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Iara Inchausti Ribeiro Vilhena UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM SUA IMAGEM Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Belas Artes Mestrado em Artes 2013

UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE … · desestabilização da noção da semelhança, essas questões serão abordadas levando em consideração o caráter ambíguo da

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Iara Inchausti Ribeiro Vilhena

UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM SUA

IMAGEM

Universidade Federal de Minas Gerais

Escola de Belas Artes

Mestrado em Artes

2013

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Iara Inchausti Ribeiro Vilhena

UM ESTUDO SOBRE O RETRATO E AS QUESTÕES QUE ENVOLVEM SUA

IMAGEM

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Artes da Escola

de Belas Artes da Universidade Federal

de Minas Gerais, como requisito parcial

à obtenção do título de Mestre em

Artes.

Área de Concentração: Arte e

Tecnologia da Imagem.

Orientadora:

Profa. Dra. Daisy Leite Turrer

Belo Horizonte

Escola de Belas Artes /UFMG

2013

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Ribeiro, Iara, 1980- Um estudo sobre o retrato e as questões que envolvem sua imagem [manuscrito] / Iara Inchausti Ribeiro Vilhena. – 2013. 111 f. : il.

Orientadora: Daisy Leite Turrer. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2012.

1. Retratos (Pintura) – Teses. 2. Imagem (Filosofia) – Teses. 3. Semelhança (Física) – Teses. 4. Espaço e tempo em arte – Teses. 5. Tempo na arte – Teses. 6. Pintura – Teses. I. Turrer, Daisy, 1950- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. III. Título.

CDD: 750.118

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Para meus pais, que trouxeram arte para minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à profa. Dra. Daisy Turrer, grande orientadora, que se tornou também uma

grande amiga, por ter acompanhado desde o início o desenvolvimento desta

pesquisa, sempre me incentivando, esclarecendo e apontando caminhos, com

dedicação, generosidade e extrema competência; a ela, toda minha gratidão.

Ao meu pai José Maria Ribeiro, a quem eu devo a minha paixão pelos retratos, e

com quem, hoje, compartilho essa paixão.

À minha mãe Fátima Inchausti, pelo apoio e incentivo constantes, e pela grande

ajuda nas traduções.

Ao meu marido Adriano Vilhena, companheiro de todas as horas, pela presença,

pelo apoio e amor que me fortalecem.

À profa. Dra. Wanda Tófani e à profa. Dra. Maria do Carmo Freitas pelas contribuições

valiosas na qualificação.

À profa. Tânia Araujo, pelo incentivo.

À profa. Dra. Lúcia Pimentel, que, ao orientar minha monografia, contribuiu para

despertar meu interesse pelo mestrado.

À Zina Souza, à José Sávio Santos e à Klausmax Coelho pela disponibilidade em

ajudar sempre que preciso.

Ao grupo de estudos Imagem, Escrita, Livro, orientado pela profa. Dra. Daisy Turrer,

pelos estudos partilhados, especialmente à Neide Souza, pelo texto que me

apresentou.

À Capes-Reuni, pelo auxílio financeiro que me permitiu maior dedicação à pesquisa.

Às profas. Dras. Magali Melleu Shen e Maria Regina Emery Quites, coordenadoras da

minha bolsa, pela confiança.

Ao meu irmão Humberto Inchausti, pela torcida.

Aos colegas da pós-graduação, por compartilharem as agonias e alegrias durante

esses dois anos de estudos.

À Consuelo Salomé, pela revisão.

À Lana, pela companhia.

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Um retrato, isso foi percebido pouco a pouco, não é semelhante porque ele

se faria similar ao rosto, mas a semelhança só começa e só existe com o

retrato e apenas nele, ela é sua obra, sua glória ou sua desgraça, ela está

ligada à condição da obra, exprimindo o fato de que o rosto não está aí, ele

está ausente, ele só aparece a partir da ausência que é precisamente a

semelhança, e essa ausência é também a forma pela qual o tempo se

apreende, quando se distancia o mundo e, dele, nada mais resta a não ser

esse desvio e esse distanciamento.

Maurice Blanchot

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RESUMO

Esta dissertação se propõe a estudar as questões emergentes do retrato

pintado com relação à presença, ausência, semelhança, distância e tempo. Através

das formulações teóricas de Maurice Blanchot sobre as duas versões do imaginário,

de Georges Didi-Huberman sobre a trama do olhar, e de Jean-Luc Nancy sobre a

desestabilização da noção da semelhança, essas questões serão abordadas

levando em consideração o caráter ambíguo da imagem.

PALAVRAS-CHAVE: retrato, presença, ausência, semelhança, distância, tempo.

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RESUMÉ

Cette dissertation vise à étudier les questions issues du portrait peint par

rapport à la présence, l’absence, la ressemblance, la distance et le temps. À travers

les formulations théoriques de Maurice Blanchot en ce qui concerne les deux

versions de l’imaginaire, ainsi que celles de Georges Didi-Huberman à propos de la

trame du regard et celles de Jean-Luc Nancy sur la déstabilisation de la notion de

ressemblance, ces questions seront abordées en tenant compte du caractère de

l’image marqué par l’ambiguité.

MOTS-CLÉS: portrait, présence, absence, ressemblance, distance, temps.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. José Maria Ribeiro. Retrato de Kiki ...................................................... 18

Figura 2. José Maria Ribeiro. Retrato de Maria Lúcia .......................................... 20

Figura 3. José Maria Ribeiro. Retrato de Sr. Inhô ................................................ 24

Figura 4. David Allan. A origem da pintura .......................................................... 26

Figura 5. Claude Monet. Camille Monet em seu leito de morte ........................... 27

Figura 6. Iara Ribeiro. Retrato de Edilson ............................................................ 29

Figura 7. Rembrandt. Noli me Tangere ................................................................ 36

Figura 8. Paolo Veronese. Noli me tangere ......................................................... 36

Figura 9. Jean-Baptiste C. Corot. Orfeu guiando Eurídice no mundo dos mortos 37

Figura 10. Rembrandt. Cristo aparecendo para Maria Madalena ........................ 41

Figura 11. Albrecht Dürer. 32ª prancha da Pequena Paixão ............................... 41

Figura 12. Abraham G. Bloemaert. Ceia em Emaús ............................................ 44

Figura 13. Johannes Gummp. Autorretrato .......................................................... 47

Figura 14. Johannes Gummp. Autorretrato (detalhe) .......................................... 49

Figura 15. André Derain. Retrato de Matisse ....................................................... 54

Figura 16. Henri Matisse. Autorretrato ................................................................. 54

Figura 17. Iara Ribeiro. O pintor (Retrato de José Maria)..................................... 54

Figura 18. José Maria Ribeiro. Autorretrato ......................................................... 54

Figura 19. Raphael. Retrato de mulher (Velata) .................................................. 57

Figura 20. Leonardo da Vinci. Monalisa ............................................................... 58

Figura 21. Caravaggio. Narciso ........................................................................... 63

Figura 22. Iara Ribeiro. Retrato de D. Rita ........................................................... 81

Figura 23. Paxíteles. Hermes (detalhe) ............................................................... 86

Figura 24. Vênus de Milo ..................................................................................... 88

Figura 25. Vitória de Samotrácia .......................................................................... 88

Figura 26. Petrus Christus. Retrato de Jovem mulher ......................................... 89

Figura 27. Giovanni Bellini. Doge Leonardo Loredan .......................................... 96

Figura 28. Iara Ribeiro. Autorretrato .................................................................... 108

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................................ 10

Capítulo I

Presença/ausência .......................................................................................................... 15

Capítulo II

Semelhança ..................................................................................................................... 39

Capítulo III

Distância .......................................................................................................................... 60

Capítulo IV

Tempo .............................................................................................................................. 80

Considerações Finais ...................................................................................................... 105

Referências ...................................................................................................................... 109

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INTRODUÇÃO

Os retratos sempre estiveram ao meu redor. Meu pai é retratista, portanto

cresci entre retratos que eu via surgir em telas como aparições, e lá elas ficavam, a

espreitar o mundo e a me impressionar. Eu gostava de acompanhar o “nascimento”

daquelas imagens, e com elas parecia nascer também todo o mistério que as

envolvia: quem era aquela pessoa, como era sua personalidade, que

acontecimentos já vivera e quais ainda viveria? Cada rosto retratado parecia ter o

que dizer, e parecia querer dizer muito mais do que o que se via na superfície da

tela.

Dessa forma, o retrato sempre exerceu em mim uma grande atração que

acabou por determinar a minha formação profissional: tornei-me retratista. Pintar

retratos talvez tenha sido a forma que encontrei de estreitar o contato com todo esse

mistério que os envolve, e dele participar. Porém, este ofício não diminuiu o meu

fascínio, pelo contrário, continuo me deparando com os mesmos questionamentos, e

o mesmo espanto que sempre senti ao estar diante de um retrato.

Por isso, tomo emprestadas as palavras de Roland Barthes e transcrevo-as

para iluminar as questões que envolvem a minha experiência de estar diante de um

retrato, embora ele as tenha pronunciado em relação à fotografia: o retrato “sempre

me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente”.1 Ele tem

uma força, uma presença, algo inalcançável. A pessoa retratada está ali, na minha

frente, fixada na tela, mas parece estar, ao mesmo tempo, se constituindo de um

algo outro que não sei bem o que é, que não posso ver materializado, algo estranho

que parece impregnar toda a imagem, e que me escapa.

O espanto que o retrato suscita vem de um estranhamento da própria imagem

retratada, de uma ambiguidade que nela se manifesta, sobretudo no que diz respeito

à presença e à ausência: diante de um retrato, somos remetidos à presença de uma

pessoa que, no entanto, não está realmente ali. Portanto, a imagem retratada nos

aponta uma presença, ao mesmo tempo em que afirma uma ausência.

Seria essa presença evocada, ainda que camuflada em sua própria ausência,

o que atrai as pessoas ao retrato, o que as faz ansiar por seu próprio retrato ou pelo

1 BARTHES, 1984, p. 123. “A fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova,

inesgotavelmente.”

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retrato de alguém que estimam? Para sobreviverem, ou fazer sobreviver através da

imagem? Frequentemente recebo encomendas para retratar pessoas que já

faleceram, o que me faz pensar sobre a relação retrato/morte: o que se espera

desse retrato? Seria uma tentativa de ter de volta a pessoa retratada? De mantê-la

sempre aqui? Teria o retrato realmente esse poder de presentificar alguém que não

está mais presente? Ou ele afasta essa pessoa cada vez mais ao nos apontar sua

distância intransponível, sua ausência?

Ao sentir a presença suscitada pelo retrato, estabelecemos uma relação entre

este e a pessoa retratada, relação que passa pela questão da semelhança. Como se

dá a semelhança nos retratos? É suficiente a cópia dos traços físicos do modelo, ou

é necessário captar um algo a mais? Em que consistiria esse algo a mais? E é

essencial para o retrato a semelhança com o modelo?

Por mais semelhante que seja ao seu referente, o retrato guarda uma

distância em relação a este, pois, na tela temos só uma imagem, o modelo não se

encontra lá. Portanto, o retrato nos apresenta de forma próxima – na imagem –, algo

que na verdade está distante – o modelo. Seria esse o motivo que confere às

imagens retratadas um ar de além, um distanciamento de tudo e de todos?

O retrato é ambíguo também na questão temporal, já que ele atravessa o

tempo, ao nos mostrar agora – no presente –, uma pose do passado, que ficará

eternizada em direção ao futuro. Ele congela um momento e parece nos trazer esse

momento de novo, embora nos lembre que esse tempo já passou, não existe mais.

O retrato nos permite um contato com um tempo que subverte a linearidade

cronológica, onde passado, presente e futuro não se sucedem gradualmente, e sim

se entrecruzam e coexistem, e talvez seja por isso que o retrato parece escapar ao

tempo, parece ser atemporal.

Logo, a imagem do retrato nos evoca simultaneamente a presença e a

ausência, o próximo e o distante, o semelhante e o dessemelhante, o passado, o

presente e o futuro e ainda uma atemporalidade. São essas as questões que fazem

emergir o sentimento de encanto/espanto que envolve o objeto deste estudo.

Vale a pena observar que um retrato pode ser pintado, desenhado, gravado,

esculpido e também fotografado, mas aquele que mais me instiga, e que move os

meus questionamentos é o retrato pintado: é ele o meu principal interesse, e é sobre

ele que escrevo essa dissertação, embora contribuições de outras técnicas sejam

por vezes levadas em conta. As questões que envolvem a fotografia perpassam as

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que envolvem o retrato pintado, pois ela também encarna a ambiguidade da imagem

quanto à presença, à ausência, à semelhança, à distância e ao tempo. Por isso,

muitas vezes serão trazidas ao texto reflexões acerca da fotografia, até mesmo

porque, hoje, a maioria dos retratos é pintada tendo como referência fotos do

modelo, e assim, o retratista interage com as questões já existentes na foto, as quais

terminam por incidir em sua tela.

Torna-se importante ressaltar que, devido à ambiguidade que a própria

palavra “retrato” carrega, podendo ser empregada para designar tanto uma pintura

quanto uma fotografia, opto por empregá-la no presente texto somente para me

referir ao retrato pintado, que é o meu objeto de estudo.

Para fundamentar neste estudo as questões instigantes que envolvem o

retrato, elejo como corpus teórico os seguintes autores e obras: Maurice Blanchot

com O Espaço Literário2, em especial o texto As duas versões do imaginário3;

Georges Didi-Huberman com O que vemos o que nos olha4, nos textos A inelutável

cisão do ver5, O evitamento do vazio: crença ou tautologia6, e A dupla distância7; e

Jean-Luc Nancy, com Le regard du portrait8, e Noli me tangere: Essai sur la levée du

corps9.

Blanchot foi eleito por trazer um pensamento sobre os níveis de ambiguidade

da imagem, cujo desdobramento se dá em duas versões que não podem ser

separadas nem hierarquizadas como primeira e segunda, pois, para ele, nela

coexistem dois processos simultâneos: aquele em que a imagem parece nos trazer

o objeto de volta, remetendo-nos à sua presença, e aquele em que ela o afasta para

sempre, apontando para sua ausência.

A escolha de Didi-Huberman se deu por este abordar a trama do olhar, ao

propor que tudo que olhamos também nos olha. E que aquilo que cada coisa nos

devolve ao olhar ultrapassa a visibilidade e está relacionado com quem olha, o que

vai configurar formas diferentes de se ver a mesma imagem. Essa trama do olhar,

segundo o autor, está intrinsecamente ligada a uma dupla distância, ao apresentar

de forma próxima algo que está longínquo, e é inapreensível.

2 BLANCHOT, 1987

3 BLANCHOT, 1987, p. 255-265

4 DIDI-HUBERMAN, 1998a

5 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29-35

6 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48

7 DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 147-168

8 NANCY, 2000

9 NANCY, 2003b

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Jean-Luc Nancy foi escolhido tanto pela contundência de seu estudo sobre o

retrato envolvendo as noções de semelhança, ausência, morte e olhar, quanto pela

sua instigante leitura do Evangelho de São João, na qual desestabiliza a noção de

semelhança.

Em diálogo com as noções complexas sobre o estatuto da imagem de

Blanchot, Didi-Huberman e Nancy, também participam do texto, para a

fundamentação desta pesquisa: Walter Benjamin – através da leitura de Didi-

Huberman dos textos A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica10 e

Sobre alguns temas em Baudelaire11 – pela importância de suas reflexões sobre a

noção de aura e sua relação com a distância; André Rouillé – com o texto Tensões

da fotografia12 – por seus questionamentos sobre a imagem fotográfica que apontam

para a ambiguidade da imagem tal como formulada por Blanchot; Régis Debray –

com Vida e morte da imagem13 – pela referência histórica e pela relação que o autor

estabelece entre a morte e o nascimento da imagem; Eudoro de Souza – com o

texto Lonjura e outrora14 – por apresentar noções pertinentes ao estudo do retrato

envolvido na trama do tempo e do espaço; Oscar Wilde – com O retrato de Dorian

Gray15, clássica ficção em que o autor propõe uma intriga em torno da imagem

retratada, subvertendo a questão do tempo e da semelhança.

E ainda as reflexões de Roland Barthes sobre a fotografia atravessam todo

este texto e iluminam o objeto deste estudo, ao serem mescladas às dos outros

autores que foram eleitos para compor o corpus teórico. A leitura de seu livro A

Câmara Clara – Notas sobre a fotografia16 foi fundamental para que eu começasse a

pensar e a elaborar essa pesquisa, pois as questões por ele levantadas sobre a

fotografia terminam por esbarrar nas questões que me suscita o retrato pintado, quer

seja ele feito a partir de um modelo ou a partir de uma fotografia.

Torna-se importante destacar que esta dissertação não teve por intento

focalizar o retrato numa perspectiva histórica, uma vez que isso exigiria um desvio

do meu interesse em relação às questões suscitadas pela imagem sob o ponto de

vista dos teóricos citados. Questões essas que independem de datas e fatos

10

BENJAMIN, 1994, p.165-196 11

BENJAMIN, 1989, p. 103-149 12

ROUILLÉ, 2009, p. 189-229 13

DEBRAY, 1994 14

SOUZA, 1981, p. 03-07 15

WILDE, 1972 16

BARTHES, 1984

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históricos, estando para além e para aquém da cronologia. Adentrar na história do

retrato se configuraria como uma outra abordagem, o que, entretanto, não me

impediu de fazer, quando necessário, algumas pequenas pontuações e

contextualizações.

A dissertação está estruturada nos seguintes capítulos:

- Capítulo I. Presença/ausência: seu paradoxo nos retratos e a relação entre a

morte e o retrato. Neste capítulo serão apresentadas as formulações de Blanchot em

As duas versões do imaginário, e as de Didi-Huberman em O que vemos, o que nos

olha.

- Capítulo II. Semelhança: o que é necessário para um retrato se configurar

como semelhante a seu modelo, como se dá essa semelhança. Neste capítulo,

serão estudadas as formulações de Nancy sobre o retrato, presentes em Le regard

du portrait, e sua análise sobre a cena bíblica, no livro Noli me tangere: essai sur la

levée du corps.

- Capítulo III. Distância: a distância que o retrato nos impõe, a lonjura

inalcançável que ele carrega e que o faz ter um ar de além, mesmo estando diante

de nós. Neste capítulo serão estudadas as noções de aura de Benjamin, fascínio de

Blanchot e dupla distância de Didi-Huberman.

- Capítulo IV. Tempo: os tempos que perpassam o retrato, a subversão do

tempo linear nele implicada. Neste capítulo será abordada a noção do tempo em

Blanchot, assim como a intriga entre retrato e tempo apresentada por Oscar Wilde

no livro O retrato de Dorian Gray.

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Capítulo I.

PRESENÇA / AUSÊNCIA

[...] a aparente espiritualidade, a pura virgindade formal da imagem está originalmente ligada à estranheza elementar e ao peso informal do ser presente na ausência.

Maurice Blanchot

Ao se retratar uma pessoa ou ao olharmos o seu retrato pintado, somos

remetidos à sua presença, sentimos essa presença. Uma presença ilusória, na

medida em que a pessoa real não está verdadeiramente no quadro: o que temos é

só a sua imagem: inapreensível e longínqua.

Jean-Luc Nancy, em seu livro Le Regard du Portrait17, afirma que retratar é

“tornar presente. Retratar é tirar a presença para fora – seja ela a presença de uma

ausência”.18 Diante de um retrato somos postos em contato com um jogo paradoxal,

que nos remete à presença do modelo, e à sua ausência. O retrato nos traz

realmente uma presença, mas é a presença da ausência do retratado.

Maurice Blanchot, no texto As duas versões do imaginário19, analisa essa

dualidade da imagem que lhe confere o poder de se desdobrar em duas versões,

pois, ao mesmo tempo em que ela parece nos trazer o objeto de volta, também nos

traz a sua ausência. É a ambiguidade da imagem que nos faz deparar com esse

paradoxo presença/ausência:

... a imagem pode, certamente, ajudar-nos a recuperar idealmente a coisa, de que ela é então a sua negação vivificante, mas que, ao nível para onde nos arrasta o peso que lhe é próprio, corre também o constante risco de nos devolver, não mais a coisa ausente, mas à ausência como presença, ao duplo neutro do objeto em que a pertença ao mundo se dissipou.

20

17

NANCY, 2000 18

NANCY, 2000, p. 51. [Portraiturer] “c’est rendre présent. Portraiturer, c’est tirer la présence au dehors – fût-elle présence d’une absence.” (Todas as referências e citações de obras e artigos de língua francesa são traduzidos pela autora com a supervisão de Fátima Inchausti, salvo indicação contrária). 19

BLANCHOT, 1987, p. 255-265 20

BLANCHOT, 1987, p. 264

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A imagem funda-se na ausência do objeto. Assim, para que exista a imagem, é

necessário que o objeto não esteja mais lá: “A imagem pede a neutralidade e a

supressão do mundo [...]”.21 A imagem tem um poder duplo, ela tanto nos aproxima

quanto nos mantém afastados do objeto, que é reafirmado por sua

inapreensibilidade e desaparecimento. E é no distanciamento que a imagem

apreende o objeto.

A análise comum, segundo Blanchot, determina que a imagem venha depois

do objeto, que ela surja a partir dele.22 É preciso que o objeto seja dado primeiro,

para depois se ter sua imagem. Sob essa perspectiva há uma hierarquia que coloca

a imagem como sendo a continuação do objeto, e portanto dependente dele. Porém

o autor desestabiliza essa análise e essa hierarquia ao esclarecer que a imagem é

ao mesmo tempo o próprio objeto e sua imagem, ela é contemporânea ao objeto, ou

seja, coexiste com ele, e não a partir apenas dele.

A coisa estava aí, que nós apreenderíamos no movimento vivo de uma ação compreensiva e, tornada imagem, ei-la instantaneamente convertida no inapreensível, inatual, impassível, não a mesma coisa distanciada mas essa coisa como distanciamento [...].

23

Blanchot está desta forma demonstrando que o caráter ambíguo da imagem

não nos permite escolher entre uma coisa ou outra: “[...] essa duplicidade não é tal

que se possa pacificá-la por um ‘ou isto ou aquilo’ capaz de autorizar uma escolha e

de apagar da escolha a ambiguidade que a torna possível”.24 A imagem para o

autor, tanto diz respeito à presença quanto à ausência, estatuto mesmo que a

constitui. Blanchot não trabalha com o pensamento da exclusão entre uma coisa ou

outra, e sim, com a tensão advinda da coexistência dos opostos:

Aqui, o que fala em nome da imagem, ‘ora’ fala ainda do mundo, ‘ora’ nos introduz no meio indeterminado da fascinação, ‘ora’ nos concede o poder de dispor das coisas em sua ausência e pela ficção, retendo-nos assim num horizonte rico de sentido, ‘ora’ nos faz resvalar para onde talvez estejam presentes, mas em suas imagens; [...].

25

21

BLANCHOT, 1987, p. 255 22

BLANCHOT, 1987, p. 257 23

BLANCHOT, 1987, p. 257 24

BLANCHOT, 1987, p. 264 25

BLANCHOT, 1987, p. 265

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O retrato carrega essa ambiguidade da imagem: ao nos apresentar uma

pessoa, ele está ao mesmo tempo nos apontando para o seu referente e para sua

imagem retratada, para sua presença e para sua ausência simultaneamente.

O poder da imagem de restituir o objeto de volta, ainda que pelo paradoxo da

presença e da ausência é também trabalhado por Didi-Huberman quando este

constata que o ato de ver, embora a princípio pareça nos dar o objeto, na verdade

nos tira o mesmo:

[...] A experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é, quando ver é perder. Tudo está aí.

26

O olhar para Didi-Huberman sofre de uma inelutável cisão: a que “[...] separa

dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”.27 Para o autor, “[...] o ato de ver

só se manifesta ao se abrir em dois”28: tudo que vemos também nos olha, nos

devolve o olhar, e o que é devolvido com esse olhar tem a ver conosco, com nossa

vivência, e vai além do que é visto fisicamente ali.

A expressão em francês ce qui nous regarde significa o que nos olha, mas

também pode significar o que tem a ver conosco, o que nos diz respeito, o que nos

concerne. Didi-Huberman trabalha com a dualidade desta expressão29, dualidade

que é perdida na tradução para o português, mas que é essencial para um melhor

entendimento do pensamento do autor. Quando olhamos alguma coisa, o que nos

olha de volta é o que está intrinsecamente relacionado às nossas experiências e

nossas sensações.

Como exemplo, Didi-Huberman destaca uma passagem de Ulisses, romance

de James Joyce, em que o personagem olha o mar, mas o que o olha de volta são

os olhos de sua mãe morta30. Ou seja, a forma como ele olha as coisas, e a forma

26

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 34 27

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29 28

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 29 29

O próprio nome do livro de Didi-Huberman Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (traduzido como O que vemos, o que nos olha), traz em si essa dualidade da expressão em francês, que é o que realmente se trata no livro: o que vemos também nos olha, e esse olhar vai nos remeter a algo que nos diz respeito. 30

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 32

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como essas coisas se apresentam ao seu olhar remetem a um fato particular de sua

vida, a perda de sua mãe.

Nessa perspectiva, o pensamento de Didi-Huberman sobre o que nos olha,

como aquilo que nos concerne, coincide com o pensamento de Blanchot sobre a

imagem, como podemos verificar através do fragmento a seguir: “A imagem fala-nos,

e parece que nos fala intimamente de nós. [...] Assim nos fala ela, a propósito de

cada coisa, de menos que a coisa, mas de nós [...]”.31

É importante, ainda, citar o pensamento de Nancy sobre o caráter duplo do

olhar, inteiramente em sintonia com as formulações de Didi-Huberman e Blanchot:

“Eu não posso olhar sem que isso me olhe”.32

Nesse sentido, tanto Didi-Huberman quanto Blanchot e Nancy reafirmam as

noções de que a imagem nos olha e nos fala de nós próprios.

Se todas as coisas que olhamos também nos olham, podemos pensar no

retrato como algo que nos olha duplamente: enquanto objeto, e enquanto rosto

iluminado pelo olhar – o órgão da visão se encontra no rosto. Nesse sentido, esse

poder das coisas de nos olharem é intensificado pelo retrato: ele realmente nos olha

(FIG. 01), tal como nos esclarece Nancy: “antes de qualquer coisa, o retrato olha: é

só o que ele faz, ele se concentra, se envia e se perde nisso”.33

31

BLANCHOT, 1987, p. 256 32

NANCY, 2000, p. 75. “Je ne peux regarder sans que ça me regarde.” 33

NANCY, 2000, p. 72. “Avant toute autre chose, le portrait regarde: il ne fait que cela, il s’y concentre, il s’y envoie et il s’y perd.”

