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1 "Um sonho não tem preço": Profissionalização no mercado de casamentos Érika Bezerra de Meneses Pinho PPGAS-UFRGS RESUMO No presente artigo, proponho uma reflexão sobre a consolidação do campo profissional dos cerimonialistas e organizadores de casamentos, a partir de uma pesquisa etnográfica. A pesquisa incluiu visitas a feiras do setor e a realização de algumas entrevistas com profissionais, mas sobretudo a análise de documentos escritos: artigos publicados na imprensa, falas a favor da regulamentação publicadas em sites, blogs e páginas de redes sociais e os textos de três projetos de regulamentação profissional propostos à Câmara dos Deputados entre os anos de 2002 e 2009, assim como os pareceres contrários e favoráveis às matérias em questão. No Brasil, a realização de ritos de casamentos cada vez mais elaborados estimula o crescimento de um mercado especializado altamente lucrativo. Nesse contexto, os profissionais responsáveis pela organização de casamentos se veem diante de desafios referentes à consolidação de um campo profissional marcado por um habitus específico (BOURDIEU, 2007). No caso do campo profissional dos cerimonialistas e "assessores de casamentos", está em jogo a própria definição do campo: quem, afinal, pode ser considerado um profissional do setor e o que o distinguirá do leigo? A construção discursiva da figura do leigo, e as disputas em torno da atribuição de preços aos serviços prestados também são abordados nesse artigo. Palavras-chave: profissionalização - indústria de casamentos - etnografia Introdução No presente artigo, proponho uma reflexão sobre a consolidação do campo profissional dos cerimonialistas e organizadores de casamentos, a partir de uma pesquisa etnográfica. A pesquisa incluiu visitas a feiras e mostras do setor e a realização de algumas entrevistas com profissionais, mas sobretudo a análise de documentos escritos: artigos publicados na imprensa, falas a favor da regulamentação publicadas em sites, blogs e páginas de redes sociais e os textos de três projetos de regulamentação profissional propostos à Câmara dos Deputados entre os anos de 2002 e 2009, assim como os pareceres contrários e favoráveis às matérias em questão. Nas páginas

Um sonho não tem preço: Profissionalização no mercado de ... · Informalidade, flexibilidade: fatores de atração Para além do crescimento do mercado, outros aspectos contextuais,

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"Um sonho não tem preço": Profissionalização no mercado de casamentos

Érika Bezerra de Meneses Pinho

PPGAS-UFRGS

RESUMO

No presente artigo, proponho uma reflexão sobre a consolidação do campo profissional

dos cerimonialistas e organizadores de casamentos, a partir de uma pesquisa

etnográfica. A pesquisa incluiu visitas a feiras do setor e a realização de algumas

entrevistas com profissionais, mas sobretudo a análise de documentos escritos: artigos

publicados na imprensa, falas a favor da regulamentação publicadas em sites, blogs e

páginas de redes sociais e os textos de três projetos de regulamentação profissional

propostos à Câmara dos Deputados entre os anos de 2002 e 2009, assim como os

pareceres contrários e favoráveis às matérias em questão. No Brasil, a realização de

ritos de casamentos cada vez mais elaborados estimula o crescimento de um mercado

especializado altamente lucrativo. Nesse contexto, os profissionais responsáveis pela

organização de casamentos se veem diante de desafios referentes à consolidação de um

campo profissional marcado por um habitus específico (BOURDIEU, 2007). No caso

do campo profissional dos cerimonialistas e "assessores de casamentos", está em jogo a

própria definição do campo: quem, afinal, pode ser considerado um profissional do

setor e o que o distinguirá do leigo? A construção discursiva da figura do leigo, e as

disputas em torno da atribuição de preços aos serviços prestados também são abordados

nesse artigo.

Palavras-chave: profissionalização - indústria de casamentos - etnografia

Introdução

No presente artigo, proponho uma reflexão sobre a consolidação do campo

profissional dos cerimonialistas e organizadores de casamentos, a partir de uma

pesquisa etnográfica. A pesquisa incluiu visitas a feiras e mostras do setor e a realização

de algumas entrevistas com profissionais, mas sobretudo a análise de documentos

escritos: artigos publicados na imprensa, falas a favor da regulamentação publicadas em

sites, blogs e páginas de redes sociais e os textos de três projetos de regulamentação

profissional propostos à Câmara dos Deputados entre os anos de 2002 e 2009, assim

como os pareceres contrários e favoráveis às matérias em questão. Nas páginas

2

seguintes, como contextualização para a discussão que se segue, é apresentado um

panorama do crescimento do setor de mercado de eventos de casamentos, em que atuam

os profissionais de que tratará esse artigo.

