Um Velório Alegre - Mário Zambujal

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    Contos Digitais DN

    A coleo Contos Digitais DN-lhe oferecida pelo

    Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.

    Autor: Mrio Zambujal

    Ttulo: Um Velrio Alegre

    inPrimeiro as Mulheres, Oficina do Livro, 2006 / Leya, SA, 2010

    Ideia Original e Coordenao Editorial:Miguel Neto

    Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

    ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com

    2012 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

    ISBN: 978-989-8507-32-7

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o

    consentimento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta

    proibio o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de

    acordo com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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    sobre o autor

    Mrio ZambujalNasceu em Moura (1936). Foi redator de A Bola eO Jornal; chefe de redao de O Sculo

    e Dirio de Notcias; diretor-adjunto do Record, diretor de Mundo Desportivoe Tal & Qual; e

    diretor-fundador do Se7e. Na RTP, criou, apresentou e dirigiu vrios programas. Escreveupara rdio e teatro. Em 1980 lanou o primeiro livro, Crnica dos Bons Malandros, que deu

    origem longa-metragem homnima de Fernando Lopes, e a que se seguiram Histrias

    do Fim da Rua(1983), Noite Logo se V(1986), Fora de Mo (2003), Primeiro as Senhoras

    (2006),J No se Escrevem Cartas de Amor(2008), Uma Noite No So Dias(2009), Dama

    de Espadas(2010), Longe Um Bom Lugar(2011) eCafun(2012).

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    Um Velrio Alegre

    Mrio Zambujal

    Quinta-feira, 5 Manh O DECLARANTE E O INSPECTOR

    Aqui me tem, senhor Inspector. Vivo, inteiro e ansioso por colaborar. D-me tempo. Por

    agora como se um tufo me tivesse varrido a cabea. Indcios, pormenores, eventuais pistas,

    no sei onde param. Depreendo tratar-se de uma reaco do crebro s recordaes penosas, j

    aconteceu com a minha irm Rute: foi casada doze anos com o Dlio ceramista e no se lembra

    nem da cara dele.Comigo, a nuvem esvai-se em dias, talvez horas. Tudo quanto a memria captou retomar

    os seus lugares. Conte com depoimento decisivo para filar os energmenos.

    Para j, e objectivamente, o que posso descrever o seguinte. Pouco passava da meia-noite.

    Cinco, sete, v l, dez minutos. Sa de um velrio animadssimo e caminhei para o carro estacio-

    nado numa rua prxima.

    Noite modorrenta, ar quente e parado. Despi o casaco e afrouxei o n da gravata. Vi um

    parzinho namorando a quatro mos. Ainda me ocorreu ligar para a Renata Emlia a sugerir-lhe

    que aparecesse no Bar Afunda. Desisti. Ela andava na fase do deitar cedo. E nessa altura, sou

    franco, quem ocupava os meus pensamentos era a Marilinha Misse.

    Estala a primeira contrariedade: quis acender um cigarro e nem fsforos nem isqueiro. Num

    primeiro impulso avancei para o rapaz de manga cava enganchado na morena que tinha uma

    sandlia calada e outra descala. Recuei. Nunca me permitiria o papel de empata.

    O chavalo ainda virou a cabea, sobressaltado: Queria alguma coisa?

    Disse-lhe o que ouvia do meu pai quando era garoto e nos juntvamos mesa: Come e

    cala-te.

    Aproximou-se um transeunte, alto, esgalgado. Obliquei para lhe sair ao caminho. Ele

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    olha-me de soslaio e comea a dar passinhos para o lado.

    Insisto em acercar-me e o homem esgania-se aos gritos: Polcia! Polcia!

    Era noite de azar: apareceram dois polcias. Optei pelas gargalhadas, o riso seria convincente

    prova de inocncia. Quem se ri assim no pode ser larpio apanhado em flagrante.

    Agitei o mao de cigarros em frente do cagarola: Lume! S queria lume! E para provar

    de vez a boa-f decidi-me pelo espectculo: virei os forros dos bolsos todos, casaco e calas. Mas

    era mesmo noite de enguio: entre os meus pertences espalhados na calada, saltavam vista um

    isqueiro amarelo e carteira de fsforos com anncio do bar.

    Valeu-me a feliz coincidncia. De tempos a tempos sou protegido por felizes coincidncias.

