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BIOPOLÍTICA E ESCOLAS: A SAÚDE EM TODOS OS TEMPOS Rozemy Magda Vieira Gonçalves Universidade Luterana do Brasil As tecnologias políticas que praticavam controle sobre os corpos e que organizavam o funcionamento das sociedades ocidentais modernas e de suas instituições dentre elas a escola transformaram-se significativamente no século XVIII, conforme Foucault (2002). A partir de então, passou-se a instalar uma nova tecnologia de poder que, diferentemente das anteriores, encarregava-se da vida, e não da morte. ...outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer” (FOUCAULT, 2002, p. 287). Para Foucault (2002), o biopoder é aquele que “se incumbiu da vida em geral como polo do corpo e o polo da população” (p. 302). Para o autor, a disciplina e a biopolítica incidem simultaneamente e articuladamente sobre o indivíduo e sobre a coletividade. A disciplina atua no corpo-organismo, no sujeito, para discipliná-lo. A biopolítica age no corpo- espécie, objetivando os modos de vida da população e estabelecendo mecanismos de regulação social. Surge, então, uma nova tecnologia de poder que parece, conforme Foucault (2016b), ser um dos fenômenos fundamentais do século XIX: “é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo” (p. 200), caracterizado por fazer viver e deixar morrer. É diferente do poder soberano, que era de fazer morrer ou de deixar viver, que se detinha no direito de matar e se exercia através da punição ou tortura. A biopolítica foi conceituada por Foucault, pela primeira vez, em uma conferência intitulada O Nascimento da Medicina Social, proferida no Rio de Janeiro, em outubro de 1974 (FOUCAULT, 2016a). Contudo, foi a partir do livro A Vontade de Saber, de 1976, e do curso ministrado no Collége de France Em Defesa da Sociedade (1975-1976), que Foucault dá a amplitude que esse conceito merece.

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BIOPOLÍTICA E ESCOLAS: A SAÚDE EM TODOS OS TEMPOS

Rozemy Magda Vieira Gonçalves

Universidade Luterana do Brasil

As tecnologias políticas que praticavam controle sobre os corpos e que organizavam o

funcionamento das sociedades ocidentais modernas e de suas instituições – dentre elas a

escola – transformaram-se significativamente no século XVIII, conforme Foucault (2002). A

partir de então, passou-se a instalar uma nova tecnologia de poder que, diferentemente das

anteriores, encarregava-se da vida, e não da morte. “...outro direito novo, que não vai apagar o

primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor,

um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer” (FOUCAULT,

2002, p. 287).

Para Foucault (2002), o biopoder é aquele que “se incumbiu da vida em geral como

polo do corpo e o polo da população” (p. 302). Para o autor, a disciplina e a biopolítica

incidem simultaneamente e articuladamente sobre o indivíduo e sobre a coletividade. A

disciplina atua no corpo-organismo, no sujeito, para discipliná-lo. A biopolítica age no corpo-

espécie, objetivando os modos de vida da população e estabelecendo mecanismos de

regulação social.

Surge, então, uma nova tecnologia de poder que parece, conforme Foucault (2016b),

ser um dos fenômenos fundamentais do século XIX: “é o que se poderia denominar a

assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem

enquanto ser vivo” (p. 200), caracterizado por fazer viver e deixar morrer. É diferente do

poder soberano, que era de fazer morrer ou de deixar viver, que se detinha no direito de matar

e se exercia através da punição ou tortura.

A biopolítica foi conceituada por Foucault, pela primeira vez, em uma conferência

intitulada O Nascimento da Medicina Social, proferida no Rio de Janeiro, em outubro de 1974

(FOUCAULT, 2016a). Contudo, foi a partir do livro A Vontade de Saber, de 1976, e do curso

ministrado no Collége de France Em Defesa da Sociedade (1975-1976), que Foucault dá a

amplitude que esse conceito merece.

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Foucault (1988) enuncia, no capítulo final do primeiro volume da História da

Sexualidade: “O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal

vivo e, além disso, capaz de existência política: o homem moderno é um animal, em cuja

política, sua vida de ser vivo está em questão” (p. 134). Com o biopoder, a vida entra no

campo da política.