Um mercado em crescimento

No Brasil, a realização de ritos de casamentos cada vez mais elaborados estimula

o crescimento de um mercado especializado altamente lucrativo.A amplitude de que se

revestem os ritos de casamento no país pode ser facilmente constatada quando se

observa o crescimento da oferta de serviços e produtos especializados nesse tipo de

evento. Para denominar esse emergente e abundante mercado, popularizou-se, na

abordagem midiática, o termo empírico “indústria do casamento”, cuja expansão é

tendência confirmada por pesquisas recentes. Segundo o Instituto de Pesquisas Data

Popular, em estudo encomendado pela Associação dos Profissionais para Casamentos e

Eventos Sociais (Abrafesta)1, a escalada da comercialização de produtos e serviços

especializados movimenta um mercado que cresceu 400% nos últimos cinco anos. O

valor médio investido por evento seria de cerca de 14.400 reais, número que cresceu

cerca de 52% entre 2003 e 2009. Ainda de acordo com a entidade, o segmento de

casamentos movimenta, anualmente, cerca de R$ 14 bilhões.

Os festejos de casamentos podem ser observados, assim, como um rito

contemporâneo cuja realização tem se transformado e complexificado nos últimos anos.

Nesse contexto, observa-se que a flexibilidade do ritual viabiliza o crescimento do

mercado, com a emergência de novas ritualizações em torno do casamento. A cada ano,

verifica-se a invenção de novas tradições, algumas das quais se consolidam como novas

etapas da sequência ritual, a exemplo da popularização de festas que precedem o

casamento, como os chás temáticos e as despedidas de solteira. Como verificou Martine

Segalen, estudando os ritos contemporâneos de união no cenário francês, as bodas se

constituem atualmente como "um ritual com flexibilidades até então desconhecidas, que

permitem então aos casais encenar o seu próprio casamento" (SEGALEN, 2002, p. 58).

O maior grau de elaboração dos ritos de casamento, refletido no crescimento do

mercado especializado, contudo, não significa que o casamento seja uma tradição em

crescimento no contexto brasileiro. As estatísticas de nupcialidade no país mostram a

1 Fonte: http://odia.ig.com.br/noticia/economia/2013-12-12/mercado-de-festas-cresce-400-e-gera-

lucro-aos-empreendedores.html

3

tendência contrária, de redução no número de casamentos e aumento nas uniões

informais. Os ritos de casamento no Brasil atual se inscrevem no contexto de uma

ordem matrimonial muito diversa daquela existente há quarenta anos, no mesmo país.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as taxas de

nupcialidade sofreram uma rápida queda desde a década de 1970. A tendência de

redução só foi revertida há pouco mais de uma década: desde o ano de 1999, as

estatísticas do Registro Civil marcam um novo aumento no número de casamentos, mas

nada comparável aos índices anteriores.

Outras mudanças que devem ser pontuadas dizem respeito ao perfil das pessoas

que decidem se casar, a exemplo do aumento da idade média dos noivos e do maior

número de casais com filhos anteriores à união. Desde 2002, de acordo com as

estatísticas do Registro Civil, cresce o número de casamentos no grupo das mulheres

entre 30-34 anos (de 11,5‰ em 2002 para 20,2‰ em 2012). A taxa de nupcialidade

para as mulheres de 20 a 24 anos, ao contrário, apresenta tendência de declínio. Os

dados apontam a tendência de que as brasileiras demorem mais a oficializar suas

uniões2.

Em suma, é possível afirmar que, no Brasil, a tendência é que as pessoas casem-

se menos e mais tardiamente, mas que os festejos sejam realizados com maior pompa.

Paradoxalmente, é nesse contexto, de queda no número de casamentos e tendência de

adiamento na formalização das uniões que cresce o mercado especializado nesse tipo

de eventos.

As atualizações nos ritos em questão fazem de um evento de casamento atual

algo bastante elaborado. Um procedimento bastante comum entre profissionais

especializados é a entrega de check lists aos consumidores, logo no primeiro contato.

