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UM PRINCÍPIO DE CONVERSA: PENSAR A DOCÊNCIA E AS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO COM A ESCOLA PÚBLICA, COMPARTILHAR FAZERES E SABERES NA PRODUÇÃO DO CURRÍCULO Alexandra Garcia i Neila Espíndola ii RESUMO O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido das interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas. O texto é fruto da análise das ações formativas implicadas na produção do currículo de um processo de formação empreendido com dezessete municípios da serra fluminense entre os meses de janeiro a dezembro de dois mil e treze por ocasião da implementação de ações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Esse processo foi registrado com o auxílio de diferentes instrumentos e ferramentas, para que pudéssemos, não apenas empreender o trabalho, como, avaliá-lo com os professores orientadores e refletir sobre os aspectos teóricos-práticos enunciados pelos princípios e pelo trabalho no que se refere aos saberes docentes e sua produção. A partir desses registros, é possível abordarmos alguns desses aspectos nesse texto. O trabalho narra e analisa experiências e estratégias desenvolvidas durante a formação para discutir a contribuição do espaço-tempo dos encontros entre professores e entre universidades e escolas nas produções político-pedagógicas políticas voltadas para a formação. Busca, ainda, pensar o compromisso político e epistemológico da universidade na interação com as políticas oficiais além de pensar a produção instituinte de saberes, valores e práticas no currículo de uma experiência de formação.Afina-se, quanto à metodologia, a uma pesquisa-formação e busca, com isso, evidenciar e discutir as articulações de saberes que acionam/produzem os espaços de formação pautados em diálogos universidade-escolas e na produção coletiva de reflexões e intervenções. Palavras-chave: Currículo. Espaços Coletivos. Processos Formativos. O trabalho docente na contemporaneidade é impactado por demandas que extrapolam o cenário da sala de aula. Diante das constantes demandas, geralmente associadas a políticas governamentais e raramente das demandas e do tempo de cada local, os professores são impelidos a adequar-se a mudanças de cunhos diversos. Fazendo parte de uma empreitada nem sempre sua, ficam as escolas e seus sujeitos com a tarefa de implementar “alternativas” que possam ao mesmo tempo ser vistas de longe isto é, que se verifiquem em larga escala e realizar-se em curto prazo. O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido das interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas. Entendemos que tal compreensão nos traz a possibilidade de compartilhar e produzir saberes e práticas de forma mais coletiva e solidária como lógica constitutiva do trabalho Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 03943

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UM PRINCÍPIO DE CONVERSA: PENSAR A DOCÊNCIA E AS POLÍTICAS

DE FORMAÇÃO COM A ESCOLA PÚBLICA, COMPARTILHAR FAZERES E

SABERES NA PRODUÇÃO DO CURRÍCULO

Alexandra Garciai

Neila Espíndolaii

RESUMO

O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido das

interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as

pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas.

O texto é fruto da análise das ações formativas implicadas na produção do currículo de

um processo de formação empreendido com dezessete municípios da serra fluminense

entre os meses de janeiro a dezembro de dois mil e treze por ocasião da implementação

de ações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Esse processo

foi registrado com o auxílio de diferentes instrumentos e ferramentas, para que

pudéssemos, não apenas empreender o trabalho, como, avaliá-lo com os professores

orientadores e refletir sobre os aspectos teóricos-práticos enunciados pelos princípios e

pelo trabalho no que se refere aos saberes docentes e sua produção. A partir desses

registros, é possível abordarmos alguns desses aspectos nesse texto. O trabalho narra e

analisa experiências e estratégias desenvolvidas durante a formação para discutir a

contribuição do espaço-tempo dos encontros entre professores e entre universidades e

escolas nas produções político-pedagógicas políticas voltadas para a formação. Busca,

ainda, pensar o compromisso político e epistemológico da universidade na interação com

as políticas oficiais além de pensar a produção instituinte de saberes, valores e práticas

no currículo de uma experiência de formação.Afina-se, quanto à metodologia, a uma

pesquisa-formação e busca, com isso, evidenciar e discutir as articulações de saberes que

acionam/produzem os espaços de formação pautados em diálogos universidade-escolas e

na produção coletiva de reflexões e intervenções.