FIGURA 01. José Maria Ribeiro. Retrato de Kiki. Acrílica sobre tela, 2005. Fonte: Acervo do artista

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Essa questão do olhar do retrato me remete a uma experiência pessoal. Ao

visitar uma galeria institucional de retratos, dentre os quais eu havia pintado alguns,

um funcionário local perguntou-me por que a maioria dos retratados olhava para

nós, e somente um não olhava. Sem me dar a chance da resposta, ele explicou que

sabia o porquê – aquele que não olhava direto para nós era o único dentre os

retratados que já havia morrido. O funcionário, sem perceber, estava instigado pelas

mesmas questões que envolvem o objeto desta pesquisa. Na verdade o que ele

questionava era o olhar e a morte. O olhar daquele retratado que já havia morrido

estava além, em outro lugar, parecia não olhar mais diretamente para esse mundo.

A observação do funcionário deve-se a uma coincidência, mas me fez pensar

que todo olhar de um retrato impele-nos a um movimento para trás, a uma busca

pelo que se passa por trás daquele olhar. O olhar perdido do retratado em questão

levou o funcionário a desdobrar sua história e a atribuir o motivo desse olhar à sua

morte.

Porém, se todos os retratos nos olham, o olhar de um retrato de alguém que

já morreu parece mais profundo. Parece significar mais. Como se o retrato pudesse

quase nos falar, nos dizer tudo que o morto não mais poderá falar. No retrato o

olhar parece aprisionado na tela, tudo quer dizer, mas nada pode dizer, o retratado

parece querer se comunicar pelo olhar, espera ser compreendido em silêncio.

Como já foi pontuado, a imagem funda-se em uma ausência. E podemos dizer

que a ausência maior é a morte. A morte exemplifica de forma contundente o fato de

que a ausência sempre decorre de uma presença. É preciso que algo tenha

realmente existido para que possamos sentir sua falta.

Muitas vezes familiares ou amigos encomendam retratos de pessoas que já

faleceram (FIG. 02). Eles querem fixar essa lembrança, possuí-la através de um

quadro, um desenho, permitindo àquele que não está mais neste mundo, nele

permanecer. Seria uma vontade de eternizar a pessoa? De prorrogar sua existência,

de tê-la de novo? Pois, de acordo com Blanchot, a imagem seria “[...] a coisa

presente em sua ausência, apreensível porque inapreensível, aparecendo na

qualidade de desaparecida, o retorno do que não volta [...]”.34 Talvez seja este

retorno do que não volta o motivo que faz as pessoas encomendarem um retrato de

alguém que já morreu.

34

BLANCHOT, 1987, p. 257

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A relação do retrato com a morte está presente desde a antiguidade. Régis

Debray, em seu livro Vida e Morte da Imagem35, lembra-nos que a morte está ligada

ao nascimento da imagem: as sepulturas, sarcófagos, urnas funerárias foram nossos

primeiros museus, e os defuntos nossos primeiros colecionadores, já que com eles

eram sepultados vários objetos para prestar serviço na vida após a morte. A arte

nasce, portanto, funerária. “O nascimento da imagem está envolvido com a morte.

Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a

vida”.36 Segundo o autor, a imagem primitiva utilizava o osso, o chifre, peles de

animais, ou seja, materiais que eram obtidos pela morte. O cadáver foi matéria prima

do nosso primeiro objeto de arte, que foi a múmia do Egito, “cadáver feito obra”.37

Nossas primeiras telas foram mortalhas e nossos primeiros conservadores foram os

embalsamadores. Logo, a morte está ligada ao nascimento da imagem, é sua

35

DEBRAY, 1994 36

DEBRAY, 1994, p. 20 37

DEBRAY, 1994, p. 28

FIGURA 02. José Maria Ribeiro. Retrato de Maria Lúcia. Acrílica sobre tela, 2011. Fonte: Acervo do artista

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propulsora. “A invenção da efígie, essa contrametamorfose do informe à forma e do

flexível ao rígido, preserva os interesses vitais da espécie”.38

A ligação da morte especificamente com os retratos, com a imagem do morto,

faz parte das religiões fundadas sobre o culto dos antepassados, que exigiam que

eles sobrevivessem através da imagem. Um molde em cera do rosto do morto era

transportado no funeral e mantido a salvo depois. Na cultura grega, mesmo sendo

uma cultura vitalícia, apaixonada pela vida e pela visão (para o grego viver é ver, e

morrer é perder a vista) o óbito também governava39:

Ídolo vem de eídolon que significa fantasma dos mortos, espectro, e somente em seguida, imagem, retrato. O eídolon arcaico designa a alma do morto que sai do cadáver sob a forma de uma sombra imperceptível, seu duplo, cuja natureza tênue, mas ainda corporal, facilita a figuração plástica. A imagem é a sombra; ora, sombra é o nome comum do duplo.

40

Na Roma Imperial havia a tradição do funus imaginarium, que consistia na

apoteose póstuma do imperador falecido, na qual um duplo do morto (um manequim

do morto) era incinerado com grandes pompas, enquanto o corpo real era enterrado.

“É em imagem que o imperador subia da fogueira para o céu, em imagem por que

em pessoa. Queda dos corpos, ascensão dos duplos”.41

E ainda nos ritos fúnebres dos reis da França (entre a morte de Carlos VI e a

de Henrique IV) também era feito de cera pintada, um duplo exato do morto, que era

velado por quarenta dias (já que a decomposição não permitia que o corpo real

ficasse exposto por todo esse tempo). Era esse duplo, vestido com os adornos e

portando as insígnias do poder que pertenciam ao morto, que recebia as

homenagens. Acreditava-se que a alma do morto ocupava esse manequim, tendo a

cópia, portanto, mais valor que o original. A imagem era tida “como substituto vivo do

morto”.42

Nessas tradições “a ‘verdadeira’ vida está na imagem fictícia e não no corpo

real”.43 A imagem aparece aqui com um poder surpreendente de substituição: nela, a

vida se mantinha para além da morte.

38

DEBRAY, 1994, p. 31 39

DEBRAY, 1994, p. 23 40

DEBRAY, 1994, p. 23 41

DEBRAY, 1994, p. 25 42

DEBRAY, 1994, p. 25 43

DEBRAY, 1994, p. 26

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Podemos considerar esses duplos dos ritos fúnebres, como as primeiras

formas de retratos, e perceber então que o retrato nasceu com a morte, com a

necessidade de prorrogar a existência das pessoas: “[...] um prolongamento

sublimado, mas ainda físico, de sua carne”. Pela imagem, “o vivo apreende o morto.

(...). Há realmente transferência de alma entre o representado e sua

representação”.44 É como se o morto fosse sua imagem, como se essa imagem (no

caso o retrato) guardasse em si tudo de mais precioso do seu referente. Quando se

morre, vira-se imagem.

Desta forma, o retrato surge da necessidade do homem de perpetuar, de

manter os mortos ainda no mundo, amenizando assim a brusca interrupção que a

morte causa.

Didi-Huberman em seu texto O evitamento do vazio: crença ou tautologia45,

analisa a reação dos homens quando diante da morte: segundo ele, uma cisão se

abre em nós ao nos depararmos com um túmulo. Este nos mostra que perdemos o

corpo que ele recolhe em seu fundo. E também nos impõe a dura constatação de

que um dia seremos semelhantes a esse morto que agora olhamos: estaremos

mortos também. Portanto, esse pavor diante da morte vem do fato de depararmos

com o desconhecido, sobre o qual não temos controle, e só sabemos ser ele o

nosso futuro.

A cisão que se abre em nós ao nos depararmos com um túmulo, com uma

morte, pode provocar dois tipos de reação, de acordo com Didi-Huberman, cada

uma delas relacionada a um tipo de mentalidade: a do homem da crença e a do

homem da tautologia46. Este último tenta ater-se ao que vê, ao túmulo em si,

acreditando que não exista nada além daquele volume que ele enxerga ali à sua

frente: “É decidir, diante de um túmulo, permanecer em seu volume enquanto tal, o

volume visível, e postular o resto como inexistente”.47

Já o homem da crença quer ir além da cisão aberta, quer ir além daquele

túmulo físico que enxerga ali. Ele quer superar aquilo que ele vê, e o faz

imaginariamente: “[...] equivale portanto a produzir um modelo fictício no qual tudo –

volume, vazio, corpo e morte – poderia se reorganizar, subsistir, continuar a viver no

44

DEBRAY, 1994, p. 26 45

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48 46

Cf. DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 37- 48 47

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 38

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interior de um grande sonho acordado”.48 Equivale a imaginar uma vida após a

morte, a pensar que a pessoa que morreu não está ali, dentro daquele túmulo, e

sim, em algum outro lugar para onde se dirigem os que já partiram (no céu, no

paraíso, ou nos lugares que a crença reserva para os que morrem). Talvez

possamos pensar que as pessoas alternam momentos de crença e de tautologia,

pois ambas, nas palavras de Didi-Huberman, tentam escapar “a essa cisão aberta

em nós pelo que nos olha no que vemos”49: a morte.

A atividade de produzir imagens, segundo o autor, tem muito a ver com esse

escape pretendido pela pessoa que perde alguém. É uma forma de afastar o morto

(através da sua imagem) do lugar real em que ele está: dentro de uma tumba, sem

vida, e mantê-lo “vivo”; e, ao mesmo tempo, é uma forma de deixar de encarar a

realidade angustiante de se estar diante da morte, e de saber que ela é o destino de

todos nós.

Um retrato de alguém que já morreu vem, portanto, cumprir essa função: fixá-

lo em vida, em uma imagem viva, para afastá-lo da morte na qual ele já está

mergulhado. “Vemos então por toda parte os corpos tentando escapar, em imagens,

evidentemente, aos volumes reais de sua inclusão física, a saber, as tumbas [...]”.50

É como se a vida perdida do morto se transferisse para a imagem, “onde o corpo

será sonhado como permanecendo belo e bem feito, cheio de substância e cheio de

vida”.51 A imagem mascara a realidade daquele corpo, desvia nosso pensamento do

seu atual estado, faz “o retrato do morto evadir-se em direção a um alhures de

beleza pura, mineral e celeste... Enquanto seu rosto real continua, este, a esvaziar-

se fisicamente”.52

Debray, ao refletir sobre imagem e morte, reafirma o mesmo ao dizer que

fazer “[...] um duplo do morto para mantê-lo vivo e, por efeito indireto, deixar de ver

esse não-sei-o-quê em si”.53 O duplo do morto é uma forma de negação da morte,

da real condição desse corpo agora, pois a imagem real e atual do morto é

angustiante para seus familiares e amigos. É quase impraticável pensar essa

transformação, essa decomposição, essa violência a esse corpo até então tão

próximo. É preferível se ater a outras imagens dele, para desviar a atenção do real

48

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 40 49

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 41 50

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 42 51

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 40 52

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 43 53

DEBRAY, 1994, p. 29

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lugar onde ele se encontra agora. Nas palavras de Debray, “[...] nós opomos à

decomposição da morte a recomposição pela imagem”54, o que também pode ser

lido em Didi-Huberman quando este elucida que “desaparecer (dispersar-se como

vida) equivale a assemelhar-se (solidificar-se como imagem)”.55

Portanto, ao se pintar o retrato de uma pessoa que já faleceu, é como se

estivéssemos fixando essa pessoa viva, é como se ela não tivesse morrido. Pois,

como ainda afirma Debray: “A imagem é o que é vivo de boa qualidade, vitaminado,

inoxidável. Enfim, fiável”.56 Ela nos dá uma certa segurança, pois ter um retrato de

alguém que já morreu nos faz lembrar da vida que ele teve, é como se nos desse

uma garantia de que aquela vida realmente existiu.

Ao mesmo tempo, um retrato de alguém que ainda é vivo também se

relaciona com a morte, pois, mesmo que ele esteja vivo no momento da realização

do quadro, irá morrer dentro de algum tempo, e provavelmente, o retrato sobreviverá

a ele, e todas essas questões do retrato do morto passarão a fazer parte daquela

imagem (FIG. 03).

54

DEBRAY, 1994, p. 30 55

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 40 56

DEBRAY, 1994, p. 26

FIGURA 03. José Maria Ribeiro. Retrato de Sr. Inhô. Óleo sobre tela, 1984. Fonte: Acervo do artista

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Um retrato está sempre relacionado com uma ausência: o retratado não está

realmente presente na pintura. Essa ausência pode ser devido à morte, ou mesmo

um distanciamento, como nos mostra Nancy:

O retrato é feito para guardar a imagem na ausência da pessoa, seja essa ausência um afastamento ou a morte. Ele é a presença do ausente, uma presença in absentia que não é portanto somente encarregada da reprodução dos traços, mas de apresentar a presença enquanto ausente: de evocá-la (e mesmo de invocá-la) e também de expor, de manifestar a retirada onde se mantém esta presença. (...). É assim que o retrato imortaliza: ele torna imortal na morte”.

57

É interessante trazer ao texto a lenda de Dibutades58, considerada como a

origem da pintura, contada por Plínio o Velho em seu 35º livro das Histórias

Naturais: Dibutades sabia que seu prometido iria partir em breve para uma longa

viagem. No último encontro dos dois, a moça aproveita a sombra projetada do rosto

do rapaz na parede para marcar com um carvão sua silhueta, pois, já sabendo de

sua ausência futura, ela queria conservar algum traço de sua presença atual (FIG.

04). Sob esse olhar, o retrato nasce da necessidade de construir uma imagem de

alguém que irá se ausentar – por um afastamento ou pela morte. Esta é a lenda

sobre o nascimento da pintura, que se dá através de um retrato, já nos remetendo

para a questão da presença e da ausência, o que pode ser confirmado por Philippe

Dubois ao dizer que a “imagem pretende ultrapassar seu referente, eternizá-lo,

congelá-lo na representação, portanto substituir, como traço detido, sua ausência

inelutável”.59 E essa ausência, como nas palavras de Nancy, tanto pode ser devido a

um afastamento quanto devido à morte.

57

NANCY, 2000, p. 53-54. “Le portrait est fait pour garder l’image en l’absence de la personne, que cette absence soit un éloignement ou la mort. Il est la présence de l’absent, une présence in absentia qui n’est donc pas seulement chargée de la reproduction des traits, mais de présenter la présence en tant qu’absente: de l’évoquer (voire de l’invoquer), et aussi d’exposer, de manifester le retrait où se tient cette présence. [...] C’est ainsi que le portrait immortalise: il rend immortel dans la mort”. 58

Encontram-se referências sobre essa lenda em DEBRAY, 1994, p. 38, DUBOIS, 2008, p.117-122, e AZARA,2002, p.53, com algumas diferenças entre elas: em Debray e em Dubois a moça é filha de um oleiro de Sícion, em Dubois ela é chamada de Dibutades, e em Azara ela é filha do rei de Corinto, Boutades. 59

DUBOIS, 2008, p. 121

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De acordo com Nancy, mais do que imortalizar uma pessoa, o retrato vai

apresentar a morte (imortal) nela. Ao pretender “revivificar” o modelo, o retrato está

na verdade apontando para sua morte, pois esta lhe é inerente. Contudo, ele está

ligado à morte em um sentido mais geral, e não apenas no sentido específico da

morte do retratado. Desta forma, o retratado está então imortalizado na morte. Para

esclarecer um pouco mais, Nancy assinala a diferença entre um retrato e uma

máscara mortuária: “A máscara toma a impressão do morto (obra tirada da morte), o

retrato coloca a própria morte na obra: a morte na obra em plena vida, em plena face

e em pleno olhar”.60

Nancy esclarece-nos ainda que os retratos expressamente ligados à morte

(os que trazem como elemento um crânio, por exemplo) não são muito numerosos, e

ele relaciona isso ao fato de que a morte já está presente em todos os retratos, já

faz parte deles, não necessitando de mais uma representação literal no quadro. “Na

60

NANCY, 2000, p. 54. “Le masque prend l’empreinte du mort (l’ouvrage frappé de la mort), le portrait met la mort elle-même à l’oeuvre: la mort à l’oeuvre en pleine vie, en pleine figure et en plein regard.”

FIGURA 04. David Allan. A origem da pintura, 1745. Fonte: DUBOIS, 2008, p. 119 e 359

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maior parte do tempo, tudo se passa de preferência como se a morte (a ausência

infinita) não tivesse que ser um tema do retrato, visto que ela já é a presença ou a

substância (a subjetividade) dele”.61

O retrato de Camille Monet em seu leito de morte (FIG. 05), pintado por

Claude Monet, é um exemplo de retrato que tem a morte como tema: o artista pintou

sua mulher morta. Talvez tenha sido a forma que ele encontrou de lidar com a morte

da esposa, pois, como já foi assinalado, Didi-Huberman relaciona a atividade de

produzir imagens com um escape pretendido pela pessoa que está em contato com

a cisão que a morte provoca. Mas, o que quero assinalar aqui é o fato de ele ter

pintado a esposa morta. A maioria dos retratos quer fixar uma imagem da pessoa

viva, como forma de ludibriar a morte, e não é o caso desta obra de Monet. Se todo

retrato já traz em si a morte inerente, neste especificamente ela é duplicada. Monet

imortaliza sua esposa na morte.

61

NANCY, 2000, p. 55 (Em rodapé no 2). “La plupart du temps, tout se passe plutôt comme si la mort

(l’absence infinie) n’avait pas à être un thème du portrait, puisqu’elle en est déjà la présence ou la substance (la subjectité).”

FIGURA 05. Claude Monet. Camille Monet no seu leito de morte. Óleo sobre tela, 1879. Fonte: HEINRICH, 1995, p. 46

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De acordo com a reflexão de Nancy de que o retrato está ligado à morte em

geral, concluímos que mesmo o retrato de alguém que ainda é vivo vai sempre

remeter à morte. O retrato de um jovem aos vinte anos o mata naqueles vinte anos.

Ele com vinte anos não existe mais. Ao mesmo tempo podemos pensar que ele foi

imortalizado aos vinte anos, e nesse sentido, ele continua a existir para sempre com

seus vinte anos. Deparamo-nos assim com mais um paradoxo do retrato: ao mesmo

tempo em que ele “mata” alguém que está vivo, ele também “revive” alguém que

está morto – e nos dois casos estamos lidando com a morte inerente ao retrato, que

ora se desdobra para a frente (morte) e ora se desdobra para trás (vida).

Retomando as formulações teóricas de Blanchot sobre a ambiguidade da

imagem, que a princípio nos evoca a presença do objeto (nesse caso a pessoa

retratada), mas que também nos traz a sua ausência (a pessoa não está ali, apenas

sua imagem), constatamos que essa “vida” que se pretende dar a um retrato de

alguém que já morreu é ilusória. No entanto, mesmo que esse retrato reafirme a

ausência da pessoa, ele de alguma forma, em algum momento, vai confortar os que

aqui ainda estão, trazendo-a de volta, ainda que ilusoriamente. Esta é uma das

funções da imagem, como nos mostra Blanchot:

Assim, a imagem preenche uma da suas funções, que é a de apaziguar, de humanizar o informe não-ser que impele em nossa direção o resíduo ineliminável do ser. Ela limpa-o, torna-o conveniente, amável e puro, e permite-nos crer, no âmago de um sonho feliz que a arte autoriza com demasiada frequência, que à margem do real e imediatamente atrás dele encontramos, como uma pura felicidade e uma soberba satisfação, a eternidade transparente do irreal.

62

A imagem conforta. É nesta eternidade transparente do irreal que se apega

quem está buscando, através de uma imagem, o que se perdeu. Ter um retrato de

alguém que já morreu, servir-se de sua imagem, ou de imagens da vida após a

morte, são parte do processo de luto, são formas de atenuar a crua dor de se

deparar com a morte. Isto pode ser confirmado em Didi-Huberman, quando este nos

fala sobre o homem da crença:

O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens

62

BLANCHOT, 1987, p. 256

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corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos.

63

Nessa perspectiva, ter um retrato de alguém que já morreu, é uma forma de

lidar com essa morte. Através da minha experiência como retratista, sei que é bem

comum esse tipo de encomenda: filhos, esposos, irmãos ou pais, pedem um retrato

do familiar que já se foi (FIG. 06). Esse retrato é geralmente colocado na casa, em

um lugar de destaque. Ao mesmo tempo em que, como já foi dito, esse retrato traz

um conforto ao parecer deixar o retratado mais próximo, ele também vai de certa

forma, contribuir para que os que aqui ficaram consigam lidar melhor com essa

morte. Ao ver o retrato com frequência, a presença/ausência que ele carrega é mais

assimilada, mais digerida, a morte é encarada de frente, e não escondida e fechada

em um quarto, como muitas vezes é feito com os pertences do morto. A perda passa

a ser encarada com mais naturalidade, pois ela está ali, materializada naquele

quadro, dia após dia, e torna-se algo normal daquele cotidiano. De acordo com

Debray, “o trabalho do luto passa, assim, pela confecção de uma imagem do outro

valendo como liberação”.64 Através de imagens, tenta-se superar a perda.

63

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 48 64

DEBRAY, 1994, p. 30

FIGURA 06. Iara Ribeiro. Retrato de Edilson. Acrílica sobre tela, 2008. Fonte: Acervo da artista

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E também o retrato localiza o morto. Devolve a ele um lugar naquela casa,

que ele não frequenta mais. Ali falta alguém que antes preenchia o espaço com sua

presença real, com seu corpo físico. Agora não há mais ninguém.

A morte, nas palavras de Blanchot, “suspende a relação com o lugar, se bem

que a morte nele se apoie pesadamente como na única base que lhe resta”.65 Um

morto, um cadáver que vemos diante de nós não está no seu lugar. Na verdade, ele

está aqui na nossa frente, mas ele está em outro lugar, que não sabemos qual. “A

presença cadavérica estabelece uma relação entre aqui e parte nenhuma”.66 O

morto já não é desse mundo, no entanto resta aqui ainda um despojo como que um

elo de ligação com a possibilidade de um outro mundo, um outro lugar inacessível e

desconhecido. Ele está aqui, mas ele não é o mesmo que em vida. Depois que o

morto é enterrado, essa sua relação com o lugar continua incerta para nós que aqui

ficamos. Sabemos localizar onde seu corpo está enterrado, no entanto aquele corpo

inerte não é mais ele, não é o vivo em si, aquele de quem sentimos a falta. E, em

breve, nem mesmo aquele corpo estará ali. “O lugar que ocupa é preparado por ele,

deteriora-se com ele e, nessa dissolução, ataca, mesmo para nós que ficamos, a

possibilidade de permanência”.67 Continuamos sem saber onde ele está. Para onde

foi? Temos a necessidade de localizar tudo. E a morte rompe com essa localização.

Já que não podemos localizar a pessoa que morreu, já que essa nossa

necessidade não será suprida realmente, procuramos localizar sua imagem.

Encontrar um lugar para a imagem do morto, para um retrato seu, é deixá-lo

novamente em algum lugar reconhecido, é dar de novo a ele essa relação humana

com o lugar, essa relação que ele tinha enquanto vivo. É uma forma de fazê-lo

permanecer. Colocar seu retrato na parede, o fixar ali, naquele espaço próximo a

nós, estabelecer de novo com ele uma relação de lugar própria dos vivos é devolver-

lhe um espaço em meio aos vivos. Se uma pessoa falta, e não há como tê-la de

volta, coloca-se em seu lugar uma imagem, seu retrato, como que para preencher

sua falta, materializar sua perda: “como se a imagem estivesse aí para preencher

uma carência, aliviar um desgosto”.68 Um retrato de alguém que não está mais

presente, o tira de seu não-lugar. A ausência daquela pessoa que morreu nunca

65

BLANCHOT,1987, p. 258 66

BLANCHOT,1987, p. 258 67

BLANCHOT,1987, p. 261 68

DEBRAY,1994, p. 38

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poderá se tornar presença de novo, a não ser enquanto imagem – um desenho, uma

pintura, uma foto.

As pessoas que perdem alguém passam a ter um carinho especial pelos

retratos e fotografias do morto: é para o que dirigem seus cuidados e seu afeto a

partir de então. Por vezes elas até conversam com essas fotos e retratos. É a forma

que encontram para suprirem essa necessidade, terem algo que substitua o

interlocutor, com quem o diálogo foi abruptamente interrompido para todo o sempre.

Como nos esclarece Debray, esse é o resquício mágico da imagem, a qual desde os

nossos antepassados serviu como uma mediadora entre o mundo visível e o

invisível, entre o aquém e o além69.

Nas palavras de Maurice Blanchot, “permanecer não é acessível àquele que

morre”.70 E fixar a imagem em um retrato é talvez uma tentativa dessa permanência.

Mesmo que o que permaneça seja só a imagem, a ambiguidade que ela carrega vai

permanecer também, trazendo-nos ao mesmo tempo a presença e a ausência do

retratado.

Quando uma pessoa encomenda seu próprio retrato, podemos talvez pensar

que, embora inconscientemente, ela está buscando essa permanência. Em imagem,

ela irá permanecer para além da morte. Não será esquecida (o esquecimento é uma

forma de morte), de alguma maneira estará aqui, marcando sua presença (ainda que

a presença de sua ausência). De acordo com Debray, a transposição em imagem

“[...] é o melhor que acontece ao homem do Ocidente porque sua imagem é sua

melhor parte: seu ego imunizado, colocado em lugar seguro”.71 A imagem, nossa

própria imagem, nos dá segurança, pois ela resiste - e nós não resistimos: “[...]

Somente aquele que passa, e sabe disso, quer permanecer”.72 É por saber da

fugacidade da vida que queremos salvaguardar nossa imagem. É claro que não há

certeza de que uma pintura, uma escultura, vá durar para sempre: “Nenhuma

técnica de representação do mundo é imortal. Somente o é a necessidade de

imortalizar o instável, estabilizando-o”.73 Mas é quase certo que elas vão sobreviver

a nós, lembrando e prolongando nossa existência, ainda que em imagem.