Idealizados como instrumentos para auxiliar os noivos na tarefa de organização que os

espera, as listas de produtos a providenciar e serviços a contratar facilmente ultrapassam

os cinquenta itens. O festejo de casamento contemporâneo, conforme atestam as listas

aqui citadas, tornou-se um empreendimento cujo sucesso depende de inúmeros

profissionais: decoradores, músicos, fornecedores de alimentos, proprietários de buffets,

designers de convites, joalheiros, estilistas, locadores de carros, cerimonialistas,

2 Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira:

2010, p. 138.

4

fotógrafos, cinegrafistas, agentes de viagem. Os cerimonialistas, assessores ou

organizadores de casamentos3, prestadores de serviços cuja profissionalização é objeto

desse artigo, desenvolvem a complexa tarefa de coordenar os esforços de todos os

fornecedores supracitados, com vistas à realização do evento em questão.

Informalidade, flexibilidade: fatores de atração

Para além do crescimento do mercado, outros aspectos contextuais, referentes à

organização das relações de trabalho no momento atual, se tornam fatores de atração de

novos profissionais para o campo dos organizadores de eventos. Em conversas

informais com mulheres que ingressavam na profissão de organizadoras de eventos4, a

possibilidade de iniciar um negócio e de definir as próprias condições de trabalho foi

apontada como uma importante motivação para o interesse no mercado de festas.

Insatisfeita com o trabalho em uma empresa de Recursos Humanos, uma das

participantes de uma palestra para profissionais de eventos sociais5 me afirmou que se

sentia explorada em seu emprego atual e que via, no mercado de eventos, a

possibilidade de "começar a trabalhar para si mesma, e não para os outros". O ingresso

no mercado de organização de eventos é compreendido, pelos sujeitos que por ele

optam, como a possibilidade de atuar como um trabalhador empreendedor, criativo e

responsável, uma alternativa a outras funções mais próximas de um paradigma taylorista

de produção. Desse modo, é a própria informalidade do trabalho que se torna fator de

atração, dada a possibilidade de produção até mesmo no ambiente doméstico, assim

como o trabalho por projetos. Nesse sentido, o trabalho dos organizadores de

casamentos pode ser compreendido dentro do viés da "nova informalidade" (LIMA,

2006), de que participam também trabalhadores escolarizados e qualificados, que

passam a deixar o mercado formal. Uma importante mudança recente na compreensão

das relações de trabalho, de acordo com esse autor, é a visão da informalidade, pelos

sujeitos, como algo positivo, produto de uma flexibilização das formas de trabalho.

Antes visto como sinônimo de subdesenvolvimento e de atraso social, o trabalho

informal passa a ser compreendido sob um viés positivo, não mais ligado ao atraso

3 Optei, nesse trabalho, por utilizar as três nomenclaturas de forma intercambiável.

4 Em eventos como a II Mostra Noivas, ocorrida em Porto Alegre, no Centro de Convenções do Barra

Shopping Sul, de 03 a 06 de abril de 2014. Durante a Mostra, foram promovidos palestras e workshops voltados para profissionais de eventos sociais. 5 Palestra para profissionais de eventos, durante a II Mostra Noivas, em Porto Alegre, em abril de 2014.

5

econômico, mas sim atribuído ao caráter empreendedor da população (LIMA, 2006, p.

306).

Como uma das hipóteses iniciais dessa pesquisa, proponho que o trabalho dos

organizadores de eventos, sobretudo quando realizado em pequenas empresas calcadas

no empreendedorismo, se enquadra nos ideais que tem marcado o espírito do

capitalismo nas últimas décadas. Conforme proposto por Boltanski e Chiapello (2009),

esse novo espírito corresponde a mudanças profundas nas formas de gestão empresarial

e nos processos econômicos, que resultam da satisfação de certas críticas e consequente

fortalecimento do sistema como um todo. No caso dos organizadores, sobretudo aqueles

que trabalham de forma autônoma, é possível constatar algumas das principais

inovações correspondentes às novas formas de gestão descritas pelos autores: "empresas

enxutas a trabalharem em rede com uma multidão de participantes, uma organização do

trabalho em equipe, ou por projetos, orientada para a satisfação do cliente, e uma

mobilização geral dos trabalhadores graças às visões de seus líderes" (BOLTANSKI e

CHIAPELLO, 2009, p. 102). Tratam-se de novas formas de gestão empresarial,

propostas desde os anos 1990, que se apresentam aos trabalhadores como uma resposta

a aspirações de autonomia, mas que podem também ser vividas sob o signo da

instrumentalização, a partir de um engajamento irrestrito à atividade laboral.