Palavras-chave: Currículo. Espaços Coletivos. Processos Formativos.

O trabalho docente na contemporaneidade é impactado por demandas que

extrapolam o cenário da sala de aula. Diante das constantes demandas, geralmente

associadas a políticas governamentais e raramente das demandas e do tempo de cada

local, os professores são impelidos a adequar-se a mudanças de cunhos diversos. Fazendo

parte de uma empreitada nem sempre sua, ficam as escolas e seus sujeitos com a tarefa

de implementar “alternativas” que possam ao mesmo tempo ser vistas de longe – isto é,

que se verifiquem em larga escala – e realizar-se em curto prazo.

O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido

das interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as

pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas.

Entendemos que tal compreensão nos traz a possibilidade de compartilhar e produzir

saberes e práticas de forma mais coletiva e solidária como lógica constitutiva do trabalho

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docente. A discussão que realizamos aborda as ações formativas implicadas na produção

do currículo de um processo de formação empreendido com dezessete municípios da serra

fluminense entre os meses de janeiro a dezembro de dois mil e treze por ocasião da

implementação de ações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).

Narra e analisa experiências e estratégias desenvolvidas durante a formação para discutir

a contribuição do espaço-tempo dos encontros entre professores e entre universidades e

escolas nas produções político-pedagógicas políticas voltadas para a formação. Afina-se,

quanto à metodologia, a uma pesquisa-formação e busca, com isso, evidenciar e discutir

as articulações de saberes que acionam/produzem os espaços de formação pautados em

diálogos universidade-escolas e na produção coletiva de reflexões e intervenções.

Consideramos para o trabalho de formação no Polo da Região Serrana do Rio de

Janeiro que os processos formativos acontecem nas trajetórias do exercício da profissão

e se confundem com a própria vida do professor (Nóvoa, 2007) e sua produção identitária.

Este é um processo que ocorre em múltiplos contextos (Alves, 1998) nos quais o professor

está social e culturalmente inserido e com os quais os saberes e valores que opera ao fazer

escolhas e dar sentido às suas práticas são permanentemente produzidos. Entendemos que

esse movimento precisa ter espaço garantido e orientado para sua discussão, de modo a

potencializar o processo e a permitir a reflexão intencional, política e metodológica sobre

suas bases e suas possíveis implicações, propiciando a que se construam novos

conhecimentos e ações. É na potencialização e na consolidação desse espaço-tempo para

que as interrogações, trocas e reflexões possam emergir que investimos buscando

fortalecer os diálogos que podem convergir com os processos formativos e respoder às

questões que nos colocamos sobre a educação, a escola básica, a alfabetização e a

formação de professores na contemporaneidade.

Nesse sentido, entendemos que o papel da universidade junto às políticas oficiais

extrapola a mera implementação e se faz na caracterização político-pedagógica e

instituinte do currículo produzido com o trabalho junto aos professores. A produção de

uma política, segundo Ball e Bowe (1992), é dinâmica e referenciada em diferentes

contextos que se relacionam no que chamamos de “implementação”. Os autores apontam

a articulação desses contextos através do ciclo de políticas – ferramenta de análise que

auxilia a comprender a articulação entre os contextos: da prática, de influência e da

produção de textos na produção das políticas. Entendemos que esse movimento pode ser

intensificado pelo compromisso que a universidade assume ao intervir no que seria a etapa

de implementação de uma política oficial. Essa compreensão, ao nos mostrar a

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interpenetração dos contextos na produção das políticas, mostra, ainda, como são

incontornáveis e instituintes os processos de significação que as práticas sociais e

culturais acionam.