69

Ler mais a esse respeito em DEBRAY, 1994, p. 32-35. 70

BLANCHOT, 1987, p. 258 71

DEBRAY, 1994, p. 26 72

DEBRAY, 1994, p. 28 73

DEBRAY, 1994, p. 40

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32

Porém, ao desejar essa sobrevivência através de uma imagem, seja ela uma

fotografia ou uma pintura, a pessoa está ao mesmo tempo se deparando com a

morte, a morte daquele momento, como nos mostra Roland Barthes, em seu livro A

Câmara Clara74, ao falar sobre a fotografia: “No fundo, o que encaro na foto que

tiram de mim [...] é a Morte”.75 Assim é também com um retrato pintado, ele

estabelece uma relação com a vida e com a morte simultaneamente.

Para fazer retratos de pessoas que já morreram, baseio-me em fotografias

que os familiares guardam do morto. Barthes chama a fotografia de “[...] imagem que

produz a Morte ao querer conservar a vida”.76 Seu objetivo é fixar um momento, uma

pessoa. Mas na verdade a fotografia nos diz que aquele momento não existe mais,

aquela pessoa ou já morreu, ou ainda vai morrer. Mesmo em uma foto cujo modelo

ainda se encontre vivo, radiante, saudável, estamos vendo “[...] um futuro anterior

cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose [...], a fotografia me

diz a morte no futuro”.77

Barthes também está lidando com a ambiguidade da imagem revelada pela

fotografia, ao dizer que ela leva a crer que o objeto está vivo (pois ele foi real, a

fotografia atesta que ele um dia existiu), ao mesmo tempo em que sugere que ele já

está morto (pois já é passado, aquele momento não existe mais), ou seja, ela nos

remete simultaneamente à vida e à morte, à presença e à ausência do objeto

fotografado:

“[...] ao atestar que o objeto foi real, ela [a fotografia] induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar esse real para o passado (“isso foi”), ela sugere que ele já está

morto”.78

Estas questões da presença e ausência se encontram, portanto, também na

fotografia, como observado por Philippe Dubois, em seu livro O ato fotográfico79:

74

BARTHES, 1984 75

BARTHES, 1984, p. 29 76

BARTHES, 1984, p. 138 77

BARTHES, 1984, p. 142 78

BARTHES, 1984, p. 118 79

DUBOIS, 2008

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Ver, ver, ver – algo que necessariamente esteve ali (um dia, em algum lugar), que está tanto mais presente imaginariamente quanto se sabe que atualmente desapareceu de fato – e jamais poder tocar, pegar, abraçar, manipular essa própria coisa, definitivamente desvanecida, substituída para sempre por algo metonímico, um simples traço de papel que faz as vezes de única lembrança palpável”.

80

Quando o retrato é pintado a partir de uma foto, essas questões de presença

e ausência são duplicadas, as questões que concernem à fotografia se somam às

do retrato. Também o retrato pintado carrega esse jogo entre o tempo da pose, que

existiu, e o tempo atual, que implica que aquela pessoa retratada pode não mais

estar no mundo.

Não é mais possível fotografar alguém que já morreu, pois o referente não

existe mais. Mas é possível ter novos retratos pintados dessa pessoa, feitos a partir

de fotografias de quando era viva. Esse pode ser um dos motivos pelos quais as

pessoas querem retratar alguém que já morreu: é uma forma – talvez a única – de

fazer surgir uma nova imagem daquela pessoa.

Quando recebo uma encomenda para retratar alguém que já morreu, sei que

tenho de ser cuidadosa com esse retrato. Pois sei que, na verdade, o que aqueles

familiares querem restituir através desse retrato não se tem como conseguir: eles

querem o retorno do que não volta. Logo, o trabalho do pintor, tomando

emprestadas as palavras de Nancy, deve “[...] tornar intensa a presença de uma

ausência enquanto ausência”.81

Na verdade, como nos lembra Nancy: “Os mortos estão mortos, mas

enquanto mortos eles não cessam de nos acompanhar, e nós não deixamos de

partir com eles”.82 Continuamos ligados aos mortos, e é o que nos faz querer ter

suas imagens, retratos pintados ou fotografias, para que, de uma forma ou de outra,

eles continuem perto de nós, nem que seja através de uma proximidade dada pela

distância, pela falta. Portanto, um retrato (e também fotos, filmagens) de uma

pessoa, atinge outro estatuto quando esta morre, pois passa a ser seu único vestígio

no mundo, uma espécie de mediação entre o mundo dos mortos e dos vivos.

A morte exige uma mediação para tornar-se mais aceitável, o além exige a

mediação de um aquém: “A imagem – primeiramente esculpida; em seguida pintada

80

DUBOIS, 2008, p. 313 81

NANCY, 2003b, p. 84. “[...] rendre intense la présence d’une absence en tant qu’absence.” 82

NANCY, 2003b: p. 64. “Les morts sont morts, mais en tant que morts ils ne cessent de nous accompagner, et nous ne cessons pas de partir avec eux.”

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– é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos [...]”.83 Essa

mediação é feita através das imagens, e o retrato, nesse sentido, é um grande

mediador.

Sobre essa mediação, torna-se importante abordar uma passagem do livro

Noli me Tangere: Essai sur la levée du corps84, de Jean-Luc Nancy, em que o autor

elucida-nos, através do Evangelho de São João85, esse outro estatuto que a

imagem adquire com a morte. Neste ensaio, Nancy nos fala da presença/ausência

como uma intriga da imagem. Jesus aparece ressuscitado diante de seu túmulo

vazio para Maria Madalena. Ela, a princípio, não o reconhece, e pensa ser o

jardineiro. Era ele, mas ao mesmo tempo não era ele, já que ele estava morto. Sob

esse olhar, Blanchot, assinala que, ao estar diante de um morto (e no caso

específico do ensaio de Nancy, diante de um ressuscitado), nosso luto e nossos

cuidados não mais reconhecem o que visam, e fazem a presença cadavérica ser a

do desconhecido.86 Jesus ressuscitado era um desconhecido para Maria Madalena.

Ela o conhecia vivo, aquele que estava ali à sua frente ela nunca havia encontrado

antes.

Quem (ou o que) era aquele então que aparece no sepulcro? Jesus, mas não

mais ele mesmo. Seu espírito? Não um espírito, como nos mostra Nancy no

fragmento a seguir:

[...] só um corpo pode tocar ou não tocar. Um espírito não pode nada disso. Um “puro espírito” dá somente o índice formal e vazio de uma presença inteiramente fechada em si. Um corpo abre essa presença, ele a apresenta, ele a coloca fora de si, ele a distancia dela mesma[ ...].

87

Talvez não importe saber realmente quem ou o que apareceu para Maria

Madalena no sepulcro. O importante é saber que essa aparição apresentava a

ausência de Cristo, a presença de sua ausência. Nesse sentido, Blanchot contribui

83

DEBRAY, 1994, p. 33 84

NANCY, 2003b 85

Jo 20, 13-18 86

BLANCHOT, 1987, p. 259 87

NANCY, 2003b, p.79. “[...] seul un corps peut être abattu ou levé, parce que seul un corps peut toucher ou ne pas toucher. Un esprit ne peut rien de tel. Un ‘pur esprit’ donne seulement l’index formel et vide d’une présence entièrement close sur soi. Un corps ouvre cette présence, il la présente, il la met hors de soi, il l’écarte d’elle même [...].”

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para um melhor entendimento desta cena bíblica analisada por Nancy ao falar sobre

a aparição:

O que se chama aparição é isso mesmo: é o “tudo desapareceu” que se torna, por sua vez, aparência. E a aparição diz precisamente que, quando tudo desapareceu, ainda existe alguma coisa: quando tudo falta, a falta faz aparecer a essência do ser que é de ser ainda onde falta, de ser enquanto dissimulado [...].

88

Quando algo desaparece, a ausência deste algo torna-se presente de forma

tão intensa, tão sentida, que é como se fosse concreta, como se ela aparecesse.

Tomando emprestadas as palavras de Blanchot, é uma “[...] ausência que se vê

porque ofuscante”.89

O retrato daquele que não está mais entre os vivos é feito a partir de sua falta,

vem ficar no lugar dessa falta, como uma aparição, como se estivesse concretizando

essa ausência, transpondo-a para a tela. Ao morrer, a ausência do morto passa a

existir para sempre, ela “aparece”.

Ao perceber que era Jesus quem estava lá, Maria Madalena estende o braço

em sua direção, e ele a adverte de não o tocar, não o deter, porque ele já está em

partida, ele parte em direção ao Pai (FIGS. 07 e 08). “Tocá-lo, retê-lo, seria aderir à

presença imediata, assim como seria crer no toque (crer na presença do presente),

seria perder a partida segundo a qual o toque e a presença vêm a nós”.90 Em uma

imagem não se toca. Mesmo se for tocado, Jesus não vai ser apreendido; ele é só

uma imagem, que implica sua perda.

A mesma intriga da imagem é também encontrada no episódio de Emaús91,

no qual Cristo ressuscitado caminha e conversa com dois discípulos sem ser

reconhecido, e somente quando estão à mesa para jantar, e Jesus reparte o pão, é

que eles o reconhecem. E no momento em que é reconhecido, ele desaparece.

Podemos interpretar que, assim que o reconheceram, e quiseram apreendê-lo como

se fosse o real, ele desaparece, pois, a imagem não é para ser apreendida, não

88

BLANCHOT, 1987, p. 255 89

BLANCHOT, 1987, p. 24 90

NANCY, 2003b, p. 29. “Le toucher, le retenir, ce serait adhérer à la présence immédiate, et de même que ce serait croire au toucher (croire à la présence du présent), ce serait manquer la partance selon laquelle la touche et la présence viennent à nous.” 91

Lc 24, 13-35

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pode sê-lo. Se ela o for, perde seu estatuto enquanto imagem, e desaparece, é

como se não existisse.

Podemos ainda convocar o mito de Orfeu, por trazer-nos questões

relacionadas à presença, ausência, morte e desaparecimento. Após a morte de

FIGURA 07. Rembrandt. Noli me Tangere. Óleo sobre tela, 1651. Fonte: www.pubhist.com

FIGURA 08. Paulo Veronese. Noli me tangere. Óleo sobre tela, cerca de 1570. Fonte: www.wikipedia.org

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Eurídice, Orfeu desce ao mundo dos mortos para buscá-la, e consegue a permissão

de trazê-la de novo à vida com a condição de não olhá-la durante a travessia entre

os dois mundos (FIG. 09). Já quase no final do trajeto ele não resiste e volta o olhar

para ela, que no mesmo instante desaparece. Olhar para Eurídice era uma tentativa

de apreendê-la, e ela não era para ser apreendida. Sua presença dependia de não

ser vista, dependia de sua “invisibilidade” que é também uma forma de ausência. Ela

está morta. Agora Orfeu só dispõe dela em imagem, aquela imagem onírica, que

não pode ser fixada, uma imagem que não volta à vida real que tinha antes, por

mais que se deseje isso. E, como nos sonhos em que acordamos no momento em

que vamos realizar algo que queremos, Orfeu a perde quando a olha, quando, ao

olhá-la, deseja tê-la de novo, da forma como era antes, e ela escapa.

Nesse sentido, a leitura de Blanchot do mito de Orfeu é pertinente para se

pensar na questão da imagem e da morte, na medida em que Orfeu não quer

Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo cotidiano, ele a quer:

FIGURA 09. Jean-Baptiste Camille Corot. Orfeu guiando Eurídice no mundo dos mortos. Óleo sobre tela, 1861. Fonte: www.ibiblio.org

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[...] em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, [...] quer vê-la, não quando ela está visível mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida familiar mas como a estranheza do que exclui toda a intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua morte.

92

Segundo Blanchot, o mundo julga Orfeu por sua impaciência, mas na leitura

do autor, Orfeu na verdade queria Eurídice em imagem, inalcançável, para continuar

a cantar por ela. Eurídice está morta, e Orfeu sabe que não é mais possível tê-la de

novo.

Associo esse desejo de Orfeu por Eurídice, ao mesmo desejo de quem

encomenda o retrato de alguém que não está mais presente. Como se sabe que não

é mais possível ter a pessoa real, na vida cotidiana, procura-se por ela em sua

presença velada, na presença de sua ausência, em imagem. O que se quer na

verdade é a realidade (a presença real da pessoa), mas o que se pode ter é só o

véu (o retrato, a imagem – a ausência).

92

BLANCHOT, 1987, p. 172

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Capítulo II.

SEMELHANÇA

Dans un bon portrait, la ressemblance mobilise tous les traits pour les tirer vers l’absence – ‘dedans’ et ‘dehors’ à la fois, derrière et devant le tableau – dont la ressemblance est proprement la semblance et l’assemblage.

Jean-Luc Nancy

A expectativa quando se faz um retrato é a de que ele esteja parecido, tenha

alguma semelhança com a pessoa retratada. Esta é uma das suas condições

primeiras, como nos mostra Nancy, em seu ensaio Le Regard du Portrait, ao

destacar que a semelhança parece ser a questão do retrato, e que este pode

aparecer como o único gênero da pintura que teria uma finalidade prática bem

determinada93: “[...] a semelhança imperiosamente desejada com a singularidade

individual [...]”.94 A ligação entre semelhança e retrato sempre foi tão grande, que,

como refere o autor, no século XVI a palavra semelhança significava também

retrato, e ele cita o exemplo da expressão “semelhança feita ao vivo”.95

Como o retrato alcança essa semelhança com o modelo? A princípio, espera-

se que, se copiarmos com habilidade técnica precisa as formas do rosto e os traços

físicos do modelo, estaremos garantindo ao retrato a verossimilhança desejada.

Logo, essa semelhança dependeria em grande parte da capacidade técnica do

pintor. Mas, isso seria suficiente para o retrato configurar-se semelhante à origem?

É somente a correspondência física que importa, ou seria necessário um algo a

mais?

Para estudar estas questões, recorro mais uma vez à análise de Nancy sobre

a cena Bíblica Noli me Tangere, na qual ele destaca, para além da ambiguidade da

imagem quanto à presença/ausência, também o paradoxo da imagem quanto à

semelhança. Para acompanhar o pensamento de Nancy, cito aqui o fragmento do

93

Esta finalidade levou o retrato a enfrentar julgamentos em relação ao seu valor artístico. Cf. NANCY, 2000, p. 38. Encontramos referência a esse assunto também em AZARA, 2002, p. 20-21, onde o autor aponta que até o século XIX o retrato era considerado um gênero menor, pois era praticado por motivos extra-artísticos, já que os retratistas estavam a serviço da realeza e da Igreja, e deviam reproduzir fielmente os traços do modelo, não podendo deixar solta sua capacidade criativa. 94

NANCY, 2000, p. 38. “[...] la ressemblance impérieusement desirée avec la singularité individuelle [...].” 95

NANCY, 2000, p. 49. “Ressemblance faite sur le vif”.

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Evangelho de São João que narra o momento em que Jesus aparece ressuscitado

para Maria Madalena:

Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo,

e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés.

Então eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.

Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus.

Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.

Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Rabôni (que quer dizer Mestre).

Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.

Então saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe dissera estas cousas.

96

O que interessa a Nancy nesta cena é o fato de Maria Madalena não

reconhecer Jesus de imediato. Ela o confunde com o jardineiro (FIGS. 10 e 11). Por

que ela não o reconhece? Ele estaria diferente? Alguma mudança no seu

semblante, algo que justificasse o engano de Maria Madalena? Nancy propõe duas

hipóteses: uma na qual Maria Madalena, sabendo que Jesus estava morto, não mais

esperava vê-lo vivo, “[...] nem sequer dispunha desta ‘pré-visão’ ou desse conceito

anterior à imagem que permite ou que impõe a identificação”. E a outra hipótese

seria a de que Jesus não estava inicialmente reconhecível, “sendo ao mesmo tempo

e de fato ele próprio”.97

De acordo com a primeira hipótese, percebo que a semelhança não diz

respeito só ao objeto e a seu referente; diz respeito também a quem o observa, a

quem está diante dele. Por mais que fosse Jesus quem estivesse lá, Maria

Madalena não o reconheceu, pois ela não estava mais preparada para encontrá-lo,

96

Jo 20, 11-18 97

NANCY, 2003b, p. 47. “[...] elle ne dispose même pas de cette “pré-vision” ou de ce schème d’avant l’image qui permet ou qui impose l’idéntification; ou bien, Jésus lui-même n’est d’abord pas reconnaissable, tout en étant bel et bien lui-même.”

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para vê-lo, já que não estava mais entre os vivos. Na verdade, não podia ser ele,

este era um encontro impossível de acontecer. E como Madalena nem contava com

essa possibilidade, a aparência física não importou nesse momento. Portanto, o não

reconhecimento acontece devido a quem observa, à Maria Madalena, a uma idéia já

assimilada de que Jesus não poderia mais ser visto.

A segunda hipótese também nos leva à questão da semelhança. Como, sendo

ele próprio, ele não estava reconhecível? Algo havia mudado no seu semblante?

Uma diferença essencial ele carregava: não estava mais vivo. Por mais que a

aparência fosse a dele, ao mesmo tempo já não era mais ele. Era apenas a sua

imagem, tal como nos esclarece Blanchot, ao tomar como exemplo a imagem do

despojo98 (um corpo morto) para trabalhar a ambiguidade da imagem com relação à

semelhança e dessemelhança: “algo está diante de nós, que não é bem o vivo em

pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o mesmo que o que era em vida, nem

98

Cf. BLANCHOT, 1987, p. 257-259

FIGURA 10. Rembrandt. Cristo aparecendo para Maria Madalena. Óleo sobre tela, 1638 Fonte: www.wikipedia.org e NANCY, 2003b

FIGURA 11. Albrecht Dürer. 32ª prancha da Pequena Paixão. Xilogravura, 1509-1511. Fonte: NANCY, 2003b

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um outro, nem outra coisa”.99 A morte transforma a pessoa em um desconhecido,

em um estranho que guarda o paradoxo de ainda ser ele, mas não mais como era

em vida.

É importante destacar como as reflexões de Blanchot sobre o despojo estão

inteiramente em sintonia com as de Nancy em Noli me Tangere. Cristo, embora

ressuscitado, em seu “corpo glorioso”,100 passou pela experiência da morte, e

portanto, carrega essa estranheza inerente ao despojo, uma dessemelhança dentro

da própria semelhança:

Tudo acontece como se sua semelhança a si mesmo fosse por um momento suspensa e flutuante. Ele é o mesmo sem ser o mesmo, ele está alterado em si mesmo: não é assim que aparece um morto? Não é esta alteração ao mesmo tempo insensível e impressionante – o aparecer daquilo ou daquele que propriamente não aparece mais, o aparecer de um aparecido e desaparecido – que traz o mais propriamente e o mais violentamente a marca da morte? O mesmo que não é mais o mesmo, a dissociação do aspecto e da aparência, a ausência do rosto diretamente sobre a face, o corpo se afundando no corpo, deslizando sob ele. A partida inscrita na presença, a presença apresentando sua licença. Ele já partiu, ele não está mais lá onde ele está, ele não é mais como ele é. Ele está morto, quer dizer que ele não é aquilo nem aquele que ao mesmo tempo ele é ou ele apresenta. Ele é sua própria alteração e sua própria ausência. Ele não é nada mais do que sua própria impropriedade.

101.

Esse novo estatuto que a morte impõe coloca o morto como que em

suspensão, ele não se encaixa mais nas categorias mundanas, ele não é uma coisa

ou outra, ele carrega em si a ambiguidade que a morte lhe trouxe: ele é e ele não é

ao mesmo tempo.

A semelhança é nesse caso abalada pela morte, pois, por mais que ainda

conservasse sua imagem, ou melhor, por mais que Cristo agora fosse apenas sua

99

BLANCHOT, 1987, p. 258 100

Termo cristão usado para descrever o corpo de Cristo após a ressurreição. Segundo Nancy, “glorioso” designa “[...] a própria matéria do corpo que se torna completamente outra. Ela não é mais material, não é mais um corpo.” (NANCY, 2011, p. 35). “[...] la matière même du corps qui devient complètement autre. Elle n’est plus matérielle, ce n’est plus un corps.” 101

NANCY, 2003b, p.48-49. “Tout se passe comme si sa ressemblance à lui-même était un moment suspendue et flottante. Il est le même sans être le même, il est altéré en lui-même: n’est-ce pas ainsi qu’apparaît un mort? N’est-ce pas cette altération à la fois insensible et saisissante – l’apparaître de ce(lui) qui proprement n’apparaît plus, l’apparaître d’un apparu et disparu – qui porte le plus proprement et le plus violemment l’empreinte de la mort? Le même qui n’est plus le même, la dissociation de l’aspect et de l’apparence, l’absentement du visage à même la face, le corps s’enfonçant dans le corps, glissant sous lui. La partance inscrite sur la présence, la présence présentant son congé. Il est déjà parti, il n’est plus là où il est, il n’est plus comme il est. Il est mort, c’est-à- dire qu’il n’est pas cela ni celui qu’en même temps il est ou il présente. Il est sa propre altération et sa propre absence: il n’est proprement que son impropriété.”

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imagem, isto não foi suficiente para que Maria Madalena o reconhecesse. Ela só foi

reconhecê-lo quando ele a chamou pelo nome. O reconhecimento é realizado por

um algo a mais, que escapou à visibilidade, que foi além da aparência. Pela sua

voz? Mas ele já havia falado com ela antes, lhe perguntado por que chorava. Se

fosse só pela voz ela já o teria reconhecido. Talvez ao ouvir o seu nome: “Maria”,

nome dito por aquele que tantas outras vezes a havia chamado. Algo naquele

chamado a fez reconhecê-lo, a fez coincidir novamente a voz e a aparência naquele

que ela conhecia.

Nancy cita outro episódio bíblico, o de Emaús, em que Jesus ressuscitado

também não é reconhecido por dois discípulos que caminham ao seu lado e

conversam com ele, como podemos ler no trecho a seguir:

Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios.

E iam conversando a respeito de todas as cousas sucedidas.

Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles.

Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer.

[...]

Quando se aproximavam da aldeia onde iam, fez ele menção de passar adiante.

Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou para ficar com eles.

E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu;

então, se lhe abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.

E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?

E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles,

os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão!

Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.

102

Os discípulos só vão reconhecer Jesus através do gesto de sua mão ao

repartir o pão (FIG. 12). Sua semelhança é dada nesse caso pelo gesto, e em Noli

me Tangere pela palavra que pronuncia. A aparência física, nesses dois casos,

102

Lc 24, 13-35

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configura-se como uma “[...] semelhança que não se deixa reconhecer [...]”103, sendo

necessário algo a mais para que o reconhecimento seja efetuado.

Partindo da hipótese de que Jesus não foi reconhecido de imediato por Maria

Madalena e pelos discípulos devido ao fato de ter morrido, e que, mesmo

ressuscitado, não era mais o mesmo vivo que eles conheceram, estabeleço uma

relação com a noção de Blanchot sobre a semelhança cadavérica. Quando vemos

um corpo sem vida, por mais que possamos reconhecer a imagem daquele corpo,

não reconhecemos por completo a pessoa, já não é mais ela. Falta algo, que a

identificava como a pessoa que conhecíamos. Paradoxalmente, a pessoa que

conhecíamos em vida é aquela que vemos à nossa frente, em sua forma física. Mas

o algo que falta turva o reconhecimento e traz um estranhamento: por não ser mais

o vivo, o despojo passa então a se assemelhar a si próprio em sua imobilidade.

A si mesmo. Não será essa uma expressão defeituosa? Não se deveria dizer: àquele que era, quando tinha vida? A si mesmo é, entretanto, a fórmula correta. Si mesmo designa o ser impessoal, distanciado e inacessível, que a semelhança, para poder ser semelhança de alguém, atrai também para o dia. Sim, é realmente ele, o querido vivo, mas é, não obstante, mais do que ele, é mais belo, mais imponente, já monumental e

103

NANCY, 2003b, p. 81. “[...] ressemblance qui ne se laisse pas reconnaître [...]”.

FIGURA 12. Abraham Bloemaert. Ceia em Emaús. 1622. Fonte: www.pubhist.com

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tão absolutamente si mesmo que é como o doublé dele próprio, unido à solene impessoalidade dele pela semelhança e pela imagem.

104

Uma pessoa é a junção de sua forma física com a vida que tem, esse algo

insubstancial e inapreensível. Com a morte, a vida vai embora, e o que resta (o

corpo físico) é só a aparência, é como uma estátua, uma escultura de si mesmo,

uma máscara daquele que foi. E essa aparência passa a se assemelhar àquele que

era antes, e que hoje é impessoal e inacessível.

E se o cadáver é tão semelhante, é porque, num certo momento, é a semelhança por excelência, semelhança plena, e também nada mais é. É o semelhante, semelhante num grau absoluto, perturbador e maravilhoso. Mas a que se assemelha? A nada.

105

Para aquele que morre só resta a semelhança, ainda que aquilo a que ele se

assemelha neste caso não exista mais, por isso Blanchot diz que ele se assemelha

a nada. Talvez por isso essa semelhança nos seja estranha: vemos diante de nós

um corpo que não mais reconhecemos como quando em vida, embora ele ainda

conserve sua aparência. Para acompanhar esse complexo pensamento de Blanchot

sobre a semelhança cadavérica e ajudar na sua compreensão, trago um fragmento

de Guimarães Rosa, retirado do prefácio Aletria e Hermenêutica do livro

Tutaméia106, sobre o verdadeiro gato: “O menino explicava ao pai a morte do

bichinho: – ‘O gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato.’ ”.107 A junção foi

desfeita, a vida foi embora, só restou a aparência do gato, a semelhança por

excelência.

Um corpo sem vida só guarda, da pessoa que foi, a imagem e a semelhança,

tal como nos esclarece também Nancy: “A pessoa não está mais aqui. Seu corpo

está aqui, por algum tempo limitado, mas a pessoa não está mais aqui de forma

alguma”. 108

Quando uma pessoa morre, o referente com o qual uma imagem pode se

assemelhar não está mais presente: como se dá então a semelhança? Se olharmos

104

BLANCHOT, 1987, p. 259 105

BLANCHOT, 1987, p. 260 106

ROSA, 1985 107

ROSA, 1985, p. 13 108

NANCY, 2011, p. 33-34. “La personne n’est plus là. Son corps est là, pour un certain temps limité, mais la personne n’est plus là du tout.”