Para os sujeitos que buscam ingressar no mercado de eventos, a informalidade é

compreendida como uma possibilidade de organização do próprio tempo e de condições

mais satisfatórias de vida, frente àquelas oferecidas pelo trabalho formal. Essa

positividade, contudo, pode se revelar restrita, sobretudo em função das exigências de

um trabalho em que não há limitações impostas exteriormente à produtividade e à

quantidade de horas trabalhadas. Assim, vemos assessoras de casamentos que trabalham

tantas horas quanto possível, de modo a firmar sua presença em um mercado percebido

como muito competitivo. Da mesma forma, a condição de informalidade tende a

dificultar a construção de uma identidade coletiva da categoria profissional em questão,

composta por trabalhadores que desenvolvem suas atividades de maneira autônoma. As

tentativas e dificuldades na construção de entidades representativas dessa categoria

profissional são abordadas no próximo tópico desse artigo.

6

Grupos, clubes e associações: desafios do associativismo em uma categoria de

"autônomos"

Dentre as associações profissionais do setor de eventos sociais, a mais conhecida

nacionalmente é a Associação dos Profissionais, Serviços para Casamento e Eventos

Sociais - Abrafesta. Fundada em 2009, a entidade é a única associação do setor que se

propõe a atuar nacionalmente. A construção dessa representatividade, contudo, não se

dá de maneira verticalizada e é um processo perpassado pela heterogeneidade das

posições dos agentes desse campo profissional. Em conversas informais com a

pesquisadora, algumas organizadoras de casamentos afirmaram que não buscavam ligar-

se à Associação, por acreditar que essa era composta por profissionais ligados a um

público de elevado nível econômico. "O mercado de São Paulo não precisa de mim",

afirmou uma das pesquisadas. Contudo, diante da não-regulamentação da profissão e da

dispersão da categoria em uma profissão de exercício livre, a Associação exerce um

papel de construção de uma unidade discursiva, a partir de iniciativas como a

elaboração do Manual de Boas Práticas, a realização de palestras e a publicação

periódica de comunicados voltados aos profissionais, além da presença na mídia como

interlocutora representativa do segmento.

Em 2012, a Abrafesta lançou o seu "Manual de Boas Práticas", voltado para os

profissionais de eventos sociais, que pode ser obtido gratuitamente em versão

eletrônica. A publicação é iniciada com a afirmação de que "todo segmento de mercado

que busca a ética e a qualidade nos serviços e nos produtos tem uma associação

organizada e um modelo de boas práticas". De acordo com a publicação, as práticas

adequadas para cada função envolvida na realização de eventos sociais foram definidas

pelos associados, por meio de reuniões setoriais e da formação de grupos de trabalho:

Esta publicação foi desenvolvida após seis meses de intenso

trabalho, mais de 40 reuniões setoriais, e contou com o

envolvimento dos profissionais associados. Tudo isso para que

fosse possível levantar com assertividade as práticas aceitas de

cada um dos setores que compõe a nossa entidade. Os diferentes

segmentos foram divididos em grupos de trabalho, coordenados

por um membro da diretoria da associação e acompanhados por

empresa de consultoria contratada para essa finalidade6.

6 Manual de Boas Práticas da Abrafesta, publicado em 2012. O Manual me foi gentilmente

disponibilizado pela Associação, em versão eletrônica, mediante solicitação.

7

Trata-se de um documento sucinto, que procura resumir, em suas trinta e quatro

páginas, as práticas aceitas para cada um dos segmentos profissionais que compõem a

entidade. A categoria profissional de que falamos nesse artigo corresponde, no Manual,

ao tópico voltado à atuação das "assessoras, organizadoras e cerimonialistas"7. O

documento apresenta, em tópicos e ao longo de duas páginas, as funções dessas

profissionais. Os termos que designam a profissão são usados no Manual de forma

intercambiável, assim como ocorre na prática desse mercado. A criação da entidade e a

elaboração do Manual são apontadas, no documento, como marcos rumo à

profissionalização do setor.

