ressuscitado
também não é reconhecido por dois discípulos que caminham ao seu lado e
conversam com ele, como podemos ler no trecho a seguir:
Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios.
E iam conversando a respeito de todas as cousas sucedidas.
Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles.
Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer.
[...]
Quando se aproximavam da aldeia onde iam, fez ele menção de passar adiante.
Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou para ficar com eles.
E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu;
então, se lhe abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.
E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?
E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles,
os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão!
Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.
102
Os discípulos só vão reconhecer Jesus através do gesto de sua mão ao
repartir o pão (FIG. 12). Sua semelhança é dada nesse caso pelo gesto, e em Noli
me Tangere pela palavra que pronuncia. A aparência física, nesses dois casos,
102
Lc 24, 13-35
44
configura-se como uma “[...] semelhança que não se deixa reconhecer [...]”103, sendo
necessário algo a mais para que o reconhecimento seja efetuado.
Partindo da hipótese de que Jesus não foi reconhecido de imediato por Maria
Madalena e pelos discípulos devido ao fato de ter morrido, e que, mesmo
ressuscitado, não era mais o mesmo vivo que eles conheceram, estabeleço uma
relação com a noção de Blanchot sobre a semelhança cadavérica. Quando vemos
um corpo sem vida, por mais que possamos reconhecer a imagem daquele corpo,
não reconhecemos por completo a pessoa, já não é mais ela. Falta algo, que a
identificava como a pessoa que conhecíamos. Paradoxalmente, a pessoa que
conhecíamos em vida é aquela que vemos à nossa frente, em sua forma física. Mas
o algo que falta turva o reconhecimento e traz um estranhamento: por não ser mais
o vivo, o despojo passa então a se assemelhar a si próprio em sua imobilidade.
A si mesmo. Não será essa uma expressão defeituosa? Não se deveria dizer: àquele que era, quando tinha vida? A si mesmo é, entretanto, a fórmula correta. Si mesmo designa o ser impessoal, distanciado e inacessível, que a semelhança, para poder ser semelhança de alguém, atrai também para o dia. Sim, é realmente ele, o querido vivo, mas é, não obstante, mais do que ele, é mais belo, mais imponente, já monumental e
103
NANCY, 2003b, p. 81. “[...] ressemblance qui ne se laisse pas reconnaître [...]”.
FIGURA 12. Abraham Bloemaert. Ceia em Emaús. 1622. Fonte: www.pubhist.com
45
tão absolutamente si mesmo que é como o doublé dele próprio, unido à solene impessoalidade dele pela semelhança e pela imagem.
104
Uma pessoa é a junção de sua forma física com a vida que tem, esse algo
insubstancial e inapreensível. Com a morte, a vida vai embora, e o que resta (o
corpo físico) é só a aparência, é como uma estátua, uma escultura de si mesmo,
uma máscara daquele que foi. E essa aparência passa a se assemelhar àquele que
era antes, e que hoje é impessoal e inacessível.
E se o cadáver é tão semelhante, é porque, num certo momento, é a semelhança por excelência, semelhança plena, e também nada mais é. É o semelhante, semelhante num grau absoluto, perturbador e maravilhoso. Mas a que se assemelha? A nada.
105
Para aquele que morre só resta a semelhança, ainda que aquilo a que ele se
assemelha neste caso não exista mais, por isso Blanchot diz que ele se assemelha
a nada. Talvez por isso essa semelhança nos seja estranha: vemos diante de nós
um corpo que não mais reconhecemos como quando em vida, embora ele ainda
conserve sua aparência. Para acompanhar esse complexo pensamento de Blanchot
sobre a semelhança cadavérica e ajudar na sua compreensão, trago um fragmento
de Guimarães Rosa, retirado do prefácio Aletria e Hermenêutica do livro
Tutaméia106, sobre o verdadeiro gato: “O menino explicava ao pai a morte do
bichinho: – ‘O gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato.’ ”.107 A junção foi
desfeita, a vida foi embora, só restou a aparência do gato, a semelhança por
excelência.
Um corpo sem vida só guarda, da pessoa que foi, a imagem e a semelhança,
tal como nos esclarece também Nancy: “A pessoa não está mais aqui. Seu corpo
está aqui, por algum tempo limitado, mas a pessoa não está mais aqui de forma
alguma”. 108
Quando uma pessoa morre, o referente com o qual uma imagem pode se
assemelhar não está mais presente: como se dá então a semelhança? Se olharmos
104
BLANCHOT, 1987, p. 259 105
BLANCHOT, 1987, p. 260 106
ROSA, 1985 107
ROSA, 1985, p. 13 108
NANCY, 2011, p. 33-34. “La personne n’est plus là. Son corps est là, pour un certain temps limité, mais la personne n’est plus là du tout.”
46
um retrato pintado de alguém que já morreu, nosso referencial passa a ser as
lembranças, a imagem daquela pessoa que guardamos na memória, pois ela não
está mais aqui, como nos mostra Didi-Huberman: “sua semelhança vai se transmitir,
e ‘eternamente, ela está aí’ (o que quer dizer que ela não está aqui, e, portanto, que
não é inteiramente dela a aparição que ruminaremos daqui por diante)”.109
É mais difícil pintar um retrato de alguém que já morreu, no sentido de que é
mais difícil atingir uma semelhança que agrade às pessoas que o encomendaram,
pois os sentimentos, a dor da perda, a relação que se tinha com o retratado se
inserem na forma como elas se lembram dele, e já que essa forma é subjetiva, o
retratista pode não ter essa mesma percepção. E como o referente não existe mais,
torna-se uma imagem que não tem com o que se assemelhar, que não tem mais
uma base de comparação, a não ser essa lembrança afetada por sentimentos
guardada pelos que ainda estão no mundo. O rosto pintado na tela torna-se como “o
rosto de ninguém, um meio de semelhança sem ninguém a quem se assemelhar
definitivamente.110
Quando a pessoa morre, são as fotos, os vídeos e os retratos (pintados,
desenhados, esculpidos) que passam a ser considerados como referentes, ou
melhor, os substitutos do referente, mas é importante ressaltar que são essas
imagens (fotos, vídeos, retratos) que não tem mais referente, e portanto, não tem
mais a que se assemelhar:
O exemplo do despojo trazido por Blanchot permite-nos afirmar que a
aparência física não é o grande referente a se levar em conta quando se especula
sobre a semelhança, como foi visto também através da análise de Nancy tanto na
cena Noli me tangere quanto no episódio de Emaús. Portanto, o físico é apenas um
dos dados a se levar em conta. Existe um algo a mais que vai fazer a imagem
assemelhar-se ou não com o objeto referente. No caso dos retratos, algo talvez no
olhar, talvez num gesto, algo que dependa da experiência pessoal do observador
frente ao objeto retratado. Algo que está além da aparência formal: “A semelhança
fiel consiste em mostrar outra coisa além da correspondência dos traços”.111 O
retrato deve mostrar uma pessoa, ao invés de só os traços de um modelo.
109
DIDI-HUBERMAN, 2011, p.39 110
DIDI-HUBERMAN, 2011, p.32 111
NANCY, 2000, p. 43. “La ressemblance fidèle consiste bien à montrer autre chose que la correspondence des traits”.
47
Para discutir sobre a semelhança nos retratos, Nancy analisa o Autorretrato
de Johannes Gumpp (FIG. 13), no qual o pintor aparece de costas, pintando seu
retrato através de um espelho. Vemos o seu rosto refletido no espelho e pintado no
quadro. De acordo com o autor, o quadro é consagrado mais ao pintar, do que ao
pintor que se pinta, e a pintura é que é o tema do quadro, “ela é, muito
ostensivamente, o tema de sua semelhança”.112
No quadro há duas representações do rosto do pintor: a do espelho e a do
quadro. Temos duas vezes a semelhança, e duas semelhanças distintas. “O quadro
mostra a dessemelhança das semelhanças”.113
112
NANCY, 2000, p. 41. “Elle est, très ostensiblement,le sujet de sa ressemblance.” 113
NANCY, 2000, p. 41. “Le tableau montre la dissemblance des ressemblances.”
FIGURA 13. Johannes Gummp. Autorretrato. Óleo sobre tela, 1646. Fonte: CINQ CENTS, 2000, p.164 e NANCY, 2003b
48
Nancy questiona então, onde se configura a verdadeira semelhança: no
espelho ou no retrato? Para o autor, o próprio quadro nos fornece a resposta através
dos dois animais domésticos que aparecem na cena: o cachorro abaixo do retrato
está no primeiro plano e simboliza a fidelidade, enquanto que o gato sob o espelho
apresenta-se um pouco mais atrás e indica uma fidelidade menos clara. Em outro
detalhe podemos ver o nome Johannes Gumpp escrito em um papel sobre o retrato,
como se estivesse indicando onde ele se encontra realmente. Logo, tudo colabora
para mostrar o retrato como sendo o portador de uma semelhança mais genuína, em
detrimento da imagem refletida no espelho. O autor demonstra-nos que a
semelhança formalmente exata, que o reflexo do espelho fornece apesar da
inversão de lados, não é a mesma semelhança fornecida pelo retrato pintado, que
vai além da reprodução fiel das formas: “O reflexo (ou o duplo) só acontece in
praesentia, o retrato está in absentia: ele é por essência e em todo sentido exposto à
ausência”.114
Para um reflexo no espelho, o objeto refletido tem que estar presente. Assim
que ele se ausenta, o reflexo também se perde. Já para o retrato, não: ele se
configura justamente na ausência do retratado, ele precisa dessa ausência para se
constituir, e é nessa ausência que ele sobrevive.
Nancy assinala ainda a diferença instaurada pelos dois olhares presentes no
quadro (FIG. 14). A imagem do espelho olha para o pintor, e a do quadro olha de
lado, olha para quem olha a tela (e consequentemente olha – olhou – para o pintor
enquanto pintava verdadeiramente o quadro). O olhar da imagem refletida no
espelho é um olhar técnico, preocupado em se observar para reproduzir suas
formas, enquanto que o olhar do retrato está fora dali, ele espreita. Segundo Nancy,
esse olhar mobiliza todo o rosto a partir de alguns traços discretos, ele mostra mais
uma pessoa do que só traços de um modelo.
Ainda sobre esse jogo de olhares representado no quadro, poderíamos supor
que ele aponta para a impossibilidade de existência de um único ponto de vista
sobre uma pessoa: esta está sempre sujeita a uma pluraridade de olhares, e cada
qual a vê de determinado ângulo, o que leva a diferentes formas de se ver a mesma
pessoa, e consequentemente a sua imagem.
114
NANCY, 2000, p. 45-46. “Le reflet (ou le double) n’a lieu qu’in praesentia, le portrait est in absentia: il est par essence et en tous sens exposé à l’absence.”
49
Nancy vai apontar por fim uma outra forma de semelhança que o quadro
apresenta, que são as costas do pintor que aparece pintando, a cujo olhar só temos
acesso pelos reflexos e efeitos (espelho e retrato). Segundo o autor, é aí que reside
“[...] a semelhança em sua extrema verdade [...]”.115 A representação mais direta do
pintor é o seu vulto de costas, e é nele, na sua presença velada, na ausência do seu
rosto real, que a semelhança é mais verdadeira. As imagens que aparecem dos
seus rostos estão mediadas por um espelho e por uma tela. O seu verdadeiro rosto
não aparece, está ausente.
Esta ausência significa para nós que o quadro só é semelhante à medida em que expõe esta ausência, a qual por sua vez não é nada mais do que a condição pela qual o sujeito se relaciona consigo mesmo e assim se assemelha. “Assemelhar-se” não é nada mais do que ser si mesmo ou o mesmo que si”.
116
Neste sentido, a semelhança, no retrato de Joahnes Gummp, se relaciona
com a ausência do rosto. É preciso que o rosto realmente não esteja ali, para que
sua imagem possa ser semelhante a ele, e neste retrato encontramos justamente
essa ausência que permite a semelhança. Não vemos o nosso próprio rosto a não
ser em algum espelho, foto, ou retrato. Temos nossa própria imagem sempre
115
NANCY, 2000, p. 46. “[ ...] la ressemblance en son extrême vérité.” 116
NANCY, 2000, p. 47. “Cette absence nous signifie que le tableau n'est ressemblant que pour autant qu’il expose cette absence, laquelle à son tour n’est rien d’autre que la condition dans laquelle le sujet se rapporte à lui-même et ainsi se ressemble. ‘Se ressembler’ n’est rien d’autre qu’être soi-même ou le même que soi.”
FIGURA 14. Johannes Gummp. Autorretrato (detalhe). Óleo sobre tela, 1646. Fonte: CINQ CENTS, 2000, p.164
50
mediada por um outro suporte. Nosso rosto nunca foi realmente visto por nós
mesmos. “Eu só me ‘assemelho’ em um rosto sempre ausente a mim e fora de mim,
não como um reflexo, mas como um retrato levado ao meu encontro, sempre
adiantado em relação a mim”.117
Essa ausência de rosto reforça a ausência real do retratado: ele realmente
não está no retrato, temos ali só uma imagem, e Gummp afirma essa ausência ao
representar a si mesmo de costas: no retrato, nem o retratado, nem o pintor estão
realmente presentes.
As semelhanças apontadas por Nancy no Autorretrato de Johannes Gummp
nos mostram como a semelhança pode se desdobrar em um retrato, em uma
imagem. Didi-Huberman destaca que “nunca se consegue acabar com uma
semelhança: ela envia sempre para uma outra, ao menos”.118 Segundo o autor, o
reino da imagem compreende uma remissão perpétua de semelhança a
semelhança: traços vão remeter a outros traços, fazendo da semelhança “um meio
impessoal, fluido mas opaco, espécie de intangível drapeado que envolveria todas
as coisas e não teria fim”.119
Sob esse sentido, portanto, a semelhança mais uma vez não seria um dado
exato, fechado e concluído, e sim, algo que escapa, ela se constituiria de
semelhanças que se ligam, se separam, e estabelecem entre si um movimento
interminável, como nos confirma Didi-Huberman: “A semelhança como tal, não seria,
portanto, nada mais do que seu próprio movimento interminável, de semelhança a
semelhança [...]”.120
Diante de um retrato, podemos sentir esse reenvio de semelhanças: ora é a
semelhança física que salta aos olhos, ora é uma semelhança dada por um gesto,
por uma voz, por uma lembrança, ora é uma semelhança genealógica, ora não
vemos nele semelhança nenhuma.
Cabe observar que as pessoas se modificam e envelhecem. Logo, a
fisionomia sofre alterações ao longo do tempo. Como, portanto, se assemelhar a
algo que está em constante transformação? Um retrato vai captar um aspecto do
modelo, em um dado momento de sua vida, mas com o passar do tempo ele vai se
117
NANCY, 2000, p. 48. “Je ne ‘me ressemble’ que dans un visage toujours absent à moi et au dehors de moi, non comme un reflet mais comme un portrait porté au devant de moi, toujours en avance sur moi.” 118
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31 119
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32 120
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32
51
dessasemelhando da imagem real da pessoa, que estará mais velha, com traços
mais marcados, com outras feições. Ao olharmos um retrato de alguém que
conhecemos, pintado há alguns anos ou a partir de uma foto antiga, podemos sentir
um estranhamento quanto à semelhança, pois a pessoa já mudou, e portanto, não
“coincide” tanto com a imagem pintada. O retrato pode guardar alguma semelhança
com seu modelo na atualidade, porém esta é uma semelhança paradoxal, pois o seu
referente já não existe mais da forma como existiu no momento em que a imagem
foi pintada (ou, quando o retrato é pintado a partir de uma fotografia, no momento
em que a foto foi tirada). Não existe um referente absoluto, ele se transforma com o
tempo. Isso faz com que, “[...] a semelhança interminável seja uma interminável
falha, uma interminável lacuna, portanto uma interminável infelicidade”.121 Sob esse
olhar, a semelhança não é um dado exato, ela se constrói de ausências, de
resquícios, de algo que está além ou aquém da exatidão das formas físicas.
Sobre essa semelhança trazida por falhas e ausências, torna-se importante
destacar as reflexões de Barthes a respeito, ainda que seu objeto de análise esteja
circunscrito ao campo da fotografia. Porém, suas discussões são pertinentes para se
pensar também os retratos pintados, que, em sua maioria, são feitos atualmente a
partir de fotografias do modelo.
Barthes procura esse algo a mais que ultrapassa a semelhança puramente
formal, pois esta o deixa insatisfeito, decepcionado e cético, já que ela remete
apenas à identidade do sujeito, que para ele torna-se insignificante. Na verdade, o
que Barthes quer é encontrar o ser por inteiro, em essência, que escapa à fotografia
enquanto reflexo e reprodução de uma imagem. O autor chama esse algo que
escapa à reprodução técnica de uma foto de ar. Este ar não é um dado
esquemático, intelectual, como uma silhueta, nem tampouco uma simples analogia,
como a semelhança. “[...] O ar é essa coisa exorbitante que induz do corpo à alma
[...] pequena alma individual [...]”.122 Essa pequena alma individual exprime o sujeito,
e faz coincidir o retrato ao retratado. O ar é “[...] como que o suplemento intratável
da identidade [...]”.123
Interessante ressaltar que o ar é justamente o que é necessário para a
respiração, o homem depende dele para viver. Não é à toa, portanto, que Barthes
121
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 38 122
BARTHES, 1984, p. 159 123
BARTHES, 1984, p. 160
52
chama de ar esse algo a mais que vai permitir a identificação do modelo em uma
foto: o que ele busca nas fotografias é justamente uma “vida”, algo que “salve” o
modelo da morte e da fixidez em que a fotografia o insere.