Como já foi mencionado, foi no século XVIII que o poder sobre a vida – isto é, a

entrada dos fenômenos próprios à vida humana na esfera do poder – desenvolveu-se na ordem

do saber e nos cálculos do poder. “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder

soberano é, agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão

calculista da vida” (FOUCAULT, 1988, p. 150). O poder intervém no sentido de aumentar a

vida e controlar fenômenos que podem causar a morte. A morte “está de fora, em relação ao

poder, é o que cai fora de seu domínio” (FOUCAULT, 2002, p. 296). Portanto, os processos

relacionados à vida humana começam a ser instigados por mecanismos que tentam controlá-

los e modificá-los:

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num

mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde

individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que pode

reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico

reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só

emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte,

no campo de controle do saber e de intervenção do poder (FOUCAULT, 1988, p.

134).

Como esta modalidade de poder encarrega-se da vida, mais do que ameaça de morte,

ela visa a intervir nos processos biológicos, ter acesso aos corpos e aos meios que o

circundam para controlá-los e modificá-los. Acredito que, no ambiente escolar, a biopolítica

faz-se presente em vários momentos. Ao escrever sobre educação, Gadelha (2013) argumenta

que a “relação entre biopolítica e educação não constitui um fato óbvio, dado de antemão,

devidamente apontado e analisado” (p. 15) na obra de Foucault, mas é um elemento planejado

a partir dela:

De fato, objetivamente falando, ele [Foucault] não tomou a educação – como o fez,

por exemplo, com a medicina social (a medicalização da vida, a instalação de um

dispositivo da sexualidade), a polícia, a previdência social e o racismo biológico de

Estado, dentre outros – como um dos mecanismos estratégicos privilegiados para o

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exercício de biopoderes e da biopolítica nas sociedades ocidentais modernas

(GADELHA, 2013, p. 15).

A partir de então, pressupomos que a escola é um agenciador educacional e que

apresenta diversas situações em que a temática da saúde se apresenta e, indubitavelmente, a

biopolítica está inserida nessa arena educacional. Partindo dessa questão, pretendo analisar as

relações que se estabelecem entre escola e saúde na Revista Brasileira de Estudos

Pedagógicos (RBEP). A RBEP é um periódico publicado desde 1944 e que permanece sendo

publicado até o momento. Ele pertencente ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

(INEP), instituição ligada ao atual Ministério da Educação, e é o periódico brasileiro mais

antigo no campo educacional ativo até os dias de hoje. Para compor o recorte temporal deste

artigo, foram selecionados os cinco primeiros anos, entre 1944 e 1949. Nesse período, foram

publicados 37 números.

A presente pesquisa será um estudo de inspiração genealógica. A genealogia é relativa

ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência. “...Seria

uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto

é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e

científico” (FOUCAULT, 2002, p. 15). Ela é uma atividade, um modo de ver as coisas. “A

genealogia é cinza: ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com

pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (FOUCAULT, 2016a, p. 55). A

genealogia não é um método que possibilita determinado fim, nem um banco de dados sobre a

origem de algo; poderíamos dizer que é a interpretação ou reinterpretação do que foi

explicado em outras épocas, por outras vontades de potência.

Alguns aspectos sobre a saúde na escola

A escola tem sido pensada como um local de resolução para grande parte dos

problemas causados pela violência, marginalização, pobreza e doença. Conforme Santos

(2004), podemos entender a escola como uma maquinária onde as velhas estratégias – educar,

curar, reformar, punir – estão articuladas a outras, de âmbitos sociais e políticas, no sentido de

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regular a vida e as condutas. Na prevenção de determinados hábitos ou comportamentos, a

escola também alerta em relação ao que pode se tornar um problema de saúde, seja físico,

mental, emocional e até mesmo social/público.

Foi em Rousseau (1973) que, pela primeira vez, surgiu uma preocupação com a

educação escolar do corpo e como ela poderia se manifestar. “De acordo com Rousseau, as

práticas escolares deveriam promover o desenvolvimento espontâneo da sensibilidade, no

sentido de o ser humano ver com seus próprios olhos, sentir com o coração e não ser

governado a não ser pela própria razão” (SANTOS, 2004, p. 40).