    Quando tinha dezassete anos e o meu pai me cortou as sadas nocturnas, a feliz coincidncia foi

    que da janela do meu quarto sacada da Almira do Dancing era um pulinho.

    Naquela noite, deu-se o caso de surgir um grupo de pndegos que vinham igualmente do

    velrio. Entre eles uma alta patente militar. Afianaram que sou fumador mas pessoa de bem e

    o caguinchas acabou a cravar-me um cigarro.Isto foi, digamos, o prlogo. Despedi-me do pessoal e segui tranquilo. Quando estou quase,

    quase a entrar no carro, acontece o que o senhor Inspector sabe: saltam-me em cima trs sacanas

    encapuzados e atiram-me bruta para dentro de uma carrinha cor de tijolo.

    A cor da carrinha foi a ltima imagem que captei antes de me vendarem os olhos. Alis,

    penltima. Notei ainda que a venda era uma meia preta de senhora. Deprimente. Acho bem

    senhoras com meias pretas mas abo mino meias pretas de senhora sem senhora. No entendia o

    que se estava a passar. S me recordo de ter pensado: gaita, deixei a porta do carro aberta e tenho

    l as chaves do bar. Noite malvada.

    Agora o senhor Inspector manda. Se v interesse, eu aplico-me quantas horas achar ne-

    cessrias a observar retratinhos de malfeitores conceituados. No maada nenhuma, sempre

    me seduziu a problemtica criminal. Um dia, com vagar, hei-de contar-lhe passagens da minha

    experincia como investigador particular e sigiloso. Considero at instrutivo analisar as carinhas

    dos fichados que, no seu superior entendimento, so artistas para se abalanarem a golpes desta

    envergadura.

    Mas repito, senhor Inspector: os gabirus usavam capuzes como mscaras. Mscaras, luvas,botifarras e, apesar da calorina, uns casaces invernosos que nem permitiam distinguir se eram

    magros ou gordos. Trabalho de profissionais, no?

    Depende. Vivemos uma poca de informao a jorros. Qualquer cidado insuspeitvel, estilo

    funcionrio exemplar, dado famlia, frequentador de igreja, pontual pagador de impostos, tem

    mo a cartilha toda. Quem no domina, hoje em dia, o -b-c do marginal? Prudncia. Como

    diz o Falinhas, o sonho de todo o fregus sair sem pagar a conta.

    O Falinhas um filsofo que distribui copos pelas mesas do Bar Afunda, respeitvel estabe-

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    lecimento de que este declarante co-proprietrio. Ser-me-ia grato ter o senhor Inspector como

    convidado para umas flutes de champanhe, do bom, quando desembrulhar este novelo todo.

    Conhecer ento a minha scia, Bruna, cento e catorze quilos e uns bceps que pem os

    vivaos em sentido. E o Falinhas. O sinal particular do Falinhas o tom de voz. Ele no fala,

    segreda. Como resultado, temos os clientes de mo em concha sobre o ouvido e a perguntar: O

    qu? Imperturbvel, o Luciano, dito o Falinhas, repete quantas vezes o solicitarem. Sem subir

    o volume.

    Profissional de mo-cheia a aviar bebidas, o Falinhas , mais que tudo, um mimo de gente.

    E ainda h semanas me espantou com um talento novo: toca piano. Admiravelmente.

    Tenho a Bruna e o Falinhas de olho nos frequenta dores do bar. dos livros: sujeito que

    lhe d para exibir enriquecimento repentino e sem explicao, pespega-se com ele na lista de

    suspeitos.

    O senhor Inspector homem para conhecer os lugares da noite. Entra de tudo. Nem o Bar

    Afunda, com clientela seleccionada, pode benzer-se de s l porem o cu cavalheiros como ns.Estou a pensar, concretamente, em trs melros que arrastam as noites a conspirar em

    surdina. Nem o Falinhas comunica to discretamente.

    Curioso que ningum os viu por l enquanto penei sequestrado e voltaram ontem mais

    expansivos. Bichanou-me o Falinhas, esta manh, que um deles perguntou com arzinho de

    troa: E o patro Edgar? Tem aparecido?

    Foi de frias, sacudiu o Falinhas.

    O qu?, perguntaram em coro, arrebitando as orelhas.