Outros esforços para a construção de uma identidade profissional e de uma

representatividade do setor podem ser vistos na criação de entidades locais, como a

Associação Gaúcha de Eventos Sociais, o grupo Assessores de Eventos, em Minas

Gerais, e o Clube de Assessores de Eventos Sociais, com base no município de Santos,

em São Paulo.

No mesmo período, outras entidades, com alcance regional, foram organizadas

por profissionais do setor. É o caso do Clube de Assessores de Eventos Sociais (CAES),

fundado em 2009, que se define como "uma rede de profissionais", com o objetivo de

reunir organizadores de eventos para trocar ideias e incentivar a formação e a interação

entre profissionais. No site da entidade, um texto de apresentação enfatiza que o Clube

não é uma associação, mas uma rede de profissionais visando ao compartilhamento de

informações8. A entidade expande suas atividades formando pequenos núcleos regionais

e, assim, já promoveu eventos voltados para os profissionais do setor em cidades como

Belo Horizonte, Florianópolis, Vitória e Santos. Em vez de iniciativas de organização

com vistas à formalização dos direitos e deveres de uma categoria, observa-se na

entidade a realização de pequenos eventos, com vistas às trocas de contatos

profissionais, conhecidas no meio como networking, e à formação continuada daqueles

que atuam no setor. Para esse público, o CAES promove reuniões periódicas e realiza,

anualmente, o evento "Wedding Planner Brasil", de caráter formativo. O público visado

pelo CAES também é distinto, e menos abrangente, que aquele que a Abrafesta pretende

alcançar. Enquanto a segunda visa a abranger indistintamente a todos os profissionais

7 A flexão de gênero nessa designação ocupacional é, por si, reveladora da composição

majoritariamente feminina do conjunto de associados. 8 Site do Clube de Assessores em Eventos Sociais: http://www.clubedeassessores.com.br/

8

do segmento de eventos, o Clube tem como público de suas ações os "assessores de

eventos sociais", ou seja, os profissionais dedicados à organização de eventos. Mais

uma vez, a heterogeneidade dos profissionais da área pode ser constatada na própria

nomenclatura utilizada para designá-los. Enquanto a Abrafesta utiliza em seu Manual os

termos "cerimonialista" e "organizador de eventos" de forma intercambiável, o CAES

opta pelo termo "assessores de eventos", como forma de delimitar a área de atuação dos

profissionais que pretende atingir. A opção é explicada pela fundadora do Clube,

Andreza Novais, com o argumento de que a atividade do assessor é mais ampla que a do

cerimonialista, que seria o profissional dedicado à execução dos protocolos específicos

que dizem respeito às diferentes ocasiões solenes9.

A mesma opção de nomenclatura é adotada pela entidade denominada

"Assessores de Eventos de Minas Gerais", fundada no final de 2013. De acordo com a

fundadora, a organizadora de casamentos Renata Lima, se trata de "um grupo informal,

que não é uma associação, nem um sindicato. Um grupo criado para a troca de ideias

entre os profissionais"10

. A fundadora explica que a entidade foi criada diante de um

contexto em que o crescimento do mercado atrai leigos: "são pessoas que pensam: 'eu

me casei, achei bacana organizar meu casamento, então posso montar uma assessoria', e

agem no amadorismo". O grupo, ainda que informal, surge diante da necessidade de

estabelecer uma separação entre profissionais e amadores e, também, uma delimitação

entre as competências dos diferentes segmentos que atuam na organização de eventos

sociais.

No Rio Grande do Sul foi criada, em 2011, a Associação Gaúcha de

Profissionais de Eventos (Agepes), aberta a empresas de todos os segmentos

relacionados à organização de eventos sociais. Em seu Estatuto, a entidade apresenta,

como primeiro objetivo, o de "congregar as empresas e profissionais do segmento de

eventos sociais objetivando o fortalecimento de todos pela união em busca de melhorar

a qualidade dos serviços prestados, e principalmente o crescimento dessa atividade"11

.