No século XVIII, ser limpo era “proteger e reforçar o corpo” (VIGARELLO, 1996, p.

253); estar limpo e higienizado promoveria o bom funcionamento do organismo. Para

Vigarello (1996), o “papel energético da pele, incômodo obstrutor das crassidões, perigo das

matérias putrescíveis tornaram-se o horizonte teórico das abluções e dos banhos. É preciso

lavar para melhor defender” (p. 253). O que remete ao ser limpo será um sujeito moralizado e

livre de doenças.

Nessa concepção, a limpeza é uma das condições para preservar a salubridade não

somente através da limpeza do corpo, mas também dentro do espaço que os estudantes

ocupam, tal como o espaço escolar: “sala de aula, escadas e corredores devem ser varridos

todos os dias e lavados quinzenalmente, para evitar infecção do ar” (SANTOS, 2004, p. 43),

as janelas devem ser abertas e as salas arejadas e iluminadas. Para Foucault (2016b), a

preocupação do ar como patogênico não é de hoje:

Era uma velha crença do século XVIII que o ar tinha uma influência direta no

organismo, por veicular miasmas ou porque a qualidade do ar frio, quente, seco ou

úmido em demasia se comunicava com o organismo ou, finalmente, porque se

pensava que o ar agia diretamente por ação mecânica, pressão direta sobre o corpo

(p. 159).

Também os móveis deveriam ser organizados e estar de acordo com a idade do aluno

e, por fim, a alimentação deveria ser manuseada e oferecida de forma adequada. Vigarello

(1996) reforça: “a limpeza escolhida como a mais antiga é a que se refere exclusivamente às

partes visíveis do corpo: o rosto, as mãos. Ser limpo é cuidar de uma zona limitada da pele, a

que emerge da roupa, a única que se oferece ao olhar” (p. 249). No ambiente escolar, solicita-

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se ser higiênico, manter as unhas limpas e cortadas, pentear o cabelo e estar com as mãos

limpas antes de lanchar e depois de ir ao banheiro, além de uma boa aparência.

A maioria das escolas tem uma maneira de padronizar a boa aparência, solicitando o

uso do uniforme, para o qual emerge o primeiro olhar. Para Machado et al. (1978), “o

ambiente escolar é uma pequena cidade onde os habitantes são inexperientes e ainda

ignorantes” (p. 299), mas, ao serem disciplinados e orientados “pelas luzes da medicina faz

prever sua gradativa transformação; objetivo presente em todas as medidas médicas de

ordenação do espaço escolar, do tempo e corpos educados” (p. 299). Segundo os autores, “se

a escola é materialmente fundada nas determinações médicas, as pessoas que nela convivem

são objeto de atenção que complementa o aspecto anterior” (MACHADO et al., 1978, p. 301).

Uma escola é composta por alunos, professores e funcionários, dentre outros

profissionais. Esses sujeitos serão “penetrados, desvendados e subjetivados por uma

autoridade médica” (SANTOS, 2004, p. 44), para o ideal funcionamento do espaço escolar.

Conforme Machado et al. (1978), a presença médica não deve se restringir ao espaço da

enfermaria; seu poder de decisão e organização deve ser amplo, ocupando toda a escola” (p.

301), exercendo vigilância tanto no espaço físico, quanto no quadro funcional, docente e

discente.

A educação em saúde no espaço escolar vai ao encontro do biopoder (poder sobre a

vida/o biológico), uma vez que é uma tecnologia de poder que “não exclui a técnica

disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo,

vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa

técnica disciplinar prévia” (FOUCAULT, 2002, p. 289). A educação em saúde articula

disciplina e normatizações para a vida, visando à prevenção de doenças, a manutenção da

saúde escolar e, consequentemente, populacional, evidenciando a biopolítica, que tem como

foco a população.

Nexos entre escola e saúde a partir de uma revista pedagógica – RBEP

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Apresentarei a análise de alguns números da RBEP, mais precisamente dos cinco

primeiros anos de edição desta revista. O presente trabalho trata-se de um projeto de pesquisa

que está sendo desenvolvido para uma Tese de Doutorado em Educação, tendo como objetivo

mostrar como vêm sendo engendrados os saberes e as práticas educacionais nas escolas para

promoção e manutenção da saúde.