A ação de formação desenvolvida no Polo esteve, assim, implicada em pensar o

compromisso político e epistemológico da universidade na interação com as políticas

oficiais além de pensar a produção instituinte de saberes, valores e práticas no currículo

de uma experiência de formação. Nesse sentido, as intervenções de natureza política-

epistemológica que deram forma às ações precisam ser entendidas como produtoras de

políticas e de currículo no que se refere aos saberes, sentidos, valores e práticas

partilhados/tecidos no processo. O debate com relação às noções de currículo e sobre a

produção dos currículos foi o fio condutor dos sentidos, saberes e valores envolvidos na

produção política e curricular da formação no polo. Na leitura dos documentos de

apresentação e regulamentação do pacto podemos notar que as noções de currículo com

as quais a proposta opera privilegiam entendê-lo em sua materialidade, ou seja, o objeto

currículo que pode ser descrito e operado segundo sua descrição, servindo a diferentes

fins na construção de um projeto de sociedade e de sujeito. Apesar de outras noções

estarem presentes no documento, suas apropriações se diluem em função desse sentido.

No primeiro volume da coleção intitulado: “Currículo na Alfabetização:

concepções e princípios” (MEC, 2012) o texto segue uma linha explicativa que busca

apresentar os princípios para o desenvolvimento do currículo na alfabetização. No

decorrer dos textos que a unidade apresenta as reflexões acerca do currículo centram-se

em discussões sobre “O que ensinar”, expressão não raramente presente nos volumes e

destacada no título de um dos capítulos do primeiro volume: “Concepções de

alfabetização: o que ensinar no ciclo de alfabetização” (MEC, 2012, pág. 17). A ideia de

currículo associada a uma questão de planejamento e organização de conteúdos também

está fortemente marcada pelo modo como é apresentada a síntese da discussão sobre

“Direitos de aprendizagem”, conceito central no material que serve de base à organização

dos cursos de formação dos professores orientadores e alfabetizadores. A expressão

associa-se ao acesso a conhecimentos propriamente ditos ou aos que estariam envolvidos

em promover a construção de habilidades e competências entendidas como de direito para

uma educação de qualidade. Por fim, os direitos são elencados em quadros ao final dos

volumes da unidade 1, principalmente.

Com base em tal compreensão, o desenvolvimento de nosso trabalho preocupou-

se em interrogar essa noção subjacente à expressão “Direitos de aprendizagem”, tal como

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aparece nos cadernos de formação (MEC/SEB, 2012a). Buscamos com isso evitar uma

compreensão limitadora do termo currículo afirmando que o conhecimento não constitui

objeto ao qual se tem acesso, mas sim que é produzido em movimentos complexos que

envolvem interações entre os sujeitos, as culturas e processos de significação.

Entendemos que um currículo é um espaço onde se produzem políticas, sentidos e se

disputam, entre os tantos sentidos produzidos, as imagens e representações de

“identidades sociais”. Defendemos que tais compreensões são fundamentais para que o

professor possa compreender o que efetivamente os alunos estão produzindo nas

atividades pedagógicas e possam, com isso, intervir nessa produção, com ela dialogando.

Entendemos que o modo como os processos de formação de professores podem ser

compreendidos interfere na concepção e produção dos currículos para a formação docente

e na reflexão sobre a produção efetiva dos currículos.

Desse modo, discutimos com o grupo constituído por oitenta e oito professores

das redes dos municípios do polo – responsáveis no pacto pela orientação-formação de

professores alfabetizadores em suas cidades – a concepção de currículo como produção.

Devido às questões levantadas sobre as concepções de currículo e ao formato adotado por

muitas ações e programas nacionais voltados para a formação de professores, geralmente

identificado pela expressão formação em cascata (Gatti, Sá e André, 2011), consideramos

importante discutir: o que se produz com os processos formativos; o que está implicado

em uma proposta-política de formação.

