Um signo arisco (Derrida - Bergstein) - Leyla Perrone-Moisés

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  • 8/14/2019 Um signo arisco (Derrida - Bergstein) - Leyla Perrone-Moiss

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    Um signo arisco (Derrida Bergstein)13/Jun/98Leyla Perrone-MoissJACQUES DERRIDA

    O que o subjtil? a pergunta que fazemos, ao ler esse ttulo; a mesma que vai percorrertodo o texto de Derrida, levando-nos, curiosos, em seu encalo. Pergunta que no serrespondida por um , mas por um pode ser, com a nfase posta no verbo poder.Examinando a fora e as virtualidades implicadas nesse "poder ser", Derrida costura, com aminudncia e a argcia que caracterizam suas leituras, fragmentos de Antonin Artaud etece, a partir deles, um belo texto sobre a arte e a loucura, ou melhor dizendo, sobre ointervalo entre a subjetividade e a objetividade no qual a arte se engendra.

    Embora a palavra subjtil parea ser um daqueles neologismos de que usaram e abusaramos tericos dos anos 60, na verdade ela antiga e tem um significado preciso, tcnico.Derivada do latim "subjectus" (colocado embaixo), foi usada, no Renascimento italiano,para designar uma superfcie servindo de suporte a uma pintura (tela, parede ou painel). Apalavra subjtil aparece em trs textos de Artaud, datados respectivamente de 1932, 1946 e1947. Nas trs ocorrncias, trata-se de textos ilustrados ou de desenhos comentados. Entreessas datas, "desde um determinado dia de outubro de 1939, nunca mais escrevi semtambm desenhar", diz Artaud. Acontecimento aparentemente tranquilo, mas com fundasimplicaes e graves consequncias para o sujeito a quem isso acontece.

    Podemos evocar, guisa de informao, os momentos da atribulada biografia de Artaud emque se inserem esses textos. Em 1932, j haviam malogrado seus projetos de fundar umteatro, ou mesmo de poder apresentar regularmente suas encenaes, restando-lhe apenas orecurso de expor verbalmente suas idias teatrais. Em 1946, ele recuperara a liberdade,depois de nove anos de internamento em vrios hospcios, dos quais sara destrudo, fsica ementalmente. Nesse nterim, escrevera e publicara duas obras importantes: "O Teatro e SeuDuplo" e "No Pas dos Tarahumaras". O ano de 1947, data da terceira ocorrncia, o anode publicao de "Artaud le Momo" e "Van Gogh, le Suicid de la Socit"; tambm o desua rumorosa conferncia-libelo no teatro do Vieux-Colombier e de sua exposio dedesenhos na Galerie Pierre.

    Derrida no segue esse percurso biogrfico, mas o pressupe conhecido. As sucessivas erecomeadas estratgias do filsofo, que traz baila outros textos de Artaud, em particularaqueles acerca de Van Gogh, vo-nos dando pistas de leitura. A perseguio do subjtilsubmete o leitor a um tempo de aproximao que , tambm, um tempo de cogestao doobjeto perseguido. Um tempo ou um percurso que, o leitor ver, ter valido a pena. Noporque, ao fim da leitura, se saiba literalmente o que o subjtil. Mas porque ao cabo dessetrabalho efetuado por Derrida sobre o significante "subjtil", ns efetivamente oconhecemos ou reconhecemos. Afinal, o prprio Artaud jamais disse que o subjtil era umacoisa, mas referia-se a ele como "o que chamado de subjtil".

    O subjtil aparentemente estvel (ele suporte); mas o prefixo "sub" o esconde, e aterminao "til" o coloca em brusco movimento, como um projtil; "entre jazer e lanar".

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    preciso pois persegui-lo, como num jogo de adivinhao, ou na caada de um objeto sutile mesmo traioeiro. Pois, como diz Artaud, na carta de 1932: "Incluo nesta um desenhoruim em que isso que se chama subjtil me traiu". Como? Ainda nem bem sabemos o que

    o subjtil, e j temos de levar em conta que ele, assim como pode ser enlouquecido, podetrair. Uma leitura linear poderia estabelecer uma gradao, da traio loucura. A "traio"do subjtil, de 1932, teria sido a perda de um controle exercido pela razo, e um aviso da"dilapidao do subjtil" (como disperso e perda do sujeito), referida em 1946, a qual teriasido seguida de um trabalho agressivo e curativo em 1947.

    Embora vivel, tal leitura cronolgica corresponderia pacificao de um signo arisco, quese situa aqum e alm da expresso verbal. A palavra subjtil excede lngua, intraduzvel. A questo da intraduzibilidade do termo tratada em vrios nveis porDerrida. O fato de seu prprio texto, este que estamos lendo, ter sido escrito para serpublicado em traduo alem, um desses nveis. Para Artaud, tratava-se de detonar a

    linguagem, de desvi-la de sua funo utilitria.