O ensino moderno da higiene visa ao melhoramento da vida humana.

Assim sendo, seu objetivo vai muito além da simples assimilação, pelos

educandos, de certa soma de conhecimentos. Sua finalidade última é a de

conseguir que cada indivíduo dirija sua conduta de maneira proveitosa à

própria saúde. Por isso, a instrução e as experiências que eficazmente

contribuam para a formação de bons hábitos e de atitudes sadias, e que

conduzam à compreensão dos princípios de higiene, constituem os

elementos integrantes de um programa de educação tendente a promover

o bem-estar físico e mental da infância (RBEP, Orientação Pedagógica,

v. 3, n. 9, 1945, p. 377).

No excerto acima, é fortemente sinalizada a questão do higienismo. Enfatiza,

inclusive, que o professor deve fazer com que o sujeito aprenda a gerir suas próprias condutas

de maneira proveitosa para a manutenção da saúde e prevenção da doença. Ressalta que, ao

praticar os princípios de higiene, além de promover o bem-estar físico, promove o bem estar

mental da infância. Assim sendo, a educação para saúde não está centralizada somente no

corpo, mas também na mente.

Foi a partir do século XIX que o movimento higienista se propagou pelas sociedades.

No Brasil, esse movimento surgiu em 1923, no Rio de Janeiro (Seixas, Mota, Zilbreman,

2009), quando foi criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, que propunha medidas de

saneamento moral da população, visando à construção de uma nação moderna. Um médico

higienista era especialista em saúde pública e administração sanitária. Ele não era apenas

responsável por prescrever condutas higiênicas, mas era sim considerado um educador levava

seus saberes para dentro das escolas.

A saúde é fator tão essencial a toda e qualquer experiência, que o ensino,

que com ela se relacione, não pode circunscrever-se a um mero plano

técnico de estudos. A atividade escolar, em todos seus aspectos, influi na

aquisição de hábitos e de atitudes que importam à saúde; todo professor

deverá compreender, portanto, que a sua tarefa é a de orientar os alunos no

sentido de melhorarem a própria saúde, a todos os momentos (RBEP,

Orientação Pedagógica, v. 3, n. 9, 1945, p. 377).

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O professor aqui é tido como um orientador presente para a saúde, não sendo de sua

total responsabilidade, como prossegue até os dias de hoje, sendo a saúde pertencente aos

saberes médicos. No material analisado, ainda não há indícios de a questão saúde estar

presente nos planos de ensino. Isso passou a ser implementado em 1971, a partir da

promulgação da lei 5.692/71, que definia ser “obrigatória a inclusão de Educação Moral e

Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos

estabelecimentos de 1º e 2º graus” (BRASIL, 1971).

Condições locais necessárias às escolas

Não pretendemos entrar nos pormenores desta questão, visto como hoje,

sabemos todos, a higiene escolar constitui especialidade de amplos

domínios. Sendo, porém, a tuberculose doença transmissível, é claro, pode

propagar-se aos alunos sãos e, neste particular, o tisiólogo tem o dever de

pronunciar-se sobre os locais em que edificam os estabelecimentos de

ensino coletivo, por isso que as más condições higiênicas contribuem, não

só para o enfraquecimento geral das crianças, senão também para a

disseminação daquele e de outros males. O ideal para uma escola seria

achar-se em meio de amplo terreno, em suave aclive, de sorte que se

tornasse rapidamente enxuto após as chuvas e, bem assim, possuir algumas

árvores frondosas, onde as crianças se pudessem abrigar nas horas de sol

mais inclemente (RBEP, Ideias e Debates, v. 7, n. 20, 1946, p. 241).

O periódico apresenta a preocupação com uma doença de difícil manejo na época e

que é transmitida pelo contato aéreo próximo à vítima. Assim, as condições higiênicas se

fazem sempre de extrema necessidade para evitar qualquer transmissão de doença contagiosa.