De acordo com Barthes, é o ar que faz o retrato permanecer, levando o autor
a se questionar sobre o que vem a ser uma foto “parecida”:
[...] ao refletir sobre isso, sou obrigado a me perguntar: quem parece com quem? A semelhança é uma conformidade, mas a quê? A uma identidade. Ora, essa identidade é imprecisa, imaginária mesmo, a ponto de eu poder continuar a falar de “semelhança”, sem jamais ter visto o modelo. [...] Vejo-os todos, posso espontaneamente dizer que são “parecidos”, já que estão conformes ao que espero deles.
124
Assim, achamos um retrato parecido quando ele está conforme o que
esperamos dele, conforme a imagem que temos da pessoa, a identidade que se
formou dessa pessoa em nós. De acordo com o autor, essa identidade é imaginária
e imprecisa, o que significa dizer que cada um constrói uma identidade para o outro
de acordo com a relação que se tem com esse outro. É a convivência e as
experiências vividas que permitem constituir o sujeito não só por suas características
próprias, mas também a partir do nosso olhar e da nossa percepção em relação a
ele.
O trabalho com retratos permite observar como as experiências reafirmam as
questões levantadas por Blanchot e Nancy quanto à idéia de semelhança que
muitas vezes traz o estranhamento do não reconhecimento. Por vezes, ao mostrar
um retrato a algumas pessoas, ou ao entregá-los àqueles que o encomendaram, a
semelhança é questionada por alguns, enquanto por outros é julgada
completamente satisfatória. Trata-se de uma mesma imagem de uma mesma
pessoa. Como então uns podem achar parecido, e outros não? O que está em jogo
na semelhança é esse algo a mais incapturável pelo olhar, designado por Barthes de
ar. E esse ar não é percebido por todos da mesma maneira, ele depende da
percepção de cada um a respeito do outro.
Barthes relata ter sido fotografado diversas vezes, e os fotógrafos “erraram”
seu ar. Ou seja, ele não se viu realmente retratado ali. As fotos não estavam
conforme o que ele esperava de sua imagem, conforme ele se via, conforme a
124
BARTHES, 1984, p. 150
53
imagem que ele gostaria de dar de si mesmo. Como vimos em Nancy, nós não
vemos a nós mesmos: “[...] meu rosto invisível como me é sempre”.125 Ver uma
imagem do nosso próprio rosto causa uma estranheza, é sempre uma indagação:
como saber se um retrato nosso está parecido realmente ou não, já que nunca
vimos nosso rosto realmente? Nesse caso julgamos a semelhança conforme a
imagem que acreditamos ser a nossa, conforme a imagem que gostaríamos de dar
de nós mesmos. E também através do algo a mais, do ar, que está além da
aparência física. Essa estranheza de ver o próprio rosto retratado pode ter
contribuído para que Barthes não se reconhecesse nas fotos, mas talvez o mais
determinante tenha sido o fato de a identidade que ele construiu de si mesmo não
coincidir com a que o fotógrafo percebeu e dele captou.
No retrato pintado está implícita uma multiplicidade de olhares sobre uma
mesma pessoa, o que implica também uma multiplicidade de percepções sobre ela,
devido às diferentes formas de ver e às diferentes formas que a coisa vista se dá a
ver. O retratista pode evidenciar mais um determinado aspecto do que outro no
modelo que tem diante de si: “cada retrato meu identificará uma outra
semelhança”.126 Fica claro que a semelhança está envolvida numa rede intrincada
de percepções e na dependência de aspectos muitas vezes mutáveis. Uma mesma
pessoa pode ser retratada mais de uma vez, (por dois retratistas diferentes, ou até
por um só) e ter dois retratos completamente distintos entre si (FIGS. 15 a 18). Logo,
um rosto não é uma imagem fechada, exata, sempre igual. Ele configura inúmeras
variações – que vão depender do ângulo sob o qual ele se dá a ver, da iluminação,
das diferentes expressões que pode apresentar. Um retrato capta somente algumas
dessas variações.
Sobre essa multiplicidade de olhares e diferentes formas de se ver a mesma
imagem, trago novamente as formulações teóricas de Didi-Huberman sobre o que
vemos e o que nos olha. Na verdade, a semelhança tem a ver com o que nos olha,
que é o que nos diz respeito, o que tem a ver conosco, o que nos cerca,
determinando, irremediavelmente, a relação que temos com a pessoa retratada. O
que nos olha, o que é fisgado pelo nosso olhar, ultrapassa a visibilidade. Portanto o
pintor, ao fazer o retrato, estará submetido a essa trama do olhar. O que olha para
ele enquanto pinta o modelo, diz respeito só ao pintor. Desta forma, ele pinta o
125
NANCY, 2000, p. 48. “[…] mon visage invisible comme il me l’est toujours.” 126
NANCY, 2000, p. 49. “Et chaque portrait de moi identifiera une autre ressemblance.”
54
retrato a partir do modelo e a partir de si próprio. E essa percepção é individual, ela
pode ou não coincidir com a percepção de uma outra pessoa sobre esse modelo. Da
mesma forma, quem vê um retrato vai achá-lo semelhante ou não devido ao que
esse retrato lhe devolve com o olhar, o que por sua vez, também estará com ela
relacionado.
FIGURA 17. Iara Ribeiro. O pintor (Retrato de José Maria). Acrílica sobre tela, 2010. Fonte: Acervo da artista
FIGURA 18. José Maria Ribeiro. Autorretrato. Óleo sobre tela, 2001. Fonte: Acervo do artista
FIGURA 15. André Derain. Retrato de Matisse. Óleo sobre tela, 1905. Fonte: www.arthistoryguide.com
FIGURA 16. Henri Matisse. Autorretrato. Óleo sobre tela, 1906. Fonte: www.wikipedia.org
55
O exemplo das reflexões de Barthes, após a morte de sua mãe, elucida-nos
sobre essa trama a que o olhar está submetido irremediavelmente. Ao procurar
reconhecer sua mãe recém-falecida nas fotos de família, Barthes só a reconhecia
aos pedaços, nunca alcançava todo o seu ser. Só foi encontrá-la verdadeiramente
em uma foto antiga, a Fotografia do Jardim de Inverno, de quando ela era ainda
criança, ou seja, numa época que ele nem existia, num rosto que ele não conheceu,
que não se parece com o que ele se lembra dela, mas foi nesse rosto que ele a
encontrou: “[...] brusco despertar, fora da ‘semelhança’ [...]”.127 As fotos em que ela
aparecia adulta, da forma como era quando conviveram, não lhe diziam nada, não
correspondiam à sua mãe. Fica claro que a semelhança física também não foi
fundamental para Barthes a reconhecer. A imagem de sua mãe criança foi a única
que coincidiu com a ideia que dela possuía em suas lembranças, com os seus
sentimentos em relação a ela, ou seja, foi a única foto que entrou em ressonância
com a imagem que o autor guardava de sua mãe, e que só pertencia a ele próprio. E
essa “imagem” compreendia, mais do que sua aparência física: compreendia o
afeto, o sentimento, a relação mãe e filho, o ar de sua mãe.
Barthes opta por não mostrar a foto do Jardim de Inverno em seu livro, pois,
para os outros, ela seria só mais uma foto qualquer: “Não posso mostrar a Foto do
Jardim de Inverno. Ela existe apenas para mim. [...] nela, para vocês, não há
nenhuma ferida”.128 Essa afirmação do autor reafirma o pensamento de Didi-
Huberman: o que olha Barthes nessa foto olha só para ele, ninguém mais veria essa
imagem da forma como ele a via, forma relacionada com todas as experiências
vividas ao lado de sua mãe, em sua convivência e em sua perda:
[...] Cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de idéias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem –, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue.
129
A perda da mãe é primordial para determinar a forma como Barthes agora
enxerga a Fotografia do Jardim de Inverno, e cujo reconhecimento remete à
existência do semelhante naquilo que não é apreensível apenas pela forma física,
127
BARTHES, 1984, p. 160 128
BARTHES, 1984, p. 110 129
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 33
56
mas por algo que ultrapassa a visibilidade, algo insubstancial, imaterial, que emerge
das imagens e que vai além da cópia do referente.
Sobre esse algo que ultrapassa a visibilidade, retomo Blanchot, para reafirmar
na imagem seu estatuto de ambiguidade. Levando em consideração o fato de a
convenção comum estipular que a imagem seja a continuação do objeto, surja
depois dele, o retrato seria então, sobre esse aspecto, totalmente ligado ao seu
referente: primeiro existe a pessoa, e depois o seu retrato. Porém, o autor nos
mostra que a imagem é ambígua, que o imaginário tem duas versões, e que ao
mesmo tempo em que ela vem a partir de um objeto, tendo-o como referente, ela
também é independente dele, ela aparece onde o objeto já não mais existe, e
portanto, ganha autonomia em relação a ele. Importante esclarecer que embora
Blanchot utilize o termo duas versões para abordar a ambiguidade da imagem, ele,
como já referimos, não as hierarquiza em primeira e segunda, pois na verdade, para
o autor, uma não exclui a outra, são como faces da mesma moeda, que se alternam
simultaneamente.
A imagem pode existir com ou sem o objeto como pano de fundo. Podemos
pensar que o retrato pode existir sem estar vinculado apenas ao seu modelo. Este
pode ter existido e ter sido importante durante sua elaboração, mas a partir do
momento em que o retrato está pronto, o modelo se retira, e a imagem retratada
existe por si só. O referente não está lá, não está presente mais. A imagem
dispensa-o e funda-se na ausência dele.
Portanto, a imagem, ainda que se assemelhe ou não ao seu referente, torna-
se independente dele. Um retrato, antes de ser o retrato de alguém, é um retrato,
uma pintura. Quando vemos um retrato de alguém que não conhecemos, que nunca
vimos antes (FIG. 19), sentimos essa independência. Vemos sem a comparação,
sem relacioná-lo com uma pessoa determinada. Vemo-lo como imagem somente. E
é essa talvez a melhor forma de ver um retrato, sem interferências. Quando
conhecemos a pessoa retratada, na maioria das vezes, a primeira coisa que
fazemos é comparar, constatar uma semelhança.
57
Nancy reconhece que a identificação do modelo pode até ser essencial ao
retrato que é feito com o objetivo do reconhecimento, mas não é essencial à arte do
retrato, ou seja, um bom retrato não é somente aquele que é parecido com o
referente.130 O autor chega mesmo a dizer que o “modelo é inessencial ao retrato,
ou mais exatamente, ele é o essencialmente ausente do retrato, do qual só importa
a ausência, e não o reconhecimento. A semelhança não tem nada a ver com o
reconhecimento”.131
Nancy nos lembra de que desconhecemos os modelos da maioria dos
retratos que contemplamos, e cita como exemplo a Monalisa (FIG. 20), o “arquétipo
dos retratos”, cuja identidade do modelo nos é desconhecida. Talvez seja essa
incerteza que lhe confere seu lugar lendário. O autor nos aponta ainda o fato de
130
NANCY, 2000, p. 39-40 131
NANCY, 2000, p. 40. “[...] le modèle est inessentiel au portrait, ou plus exactement qu’il en est l’essentiellement absent dont seule importe l’absence, et non la reconnaissance. La ressemblance n’a rien à voir avec la reconnaissance.”
FIGURA 19. Rafael Sanzio. Retrato de mulher (Velata). Óleo sobre madeira, 1516. Fonte: MANDEL, 2007, p. 18-19
58
muitas vezes gostarmos de retratos que foram julgados insatisfatórios sob o ponto
de vista do reconhecimento.132
De acordo com Nancy, o retrato:
[...] não se assemelha a um original, mas ele se assemelha à Ideia de semelhança a um original – ou de preferência, ele é ele mesmo o “original” da semelhança consigo, de um sujeito em geral, mas cada vez também de um sujeito singular.
133
132
NANCY, 2000, p. 40. “Il se peut même que nous admirions des portraits qui en leur temps furent jugés insatisfaisants du pont de vue de la reconnaissance.” 133
NANCY, 2000, p. 48-49. “Il ne ressemble pas à un original, mais il ressemble à l’Idée de ressemblance à un original – ou bien plutôt, il est lui-même l’‘original’ de la ressemblance-à-soi d’un sujet en général, mais chaque fois aussi d’un sujet singulier.”
FIGURA 20. Leonardo da Vinci. Monalisa. Óleo sobre madeira, cerca de 1503-1506. Fonte: MANDEL, 2007, p. 38-39
59
As formulações teóricas de Nancy, Blanchot, Didi-Huberman e Barthes
reafirmam que a semelhança não é dada apenas pelo referente. Desta forma, o
retrato está além e/ou aquém da associação que se faz com relação ao seu modelo
e que de certa forma, até o dispensa. Uma vez pintado ele ganha autonomia, porque
como ressalta Nancy “[...] ‘Semelhança’ difere de ‘’reprodução’ ou de ‘cópia’ por um
valor de aproximação. É somente o ‘semblante’ que ‘assemelha’, é um ‘além’, um ‘ar’
ou um ‘aspecto’ [...]”.134
Assim, por mais que se busque capturar a semelhança ao retratar uma
pessoa, o que se tem, de fato, são “[...] atitudes aproximativas da ausência que
retratamos”.135 O pintor, tomando emprestadas as palavras de Nancy constata,
enfim, que “a semelhança gira em torno de sua própria ausência: e girar em torno
assim, é propriamente o gesto da mão do pintor.”136
134
NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no
1). “[...] ‘ressemblance’ diffère de ‘reproduction’ ou de ‘copie’ par un valeur d’approximation. C’est seulement la ‘semblance’ qui ‘ressemble’, c’est une ‘allure’, un ‘air’ ou un ‘aspect’[...]”. 135
NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no
1). “[...] des allures approximatives de l’absence qu’on portraiture [...]”. 136
NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no
1). “La ressemblance tourne autour de sa propre absence: et tourner ainsi autour, c’est proprement le geste de la main du peintre.”
60
Capítulo III.
DISTÂNCIA
A felicidade da imagem é que ela é um limite perto do indefinido. Orla exígua mas que nos tem menos longe das coisas do que nos preserva da pressão cega dessa distância.
Maurice Blanchot
O olhar nos impõe uma distância: ver algo significa que esse algo foi
apreendido por nosso campo de visão, o que pressupõe que esteja de certa maneira
perto de nós. Porém, o que a princípio parece perto se converte em distante, pois é
necessária uma distância para se processar a visão, tal como Blanchot ressalta: “Ver
supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver é sempre ver à
distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo que ela nos tira”.137 Este
devolver-nos aquilo que ela nos tira significa fazer voltar para nós, através do olhar,
o que está irremediavelmente distante: uma imagem.
Sob a perspectiva do ato de ver, Didi-Huberman, em diálogo com Blanchot,
também nos esclarece que ver pressupõe uma distância entre nós e o que vemos,
uma distância que nos diz da perda daquilo que vemos. O ato de ver nos aproxima e
nos distancia ao mesmo tempo daquilo que olhamos.
O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experimentado “único” [...] e totalmente “estranho” [...] de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena
da ausência.138
No caso específico do retrato pintado, a distância que se impõe é
desdobrada, pois além de ser a condição intrínseca do ato de ver, uma outra
distância é imposta: aquela que separa a imagem retratada de seu modelo, que não
está verdadeiramente na tela. Diante de um retrato, vemos a pessoa retratada tão
perto que nossa sensação não poderia ser outra que a de proximidade. Porém, ao
137
BLANCHOT, 2001, p. 67 138
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 148
61
mesmo tempo, o retrato nos permite lembrar o quão distante na verdade essa
pessoa está. E essa distância instaurada pela imagem de uma pintura, por sua vez
se desdobra em várias outras distâncias:
entre o retratista e o retrato (o objeto físico): distância física
necessária para que o retratista possa ver o quadro durante o processo de sua
feitura. É curioso assinalar um artifício comum entre os pintores durante a
pintura de um quadro, que é o de afastar-se um pouco para vê-lo mais de longe
e assim perceber melhor seu andamento. O ato de se aproximar e se distanciar
da pintura permite formas diferentes de vê-la, e constitui uma parte do seu
processo;
entre o observador e o retrato (o objeto físico): distância física
necessária para que o observador possa vê-lo;
entre o retratista e a pessoa retratada: a distância se dá de acordo
com o referente usado para pintar o retrato, que pode ser um modelo ou uma
fotografia. Um retrato pode ser feito também de memória ou de imaginação, o
que requer um outro movimento que exige que se trabalhe com uma outra
distância, aquela que se constrói na ausência do objeto físico, e que torna
preciso convocar a imaginação para reaver, através dela, a constituição de um
modelo. Porém, vou me ater àqueles retratos que se constroem a partir da
própria pessoa ou de sua fotografia. No caso do modelo ao vivo, é necessária
certa proximidade física entre o pintor e o modelo, mas também uma distância
mínima para se efetuar a visão, para que o pintor possa ver o modelo e pintá-lo
na tela. No caso da fotografia, o pintor está distante fisicamente da pessoa que
ele retrata, a fotografia é uma mediadora entre essa distância. A pessoa
retratada está duplamente distante: há a sua distância para com a fotografia, e
desta para com o quadro. Philippe Dubois aborda essa questão da distância-
proximidade ao esclarecer que, na fotografia, a representação está o mais
perto possível de seu objeto, pois é uma emanação física dele, mas ao mesmo
tempo, a representação “mantém uma distância absoluta do objeto, em que ela
o coloca, com obstinação, como um objeto separado. Tanto mais separado
quanto perdido”.139 Ora, o “separado” é a distância intrínseca para a existência
de uma imagem. Portanto, a questão da distância-proximidade já está presente
139
DUBOIS, 2008, p. 312
62
na fotografia, e quando o retrato pintado se serve dessa fotografia como
referência, esse paradoxo é ampliado, pois as distâncias inerentes a cada
técnica se somam;
entre o observador e a pessoa retratada: distância imposta ao
observador quando este percebe que a pessoa retratada, embora pareça estar
próxima, está distante de sua imagem na tela;
entre o retrato e a pessoa retratada: o retrato é a imagem de seu
modelo, isso implica que nele já está contido um distanciamento do seu
referente, visto que não são a mesma coisa. Este distanciamento leva-nos de
volta à questão da semelhança, pois o retrato, por mais parecido que esteja ao
seu modelo, carrega sempre um distanciamento em relação a este,
distanciamento no que diz respeito a espaço e tempo. O que nos é dado a ver
é inapreensível: uma imagem.