    Frias.

    O primeiro descaiu-se com graola suspeita: Frias pagas pelo velho Sertrio, se calhar.

    E dobraram-se a rir.

    Perante isto, o que pensar? Tudo. Que mesmo a trupe do rapto ou apenas uma trindade

    de palermas.

    A segunda hiptese no anula a primeira.

    Descanse. Estarei atento ao que se passa volta, uma ideia insiste em martelar-me as

    meninges: o golpe tem dedo de quem me conhece de perto. Falo de amadores ainda sem lugar

    no seu lbum de especialistas. L iro parar, o crime perfeito s existe quando a investigao

    imperfeita. Ora, na circunstncia, no h porta por onde se escapem. Nem por um instante,meio instante, duvido de que o senhor Inspector, olha quem, vai deslindar o enigma.

    Se prefere perguntar, pergunte. Mas, numa primeira fase, o que julgo til reconstituir

    os acontecimentos que antecederam o crime. Passei o sero no trio da Igreja dos Prazeres,

    levado por mais um dos acasos que me conduzem aos ziguezagues. Hoje fcil comentar que foi

    disparate pr os ps no velrio. Certo. Mas o que me faz matutar isto, senhor Inspector: quem

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    tinha conhecimento de que eu me encontrava ali? Mais: quem conhecia o meu carro, paradinho

    a cem metros da igreja, para me fazer a espera nesse preciso ponto?

    Convenhamos que as aparncias apontam para algum que me viu no piedoso acto. No

    sou do gnero de lanar suspeitas doida mas sabe como, em certas circunstncias, um homem

    desconfia at dos amigos. Amigos, prudncia, o abrao pode ocultar a punhalada.

    A bem dizer, a minha ida ao velrio explica-se com dois nomes s: Marilinha Misse e

    Gaspar Olvio Ripas.

    A Marilinha Misse tentao antiga e silenciosa. O perfeito enlace do fsico e do espiritual.

    Mas o superior encanto dela reside num simples gesto, acompanhado de uma palavra. Mais

    ningum, neste universo de cativantes mulheres, tem o mesmo jeitinho de subir a mo pela

    nossa face e perguntar com a rouquido no ponto de rebuado: Ento? Como outras inter-

    rogam ests bem?, como vais?, ela deixa deslizar os dedos at se envolverem nos cabelos e

    sai-lhe: Ento?

    Andei alucinado e faminto. Mas distra-me. Quando me dispus a participar-lhe a inclinaoe algumas ideias acerca do que devamos fazer com urgncia, j o Ripas se desabo toava com ela.

    Custou-me, mas perdi com ferplei. Nunca saber que comprei a cama de trs metros por dois e

    meio para a estrearmos em colaborao. Da dorzita de corno s me lamentei ao velho Grafula,

    campeo de valsas e doutor em provrbios. Que esperava eu ouvir? Lgico: guardado est o

    bocado para quem o h-de comer. Foi o que ele disse.

    Nesse famoso dia do rapto, logo pela manh, correu o boato: sem que ningum esperasse,

    o Gaspar Olvio Ripas tinha morrido, encontrando-se o corpo em cmara-ardente na Igreja dos

    Prazeres.

    Mais que boato, notcia de jornal. Por motivos passionais, escreveram, um alucinado enfiou

    duas balas no peito do nosso amigo. Foi um choque e uma estranheza. Motivos passionais? O

    Gaspar Ripas era um campeo de farras e femeeiro, mas parecia retirado de alvoroos de saias. A

    Marilinha Misse meteu-o na ordem.

    Comeou a chegar gente, gente, s tantas o velrio era um xito. Poucos se tero visto

    com tanta animao, sobretudo depois de jantar, quando se formaram grupos recordando as

    aventuras e faccias do morto. Algum levou um frasco de usqui que circulava de goela em goelae explicou: Noite com o Ripas nunca foi a seco.

    Cerca das onze, a reunio fnebre tomou ares de arraial. Misturou-se gente e uma ruiva de

    cales de caqui quis saber: Qu dos noivos?

    Que noivos?

    No casamento?

    Velrio, senhora.

    Mentira. E o morto?

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    No lugar dele. Pode entrar, grtis.