Os princípios e fudamentos teórico-metodológicos a que nos referimos na

sequência desse texto, refletem o trabalho produzido com os professores do polo. Em

nossos princípios de formação elegemos concepções e práticas que pudessem, assim,

contribuir com os processos formativos no sentido de afirmar os sujeitos desse processo

como ativos na produção de sentidos dos currículos e, portanto, co-responsáveis na

produção das políticas, sentidos e valores que as práticas educativas mobilizam. Os

princípios produzidos pela equipe do Polo “Região Serrana” dialogam e interrogam os

princípios colocados no material do MEC para o trabalho de formação com os

orientadores e alfabetizadores e com os princípios discutidos com as demais equipes dos

polos que formam a equipe do Rio de Janeiro. Constituem, assim, uma assinatura do Polo

com relação ao modo como, a partir da análise das políticas oficiais, dos aspectos

epistemológicos e metodológicos que assumem e de nossas compreensões e lutas no

campo da formação e da alfabetização, pensamos o trabalho na formação com os

professores da Escola Básica.

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São tais princípios: Diálogos universidade-escolas: a valorização dos saberes

produzidos pelos professores em suas práticas; As narrativas e a sistematização dos

conhecimentos produzidos pelos e com os professores; A experiência e a produção do

currículo; O compromisso político com a escola pública e a alfabetização dos alunos das

classes populares; As práticas como espaço de produção político-emancipatório; Os

textos culturais como recurso didático e estético; Ouvir as vozes da escola; Vivenciar os

princípios de formação nos processos formativos propostos. Os termos presentes nos

princípios sinalizam as disputas pelos sentidos de docência, formação, conhecimento e

currículo. Entendemos que a produção política não se dá em esferas exteriores à nossa

atuação. Ela é alimentada, também, por nossas práticas e sentidos que

carregam/produzem, a resistência às ditas "políticas oficiais" e ao que elas portam - em

termos de intencionalidades, valores e ideologias. Portanto, essa produção se realiza no

campo da afirmação, em nossas práticas, das produções micro-políticas cotidianas de

nossas intencionalidades, valores e saberes.

A produção do currículo com os professores do Polo, procurou, nesse sentido,

garantir espaços de encontros múltiplos que permitissem produzir deslocamentos de

representações demeritórias e fatalistas quanto às escolas e suas possibilidades

(GARCIA, 2010). Ao mesmo tempo, recorremos aos espaços dos encontros para

compartilhar os sentidos de docência e escola vividos pelos professores, que emergem ao

partilharem suas experiências, angústias, conflitos, histórias. Diferentes questões

levantadas nessa produção expressam preocupações simultaneamente políticas e

pedagógicas que se negociaram nos processos formativos vivenciados.

“Por que nossos alunos não aprenderam como esperávamos?” “Quais

são nossas responsabilidades?” “Quais não são?” “Que estratégias de

trabalho docente melhor se adequam aos nossos alunos e a que pessoas

desejamos formar?” “Como avaliar sem reprovar?” “É preciso fazer

prova para avaliar?” “O que cada um pensa sobre estes pontos?” “A que

conclusões chegamos?” “ Que compromissos podemos assumir?iii”

Destacando algumas dessas interrogações que atravessaram a formação de uma

das turmas de Orientadores de Estudo do polo percebermos como tais questões dão forma

à preocupações surgidas no trabalho dos professores em seu dia-a-dia nas escolas.

Também, precisamos considerar, ao discutir os processos formativos e seus currículos, a

pertinência de que essas preocupações sejam expressas, compartilhadas e formuladas para

que contribuam com a produção de saberes docentes e escolhas político-pedagógicas na

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produção dos currículos. Esse foi um processo que buscamos registrar com o auxílio de

diferentes instrumentos e ferramentas, para que pudéssemos, não apenas empreender o

trabalho, como, também, avaliá-lo com os professores orientadores e refletir sobre os

aspectos teórico-práticos enunciados pelos princípios e pelo trabalho desenvolvido no que

se refere aos saberes docentes e sua produção. A partir desses registros, foi possível

abordarmos alguns desses aspectos nesse texto a título de “um princípio de conversa”.