Todas essas distâncias impostas por um retrato fazem com que ele nos olhe e
nos escape simultaneamente, já que o retrato está diante dos nossos olhos, mas a
pessoa retratada está fora de nossa visão.
Talvez não façamos outra coisa, quando vemos algo e de repente somos tocados por ele, senão abrir-nos a uma dimensão essencial do olhar, segundo a qual olhar seria o jogo assintótico do próximo (até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o desaparecimento e a perda, reais ou
fantasmados).140
O ato de ver implica esse movimento entre o que está próximo – que podemos
tocar (realmente ou só pela visão) –, e o que está longe, a ponto de desaparecer:
Olhar seria compreender que a imagem é estruturada como um diante – dentro: inacessível e impondo sua distância, por próxima que seja – pois é a distância de um contato suspenso, de uma impossível relação de carne a
carne.141
Diante do retrato, a sensação de proximidade em relação ao retratado pode
ser tão grande que nos impele mesmo a tocá-lo, como se pudéssemos realmente ter
um contato com a pessoa através de seu rosto pintado, mas na verdade há a
140
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.161 141
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 243
63
impossibilidade de um contato real. Não se pode tocá-lo; se o tocarmos, a única
coisa que sentiremos sob nossas mãos é o contato com o tecido da tela, ou seja, um
contato de superfície. O retratado está inacessível. O suporte do retrato – a tela –
nos mostra de perto aquilo que está longe: “[...] eu posso me aproximar da tela ou do
mármore, mas não das “imagens” nas quais se encarnam a intenção artística e não
mais do que a proximidade as coloca ao meu alcance [...]”.142
O mito de Narciso ilumina de forma exemplar essas questões sobre toque e
inapreensibilidade da imagem. Ao querer tocar sua imagem refletida na água – que
podemos associar com o seu retrato –, Narciso só teve contato com a água, e o
toque acabou por fazer desaparecer seu reflexo que só existia enquanto não
sofresse nenhuma interferência, mantendo-se à distância. Sua imagem parecia estar
próxima, a ponto de ele a poder tocar, mas na verdade ela estava a uma distância
intransponível, sua proximidade só era dada pelo olhar, o único contato possível era
o visual (FIG. 21).
142
BLANCHOT, 1971, p. 42. “[...] je puis me rapprocher de la toile ou du marbre, mais non pas des ‘images’ en quoi s’incarne l’intention artistique et, pas plus que le voisinage ne les met à ma portée [...].”
FIGURA 21. Caravaggio. Narciso. Óleo sobre tela, 1594-1596. Fonte: www.wikipedia.org
64
Assim é o retrato, ele também só pode ser olhado. Ao tocarmos um retrato, ao
nos depararmos com a materialidade do seu suporte, é como se a pessoa retratada
desaparecesse, embora ela nunca tenha estado realmente na pintura.
Retomando a parábola de São João na leitura de Nancy em Noli me Tangere,
Cristo aparece em imagem para Maria Madalena, e a adverte de não tocá-lo. O
retratado também parece estar nos dizendo “não me toques”, no sentido de que não
adianta tocá-lo, podemos apenas vê-lo, pois ele está além daquela tela,
inalcançável: “É essencial à pintura não ser tocada. É essencial à imagem em geral
não ser tocada”.143 Uma imagem só se mostra aqui para se mostrar distante, ela é
como um elo que nos liga àquilo que está longe, àquilo que oscila entre ir e vir, que
se torna presença e ausência ao mesmo tempo.
Embora o toque a princípio implique a inexistência de uma distância entre o
tocado e o tocante, é interessante pensar o contrário, que é preciso existir essa
distância, um momento de separação, de desunião desse toque, pois senão, tal
como esclarece Nancy, o tocado e o tocante se fundiriam em uma só coisa:
[...] um tocar que aguça ou que destila sem reserva, até um excesso necessário, o ponto, a ponta e o instante pelo qual o toque se afasta daquilo que ele toca, no momento mesmo em que ele o toca. Sem esse afastamento, sem esse recuo ou essa retirada, o toque não seria mais o que ele é e não faria mais o que ele faz. [...] Ele começaria a se materializar em uma tomada, em uma adesão, uma colagem, até mesmo em uma aglutinação que o seguraria na coisa e a coisa nele, os emparelharia e os adequaria um ao outro, depois um no outro. Haveria identificação, fixação,
propriedade, imobilidade.144
Portanto, para existir o toque, assim como para o ato de ver, é necessário
considerar uma distância, e esse é um dos fatores que aproxima o toque do olhar. O
próprio Nancy se questiona sobre essa aproximação. “Mas o que é a visão, senão,
[...] um tocar diferente?”.145 Ambos necessitam de uma distância, por mínima que
143
NANCY, 2003b, p.81. “Il est essentiel à la peinture de ne pas être touchée. Il est essentiel à l’image en général de ne pas être touchée.” 144
NANCY, 2003b, p. 82. “[...] un toucher qui aiguise ou qui distille sans réserve, jusqu’à un excès nécessaire, le point, la pointe et l’instant par quoi la touche se détache de ce qu’elle touche, au moment même où elle le touche. Sans ce détachement, sans ce recul ou ce retrait, la touche ne serait plus ce qu’elle est et elle ne ferait plus ce qu’elle fait. [...] Elle commencerait à se réifier dans une prise, dans une adhésion, un collage, voire dans une agglutination qui la saisirait dans la chose et la chose en elle, les appariant et les appropriant l’une à l’autre puis l’une en l’autre. Il y aurait identification, fixation, propriété, immobilité.” 145
NANCY, 2003b, p.81. “Mais qu’est-ce que la vue, sinon, […] un toucher differé?”
65
seja, para acontecer, pois sem ela, tanto o toque quanto o olhar se fixariam, se
imobilizariam. E o olhar não iria pressupor esse movimento de ir e vir incessante, no
qual a coisa olhada nos devolve o olhar, e o toque não iria pressupor a separação
necessária para se configurar como tal.
Blanchot, em suas formulações teóricas sobre a imagem, também aponta
para a relação entre ver e tocar ao abordar a distância inerente ao ato de ver:
Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar, no contato, a confusão. Ver significa que essa separação tornou-se, porém, reencontro. Mas o que acontece quando o que se vê, ainda que à distância, parece tocar-nos mediante um contato empolgante, quando a maneira de ver é uma espécie de toque, quando ver
é um contato à distância?146
Sobre a relação intrínseca entre ver e tocar, podemos reunir os pensamentos
de Nancy, Blanchot e Didi-Huberman, que, em sintonia, tomam o ato de ver também
como uma experiência do tocar, como podemos ler no fragmento de Didi-Huberman
a seguir:
[...] ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar. [...] Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo
talvez perfurado, feito de vazios”.147
A visão seria, desta forma, como que uma travessia física, que Didi-
Huberman associa à imagem de algo que passaria através dos olhos como uma
mão passa através de uma grade: a visão como um toque.
Como já apontado anteriormente148, a análise comum considera que a
imagem seja a continuação do objeto: “[...] vemos, depois imaginamos. Depois do
objeto viria a imagem. ‘Depois’ significa que cumpre que a coisa se distancie para
deixar-se recapturar”.149 Para Blanchot, esse distanciamento não é uma simples
mudança de lugar de algo que continuaria sendo a mesma coisa; é um
distanciamento que está no âmago da coisa, ou seja: existe algo que apreendemos
146
BLANCHOT, 1987, p. 22 147
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 31 148
Cf. Capítulo I, p. 16 149
BLANCHOT, 1987, p. 257
66
e compreendemos, e tornado imagem, na concepção do autor, se converte no
inapreensível, “não a mesma coisa distanciada, mas essa coisa como
distanciamento”.150 Para o autor, é preciso levar em consideração essa distância,
pois é exatamente o distanciamento como algo amalgamado à imagem que a
distingue do objeto, que a faz ser independente dele, não nos permitindo, desta
forma, pensá-la apenas em relação a seu referente.
É esse distanciamento instínseco o que confere à imagem retratada seu ar de
distante, de alhures, não apenas no que diz respeito ao espaço físico, mas na
instauração de uma lonjura sem fim de tudo e de todos. Toda essa sensação
suscitada por um retrato pintado talvez possa estar relacionada com o que Blanchot
chama de viver um evento em imagem:
Viver um evento em imagem [...] é passar da região do real, onde nos mantemos a distância das coisas a fim de melhor dispor delas, para essa outra região onde a distância nos detém, essa distância que é então profundidade não viva, indisponível, lonjura inapreciável que se torna como
que a potência soberana e derradeira das coisas.151
Na imagem, a lonjura se apodera de nós, a distância nos detém de forma
que não podemos nunca nos aproximar verdadeiramente dela, alcançá-la. A lonjura,
nesse caso, pode ser relacionada ao distanciamento de que nos fala Blanchot, ao
dizer que a imagem de um objeto guarda no objeto a distância que o torna possível
como imagem.
Para esclarecer sobre essa lonjura sem fim, torna-se importante trazer a este
estudo o pensamento de Eudoro de Souza formulado no texto Lonjura e Outrora152,
em que o autor estabelece a diferença entre lonjura e distância. Para o autor, a
lonjura não é sinônimo de distância, pois ela nega o espaço, nega a proximidade e
também a distância. A distância é mensurável, e sempre poderá se transformar num
próximo, basta caminhar de próximo em próximo para alcançarmos o que a princípio
estava distante. Para a lonjura, entretanto, Souza observa que não há caminho: só
se pode ir da proximidade para a distância, não do perto para o longe. Nessa
perspectiva, a lonjura nunca pode ser alcançada, ela se configura indimensionável,
150
BLANCHOT, 1987, p. 257 151
BLANCHOT, 1987, p. 263 152
SOUZA, 1981
67
ou seja, não está sujeita à mediação de espaço; ela reside numa “distância além da
maior das distâncias”.153
Souza cita o horizonte como a imagem da lonjura: a linha do horizonte está
sempre diante dos nossos olhos, mas sempre fora do alcance dos nossos pés. Por
mais que caminhemos em sua direção, sempre haverá uma linha do horizonte
inalcançável à nossa frente. Ou seja, a lonjura é aquilo que está sempre além, aquilo
que podemos apenas vislumbrar, pois é inacessível, e nunca irá se converter em um
próximo.
Souza aponta ainda para o fato de que na lonjura coincidem os contrários
‘próximo’ e ‘distante’, os dois se fundem: “Se pudéssemos ver da lonjura, veríamos o
distante fundir-se com o próximo, e o próximo, com o distante”.154 Portanto, a lonjura
se configura ambígua, contendo em si dois polos opostos.
É essa a lonjura que percebo nos retratos: a imagem retratada na pintura está
sempre além, sempre longínqua, contendo em si sua proximidade e sua distância ao
mesmo tempo. Eles parecem estar numa região aonde não temos acesso, e que por
mais que possamos tentar, nunca alcançaremos. É uma pessoa retratada, mas não
é ela, é mais que ela, é menos do que ela, é sua imagem, que nos olha, nos toca e
parece conter muito mais do que vemos, muito mais do que só uma forma fixada,
muito mais do que nos permite vislumbrar. O retrato não se encerra em seus limites,
ele extrapola a imagem que vemos na tela: “[...] há e sempre houve um ‘para cá’ e
um ‘para lá’ de limitantes, de quaisquer limites [...]”.155 Uma imagem possui essa
lonjura, algo que a deixa sempre além ou aquém de qualquer limite.
Entretanto, essa distinção estabelecida por Souza entre lonjura e distância
não significa que são duas noções totalmente separadas: o autor ressalta que a
lonjura absorve a distância, é como que uma imensa reserva de distância, porém ela
vai além da distância mensurável, ao negar o espaço ela aí se afirma. Por vezes
chamamos de ‘distante’ algo que na verdade é inacessível, e portanto, chamado por
Souza de ‘longínquo’. Para o autor, quando objetivamos a lonjura, quando não
levamos em conta a sua inapreensibilidade, a nomeamos de distância. Nesse
sentido, podemos considerar que a lonjura é lonjura e distância ao mesmo tempo.
153
SOUZA, 1981, p. 05 154
SOUZA, 1981, p. 04 155
SOUZA, 1981, p. 03
68
Essa lonjura que compreende em si o próximo e o afastado é designada por
Didi-Huberman de dupla distância: “A distância é sempre dupla e sempre virtual [...]
e a dupla distância é a distância mesma, na unidade dialética de seu batimento
rítmico, temporal”.156 A distância é virtual porque não existe uma medida certa que
nos indique que algo está próximo ou distante, esse limite é variável. E ela é dupla
porque aparece já desdobrada, ou seja, compreende ao mesmo tempo o próximo e
o afastado, parece nos trazer para perto algo que não se pode alcançar, e que
continua, portanto, longínquo. Essa dualidade entre perto e distante, essa
aproximação que ao invés de nos deixar perto daquilo que vemos, nos mantém
sempre à sua distância, é esse o movimento da dupla distância.
Todo esse pensamento de Didi-Huberman referente à dupla distância no livro
O que vemos, o que nos olha, passa pela noção de aura legada por Walter
Benjamin, que se configura fundamental neste estudo, pois reafirma na imagem a
noção de lonjura.
A aura é definida por Benjamin como “uma figura singular, composta de
elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais
perto que ela esteja”.157 Ou seja, a aura é um algo a mais, inacessível e longínquo,
que percebemos em uma imagem ou em um objeto que nos é dado a ver.
O que a aura nos traz sob o nome da lonjura é uma distância desdobrada, uma
dupla distância, que se mostra próxima para se mostrar distante, que permite um
acesso velado com o que está longínquo, tal como esclarece-nos Didi-Huberman:
Se a lonjura nos aparece, essa aparição não é já um modo de aproximar-se ao dar-se à nossa vista? Mas esse dom de visibilidade, Benjamim insiste, permanecerá sob a autoridade da lonjura, que só se mostra aí para se mostrar distante, ainda e sempre, por mais próxima que seja sua aparição. Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística na qual as distâncias – as distâncias
contraditórias – se experimentam umas às outras, dialeticamente.158
Sob essa perspectiva encontramos uma nítida relação entre a noção de aura
em Benjamin, distanciamento em Blanchot, e dupla distância em Didi-Huberman: a
aparição única de uma coisa distante é a lonjura, é o distanciamento, é algo que
156
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.161-162 157
BENJAMIN, 1987, p. 170 158
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 148
69
está amalgamado à imagem e que não se deixa capturar: “o que é essencialmente
distância é inacessível em sua essência.”159
Há um outro aspecto da aura analisado por Didi-Huberman que é o de um
“poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: ‘isto me olha’”.160 Nós
olhamos um objeto, e ele nos devolve esse olhar, que volta para nós carregado de
sensações e significações suscitadas por nossas próprias experiências. Benjamim
confirma esse aspecto da aura ao dizer que “perceber a aura de uma coisa significa
investi-la do poder de revidar o olhar”.161 Existe aura no objeto que se desdobra para
além de sua própria materialidade, que responde ao nosso olhar: “É inerente ao
olhar a expectativa de ser correspondido por quem o recebe. Onde essa expectativa
é correspondida [...], aí cabe ao olhar a experiência da aura, em toda sua
plenitude”.162. Logo, a aura diz respeito tanto ao objeto em si, quanto a quem o olha,
a um espaçamento singular tramado entre ambos pelo olhar:
Tal é a outra característica fundamental da experiência aurática: a fenomenologia da distância que aparece se completa aqui com uma fenomenologia do olhar trocado. A experiência do olhar visando um objeto e de alguma forma retornado por ele naquele que o olha, eis em que consiste
o que Benjamin chama de “a aura de uma coisa”.163
Trazendo a noção de aura de Benjamin para o âmbito do retrato, podemos
pensar que as questões instigantes que emergem da imagem retratada remetem à
ideia de aurático do autor, sobretudo no que diz respeito ao distanciamento e à
lonjura. O retrato pintado tem essa característica de uma “aparição única de uma
coisa distante, por mais perto que ela esteja”.164 A pessoa retratada “aparece” no
quadro, nos dando a falsa sensação de proximidade, quando, na verdade, da tela
ela está distante, e sua imagem nos parece sempre longínqua, inalcançável. E,
ainda, o retrato também tem o poder de nos olhar, como já foi assinalado no capítulo
159
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 140 160
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.148 161
BENJAMIN, 1989, p. 140 162
BENJAMIN, 1989, p.139 163
DIDI-HUBERMAN, 1997, p 55. “Telle est l’autre caractéristique fondamentale de l’expérience auratique: la phénoménologie de la distance apparaissante se complète ici d’une phénoménologie du regard échangé. L’expérience du regard porté sur un objet et en quelque sorte retourné par lui sur le regardant, voilà en quoi consiste ce que Benjamin nomme l’‘aura d’une chose’.” 164
BENJAMIN, 1994, p. 170
70
I165. Ele realmente nos olha, enquanto imagem e enquanto rosto. E é através desse
duplo olhar, dessa trama que se estabelece entre nós (obsevadores) e o retrato, que
este nos devolve o olhar carregado de sua lonjura, sua aura.