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um retrato pintado de alguém que já morreu, nosso referencial passa a ser as

lembranças, a imagem daquela pessoa que guardamos na memória, pois ela não

está mais aqui, como nos mostra Didi-Huberman: “sua semelhança vai se transmitir,

e ‘eternamente, ela está aí’ (o que quer dizer que ela não está aqui, e, portanto, que

não é inteiramente dela a aparição que ruminaremos daqui por diante)”.109

É mais difícil pintar um retrato de alguém que já morreu, no sentido de que é

mais difícil atingir uma semelhança que agrade às pessoas que o encomendaram,

pois os sentimentos, a dor da perda, a relação que se tinha com o retratado se

inserem na forma como elas se lembram dele, e já que essa forma é subjetiva, o

retratista pode não ter essa mesma percepção. E como o referente não existe mais,

torna-se uma imagem que não tem com o que se assemelhar, que não tem mais

uma base de comparação, a não ser essa lembrança afetada por sentimentos

guardada pelos que ainda estão no mundo. O rosto pintado na tela torna-se como “o

rosto de ninguém, um meio de semelhança sem ninguém a quem se assemelhar

definitivamente.110

Quando a pessoa morre, são as fotos, os vídeos e os retratos (pintados,

desenhados, esculpidos) que passam a ser considerados como referentes, ou

melhor, os substitutos do referente, mas é importante ressaltar que são essas

imagens (fotos, vídeos, retratos) que não tem mais referente, e portanto, não tem

mais a que se assemelhar:

O exemplo do despojo trazido por Blanchot permite-nos afirmar que a

aparência física não é o grande referente a se levar em conta quando se especula

sobre a semelhança, como foi visto também através da análise de Nancy tanto na

cena Noli me tangere quanto no episódio de Emaús. Portanto, o físico é apenas um

dos dados a se levar em conta. Existe um algo a mais que vai fazer a imagem

assemelhar-se ou não com o objeto referente. No caso dos retratos, algo talvez no

olhar, talvez num gesto, algo que dependa da experiência pessoal do observador

frente ao objeto retratado. Algo que está além da aparência formal: “A semelhança

fiel consiste em mostrar outra coisa além da correspondência dos traços”.111 O

retrato deve mostrar uma pessoa, ao invés de só os traços de um modelo.

109

DIDI-HUBERMAN, 2011, p.39 110

DIDI-HUBERMAN, 2011, p.32 111

NANCY, 2000, p. 43. “La ressemblance fidèle consiste bien à montrer autre chose que la correspondence des traits”.

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Para discutir sobre a semelhança nos retratos, Nancy analisa o Autorretrato

de Johannes Gumpp (FIG. 13), no qual o pintor aparece de costas, pintando seu

retrato através de um espelho. Vemos o seu rosto refletido no espelho e pintado no

quadro. De acordo com o autor, o quadro é consagrado mais ao pintar, do que ao

pintor que se pinta, e a pintura é que é o tema do quadro, “ela é, muito

ostensivamente, o tema de sua semelhança”.112

No quadro há duas representações do rosto do pintor: a do espelho e a do

quadro. Temos duas vezes a semelhança, e duas semelhanças distintas. “O quadro

mostra a dessemelhança das semelhanças”.113

112

NANCY, 2000, p. 41. “Elle est, très ostensiblement,le sujet de sa ressemblance.” 113

NANCY, 2000, p. 41. “Le tableau montre la dissemblance des ressemblances.”

FIGURA 13. Johannes Gummp. Autorretrato. Óleo sobre tela, 1646. Fonte: CINQ CENTS, 2000, p.164 e NANCY, 2003b

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Nancy questiona então, onde se configura a verdadeira semelhança: no

espelho ou no retrato? Para o autor, o próprio quadro nos fornece a resposta através

dos dois animais domésticos que aparecem na cena: o cachorro abaixo do retrato

está no primeiro plano e simboliza a fidelidade, enquanto que o gato sob o espelho

apresenta-se um pouco mais atrás e indica uma fidelidade menos clara. Em outro

detalhe podemos ver o nome Johannes Gumpp escrito em um papel sobre o retrato,

como se estivesse indicando onde ele se encontra realmente. Logo, tudo colabora

para mostrar o retrato como sendo o portador de uma semelhança mais genuína, em

detrimento da imagem refletida no espelho. O autor demonstra-nos que a

semelhança formalmente exata, que o reflexo do espelho fornece apesar da

inversão de lados, não é a mesma semelhança fornecida pelo retrato pintado, que

vai além da reprodução fiel das formas: “O reflexo (ou o duplo) só acontece in

praesentia, o retrato está in absentia: ele é por essência e em todo sentido exposto à

ausência”.114

Para um reflexo no espelho, o objeto refletido tem que estar presente. Assim

que ele se ausenta, o reflexo também se perde. Já para o retrato, não: ele se

configura justamente na ausência do retratado, ele precisa dessa ausência para se

constituir, e é nessa ausência que ele sobrevive.

Nancy assinala ainda a diferença instaurada pelos dois olhares presentes no

quadro (FIG. 14). A imagem do espelho olha para o pintor, e a do quadro olha de

lado, olha para quem olha a tela (e consequentemente olha – olhou – para o pintor

enquanto pintava verdadeiramente o quadro). O olhar da imagem refletida no

espelho é um olhar técnico, preocupado em se observar para reproduzir suas

formas, enquanto que o olhar do retrato está fora dali, ele espreita. Segundo Nancy,

esse olhar mobiliza todo o rosto a partir de alguns traços discretos, ele mostra mais

uma pessoa do que só traços de um modelo.

Ainda sobre esse jogo de olhares representado no quadro, poderíamos supor

que ele aponta para a impossibilidade de existência de um único ponto de vista

sobre uma pessoa: esta está sempre sujeita a uma pluraridade de olhares, e cada

qual a vê de determinado ângulo, o que leva a diferentes formas de se ver a mesma

pessoa, e consequentemente a sua imagem.

114

NANCY, 2000, p. 45-46. “Le reflet (ou le double) n’a lieu qu’in praesentia, le portrait est in absentia: il est par essence et en tous sens exposé à l’absence.”

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Nancy vai apontar por fim uma outra forma de semelhança que o quadro

apresenta, que são as costas do pintor que aparece pintando, a cujo olhar só temos

acesso pelos reflexos e efeitos (espelho e retrato). Segundo o autor, é aí que reside

“[...] a semelhança em sua extrema verdade [...]”.115 A representação mais direta do

pintor é o seu vulto de costas, e é nele, na sua presença velada, na ausência do seu

rosto real, que a semelhança é mais verdadeira. As imagens que aparecem dos

seus rostos estão mediadas por um espelho e por uma tela. O seu verdadeiro rosto

não aparece, está ausente.

Esta ausência significa para nós que o quadro só é semelhante à medida em que expõe esta ausência, a qual por sua vez não é nada mais do que a condição pela qual o sujeito se relaciona consigo mesmo e assim se assemelha. “Assemelhar-se” não é nada mais do que ser si mesmo ou o mesmo que si”.

116

Neste sentido, a semelhança, no retrato de Joahnes Gummp, se relaciona

com a ausência do rosto. É preciso que o rosto realmente não esteja ali, para que

sua imagem possa ser semelhante a ele, e neste retrato encontramos justamente

essa ausência que permite a semelhança. Não vemos o nosso próprio rosto a não

ser em algum espelho, foto, ou retrato. Temos nossa própria imagem sempre

115

NANCY, 2000, p. 46. “[ ...] la ressemblance en son extrême vérité.” 116

NANCY, 2000, p. 47. “Cette absence nous signifie que le tableau n'est ressemblant que pour autant qu’il expose cette absence, laquelle à son tour n’est rien d’autre que la condition dans laquelle le sujet se rapporte à lui-même et ainsi se ressemble. ‘Se ressembler’ n’est rien d’autre qu’être soi-même ou le même que soi.”

FIGURA 14. Johannes Gummp. Autorretrato (detalhe). Óleo sobre tela, 1646. Fonte: CINQ CENTS, 2000, p.164

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mediada por um outro suporte. Nosso rosto nunca foi realmente visto por nós

mesmos. “Eu só me ‘assemelho’ em um rosto sempre ausente a mim e fora de mim,

não como um reflexo, mas como um retrato levado ao meu encontro, sempre

adiantado em relação a mim”.117

Essa ausência de rosto reforça a ausência real do retratado: ele realmente

não está no retrato, temos ali só uma imagem, e Gummp afirma essa ausência ao

representar a si mesmo de costas: no retrato, nem o retratado, nem o pintor estão

realmente presentes.

As semelhanças apontadas por Nancy no Autorretrato de Johannes Gummp

nos mostram como a semelhança pode se desdobrar em um retrato, em uma

imagem. Didi-Huberman destaca que “nunca se consegue acabar com uma

semelhança: ela envia sempre para uma outra, ao menos”.118 Segundo o autor, o

reino da imagem compreende uma remissão perpétua de semelhança a

semelhança: traços vão remeter a outros traços, fazendo da semelhança “um meio

impessoal, fluido mas opaco, espécie de intangível drapeado que envolveria todas

as coisas e não teria fim”.119

Sob esse sentido, portanto, a semelhança mais uma vez não seria um dado

exato, fechado e concluído, e sim, algo que escapa, ela se constituiria de

semelhanças que se ligam, se separam, e estabelecem entre si um movimento

interminável, como nos confirma Didi-Huberman: “A semelhança como tal, não seria,

portanto, nada mais do que seu próprio movimento interminável, de semelhança a

semelhança [...]”.120

Diante de um retrato, podemos sentir esse reenvio de semelhanças: ora é a

semelhança física que salta aos olhos, ora é uma semelhança dada por um gesto,

por uma voz, por uma lembrança, ora é uma semelhança genealógica, ora não

vemos nele semelhança nenhuma.

Cabe observar que as pessoas se modificam e envelhecem. Logo, a

fisionomia sofre alterações ao longo do tempo. Como, portanto, se assemelhar a

algo que está em constante transformação? Um retrato vai captar um aspecto do

modelo, em um dado momento de sua vida, mas com o passar do tempo ele vai se

117

NANCY, 2000, p. 48. “Je ne ‘me ressemble’ que dans un visage toujours absent à moi et au dehors de moi, non comme un reflet mais comme un portrait porté au devant de moi, toujours en avance sur moi.” 118

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31 119

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32 120

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32

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dessasemelhando da imagem real da pessoa, que estará mais velha, com traços

mais marcados, com outras feições. Ao olharmos um retrato de alguém que

conhecemos, pintado há alguns anos ou a partir de uma foto antiga, podemos sentir

um estranhamento quanto à semelhança, pois a pessoa já mudou, e portanto, não

“coincide” tanto com a imagem pintada. O retrato pode guardar alguma semelhança

com seu modelo na atualidade, porém esta é uma semelhança paradoxal, pois o seu

referente já não existe mais da forma como existiu no momento em que a imagem

foi pintada (ou, quando o retrato é pintado a partir de uma fotografia, no momento

em que a foto foi tirada). Não existe um referente absoluto, ele se transforma com o

tempo. Isso faz com que, “[...] a semelhança interminável seja uma interminável

falha, uma interminável lacuna, portanto uma interminável infelicidade”.121 Sob esse

olhar, a semelhança não é um dado exato, ela se constrói de ausências, de

resquícios, de algo que está além ou aquém da exatidão das formas físicas.

Sobre essa semelhança trazida por falhas e ausências, torna-se importante

destacar as reflexões de Barthes a respeito, ainda que seu objeto de análise esteja

circunscrito ao campo da fotografia. Porém, suas discussões são pertinentes para se

pensar também os retratos pintados, que, em sua maioria, são feitos atualmente a

partir de fotografias do modelo.

Barthes procura esse algo a mais que ultrapassa a semelhança puramente

formal, pois esta o deixa insatisfeito, decepcionado e cético, já que ela remete

apenas à identidade do sujeito, que para ele torna-se insignificante. Na verdade, o

que Barthes quer é encontrar o ser por inteiro, em essência, que escapa à fotografia

enquanto reflexo e reprodução de uma imagem. O autor chama esse algo que

escapa à reprodução técnica de uma foto de ar. Este ar não é um dado

esquemático, intelectual, como uma silhueta, nem tampouco uma simples analogia,

como a semelhança. “[...] O ar é essa coisa exorbitante que induz do corpo à alma

[...] pequena alma individual [...]”.122 Essa pequena alma individual exprime o sujeito,

e faz coincidir o retrato ao retratado. O ar é “[...] como que o suplemento intratável

da identidade [...]”.123

Interessante ressaltar que o ar é justamente o que é necessário para a

respiração, o homem depende dele para viver. Não é à toa, portanto, que Barthes

121

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 38 122

BARTHES, 1984, p. 159 123

BARTHES, 1984, p. 160

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chama de ar esse algo a mais que vai permitir a identificação do modelo em uma

foto: o que ele busca nas fotografias é justamente uma “vida”, algo que “salve” o

modelo da morte e da fixidez em que a fotografia o insere.

De acordo com Barthes, é o ar que faz o retrato permanecer, levando o autor

a se questionar sobre o que vem a ser uma foto “parecida”:

[...] ao refletir sobre isso, sou obrigado a me perguntar: quem parece com quem? A semelhança é uma conformidade, mas a quê? A uma identidade. Ora, essa identidade é imprecisa, imaginária mesmo, a ponto de eu poder continuar a falar de “semelhança”, sem jamais ter visto o modelo. [...] Vejo-os todos, posso espontaneamente dizer que são “parecidos”, já que estão conformes ao que espero deles.

124

Assim, achamos um retrato parecido quando ele está conforme o que

esperamos dele, conforme a imagem que temos da pessoa, a identidade que se

formou dessa pessoa em nós. De acordo com o autor, essa identidade é imaginária

e imprecisa, o que significa dizer que cada um constrói uma identidade para o outro

de acordo com a relação que se tem com esse outro. É a convivência e as

experiências vividas que permitem constituir o sujeito não só por suas características

próprias, mas também a partir do nosso olhar e da nossa percepção em relação a

ele.

O trabalho com retratos permite observar como as experiências reafirmam as

questões levantadas por Blanchot e Nancy quanto à idéia de semelhança que

muitas vezes traz o estranhamento do não reconhecimento. Por vezes, ao mostrar

um retrato a algumas pessoas, ou ao entregá-los àqueles que o encomendaram, a

semelhança é questionada por alguns, enquanto por outros é julgada

completamente satisfatória. Trata-se de uma mesma imagem de uma mesma

pessoa. Como então uns podem achar parecido, e outros não? O que está em jogo

na semelhança é esse algo a mais incapturável pelo olhar, designado por Barthes de

ar. E esse ar não é percebido por todos da mesma maneira, ele depende da

percepção de cada um a respeito do outro.

Barthes relata ter sido fotografado diversas vezes, e os fotógrafos “erraram”

seu ar. Ou seja, ele não se viu realmente retratado ali. As fotos não estavam

conforme o que ele esperava de sua imagem, conforme ele se via, conforme a

124

BARTHES, 1984, p. 150

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imagem que ele gostaria de dar de si mesmo. Como vimos em Nancy, nós não

vemos a nós mesmos: “[...] meu rosto invisível como me é sempre”.125 Ver uma

imagem do nosso próprio rosto causa uma estranheza, é sempre uma indagação:

como saber se um retrato nosso está parecido realmente ou não, já que nunca

vimos nosso rosto realmente? Nesse caso julgamos a semelhança conforme a

imagem que acreditamos ser a nossa, conforme a imagem que gostaríamos de dar

de nós mesmos. E também através do algo a mais, do ar, que está além da

aparência física. Essa estranheza de ver o próprio rosto retratado pode ter

contribuído para que Barthes não se reconhecesse nas fotos, mas talvez o mais

determinante tenha sido o fato de a identidade que ele construiu de si mesmo não

coincidir com a que o fotógrafo percebeu e dele captou.

No retrato pintado está implícita uma multiplicidade de olhares sobre uma

mesma pessoa, o que implica também uma multiplicidade de percepções sobre ela,

devido às diferentes formas de ver e às diferentes formas que a coisa vista se dá a

ver. O retratista pode evidenciar mais um determinado aspecto do que outro no

modelo que tem diante de si: “cada retrato meu identificará uma outra

semelhança”.126 Fica claro que a semelhança está envolvida numa rede intrincada

de percepções e na dependência de aspectos muitas vezes mutáveis. Uma mesma

pessoa pode ser retratada mais de uma vez, (por dois retratistas diferentes, ou até

por um só) e ter dois retratos completamente distintos entre si (FIGS. 15 a 18). Logo,

um rosto não é uma imagem fechada, exata, sempre igual. Ele configura inúmeras

variações – que vão depender do ângulo sob o qual ele se dá a ver, da iluminação,

das diferentes expressões que pode apresentar. Um retrato capta somente algumas

dessas variações.

Sobre essa multiplicidade de olhares e diferentes formas de se ver a mesma

imagem, trago novamente as formulações teóricas de Didi-Huberman sobre o que

vemos e o que nos olha. Na verdade, a semelhança tem a ver com o que nos olha,

que é o que nos diz respeito, o que tem a ver conosco, o que nos cerca,

determinando, irremediavelmente, a relação que temos com a pessoa retratada. O

que nos olha, o que é fisgado pelo nosso olhar, ultrapassa a visibilidade. Portanto o

pintor, ao fazer o retrato, estará submetido a essa trama do olhar. O que olha para

ele enquanto pinta o modelo, diz respeito só ao pintor. Desta forma, ele pinta o

125

NANCY, 2000, p. 48. “[…] mon visage invisible comme il me l’est toujours.” 126

NANCY, 2000, p. 49. “Et chaque portrait de moi identifiera une autre ressemblance.”

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retrato a partir do modelo e a partir de si próprio. E essa percepção é individual, ela

pode ou não coincidir com a percepção de uma outra pessoa sobre esse modelo. Da

mesma forma, quem vê um retrato vai achá-lo semelhante ou não devido ao que

esse retrato lhe devolve com o olhar, o que por sua vez, também estará com ela

relacionado.

FIGURA 17. Iara Ribeiro. O pintor (Retrato de José Maria). Acrílica sobre tela, 2010. Fonte: Acervo da artista

FIGURA 18. José Maria Ribeiro. Autorretrato. Óleo sobre tela, 2001. Fonte: Acervo do artista

FIGURA 15. André Derain. Retrato de Matisse. Óleo sobre tela, 1905. Fonte: www.arthistoryguide.com

FIGURA 16. Henri Matisse. Autorretrato. Óleo sobre tela, 1906. Fonte: www.wikipedia.org

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O exemplo das reflexões de Barthes, após a morte de sua mãe, elucida-nos

sobre essa trama a que o olhar está submetido irremediavelmente. Ao procurar

reconhecer sua mãe recém-falecida nas fotos de família, Barthes só a reconhecia

aos pedaços, nunca alcançava todo o seu ser. Só foi encontrá-la verdadeiramente

em uma foto antiga, a Fotografia do Jardim de Inverno, de quando ela era ainda

criança, ou seja, numa época que ele nem existia, num rosto que ele não conheceu,

que não se parece com o que ele se lembra dela, mas foi nesse rosto que ele a

encontrou: “[...] brusco despertar, fora da ‘semelhança’ [...]”.127 As fotos em que ela

aparecia adulta, da forma como era quando conviveram, não lhe diziam nada, não

correspondiam à sua mãe. Fica claro que a semelhança física também não foi

fundamental para Barthes a reconhecer. A imagem de sua mãe criança foi a única

que coincidiu com a ideia que dela possuía em suas lembranças, com os seus

sentimentos em relação a ela, ou seja, foi a única foto que entrou em ressonância

com a imagem que o autor guardava de sua mãe, e que só pertencia a ele próprio. E

essa “imagem” compreendia, mais do que sua aparência física: compreendia o

afeto, o sentimento, a relação mãe e filho, o ar de sua mãe.

Barthes opta por não mostrar a foto do Jardim de Inverno em seu livro, pois,

para os outros, ela seria só mais uma foto qualquer: “Não posso mostrar a Foto do

Jardim de Inverno. Ela existe apenas para mim. [...] nela, para vocês, não há

nenhuma ferida”.128 Essa afirmação do autor reafirma o pensamento de Didi-

Huberman: o que olha Barthes nessa foto olha só para ele, ninguém mais veria essa

imagem da forma como ele a via, forma relacionada com todas as experiências

vividas ao lado de sua mãe, em sua convivência e em sua perda:

[...] Cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de idéias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem –, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue.

129

A perda da mãe é primordial para determinar a forma como Barthes agora

enxerga a Fotografia do Jardim de Inverno, e cujo reconhecimento remete à

existência do semelhante naquilo que não é apreensível apenas pela forma física,

127

BARTHES, 1984, p. 160 128

BARTHES, 1984, p. 110 129

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 33

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mas por algo que ultrapassa a visibilidade, algo insubstancial, imaterial, que emerge

das imagens e que vai além da cópia do referente.

Sobre esse algo que ultrapassa a visibilidade, retomo Blanchot, para reafirmar

na imagem seu estatuto de ambiguidade. Levando em consideração o fato de a

convenção comum estipular que a imagem seja a continuação do objeto, surja

depois dele, o retrato seria então, sobre esse aspecto, totalmente ligado ao seu

referente: primeiro existe a pessoa, e depois o seu retrato. Porém, o autor nos

mostra que a imagem é ambígua, que o imaginário tem duas versões, e que ao

mesmo tempo em que ela vem a partir de um objeto, tendo-o como referente, ela

também é independente dele, ela aparece onde o objeto já não mais existe, e

portanto, ganha autonomia em relação a ele. Importante esclarecer que embora

Blanchot utilize o termo duas versões para abordar a ambiguidade da imagem, ele,

como já referimos, não as hierarquiza em primeira e segunda, pois na verdade, para

o autor, uma não exclui a outra, são como faces da mesma moeda, que se alternam

simultaneamente.

A imagem pode existir com ou sem o objeto como pano de fundo. Podemos

pensar que o retrato pode existir sem estar vinculado apenas ao seu modelo. Este

pode ter existido e ter sido importante durante sua elaboração, mas a partir do

momento em que o retrato está pronto, o modelo se retira, e a imagem retratada

existe por si só. O referente não está lá, não está presente mais. A imagem

dispensa-o e funda-se na ausência dele.

Portanto, a imagem, ainda que se assemelhe ou não ao seu referente, torna-

se independente dele. Um retrato, antes de ser o retrato de alguém, é um retrato,

uma pintura. Quando vemos um retrato de alguém que não conhecemos, que nunca

vimos antes (FIG. 19), sentimos essa independência. Vemos sem a comparação,

sem relacioná-lo com uma pessoa determinada. Vemo-lo como imagem somente. E

é essa talvez a melhor forma de ver um retrato, sem interferências. Quando

conhecemos a pessoa retratada, na maioria das vezes, a primeira coisa que

fazemos é comparar, constatar uma semelhança.

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Nancy reconhece que a identificação do modelo pode até ser essencial ao

retrato que é feito com o objetivo do reconhecimento, mas não é essencial à arte do

retrato, ou seja, um bom retrato não é somente aquele que é parecido com o

referente.130 O autor chega mesmo a dizer que o “modelo é inessencial ao retrato,

ou mais exatamente, ele é o essencialmente ausente do retrato, do qual só importa

a ausência, e não o reconhecimento. A semelhança não tem nada a ver com o

reconhecimento”.131

Nancy nos lembra de que desconhecemos os modelos da maioria dos

retratos que contemplamos, e cita como exemplo a Monalisa (FIG. 20), o “arquétipo

dos retratos”, cuja identidade do modelo nos é desconhecida. Talvez seja essa

incerteza que lhe confere seu lugar lendário. O autor nos aponta ainda o fato de

130

NANCY, 2000, p. 39-40 131

NANCY, 2000, p. 40. “[...] le modèle est inessentiel au portrait, ou plus exactement qu’il en est l’essentiellement absent dont seule importe l’absence, et non la reconnaissance. La ressemblance n’a rien à voir avec la reconnaissance.”

FIGURA 19. Rafael Sanzio. Retrato de mulher (Velata). Óleo sobre madeira, 1516. Fonte: MANDEL, 2007, p. 18-19

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muitas vezes gostarmos de retratos que foram julgados insatisfatórios sob o ponto

de vista do reconhecimento.132

De acordo com Nancy, o retrato:

[...] não se assemelha a um original, mas ele se assemelha à Ideia de semelhança a um original – ou de preferência, ele é ele mesmo o “original” da semelhança consigo, de um sujeito em geral, mas cada vez também de um sujeito singular.

133

132

NANCY, 2000, p. 40. “Il se peut même que nous admirions des portraits qui en leur temps furent jugés insatisfaisants du pont de vue de la reconnaissance.” 133

NANCY, 2000, p. 48-49. “Il ne ressemble pas à un original, mais il ressemble à l’Idée de ressemblance à un original – ou bien plutôt, il est lui-même l’‘original’ de la ressemblance-à-soi d’un sujet en général, mais chaque fois aussi d’un sujet singulier.”

FIGURA 20. Leonardo da Vinci. Monalisa. Óleo sobre madeira, cerca de 1503-1506. Fonte: MANDEL, 2007, p. 38-39

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As formulações teóricas de Nancy, Blanchot, Didi-Huberman e Barthes

reafirmam que a semelhança não é dada apenas pelo referente. Desta forma, o

retrato está além e/ou aquém da associação que se faz com relação ao seu modelo

e que de certa forma, até o dispensa. Uma vez pintado ele ganha autonomia, porque

como ressalta Nancy “[...] ‘Semelhança’ difere de ‘’reprodução’ ou de ‘cópia’ por um

valor de aproximação. É somente o ‘semblante’ que ‘assemelha’, é um ‘além’, um ‘ar’

ou um ‘aspecto’ [...]”.134

Assim, por mais que se busque capturar a semelhança ao retratar uma

pessoa, o que se tem, de fato, são “[...] atitudes aproximativas da ausência que

retratamos”.135 O pintor, tomando emprestadas as palavras de Nancy constata,

enfim, que “a semelhança gira em torno de sua própria ausência: e girar em torno

assim, é propriamente o gesto da mão do pintor.”136

134

NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no

1). “[...] ‘ressemblance’ diffère de ‘reproduction’ ou de ‘copie’ par un valeur d’approximation. C’est seulement la ‘semblance’ qui ‘ressemble’, c’est une ‘allure’, un ‘air’ ou un ‘aspect’[...]”. 135

NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no

1). “[...] des allures approximatives de l’absence qu’on portraiture [...]”. 136

NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no

1). “La ressemblance tourne autour de sa propre absence: et tourner ainsi autour, c’est proprement le geste de la main du peintre.”