Tomamos por base as questões por nós apontadas na primeira parte do texto quanto à

formação, os objetivos da discussão e o processo vivido-narrado por uma das autoras

como formadora responsável por uma turma, como também os registros do

acompanhamento da formação no polo e das conversas com os professores orientadores

e coordenadores municipais ao longo da formação, pela outra autora como supervisora

responsável pelo polo.

Durante as discussões realizadas com uma das turmas - “Gonzaguinhaiv” – vários

momentos propiciaram que emergissem questões como as destacadas. Considerando os

princíos do trabalho e da produção do currículo nos processos formativos, as estratégias

buscaram responder de forma coerente a esses princípios. Com o grupo sempre em roda,

buscou-se iniciar as discussões/estudos sempre a partir de conceitos latentes, presentes

nas falas das orientadoras, de suas expectativas e de experiências que algumas das

professoras-orientadoras se dispunham a compartilhar. A partir daquilo que emergia,

promoviam-se os diálogos com os autores e teorias propostos pela equipe do polo para

cada um dos encontros.

Ao analisarmos a estratégia, percebemos que exigia um trabalho

permanentemente atento às compreensões tecidas pelo grupo. Por vezes percebia-se que

um ponto não tinha sido compreendido da maneira como esperávamos. A intervenção

diante dessas situações procurava manter a ideia de uma produção mais coletiva e

horizontalizada, sem que se impusessem as contribuições teóricas devolvia-se a questão

ao grupo em forma de problematização das compreensões, reformulando-se a abordagem

de noções e conceitos e, principalmente, buscando no próprio grupo a contribuição dos

parceiros para relacionar aquele novo conhecimento à experiência. Podemos considerar

que esse era um exercício implicado em rever o discutido e dar vida às teorias. Também,

confrontá-las com as práticas, experimentando suas contribuições de forma a pensar, a

partir delas, seus limites e a necessidade de formularmos questões que permitam produzir

outros conhecimentos teóricos que visem responder às novas questões colocadas pelos

desafios enfrentados por aqueles que vivem a escola cotidianamente.

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Outro aspecto que percebido nessa análise refere-se aos momentos em que

abordávamos temas polêmicos, nos quais havia divergência de concepção, como na

discussão dos métodos de alfabetização, quando buscávamos relacionar as diferenças dos

métodos com aquilo que se esperava alcançar com os estudantes. O que se confrotava não

eram as posições divergentes, mas os próprios temas com relação aos métodos, estratégias

e tipo de trabalho que mostravam-se mais orientados para alcançar objetivos mais amplos

na educação. Esse processo permitia ouvir as diferentes vozes em suas dissonâncias, sem

que o diálogo levasse à anulação de ideias ou práticas, mas mobilizando as revisões e

questionamentos dos objetivos, princípios e ações. Nesses momentos as reflexões

coletivas também necessitavam se debruçar sobre determinados jargões que repetimos

em nossos discursos e vemos presentes em muitas políticas voltadas para a educação.

Embora muitas vezes guardem objetivos políticos socialmente relevantes, os jargões

acabam por esvaziar-se desses sentidos por repetições de formulações esteticamente

desgastadas e pouco problematizadoras. O que queremos, afinal, quando falamos em

“formação de cidadãos críticos e autores de suas histórias”? O que entendemos por

“formar cidadãos”? Esse processo, não era tranquilo ou consensual mas, buscava-se

dialogar debatendo os diferentes “pontos de vista”. Algumas vezes, também, as premissas

das diferentes posições precisavam vir à tona, num exercício ora de tradução entre

diferentes sentidos, valores e visões de sociedade, ora de deslocamento desses elementos

nos embates, das concepções e posições iniciais. É importante destacar, que o objetivo

dos diálogos e questionamentos era o exame das premissas e implicações dos diferentes

discursos, posicionamentos e saberes que possibilitasse a cada um a produção de

compreensões, saberes e práticas afinados com os entendimentos políticos e pedagógicos

que defendiam.