O próprio de uma face é certamente de se colocar diante de nós. É também, fazer do face a face uma relação de olhar. Não é necessário ver distintamente um tipo de rosto, uma fisionomia, traços, para que uma face nos olhe, para que sua distância nos afete e nos toque. Para isto, é suficiente que nós emprestemos àquilo que está diante de nós, o poder de
nos devolver o olhar, o poder de levantar os olhos para nós.166
É esse poder da distância que está presente nas imagens retratadas. Não
importa quem é ou foi o retratado, se ele está vivo ou morto, se temos ou tínhamos
com ele alguma relação: a pintura de um retrato tem o poder de suscitar a lonjura,
de devolver o olhar, de ser aurático, o que não significa, entretanto, dizer que todo
retrato é aurático. A aura diz respeito tanto ao objeto quanto a quem o olha, à trama
que se tece entre olhante e olhado, o que nos impede de classificar as imagens e os
objetos assertivamente como auráticos ou não, pois o que nos olha, tanto em Didi-
Huberman quanto em Blanchot depende do que nos constitui, como podemos
comparar nas citações de ambos os autores a seguir: “[...] o ato de ver nos remete,
nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos
constitui”167 , e “A imagem fala-nos [...] a propósito de cada coisa, de menos que a
coisa, mas de nós [...]”.168 Portanto, o retrato pode ser aurático de acordo com quem
o olha e com o que ele provoca em quem o olha. Podemos dizer, ainda, que é a
aura percebida em um retrato que o faz ir além de uma simples cópia de traços, que
lhe dá “vida”, que o preenche com algo mais do que só tintas e formas.
É interessante averiguar a relação que normalmente se estabelece entre aura e
sagrado, entre aura e religião. A aura é associada aos objetos de culto, às imagens
religiosas, que representam algo que está distante, inacessível, trazendo ao fiel a
sensação de estarem próximos daquilo que na verdade está longínquo, inacessível.
165
Cf. Capítulo I, p. 18 166
DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 55. “Le propre d’une face, c’est bien sûr de se tenir en face de nous. C’est, aussi, de faire du face-à-face une relation de regard. Point n’est besoin de voir distinctement un fácies, une physionomie, des traits, pour qu’une face nous regarde, pour que sa distance nous affecte et nous touche. Il suffit pour cela que nous prêtions à ce qui nous fait face le pouvoir de nous rendre un regard, le pouvoir de lever les yeux sur nous.” 167
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 31 168
BLANCHOT, 1987, p. 256
71
Didi-Huberman observa que “a religião constitui evidentemente o paradigma
histórico e a forma antropológica exemplar da aura [...]”169 , mas isso não quer dizer
que a aura é exclusividade da religião, que ela está presente somente nos objetos
de crença ou devoção. Segundo o autor, a aura está relacionada com o poder da
distância, independentemente de essa distância estar relacionada com alguma
crença ou não.
Se a aura não é exclusividade da religião, torna-se preciso secularizar sua
noção, e segundo Didi-Huberman, o próprio Benjamim foi o primeiro a nos indicar o
caminho, ao anunciar as características da aura como uma série de condições
fenomenológicas que definem uma certa relação entre o olhante e o olhado170.
Do mesmo modo Nancy também vai destacar a necessidade de secularizar a
noção de sagrado, na medida em que assinala que o termo sagrado não está
indissociavelmente ligado à religião como parece:
A imagem é sempre sagrada, se nos ativermos a empregar esse termo que provoca confusão (mas que empregarei de início, provisoriamente, como um termo regulador para colocar o pensamento em andamento). Com efeito, o sentido de “sagrado” não deixa de ser confundido com aquele de “religioso”. Mas a religião é a observância de um rito que forma e que mantém uma ligação (com os outros ou consigo mesmo, com a natureza ou com uma sobrenatureza). A religião não é, por si, ordenada ao sagrado. (Ela também não é ordenada à fé, que é ainda uma outra categoria).
Quanto ao sagrado, ele significa o separado, o colocado à distância, o afastado. Em um sentido, religião e sagrado se opõem então como a ligação se opõe ao corte. Em outro sentido, sem dúvida, a religião pode ser representada como fazendo ligação com o sagrado separado. Mas em um outro sentido ainda, o sagrado só é o que é por sua separação, e não há
ligação com ele. Não há, então, estritamente, religião do sagrado.171
De acordo com Nancy, o termo sagrado diz respeito ao que está separado,
distante, ou seja, algo longínquo e inacessível. A religião procura estabelecer uma
169
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 159 170
DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 52 171
NANCY, 2003a, p. 11. “L’image est toujours sacrée, si l’on tient à employer ce terme qui prête à confusion (mais que j’emploierais tout d’abord, provisoirement, comme un terme régulateur pour mettre la pensée en marche). Le sens de ‘sacré’ ne cesse en effet d’être confondu avec celui de ‘religieux’. Mais la religion est l’observance d’un rite qui forme et qui maintient un lien (avec les autres ou avec soi-même, avec la nature ou avec une surnature). La religion n’est pas, de soi, ordonnée au sacré. (Elle ne l’est pas non plus à la foi, qui est encore une autre catégorie.)
Le sacré, quant à lui, signifie le séparé, le mis à l’écart, le retranché. En un sens, religion et sacré s’opposent donc comme le lien s’oppose à la coupure. En un autre sens, sans doute, la religion peut être représentée comme faisant lien avec le sacré séparé. Mais en un autre sens encore, le sacré n’est ce qu’il est que par sa séparation, et il n’y a pas de lien avec lui. Il n’y a donc pas, strictement, de religion du sacré.”
72
ligação entre os homens e esse longínquo, daí a aproximação dos dois termos.
Entretanto, sendo o sagrado o separado, o inacessível, não se pode estabelecer
uma ligação com ele, e, dessa forma ele não tem relação com a religião. É esse
sagrado dessecularizado que Nancy aborda. Porém, para amenizar a confusão que
o termo possa gerar quanto a sua associação – ainda que indevida – com a religião,
Nancy vai nomeá-lo de distinto:
Ele é aquilo que, por si mesmo, se mantém à distância, no afastamento, e com o qual não se faz ligação (ou somente uma ligação muito paradoxal). Ele é o que não se pode tocar (ou somente um toque sem contato). Para
evitar confusões, eu o nomearei o distinto.172
Podemos pensar que o distinto em Nancy, como aquilo que se mantém à
distância, separado, pode estar relacionado com a noção de aura de uma imagem,
na perspectiva de sua lonjura, de seu distanciamento e de seu afastamento: a aura
como uma aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja, e o
distinto que “[...] se aproxima através da distância, mas o que ele trás para mais
perto, é a distância”.173 Assim, tanto a aura em Benjamin quanto o sagrado ou
distinto em Nancy não devem ser determinados diretamente pela religião, e sim pela
distância que estabelecem, que compreende a tensão entre o longínquo e o
próximo, e também pela relação entre olhante e olhado.
A noção de distinto de Nancy contribui para um melhor entendimento da
distância e da lonjura nas imagens. Segundo o autor a imagem é sempre sagrada, e
portanto, sempre distinta:
O distinto está ao longe, ele está no oposto do próximo. O que não está próximo pode estar afastado de duas maneiras: afastado do contato ou então da identidade. O distinto está distinto de acordo com as duas maneiras. Ele não toca e ele é dessemelhante. Tal é a imagem: é preciso que ela seja descolada, colocada fora e diante dos olhos [...], e é preciso que ela seja diferente da coisa. A imagem é uma coisa que não é a coisa.
Essencialmente ela se distingue desta coisa.174
172
NANCY, 2003a, p. 11-12. “Il est ce qui, de soi, reste à l’écart, dans l’éloignement, et avec quoi on ne fait pas de lien (ou seulement un lien très paradoxal). Il est ce qu’on ne peut pas toucher (ou seulement d’un toucher sans contact). Pour sortir des confusions, je le nommerai le distinct.” 173
NANCY, 2003a, p. 16. “Il s’approche à travers la distance, mais ce qu’il apporte au plus près, c’est la distance.” 174
NANCY, 2003a, p. 12-13. “Le distinct est au loin, il est à l’opposé du proche. Ce qui n’est pas proche peut être écarté de deux manières: écarté du contact ou bien de l’identité. Le distinct est
73
A imagem retratada não é o seu modelo, ela se distingue dele, há um
distanciamento para com ele, tanto no sentido físico, quanto no sentido de
identidade: são duas coisas diferentes. O que é distinto, guarda uma distância em
relação àquilo de que se distingue:
Um retrato toca, ou então, ele é apenas uma foto de identidade, um sinal da pessoa, não uma imagem. O que toca, é alguma coisa de uma intimidade que se traz na superfície. Mas o retrato aqui é só um exemplo. Toda imagem deriva do “retrato”, não nos traços de uma pessoa que ela reproduziria, mas no que ela tira (no valor semântico e etimológico desta palavra), em alguma coisa que ela extrai, uma intimidade, uma força. E, para extraí-la, ela a substrai da homogeneidade, ela a separa da homogeneidade, ela a distingue, ela a destaca e ela a lança para frente. Ela a lança diante de nós, e esse jato, essa projeção faz sua marca, seu traço mesmo e seu estigma: seu rastro, sua linha, seu estilo, sua incisão, sua
cicatriz, sua assinatura, tudo isto ao mesmo tempo.175
Interessante observar que Souza utiliza a imagem do horizonte para falar da
lonjura, e Nancy utiliza a imagem do céu para falar do distinto e da distância: “O céu
é o distinto por essência, e por essência ele se distingue da terra que ele ilumina.
Ele é também a distinção e a distância: a claridade extensa, longínqua e próxima ao
mesmo tempo [...]”.176 A linha do horizonte é a divisão ilusória que separa o céu da
terra, e essas imagens utilizadas por Souza e Nancy remetem ao inapreensível, ao
inalcançável, àquilo que está sempre ao longe, que nunca se aproxima. Nancy ainda
aponta o céu como o distinguido, ou seja, aquilo que está separado, e essa
separação se dá pela lonjura que lhe é inerente.
distinct selon les deux manières. Il ne touche pas, et il est dissemblable. Telle est l’image: il lui faut être détachée, mise dehors et devant les yeux […], et il lui faut être différente de la chose. L’image est une chose qui n’est pas la chose: essentiellement, elle s’en distingue.” 175
NANCY, 2003a, p. 16. “Un portrait touche ou bien il n’est qu’une photo d’identité, un signalement, pas une image. Ce qui touche, c’est quelque chose d’une intimité qui se porte à la surface. Mais le portrait n’est ici qu’un exemple. Toute image relève du ‘portrait’, non pas en ce qu’elle reproduirait les traits d’une personne, mais en ce qu’elle tire (c’est la valeur sémantique étymologique du mot), en ce qu’elle extrait quelque chose, une intimité, une force. Et, pour l’extraire, elle la soustrait à l’homogénéité, elle l’en distrait, elle la distingue, elle la détache et elle la jette en avant. Elle la jette au-devant de nous, et ce jet, cette projection fait sa marque, son trait même et son stigma: son trace, sa ligne, son style, son incision, sa cicatrice, sa signature, tout cela à la fois.” 176
NANCY, 2003a, p. 19. “Le ciel est le distingué par essence, et par essence il se distingue de la terre qu’il met en lumière. Il est aussi lui-même la distinction et la distance: la clarté étendue, lointaine et proche à la fois [...]”
74
A força celeste, força que o céu é – a saber a luz que distingue, que torna distinto -, é aquela da paixão cuja imagem é o transporte imediato. O íntimo se exprime aí: mas essa expressão deve ser entendida no sentido mais literal. Não é a tradução de um estado de alma: é a alma mesma que se prensa e que se apoia sobre a imagem ou, principalmente, a imagem é essa
pressão, essa animação e essa emoção.177
Essa emoção da imagem, essa paixão da qual a imagem é o transporte
imediato remetem ao que Blanchot designa de fascínio, que é algo que nos toca na
imagem, que nos prende nela, algo que não conseguimos apreender, mesurar nem
ter domínio sobre, e que o autor aponta como sendo a paixão da imagem:
Mas o que acontece [...] quando o que é visto impõe-se ao olhar, como se fosse capturado, tocado, posto em contato com a aparência? Não um contato ativo, no qual existe ainda iniciativa e ação num verdadeiro exercício do sentido tátil, mas em que o olhar é atraído , arrastado e absorvido num movimento imóvel e para um fundo sem profundidade. O que nos é dado por um contato à distância é a imagem e o fascínio é a
paixão da imagem.178
Quando estamos fascinados por uma imagem, temos contato não só com a
sua forma física, com seus atributos visíveis, mas com toda a carga imaterial que ela
carrega em si, com aquilo que transborda na imagem, com o que está além de sua
significação, com aquilo que não é material e no entanto é percebido e sentido.
Porém, esse contato é um contato à distância: “Quem quer que esteja fascinado, o
que vê não o vê propriamente dito, mas afeta-o numa proximidade imediata, prende-
o e monopoliza-o, se bem que isso o deixe absolutamente a distância”.179
Uma imagem que nos fascina vai nos assombrar, nos espantar, vai nos
prender nesse espanto, sem que tenhamos nenhum controle sobre ela. Blanchot
assim define uma pessoa que está fascinada:
Quem quer que esteja fascinado, pode-se dizer dele que não enxerga nenhum objeto real, nenhuma figura real, pois o que vê não pertence ao mundo da realidade, mas ao meio indeterminado da fascinação. Meio por assim dizer absoluto. A distância não está dele excluída mas é exorbitante,
177
NANCY, 2003a, p. 20-21. “La force céleste, force que le ciel est – à savoir la lumière qui distingue, qui rend distinct -, est celle de la passion dont l’image est le transport immédiat. L’intime s’y exprime: mais cette expression doit s’entendre au sens le plus littéral. Ce n’est pas la traduction d’un état d’âme: c’est l’âme même qui se presse et qui appuie sur l’image ou plutôt l’image est cette passion, cette animation et cette émotion.” 178
BLANCHOT, 1987, p. 22-23 179
BLANCHOT, 1987, p. 24
75
consistindo na profundidade ilimitada que está por trás da imagem, profundidade não viva, não manuseável, absolutamente presente, embora não nada, onde soçobram os objetos quando se distanciam de seus
respectivos sentidos, quando se desintegram em suas imagens.”180
Quando diz que quem está fascinado não enxerga nenhuma figura real,
Blanchot não está dizendo que a fascinação é um engodo, mas sim que a pessoa
tem um contato justamente com o distanciamento, a lonjura, que nos atinge, nos
afeta e nos prende na imagem. Podemos dizer que quando a lonjura de uma
imagem (ou talvez poderíamos dizer sua aura) parece se aproximar de nós – ainda
que sempre à distância – entramos no fascínio.
A fascinação é de outra ordem diferente da realidade à qual estamos
habituados. Ela insere o observador em um espaço onde a lógica e a razão estão
suspensas, onde “longe de apreender a distância, somos possuídos pela distância,
investidos por ela”181, onde o tempo está suspenso.
Um retrato tem o poder de fascinar, de nos prender em sua imagem ao
mesmo tempo que nos transporta para além dela, sem que tenhamos nenhum
controle sobre isso.
Como exemplo, podemos citar novamente o episódio da Fotografia do Jardim
de Inverno, de Barthes. Ao olhar essa fotografia, Barthes teve contato com um
fascínio tal, que lhe permitiu reconhecer sua mãe em uma criança que ele não
conhecera. O tempo, a lógica foram subvertidas para permitir esse reconhecimento.