Em seus escritos sobre a medicina urbana com seus métodos de vigilância, Foucault (2016)

afirma que temos de “analisar os lugares de acúmulo e amontoamento, de tudo que, no espaço

urbano, pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou

endêmicos” (p. 158). O local onde é construída uma escola apresenta-se como um colaborador

para a não propagação de doenças. Machado et al. (1978) descrevem como seria a localização

ideal para a escola:

[...] Ela deve estar localizada de preferência nos arrabaldes da cidade, sobre as

colinas, distante dos mangues, das praias imundas e dos montes; que se edifique

sobre um terreno refratário à umidade, em local arejado e ensolarado, com ruas

largas e asseadas; que o seu meio ambiente, afastado dos vícios de conduta e de

higiene da cidade, permita o desenvolvimento da saúde física e moral das crianças

(p. 298).

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É importante salientar que a arquitetura interna também é um fator de salubridade:

janelas amplas, corredores iluminados, paredes caiadas anualmente, piso de fácil limpeza,

preferencialmente encerados para evitar absorção de líquidos. A cozinha deve ser afastada dos

locais de circulação dos alunos. A limpeza dos locais deve ser diária de acordo com a

preconização e os produtos de higiene para cada local.

Desenvolver hábitos de higiene, tais como alimentação adequada,

limpeza e regularidade de vida, constitui objetivo principal. Há inteira

liberdade de movimentos. Aparelhamentos de ginástica, sob o aspecto de

jogos, são sempre empregados para fazer com que as crianças, trepando

em barras, balançando se, exercitando-se em "box", locomovendo peças

de madeira, pulando e correndo, usem os músculos maiores, que assim se

desenvolverão bem. Intercalados nesse dia de atividade há períodos de

repouso, curtos, depois dos jogos e folguedos agitados, e mais longos

antes do almoço ou da ligeira refeição da manhã; a sesta à tarde é

obrigatória (RBEP, Ideias e Debates, v. 12, n. 32, 1948, p. 92).

A higiene, a limpeza, o ser limpo “é proteger e reforçar o corpo” (VIGARELLO,

1996, p. 253). É o que se apresenta indubitavelmente em primeiro lugar para a manutenção de

um corpo saudável. Atrelada a isso, está a alimentação adequada para tornar o corpo sadio e

nos horários estipulados. A escola deve estar atenta para isso, principalmente aquelas que

oferecem a merenda. Um corpo parado perde força muscular e torna-se mais vulnerável.

Então, “o corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com

outros” (FOUCAULT, 1987, p. 138), fazer ginástica, brincar e se mexer. As escolas da

década de 1940 já tinham a noção da educação física para o estimulo e promoção de hábitos

saudáveis, além do horário de recreio e demais brincadeiras de acordo com a idade das

crianças, respeitando seus limites.

A escola controla as atividades através do horário, horário da refeição, do descanso, de

cumprir as atividades escolares escritas, desenhadas ou físicas, da brincadeira. Conforme

Foucault (1987), o horário é uma velha herança. “As comunidades monásticas haviam sem

dúvida sugerido o modelo estrito, e ele se difundiria rapidamente. Seus três grandes processos

seriam estabelecer as cesuras, obrigar ocupações determinadas, regulamentar os ciclos de

repetição” (p. 128). O horário desde cedo foi encontrado em instituições como escolas,

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oficinas e hospitais. Ele contribui para que o corpo molde seus hábitos e, assim, favorece a

manutenção da saúde.

A escola preconiza normas de higiene: “É indispensável tomar banho

diariamente”. Mas... no morro, não há água; é preciso palmilhar,

descendo e subindo, tão extenso caminho, por vezes difíceis também, sob

a chuva ou o sol ardente, para conseguir (quando se consegue!) uma lata,

com que se vai fazer o café, o feijão, e reservar um pouco para beber.

Como desperdiçá-la em banhos? (RBEP, Ideias e Debates, v. 13, n. 35,

1949, p. 74).