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Capítulo III.

DISTÂNCIA

A felicidade da imagem é que ela é um limite perto do indefinido. Orla exígua mas que nos tem menos longe das coisas do que nos preserva da pressão cega dessa distância.

Maurice Blanchot

O olhar nos impõe uma distância: ver algo significa que esse algo foi

apreendido por nosso campo de visão, o que pressupõe que esteja de certa maneira

perto de nós. Porém, o que a princípio parece perto se converte em distante, pois é

necessária uma distância para se processar a visão, tal como Blanchot ressalta: “Ver

supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver é sempre ver à

distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo que ela nos tira”.137 Este

devolver-nos aquilo que ela nos tira significa fazer voltar para nós, através do olhar,

o que está irremediavelmente distante: uma imagem.

Sob a perspectiva do ato de ver, Didi-Huberman, em diálogo com Blanchot,

também nos esclarece que ver pressupõe uma distância entre nós e o que vemos,

uma distância que nos diz da perda daquilo que vemos. O ato de ver nos aproxima e

nos distancia ao mesmo tempo daquilo que olhamos.

O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experimentado “único” [...] e totalmente “estranho” [...] de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena

da ausência.138

No caso específico do retrato pintado, a distância que se impõe é

desdobrada, pois além de ser a condição intrínseca do ato de ver, uma outra

distância é imposta: aquela que separa a imagem retratada de seu modelo, que não

está verdadeiramente na tela. Diante de um retrato, vemos a pessoa retratada tão

perto que nossa sensação não poderia ser outra que a de proximidade. Porém, ao

137

BLANCHOT, 2001, p. 67 138

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 148

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mesmo tempo, o retrato nos permite lembrar o quão distante na verdade essa

pessoa está. E essa distância instaurada pela imagem de uma pintura, por sua vez

se desdobra em várias outras distâncias:

entre o retratista e o retrato (o objeto físico): distância física

necessária para que o retratista possa ver o quadro durante o processo de sua

feitura. É curioso assinalar um artifício comum entre os pintores durante a

pintura de um quadro, que é o de afastar-se um pouco para vê-lo mais de longe

e assim perceber melhor seu andamento. O ato de se aproximar e se distanciar

da pintura permite formas diferentes de vê-la, e constitui uma parte do seu

processo;

entre o observador e o retrato (o objeto físico): distância física

necessária para que o observador possa vê-lo;

entre o retratista e a pessoa retratada: a distância se dá de acordo

com o referente usado para pintar o retrato, que pode ser um modelo ou uma

fotografia. Um retrato pode ser feito também de memória ou de imaginação, o

que requer um outro movimento que exige que se trabalhe com uma outra

distância, aquela que se constrói na ausência do objeto físico, e que torna

preciso convocar a imaginação para reaver, através dela, a constituição de um

modelo. Porém, vou me ater àqueles retratos que se constroem a partir da

própria pessoa ou de sua fotografia. No caso do modelo ao vivo, é necessária

certa proximidade física entre o pintor e o modelo, mas também uma distância

mínima para se efetuar a visão, para que o pintor possa ver o modelo e pintá-lo

na tela. No caso da fotografia, o pintor está distante fisicamente da pessoa que

ele retrata, a fotografia é uma mediadora entre essa distância. A pessoa

retratada está duplamente distante: há a sua distância para com a fotografia, e

desta para com o quadro. Philippe Dubois aborda essa questão da distância-

proximidade ao esclarecer que, na fotografia, a representação está o mais

perto possível de seu objeto, pois é uma emanação física dele, mas ao mesmo

tempo, a representação “mantém uma distância absoluta do objeto, em que ela

o coloca, com obstinação, como um objeto separado. Tanto mais separado

quanto perdido”.139 Ora, o “separado” é a distância intrínseca para a existência

de uma imagem. Portanto, a questão da distância-proximidade já está presente

139

DUBOIS, 2008, p. 312

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na fotografia, e quando o retrato pintado se serve dessa fotografia como

referência, esse paradoxo é ampliado, pois as distâncias inerentes a cada

técnica se somam;

entre o observador e a pessoa retratada: distância imposta ao

observador quando este percebe que a pessoa retratada, embora pareça estar

próxima, está distante de sua imagem na tela;

entre o retrato e a pessoa retratada: o retrato é a imagem de seu

modelo, isso implica que nele já está contido um distanciamento do seu

referente, visto que não são a mesma coisa. Este distanciamento leva-nos de

volta à questão da semelhança, pois o retrato, por mais parecido que esteja ao

seu modelo, carrega sempre um distanciamento em relação a este,

distanciamento no que diz respeito a espaço e tempo. O que nos é dado a ver

é inapreensível: uma imagem.

Todas essas distâncias impostas por um retrato fazem com que ele nos olhe e

nos escape simultaneamente, já que o retrato está diante dos nossos olhos, mas a

pessoa retratada está fora de nossa visão.

Talvez não façamos outra coisa, quando vemos algo e de repente somos tocados por ele, senão abrir-nos a uma dimensão essencial do olhar, segundo a qual olhar seria o jogo assintótico do próximo (até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o desaparecimento e a perda, reais ou

fantasmados).140

O ato de ver implica esse movimento entre o que está próximo – que podemos

tocar (realmente ou só pela visão) –, e o que está longe, a ponto de desaparecer:

Olhar seria compreender que a imagem é estruturada como um diante – dentro: inacessível e impondo sua distância, por próxima que seja – pois é a distância de um contato suspenso, de uma impossível relação de carne a

carne.141

Diante do retrato, a sensação de proximidade em relação ao retratado pode

ser tão grande que nos impele mesmo a tocá-lo, como se pudéssemos realmente ter

um contato com a pessoa através de seu rosto pintado, mas na verdade há a

140

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.161 141

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 243

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impossibilidade de um contato real. Não se pode tocá-lo; se o tocarmos, a única

coisa que sentiremos sob nossas mãos é o contato com o tecido da tela, ou seja, um

contato de superfície. O retratado está inacessível. O suporte do retrato – a tela –

nos mostra de perto aquilo que está longe: “[...] eu posso me aproximar da tela ou do

mármore, mas não das “imagens” nas quais se encarnam a intenção artística e não

mais do que a proximidade as coloca ao meu alcance [...]”.142

O mito de Narciso ilumina de forma exemplar essas questões sobre toque e

inapreensibilidade da imagem. Ao querer tocar sua imagem refletida na água – que

podemos associar com o seu retrato –, Narciso só teve contato com a água, e o

toque acabou por fazer desaparecer seu reflexo que só existia enquanto não

sofresse nenhuma interferência, mantendo-se à distância. Sua imagem parecia estar

próxima, a ponto de ele a poder tocar, mas na verdade ela estava a uma distância

intransponível, sua proximidade só era dada pelo olhar, o único contato possível era

o visual (FIG. 21).

142

BLANCHOT, 1971, p. 42. “[...] je puis me rapprocher de la toile ou du marbre, mais non pas des ‘images’ en quoi s’incarne l’intention artistique et, pas plus que le voisinage ne les met à ma portée [...].”

FIGURA 21. Caravaggio. Narciso. Óleo sobre tela, 1594-1596. Fonte: www.wikipedia.org

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Assim é o retrato, ele também só pode ser olhado. Ao tocarmos um retrato, ao

nos depararmos com a materialidade do seu suporte, é como se a pessoa retratada

desaparecesse, embora ela nunca tenha estado realmente na pintura.

Retomando a parábola de São João na leitura de Nancy em Noli me Tangere,

Cristo aparece em imagem para Maria Madalena, e a adverte de não tocá-lo. O

retratado também parece estar nos dizendo “não me toques”, no sentido de que não

adianta tocá-lo, podemos apenas vê-lo, pois ele está além daquela tela,

inalcançável: “É essencial à pintura não ser tocada. É essencial à imagem em geral

não ser tocada”.143 Uma imagem só se mostra aqui para se mostrar distante, ela é

como um elo que nos liga àquilo que está longe, àquilo que oscila entre ir e vir, que

se torna presença e ausência ao mesmo tempo.

Embora o toque a princípio implique a inexistência de uma distância entre o

tocado e o tocante, é interessante pensar o contrário, que é preciso existir essa

distância, um momento de separação, de desunião desse toque, pois senão, tal

como esclarece Nancy, o tocado e o tocante se fundiriam em uma só coisa:

[...] um tocar que aguça ou que destila sem reserva, até um excesso necessário, o ponto, a ponta e o instante pelo qual o toque se afasta daquilo que ele toca, no momento mesmo em que ele o toca. Sem esse afastamento, sem esse recuo ou essa retirada, o toque não seria mais o que ele é e não faria mais o que ele faz. [...] Ele começaria a se materializar em uma tomada, em uma adesão, uma colagem, até mesmo em uma aglutinação que o seguraria na coisa e a coisa nele, os emparelharia e os adequaria um ao outro, depois um no outro. Haveria identificação, fixação,

propriedade, imobilidade.144

Portanto, para existir o toque, assim como para o ato de ver, é necessário

considerar uma distância, e esse é um dos fatores que aproxima o toque do olhar. O

próprio Nancy se questiona sobre essa aproximação. “Mas o que é a visão, senão,

[...] um tocar diferente?”.145 Ambos necessitam de uma distância, por mínima que

143

NANCY, 2003b, p.81. “Il est essentiel à la peinture de ne pas être touchée. Il est essentiel à l’image en général de ne pas être touchée.” 144

NANCY, 2003b, p. 82. “[...] un toucher qui aiguise ou qui distille sans réserve, jusqu’à un excès nécessaire, le point, la pointe et l’instant par quoi la touche se détache de ce qu’elle touche, au moment même où elle le touche. Sans ce détachement, sans ce recul ou ce retrait, la touche ne serait plus ce qu’elle est et elle ne ferait plus ce qu’elle fait. [...] Elle commencerait à se réifier dans une prise, dans une adhésion, un collage, voire dans une agglutination qui la saisirait dans la chose et la chose en elle, les appariant et les appropriant l’une à l’autre puis l’une en l’autre. Il y aurait identification, fixation, propriété, immobilité.” 145

NANCY, 2003b, p.81. “Mais qu’est-ce que la vue, sinon, […] un toucher differé?”

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seja, para acontecer, pois sem ela, tanto o toque quanto o olhar se fixariam, se

imobilizariam. E o olhar não iria pressupor esse movimento de ir e vir incessante, no

qual a coisa olhada nos devolve o olhar, e o toque não iria pressupor a separação

necessária para se configurar como tal.

Blanchot, em suas formulações teóricas sobre a imagem, também aponta

para a relação entre ver e tocar ao abordar a distância inerente ao ato de ver:

Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar, no contato, a confusão. Ver significa que essa separação tornou-se, porém, reencontro. Mas o que acontece quando o que se vê, ainda que à distância, parece tocar-nos mediante um contato empolgante, quando a maneira de ver é uma espécie de toque, quando ver

é um contato à distância?146

Sobre a relação intrínseca entre ver e tocar, podemos reunir os pensamentos

de Nancy, Blanchot e Didi-Huberman, que, em sintonia, tomam o ato de ver também

como uma experiência do tocar, como podemos ler no fragmento de Didi-Huberman

a seguir:

[...] ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar. [...] Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo

talvez perfurado, feito de vazios”.147

A visão seria, desta forma, como que uma travessia física, que Didi-

Huberman associa à imagem de algo que passaria através dos olhos como uma

mão passa através de uma grade: a visão como um toque.

Como já apontado anteriormente148, a análise comum considera que a

imagem seja a continuação do objeto: “[...] vemos, depois imaginamos. Depois do

objeto viria a imagem. ‘Depois’ significa que cumpre que a coisa se distancie para

deixar-se recapturar”.149 Para Blanchot, esse distanciamento não é uma simples

mudança de lugar de algo que continuaria sendo a mesma coisa; é um

distanciamento que está no âmago da coisa, ou seja: existe algo que apreendemos

146

BLANCHOT, 1987, p. 22 147

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 31 148

Cf. Capítulo I, p. 16 149

BLANCHOT, 1987, p. 257

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e compreendemos, e tornado imagem, na concepção do autor, se converte no

inapreensível, “não a mesma coisa distanciada, mas essa coisa como

distanciamento”.150 Para o autor, é preciso levar em consideração essa distância,

pois é exatamente o distanciamento como algo amalgamado à imagem que a

distingue do objeto, que a faz ser independente dele, não nos permitindo, desta

forma, pensá-la apenas em relação a seu referente.

É esse distanciamento instínseco o que confere à imagem retratada seu ar de

distante, de alhures, não apenas no que diz respeito ao espaço físico, mas na

instauração de uma lonjura sem fim de tudo e de todos. Toda essa sensação

suscitada por um retrato pintado talvez possa estar relacionada com o que Blanchot

chama de viver um evento em imagem:

Viver um evento em imagem [...] é passar da região do real, onde nos mantemos a distância das coisas a fim de melhor dispor delas, para essa outra região onde a distância nos detém, essa distância que é então profundidade não viva, indisponível, lonjura inapreciável que se torna como

que a potência soberana e derradeira das coisas.151

Na imagem, a lonjura se apodera de nós, a distância nos detém de forma

que não podemos nunca nos aproximar verdadeiramente dela, alcançá-la. A lonjura,

nesse caso, pode ser relacionada ao distanciamento de que nos fala Blanchot, ao

dizer que a imagem de um objeto guarda no objeto a distância que o torna possível

como imagem.

Para esclarecer sobre essa lonjura sem fim, torna-se importante trazer a este

estudo o pensamento de Eudoro de Souza formulado no texto Lonjura e Outrora152,

em que o autor estabelece a diferença entre lonjura e distância. Para o autor, a

lonjura não é sinônimo de distância, pois ela nega o espaço, nega a proximidade e

também a distância. A distância é mensurável, e sempre poderá se transformar num

próximo, basta caminhar de próximo em próximo para alcançarmos o que a princípio

estava distante. Para a lonjura, entretanto, Souza observa que não há caminho: só

se pode ir da proximidade para a distância, não do perto para o longe. Nessa

perspectiva, a lonjura nunca pode ser alcançada, ela se configura indimensionável,

150

BLANCHOT, 1987, p. 257 151

BLANCHOT, 1987, p. 263 152

SOUZA, 1981

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ou seja, não está sujeita à mediação de espaço; ela reside numa “distância além da

maior das distâncias”.153

Souza cita o horizonte como a imagem da lonjura: a linha do horizonte está

sempre diante dos nossos olhos, mas sempre fora do alcance dos nossos pés. Por

mais que caminhemos em sua direção, sempre haverá uma linha do horizonte

inalcançável à nossa frente. Ou seja, a lonjura é aquilo que está sempre além, aquilo

que podemos apenas vislumbrar, pois é inacessível, e nunca irá se converter em um

próximo.

Souza aponta ainda para o fato de que na lonjura coincidem os contrários

‘próximo’ e ‘distante’, os dois se fundem: “Se pudéssemos ver da lonjura, veríamos o

distante fundir-se com o próximo, e o próximo, com o distante”.154 Portanto, a lonjura

se configura ambígua, contendo em si dois polos opostos.

É essa a lonjura que percebo nos retratos: a imagem retratada na pintura está

sempre além, sempre longínqua, contendo em si sua proximidade e sua distância ao

mesmo tempo. Eles parecem estar numa região aonde não temos acesso, e que por

mais que possamos tentar, nunca alcançaremos. É uma pessoa retratada, mas não

é ela, é mais que ela, é menos do que ela, é sua imagem, que nos olha, nos toca e

parece conter muito mais do que vemos, muito mais do que só uma forma fixada,

muito mais do que nos permite vislumbrar. O retrato não se encerra em seus limites,

ele extrapola a imagem que vemos na tela: “[...] há e sempre houve um ‘para cá’ e

um ‘para lá’ de limitantes, de quaisquer limites [...]”.155 Uma imagem possui essa

lonjura, algo que a deixa sempre além ou aquém de qualquer limite.

Entretanto, essa distinção estabelecida por Souza entre lonjura e distância

não significa que são duas noções totalmente separadas: o autor ressalta que a

lonjura absorve a distância, é como que uma imensa reserva de distância, porém ela

vai além da distância mensurável, ao negar o espaço ela aí se afirma. Por vezes

chamamos de ‘distante’ algo que na verdade é inacessível, e portanto, chamado por

Souza de ‘longínquo’. Para o autor, quando objetivamos a lonjura, quando não

levamos em conta a sua inapreensibilidade, a nomeamos de distância. Nesse

sentido, podemos considerar que a lonjura é lonjura e distância ao mesmo tempo.

153

SOUZA, 1981, p. 05 154

SOUZA, 1981, p. 04 155

SOUZA, 1981, p. 03

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Essa lonjura que compreende em si o próximo e o afastado é designada por

Didi-Huberman de dupla distância: “A distância é sempre dupla e sempre virtual [...]

e a dupla distância é a distância mesma, na unidade dialética de seu batimento

rítmico, temporal”.156 A distância é virtual porque não existe uma medida certa que

nos indique que algo está próximo ou distante, esse limite é variável. E ela é dupla

porque aparece já desdobrada, ou seja, compreende ao mesmo tempo o próximo e

o afastado, parece nos trazer para perto algo que não se pode alcançar, e que

continua, portanto, longínquo. Essa dualidade entre perto e distante, essa

aproximação que ao invés de nos deixar perto daquilo que vemos, nos mantém

sempre à sua distância, é esse o movimento da dupla distância.

Todo esse pensamento de Didi-Huberman referente à dupla distância no livro

O que vemos, o que nos olha, passa pela noção de aura legada por Walter

Benjamin, que se configura fundamental neste estudo, pois reafirma na imagem a

noção de lonjura.

A aura é definida por Benjamin como “uma figura singular, composta de

elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais

perto que ela esteja”.157 Ou seja, a aura é um algo a mais, inacessível e longínquo,

que percebemos em uma imagem ou em um objeto que nos é dado a ver.

O que a aura nos traz sob o nome da lonjura é uma distância desdobrada, uma

dupla distância, que se mostra próxima para se mostrar distante, que permite um

acesso velado com o que está longínquo, tal como esclarece-nos Didi-Huberman:

Se a lonjura nos aparece, essa aparição não é já um modo de aproximar-se ao dar-se à nossa vista? Mas esse dom de visibilidade, Benjamim insiste, permanecerá sob a autoridade da lonjura, que só se mostra aí para se mostrar distante, ainda e sempre, por mais próxima que seja sua aparição. Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística na qual as distâncias – as distâncias

contraditórias – se experimentam umas às outras, dialeticamente.158

Sob essa perspectiva encontramos uma nítida relação entre a noção de aura

em Benjamin, distanciamento em Blanchot, e dupla distância em Didi-Huberman: a

aparição única de uma coisa distante é a lonjura, é o distanciamento, é algo que

156

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.161-162 157

BENJAMIN, 1987, p. 170 158

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 148

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está amalgamado à imagem e que não se deixa capturar: “o que é essencialmente

distância é inacessível em sua essência.”159

Há um outro aspecto da aura analisado por Didi-Huberman que é o de um

“poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: ‘isto me olha’”.160 Nós

olhamos um objeto, e ele nos devolve esse olhar, que volta para nós carregado de

sensações e significações suscitadas por nossas próprias experiências. Benjamim

confirma esse aspecto da aura ao dizer que “perceber a aura de uma coisa significa

investi-la do poder de revidar o olhar”.161 Existe aura no objeto que se desdobra para

além de sua própria materialidade, que responde ao nosso olhar: “É inerente ao

olhar a expectativa de ser correspondido por quem o recebe. Onde essa expectativa

é correspondida [...], aí cabe ao olhar a experiência da aura, em toda sua

plenitude”.162. Logo, a aura diz respeito tanto ao objeto em si, quanto a quem o olha,

a um espaçamento singular tramado entre ambos pelo olhar:

Tal é a outra característica fundamental da experiência aurática: a fenomenologia da distância que aparece se completa aqui com uma fenomenologia do olhar trocado. A experiência do olhar visando um objeto e de alguma forma retornado por ele naquele que o olha, eis em que consiste

o que Benjamin chama de “a aura de uma coisa”.163

Trazendo a noção de aura de Benjamin para o âmbito do retrato, podemos

pensar que as questões instigantes que emergem da imagem retratada remetem à

ideia de aurático do autor, sobretudo no que diz respeito ao distanciamento e à

lonjura. O retrato pintado tem essa característica de uma “aparição única de uma

coisa distante, por mais perto que ela esteja”.164 A pessoa retratada “aparece” no

quadro, nos dando a falsa sensação de proximidade, quando, na verdade, da tela

ela está distante, e sua imagem nos parece sempre longínqua, inalcançável. E,

ainda, o retrato também tem o poder de nos olhar, como já foi assinalado no capítulo

159

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 140 160

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p.148 161

BENJAMIN, 1989, p. 140 162

BENJAMIN, 1989, p.139 163

DIDI-HUBERMAN, 1997, p 55. “Telle est l’autre caractéristique fondamentale de l’expérience auratique: la phénoménologie de la distance apparaissante se complète ici d’une phénoménologie du regard échangé. L’expérience du regard porté sur un objet et en quelque sorte retourné par lui sur le regardant, voilà en quoi consiste ce que Benjamin nomme l’‘aura d’une chose’.” 164

BENJAMIN, 1994, p. 170

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I165. Ele realmente nos olha, enquanto imagem e enquanto rosto. E é através desse

duplo olhar, dessa trama que se estabelece entre nós (obsevadores) e o retrato, que

este nos devolve o olhar carregado de sua lonjura, sua aura.

O próprio de uma face é certamente de se colocar diante de nós. É também, fazer do face a face uma relação de olhar. Não é necessário ver distintamente um tipo de rosto, uma fisionomia, traços, para que uma face nos olhe, para que sua distância nos afete e nos toque. Para isto, é suficiente que nós emprestemos àquilo que está diante de nós, o poder de

nos devolver o olhar, o poder de levantar os olhos para nós.166

É esse poder da distância que está presente nas imagens retratadas. Não

importa quem é ou foi o retratado, se ele está vivo ou morto, se temos ou tínhamos

com ele alguma relação: a pintura de um retrato tem o poder de suscitar a lonjura,

de devolver o olhar, de ser aurático, o que não significa, entretanto, dizer que todo

retrato é aurático. A aura diz respeito tanto ao objeto quanto a quem o olha, à trama

que se tece entre olhante e olhado, o que nos impede de classificar as imagens e os

objetos assertivamente como auráticos ou não, pois o que nos olha, tanto em Didi-

Huberman quanto em Blanchot depende do que nos constitui, como podemos

comparar nas citações de ambos os autores a seguir: “[...] o ato de ver nos remete,

nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos

constitui”167 , e “A imagem fala-nos [...] a propósito de cada coisa, de menos que a

coisa, mas de nós [...]”.168 Portanto, o retrato pode ser aurático de acordo com quem

o olha e com o que ele provoca em quem o olha. Podemos dizer, ainda, que é a

aura percebida em um retrato que o faz ir além de uma simples cópia de traços, que

lhe dá “vida”, que o preenche com algo mais do que só tintas e formas.

É interessante averiguar a relação que normalmente se estabelece entre aura e

sagrado, entre aura e religião. A aura é associada aos objetos de culto, às imagens

religiosas, que representam algo que está distante, inacessível, trazendo ao fiel a

sensação de estarem próximos daquilo que na verdade está longínquo, inacessível.

165

Cf. Capítulo I, p. 18 166

DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 55. “Le propre d’une face, c’est bien sûr de se tenir en face de nous. C’est, aussi, de faire du face-à-face une relation de regard. Point n’est besoin de voir distinctement un fácies, une physionomie, des traits, pour qu’une face nous regarde, pour que sa distance nous affecte et nous touche. Il suffit pour cela que nous prêtions à ce qui nous fait face le pouvoir de nous rendre un regard, le pouvoir de lever les yeux sur nous.” 167

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 31 168

BLANCHOT, 1987, p. 256

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Didi-Huberman observa que “a religião constitui evidentemente o paradigma

histórico e a forma antropológica exemplar da aura [...]”169 , mas isso não quer dizer

que a aura é exclusividade da religião, que ela está presente somente nos objetos

de crença ou devoção. Segundo o autor, a aura está relacionada com o poder da

distância, independentemente de essa distância estar relacionada com alguma

crença ou não.

Se a aura não é exclusividade da religião, torna-se preciso secularizar sua

noção, e segundo Didi-Huberman, o próprio Benjamim foi o primeiro a nos indicar o

caminho, ao anunciar as características da aura como uma série de condições

fenomenológicas que definem uma certa relação entre o olhante e o olhado170.

Do mesmo modo Nancy também vai destacar a necessidade de secularizar a

noção de sagrado, na medida em que assinala que o termo sagrado não está

indissociavelmente ligado à religião como parece:

A imagem é sempre sagrada, se nos ativermos a empregar esse termo que provoca confusão (mas que empregarei de início, provisoriamente, como um termo regulador para colocar o pensamento em andamento). Com efeito, o sentido de “sagrado” não deixa de ser confundido com aquele de “religioso”. Mas a religião é a observância de um rito que forma e que mantém uma ligação (com os outros ou consigo mesmo, com a natureza ou com uma sobrenatureza). A religião não é, por si, ordenada ao sagrado. (Ela também não é ordenada à fé, que é ainda uma outra categoria).

Quanto ao sagrado, ele significa o separado, o colocado à distância, o afastado. Em um sentido, religião e sagrado se opõem então como a ligação se opõe ao corte. Em outro sentido, sem dúvida, a religião pode ser representada como fazendo ligação com o sagrado separado. Mas em um outro sentido ainda, o sagrado só é o que é por sua separação, e não há

ligação com ele. Não há, então, estritamente, religião do sagrado.171

De acordo com Nancy, o termo sagrado diz respeito ao que está separado,

distante, ou seja, algo longínquo e inacessível. A religião procura estabelecer uma

169

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 159 170

DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 52 171

NANCY, 2003a, p. 11. “L’image est toujours sacrée, si l’on tient à employer ce terme qui prête à confusion (mais que j’emploierais tout d’abord, provisoirement, comme un terme régulateur pour mettre la pensée en marche). Le sens de ‘sacré’ ne cesse en effet d’être confondu avec celui de ‘religieux’. Mais la religion est l’observance d’un rite qui forme et qui maintient un lien (avec les autres ou avec soi-même, avec la nature ou avec une surnature). La religion n’est pas, de soi, ordonnée au sacré. (Elle ne l’est pas non plus à la foi, qui est encore une autre catégorie.)