Segundo Larrosa (2004), na sociedade contemporânea a experiência é,

frequentemente, substituída pela opinião. Com isso, os processos de produção cotidiana

de conhecimentos e valores também sofrem essa prática social (cultural) da busca de

opiniões, nas quais pautam-se alguns discursos e ações. Quando a informação e a opinião

se sacralizam, muitas vezes num esforço pela hegemonia do pensamento, o sujeito reduz-

se a um suporte informado da opinião pública ou individual. Um sujeito incapaz de

experiência (Larrosa, 2004), posto que opinar reduz-se, com frequência, a estar contra ou

a favor de uma informação que recebemos.

Estamos permanentemente empenhados em fazer coisas e esse fazer,

especialmente quanto ao trabalho, associa-se ao mudar as coisas. Nesse afã que nos

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impossibilita parar, marcante da profissão docente, são raras as oportunidades de que algo

nos passe. Assim, a relevância de buscar-se espaços e recursos de deslocamento das

concepções e representações de docência, bem como de fugir a respostas essencialistas e

universalizantes para pensar a formação docente vai ao encontro da ideia de, com nossas

pesquisas e ações na formação de professores, criar um espaço epistemológico, político e

metodológico capaz de reabilitar os sentimentos e as paixões enquanto forças

mobilizadoras da transformação social (SANTOS 1995, p. 332).

Uma das compreensões a que pudemos chegar, revisitando todo esse processo nos

leva a reconhecer, nas múltiplas experiências diárias, fragmentos de histórias vividas e

possibilidades de criação de diferentes histórias que se potencializam nas negociações de

sentidos e através dos diálogos que acionam as redes de saberes-fazeres em um coletivo.

Ao compartilhar as memórias de alfabetização, por exemplo, cada orientador ou

orientadora pôde colocar-se na posição de autor de sua história e do seu trabalho. Ouvir

as experiências vividas pelos companheiros da turma promoveu também o respeito à

alteridade necessário para quem atua com os professores. Consideramos, assim, que

relatar e ouvir experiências possibilitou um rico movimento de repensar as práticas de

trabalho. Segundo relatos apresentados pelas orientadoras, realizar esta atividade em seus

municípios também provocou e instigou as professoras a reverem seus conceitos e

práticas. Uma das orientadoras registra assim a participação nas discussões:

(...) E um dos momentos mais marcantes tanto nos encontros no meu

município quanto em minha formação é perceber que quem mais tem

contribuído em meu crescimento são aquelas pessoas com uma história

de vida “menos favorecida”. Elas se colocam e contribuem de forma

muito mais consistente à luz das teorias. Enquanto pessoas “ditas” mais

esclarecidas ficam procurando palavras para se colocarem, quero dizer

“falar bonito” e nem sempre se fazem compreendidas, pessoas mais

simples relatam com humildade fatos e informações que realmente

fazem parte do cotidiano de nossas escolas e com um grau de

esclarecimento incontestável. E assim, me levam a refletir sobre a

concepção de linguagem em nossa formação. É inacreditável como tal

conceito se fez presente nesses momentos de formação.(E.)

Afirmamos que ao operar os sentidos políticos, metodológicos e epistemológicos

do documento oficial que serve de base à formação dos professores orientadores, os atores

envolvidos na produção das políticas efetivas de formação são também autores da

produção curricular que emerge com o trabalho dos membros do polo. Pensar os campos

de conhecimento a serviço das questões políticas e sociais exige da universidade pública

reiterar seu compromisso com a escola pública. Também traz para nós, professores,

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implicações no modo como entendemos a produção dos currículos nos processos de

alfabetização e os diálogos necessários com os sujeitos que fazem as escolas a cada dia e

suas questões. Um currículo como espaço de produção cultural e política é o espaço da

opção, da criação e da afirmação daquilo que apostamos e investimos como política de

educação e conhecimento. O currículo produzido com o polo permitiu que muitas ações

fossem planejadas, compartilhadas e efetivadas nos municípios e entre eles, desde a troca

de sugestões de dinâmicas que mobilizam os professores, ao planejamento das formações

e de projetos. Pensar os processos formativos a partir das produções e experiências das

pessoas que dão vida e sentido às escola consiste num exercício processual de fazer e

pensar a formação docente e os currículos. Um processo onde a experiência e a teorização

das práticas curriculares e formativas podem ser entendida a partir do desafio que nos é

colocado no fazer cotidiano das escolas de ler um mundo móvel e multiforme (Calvino,

1996).