A RBEP continua a apresentar a preconização pela higiene do corpo, mas questiona

como educar e solicitar a higiene do corpo, se os menos favorecidos sequer têm água para

fazer seus alimentos? Para Coimbra e Nascimento (2003),

a degradação moral era especialmente associada à pobreza e percebida como uma

epidemia que se deveria tentar evitar. Para erigir uma nação, os higienistas

afirmavam que toda a sociedade deveria participar essa “cruzada saneadora e

civilizatória” contra o mal que se alojava no seio da pobreza (p. 5).

Para Foucault (2016), no século XVIII, os pobres não representavam um perigo à

população; eles serviam como prestadores de serviços de incumbências. “À medida que

faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser

postos em questão, não podiam ser vistos como perigo” (p. 165). Foi somente no século XIX

que os pobres aparecem como perigo, tendo várias razões para isso. Uma delas foi a

propagação de doenças, como a no evento da cólera: “a cólera de 1832, que começou em

Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em torno da população proletária ou plebeia

uma série de medos políticos e sanitários” (FOUCAULT, 2016, p. 165).

Foi a partir de então que ocorreu a preocupação com os pobres e passou-se a exercer o

controle médico sobre eles, preconizando o seguinte: “um cordão sanitário autoritário é

estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade

de se tratarem gratuitamente ou sem grandes despesas, e os ricos garantindo não serem

vítimas de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre” (FOUCAULT, 2016, p. 167).

Os pobres em nosso país, porém, na grande maioria, ainda se encontram em condições

de vulnerabilidade, apesar de o Governo interferir com alguns programas de combate à

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pobreza, como bolsa família, auxílio desemprego, entre outros. As condições para o acesso à

saúde de forma gratuita é um dos grandes problemas no Brasil. Atualmente, poucos

conseguem esse acesso; os atendimentos, em muitos casos, são feitos de forma precária.

Considerações Finais

No recorte inicial para a realização desta pesquisa, noto que o higienismo é fortemente

marcado nos números da RBEP, entre os anos de 1944 e 1949, sinalizando a importância da

abordagem sobre os cuidados para a manutenção da saúde nas escolas, mesmo antes de o

tema estar instituído no currículo. Também é percebível que a saúde como um dispositivo já

era vista como importante naqueles anos, sendo um ponto fundamental entre os governantes e

a população.

A um povo deseducado é difícil ensinar-lhe os preceitos gerais de boa

eugenia e higiene, por isso merecem aplausos os governos que mandam ou

facilitam o funcionamento de escolas primárias e secundárias, que irão

iluminar o cérebro de crianças e jovens de nossas cidades e sertões,

facilitando os serviços de saúde e preparando os futuros trabalhadores e

homens do país (RBEP, Através de Revistas e Jornais, v. 10, n. 26, 1947, p.

102).

A RBEP realça que a eugenia e a higiene seriam a forma de organizar até mesmo os

centros urbanos, com projetos de cunho eugênico que pretendiam eliminar as doenças e

separar a pobreza, partindo dos ensinamentos das crianças que eram levadas às escolas, as

quais eram ditas como projetos dos governantes. Portanto, a vida biológica se converte em

projeto do governo, centrando no corpo como máquina para o funcionamento futuro do país.

O Governo e seus projetos, sem dúvida, também se realizam por uma biopolítica da

população, “pela regulação das populações, por um biopoder que age sobre a espécie humana,

sobre o corpo como espécie, com o objetivo de assegurar a existência” (FOUCAULT, 2016,

p. 29), objetivando gerir a vida do corpo social, da população existente em um determinado

país.

Muito ainda temos de analisar os números da RBEP para seguir traçando como vêm

sendo engendrado os saberes e as práticas educacionais nas escolas para promoção e

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manutenção da saúde no decorrer dos anos que seguem as publicações. Aqui, apresentei um

pequeno recorte do que está por vir.

Referências

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Higiene Mental e seu contexto histórico. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v.

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Lista de periódicos analisados

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RBEP, Ideias e Debates, v. 7, n. 20, 1946, p. 241.

RBEP, Ideias e Debates, v. 12, n. 32, 1948, p. 92.

RBEP, Ideias e Debates, v. 13, n. 35, 1949, p. 74.

RBEP, Através de Revistas e Jornais, v. 10, n. 26, 1947, p. 102.