Le sacré, quant à lui, signifie le séparé, le mis à l’écart, le retranché. En un sens, religion et sacré s’opposent donc comme le lien s’oppose à la coupure. En un autre sens, sans doute, la religion peut être représentée comme faisant lien avec le sacré séparé. Mais en un autre sens encore, le sacré n’est ce qu’il est que par sa séparation, et il n’y a pas de lien avec lui. Il n’y a donc pas, strictement, de religion du sacré.”

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ligação entre os homens e esse longínquo, daí a aproximação dos dois termos.

Entretanto, sendo o sagrado o separado, o inacessível, não se pode estabelecer

uma ligação com ele, e, dessa forma ele não tem relação com a religião. É esse

sagrado dessecularizado que Nancy aborda. Porém, para amenizar a confusão que

o termo possa gerar quanto a sua associação – ainda que indevida – com a religião,

Nancy vai nomeá-lo de distinto:

Ele é aquilo que, por si mesmo, se mantém à distância, no afastamento, e com o qual não se faz ligação (ou somente uma ligação muito paradoxal). Ele é o que não se pode tocar (ou somente um toque sem contato). Para

evitar confusões, eu o nomearei o distinto.172

Podemos pensar que o distinto em Nancy, como aquilo que se mantém à

distância, separado, pode estar relacionado com a noção de aura de uma imagem,

na perspectiva de sua lonjura, de seu distanciamento e de seu afastamento: a aura

como uma aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja, e o

distinto que “[...] se aproxima através da distância, mas o que ele trás para mais

perto, é a distância”.173 Assim, tanto a aura em Benjamin quanto o sagrado ou

distinto em Nancy não devem ser determinados diretamente pela religião, e sim pela

distância que estabelecem, que compreende a tensão entre o longínquo e o

próximo, e também pela relação entre olhante e olhado.

A noção de distinto de Nancy contribui para um melhor entendimento da

distância e da lonjura nas imagens. Segundo o autor a imagem é sempre sagrada, e

portanto, sempre distinta:

O distinto está ao longe, ele está no oposto do próximo. O que não está próximo pode estar afastado de duas maneiras: afastado do contato ou então da identidade. O distinto está distinto de acordo com as duas maneiras. Ele não toca e ele é dessemelhante. Tal é a imagem: é preciso que ela seja descolada, colocada fora e diante dos olhos [...], e é preciso que ela seja diferente da coisa. A imagem é uma coisa que não é a coisa.

Essencialmente ela se distingue desta coisa.174

172

NANCY, 2003a, p. 11-12. “Il est ce qui, de soi, reste à l’écart, dans l’éloignement, et avec quoi on ne fait pas de lien (ou seulement un lien très paradoxal). Il est ce qu’on ne peut pas toucher (ou seulement d’un toucher sans contact). Pour sortir des confusions, je le nommerai le distinct.” 173

NANCY, 2003a, p. 16. “Il s’approche à travers la distance, mais ce qu’il apporte au plus près, c’est la distance.” 174

NANCY, 2003a, p. 12-13. “Le distinct est au loin, il est à l’opposé du proche. Ce qui n’est pas proche peut être écarté de deux manières: écarté du contact ou bien de l’identité. Le distinct est

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A imagem retratada não é o seu modelo, ela se distingue dele, há um

distanciamento para com ele, tanto no sentido físico, quanto no sentido de

identidade: são duas coisas diferentes. O que é distinto, guarda uma distância em

relação àquilo de que se distingue:

Um retrato toca, ou então, ele é apenas uma foto de identidade, um sinal da pessoa, não uma imagem. O que toca, é alguma coisa de uma intimidade que se traz na superfície. Mas o retrato aqui é só um exemplo. Toda imagem deriva do “retrato”, não nos traços de uma pessoa que ela reproduziria, mas no que ela tira (no valor semântico e etimológico desta palavra), em alguma coisa que ela extrai, uma intimidade, uma força. E, para extraí-la, ela a substrai da homogeneidade, ela a separa da homogeneidade, ela a distingue, ela a destaca e ela a lança para frente. Ela a lança diante de nós, e esse jato, essa projeção faz sua marca, seu traço mesmo e seu estigma: seu rastro, sua linha, seu estilo, sua incisão, sua

cicatriz, sua assinatura, tudo isto ao mesmo tempo.175

Interessante observar que Souza utiliza a imagem do horizonte para falar da

lonjura, e Nancy utiliza a imagem do céu para falar do distinto e da distância: “O céu

é o distinto por essência, e por essência ele se distingue da terra que ele ilumina.

Ele é também a distinção e a distância: a claridade extensa, longínqua e próxima ao

mesmo tempo [...]”.176 A linha do horizonte é a divisão ilusória que separa o céu da

terra, e essas imagens utilizadas por Souza e Nancy remetem ao inapreensível, ao

inalcançável, àquilo que está sempre ao longe, que nunca se aproxima. Nancy ainda

aponta o céu como o distinguido, ou seja, aquilo que está separado, e essa

separação se dá pela lonjura que lhe é inerente.

distinct selon les deux manières. Il ne touche pas, et il est dissemblable. Telle est l’image: il lui faut être détachée, mise dehors et devant les yeux […], et il lui faut être différente de la chose. L’image est une chose qui n’est pas la chose: essentiellement, elle s’en distingue.” 175

NANCY, 2003a, p. 16. “Un portrait touche ou bien il n’est qu’une photo d’identité, un signalement, pas une image. Ce qui touche, c’est quelque chose d’une intimité qui se porte à la surface. Mais le portrait n’est ici qu’un exemple. Toute image relève du ‘portrait’, non pas en ce qu’elle reproduirait les traits d’une personne, mais en ce qu’elle tire (c’est la valeur sémantique étymologique du mot), en ce qu’elle extrait quelque chose, une intimité, une force. Et, pour l’extraire, elle la soustrait à l’homogénéité, elle l’en distrait, elle la distingue, elle la détache et elle la jette en avant. Elle la jette au-devant de nous, et ce jet, cette projection fait sa marque, son trait même et son stigma: son trace, sa ligne, son style, son incision, sa cicatrice, sa signature, tout cela à la fois.” 176

NANCY, 2003a, p. 19. “Le ciel est le distingué par essence, et par essence il se distingue de la terre qu’il met en lumière. Il est aussi lui-même la distinction et la distance: la clarté étendue, lointaine et proche à la fois [...]”

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A força celeste, força que o céu é – a saber a luz que distingue, que torna distinto -, é aquela da paixão cuja imagem é o transporte imediato. O íntimo se exprime aí: mas essa expressão deve ser entendida no sentido mais literal. Não é a tradução de um estado de alma: é a alma mesma que se prensa e que se apoia sobre a imagem ou, principalmente, a imagem é essa

pressão, essa animação e essa emoção.177

Essa emoção da imagem, essa paixão da qual a imagem é o transporte

imediato remetem ao que Blanchot designa de fascínio, que é algo que nos toca na

imagem, que nos prende nela, algo que não conseguimos apreender, mesurar nem

ter domínio sobre, e que o autor aponta como sendo a paixão da imagem:

Mas o que acontece [...] quando o que é visto impõe-se ao olhar, como se fosse capturado, tocado, posto em contato com a aparência? Não um contato ativo, no qual existe ainda iniciativa e ação num verdadeiro exercício do sentido tátil, mas em que o olhar é atraído , arrastado e absorvido num movimento imóvel e para um fundo sem profundidade. O que nos é dado por um contato à distância é a imagem e o fascínio é a

paixão da imagem.178

Quando estamos fascinados por uma imagem, temos contato não só com a

sua forma física, com seus atributos visíveis, mas com toda a carga imaterial que ela

carrega em si, com aquilo que transborda na imagem, com o que está além de sua

significação, com aquilo que não é material e no entanto é percebido e sentido.

Porém, esse contato é um contato à distância: “Quem quer que esteja fascinado, o

que vê não o vê propriamente dito, mas afeta-o numa proximidade imediata, prende-

o e monopoliza-o, se bem que isso o deixe absolutamente a distância”.179

Uma imagem que nos fascina vai nos assombrar, nos espantar, vai nos

prender nesse espanto, sem que tenhamos nenhum controle sobre ela. Blanchot

assim define uma pessoa que está fascinada:

Quem quer que esteja fascinado, pode-se dizer dele que não enxerga nenhum objeto real, nenhuma figura real, pois o que vê não pertence ao mundo da realidade, mas ao meio indeterminado da fascinação. Meio por assim dizer absoluto. A distância não está dele excluída mas é exorbitante,

177

NANCY, 2003a, p. 20-21. “La force céleste, force que le ciel est – à savoir la lumière qui distingue, qui rend distinct -, est celle de la passion dont l’image est le transport immédiat. L’intime s’y exprime: mais cette expression doit s’entendre au sens le plus littéral. Ce n’est pas la traduction d’un état d’âme: c’est l’âme même qui se presse et qui appuie sur l’image ou plutôt l’image est cette passion, cette animation et cette émotion.” 178

BLANCHOT, 1987, p. 22-23 179

BLANCHOT, 1987, p. 24

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75

consistindo na profundidade ilimitada que está por trás da imagem, profundidade não viva, não manuseável, absolutamente presente, embora não nada, onde soçobram os objetos quando se distanciam de seus

respectivos sentidos, quando se desintegram em suas imagens.”180

Quando diz que quem está fascinado não enxerga nenhuma figura real,

Blanchot não está dizendo que a fascinação é um engodo, mas sim que a pessoa

tem um contato justamente com o distanciamento, a lonjura, que nos atinge, nos

afeta e nos prende na imagem. Podemos dizer que quando a lonjura de uma

imagem (ou talvez poderíamos dizer sua aura) parece se aproximar de nós – ainda

que sempre à distância – entramos no fascínio.

A fascinação é de outra ordem diferente da realidade à qual estamos

habituados. Ela insere o observador em um espaço onde a lógica e a razão estão

suspensas, onde “longe de apreender a distância, somos possuídos pela distância,

investidos por ela”181, onde o tempo está suspenso.

Um retrato tem o poder de fascinar, de nos prender em sua imagem ao

mesmo tempo que nos transporta para além dela, sem que tenhamos nenhum

controle sobre isso.

Como exemplo, podemos citar novamente o episódio da Fotografia do Jardim

de Inverno, de Barthes. Ao olhar essa fotografia, Barthes teve contato com um

fascínio tal, que lhe permitiu reconhecer sua mãe em uma criança que ele não

conhecera. O tempo, a lógica foram subvertidas para permitir esse reconhecimento.

Barthes vai chamar de ar esse algo mais que a imagem carrega, esse algo que um

retrato precisa ter para se assemelhar a seu modelo182. Foi o ar da criança da foto

que lhe trouxe para perto uma mãe já distante no tempo e no espaço. “Essa

circunstância extrema e particular, tão abstrata em relação a uma imagem, estava,

no entanto, presente na face que ela tinha na fotografia que eu acabava de

encontrar”.183

Podemos pensar essa circunstância extrema e particular – designada por

Barthes de ar –, essa “sombra luminosa que acompanha o corpo”184, como a aura,

dada como uma lonjura imensurável, desdobrada, como um “espaçamento tramado

180

BLANCHOT, 1987, p. 23 181

BLANCHOT, 2001, p.69 182

Cf. Capítulo II, p.51 e 52 183

BARTHES, 1984, p. 103 184

BARTHES, 1984, p. 161

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[...] em todos os sentidos do termos, como um sutil tecido ou então como um

acontecimento único, estranho, que nos cercaria, nos pegaria ,nos prenderia em sua

rede”.185

Barthes apresenta ainda, ao descrever sobre seu interesse por fotografias,

um outro elemento que o instiga nelas, e que ele designa de punctum, como aquilo

que salta da imagem e vem nos afetar inesperadamente, sem que tenhamos

planejado: “esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me

fere)”.186 O punctum de uma foto é percebido de acordo com o observador, o que

nos remete mais uma vez à noção de o que nos olha de Didi-Huberman, o que pode

ser comprovado pelo fragmento a seguir: “Última coisa sobre o punctum: quer esteja

delimitado ou não, trata-se de um suplemento: é o que acrescento à foto e que

todavia já está nela”.187 É o que olha para o observador na imagem, algo que faz

parte da imagem, mas no entanto precisa do olhar do observador para se configurar,

ou não, como um punctum para ele.

Trazendo as noções de punctum e ar para o âmbito das imagens em geral (e

não só das imagens fotográficas), podemos associá-las com aquilo que fascina em

uma imagem, com aquilo que nos prende em uma proximidade imediata - apesar de

nos manter sempre à distância -, que nos monopoliza sem que tenhamos escolhido,

sem que tenhamos nenhum controle sobre isso. O punctum e o ar de uma foto são

os nomes que Barthes deu para aquilo que o fascinava nas fotografias. No caso da

Fotografia do Jardim de Inverno, foi o fascínio que esta imagem provocou no autor

que lhe permitiu reconhecer sua mãe, passando por cima da ordem temporal.

Podemos confirmar esta associação entre as noções de Barthes e Blanchot

nos fragmentos a seguir, de quando Barthes descreve-nos sua sensação ao

encontrar um punctum em uma imagem: “[...] eu passava para além da irrealidade

da coisa representada, entrava loucamente no espetáculo, na imagem [...]”188; e de

quando Blanchot descreve alguém que está fascinado, e que, segundo o autor, “[...]

não enxerga nenhum objeto real, nenhuma figura real, pois o que vê não pertence

ao mundo da realidade, mas ao meio indeterminado da fascinação”.189

185

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 147 186

BARTHES, 1984, p. 46 187

BARTHES, 1984, p. 85 188

BARTHES, 1984, p. 171 189

BLANCHOT, 1987, p. 23

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Estar sob o fascínio, a paixão da imagem, permite-nos também uma

associação com o que Didi-Huberman define como imagem aurática, que “ao nos

olhar ‘é ela que se torna dona de nós’”.190 E é isso que, segundo Blanchot, o fascínio

faz, ele se apodera de quem se depara com ele.

Dessa forma, podemos pensar que as noções de fascínio e de aura dialogam

entre si, como nos mostra Didi-Huberman:

O que se vê no fascínio? Blanchot responde: não a coisa, mas sua distância. E nossa própria solidão que daí resulta. É uma distância paradoxal, uma dupla distância – Benjamin a chamava de aura – de onde a

imagem retira sua própria potência.191

Sob essa perspectiva, podemos ver que todas as noções abordadas no

presente texto sobre a distância que envolve o retrato estão imbricadas e

relacionadas entre si: o fascínio em Blanchot: “longe de apreender a distância,

somos possuídos pela distância, investidos por ela”192; a aura em Benjamin:

“aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”193; a dupla

distância em Didi-Huberman: “A distância é sempre dupla – isso quer dizer que a

dupla distância é a distância mesma, na unidade dialética de seu batimento rítmico,

temporal”194; a lonjura em Souza: “[...] a ‘imagem’ está sempre diante de nossos

olhos, a ‘coisa’ sempre fora do alcance de nossos passos”195; o distinto em Nancy:

“Ele é aquilo que, por si mesmo, se mantém à distância, no afastamento [...]”196; e

ainda o ar em Barthes: “[...] algo indizível: evidente [...] e todavia improvável [...]”197,

e o punctum, do mesmo autor: “[...]é o que acrescento à foto e que todavia já está

nela”.198

Todas essas noções, acima citadas, dizem respeito à trama entre o olhante e

o olhado, ao distanciamento próprio que configura a imagem, e ao “algo mais” que a

imagem carrega, que não pode ser apreendido por nós.

190

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 159 191

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 29 192

BLANCHOT, 2001, p.69 193

BENJAMIN, 1987, p. 170 194

DIDI-HUBERMAN, 1998a, p. 162 195

SOUZA, 1981, p. 03 196

NANCY, 2003a, p. 11. “Il est ce qui, de soi, reste à l’écart, dans l’éloignement […]”. 197

BARTHES, 1984, p. 159 198

BARTHES, 1984, p. 85

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Essas noções reafirmam o pensamento de Blanchot sobre a ambiguidade da

imagem, no qual o autor desestabiliza as relações dicotômicas como próximo-

distante, início-fim, e aposta em um espaço onde é possível a coexistência dos

opostos.

Como pudemos ver, a distância é fator inerente ao retrato, tanto a distância

espacial e temporal entre retrato e retratado, quanto o distanciamento que sua

imagem suscita, abordado nas noções estudadas – aura, fascínio, lonjura, dupla

distância... É interessante observar que a distância espacial e temporal de um

retrato está inteiramente relacionada a seu modelo, é ele a referência para essa

medida. Já o distanciamento, a lonjura, a aura, o fascínio, a dupla distância, dizem

respeito só à imagem: nessas noções o referente é dispensado.

A pintura de um retrato nos permite vislumbrar a lonjura que ele carrega e

entrar na ordem do fascínio tal como formulado por Blanchot, que nos dá a certeza

da distância e ao mesmo tempo nos mantém invadidos por ela. Lembrando que,

segundo o autor, o que se vê no fascínio é a distância.

E para falar do fascínio como distância, termino esse capítulo com uma breve

alusão ao texto de Blanchot intitulado O encontro do imaginário199, em que o autor

fala sobre o canto das Sereias ao trazer sua leitura da Odisséia de Ulisses. Neste

texto nos deparamos com todas as noções estudadas que envolvem a distância e

seus desdobramentos com relação à imagem.

O canto das Sereias atraía os homens, que encantados por ele, saíam em

sua direção e desapareciam no mar. Esse canto se destinava aos navegadores, e

era, o canto mesmo, também uma navegação: “[...] era uma distância, e o que

revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer, do canto, o

movimento em direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior

desejo”.200 Os navegadores queriam percorrer aquela distância, e chegar ao ponto

aonde aquele canto se originava, aonde eles pudessem apreender o canto, as

sereias e o encanto que elas lhes causavam. Porém, era uma distância impossível

de percorrer, todos que o tentavam, desapareciam. Eles estavam sempre aquém ou

além do ponto, nunca o apreendiam.

199

BLANCHOT, 2005, p. 03 -13 200

BLANCHOT, 2005, p. 04

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Podemos relacionar as sereias com as imagens, como nos mostra Didi-

Huberman, em um texto sobre Blanchot201, em que aquele toma como exemplo a

análise deste sobre o canto das Sereias: “É, portanto, uma única e mesma

experiência aproximar-se do canto das Sereias e encontrar a imagem”.202 Dessa

forma, o canto das sereias é o fascínio que a imagem produz em nós: é uma lonjura

que nos aparece, e nos impele a percorrer a distância até ela, mas essa lonjura

nunca será vencida, e por mais que tentemos percorrê-la, ir ao encontro desse

canto, nós só entraremos, cada vez mais, no reino da fascinação, e é como se

desaparecêssemos nele, na paixão da imagem. Como já foi apontado por Didi-

Huberman, ver não é ter, e sim perder203. Ao querer ver as sereias – as imagens –

os homens não as tinham, e sim as perdiam para sempre no fascínio que as

envolvia.

O que nos fascina, nos arrebata o nosso poder de atribuir um sentido, abandona a sua natureza ‘sensível’, abandona o mundo, retira-se para aquém do mundo e nos atrai, já não se nos revela e, no entanto, afirma-se

numa presença estranha ao presente do tempo e à presença no espaço.204

As sereias eram acusadas de serem mentirosas, enganadoras fictícias e

inexistentes, assim como o fascínio parece nos mostrar algo que não é real, algo

enganador, pois é algo que está além da imagem. No entanto assim é a imagem:

carrega em si sua ficção, a existência de sua inexistência, “[...] seu lado dramático,a

ambiguidade que ela anuncia e a mentira brilhante que se lhe recrimina”.205

O retrato tem o poder de nos fazer ouvir o canto das sereias e de nos conduzir

– ainda que sempre à luz de uma lonjura intransponível – ao reino indeterminado da

fascinação, onde não há medidas lógicas de espaço e tempo.

201

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 26-51 202

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 36 203

Cf. Capítulo I, pág. 17 204

BLANCHOT, 1987, p. 23 205

BLANCHOT, 1987, p. 255

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Capítulo IV.

TEMPO

[...] la toile se dégrade et le marbre se fend, mais l’image est incorruptible et l’instant se répète sans s’accomplir (par conséquent, sans s’épuiser).

Maurice Blanchot

O retrato tem uma estreita relação com o tempo. Ele pode nos remeter ao

passado, pois a imagem que está representada é uma imagem anterior, de uma

pose passada; pode nos remeter ao futuro, ao pensarmos em quanto tempo aquele

retrato perdurará, já que provavelmente ele irá sobreviver a nós; e simultaneamente,

ele está sempre no presente. De certa forma, o retrato presentifica o passado e o

mantém assim, levando-o em direção ao futuro: assim ele abrange todas as

dimensões temporais sobre as quais estamos habituados a pensar.

As distâncias que emergem de uma imagem retratada, como vimos no

capítulo anterior, estão intrinsecamente relacionadas tanto a uma distância espacial,

quanto a uma distância temporal, que se refere ao deslocamento do tempo da

imagem. A partir do momento em que o retrato está pronto, ele se distancia

temporalmente de seu referente; sua imagem está fixada em um instante definido,

que será, a partir de então, sempre diferente do instante atual em que seu modelo

vive. E, após a morte do modelo, essa diferença é intensificada, pois os tempos do

retrato e de seu referente, que já não coincidiam desde o momento da conclusão do

retrato, passam agora a pertencer a dimensões diferentes. É como se o retrato

guardasse uma certa “vida” que seu modelo já não tem. No entanto, como já foi

assinalado no capítulo I, o retrato também nos remete à morte, na medida em que,

ao fixar a imagem de uma pessoa em um instante, é como se ela fosse morta

naquele instante, já que essa imagem, assim como acontece com alguém que

morre, retira-se do tempo. Porém, de toda forma, o retrato “salva" do tempo a

imagem de seu modelo. Enquanto a morte faz a pessoa desaparecer para sempre,

no retrato sua imagem perdura, e continua a existir independentemente de seu

referente estar ou não ainda neste mundo.

Existem ainda os retratos que já são feitos mediante um distanciamento

temporal, como os retratos pintados a partir de fotografias antigas de uma pessoa –

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de sua juventude, de sua infância – que já surgem em um “tempo diferente” do de

seu modelo (FIG. 22). As pessoas querem ser retratadas – ou retratar alguém por

quem guardam algum afeto – em um momento escolhido, geralmente na juventude,

ou em uma ocasião especial (como casamento, formatura, etc.), em suma, em um

momento que já passou. Talvez, para elas, essa seja uma forma de “voltar no

tempo”, de “reviver” um determinado momento e “eternizá-lo”. De certa forma, o

mesmo se passa nos retratos feitos de alguém que já tenha morrido: em ambos os

casos, o que está se retratando são momentos e pessoas que não existem mais,

pelo menos não da forma como quando a fotografia usada como referência foi

tirada. Há uma estranheza em pintar algo que não mais existe. Essa estranheza já

está presente na própria fotografia, como confirma Dubois, ao dizer que ela nos

coloca em um movimento que vai do aqui-agora da foto para o alhures-anterior do

objeto, ou seja, o que vemos nela é algo sempre anterior:

FIGURA 22. Iara Ribeiro. Retrato de D. Rita. Acrílica sobre tela, 2008. Fonte: Acervo da artista

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Aquilo que você fotografou desapareceu irremediavelmente. Aliás, falando em termos temporais estritos, no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto desaparece. [...] Assim, toda foto, logo que é feita, envia para sempre seu objeto ao reino das Trevas. Morto por ter sido visto. E mais tarde, quando a imagem revelada finalmente aparece para você, o referente já há muito não existe mais. Nada além de sua lembrança. O aparecimento (da imagem: sua “revelação”) nunca poderá portanto satisfazer de fato sua espera. Pois como então saber se o que você está vendo no papel fotossensível é exatamente a mesma coisa que você viu? Além disso, o que você tinha visto exatamente? É sempre tarde demais. Você nunca chegará ao encontro. Só lhe resta a foto, frágil, incerta, quase estranha. É a foto que vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência. E isso não deixará de lhe preocupar de maneira estranha. Afinal, você percebe, entre a imagem primitivamente captada, em estado de “latência” e a imagem finalmente “revelada” nesse lapso do tempo, nesse intervalo, nessa passagem, que muitas coisas podem com efeito ter ocorrido”.

206

O pintor, ao utilizar uma foto como referência para seu quadro, tem contato

com essa cisão de tempo que ela carrega, com a estranheza de ver algo fixado que

não mais existe, e que está inserido em outra ordem temporal. Portanto, ao pintar

essa imagem em uma tela, o retratista está trabalhando em um duplo desvio de

tempo – o desvio que aconteceu no instante em que a fotografia foi tirada, e o que

acontece no momento em que a pintura é feita.

Por outro lado, se pensarmos nos retratos sob um ponto de vista mais geral, e

não atrelado ao tempo do seu referente, constatamos que diversas vezes o retratado

possui atributos que vão contextualizá-lo temporalmente, como por exemplo, roupas

de época, penteados, ou a própria data da pintura, inserida por muitos pintores em

sua assinatura. Mas nem sempre isso é suficiente para fazê-lo ficar “preso” naquele

tempo. Muito além da data em que o retrato foi feito, ele carrega em si uma

atemporalidade impressionante. A figura parece existir desde sempre e para

sempre. Parece suspensa no tempo, como se não pertencesse a tempo algum. A

arte em geral suscita uma outra ordem temporal, em que o tempo parece não existir.

Blanchot se questiona sobre essa outra ordem temporal de uma obra de arte:

Como nomear este tempo? Talvez não importe. Chamá-lo de eternidade é consolador mas enganoso. Chamá-lo de presente não é mais exato, pois só conhecemos um presente, aquele que se cumpre e se realiza na vida ativa do mundo e que o futuro, sem cessar, eleva até ele. É também tentador ver aí uma pura e simples ausência de tempo. [...]