As exigências para participação nas entidades da categoria surgem, no cenário

de crescimento do mercado de eventos, como uma estratégia de distinção, de modo a

9 "Quem é quem no mercado de eventos". Disponível em:

http://www.andrezanovais.blogspot.com.br/2013/01/quem-e-quem-no-mercado-de-eventos.html 10

Entrevista concedida à pesquisadora. 11

Estatuto disponível em: http://www.agepes.com.br/pdf/estatuto_social_agepes.pdf

9

marcar os participantes com o selo do profissionalismo conferido pela participação em

um grupo exclusivo. Assim, em anúncio publicado pela Agepes em um jornal de grande

circulação em Porto Alegre, sugere-se ao público que: "Faça seu evento com qualidade

e segurança: contrate empresas e profissionais associados à Agepes"12

. Para a

participação nas associações e clubes da categoria, exigências comuns incluem: a

comprovação de experiência no mercado, por um período determinado; a indicação do

aspirante como um profissional confiável, por meio de fornecedores de boa reputação

no mercado; a participação prévia em cursos de qualificação e a apresentação de um

número no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, da empresa à qual está ligado o

candidato. Assim, a Abrafesta, por exemplo, tem como um dos objetivos apresentados

em seu Estatuto, a criação de "um se.lo de excelência de qualidade perante o mercado, o

poder público e a sociedade, o qual será conferido aos seus associados, desde que

cumpridas às exigências estabelecidas em regulamento próprio para esse fim"13

.

Projetos de regulamentação: disputas em torno da definição de um campo

Além da criação de associações e redes profissionais como as apresentadas no

tópico anterior, outro aspecto a observar quando se pesquisa a consolidação do campo

profissional dos organizadores de eventos são os projetos de lei que visam à

regulamentação da profissão de cerimonialista. Mesmo não tendo sido aprovados, tais

projetos são importantes para as discussões do presente artigo, na medida em que

permitem observar como são construídas, discursivamente, a figura do profissional e do

leigo no campo em que atuam os organizadores.

Desde 2002, tramitaram, na Câmara dos Deputados, três projetos de lei visando

à regulamentação da profissão de cerimonialista, dos quais dois foram arquivados e um

terceiro aguarda parecer da Comissão de Finanças da referida casa legislativa. De

autoria do deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP), o projeto de lei 5425/2009

delimita as atribuições do profissional de cerimonial. Em resumo, tais atividades

estariam relacionadas ao planejamento e execução de solenidades, e é nesse sentido que

os projetos de regulamentação da profissão de cerimonialista interessam a esse artigo, já

que tais atribuições são compreendidas, pelos profissionais que se denominam como

12

Caderno Noivas - Guia de Serviços, Jornal Zero Hora. Maio de 2014. 13

Estatuto disponível em: http://www.abrafesta.com.br/quem-somos/estatuto-da-abrafesta

10

"organizadores" ou "assessores" de eventos, como parte de seu fazer profissional14

.

Cada um dos projetos em prol da regulamentação apresentava a mesma proposta

central, de restrição do exercício da profissão aos portadores de diploma de ensino

superior na área, a partir da possível entrada em vigor da lei. O ensino superior se

constituiria, portanto, no elemento que distinguiria os profissionais dos amadores. A

exigência de diploma, no entanto, foi barrada nas três tentativas de regulamentação. Em

seu parecer contrário à exigência de diploma, a deputada Manuela D'Ávila argumenta

que "só é legitima a adoção de restrições legislativas ao exercício das profissões de

significativo potencial lesivo à população em geral", o que não seria o caso da profissão

de cerimonialista. Segundo a relatora,

não é possível sequer cogitar que o exercício dessa profissão

possa causar danos à saúde e à segurança da população ou que

dependa de conhecimentos científicos para seu adequado

manejo. Isso não depõe contra a importância da profissão, mas

devemos destacar que toda a profissão tem seu valor e sua

importância e nem por isso se pode regulamentar todas elas15

.

Assim, a profissão permanece aberta para o exercício livre, sem necessidade de

formação específica. Apesar de não ter sido aceito para fins legislativos, o argumento

dos projetos de lei em questão interessa a esse artigo na medida em que reflete a

existência de disputas políticas e lutas simbólicas no campo representado pelos

profissionais que organizam eventos sociais e festas de casamentos. O conceito de

campo, conforme proposto por Bourdieu, se refere a um espaço social dotado de regras

próprias, ocupado por agentes em diferentes posições e em constante disputa

(BOURDIEU, 1983). No caso específico do campo profissional dos organizadores de

eventos, está em jogo a própria definição de tal espaço social: quem, afinal, pode ser

considerado um profissional do setor e o que o distinguirá do leigo?