Barthes vai chamar de ar esse algo mais que a imagem carrega, esse algo que um
retrato precisa ter para se assemelhar a seu modelo182. Foi o ar da criança da foto
que lhe trouxe para perto uma mãe já distante no tempo e no espaço. “Essa
circunstância extrema e particular, tão abstrata em relação a uma imagem, estava,
no entanto, presente na face que ela tinha na fotografia que eu acabava de
encontrar”.183
Podemos pensar essa circunstância extrema e particular – designada por
Barthes de ar –, essa “sombra luminosa que acompanha o corpo”184, como a aura,
dada como uma lonjura imensurável, desdobrada, como um “espaçamento tramado
180
BLANCHOT, 1987, p. 23 181
BLANCHOT, 2001, p.69 182
Cf. Capítulo II, p.51 e 52 183
BARTHES, 1984, p. 103 184
BARTHES, 1984, p. 161
76
[...] em todos os sentidos do termos, como um sutil tecido ou então como um
acontecimento único, estranho, que nos cercaria, nos pegaria ,nos prenderia em sua
rede”.185
Barthes apresenta ainda, ao descrever sobre seu interesse por fotografias,
um outro elemento que o instiga nelas, e que ele designa de punctum, como aquilo
que salta da imagem e vem nos afetar inesperadamente, sem que tenhamos
planejado: “esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me
fere)”.186 O punctum de uma foto é percebido de acordo com o observador, o que
nos remete mais uma vez à noção de o que nos olha de Didi-Huberman, o que pode
ser comprovado pelo fragmento a seguir: “Última coisa sobre o punctum: quer esteja
delimitado ou não, trata-se de um suplemento: é o que acrescento à foto e que
todavia já está nela”.187 É o que olha para o observador na imagem, algo que faz
parte da imagem, mas no entanto precisa do olhar do observador para se configurar,
ou não, como um punctum para ele.
Trazendo as noções de punctum e ar para o âmbito das imagens em geral (e
não só das imagens fotográficas), podemos associá-las com aquilo que fascina em
uma imagem, com aquilo que nos prende em uma proximidade imediata - apesar de
nos manter sempre à distância -, que nos monopoliza sem que tenhamos escolhido,
sem que tenhamos nenhum controle sobre isso. O punctum e o ar de uma foto são
os nomes que Barthes deu para aquilo que o fascinava nas fotografias. No caso da
Fotografia do Jardim de Inverno, foi o fascínio que esta imagem provocou no autor
que lhe permitiu reconhecer sua mãe, passando por cima da ordem temporal.
Podemos confirmar esta associação entre as noções de Barthes e Blanchot
nos fragmentos a seguir, de quando Barthes descreve-nos sua sensação ao
encontrar um punctum em uma imagem: “[...] eu passava para além da irrealidade
da coisa representada, entrava loucamente no espetáculo, na imagem [...]”188; e de
quando Blanchot descreve alguém que está fascinado, e que, segundo o autor, “[...]
não enxerga nenhum objeto real, nenhuma figura real, pois o que vê não pertence
ao mundo da realidade, mas ao meio indeterminado da fascinação”.189
185
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 147 186
BARTHES, 1984, p. 46 187
BARTHES, 1984, p. 85 188
BARTHES, 1984, p. 171 189
BLANCHOT, 1987, p. 23
77
Estar sob o fascínio, a paixão da imagem, permite-nos também uma
associação com o que Didi-Huberman define como imagem aurática, que “ao nos
olhar ‘é ela que se torna dona de nós’”.190 E é isso que, segundo Blanchot, o fascínio
faz, ele se apodera de quem se depara com ele.
Dessa forma, podemos pensar que as noções de fascínio e de aura dialogam
entre si, como nos mostra Didi-Huberman:
O que se vê no fascínio? Blanchot responde: não a coisa, mas sua distância. E nossa própria solidão que daí resulta. É uma distância paradoxal, uma dupla distância – Benjamin a chamava de aura – de onde a
imagem retira sua própria potência.191
Sob essa perspectiva, podemos ver que todas as noções abordadas no
presente texto sobre a distância que envolve o retrato estão imbricadas e
relacionadas entre si: o fascínio em Blanchot: “longe de apreender a distância,
somos possuídos pela distância, investidos por ela”192; a aura em Benjamin:
“aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”193; a dupla
distância em Didi-Huberman: “A distância é sempre dupla – isso quer dizer que a
dupla distância é a distância mesma, na unidade dialética de seu batimento rítmico,
temporal”194; a lonjura em Souza: “[...] a ‘imagem’ está sempre diante de nossos
olhos, a ‘coisa’ sempre fora do alcance de nossos passos”195; o distinto em Nancy:
“Ele é aquilo que, por si mesmo, se mantém à distância, no afastamento [...]”196; e
ainda o ar em Barthes: “[...] algo indizível: evidente [...] e todavia improvável [...]”197,
e o punctum, do mesmo autor: “[...]é o que acrescento à foto e que todavia já está
nela”.198
Todas essas noções, acima citadas, dizem respeito à trama entre o olhante e
o olhado, ao distanciamento próprio que configura a imagem, e ao “algo mais” que a
imagem carrega, que não pode ser apreendido por nós.
190
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 159 191
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 29 192
BLANCHOT, 2001, p.69 193
BENJAMIN, 1987, p. 170 194
DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 162 195
SOUZA, 1981, p. 03 196
NANCY, 2003a, p. 11. “Il est ce qui, de soi, reste à l’écart, dans l’éloignement […]”. 197
BARTHES, 1984, p. 159 198
BARTHES, 1984, p. 85
78
Essas noções reafirmam o pensamento de Blanchot sobre a ambiguidade da
imagem, no qual o autor desestabiliza as relações dicotômicas como próximo-
distante, início-fim, e aposta em um espaço onde é possível a coexistência dos
opostos.
Como pudemos ver, a distância é fator inerente ao retrato, tanto a distância
espacial e temporal entre retrato e retratado, quanto o distanciamento que sua
imagem suscita, abordado nas noções estudadas – aura, fascínio, lonjura, dupla
distância... É interessante observar que a distância espacial e temporal de um
retrato está inteiramente relacionada a seu modelo, é ele a referência para essa
medida. Já o distanciamento, a lonjura, a aura, o fascínio, a dupla distância, dizem
respeito só à imagem: nessas noções o referente é dispensado.
A pintura de um retrato nos permite vislumbrar a lonjura que ele carrega e
entrar na ordem do fascínio tal como formulado por Blanchot, que nos dá a certeza
da distância e ao mesmo tempo nos mantém invadidos por ela. Lembrando que,
segundo o autor, o que se vê no fascínio é a distância.
E para falar do fascínio como distância, termino esse capítulo com uma breve
alusão ao texto de Blanchot intitulado O encontro do imaginário199, em que o autor
fala sobre o canto das Sereias ao trazer sua leitura da Odisséia de Ulisses. Neste
texto nos deparamos com todas as noções estudadas que envolvem a distância e
seus desdobramentos com relação à imagem.
O canto das Sereias atraía os homens, que encantados por ele, saíam em
sua direção e desapareciam no mar. Esse canto se destinava aos navegadores, e
era, o canto mesmo, também uma navegação: “[...] era uma distância, e o que
revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer, do canto, o
movimento em direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior
desejo”.200 Os navegadores queriam percorrer aquela distância, e chegar ao ponto
aonde aquele canto se originava, aonde eles pudessem apreender o canto, as
sereias e o encanto que elas lhes causavam. Porém, era uma distância impossível
de percorrer, todos que o tentavam, desapareciam. Eles estavam sempre aquém ou
além do ponto, nunca o apreendiam.
199
BLANCHOT, 2005, p. 03 -13 200
BLANCHOT, 2005, p. 04
79
Podemos relacionar as sereias com as imagens, como nos mostra Didi-
Huberman, em um texto sobre Blanchot201, em que aquele toma como exemplo a
análise deste sobre o canto das Sereias: “É, portanto, uma única e mesma
experiência aproximar-se do canto das Sereias e encontrar a imagem”.202 Dessa
forma, o canto das sereias é o fascínio que a imagem produz em nós: é uma lonjura
que nos aparece, e nos impele a percorrer a distância até ela, mas essa lonjura
nunca será vencida, e por mais que tentemos percorrê-la, ir ao encontro desse
canto, nós só entraremos, cada vez mais, no reino da fascinação, e é como se
desaparecêssemos nele, na paixão da imagem. Como já foi apontado por Didi-
Huberman, ver não é ter, e sim perder203. Ao querer ver as sereias – as imagens –
os homens não as tinham, e sim as perdiam para sempre no fascínio que as
envolvia.
O que nos fascina, nos arrebata o nosso poder de atribuir um sentido, abandona a sua natureza ‘sensível’, abandona o mundo, retira-se para aquém do mundo e nos atrai, já não se nos revela e, no entanto, afirma-se
numa presença estranha ao presente do tempo e à presença no espaço.204
As sereias eram acusadas de serem mentirosas, enganadoras fictícias e
inexistentes, assim como o fascínio parece nos mostrar algo que não é real, algo
enganador, pois é algo que está além da imagem. No entanto assim é a imagem:
carrega em si sua ficção, a existência de sua inexistência, “[...] seu lado dramático,a
ambiguidade que ela anuncia e a mentira brilhante que se lhe recrimina”.205
O retrato tem o poder de nos fazer ouvir o canto das sereias e de nos conduzir
– ainda que sempre à luz de uma lonjura intransponível – ao reino indeterminado da
fascinação, onde não há medidas lógicas de espaço e tempo.
201
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 26-51 202
DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 36 203
Cf. Capítulo I, pág. 17 204
BLANCHOT, 1987, p. 23 205
BLANCHOT, 1987, p. 255
80
Capítulo IV.
TEMPO
[...] la toile se dégrade et le marbre se fend, mais l’image est incorruptible et l’instant se répète sans s’accomplir (par conséquent, sans s’épuiser).
Maurice Blanchot
O retrato tem uma estreita relação com o tempo. Ele pode nos remeter ao
passado, pois a imagem que está representada é uma imagem anterior, de uma
pose passada; pode nos remeter ao futuro, ao pensarmos em quanto tempo aquele
retrato perdurará, já que provavelmente ele irá sobreviver a nós; e simultaneamente,
ele está sempre no presente. De certa forma, o retrato presentifica o passado e o
mantém assim, levando-o em direção ao futuro: assim ele abrange todas as
dimensões temporais sobre as quais estamos habituados a pensar.
As distâncias que emergem de uma imagem retratada, como vimos no
capítulo anterior, estão intrinsecamente relacionadas tanto a uma distância espacial,
quanto a uma distância temporal, que se refere ao deslocamento do tempo da
imagem. A partir do momento em que o retrato está pronto, ele se distancia
temporalmente de seu referente; sua imagem está fixada em um instante definido,
que será, a partir de então, sempre diferente do instante atual em que seu modelo
vive. E, após a morte do modelo, essa diferença é intensificada, pois os tempos do
retrato e de seu referente, que já não coincidiam desde o momento da conclusão do
retrato, passam agora a pertencer a dimensões diferentes. É como se o retrato
guardasse uma certa “vida” que seu modelo já não tem. No entanto, como já foi
assinalado no capítulo I, o retrato também nos remete à morte, na medida em que,
ao fixar a imagem de uma pessoa em um instante, é como se ela fosse morta
naquele instante, já que essa imagem, assim como acontece com alguém que
morre, retira-se do tempo. Porém, de toda forma, o retrato “salva" do tempo a
imagem de seu modelo. Enquanto a morte faz a pessoa desaparecer para sempre,
no retrato sua imagem perdura, e continua a existir independentemente de seu
referente estar ou não ainda neste mundo.
Existem ainda os retratos que já são feitos mediante um distanciamento
temporal, como os retratos pintados a partir de fotografias antigas de uma pessoa –
81
de sua juventude, de sua infância – que já surgem em um “tempo diferente” do de
seu modelo (FIG. 22). As pessoas querem ser retratadas – ou retratar alguém por
quem guardam algum afeto – em um momento escolhido, geralmente na juventude,
ou em uma ocasião especial (como casamento, formatura, etc.), em suma, em um
momento que já passou. Talvez, para elas, essa seja uma forma de “voltar no
tempo”, de “reviver” um determinado momento e “eternizá-lo”. De certa forma, o
mesmo se passa nos retratos feitos de alguém que já tenha morrido: em ambos os
casos, o que está se retratando são momentos e pessoas que não existem mais,
pelo menos não da forma como quando a fotografia usada como referência foi
tirada. Há uma estranheza em pintar algo que não mais existe. Essa estranheza já
está presente na própria fotografia, como confirma Dubois, ao dizer que ela nos
coloca em um movimento que vai do aqui-agora da foto para o alhures-anterior do
objeto, ou seja, o que vemos nela é algo sempre anterior:
FIGURA 22. Iara Ribeiro. Retrato de D. Rita. Acrílica sobre tela, 2008. Fonte: Acervo da artista
82
Aquilo que você fotografou desapareceu irremediavelmente. Aliás, falando em termos temporais estritos, no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto desaparece. [...] Assim, toda foto, logo que é feita, envia para sempre seu objeto ao reino das Trevas. Morto por ter sido visto. E mais tarde, quando a imagem revelada finalmente aparece para você, o referente já há muito não existe mais. Nada além de sua lembrança. O aparecimento (da imagem: sua “revelação”) nunca poderá portanto satisfazer de fato sua espera. Pois como então saber se o que você está vendo no papel fotossensível é exatamente a mesma coisa que você viu? Além disso, o que você tinha visto exatamente? É sempre tarde demais. Você nunca chegará ao encontro. Só lhe resta a foto, frágil, incerta, quase estranha. É a foto que vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência. E isso não deixará de lhe preocupar de maneira estranha. Afinal, você percebe, entre a imagem primitivamente captada, em estado de “latência” e a imagem finalmente “revelada” nesse lapso do tempo, nesse intervalo, nessa passagem, que muitas coisas podem com efeito ter ocorrido”.
206
O pintor, ao utilizar uma foto como referência para seu quadro, tem contato
com essa cisão de tempo que ela carrega, com a estranheza de ver algo fixado que
não mais existe, e que está inserido em outra ordem temporal. Portanto, ao pintar
essa imagem em uma tela, o retratista está trabalhando em um duplo desvio de
tempo – o desvio que aconteceu no instante em que a fotografia foi tirada, e o que
acontece no momento em que a pintura é feita.
Por outro lado, se pensarmos nos retratos sob um ponto de vista mais geral, e
não atrelado ao tempo do seu referente, constatamos que diversas vezes o retratado
possui atributos que vão contextualizá-lo temporalmente, como por exemplo, roupas
de época, penteados, ou a própria data da pintura, inserida por muitos pintores em
sua assinatura. Mas nem sempre isso é suficiente para fazê-lo ficar “preso” naquele
tempo. Muito além da data em que o retrato foi feito, ele carrega em si uma
atemporalidade impressionante. A figura parece existir desde sempre e para
sempre. Parece suspensa no tempo, como se não pertencesse a tempo algum. A
arte em geral suscita uma outra ordem temporal, em que o tempo parece não existir.
Blanchot se questiona sobre essa outra ordem temporal de uma obra de arte:
Como nomear este tempo? Talvez não importe. Chamá-lo de eternidade é consolador mas enganoso. Chamá-lo de presente não é mais exato, pois só conhecemos um presente, aquele que se cumpre e se realiza na vida ativa do mundo e que o futuro, sem cessar, eleva até ele. É também tentador ver aí uma pura e simples ausência de tempo. [...]
207
206
DUBOIS, 2008, p. 90-91 207
BLANCHOT, 1971, p. 43-44. “Comment nommer ce temps? Il n’importe peut-être. L’appeler éternité est consolant, mais trompeur. L’appeler présent n’est pas plus exact, car nous ne
83
É importante ressaltar que Blanchot aborda o tempo a partir de uma
concepção que abole a linearidade temporal tradicional que conhecemos. A
concepção tradicional do tempo segue uma forma linear, ou seja, nela o tempo é
entendido como algo que teve um começo absoluto e terá um fim absoluto, no qual
os momentos se sobrepõem um ao outro, linearmente, seguindo uma ordem
cronológica inalterável208.
A concepção de tempo em Blanchot rompe com essa linearidade temporal, e
para que possamos entendê-la, é interessante nos atermos um pouco à relação que
o autor estabelece entre morte e tempo:
Morrer é, assim, abranger a totalidade do tempo e fazer do tempo um todo, é um êxtase temporal: nunca se morre agora, morre-se sempre mais tarde, no futuro, um futuro que nunca é atual, que só pode chegar quando tudo estiver consumado, e quando tudo estiver consumado não haverá mais presente, o futuro será de novo passado. Esse salto pelo qual o passado se junta ao futuro por cima de todo presente é o sentimento da morte humana, impregnado de humanidade.