“E há quanto tempo não tínhamos uma política de Estado para formação de

professores em Alfabetização?!” Muitos professores, embora tenham existido ações

recentes voltadas para a formação e, em especial, para professores alfabetizadores, não

guardavam lembranças dessas ações terem alcançado muitos dos municípios do Polo.

Nesse sentido, vários professores, no papel de orientadores de estudos, sentiram-se

valorizados com o espaço e os processos desenvolvidos, apesar dos inúmeros problemas

operacionais com os quais tivemos que lidar e que muitas vezes comprometiam a

formação, além das tantas questões políticas, epistemológicas e metodológicas que o

programa suscitou entre pesquisadores e professores no país.

Estar junto a outros colegas, ser ouvido, ouvir, pensar junto, compartilhar

experiências, entre tantos outros movimentos provocados e possibilitados pela ação foram

alguns dos sentimentos evocados pelos professores em suas avaliações. Consideramos

que é importante salientar a partir dessa experiência o compromisso necessário às

políticas em educação da garantia e do investimento em espaços-tempo de formação e de

lógicas para políticas voltadas para formação continuada que permitam o protagonismo

dos professores na produção coletiva de outros-novos sentidos para o fazer-saber docente,

renovando o compromisso político com a escola pública permanentemente. Entendemos,

portanto, que é possível pensar os processos e ações formativas que nos possibilitem

novas modalidades de socialização/formação pessoal e profissional [em] (...) coletivos

entendidos como espaço de reflexão e intervenção, de socialização de experiências

(PRADO e CUNHA, 2008, pág. 133/134).

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Dentre os sentidos que mais emergiram nas avaliações dos professores ao final

desse processo, o sentido político certamente foi uma “marca” da experiência vivenciada

e do currículo produzido com o Polo. É o que podemos destacar na avaliação de uma das

professoras:

(...) o meu envolvimento com o PNAIC, me fez deletar todas e

quaisquer intenção do governo, seja ela com o intuito de perpetuar o

ciclo do analfabetismo, ou maquiando resultados por meio de índices

que apontam apenas a quantidade de aprovados e não a qualidade do

ensino ofertado. Decidi acreditar e fazer o que realmente precisa ser

feito: repensar, rever, reformular e propiciar caminhos para novas

práticas escolares. E foi assim que trabalhamos nesse semestre,

pensando em somente em oferecer o melhor para nossos alunos, daí a

importância de estarmos em busca de conhecimentos, não medimos

esforços, passamos por várias dificuldades para buscarmos informações

para nossos professores. Nossos encontros em Friburgo nos tem

propiciado estarmos melhores preparados para suprir as necessidades

dos nossos professores. (A.)

Ainda sobre o movimento produzido sob os efeitos dos processos vivenciados na

formação e com os saberes e sentidos que o currículo pôde tecer a partir das diferentes

redes de saberes-fazeres dos professores que compunham o Polo, nos chamou a atenção

a mobilização política. Diante das questões que emergiam nas discussões com relação aos

espaços de formação e os compromissos políticos com a educação, tivemos relatos de que

em algumas localidades foram desenvolvidas ações que para os professores refletiam

posicionamentos e conquistas políticas importantes. Algumas gestões municipais

assumiram o pacto como política de governo local, implementando o pagamento de

bolsas para professores regentes responsáveis por turmas em ano de escolaridade não

contempladas no âmbito do Programa Nacional. Outra ação relatada por orientadores de

estudo e que se destacou foi a inclusão de diretores das escolas municipais e orientadores

pedagógicos nas discussões.