    Nesse momento eu j tinha concludo, comigo mesmo, que o desgosto pelo falecimento

    do Ripas era bem superior vontade de rever Marilinha Misse. Chegou a colocarse-me esse

    problema de conscincia.

    Entrei na capela e acerquei-me para um sentido adeus. Da Marilinha nem sombra. Uma

    senhora de vu sobre a cabeleira branca ocupava-se em ajeitar a gravata do falecido, cuja face se

    ocultava sob um piedoso leno de seda com monograma: G. R. Fui apresentar-lhe condolncias.

    Desculpe. da famlia?

    Filha.

    Filha? Mas como filha?

    Filha, como? Bem, o meu pai e a minha me...

    Nada fazia sentido. Mas evito perguntas acerca da idade a qualquer senhora acima dos

    dezasseis. Torneei o problema.Diga-me, ento, por favor: com quantos anos faleceu o meu querido e inesquecvel amigo?

    Noventa e quatro.

    No percebo.

    Noventa e quatro.

    Mil desculpas, enganei-me na capela. O nome do paizinho era...

    Gaspar Olvio Ripas.

    Disparate. O Gaspar Olvio Ripas era rapaz da minha gerao, vou a caminho dos quarenta

    e trs.

    Noventa e quatro tinha ele.

    O mximo, quarenta e seis.

    Olha, olha, quarenta e seis gostava eu de ter e sou a filha mais nova. Noventa e quatro.

    Se no fossem o momento e o lugar, diria que a veterana brincava comigo.

    No fala a srio. Noventa e quatro, o Ripas?

    E cinco meses. Noventa e quatro anos e cinco

    meses.

    Veio-me a suspeita de que era meio maluca mas a situao no me permitia virar as costas.

    No estar a ler de trs para a frente? Vou at aos quarenta e nove.Noventa e quatro. Quer que lhe mostre o BI dele?

    Quero.

    No o trouxe. Mas est l que o meu pai, av das minhas trs filhas, bisav dos meus netos,

    Gaspar Olvio Castrogildo Ripas, contava noventa e quatro.

    Castrogildo? O Ripas no era Castrogildo.

    O meu pai era.

    Inesperadamente, ela levantou o leno que cobria o rosto do defunto. Vi um ancio, de

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    aparncia fina como pea de porcelana, com uma expresso tranquila. No resisti a apontar o

    dedo ao saudoso: Ripas? Gaspar Ripas?

    Castrogildo Ripas. O meu pai era Castrogildo. Castrogildo pelo lado da me, que era aris-

    tocrata e destinada a casamento com um baro mas fugiu com o carvoeiro. O carvoeiro Ripas

    fornicava com numerosas clientes, mas quem ele levou ao altar foi a minha av. Voc conhece

    histria de amor mais bonita?

    Impossvel. Ento aquela notcia no jornal referia-se ao seu paizinho?

    Exactamente. No puseram l que ele era comendador.

    Mas puseram, os tontos, que ele foi baleado por motivos passionais.

    Exactamente. Mulheres.

    Brinca? Ele tinha namoros, e tal, aos noventa e quatro?

    Mas a culpa nunca foi dele. Elas no o largavam.

    Corri para o trio e berrei a grande notcia: No o nosso! O morto no o nosso GasparOlvio Ripas.

    Tarde. Nesse momento, j o Gaspar Olvio Ripas, o nosso, era passeado aos ombros do

    peloto de amigos. Tinha-lhe chegado a notcia do seu prprio falecimento e apresentou-se,

    acompanhado pela Marilinha Misse, para esclarecer que no era bem assim. Ali andava ele,

    transportado como um andor, quando a Marilinha Misse deu com os olhos em mim, sorriu,

    veio, veio, afagou-me a bochecha de baixo para cima at os dedos se enfiarem no cabelo e

    perguntou: Ento?

    No de admirar que pensasse nela quando me dirigia para o carro e acabei estendido no

    desconforto de uma carrinha cor de tijolo.

    Agora, se o senhor Inspector concordar, fazemos intervalo. Preciso de espairecer. Daqui

    a uma hora, hora e meia, avanamos com o depoimento, quem sabe se enriquecido com novas

    recordaes. Quando menos se espera, a esto elas a saltar o muro.

    inPrimeiro as Mulheres, Oficina do Livro, 2006 / Leya, SA, 2010

    Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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