207

206

DUBOIS, 2008, p. 90-91 207

BLANCHOT, 1971, p. 43-44. “Comment nommer ce temps? Il n’importe peut-être. L’appeler éternité est consolant, mais trompeur. L’appeler présent n’est pas plus exact, car nous ne

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É importante ressaltar que Blanchot aborda o tempo a partir de uma

concepção que abole a linearidade temporal tradicional que conhecemos. A

concepção tradicional do tempo segue uma forma linear, ou seja, nela o tempo é

entendido como algo que teve um começo absoluto e terá um fim absoluto, no qual

os momentos se sobrepõem um ao outro, linearmente, seguindo uma ordem

cronológica inalterável208.

A concepção de tempo em Blanchot rompe com essa linearidade temporal, e

para que possamos entendê-la, é interessante nos atermos um pouco à relação que

o autor estabelece entre morte e tempo:

Morrer é, assim, abranger a totalidade do tempo e fazer do tempo um todo, é um êxtase temporal: nunca se morre agora, morre-se sempre mais tarde, no futuro, um futuro que nunca é atual, que só pode chegar quando tudo estiver consumado, e quando tudo estiver consumado não haverá mais presente, o futuro será de novo passado. Esse salto pelo qual o passado se junta ao futuro por cima de todo presente é o sentimento da morte humana, impregnado de humanidade.

209

Para o autor a morte está sempre no futuro, e o futuro está sempre adiante,

portanto, a morte nunca chega. Quando ela chega, imediatamente ela já é passado:

já morreu, já passou. Portanto a morte nunca está presente, ela é aquilo com o qual

não temos um contato real, pois, enquanto estamos vivos, só tomamos

conhecimento da morte dos outros – nossa morte está no futuro. E quando ela

chega para nós, é em um instante fulminante, e não podemos sentir até o fim a

realidade dessa morte, visto que estaremos mortos – ela já se transformou - e nos

transformou - em passado. Portanto, a morte abrange o tempo como um todo, e

através deste exemplo, podemos compreender um pouco mais de como a noção do

tempo funciona para Blanchot: passado e futuro são estendidos, o passado não tem

proximidade com nenhum presente, que por sua vez não acontece porque o futuro

não chega, está sempre por vir. Blanchot situa o passado na noite dos tempos, onde

a origem está irremediavelmente perdida. É preciso esclarecer que para Blanchot,

connaissons qu’un présent, celui qui s’accomplit et se réalise dans la vie agissante du monde et que l’avenir, sans cesse, élève à lui. Il est aussi tentant d’y voir une pure et simple absence de temps.’’ 208

Sobre essa concepção linear do tempo, ler mais no texto Tempo e História, de Helio Jaguaribe em DOCTORS, (org.), 2003. p. 156-160 209

BLANCHOT, 1987, p. 165

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origem não é o mesmo que começo, ela pertence a outra instância: a origem é

aquilo a partir do que nada pode começar, que antecede a história e o homem como

sujeito histórico, e portanto, é uma indeterminação original, em que os seres e as

coisas ainda não são210. O passado para Blanchot está nessa origem perdida, nunca

apreendida. E o futuro, exemplificado pela morte, nunca chega, é uma espera, não

há acontecimentos. Se o futuro nunca chega, então o presente, embora seja o único

tempo com o qual temos uma relação ativa, está sempre em suspensão, sempre

escapando e ao escapar, se transforma imediatamente no passado, sendo por isso

inapreensível.

Desta forma, Blanchot está rompendo com um começo e um fim absoluto do

mundo e do tempo, existentes na tradicional concepção linear do tempo: ao estender

o passado para o que ele denomina noite dos tempos, o autor está abolindo uma

origem; e ao considerar o futuro como algo que nunca chega, e a morte estando

nele inserida como algo sobre o qual não se tem domínio algum, o autor está

desestabilizando a noção de finitude:

É verdade, portanto, que, como querem os filósofos contemporâneos, no homem compreensão e conhecimento estariam ligados ao que se chama finitude – mas onde está o fim? Está certamente incluído nessa possibilidade que é a morte, mas também é ‘retornado’ por ela, se na morte se dissolve também essa possibilidade que é a morte.

211

Se o fim está na morte, e não podemos sentir até o fim a realidade de nossa

própria morte, é como se nela então se dissolvesse o fim e a própria morte. É

importante lembrar que todo o pensamento de Blanchot parte da Literatura: quando

propõe uma origem perdida na noite dos tempos e uma desestabilização de princípio

e fim, o autor está trabalhando no campo do espaço literário, do imaginário, onde

nada acontece de verdade. Porém, esse pensamento transcende o campo da

Literatura, e nos permite associá-lo à noção de tempo nas Artes Plásticas, afinal,

uma pintura também pertence à ordem do imaginário.

Assim, tomando como referência as questões sobre a ambiguidade da

imagem nas duas versões do imaginário, formuladas por Blanchot, podemos pensar

de maneira análoga que, na imagem retratada coexistem duas versões do tempo:

210

Cf. LEVY, 2011, p. 33 211

BLANCHOT, 1987, p. 263

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uma que é a noção à qual estamos habituados, e que se refere ao tempo em uma

linearidade temporal, e uma outra versão que subverte essa linearidade, na qual o

passado e o futuro são inapreensíveis e estendidos, e o presente é suspenso, como

apresentado pela concepção do tempo de Blanchot, e reafirmado por Levy: “O

tempo é então desdobrado, exteriorizado em sua outra versão. [...] O tempo, aqui, é

um tempo imaginário, que não está preso à linearidade cronológica”.212 Essas duas

versões do tempo coexistem, o que significa não excluir a versão tradicional, pois

em diversos momentos, é ela que será chamada ao texto na tentativa de responder

às questões que constroem esse objeto de estudo.

Podemos dizer que o retrato suscita as duas versões do tempo. A versão

tradicional leva em conta a época em que o retrato foi pintado, a idade do modelo

(se era criança, jovem ou velho), o tempo que se passou gradualmente desde

aquela pose até o dia de hoje. A outra versão do tempo rompe com a linearidade,

faz o retrato ser atemporal, o faz estar em uma ausência de tempo, que é assim

definida por Blanchot:

É o tempo em que nada começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação, já existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo puramente negativo, é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem [...]O tempo da ausência de tempo é sempre presente, sem presença. Esse “sem presente” não devolve, porém a um passado. [...] Do que é sem presente, do que nem mesmo se apresenta como tendo sido, o caráter irremediável, diz: isso jamais aconteceu, jamais houve uma primeira vez; e, não obstante, isso recomeça, de novo, e de novo, ad infinitum. É sem fim, sem começo. É sem futuro.

213

Blanchot utiliza o termo ausência de tempo para falar da Literatura214 e das

Artes Plásticas215. O tempo da ausência de tempo é a suspensão do presente,

suspensão do tempo cronológico, e por isso mesmo, é como se coexistissem todas

as dimensões temporais simultaneamente, ainda que todas elas estejam em

suspensão. Não se distingue início nem fim, e desta forma tudo está sempre

recomeçando. É um tempo imaginário, o tempo ao qual pertencem as imagens,

tanto as imagens literárias, quanto as imagens plásticas.

212

LEVY, 2011, p.31 213

BLANCHOT, 1987, p. 20 214

Cf. A solidão essencial, in: BLANCHOT, 1987. p. 9-25 215

Cf. Le Musée, l’Art et le Temps, in: BLANCHOT, 1971. p.21-51

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Os retratos são indiferentes ao tempo, eles existem – e isso basta. E é talvez

essa indiferença ao tempo o que os faz serem mais fascinantes: como é possível

ignorar aquilo a que estamos todos submetidos incondicionalmente? Os retratos

escapam à ordem cronológica, e parecem dispor do tempo, dominá-lo e subvertê-lo

– estão nesse tempo imaginário, o tempo da ausência de tempo.

A arte, e no caso específico desta pesquisa o retrato, está nesse fascínio da

ausência de tempo. O fascínio que uma imagem produz, tem muito a ver com essa

subversão temporal que ela implica: nele não existe linearidade, passado, presente,

futuro. Essa capacidade que a arte tem de ser indiferente ao tempo, de dominá-lo,

de dispor dele a seu prazer, que nos dá a sensação de um mergulho em um tempo

que está suspenso, se torna para nós um mistério que nos mantém no fascínio, que

nos prende nesse movimento anadiômeno do tempo. É possível perceber essa

relação entre arte e tempo no fragmento a seguir, de Blanchot sobre a escultura

Hermes de Praxíteles (FIG. 23):

FIGURA 23. Paxíteles. Hermes (detalhe). Mármore, cerca de 350-330 a.C. Fonte: www.wikipedia.org

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Os comentadores nos dizem: o Hermes de Praxíteles sorri do fundo de seu mistério, e esse sorriso exprime sua indiferença pelo tempo, o mistério de sua liberdade no que diz respeito ao tempo; é por isso que todos esses sorrisos da arte que nos tocam como o segredo humano por excelência, [...] afirmam o desafio que a expressão do efêmero – graça e liberdade de um instante – leva à duração encerrando-se no irreal.

216

A arte tem esse poder, de fazer um instante tornar-se eterno, o que ressalta a

capacidade da arte de se colocar de certa forma alheia ao tempo. Podemos pensar

que não é o tempo que age sobre uma obra de arte, e sim, ela que o abriga em si. É

claro que a matéria de que é feita a obra – a tela de uma pintura, a pedra de uma

escultura, o papel de um desenho, por exemplo – pode, sim, sofrer a ação do tempo

e se degradar. Mas, mesmo ao ver uma imagem antiga com algum dano adquirido

pela ação do tempo, a sensação é que aquele dano faz parte dela, veio dela, do

tempo que ela própria abrigava, e não de um tempo exterior. E a obra incorpora

esse “dano”, o abriga com a mesma indiferença que tem para com o tempo. Uma

Vênus de Milo (FIG. 24) e seu braço quebrado, por exemplo, uma Vitória de

Samotrácia (FIG. 25) sem sua cabeça... a obra continua lá, com toda a sua

grandeza, com todo seu tempo. Elas estão diferentes de quando foram criadas, mas

os danos que as acometeram já fazem parte delas; seria estranho ver hoje a Vitória

de Samotrácia com cabeça... seria outra obra, não essa que conhecemos como tal,

essa na qual a ação do tempo é parte constituinte. Blanchot esclarece que os torsos

são obras que foram realizadas pelo tempo, que lhes quebrou a cabeça:

Um quadro envelhece, um envelhece mal, outro torna-se obra-prima pela duração que decompõe os seus tons, e nós conhecemos a felicidade das mutilações, essa Vitória à qual somente o vôo do tempo pôde dar asas [...].

217

216

BLANCHOT, 1971, p. 43. “Les commentateurs nous le disent: l”Hermès de Praxitèle sourit du fond de son mystère, et ce sourire exprime son indifférence au temps, le mystère de sa liberté à l’égard du temps; c’est pourquoi tous ces sourires de l’art qui nous touchent comme le secret humain par excellence, [...] affirment le défi que l’expression de l’éphémère – grace et liberté d’un instant – porte à la durée en s’enfermant dans l’irréel.” 217

BLANCHOT, 1971, p. 24. “Un tableau vieillit, l’un vieillit mal, l’autre devient chef-d’oeuvre par la durée qui en décompose les tons, et nous connaissons le bonheur des mutilations, cette Victoire à laquelle seul le vol du temps a pu donner des ailes [...].”

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Sob essa perspectiva, o retrato enquanto objeto físico – o chassi, o tecido, a

tinta – pode sofrer a ação do tempo. A madeira e o tecido podem envelhecer,

enfraquecer, serem acometidos por insetos e fungos; a tinta pode desbotar,

craquelar (FIG. 26). É claro que tudo vai depender dos materiais utilizados e das

condições de armazenamento daquela obra, mas uma coisa é certa: o tempo passa

e algum registro deixa naquele quadro. Mas quando digo que a imagem retratada

está suspensa no tempo, atravessa o tempo, estou me referindo ao rosto ali pintado,

esse sim vai perdurar, não vai mudar, e se ocorrer alguma mudança devido à

degradação de seu suporte, a imagem acaba por incorporar aquele dano e fazer

dele uma parte de si: “[...] a tela se degrada e o mármore se racha, mas a imagem é

FIGURA 24. Vênus de Milo. Mármore, cerca de130-100 a.C. Fonte: www.wikipedia.org

FIGURA 25. Vitória de Samotrácia. Mármore, cerca de 190 a.C. Fonte: www.wikipedia.org

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incorruptível e o instante se repete sem se completar (e consequentemente, sem se

esgotar).218

É interessante destacar ainda uma outra colocação de Blanchot sobre um

utensílio danificado, que segundo o autor, torna-se a sua imagem: “o utensílio, não

mais desaparecendo no seu uso, aparece. [...] Só aparece o que se entregou à

imagem, e tudo o que aparece é, nesse sentido, imaginário”.219 Uma panela,

enquanto objeto utilitário, só é percebida em sua função: acolher o alimento para ser

cozido. Se essa panela estragar (furar, descascar, amassar), ela não poderá mais

exercer essa função, e assim, só restará sua imagem, ela aparecerá como imagem,

já que sua utilidade desapareceu. Desta forma, uma obra de arte danificada, torna-

218

BLANCHOT, 1971, p. 47. “[...] la toile se dégrade et le marbre se fend, mais l’image est incorruptible et l’instant se répète sans s’accomplir (par conséquent, sans s’épuiser).” 219

BLANCHOT, 1987, p. 260

FIGURA 26. Petrus Christus. Retrato de Jovem mulher. Óleo sobre madeira. Cerca de 1470. Fonte: MANDEL, 2007, p. 30 e 119

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se mais ainda sua imagem: se seu suporte está degradado, o que resta é só, e

ainda mais, a imagem.

A respeito dessa degradação que o suporte ou a matéria de um retrato, de

uma obra, possa vir a sofrer devido ao tempo ou a algum outro agente externo, vale

a pena citar A parábola dos três olhares220, de Didi-Huberman. Nesta parábola, o

autor cita o pintor grego Apelle, que, não conseguindo terminar um quadro no qual

pintava Afrodite, lança sobre ele uma esponja embebida com água e aglutinantes,

que desfigura a pintura. Afrodite quase desaparece, resta somente uma grande

mancha de espuma e respingos vermelhos. Entretanto, ao se desfigurar, ao deixar

de ser representada, Afrodite continuou presente no quadro, talvez mais do que

antes. Não como uma forma acabada, mas como a formação de seu corpo, que

nasceu da espuma, do sangue e do sêmen de Urano caídos ao mar221. O quadro

ficou conhecido com o nome de Afrodite Anadiômena, que remonta ao seu

nascimento e ao fato de, neste quadro, ela também estar em um movimento de fluxo

e refluxo, onde ora ela é vista, e ora ela desaparece. A imagem de Afrodite, mesmo

tendo sofrido uma degradação, ainda assim continuou presente, presente na

ausência de sua forma, ela absorveu essa ausência e essa degradação e as fez

parte constituinte de si. O quadro de Apele se torna “uma obra da ausência que vai e

vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da

ausência”.222

Esta parábola elucida de forma exemplar o movimento de oscilação sobre o

qual Blanchot propõe os níveis de ambiguidade de uma imagem, que impedem de

se decidir de uma vez por todas: a imagem “[...] ora nos concede o poder de dispor

das coisas em sua ausência e pela ficção, [...] ora nos faz resvalar para onde talvez

estejam presentes, mas em suas imagens”223. Assim podemos dizer que a imagem

é, por natureza, anadiômena.

A Parábola dos três olhares nos mostra também como uma obra tem o poder

de manter sua força, sua identidade mesmo após sofrer um dano físico. Sua imagem

está alheia às ações exteriores, alheia ao tempo, como nos mostra Blanchot no

fragmento a seguir:

220

DIDI-HUBERMAN, 1998b, p.113-120 221

Segundo o mito de Afrodite, Urano (Céu) é castrado por seu filho Cronos, e o seu sêmen cai ao mar e o fecunda, originando Afrodite, que nasce da espuma das ondas do mar. (Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 14) 222

DIDI-HUBERMAN, 1998b, p. 148 223

BLANCHOT, 1987, p. 265

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Ela [a obra] não estava ao abrigo do tempo, ela era o abrigo do tempo, e está, nela, essa fixidez absoluta de um presente preservado que nós acreditávamos e desejávamos admirar. Mas a obra é sua própria ausência: e por causa disso encontra-se em um constante tornar-se, nunca acabada, sempre feita e desfeita.

224

Sob essa perspectiva, a obra é que abriga o tempo, carrega o seu próprio

tempo. O tempo a que estamos todos submetidos passa ao seu redor, e ela

permanece ali, a mesma, porém incorporando as alterações que porventura seu

suporte possa vir a sofrer.

A arte não é mais atualmente a inquietude do tempo, a potência destrutiva da pura mudança, ela está ligada ao eterno, ela é o eterno presente que, através das vicissitudes e por meio das metamorfoses, mantém ou recria sem cessar a forma onde foi expressa um dia “a qualidade do mundo através de um homem”.

225

O retrato, portanto, carrega seu próprio tempo. A imagem é fixada em um

instante que contém a força de um tempo suspenso. A pessoa que foi retratada

continua sua vida cotidiana, em uma transformação constante devido ao trabalho do

tempo. Mas sua imagem retratada permanece a mesma, inalterada, fixada nessa

ausência de tempo.

Encontramos uma inversão dessa ação do tempo sobre o modelo e o retrato

no livro O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: ao contrário do que acontece na

vida real, nesta ficção é a imagem retratada que sofre a ação do tempo, é ela que

envelhece, que se transforma. O modelo permanece sempre jovem, aparentemente

puro, e todas suas marcas, suas rugas, suas expressões adquiridas ao longo da

vida só vão surgir no retrato. Oscar Wilde se aproveitou da estranheza própria dos

retratos para criar essa intriga, estranheza advinda da relação modelo-retrato, que

compreende a semelhança/dessemelhança, a presença/ausência, a

224

BLANCHOT, 1971, p. 48. “Elle n’était pas à l’abri du temps, elle était l’abri du temps, et c’est, en elle, cette fixité absolue d’un présent préservé que nous croyions et souhaitions admirer. Mais l’oeuvre est sa propre absence: à cause de cela en perpétuel devenir, jamais accomplie, toujours faite et défaite.” 225

BLANCHOT, 1971, p. 39. “L’art n’est plus à prèsent l’inquiétude du temps, la puissance destructice du pur changement, il est lié à l’éternel, il est l’éternel présent qui, à travers les vicissitudes et par le moyen des métamorphoses, maintient ou recrée sans cesse la forme où s’est exprimée un jour ‘la qualité du monde à travers un homme’.”

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proximidade/distância, e o tempo. O autor subverte o tempo e a ordem lógica ao

criar essa ficção.

Podemos dizer que a semelhança é o fator que dá início à intriga do livro. A

beleza de Dorian Gray encanta a todos que o conhecem. Seu retrato pintado por

Basílio Hallward capta esse encanto e torna-se muito semelhante, sendo apontado

por todos como o melhor trabalho do pintor. A semelhança do retrato com seu

modelo é tanta que nos momentos que se seguem à conclusão da pintura, os

personagens da história se referem ao quadro como se fosse também o modelo, o

que pode ser verificado nos trechos a seguir dos diálogos entre o modelo, o pintor e

um amigo:

- Apreciá-lo? Adoro-o Basílio. Sinto que é parte de mim mesmo.

- Bem, assim que “você” estiver seco, será envernizado, posto numa moldura e enviado à sua casa. Você poderá, então, fazer o que quiser de “você” mesmo.

[...]

- Você não deveria dizer tais coisas diante de Dorian Gray, Harry.

- Diante de que Dorian? Do que nos serve o chá ou daquele do retrato?

- Diante de ambos.

[...]

- Ficarei com o verdadeiro Dorian – disse tristemente.

- É esse o verdadeiro Dorian? – exclamou o original do retrato, adiantando-se até ele. – Sou realmente assim?

- Sim, você é exatamente assim.

- Maravilhoso, Basílio!

- Pelo menos, na aparência, você é assim. Mas este não mudará nunca – suspirou Hallward. – E já é alguma coisa.

226

Esses fragmentos mostram a força de um retrato e como ele se confunde com

própria pessoa, sendo tratado quase como se fosse a própria pessoa. Essa força é

tamanha que, na ficção de Wilde, vai levar à uma troca entre ambos. O retrato é tão

parecido com seu modelo, que é como se aquele passasse a ser mais verdadeiro

que este, como se a semelhança entre ambos enganasse o próprio tempo.

O próprio Dorian, ao ver seu retrato pronto, fica completamente encantado por

ele – por sua própria imagem –, e é através do retrato que ele toma realmente

226

WILDE, 1972, p. 40-42

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conhecimento de sua beleza. Como abordado no capítulo II, Nancy elucida que

nunca vemos nosso próprio rosto, só mediado por um suporte227. E é através da

pintura de seu retrato que Dorian consegue enxergar sua beleza. Entretanto, ele

percebe que essa beleza, assim como sua juventude, é efêmera, e constata que o

tempo irá provocar a ruína das coisas que são belas. Dorian se questiona por que o

retrato pode conservar aquilo que ele próprio vai perder, e sente inveja do quadro,

no qual sua imagem permanecerá sempre jovem, fora do tempo cronológico que irá

transformar a si próprio. Isso o leva a formular o desejo de uma inversão entre

ambos:

Como é triste – murmurou Dorian, com os olhos fixos ainda no seu retrato. – Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se ocorresse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso – por isso – eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria minha própria alma!

228

Esse desejo formulado por Dorian funciona como um pacto entre ele e sua

imagem retratada. Após esse dia, é Dorian que não mais envelhece. O tempo para

de agir sobre o personagem e passa a agir sobre sua imagem retratada.

O tempo se torna imóvel para o personagem da história. O real se fixa e a

imagem é que adquire movimento. O retrato torna-se o espelho que reflete Dorian

atravessando o tempo, enquanto que Dorian, o modelo, continua sempre belo e

jovem. Não são só traços de velhice que se apoderam do retrato, e sim, toda

expressão adquirida ao longo da vida de seu modelo, cada má conduta deste se

reflete somente em sua imagem.

Desta forma, curiosamente, com o passar do tempo, o retrato vai se

desassemelhando do seu modelo, pois adquire rugas, marcas e expressões, ao

passo que Dorian permanece na beleza e na juventude, no instante em que foi

capturado pelo retratista. A semelhança inicial do retrato leva à dessemelhança do

mesmo, ou seria mais apropriado dizer que Dorian Gray é que passou a não ser

mais semelhante a si próprio: o verdadeiro Dorian era aquele do retrato.

227

Cf. Capítulo II, p. 49-50 228

WILDE, 1972, p. 38

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[...] com um espelho nas mãos, colocava-se diante de seu retrato pintado por Basílio Hallward. Contemplava então o rosto perverso e envelhecido pintado na tela, e em seguida sua face lisa e juvenil, que lhe sorria no espelho. A agudeza do contraste tornava mais viva a sensação de prazer que experimentava. Enamorava-se cada vez mais de sua própria beleza e cada vez mais se interessava na degradação de sua própria alma. [...] Indagava a si mesmo, então, quais os sinais mais repugnantes, se os da idade ou os do pecado. Colocava suas alvas mãos ao lado das mãos grossas e inchadas do retrato e sorria. Zombava daquele corpo disforme e daqueles membros lassos.

229

Ao voltar, sentava-se diante do retrato, muitas vezes odiando a si mesmo, mas algumas outras cheio desse orgulho próprio do individualista que é a quase fascinação do pecado, e sorria com secreto prazer àquela sombra informe que suportava a carga que lhe cabia a ele próprio.

230

Ao final do livro, Dorian é levado a um desejo de por fim àquele retrato que a

essa altura já estava monstruoso, e enfia uma faca no quadro. Seus criados vêm em

socorro após ouvirem um grito, e encontram um velho repugnante e desconhecido,

morto com uma faca cravada no peito, caído em frente ao esplendoroso retrato de

seu patrão. A dessemelhança entre retrato e retratado já era tamanha, que os

criados, que não haviam visto a transformação do quadro – já que Dorian o

mantinha escondido – não reconheceram aquele velho morto no chão, só o

identificaram pelos anéis que usava. O reconhecimento se dá aqui por algo exterior

às feições do velho, que já não guardavam nenhuma semelhança ao jovem que foi,

aparentemente, durante toda sua vida. E o retrato na parede, que voltara a ser do

jovem Dorian com suas feições puras, esse sim, era o patrão que eles conheciam. O

encanto se desfez com a morte, e de uma só vez Dorian, até então imaculado,

adquire todas as marcas e rugas que seu retrato carregava em seu lugar.

O fato de os criados encontrarem, no aposento da morte de Dorian, a faca

cravada no peito do velho caído ao chão, enquanto seu retrato continuava intacto na

parede, nos permite levantar hipóteses sobre a troca ocorrida entre modelo e retrato.

Se Dorian enfiou uma faca no quadro, como este não estava ao menos rasgado?

Talvez porque a troca ocorrida tenha sido uma troca apenas de lugar entre modelo e

retrato: como se a imagem retratada ganhasse vida e saísse da tela, vindo ocupar o

lugar de seu modelo no mundo real, ao passo que a pessoa de Dorian Gray, ao

tomar o lugar de seu retrato, fica preso à tela. Desta forma, a imagem retratada, que

229

WILDE, 1972, p. 156 230

WILDE, 1972, p. 170

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não sofre a ação do tempo, que não envelhece nem se transforma, continua intacta,

sempre jovem e sempre bela, como quando foi pintada, porém, habitando o mundo

real. E o Dorian real continua a sofrer a ação do tempo, a envelhecer, a adquirir

marcas, como todas as pessoas, porém, por estar preso no quadro, é neste que as

transformações aparecem. Sob esse ponto de vista, o tempo não parou de agir

sobre o modelo para agir sobre o retrato, simplesmente o modelo e o retrato

trocaram de lugar, e cada um continua mantendo sua relação natural com o tempo,

porém, em lugares diferentes: o modelo preso no retrato, e a imagem retratada

vivendo no mundo real. Assim, o verdadeiro Dorian Gray esteve sempre no retrato,

preso, sofrendo as transformações naturais do curso da vida que sua imagem

retratada vivia em seu lugar.