209
Para o autor a morte está sempre no futuro, e o futuro está sempre adiante,
portanto, a morte nunca chega. Quando ela chega, imediatamente ela já é passado:
já morreu, já passou. Portanto a morte nunca está presente, ela é aquilo com o qual
não temos um contato real, pois, enquanto estamos vivos, só tomamos
conhecimento da morte dos outros – nossa morte está no futuro. E quando ela
chega para nós, é em um instante fulminante, e não podemos sentir até o fim a
realidade dessa morte, visto que estaremos mortos – ela já se transformou - e nos
transformou - em passado. Portanto, a morte abrange o tempo como um todo, e
através deste exemplo, podemos compreender um pouco mais de como a noção do
tempo funciona para Blanchot: passado e futuro são estendidos, o passado não tem
proximidade com nenhum presente, que por sua vez não acontece porque o futuro
não chega, está sempre por vir. Blanchot situa o passado na noite dos tempos, onde
a origem está irremediavelmente perdida. É preciso esclarecer que para Blanchot,
connaissons qu’un présent, celui qui s’accomplit et se réalise dans la vie agissante du monde et que l’avenir, sans cesse, élève à lui. Il est aussi tentant d’y voir une pure et simple absence de temps.’’ 208
Sobre essa concepção linear do tempo, ler mais no texto Tempo e História, de Helio Jaguaribe em DOCTORS, (org.), 2003. p. 156-160 209
BLANCHOT, 1987, p. 165
84
origem não é o mesmo que começo, ela pertence a outra instância: a origem é
aquilo a partir do que nada pode começar, que antecede a história e o homem como
sujeito histórico, e portanto, é uma indeterminação original, em que os seres e as
coisas ainda não são210. O passado para Blanchot está nessa origem perdida, nunca
apreendida. E o futuro, exemplificado pela morte, nunca chega, é uma espera, não
há acontecimentos. Se o futuro nunca chega, então o presente, embora seja o único
tempo com o qual temos uma relação ativa, está sempre em suspensão, sempre
escapando e ao escapar, se transforma imediatamente no passado, sendo por isso
inapreensível.
Desta forma, Blanchot está rompendo com um começo e um fim absoluto do
mundo e do tempo, existentes na tradicional concepção linear do tempo: ao estender
o passado para o que ele denomina noite dos tempos, o autor está abolindo uma
origem; e ao considerar o futuro como algo que nunca chega, e a morte estando
nele inserida como algo sobre o qual não se tem domínio algum, o autor está
desestabilizando a noção de finitude:
É verdade, portanto, que, como querem os filósofos contemporâneos, no homem compreensão e conhecimento estariam ligados ao que se chama finitude – mas onde está o fim? Está certamente incluído nessa possibilidade que é a morte, mas também é ‘retornado’ por ela, se na morte se dissolve também essa possibilidade que é a morte.
211
Se o fim está na morte, e não podemos sentir até o fim a realidade de nossa
própria morte, é como se nela então se dissolvesse o fim e a própria morte. É
importante lembrar que todo o pensamento de Blanchot parte da Literatura: quando
propõe uma origem perdida na noite dos tempos e uma desestabilização de princípio
e fim, o autor está trabalhando no campo do espaço literário, do imaginário, onde
nada acontece de verdade. Porém, esse pensamento transcende o campo da
Literatura, e nos permite associá-lo à noção de tempo nas Artes Plásticas, afinal,
uma pintura também pertence à ordem do imaginário.
Assim, tomando como referência as questões sobre a ambiguidade da
imagem nas duas versões do imaginário, formuladas por Blanchot, podemos pensar
de maneira análoga que, na imagem retratada coexistem duas versões do tempo:
210
Cf. LEVY, 2011, p. 33 211
BLANCHOT, 1987, p. 263
85
uma que é a noção à qual estamos habituados, e que se refere ao tempo em uma
linearidade temporal, e uma outra versão que subverte essa linearidade, na qual o
passado e o futuro são inapreensíveis e estendidos, e o presente é suspenso, como
apresentado pela concepção do tempo de Blanchot, e reafirmado por Levy: “O
tempo é então desdobrado, exteriorizado em sua outra versão. [...] O tempo, aqui, é
um tempo imaginário, que não está preso à linearidade cronológica”.212 Essas duas
versões do tempo coexistem, o que significa não excluir a versão tradicional, pois
em diversos momentos, é ela que será chamada ao texto na tentativa de responder
às questões que constroem esse objeto de estudo.
Podemos dizer que o retrato suscita as duas versões do tempo. A versão
tradicional leva em conta a época em que o retrato foi pintado, a idade do modelo
(se era criança, jovem ou velho), o tempo que se passou gradualmente desde
aquela pose até o dia de hoje. A outra versão do tempo rompe com a linearidade,
faz o retrato ser atemporal, o faz estar em uma ausência de tempo, que é assim
definida por Blanchot:
É o tempo em que nada começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação, já existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo puramente negativo, é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem [...]O tempo da ausência de tempo é sempre presente, sem presença. Esse “sem presente” não devolve, porém a um passado. [...] Do que é sem presente, do que nem mesmo se apresenta como tendo sido, o caráter irremediável, diz: isso jamais aconteceu, jamais houve uma primeira vez; e, não obstante, isso recomeça, de novo, e de novo, ad infinitum. É sem fim, sem começo. É sem futuro.
213
Blanchot utiliza o termo ausência de tempo para falar da Literatura214 e das
Artes Plásticas215. O tempo da ausência de tempo é a suspensão do presente,
suspensão do tempo cronológico, e por isso mesmo, é como se coexistissem todas
as dimensões temporais simultaneamente, ainda que todas elas estejam em
suspensão. Não se distingue início nem fim, e desta forma tudo está sempre
recomeçando. É um tempo imaginário, o tempo ao qual pertencem as imagens,
tanto as imagens literárias, quanto as imagens plásticas.
212
LEVY, 2011, p.31 213
BLANCHOT, 1987, p. 20 214
Cf. A solidão essencial, in: BLANCHOT, 1987. p. 9-25 215
Cf. Le Musée, l’Art et le Temps, in: BLANCHOT, 1971. p.21-51
86
Os retratos são indiferentes ao tempo, eles existem – e isso basta. E é talvez
essa indiferença ao tempo o que os faz serem mais fascinantes: como é possível
ignorar aquilo a que estamos todos submetidos incondicionalmente? Os retratos
escapam à ordem cronológica, e parecem dispor do tempo, dominá-lo e subvertê-lo
– estão nesse tempo imaginário, o tempo da ausência de tempo.
A arte, e no caso específico desta pesquisa o retrato, está nesse fascínio da
ausência de tempo. O fascínio que uma imagem produz, tem muito a ver com essa
subversão temporal que ela implica: nele não existe linearidade, passado, presente,
futuro. Essa capacidade que a arte tem de ser indiferente ao tempo, de dominá-lo,
de dispor dele a seu prazer, que nos dá a sensação de um mergulho em um tempo
que está suspenso, se torna para nós um mistério que nos mantém no fascínio, que
nos prende nesse movimento anadiômeno do tempo. É possível perceber essa
relação entre arte e tempo no fragmento a seguir, de Blanchot sobre a escultura
Hermes de Praxíteles (FIG. 23):
FIGURA 23. Paxíteles. Hermes (detalhe). Mármore, cerca de 350-330 a.C. Fonte: www.wikipedia.org
87
Os comentadores nos dizem: o Hermes de Praxíteles sorri do fundo de seu mistério, e esse sorriso exprime sua indiferença pelo tempo, o mistério de sua liberdade no que diz respeito ao tempo; é por isso que todos esses sorrisos da arte que nos tocam como o segredo humano por excelência, [...] afirmam o desafio que a expressão do efêmero – graça e liberdade de um instante – leva à duração encerrando-se no irreal.
216
A arte tem esse poder, de fazer um instante tornar-se eterno, o que ressalta a
capacidade da arte de se colocar de certa forma alheia ao tempo. Podemos pensar
que não é o tempo que age sobre uma obra de arte, e sim, ela que o abriga em si. É
claro que a matéria de que é feita a obra – a tela de uma pintura, a pedra de uma
escultura, o papel de um desenho, por exemplo – pode, sim, sofrer a ação do tempo
e se degradar. Mas, mesmo ao ver uma imagem antiga com algum dano adquirido
pela ação do tempo, a sensação é que aquele dano faz parte dela, veio dela, do
tempo que ela própria abrigava, e não de um tempo exterior. E a obra incorpora
esse “dano”, o abriga com a mesma indiferença que tem para com o tempo. Uma
Vênus de Milo (FIG. 24) e seu braço quebrado, por exemplo, uma Vitória de
Samotrácia (FIG. 25) sem sua cabeça... a obra continua lá, com toda a sua
grandeza, com todo seu tempo. Elas estão diferentes de quando foram criadas, mas
os danos que as acometeram já fazem parte delas; seria estranho ver hoje a Vitória
de Samotrácia com cabeça... seria outra obra, não essa que conhecemos como tal,
essa na qual a ação do tempo é parte constituinte. Blanchot esclarece que os torsos
são obras que foram realizadas pelo tempo, que lhes quebrou a cabeça:
Um quadro envelhece, um envelhece mal, outro torna-se obra-prima pela duração que decompõe os seus tons, e nós conhecemos a felicidade das mutilações, essa Vitória à qual somente o vôo do tempo pôde dar asas [...].
217
216
BLANCHOT, 1971, p. 43. “Les commentateurs nous le disent: l”Hermès de Praxitèle sourit du fond de son mystère, et ce sourire exprime son indifférence au temps, le mystère de sa liberté à l’égard du temps; c’est pourquoi tous ces sourires de l’art qui nous touchent comme le secret humain par excellence, [...] affirment le défi que l’expression de l’éphémère – grace et liberté d’un instant – porte à la durée en s’enfermant dans l’irréel.” 217
BLANCHOT, 1971, p. 24. “Un tableau vieillit, l’un vieillit mal, l’autre devient chef-d’oeuvre par la durée qui en décompose les tons, et nous connaissons le bonheur des mutilations, cette Victoire à laquelle seul le vol du temps a pu donner des ailes [...].”
88
Sob essa perspectiva, o retrato enquanto objeto físico – o chassi, o tecido, a
tinta – pode sofrer a ação do tempo. A madeira e o tecido podem envelhecer,
enfraquecer, serem acometidos por insetos e fungos; a tinta pode desbotar,
craquelar (FIG. 26). É claro que tudo vai depender dos materiais utilizados e das
condições de armazenamento daquela obra, mas uma coisa é certa: o tempo passa
e algum registro deixa naquele quadro. Mas quando digo que a imagem retratada
está suspensa no tempo, atravessa o tempo, estou me referindo ao rosto ali pintado,
esse sim vai perdurar, não vai mudar, e se ocorrer alguma mudança devido à
degradação de seu suporte, a imagem acaba por incorporar aquele dano e fazer
dele uma parte de si: “[...] a tela se degrada e o mármore se racha, mas a imagem é
FIGURA 24. Vênus de Milo. Mármore, cerca de130-100 a.C. Fonte: www.wikipedia.org
FIGURA 25. Vitória de Samotrácia. Mármore, cerca de 190 a.C. Fonte: www.wikipedia.org
89
incorruptível e o instante se repete sem se completar (e consequentemente, sem se
esgotar).218
É interessante destacar ainda uma outra colocação de Blanchot sobre um
utensílio danificado, que segundo o autor, torna-se a sua imagem: “o utensílio, não
mais desaparecendo no seu uso, aparece. [...] Só aparece o que se entregou à
imagem, e tudo o que aparece é, nesse sentido, imaginário”.219 Uma panela,
enquanto objeto utilitário, só é percebida em sua função: acolher o alimento para ser
cozido. Se essa panela estragar (furar, descascar, amassar), ela não poderá mais
exercer essa função, e assim, só restará sua imagem, ela aparecerá como imagem,
já que sua utilidade desapareceu. Desta forma, uma obra de arte danificada, torna-
218
BLANCHOT, 1971, p. 47. “[...] la toile se dégrade et le marbre se fend, mais l’image est incorruptible et l’instant se répète sans s’accomplir (par conséquent, sans s’épuiser).” 219
BLANCHOT, 1987, p. 260
FIGURA 26. Petrus Christus. Retrato de Jovem mulher. Óleo sobre madeira. Cerca de 1470. Fonte: MANDEL, 2007, p. 30 e 119
90
se mais ainda sua imagem: se seu suporte está degradado, o que resta é só, e
ainda mais, a imagem.
A respeito dessa degradação que o suporte ou a matéria de um retrato, de
uma obra, possa vir a sofrer devido ao tempo ou a algum outro agente externo, vale
a pena citar A parábola dos três olhares220, de Didi-Huberman. Nesta parábola, o
autor cita o pintor grego Apelle, que, não conseguindo terminar um quadro no qual
pintava Afrodite, lança sobre ele uma esponja embebida com água e aglutinantes,
que desfigura a pintura. Afrodite quase desaparece, resta somente uma grande
mancha de espuma e respingos vermelhos. Entretanto, ao se desfigurar, ao deixar
de ser representada, Afrodite continuou presente no quadro, talvez mais do que
antes. Não como uma forma acabada, mas como a formação de seu corpo, que
nasceu da espuma, do sangue e do sêmen de Urano caídos ao mar221. O quadro
ficou conhecido com o nome de Afrodite Anadiômena, que remonta ao seu
nascimento e ao fato de, neste quadro, ela também estar em um movimento de fluxo
e refluxo, onde ora ela é vista, e ora ela desaparece. A imagem de Afrodite, mesmo
tendo sofrido uma degradação, ainda assim continuou presente, presente na
ausência de sua forma, ela absorveu essa ausência e essa degradação e as fez
parte constituinte de si. O quadro de Apele se torna “uma obra da ausência que vai e
vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da
ausência”.222
Esta parábola elucida de forma exemplar o movimento de oscilação sobre o
qual Blanchot propõe os níveis de ambiguidade de uma imagem, que impedem de
se decidir de uma vez por todas: a imagem “[...] ora nos concede o poder de dispor
das coisas em sua ausência e pela ficção, [...] ora nos faz resvalar para onde talvez
estejam presentes, mas em suas imagens”223. Assim podemos dizer que a imagem
é, por natureza, anadiômena.
A Parábola dos três olhares nos mostra também como uma obra tem o poder
de manter sua força, sua identidade mesmo após sofrer um dano físico. Sua imagem
está alheia às ações exteriores, alheia ao tempo, como nos mostra Blanchot no
fragmento a seguir:
220
DIDI-HUBERMAN, 1998b, p.113-120 221
Segundo o mito de Afrodite, Urano (Céu) é castrado por seu filho Cronos, e o seu sêmen cai ao mar e o fecunda, originando Afrodite, que nasce da espuma das ondas do mar. (Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 14) 222
DIDI-HUBERMAN, 1998b, p. 148 223
BLANCHOT, 1987, p. 265
91
Ela [a obra] não estava ao abrigo do tempo, ela era o abrigo do tempo, e está, nela, essa fixidez absoluta de um presente preservado que nós acreditávamos e desejávamos admirar. Mas a obra é sua própria ausência: e por causa disso encontra-se em um constante tornar-se, nunca acabada, sempre feita e desfeita.
224
Sob essa perspectiva, a obra é que abriga o tempo, carrega o seu próprio
tempo. O tempo a que estamos todos submetidos passa ao seu redor, e ela
permanece ali, a mesma, porém incorporando as alterações que porventura seu
suporte possa vir a sofrer.
A arte não é mais atualmente a inquietude do tempo, a potência destrutiva da pura mudança, ela está ligada ao eterno, ela é o eterno presente que, através das vicissitudes e por meio das metamorfoses, mantém ou recria sem cessar a forma onde foi expressa um dia “a qualidade do mundo através de um homem”.
225
O retrato, portanto, carrega seu próprio tempo. A imagem é fixada em um
instante que contém a força de um tempo suspenso. A pessoa que foi retratada
continua sua vida cotidiana, em uma transformação constante devido ao trabalho do
tempo. Mas sua imagem retratada permanece a mesma, inalterada, fixada nessa
ausência de tempo.
Encontramos uma inversão dessa ação do tempo sobre o modelo e o retrato
no livro O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: ao contrário do que acontece na
vida real, nesta ficção é a imagem retratada que sofre a ação do tempo, é ela que
envelhece, que se transforma. O modelo permanece sempre jovem, aparentemente
puro, e todas suas marcas, suas rugas, suas expressões adquiridas ao longo da
vida só vão surgir no retrato. Oscar Wilde se aproveitou da estranheza própria dos
retratos para criar essa intriga, estranheza advinda da relação modelo-retrato, que
compreende a semelhança/dessemelhança, a presença/ausência, a
224
BLANCHOT, 1971, p. 48. “Elle n’était pas à l’abri du temps, elle était l’abri du temps, et c’est, en elle, cette fixité absolue d’un présent préservé que nous croyions et souhaitions admirer. Mais l’oeuvre est sa propre absence: à cause de cela en perpétuel devenir, jamais accomplie, toujours faite et défaite.” 225
BLANCHOT, 1971, p. 39. “L’art n’est plus à prèsent l’inquiétude du temps, la puissance destructice du pur changement, il est lié à l’éternel, il est l’éternel présent qui, à travers les vicissitudes et par le moyen des métamorphoses, maintient ou recrée sans cesse la forme où s’est exprimée un jour ‘la qualité du monde à travers un homme’.”
92
proximidade/distância, e o tempo. O autor subverte o tempo e a ordem lógica ao
criar essa ficção.