    Derrida observa a o uso da palavra latina, subjtil, para dizer o no-latino, isto , oanticlssico, o anticartesiano, e saboreia de antemo a interveno, talvez o"enlouquecimento", a que ter de ser submetido seu texto ao ser vertido para o alemo. PoisDerrida partilha, com Artaud, a desconfiana quanto s "idias claras" que, segundo este,so "idias mortas e acabadas".

    As relaes entre escritura e desenho so traadas (seria inadequado dizer examinadas) porDerrida. Artaud pretendia "abandonar o princpio do desenho", o princpio darepresentao, e buscar uma expresso que no fosse a do eu subjetivo, mas que

    correspondesse produo de uma realidade nova, uma expulso, um nascimento. Derridaobserva que Artaud no escreve sobre seus desenhos, mas diretamente neles, escritura edesenho imbricados em busca da "natureza nua, a pura viso". O que se chamahabitualmente de loucura, mas, quem sabe, devesse ser chamado de resgate. O subjtil,tratado e mal tratado nessa escritura-desenho, revela-se como louco de nascena, para abrirpassagem ao inato que um dia foi a assassinado.

    Estamos cada vez mais perto de um saber do subjtil. O subjtil o lugar de uma luta, deum duelo; leito, lugar de nascimento e de morte. Seria o subjtil aquilo que chamado deinconsciente? Derrida se exime de o positivar como tal. Mas o modo como ele descreve asforas condensadas no subjtil, entre as superfcies do sujeito e do objeto, oferecendo

    resistncia e revelando, somos tentados a cham-lo assim. Maltratado/trabalhado, o subjtil"nunca se queixa, por pai ou por me", escreveu Artaud. Porque maltrat-lo, elucidaDerrida, rasg-lo e costur-lo a um s tempo, como numa operao cirrgica: ferir,costurar, cicatrizar, curar.

    Outra aproximao do subjtil, explicitamente sugerida por Derrida, efetua-se por meio danoo platnica de "khora". Desde 1968, num texto que se tornaria muito conhecido, citadoe explorado ("A Farmcia de Plato", Ed. Iluminuras), o filsofo trouxera a tona essanoo, que aparece no "Timeu". E retomou-a em 1993 num livro ("Khra", Galile). A"khora" o lugar da inscrio originria das formas, uma terceira instncia entre o modeloe a cpia, entre o mundo das Idias e o mundo real.

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    Receptculo, matriz, me, ama-de-leite, tais so as metforas utilizadas por Plato paradefinir a "khora": "Ela recebe sempre todas as coisas, e nunca adquire uma figura

    semelhante s que nela entram (...); ela posta em movimento e recortada em figuras pelosobjetos que nela penetram"; ela suporte e portadora de impresses, infinitamente plsticae geradora. Exatamente como o subjtil: "Nem objeto nem sujeito, nem tela nem projtil, osubjtil pode tornar-se tudo isso, estabilizar-se sob essa ou aquela forma ou mover-se sobqualquer outra". Essa possibilidade de um "terceiro gnero" foi sempre buscada porDerrida, como meio de quebrar o dualismo da metafsica, de forar a abertura darepresentao. "O subjtil tudo isso e Antonin Artaud. E eu."

    Outro ponto em que se manifesta um prosseguimento, via Artaud, do pensamentoderridiano, o que diz respeito relao entre loucura e verdade: "O homem doente.Artaud diz a verdade". Desconstrudo e desconstrucionista "avant la lettre", Artaud

    questionou a representao e arrancou, de seu sofrimento, uma verdade. Que tipo deverdade? o que Derrida tem buscado, pacientemente; o que o subjtil revela, dissimula,produz, quando o sujeito-artista enlouquece.

    O denso texto de Derrida, cuidadosamente traduzido, encontrou um belo "subjtil" (aqui nosentido original de suporte material) neste volume projetado e desenhado por LenaBergstein. Ouvinte e leitora sensvel do filsofo, a artista brasileira recorta fragmentos deseu texto, reacomoda-os em colagens. Assim como Derrida no pretende escrever comoArtaud, o que seria uma "contoro mimtica", Lena no desenha como ele, nem escrevecomo Derrida. Ela dialoga com ambos. O dilogo pictrico com Derrida se prolonga, pormeio deste, com Artaud, de quem Lena cita os procedimentos (rasgar, queimar, costurar); e

    por meio de Artaud, com Van Gogh, no uso do ouro bronzeado como cor dominante.

    Leyla Perrone-Moiss crtica literria e coordenadora de pesquisas no Instituto de EstudosAvanados da USP.

    Copyright 1994-1999 Empresa Folha da Manh S/A

    PERRONE-MOISS, L. . Um signo arisco (Derrida - Bergstein). Caderno de Resenhas, Folha de SoPaulo, p. 7, 13 jun. 1998.