Portanto, ao enfiar uma faca no retrato, quem morre é o Dorian verdadeiro,

que passou a vida toda preso no retrato. Com a morte, ele se liberta desse encanto

e volta a ser o homem de carne e osso que fora um dia – porém, já morto, com a

faca cravada no peito. E a imagem retratada, aquela para a qual o tempo é imóvel e

suspenso, aquela que retém o tempo em si, essa continua intacta, e volta para a tela

onde foi pintada, para continuar sobrevivendo ao tempo. Sob essa perspectiva, é

como se a imagem retratada tivesse matado o seu referente. Dessa interpretação

podemos tecer algumas considerações:

a imagem retratada dispensa o seu referente. Após ser pintada ela existe por

si só, não depende mais de seu modelo, por isso é como se o matasse;

a imagem retratada “vence a morte”, sobrevive a seu original, visto que este

sofre a ação do tempo, envelhece, morre, e o retrato continua, para além da

morte;

a imagem retratada “mata” seu modelo, o fixa em um momento que já passou,

que não existe mais, que está morto. E nesse sentido, ela “mata” a pessoa,

em um sentido figurado.

A intriga do livro nos aponta ainda para o fato de que um retrato afirma uma

imagem para seu modelo, imagem essa que vai sobreviver ao próprio modelo. Após

sua morte, ele será mais lembrado por aquela imagem pintada do que por sua

própria imagem viva, já que esta não existe mais, e acaba sendo esquecida, sendo

apenas resgatada por uma imagem. Podemos citar como exemplo os retratos

antigos, de quando a pintura, o desenho e a escultura eram as únicas formas de

registrar a imagem de um rosto: aqueles são os rostos que conhecemos de nossos

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antepassados (FIG. 27). Se a aparência deles era mesmo aquela, se a pintura está

fiel ou não, não tem como saber: o rosto deles, para nós, é aquele retratado na tela.

O retrato afirma um rosto para o retratado, que vai sobreviver ao rosto real. E Wilde

joga com esse rosto imutável, transpondo-o do retrato para a realidade.

Toda essa intriga criada por Wilde diz respeito a essa fixação no tempo que o

retrato produz, ao “congelar” a imagem de uma pessoa e fazê-la perdurar, sempre a

mesma, indiferente ao tempo. O autor fez da estranheza provocada pela relação

modelo/retrato uma obra de ficção na qual as questões da semelhança e do tempo

são subvertidas. São elas que causam toda a intriga do livro, ao mesmo tempo que

vão sendo desconstruídas ao longo da história.

A ficção de Wilde nos leva ainda a pensar sobre o poder que o retrato e

consequentemente o retratista têm de salvar o retratado das ruínas que o tempo

causa, como explicitado por Blanchot:

FIGURA 27. Giovanni Bellini. Doge Leonardo Loredan. Óleo sobre madeira, 1501-1504. Fonte: MANDEL, 2007, p. 73 e 121

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[...] somente o artista nos salva do absurdo e da contingência, somente ele transforma em um presente radiante, inteligível e salutar o que de outra forma seriam apenas ruínas informes de uma duração sem memória, a decomposição repugnante do cadáver do tempo.

231

O retrato “salva” a imagem do retratado da destruição que o tempo causa, e

lhe dá a chance da eternidade. Por ser indiferente ao tempo, o retrato parece reter

em si o passado, o presente e o futuro: nele, o que já passou continua ali, e segue

em direção ao porvir, o que pode ser compreendido pela noção de outrora de

Eudoro de Souza. Para o autor, o outrora é um tempo que nega o agora, mas que

se diferencia da antiguidade:

[...] “antiguidades” há muitas; tantas há quantos os momentos mais ou menos distanciados do “atual”, atual-atual ou atual-antigo. Porém, o outrora é só um: hora que é outra, a hora que não é esta, que esta não é, em qualquer hora que tenha soado, que venha a soar. E aqui novamente se impõe a imagem do horizonte. O outrora seria a indimensionável dimensão do tempo – que já não é tempo – de um além horizonte.

232

O outrora, de acordo com Souza, é um antigo que não pode ser determinado,

que não está sujeito à mediação do tempo, que reside além do mais antigo que nos

pareça. Podemos considerar o outrora como um passado indefinido, do qual se

desconhecem a exata medida do tempo que decorreu entre ele e o presente.

O outrora seria como que imensas reservas de antiguidade, onde a mais

remota antiguidade se perde de vista, e desta forma ele absorve o antigo: quando o

objetivamos, chamamo-lo de antiguidade, mas ele em si não pode ser determinado.

Portanto, podemos dizer que no outrora, o antigo e o atual se fundem, e através

desse pensamento, o autor está propondo uma coincidência de contrários, situando

o outrora fora ou “para além de todos os ‘agoras’ que se alinham, para trás e para a

frente, direto ao passado ou ao futuro da hora presente”.233

231

BLANCHOT, 1971, p. 41. “[…] seul l’artiste nous sauve de l’absurdité et de la contingence, seul il transforme en un present rayonnant, intelligible et salutaire ce qui autremant ne serait que les ruines informes d’une durée sans memoire, la pourriture dégoûtante du cadavre du temps”. Essa citação de Blanchot refere-se a uma interpretação sua do pensamento de Malraux (1901-1976), escritor e pensador francês. 232

SOUZA, 1981, p. 04 233

SOUZA, 1981, p. 03

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Desta forma, Souza está também nos apresentando uma concepção de

tempo que desestabiliza a linearidade temporal. Nossa concepção tradicional de

tempo, para o autor, é uma forma da nossa sensitividade enquanto sujeitos em um

mundo objetivo, que classifica e qualifica tudo. Mas ele supõe que esse “homem-

sujeito de um mundo-objeto” e “mundo-objeto de um homem-sujeito” são sugestões

e projetos específicos da realidade, que são, entretanto, temporários e contingentes,

e por assim serem, podem dar lugar a outros projetos, nem assim tão temporários

nem tão contingentes, que sugiram e projetem outro homem e outro mundo.

Esses “outros” projetos, essa outra forma de se deparar com a realidade, nos

remete ao que Blanchot chama de o “outro de todos os mundos” – apresentado por

ele para designar o espaço literário e que mais uma vez podemos trazer para o

âmbito das artes plásticas. A Literatura, a escrita, nos abre a uma realidade que não

é essa cotidiana, mas sim uma realidade da ficção, que nos joga em um mundo que

tem relação com o imaginário: o outro de todos os mundos.

A arte, segundo Blanchot, está vinculada ao que se situa “fora” do mundo,

mas isso não significa, entretanto, que “a arte afirma um outro mundo, embora seja

verdade que ela tem sua origem, não num outro mundo, mas no outro de todo o

mundo [...]”234. Ou seja, esse outro de todos os mundos não é um outro mundo, e

sim um desdobramento, uma outra versão do mundo, que não o nega nem o

elimina, mas coexiste com ele. Tatiana Salem Levy, em seu texto O mundo

desdobrado: a paixão do fora em Blanchot235 aborda esse outro de todos os mundos

instaurado pela literatura, pela arte, nos fragmentos a seguir.

A ficção aparece como o inabitual, o insólito, o que não tem relação com este mundo nem com este tempo – o outro de todos os mundos, que é sempre distinto do mundo. Mas ao mesmo tempo em que nos retira do mundo, nele nos coloca novamente. E nós o vemos então com outro olhar, pois a realidade criada na obra abre no mundo um horizonte mais vasto, ampliado. Nesse sentido, a arte é real e eficaz. Experimentar o outro de todos os mundos e agir no mundo, eis o que a arte nos proporciona.

236

[...] o mundo criado pela literatura – mundo este imaginário – não se constitui como um não mundo, mas como o outro de todo o mundo. Assim como a imagem é contemporânea ao objeto, o imaginário também é

234

BLANCHOT, 1987, p. 70 235

LEVY, 2011, p. 15-52 236

LEVY, 2011, p. 25-26

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contemporâneo ao real. Logo, a literatura não deixa de falar do mundo, mas fala sempre de sua outra versão.

237

O retrato também diz respeito a esse outro de todos o mundos, a essa outra

versão do mundo, que compreende uma realidade imaginária, uma outra ordem

espacial e temporal: vemos a imagem retratada agora, mas seu tempo é outro, é

indimensionável, ultrapassa a data da pintura do quadro, a idade da pessoa

retratada, e o que nos resta é um contato com uma hora que é outra – com o

outrora.

Dizer que no retrato temos contato com o outrora não se opõe a dizer que o

retrato está em uma ausência de tempo, como dito anteriormente. Essa ausência de

tempo é justamente a suspensão do tempo cronológico, no qual passado, presente e

futuro se sucedem linearmente. O outrora, por se configurar indimensionável,

também subverte essa linearidade. Dessa forma, as noções de outrora em Souza e

da ausência de tempo em Blanchot dialogam entre si quando as convocamos para

abordar o tempo nos retratos.

A experiência de Barthes com a Fotografia do Jardim de Inverno mostra bem

como uma imagem pode subverter o tempo. O autor reconhece sua mãe em uma

foto de quando ela era criança, ou seja, em um tempo em que ele ainda não vivia. O

reconhecimento, a semelhança se dá em uma subversão do tempo, em uma

suspensão do tempo, nesse tempo não cronológico, como se o presente se

confundisse com o passado. A infância de sua mãe pertence ao passado, a morte

de sua mãe é futura àquela criança da foto, mas já é passado para o autor, para o

momento em que ele olha a foto. Todas as dimensões temporais se mesclam no

momento em que Barthes se depara com essa fotografia, e a imagem que está ali

fixada salta por cima dessas dimensões, é indiferente a elas.

Esta fotografia toca Barthes justamente na medida em que ela própria

subverte o tempo e a semelhança, e é isso que mais nos impressiona: como uma

imagem desconectada no tempo e na aparência pode ser considerada como a foto

em que ele encontra sua mãe e a reconhece? O que olhou Barthes naquela foto e o

fez reconhecer nela sua mãe foi algo que dispensa o tempo, que abriga o seu

próprio tempo.

237

LEVY, 2011, p. 28

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Interessante observar que a Fotografia do Jardim de Inverno é paradigmática,

e enlaça todas as questões abordadas nesta pesquisa: presença e ausência,

semelhança, distância e tempo. Podemos dizer que ela reúne todos os autores

abordados, e sobretudo afirma as noções teóricas de Blanchot nas duas versões do

imaginário.

André Rouillé, no texto Tensões da Fotografia238, toma como exemplo as

noções de Barthes em A Câmara Clara, para tecer suas reflexões sobre a fotografia.

Reflexões que se aproximam das duas versões do imaginário de Blanchot, como

podemos ler nos fragmentos de Rouillé a seguir: “as imagens têm a preciosa

particularidade de serem duplas [...]” 239, e “as singularidades da fotografia residem

em suas maneiras de mesclar, de unir, e até mesmo de cruzar princípios

heterogênios”.240

Neste texto, o autor contesta algumas posições de Barthes com relação à

Fotografia do Jardim de Inverno, e traz um pensamento que permite nos

aproximarmos ainda mais da complexidade da noção de tempo na imagem

fotográfica. Cabe lembrar que o que interessa a essa pesquisa não é instaurar uma

polêmica, elegendo o pensamento de um autor em detrimento do outro. De posse

das noções estudadas na presente pesquisa, me atenho à questão dos níveis de

ambiguidade, tal como formulado por Blanchot, e à de uma aposta em uma tensão

advinda da coexistência de opostos. Assim, considero que as noções de Barthes e

de Rouillé – mesmo quando não em sintonia – colaboram para a articulação teórica

desta pesquisa.

Um ponto que Rouillé questiona no pensamento de Barthes é a forma

contínua e linear com que este se baseia no tempo através de sua noção de “isso

foi”, que implica, na fotografia, que “isso que vejo encontrou-se lá, [...] esteve

absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto já diferido”241. Essa noção

atesta que o que vemos em uma foto existiu, foi real, e o tempo é nela abordado

com o passado sendo um antigo presente, e o presente sucedendo gradualmente o

passado. Portanto, o que Barthes vê na fotografia através de uma remontagem

linear do tempo é o seu referente, que adere à imagem. Barthes chega ao ponto de

238

ROUILLÉ, 2009, p. 189-229. 239

ROUILLÉ, 2009, p. 207 240

ROUILLÉ, 2009, p.197 241

BARTHES,1984, p. 115-116

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proclamar a invisibilidade da fotografia, ao dizer que não importa o que ela mostre,

não é ela que vemos, e sim o seu referente.

Rouillé aponta que o próprio Barthes contradiz esta noção de tempo linear

que defende, através de sua experiência com a Fotografia do Jardim de Inverno na

medida em que o “encontro” de sua mãe na imagem se dá “em um passado que ele

não conhece; não o antigo presente do “isso foi”, mas o passado em que a infância

de sua mãe se mescla ao presente da percepção da imagem”242, ou seja, em um

entrecruzamento de temporalidades, onde passado e presente coexistem. Portanto,

embora Barthes defendesse um tempo linear, na Fotografia do Jardim de Inverno ele

estava lidando com um tempo que subverte essa linearidade. Para Rouillé, o

reconhecimento e o “encontro” com a mãe de Barthes nesta imagem não estava

nem no referente, nem no antigo presente do “isso-foi”, mas sim em um salto em um

passado que não é atingido a partir do presente vivo. Segundo o autor, a Fotografia

do Jardim de Inverno retém Barthes:

[...] por sua capacidade de desencadear um processo em que se cruzam o mais afastado e o mais dessemelhante, em que se encontram a menina e a mãe recentemente desaparecida, em que coexistem o presente e os polos mais opostos do passado, onde se combinam, finalmente, a percepção e a lembrança. Verdadeiro salto em um passado desconectado do presente vivo, em um passado que não se atinge a partir do presente, ao final de uma escalada no tempo, a Fotografia do jardim de inverno rompe com a lógica da semelhança [...].

243

Outra crítica que Rouillé faz às considerações de Barthes é que este reduz a

percepção a uma projeção direta e linear, do presente ao passado, ao negar que a

percepção de uma fotografia lhe remeta a uma lembrança: “a Fotografia não

rememora o passado [...]. O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que

é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato

existiu”.244 Para Rouillé, no entanto, deve-se considerar que a percepção de uma

imagem remeta a uma série de outras imagens, de lembranças, que surgem nos

desvios e rupturas do tempo, e que não dizem respeito somente ao referente. E

mais uma vez o autor aponta uma contradição em Barthes: ao buscar sua mãe nas

fotos que olha, na verdade o que Barthes está procurando é “achar o melhor retrato,

242

ROUILLÉ, 2009, p. 216 243

ROUILLÉ, 2009, p.216 244

BARTHES, 1984, p. 115

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o mais suscetível de combinar com os pensamentos, os sonhos, as lembranças, as

sensações associadas à sua mãe”.245 Portanto, apesar de Barthes dissociar

percepção de lembrança, inconscientemente ele busca uma foto que coincida com

as sensações que sua mãe lhe suscita, uma foto em que suas percepções e suas

lembranças coexistam, ou seja, imagens que reativem uma lembrança em sua

memória, e que a façam emergir no presente.

De acordo com Rouillé a percepção de uma imagem acontece no cruzamento

de duas temporalidades: o presente da percepção e o passado da lembrança. A

percepção presente ao ver uma imagem está sujeita aos desvios da lembrança em

direção à realidade passada da coisa, que abre a uma série de outras imagens,

outras lembranças, ou seja, leva o observador a estabelecer conexões entre

elementos do presente e regiões de sua memória.

O olhar que temos para as imagens revela-se, assim, ser, em termos temporais, estereoscópico (no presente e no passado) e, ao mesmo tempo, orientado (do passado em direção ao presente). Não percebemos, aqui e agora, nada que não encontre um eco em nossa memória, nada que não esteja ligado ao passado.

246

Desta forma, o autor dialoga com a noção de Didi-Huberman sobre o que nos

olha, ao dizer que a percepção de uma imagem ou de um objeto é governada por

nós próprios: “[...] nossa percepção é, ao mesmo tempo, governada pela nossa ação

[...], pelas nossas necessidades [...], e sobretudo pela nossa memória”.247 Ou seja,

nossa percepção está relacionada com o que nos constitui, com nossas próprias

memórias, com aquilo que nos diz respeito.

O presente de um retrato – que compreende o presente da pessoa retratada,

do momento da pintura do quadro, do observador que o olha –, coexiste com o

passado da memória – da memória do retratado, do pintor, do observador. A

percepção de um retrato leva o observador a tecer conexões entre suas próprias

memórias e aquela imagem que tem diante de si, e essa conexão se dá através do

entrecruzamento de temporalidades, como propõe Rouillé, que surgem

desvinculadas de uma ordem cronológica e racional. A percepção de um retrato abre

a outras imagens, outros acontecimentos, outras sensações que podem ou não ter

245

ROUILLÉ, 2009, p. 214 246

ROUILLÉ, 2009, p. 218 247

ROUILLÉ, 2009, p. 224

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alguma relação direta com a imagem do quadro. Podemos ver um retrato de uma

pessoa e lembrar de algum acontecimento vivenciado, de alguma sensação que já

sentimos, ou até de uma expectativa de algo ainda por vir. O retrato, desta forma,

nos permite experimentar um cruzamento de tempos distintos, ou melhor, nos insere

irremediavelmente no tempo em sua outra versão.

Portanto, de acordo com Rouillé, o tempo de uma imagem não pode ser

reduzido somente a uma cronologia, a uma sucessão de presentes, a um passado

único, ele coexiste com um “passado em geral”, o passado da memória:

[...] não um antigo presente singular, que foi vivido, mas um passado que habitamos e que nos habita, que orienta e limita nossas ações (no tempo) assim como nossas percepções (no espaço). Esse passado não cronológico, não sucessivo, não vivo, esse passado puro que não passa – mas que é – é precisamente o passado da memória.

248

Não é meu interesse aqui aprofundar a questão da memória nos retratos, pois

isso se configuraria uma outra dissertação. Meu interesse é apenas apontar para

essa relação, na medida em que ela colabora para um melhor entendimento das

temporalidades que atravessam os retratos, temporalidades que não obedecem a

uma ordem cronológica, como nos mostra Blanchot:

O tempo é capaz de um truque mais estranho. Certo incidente insignificante, que ocorreu em dado momento, outrora, esquecido, e não apenas esquecido, despercebido, eis que o curso do tempo o traz de volta, e não como uma lembrança, mas como um fato real, que acontece de novo, num novo momento do tempo. [...] Incidente ínfimo, perturbador, que rasga a trama do tempo e por esse rasgão nos introduz em outro mundo: fora do tempo [...].

249

É isso que o retrato faz, em imagem ele suspende o tempo de um rosto, o

fixa, lhe dá outro tempo, o tira da condição de estar fadado à degradação e à

finitude, e assegura que, mesmo com a transitoriedade de seu referente, e

consequentemente, com sua ausência iminente, no retrato ele irá sobreviver.

A subversão do tempo linear provocada pela imagem perpassa por todas as

questões abordadas na presente pesquisa: presença/ausência, semelhança e

248

ROUILLÉ, 2009, p. 216 249

BLANCHOT, 2005, p. 16

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distância, demonstrando que estas noções estão de tal forma imbricadas, não nos

permitindo, tal como propõe Blanchot, uma escolha definitiva: “Daí que a

ambiguidade, embora só ela torne a escolha possível, está sempre presente na

própria escolha.”250

- a presença ilusória que o retrato suscita parece trazer no tempo aquela

pessoa ali retratada, implica uma volta naquele tempo que já passou e no entanto

continua ali fixado na tela. Porém, a ausência que simultaneamente é suscitada pelo

retrato nos remete à ausência de tempo: o tempo está suspenso;

- a semelhança tem uma relação estreita com o tempo, na medida em que um

retrato feito em determinada época pode até se assemelhar com a pessoa naquele

instante, mas a partir daí, a pessoa sofre a ação do tempo e vai se transformando, e

o retrato passa a guardar uma semelhança com o passado daquela pessoa, e não

com seu presente;

- a distância e proximidade implicadas em um retrato tanto dizem respeito ao

espaço físico quanto ao tempo: os retratos suscitam uma proximidade física e

temporal com o retratado, mas na verdade apontam o distanciamento físico e

temporal daquela imagem na tela.

O retrato retém em si uma trama de tempos heterogêneos, em que ora temos

contato com o presente, ora com o passado, ora com o futuro, num movimento

anadiômeno do tempo que o quadro apresenta, reafirmando os níveis de

ambiguidade da imagem. Ao reter toda essa trama em si, o retrato nos olha do fundo

de sua indiferença ao tempo, como aquele que conseguiu dominar o tempo.

250

BLANCHOT, 1987, p. 263

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na tentativa de cercar as questões instigantes suscitadas pelo retrato,

percebo, entretanto, que é impossível uma resposta definitiva para todas elas. Os

autores escolhidos para fundamentar esta pesquisa me permitiram rondá-las, mas

não dominá-las inteiramente, fazendo-me compreender através de suas formulações

teóricas, o estatuto ambíguo da imagem, que não permite que ela seja apreendida

por um domínio circunscrito. Torna-se impossível, portanto, buscar uma conclusão

fechada, uma afirmação única. O retrato e as questões que suscita guardam em si o

“algo que escapa” a toda tentativa de compreensão, o que demonstra – como vimos

nesse estudo – que o lugar da imagem é o de uma oscilação permanente: “Aqui, o

que fala em nome da imagem, ‘ora’ fala ainda do mundo, ‘ora’ nos introduz no meio

indeterminado da fascinação”.251

A propósito, a busca por uma resposta não concerne ao pensamento de

Blanchot, para quem “questionar é jogar-se na questão. A questão é esse convite ao

salto, que não se detém num resultado”.252 Portanto, o intuito desta pesquisa foi

“jogar-se” nas questões, já sabendo que não seria possível encerrá-las em um único

resultado.

Ao longo desta pesquisa, percebi estarem imbricadas entre si todas as

questões que envolvem o retrato e que estão aqui discutidas. A presença e a

ausência se desdobram na semelhança, na medida em que a presença suscitada

pelo retrato é provocada pela semelhança que este carrega em relação a seu

referente, que, por sua vez, no retrato está ausente. A semelhança nos leva à

distância, pois, mesmo pretendendo ser semelhante a seu modelo, o retrato instaura

um distanciamento em relação a ele. A distância está relacionada com o tempo, na

medida em que o retrato implica, além de uma distância física, também uma

distância temporal em relação a seu referente. E por fim, a questão do tempo nos

retratos nos aponta novamente para a presença e ausência, pois uma imagem

deslocada no tempo nos remete a uma presença ilusória de um tempo que não

existe mais, quando na verdade nos deparamos com a ausência do modelo, e com a

ausência do tempo no qual ele foi retratado.

251

BLANCHOT, 1987, p. 265 252

BLANCHOT, 2001, p. 53

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Duas noções estudadas perpassaram todas as questões abordadas na

pesquisa: a ambiguidade da imagem, afirmada pelas duas versões do imaginário de

Blanchot, e a trama do olhar proposta por Didi-Huberman em O que vemos, o que

nos olha. Em conjunto, essas noções, se não nos fornecem uma resposta definitiva,

devido a seu próprio caráter aberto, elas nos permitem entender o porquê desta

impossibilidade de uma única resposta, ao nos confirmar a ambiguidade própria da

imagem e as formas em que essa se dá a ver.

O retrato carrega essa ambiguidade intrínseca à imagem, ao nos suscitar ao

mesmo tempo presença e ausência, vida e morte, proximidade e distância,

semelhança e dessemelhança, passado, presente e futuro. Desta forma, o retrato,

se configura como uma imagem anadiômena, que a cada momento nos remete a

uma questão, em um movimento de ir e vir sem cessar.

E a maneira como a presença e a ausência são evocadas pelo retrato, a

semelhança deste para com seu modelo, a distância e a questão temporal que ele

implica, a aura e o fascínio que ele pode suscitar, tudo isso será percebido e sentido

de forma diferente por cada um que o olha, de acordo com o que lhe concerne, com

o que lhe olha de volta. Assim, o retrato não está submetido a um olhar absoluto:

ele é dado a ver conforme quem o olha.

A partir das formulações de Blanchot, Didi-Huberman e Nancy, deparamo-nos

ainda com uma desestabilização do referente, que nos leva a pensar o retrato não

só vinculado a seu modelo. Para Blanchot, a imagem é contemporânea ao objeto, e,

portanto não é subjugada a ele, pelo contrário: ela coexiste com ele e

simultaneamente o dispensa. Para Didi-Huberman, a forma de se ver uma imagem

está imbricada com a pessoa que a olha, e sob essa perspectiva, um retrato vai

dizer respeito tanto – e talvez até mais – a quem o olha quanto a quem ele figura na

tela. E para Nancy, o modelo não é essencial ao retrato, o que é essencial é sua

ausência, necessária para que o retrato se configure como tal. Desta forma, a partir

desta desestabilização da soberania do referente que encontramos nas formulações

destes três autores, percebemos que o retrato não se encontra subjugado ao seu

modelo: ele remete a seu referente ao mesmo tempo em que o dispensa, e funda-se

na sua ausência.

Esse caráter ambíguo do retrato é o que o faz escapar a qualquer resposta

definitiva. Imagem que flutua em uma trama de espaço, tempo, presença, ausência,

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em um jogo de semelhanças que estão sempre remetendo a outras semelhanças...

Trata-se de uma trama sem fim, que me impele a dar continuidade a esta pesquisa.

Neste ponto do meu estudo e na expectativa de seus possíveis

desdobramentos, posso dizer que o encanto/espanto que o retrato me suscita se

mantém. As questões que o envolvem e me instigam estão sempre recomeçando,

ressurgindo com a mesma força: “É como se, na questão propriamente dita,

estivéssemos envolvidos com o outro de qualquer questão; como se, vinda

exclusivamente de nós, ela nos expusesse a algo que nos é definitivamente

alheio.”253

Esse algo que me é definitivamente alheio no retrato, aquilo que nele escapa

de sua presença/ausência, semelhança/dessemelhança, distância/tempo, e que não

se pode fixar nem apreender, é o que me fascina.

**********

Ao terminar de escrever essa dissertação, ergo meus olhos para cima da

mesa onde estou sentada, e me deparo com meu autorretrato pendurado na parede

(FIG. 28). Eu o olho e ele me olha. Algo nele me escapa definitivamente, ainda que

aquela seja a minha própria imagem, pintada por mim mesma.

Um retrato – meu próprio retrato – me olha, do alto de sua autonomia e

indiferença a todas as questões que o envolvem.

E todas essas questões recomeçam.

253

BLANCHOT, 2001, p. 46

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FIGURA 28. Iara Ribeiro. Autorretrato. Acrílica sobre tela, 2010. Fonte: Acervo da artista

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