14

A partir da observação em eventos para profissionais da área e de conversas informais com profissionais das cidades de São Paulo, Minas Gerais, Fortaleza e Porto Alegre, me permito a inferência de que o termo "cerimonialista" está em desuso pelos profissionais de eventos sociais, como forma de autodenominação. Se, por parte do público e da clientela potencial, a palavra cerimonialista ainda é facilmente identificável com a função do organizador de eventos, o cenário é diferente quando observamos a forma como os profissionais se autodenominam. Também é digno de nota o fato de que, dentre os inúmeros cartões de visitas de profissionais de eventos, recebidos nas palestras e feiras das quais participei, a denominação "cerimonialista" tenha aparecido apenas uma vez. Em tais cartões de identificação, os profissionais dão preferência a termos como "assessor de eventos", "organizador", "wedding planner" ou, recorrendo a significantes mais abrangentes: "eventos", "consultoria", "produções", "criatividade". O termo "cerimonial", quando usado, aparece junto a uma lista de outras funções. 15

Voto da relatora Deputada Manuela D'Ávila, sobre o Projeto de Lei n 5425, de 2009. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/720426.pdf

11

A regulamentação proposta nos Projetos de Lei citados acima pode ser

considerada, nos termos de Bourdieu, como um ato de instituição, que traçaria uma

linha capaz de separar os autorizados ao exercício profissional dos não aptos

(BOURDIEU, 1996). A possibilidade da obrigatoriedade do diploma, mesmo tendo sido

descartada, pode ser compreendida como uma disputa em torno das correlações de

forças do campo profissional, em que os oponentes se questionam quais as

características definidoras dos agentes do campo. A disputa central se dá em torno do

grau de conhecimento técnico necessário ao fazer profissional. O aperfeiçoamento

profissional por meio da educação formal aparece, nesse contexto discursivo, como um

fator de distinção que separaria profissionais de "leigos". A própria figura do leigo é

assim construída discursivamente, associada a expressões como amadorismo e

despreparo, como é possível constatar no discurso de uma organizadora, em seu blog

pessoal:

Vale lembrar que organizar o próprio casamento não torna

ninguém profissional, é como instalar um programa em seu

computador e sair por ai dizendo é um programador ou

profissional de TI.

Para quem deseja iniciar como profissional de organização de

festas é necessário em primeiro lugar buscar conhecimento

técnico, hoje já dispomos de uma graduação em eventos

oferecido por diversas universidades do país, mas essa

formação pode ser realizada também através de cursos técnicos

ou livres, além da leitura de livros e visitas a eventos do setor

para conhecer o mercado16

.

O discurso é ilustrativo de um campo em que a construção da distinção entre

leigo e profissional está em processo: a figura da amadora, identificada com a recém-

casada que se interessa pela organização de eventos após ter organizado seu próprio

casamento, pode transitar para a categoria de profissional mediante a busca por

conhecimento técnico e pela consolidação gradual de sua experiência profissional.

Nesse contexto, em que a definição do leigo não é unívoca, a troca de informações

assume grande importância nos eventos do setor e em reuniões associativas. "Nós

trocamos informações sobre os fornecedores, por exemplo, e essas informações são

preciosas. Se eu sei que uma equipe não se apresenta bem vestida, eu não vou indicá-la

a uma cliente mais exigente", me explicou uma profissional. As trocas de informações 16

Publicação autorizada pela pesquisada. Trecho disponível em: http://www.andrezanovais.blogspot.com.br/2014/03/como-se-tornar-um-organizador-de-eventos.html

12

fazem lembrar o que propõe Elias sobre a importância dos boatos, tanto laudatórios

como depreciativos, para a construção das hierarquias de status (ELIAS, 2000).

Na construção discursiva da figura do leigo, no caso dos profissionais

entrevistados para essa pesquisa, os amadores são relacionados à ameaça de um evento

mal sucedido. Das incorreções nas ordens dos ritos aos erros de logística, são muitos os

problemas apontados como possíveis "tragédias", nas palavras de uma entrevistada:

O que manda no nosso mercado é a prática, a experiência. [...].