Podemos dizer que a semelhança é o fator que dá início à intriga do livro. A
beleza de Dorian Gray encanta a todos que o conhecem. Seu retrato pintado por
Basílio Hallward capta esse encanto e torna-se muito semelhante, sendo apontado
por todos como o melhor trabalho do pintor. A semelhança do retrato com seu
modelo é tanta que nos momentos que se seguem à conclusão da pintura, os
personagens da história se referem ao quadro como se fosse também o modelo, o
que pode ser verificado nos trechos a seguir dos diálogos entre o modelo, o pintor e
um amigo:
- Apreciá-lo? Adoro-o Basílio. Sinto que é parte de mim mesmo.
- Bem, assim que “você” estiver seco, será envernizado, posto numa moldura e enviado à sua casa. Você poderá, então, fazer o que quiser de “você” mesmo.
[...]
- Você não deveria dizer tais coisas diante de Dorian Gray, Harry.
- Diante de que Dorian? Do que nos serve o chá ou daquele do retrato?
- Diante de ambos.
[...]
- Ficarei com o verdadeiro Dorian – disse tristemente.
- É esse o verdadeiro Dorian? – exclamou o original do retrato, adiantando-se até ele. – Sou realmente assim?
- Sim, você é exatamente assim.
- Maravilhoso, Basílio!
- Pelo menos, na aparência, você é assim. Mas este não mudará nunca – suspirou Hallward. – E já é alguma coisa.
226
Esses fragmentos mostram a força de um retrato e como ele se confunde com
própria pessoa, sendo tratado quase como se fosse a própria pessoa. Essa força é
tamanha que, na ficção de Wilde, vai levar à uma troca entre ambos. O retrato é tão
parecido com seu modelo, que é como se aquele passasse a ser mais verdadeiro
que este, como se a semelhança entre ambos enganasse o próprio tempo.
O próprio Dorian, ao ver seu retrato pronto, fica completamente encantado por
ele – por sua própria imagem –, e é através do retrato que ele toma realmente
226
WILDE, 1972, p. 40-42
93
conhecimento de sua beleza. Como abordado no capítulo II, Nancy elucida que
nunca vemos nosso próprio rosto, só mediado por um suporte227. E é através da
pintura de seu retrato que Dorian consegue enxergar sua beleza. Entretanto, ele
percebe que essa beleza, assim como sua juventude, é efêmera, e constata que o
tempo irá provocar a ruína das coisas que são belas. Dorian se questiona por que o
retrato pode conservar aquilo que ele próprio vai perder, e sente inveja do quadro,
no qual sua imagem permanecerá sempre jovem, fora do tempo cronológico que irá
transformar a si próprio. Isso o leva a formular o desejo de uma inversão entre
ambos:
Como é triste – murmurou Dorian, com os olhos fixos ainda no seu retrato. – Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se ocorresse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso – por isso – eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria minha própria alma!
228
Esse desejo formulado por Dorian funciona como um pacto entre ele e sua
imagem retratada. Após esse dia, é Dorian que não mais envelhece. O tempo para
de agir sobre o personagem e passa a agir sobre sua imagem retratada.
O tempo se torna imóvel para o personagem da história. O real se fixa e a
imagem é que adquire movimento. O retrato torna-se o espelho que reflete Dorian
atravessando o tempo, enquanto que Dorian, o modelo, continua sempre belo e
jovem. Não são só traços de velhice que se apoderam do retrato, e sim, toda
expressão adquirida ao longo da vida de seu modelo, cada má conduta deste se
reflete somente em sua imagem.
Desta forma, curiosamente, com o passar do tempo, o retrato vai se
desassemelhando do seu modelo, pois adquire rugas, marcas e expressões, ao
passo que Dorian permanece na beleza e na juventude, no instante em que foi
capturado pelo retratista. A semelhança inicial do retrato leva à dessemelhança do
mesmo, ou seria mais apropriado dizer que Dorian Gray é que passou a não ser
mais semelhante a si próprio: o verdadeiro Dorian era aquele do retrato.
227
Cf. Capítulo II, p. 49-50 228
WILDE, 1972, p. 38
94
[...] com um espelho nas mãos, colocava-se diante de seu retrato pintado por Basílio Hallward. Contemplava então o rosto perverso e envelhecido pintado na tela, e em seguida sua face lisa e juvenil, que lhe sorria no espelho. A agudeza do contraste tornava mais viva a sensação de prazer que experimentava. Enamorava-se cada vez mais de sua própria beleza e cada vez mais se interessava na degradação de sua própria alma. [...] Indagava a si mesmo, então, quais os sinais mais repugnantes, se os da idade ou os do pecado. Colocava suas alvas mãos ao lado das mãos grossas e inchadas do retrato e sorria. Zombava daquele corpo disforme e daqueles membros lassos.
229
Ao voltar, sentava-se diante do retrato, muitas vezes odiando a si mesmo, mas algumas outras cheio desse orgulho próprio do individualista que é a quase fascinação do pecado, e sorria com secreto prazer àquela sombra informe que suportava a carga que lhe cabia a ele próprio.
230
Ao final do livro, Dorian é levado a um desejo de por fim àquele retrato que a
essa altura já estava monstruoso, e enfia uma faca no quadro. Seus criados vêm em
socorro após ouvirem um grito, e encontram um velho repugnante e desconhecido,
morto com uma faca cravada no peito, caído em frente ao esplendoroso retrato de
seu patrão. A dessemelhança entre retrato e retratado já era tamanha, que os
criados, que não haviam visto a transformação do quadro – já que Dorian o
mantinha escondido – não reconheceram aquele velho morto no chão, só o
identificaram pelos anéis que usava. O reconhecimento se dá aqui por algo exterior
às feições do velho, que já não guardavam nenhuma semelhança ao jovem que foi,
aparentemente, durante toda sua vida. E o retrato na parede, que voltara a ser do
jovem Dorian com suas feições puras, esse sim, era o patrão que eles conheciam. O
encanto se desfez com a morte, e de uma só vez Dorian, até então imaculado,
adquire todas as marcas e rugas que seu retrato carregava em seu lugar.
O fato de os criados encontrarem, no aposento da morte de Dorian, a faca
cravada no peito do velho caído ao chão, enquanto seu retrato continuava intacto na
parede, nos permite levantar hipóteses sobre a troca ocorrida entre modelo e retrato.
Se Dorian enfiou uma faca no quadro, como este não estava ao menos rasgado?
Talvez porque a troca ocorrida tenha sido uma troca apenas de lugar entre modelo e
retrato: como se a imagem retratada ganhasse vida e saísse da tela, vindo ocupar o
lugar de seu modelo no mundo real, ao passo que a pessoa de Dorian Gray, ao
tomar o lugar de seu retrato, fica preso à tela. Desta forma, a imagem retratada, que
229
WILDE, 1972, p. 156 230
WILDE, 1972, p. 170
95
não sofre a ação do tempo, que não envelhece nem se transforma, continua intacta,
sempre jovem e sempre bela, como quando foi pintada, porém, habitando o mundo
real. E o Dorian real continua a sofrer a ação do tempo, a envelhecer, a adquirir
marcas, como todas as pessoas, porém, por estar preso no quadro, é neste que as
transformações aparecem. Sob esse ponto de vista, o tempo não parou de agir
sobre o modelo para agir sobre o retrato, simplesmente o modelo e o retrato
trocaram de lugar, e cada um continua mantendo sua relação natural com o tempo,
porém, em lugares diferentes: o modelo preso no retrato, e a imagem retratada
vivendo no mundo real. Assim, o verdadeiro Dorian Gray esteve sempre no retrato,
preso, sofrendo as transformações naturais do curso da vida que sua imagem
retratada vivia em seu lugar.
Portanto, ao enfiar uma faca no retrato, quem morre é o Dorian verdadeiro,
que passou a vida toda preso no retrato. Com a morte, ele se liberta desse encanto
e volta a ser o homem de carne e osso que fora um dia – porém, já morto, com a
faca cravada no peito. E a imagem retratada, aquela para a qual o tempo é imóvel e
suspenso, aquela que retém o tempo em si, essa continua intacta, e volta para a tela
onde foi pintada, para continuar sobrevivendo ao tempo. Sob essa perspectiva, é
como se a imagem retratada tivesse matado o seu referente. Dessa interpretação
podemos tecer algumas considerações:
a imagem retratada dispensa o seu referente. Após ser pintada ela existe por
si só, não depende mais de seu modelo, por isso é como se o matasse;
a imagem retratada “vence a morte”, sobrevive a seu original, visto que este
sofre a ação do tempo, envelhece, morre, e o retrato continua, para além da
morte;
a imagem retratada “mata” seu modelo, o fixa em um momento que já passou,
que não existe mais, que está morto. E nesse sentido, ela “mata” a pessoa,
em um sentido figurado.
A intriga do livro nos aponta ainda para o fato de que um retrato afirma uma
imagem para seu modelo, imagem essa que vai sobreviver ao próprio modelo. Após
sua morte, ele será mais lembrado por aquela imagem pintada do que por sua
própria imagem viva, já que esta não existe mais, e acaba sendo esquecida, sendo
apenas resgatada por uma imagem. Podemos citar como exemplo os retratos
antigos, de quando a pintura, o desenho e a escultura eram as únicas formas de
registrar a imagem de um rosto: aqueles são os rostos que conhecemos de nossos
96
antepassados (FIG. 27). Se a aparência deles era mesmo aquela, se a pintura está
fiel ou não, não tem como saber: o rosto deles, para nós, é aquele retratado na tela.
O retrato afirma um rosto para o retratado, que vai sobreviver ao rosto real. E Wilde
joga com esse rosto imutável, transpondo-o do retrato para a realidade.
Toda essa intriga criada por Wilde diz respeito a essa fixação no tempo que o
retrato produz, ao “congelar” a imagem de uma pessoa e fazê-la perdurar, sempre a
mesma, indiferente ao tempo. O autor fez da estranheza provocada pela relação
modelo/retrato uma obra de ficção na qual as questões da semelhança e do tempo
são subvertidas. São elas que causam toda a intriga do livro, ao mesmo tempo que
vão sendo desconstruídas ao longo da história.
A ficção de Wilde nos leva ainda a pensar sobre o poder que o retrato e
consequentemente o retratista têm de salvar o retratado das ruínas que o tempo
causa, como explicitado por Blanchot:
FIGURA 27. Giovanni Bellini. Doge Leonardo Loredan. Óleo sobre madeira, 1501-1504. Fonte: MANDEL, 2007, p. 73 e 121
97
[...] somente o artista nos salva do absurdo e da contingência, somente ele transforma em um presente radiante, inteligível e salutar o que de outra forma seriam apenas ruínas informes de uma duração sem memória, a decomposição repugnante do cadáver do tempo.
231
O retrato “salva” a imagem do retratado da destruição que o tempo causa, e
lhe dá a chance da eternidade. Por ser indiferente ao tempo, o retrato parece reter
em si o passado, o presente e o futuro: nele, o que já passou continua ali, e segue
em direção ao porvir, o que pode ser compreendido pela noção de outrora de
Eudoro de Souza. Para o autor, o outrora é um tempo que nega o agora, mas que
se diferencia da antiguidade:
[...] “antiguidades” há muitas; tantas há quantos os momentos mais ou menos distanciados do “atual”, atual-atual ou atual-antigo. Porém, o outrora é só um: hora que é outra, a hora que não é esta, que esta não é, em qualquer hora que tenha soado, que venha a soar. E aqui novamente se impõe a imagem do horizonte. O outrora seria a indimensionável dimensão do tempo – que já não é tempo – de um além horizonte.
232
O outrora, de acordo com Souza, é um antigo que não pode ser determinado,
que não está sujeito à mediação do tempo, que reside além do mais antigo que nos
pareça. Podemos considerar o outrora como um passado indefinido, do qual se
desconhecem a exata medida do tempo que decorreu entre ele e o presente.
O outrora seria como que imensas reservas de antiguidade, onde a mais
remota antiguidade se perde de vista, e desta forma ele absorve o antigo: quando o
objetivamos, chamamo-lo de antiguidade, mas ele em si não pode ser determinado.
Portanto, podemos dizer que no outrora, o antigo e o atual se fundem, e através
desse pensamento, o autor está propondo uma coincidência de contrários, situando
o outrora fora ou “para além de todos os ‘agoras’ que se alinham, para trás e para a
frente, direto ao passado ou ao futuro da hora presente”.233
231
BLANCHOT, 1971, p. 41. “[…] seul l’artiste nous sauve de l’absurdité et de la contingence, seul il transforme en un present rayonnant, intelligible et salutaire ce qui autremant ne serait que les ruines informes d’une durée sans memoire, la pourriture dégoûtante du cadavre du temps”. Essa citação de Blanchot refere-se a uma interpretação sua do pensamento de Malraux (1901-1976), escritor e pensador francês. 232
SOUZA, 1981, p. 04 233
SOUZA, 1981, p. 03
98
Desta forma, Souza está também nos apresentando uma concepção de
tempo que desestabiliza a linearidade temporal. Nossa concepção tradicional de
tempo, para o autor, é uma forma da nossa sensitividade enquanto sujeitos em um
mundo objetivo, que classifica e qualifica tudo. Mas ele supõe que esse “homem-
sujeito de um mundo-objeto” e “mundo-objeto de um homem-sujeito” são sugestões
e projetos específicos da realidade, que são, entretanto, temporários e contingentes,
e por assim serem, podem dar lugar a outros projetos, nem assim tão temporários
nem tão contingentes, que sugiram e projetem outro homem e outro mundo.
Esses “outros” projetos, essa outra forma de se deparar com a realidade, nos
remete ao que Blanchot chama de o “outro de todos os mundos” – apresentado por
ele para designar o espaço literário e que mais uma vez podemos trazer para o
âmbito das artes plásticas. A Literatura, a escrita, nos abre a uma realidade que não
é essa cotidiana, mas sim uma realidade da ficção, que nos joga em um mundo que
tem relação com o imaginário: o outro de todos os mundos.
A arte, segundo Blanchot, está vinculada ao que se situa “fora” do mundo,
mas isso não significa, entretanto, que “a arte afirma um outro mundo, embora seja
verdade que ela tem sua origem, não num outro mundo, mas no outro de todo o
mundo [...]”234. Ou seja, esse outro de todos os mundos não é um outro mundo, e
sim um desdobramento, uma outra versão do mundo, que não o nega nem o
elimina, mas coexiste com ele. Tatiana Salem Levy, em seu texto O mundo
desdobrado: a paixão do fora em Blanchot235 aborda esse outro de todos os mundos
instaurado pela literatura, pela arte, nos fragmentos a seguir.
A ficção aparece como o inabitual, o insólito, o que não tem relação com este mundo nem com este tempo – o outro de todos os mundos, que é sempre distinto do mundo. Mas ao mesmo tempo em que nos retira do mundo, nele nos coloca novamente. E nós o vemos então com outro olhar, pois a realidade criada na obra abre no mundo um horizonte mais vasto, ampliado. Nesse sentido, a arte é real e eficaz. Experimentar o outro de todos os mundos e agir no mundo, eis o que a arte nos proporciona.
236
[...] o mundo criado pela literatura – mundo este imaginário – não se constitui como um não mundo, mas como o outro de todo o mundo. Assim como a imagem é contemporânea ao objeto, o imaginário também é
234
BLANCHOT, 1987, p. 70 235
LEVY, 2011, p. 15-52 236
LEVY, 2011, p. 25-26
99
contemporâneo ao real. Logo, a literatura não deixa de falar do mundo, mas fala sempre de sua outra versão.
237
O retrato também diz respeito a esse outro de todos o mundos, a essa outra
versão do mundo, que compreende uma realidade imaginária, uma outra ordem
espacial e temporal: vemos a imagem retratada agora, mas seu tempo é outro, é
indimensionável, ultrapassa a data da pintura do quadro, a idade da pessoa
retratada, e o que nos resta é um contato com uma hora que é outra – com o
outrora.
Dizer que no retrato temos contato com o outrora não se opõe a dizer que o
retrato está em uma ausência de tempo, como dito anteriormente. Essa ausência de
tempo é justamente a suspensão do tempo cronológico, no qual passado, presente e
futuro se sucedem linearmente. O outrora, por se configurar indimensionável,
também subverte essa linearidade. Dessa forma, as noções de outrora em Souza e
da ausência de tempo em Blanchot dialogam entre si quando as convocamos para
abordar o tempo nos retratos.
A experiência de Barthes com a Fotografia do Jardim de Inverno mostra bem
como uma imagem pode subverter o tempo. O autor reconhece sua mãe em uma
foto de quando ela era criança, ou seja, em um tempo em que ele ainda não vivia. O
reconhecimento, a semelhança se dá em uma subversão do tempo, em uma
suspensão do tempo, nesse tempo não cronológico, como se o presente se
confundisse com o passado. A infância de sua mãe pertence ao passado, a morte
de sua mãe é futura àquela criança da foto, mas já é passado para o autor, para o
momento em que ele olha a foto. Todas as dimensões temporais se mesclam no
momento em que Barthes se depara com essa fotografia, e a imagem que está ali
fixada salta por cima dessas dimensões, é indiferente a elas.