A necessidade da superação dos limites colocados pela cisão entre prática e teoria

nos modos de pensar a escola e a formação docente torna-se, desse modo, fundamental

para entender-se a escola como espaçotempo prático e da prática (ALVES, 2002) em que

a teoria é tecida ao mesmo tempo em que se busca criar soluções para atender a problemas

em uma dada circunstância e contexto, locais e datados. Essas “respostas” e os saberes

que com elas emergem são, assim, provisórios e parciais, mas de grande importância para

entender a produção dos conhecimentos nos cotidianos das escolas. Portanto, a

(re)valorização da prática, tão comum em textos e pesquisas que defendem o cotidiano

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como espaço-tempo de criação configura-se como uma defesa da indissociabilidade entre

os conhecimentos teóricos e os práticos (GARCIA, 2012).

Quanto a isso, analisando o trabalho desenvolvido, é possível considerarmos que a

produção curricular procurou aliar as práticas pedagógicas à necessidade de discussão

coletiva das políticas desenvolvidas nos municípios em relação à alfabetização, em

relação à formação dos professores, em relação à carga horária de trabalho docente, em

relação à organização da carreira do magistério, em relação à educação. O exercício de

adentrar essas questões poderia ser entendido como “frentes de atuação da equipe”, o que

de fato foram na operação dos princípios da formação no polo. Sobretudo, o currículo

produzido com essas frentes esteve implicado em viver no processo de formação a

complexidade e a indissociabilidade dos aspectos políticos-epistemológicos-

metodológicos da educação e do fazer pedagógico.

Consideramos, assim, que os currículos que mobilizamos podem contribuir para

tecer com os professores sentidos que reinventem as noções de docência, de escola e de

alfabetização na interação entre professores, que se estendam em nossas redes formativas

aos alunos e às escolas. Desse modo, os Currículos são entendidos como espaçostempos

(ALVES, 2008) de problemas, interrogações e experiência, aproximações solidárias de

saberes, em diálogos com as práticas cotidianas. Defendemos, no contexto dos debates e

pesquisas sobre a formação de professores, a escola pública e o currículo, a necessidade

de que as políticas oficiais de educação sejam pensadas em sua totalidade, não se

restringindo a políticas voltadas para níveis e segmentos em separado e pautadas na

valorização, interlocução e produção com as práticas docentes dos conhecimentos e

ferramentas do processo educacional, tendo em vista uma escola de todos e para todos. É

um pouco desses aspectos, entre tantos outros que poderímos destacar no trabalho

realizado e aqui parcialmente revisitado e analisado, que vemos emergir em imagens e

narrativas dos currículos produzidos com os professores que deram vida e identidade ao

trabalho político e pedagógico do Polo Região Serrana.

Referências:

ALVES, N. Trajetórias e redes na formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A,

1998.

BALL, Stephen J., BOWE, Richard (1992). Subject departments and the

“implementation” of National Curriculum policy: an overview of the issues. Journal of

Curriculum Studies, v. 24, n. 2, p. 97-115.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 303953

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i Professora adjunta da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(FFP/UERJ). Membro do Grupo de Trabalho: Currículo (ANPEd). ii Professora das Séries Iniciais e membro do Conselho superior do Colégio Pedro II. iii Questões levantadas por professores participantes e pela equipe de formação do Polo. iv Para o cadastro das turmas na plataforma do pacto foi solicitado que cada formador escolhesse um nome

para sua turma. Os nomes escolhidos para as turmas do Polo Região Serrana foram: Gonzaguinha; Cartola;

Clara Nunes; Candeia. O fato de serem os nomes-homenagens ligados à música e cada uma das escolhas

feitas já nos permitiria desfiar outra discussão a respeito dos currículos como produção-composição e

quanto ao que há de sentido coletivo compartilhado nessa produção.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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