Comparo o cerimonial de um evento ao maestro de uma

orquestra: se o maestro falha, todos os outros serviços saem do

controle. O casamento é um evento sem segunda chance, os

erros se tornam verdadeiras tragédias. Horários desrespeitados,

atrasos gigantescos, confusão na porta da igreja [são erros que

ela cita como exemplo]17

.

A prática aparece, nesse contexto empírico, como um importante fator de

legitimação dos profissionais ante os potenciais clientes e sobretudo no próprio meio

profissional. A construção de legitimidade, nesse contexto, se dá segundo códigos

construídos e compartilhados pelos agentes, que envolvem a avaliação cotidiana de

práticas e comportamentos os mais diversos, em situações de trabalho. Vale enfatizar

que o próprio crescimento do mercado em questão não permite que se pense em um

campo em formação. A regulamentação de uma profissão, como afirma o antropólogo

Carlos Emanuel Sautchuk, não deve ser confundida com a criação desse campo nem

tampouco com a instauração de sentidos de legitimidade antes ausentes (SAUTCHUK,

2002). No caso dos profissionais de eventos, uma possível regulamentação não

representaria a delimitação de um campo autônomo, mas uma mudança na forma como

é atribuída, em um campo já existente, a legitimidade profissional. As propostas de

regulamentação, com os ritos de instituição que implicariam, representam esforços no

sentido de estabelecer de forma unívoca os critérios para legitimidade profissional da

categoria, não só internamente, mas também perante a sociedade.

Nos esforços pela legitimação, pesam também desconfianças e acusações das

quais a categoria tenta se desvencilhar. Sendo esse um mercado livre e em ascensão,

uma acusação comum, feita sob a forma de piada pelos próprios contratantes, é a de que

os agentes que o compõem formariam uma "máfia", ou "um cartel". Em campo,

17

Entrevista com a organizadora de eventos Renata Lima, de Belo Horizonte, Minas Gerais.

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conversando com casais que consumiam produtos e serviços para casamentos em feiras

do setor, essa piada foi ouvida por mim de forma recorrente. No trecho seguinte,

transcrito de uma palestra para profissionais do setor, o palestrante trata de responder a

esse tipo de críticas salientando aspectos positivos do mercado de eventos:

[Exibindo um vídeo com vários trabalhadores nos bastidores de

um evento] Eu gosto muito de mostrar esse vídeo pra pais de

noivas. Eles falam assim: 'ah, mas vocês são uma máfia! Vocês,

o pessoal do som, da luz, da decoração, do buffet...' E eu gosto

muito de dizer que o nosso mercado, de casamentos, ele

movimenta pelo menos um emprego direto ou indireto por cada

convidado. Vamos esquecer a banda famosa, não vamos falar

dessas pessoas. Mas quantos garçons, cabeleireiros, manicures,

o mercado de presentes, quanta gente não trabalha para esse

nosso mercado, para que tudo saia bom e perfeito, na hora? Ou

seja: deixem suas noivas sonhar. Realizem os sonhos das suas

noivas, dentro de uma coisa normal, tá, dentro de uma coisa

real, mas isso, realmente, vem movimentando um mercado,

como a gente pode ver aqui, por essa feira, por essa mostra, que

coisa excelente.

A busca de elementos de uma legitimidade racional-legal (WEBER, 1997),

verificada nos esforços em torno do associativismo e das tentativas de regulamentação,

e mesmo na defesa do fazer profissional diante de acusações jocosas, reflete as

dificuldades relacionadas à consolidação de uma categoria, em um mercado em

crescimento.

Considerações finais

O campo profissional dos organizadores de eventos sociais representa um espaço

social em vias de consolidação, que já conta com regras próprias e com valores e

significados compartilhados pelos agentes, no que concerne à legitimidade e à

hierarquização das práticas de trabalho. Os projetos de lei favoráveis à regulamentação

profissional, o manual de boas práticas e a criação de associações do segmento

correspondem a uma necessidade desses profissionais de estabelecer limites para a

atuação profissional em um mercado que cresce. A definição do campo, contudo, é um

processo contínuo e perpassado por disputas internas. É possível observar, nos discursos

dos agentes, as ambiguidades que perpassam a adaptação de noções empíricas de

legitimidade, que já existem, para os sentidos unívocos de uma legitimidade "racional-

legal".

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Referências bibliográficas

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Esporte, v. 23, n. 2, 2002.

WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel. Weber:

Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1997.