Esta fotografia toca Barthes justamente na medida em que ela própria
subverte o tempo e a semelhança, e é isso que mais nos impressiona: como uma
imagem desconectada no tempo e na aparência pode ser considerada como a foto
em que ele encontra sua mãe e a reconhece? O que olhou Barthes naquela foto e o
fez reconhecer nela sua mãe foi algo que dispensa o tempo, que abriga o seu
próprio tempo.
237
LEVY, 2011, p. 28
100
Interessante observar que a Fotografia do Jardim de Inverno é paradigmática,
e enlaça todas as questões abordadas nesta pesquisa: presença e ausência,
semelhança, distância e tempo. Podemos dizer que ela reúne todos os autores
abordados, e sobretudo afirma as noções teóricas de Blanchot nas duas versões do
imaginário.
André Rouillé, no texto Tensões da Fotografia238, toma como exemplo as
noções de Barthes em A Câmara Clara, para tecer suas reflexões sobre a fotografia.
Reflexões que se aproximam das duas versões do imaginário de Blanchot, como
podemos ler nos fragmentos de Rouillé a seguir: “as imagens têm a preciosa
particularidade de serem duplas [...]” 239, e “as singularidades da fotografia residem
em suas maneiras de mesclar, de unir, e até mesmo de cruzar princípios
heterogênios”.240
Neste texto, o autor contesta algumas posições de Barthes com relação à
Fotografia do Jardim de Inverno, e traz um pensamento que permite nos
aproximarmos ainda mais da complexidade da noção de tempo na imagem
fotográfica. Cabe lembrar que o que interessa a essa pesquisa não é instaurar uma
polêmica, elegendo o pensamento de um autor em detrimento do outro. De posse
das noções estudadas na presente pesquisa, me atenho à questão dos níveis de
ambiguidade, tal como formulado por Blanchot, e à de uma aposta em uma tensão
advinda da coexistência de opostos. Assim, considero que as noções de Barthes e
de Rouillé – mesmo quando não em sintonia – colaboram para a articulação teórica
desta pesquisa.
Um ponto que Rouillé questiona no pensamento de Barthes é a forma
contínua e linear com que este se baseia no tempo através de sua noção de “isso
foi”, que implica, na fotografia, que “isso que vejo encontrou-se lá, [...] esteve
absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto já diferido”241. Essa noção
atesta que o que vemos em uma foto existiu, foi real, e o tempo é nela abordado
com o passado sendo um antigo presente, e o presente sucedendo gradualmente o
passado. Portanto, o que Barthes vê na fotografia através de uma remontagem
linear do tempo é o seu referente, que adere à imagem. Barthes chega ao ponto de
238
ROUILLÉ, 2009, p. 189-229. 239
ROUILLÉ, 2009, p. 207 240
ROUILLÉ, 2009, p.197 241
BARTHES,1984, p. 115-116
101
proclamar a invisibilidade da fotografia, ao dizer que não importa o que ela mostre,
não é ela que vemos, e sim o seu referente.
Rouillé aponta que o próprio Barthes contradiz esta noção de tempo linear
que defende, através de sua experiência com a Fotografia do Jardim de Inverno na
medida em que o “encontro” de sua mãe na imagem se dá “em um passado que ele
não conhece; não o antigo presente do “isso foi”, mas o passado em que a infância
de sua mãe se mescla ao presente da percepção da imagem”242, ou seja, em um
entrecruzamento de temporalidades, onde passado e presente coexistem. Portanto,
embora Barthes defendesse um tempo linear, na Fotografia do Jardim de Inverno ele
estava lidando com um tempo que subverte essa linearidade. Para Rouillé, o
reconhecimento e o “encontro” com a mãe de Barthes nesta imagem não estava
nem no referente, nem no antigo presente do “isso-foi”, mas sim em um salto em um
passado que não é atingido a partir do presente vivo. Segundo o autor, a Fotografia
do Jardim de Inverno retém Barthes:
[...] por sua capacidade de desencadear um processo em que se cruzam o mais afastado e o mais dessemelhante, em que se encontram a menina e a mãe recentemente desaparecida, em que coexistem o presente e os polos mais opostos do passado, onde se combinam, finalmente, a percepção e a lembrança. Verdadeiro salto em um passado desconectado do presente vivo, em um passado que não se atinge a partir do presente, ao final de uma escalada no tempo, a Fotografia do jardim de inverno rompe com a lógica da semelhança [...].
243
Outra crítica que Rouillé faz às considerações de Barthes é que este reduz a
percepção a uma projeção direta e linear, do presente ao passado, ao negar que a
percepção de uma fotografia lhe remeta a uma lembrança: “a Fotografia não
rememora o passado [...]. O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que
é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato
existiu”.244 Para Rouillé, no entanto, deve-se considerar que a percepção de uma
imagem remeta a uma série de outras imagens, de lembranças, que surgem nos
desvios e rupturas do tempo, e que não dizem respeito somente ao referente. E
mais uma vez o autor aponta uma contradição em Barthes: ao buscar sua mãe nas
fotos que olha, na verdade o que Barthes está procurando é “achar o melhor retrato,
242
ROUILLÉ, 2009, p. 216 243
ROUILLÉ, 2009, p.216 244
BARTHES, 1984, p. 115
102
o mais suscetível de combinar com os pensamentos, os sonhos, as lembranças, as
sensações associadas à sua mãe”.245 Portanto, apesar de Barthes dissociar
percepção de lembrança, inconscientemente ele busca uma foto que coincida com
as sensações que sua mãe lhe suscita, uma foto em que suas percepções e suas
lembranças coexistam, ou seja, imagens que reativem uma lembrança em sua
memória, e que a façam emergir no presente.
De acordo com Rouillé a percepção de uma imagem acontece no cruzamento
de duas temporalidades: o presente da percepção e o passado da lembrança. A
percepção presente ao ver uma imagem está sujeita aos desvios da lembrança em
direção à realidade passada da coisa, que abre a uma série de outras imagens,
outras lembranças, ou seja, leva o observador a estabelecer conexões entre
elementos do presente e regiões de sua memória.
O olhar que temos para as imagens revela-se, assim, ser, em termos temporais, estereoscópico (no presente e no passado) e, ao mesmo tempo, orientado (do passado em direção ao presente). Não percebemos, aqui e agora, nada que não encontre um eco em nossa memória, nada que não esteja ligado ao passado.
246
Desta forma, o autor dialoga com a noção de Didi-Huberman sobre o que nos
olha, ao dizer que a percepção de uma imagem ou de um objeto é governada por
nós próprios: “[...] nossa percepção é, ao mesmo tempo, governada pela nossa ação
[...], pelas nossas necessidades [...], e sobretudo pela nossa memória”.247 Ou seja,
nossa percepção está relacionada com o que nos constitui, com nossas próprias
memórias, com aquilo que nos diz respeito.
O presente de um retrato – que compreende o presente da pessoa retratada,
do momento da pintura do quadro, do observador que o olha –, coexiste com o
passado da memória – da memória do retratado, do pintor, do observador. A
percepção de um retrato leva o observador a tecer conexões entre suas próprias
memórias e aquela imagem que tem diante de si, e essa conexão se dá através do
entrecruzamento de temporalidades, como propõe Rouillé, que surgem
desvinculadas de uma ordem cronológica e racional. A percepção de um retrato abre
a outras imagens, outros acontecimentos, outras sensações que podem ou não ter
245
ROUILLÉ, 2009, p. 214 246
ROUILLÉ, 2009, p. 218 247
ROUILLÉ, 2009, p. 224
103
alguma relação direta com a imagem do quadro. Podemos ver um retrato de uma
pessoa e lembrar de algum acontecimento vivenciado, de alguma sensação que já
sentimos, ou até de uma expectativa de algo ainda por vir. O retrato, desta forma,
nos permite experimentar um cruzamento de tempos distintos, ou melhor, nos insere
irremediavelmente no tempo em sua outra versão.
Portanto, de acordo com Rouillé, o tempo de uma imagem não pode ser
reduzido somente a uma cronologia, a uma sucessão de presentes, a um passado
único, ele coexiste com um “passado em geral”, o passado da memória:
[...] não um antigo presente singular, que foi vivido, mas um passado que habitamos e que nos habita, que orienta e limita nossas ações (no tempo) assim como nossas percepções (no espaço). Esse passado não cronológico, não sucessivo, não vivo, esse passado puro que não passa – mas que é – é precisamente o passado da memória.
248
Não é meu interesse aqui aprofundar a questão da memória nos retratos, pois
isso se configuraria uma outra dissertação. Meu interesse é apenas apontar para
essa relação, na medida em que ela colabora para um melhor entendimento das
temporalidades que atravessam os retratos, temporalidades que não obedecem a
uma ordem cronológica, como nos mostra Blanchot:
O tempo é capaz de um truque mais estranho. Certo incidente insignificante, que ocorreu em dado momento, outrora, esquecido, e não apenas esquecido, despercebido, eis que o curso do tempo o traz de volta, e não como uma lembrança, mas como um fato real, que acontece de novo, num novo momento do tempo. [...] Incidente ínfimo, perturbador, que rasga a trama do tempo e por esse rasgão nos introduz em outro mundo: fora do tempo [...].
249
É isso que o retrato faz, em imagem ele suspende o tempo de um rosto, o
fixa, lhe dá outro tempo, o tira da condição de estar fadado à degradação e à
finitude, e assegura que, mesmo com a transitoriedade de seu referente, e
consequentemente, com sua ausência iminente, no retrato ele irá sobreviver.
A subversão do tempo linear provocada pela imagem perpassa por todas as
questões abordadas na presente pesquisa: presença/ausência, semelhança e
248
ROUILLÉ, 2009, p. 216 249
BLANCHOT, 2005, p. 16
104
distância, demonstrando que estas noções estão de tal forma imbricadas, não nos
permitindo, tal como propõe Blanchot, uma escolha definitiva: “Daí que a
ambiguidade, embora só ela torne a escolha possível, está sempre presente na
própria escolha.”250
- a presença ilusória que o retrato suscita parece trazer no tempo aquela
pessoa ali retratada, implica uma volta naquele tempo que já passou e no entanto
continua ali fixado na tela. Porém, a ausência que simultaneamente é suscitada pelo
retrato nos remete à ausência de tempo: o tempo está suspenso;
- a semelhança tem uma relação estreita com o tempo, na medida em que um
retrato feito em determinada época pode até se assemelhar com a pessoa naquele
instante, mas a partir daí, a pessoa sofre a ação do tempo e vai se transformando, e
o retrato passa a guardar uma semelhança com o passado daquela pessoa, e não
com seu presente;
- a distância e proximidade implicadas em um retrato tanto dizem respeito ao
espaço físico quanto ao tempo: os retratos suscitam uma proximidade física e
temporal com o retratado, mas na verdade apontam o distanciamento físico e
temporal daquela imagem na tela.
O retrato retém em si uma trama de tempos heterogêneos, em que ora temos
contato com o presente, ora com o passado, ora com o futuro, num movimento
anadiômeno do tempo que o quadro apresenta, reafirmando os níveis de
ambiguidade da imagem. Ao reter toda essa trama em si, o retrato nos olha do fundo
de sua indiferença ao tempo, como aquele que conseguiu dominar o tempo.
250
BLANCHOT, 1987, p. 263
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na tentativa de cercar as questões instigantes suscitadas pelo retrato,
percebo, entretanto, que é impossível uma resposta definitiva para todas elas. Os
autores escolhidos para fundamentar esta pesquisa me permitiram rondá-las, mas
não dominá-las inteiramente, fazendo-me compreender através de suas formulações
teóricas, o estatuto ambíguo da imagem, que não permite que ela seja apreendida
por um domínio circunscrito. Torna-se impossível, portanto, buscar uma conclusão
fechada, uma afirmação única. O retrato e as questões que suscita guardam em si o
“algo que escapa” a toda tentativa de compreensão, o que demonstra – como vimos
nesse estudo – que o lugar da imagem é o de uma oscilação permanente: “Aqui, o
que fala em nome da imagem, ‘ora’ fala ainda do mundo, ‘ora’ nos introduz no meio
indeterminado da fascinação”.251
A propósito, a busca por uma resposta não concerne ao pensamento de
Blanchot, para quem “questionar é jogar-se na questão. A questão é esse convite ao
salto, que não se detém num resultado”.252 Portanto, o intuito desta pesquisa foi
“jogar-se” nas questões, já sabendo que não seria possível encerrá-las em um único
resultado.
Ao longo desta pesquisa, percebi estarem imbricadas entre si todas as
questões que envolvem o retrato e que estão aqui discutidas. A presença e a
ausência se desdobram na semelhança, na medida em que a presença suscitada
pelo retrato é provocada pela semelhança que este carrega em relação a seu
referente, que, por sua vez, no retrato está ausente. A semelhança nos leva à
distância, pois, mesmo pretendendo ser semelhante a seu modelo, o retrato instaura
um distanciamento em relação a ele. A distância está relacionada com o tempo, na
medida em que o retrato implica, além de uma distância física, também uma
distância temporal em relação a seu referente. E por fim, a questão do tempo nos
retratos nos aponta novamente para a presença e ausência, pois uma imagem
deslocada no tempo nos remete a uma presença ilusória de um tempo que não
existe mais, quando na verdade nos deparamos com a ausência do modelo, e com a
ausência do tempo no qual ele foi retratado.
251
BLANCHOT, 1987, p. 265 252
BLANCHOT, 2001, p. 53
106
Duas noções estudadas perpassaram todas as questões abordadas na
pesquisa: a ambiguidade da imagem, afirmada pelas duas versões do imaginário de
Blanchot, e a trama do olhar proposta por Didi-Huberman em O que vemos, o que
nos olha. Em conjunto, essas noções, se não nos fornecem uma resposta definitiva,
devido a seu próprio caráter aberto, elas nos permitem entender o porquê desta
impossibilidade de uma única resposta, ao nos confirmar a ambiguidade própria da
imagem e as formas em que essa se dá a ver.
O retrato carrega essa ambiguidade intrínseca à imagem, ao nos suscitar ao
mesmo tempo presença e ausência, vida e morte, proximidade e distância,
semelhança e dessemelhança, passado, presente e futuro. Desta forma, o retrato,
se configura como uma imagem anadiômena, que a cada momento nos remete a
uma questão, em um movimento de ir e vir sem cessar.
E a maneira como a presença e a ausência são evocadas pelo retrato, a
semelhança deste para com seu modelo, a distância e a questão temporal que ele
implica, a aura e o fascínio que ele pode suscitar, tudo isso será percebido e sentido
de forma diferente por cada um que o olha, de acordo com o que lhe concerne, com
o que lhe olha de volta. Assim, o retrato não está submetido a um olhar absoluto:
ele é dado a ver conforme quem o olha.
A partir das formulações de Blanchot, Didi-Huberman e Nancy, deparamo-nos
ainda com uma desestabilização do referente, que nos leva a pensar o retrato não
só vinculado a seu modelo. Para Blanchot, a imagem é contemporânea ao objeto, e,
portanto não é subjugada a ele, pelo contrário: ela coexiste com ele e
simultaneamente o dispensa. Para Didi-Huberman, a forma de se ver uma imagem
está imbricada com a pessoa que a olha, e sob essa perspectiva, um retrato vai
dizer respeito tanto – e talvez até mais – a quem o olha quanto a quem ele figura na
tela. E para Nancy, o modelo não é essencial ao retrato, o que é essencial é sua
ausência, necessária para que o retrato se configure como tal. Desta forma, a partir
desta desestabilização da soberania do referente que encontramos nas formulações
destes três autores, percebemos que o retrato não se encontra subjugado ao seu
modelo: ele remete a seu referente ao mesmo tempo em que o dispensa, e funda-se
na sua ausência.
Esse caráter ambíguo do retrato é o que o faz escapar a qualquer resposta
definitiva. Imagem que flutua em uma trama de espaço, tempo, presença, ausência,
107
em um jogo de semelhanças que estão sempre remetendo a outras semelhanças...
Trata-se de uma trama sem fim, que me impele a dar continuidade a esta pesquisa.
Neste ponto do meu estudo e na expectativa de seus possíveis
desdobramentos, posso dizer que o encanto/espanto que o retrato me suscita se
mantém. As questões que o envolvem e me instigam estão sempre recomeçando,
ressurgindo com a mesma força: “É como se, na questão propriamente dita,
estivéssemos envolvidos com o outro de qualquer questão; como se, vinda
exclusivamente de nós, ela nos expusesse a algo que nos é definitivamente
alheio.”253
Esse algo que me é definitivamente alheio no retrato, aquilo que nele escapa
de sua presença/ausência, semelhança/dessemelhança, distância/tempo, e que não
se pode fixar nem apreender, é o que me fascina.
**********
Ao terminar de escrever essa dissertação, ergo meus olhos para cima da
mesa onde estou sentada, e me deparo com meu autorretrato pendurado na parede
(FIG. 28). Eu o olho e ele me olha. Algo nele me escapa definitivamente, ainda que
aquela seja a minha própria imagem, pintada por mim mesma.
Um retrato – meu próprio retrato – me olha, do alto de sua autonomia e
indiferença a todas as questões que o envolvem.
E todas essas questões recomeçam.
253
BLANCHOT, 2001, p. 46
108
FIGURA 28. Iara Ribeiro. Autorretrato. Acrílica sobre tela, 2010. Fonte: Acervo da artista
109
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