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UMA ANÁLISE DA CATEGORIA MULHER NO SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO INTEGRAL A FAMÍLIA (PAIF) DA POLÍTICA NACIONAL DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL
Vanessa Sarmento Travincas de Castro1 Amana Rocha Mattos2
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo localizar e discutir – a partir dos estudos de gênero e do feminismo interseccional – a concepção da categoria mulher que a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) brasileira, no âmbito do PAIF, (re)produz direta ou indiretamente em suas regulamentações. Tal compreensão torna-se fundamental quando pensamos essa política pública, que é na pratica voltada especialmente para um público feminino, enquanto importante espaço de formação/subjetivação de pessoas.
Palavras-chave: políticas públicas; assistência social; gênero; mulher
Abstract:
The present paper aims to locate and discuss - from the studies
of gender and intersectional feminism - the conception of the
category of woman that the Política Nacional de Assistência
Social (PNAS), within the scope of PAIF, (re)produces directly
or indirectly in its regulations. Such understanding becomes
fundamental when we think of this public policy, which is in
practice focused especially on a female audience, as an
important space of formation / subjectivation of people.
Keywords: welfare policies; social assistance; gender; woman
1 Estudante de mestrado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ); e-mail: [email protected] 2 Professora doutora no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e orientadora da pesquisa de mestrado da primeira autora.
I. INTRODUÇÃO
Em 2005, foram inaugurados os Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) 3 , os quais consistem em unidades públicas estatais responsáveis pela
operacionalização da Proteção Social Básica (PSB) do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), desenvolvendo, dentre outros4, o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à
Família (PAIF)5, tido como “pedra fundamental, basilar da “nova” política de assistência
social (BRASIL, p. 05, 2012a)”. Possui como um de seus princípios norteadores a
matricialidade sociofamiliar, ou seja, a família é o centro de sua atuação, já que para a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS), ela tem o papel de ser a principal provedora
de proteção e protagonismo de seus membros, sendo o Estado responsável por garantir sua
sustentabilidade para que então ela cumpra sua função (BRASIL, 2005).
Nesse contexto, ao longo de onze anos de vigência dos CRAS, sobressai-se o
fato de que seu público usuário é constituído quase que exclusivamente por mulheres.
Estando as atividades do PAIF voltadas ao responsável familiar, essa característica poderia
ser lida como um reflexo da vivência social, visto que historicamente naturalizou-se os
cuidados com a família enquanto responsabilidade feminina 6 . Contudo, um outro fator
catalisador vem se destacando: o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA)7
tem como regulamentação que esse responsável seja preferencialmente a mulher8.
Levando isso em consideração, muitas pesquisas com enfoque feminista vem
apontando uma possível estigmatização e sobrecarga da mulher-mãe na PNAS, uma vez
3 De acordo com o site do MDS, atualmente, existem 7.986 Centros espalhados pelo Brasil. 4 São eles: Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e Serviço de Proteção Social Básica no
Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas (BRASIL, 2009a). 5 Advém da experiência obtida do Núcleo de Apoio à Família – NAF (2001), desdobrando-se no Plano Nacional
de Atendimento a Família – PAIF (2003) e consolidando-se como Programa de Atenção Integral à Família –
PAIF (2004). A atual nomenclatura (que mantém a mesma sigla da anterior) tem por finalidade garantir uma
melhor compreensão de seus objetivos, bem como assinala a transformação do Programa em Serviço, indicando
o caráter ininterrupto de suas atividades (BRASIL, 2012a). 6As(os) profissionais que executam os serviços também são em sua maioria mulheres. Nesse sentido, desde seus
primórdios, a assistência social brasileira constituiu-se enquanto espaço de mulheres ocupando papéis
essencializados de “caridosas”, “cuidadoras” e “acolhedoras”, visto que sua primeira instituição, a Legião
Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942, era um estabelecimento de natureza filantrópica e tinha como
presidentes as primeiras-damas da república. Vale dizer, que um remake desse cenário ocorreu recentemente
com a posse da atual primeira-dama Marcela Temer no cargo de embaixadora do programa de assistência social
denominado “Criança Feliz”. Após ter sido retratada pela revista Veja como “bela, recatada e do lar”, aparece
então sob justificativa de que é “mãe e tem todos os predicados para ajudar nesta área”, assumindo um posto
não remunerado de amparo à infância (O GLOBO). 7 Ministério responsável pela coordenação da Assistência Social no Brasil. Foi instituído pela medida provisória
Nº 726, de 12 de maio de 2016, que transfere as competências do Ministério do Desenvolvimento Agrário para o
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), recebendo a atual nomenclatura. 8 Referem-se a exigência instituída no Art. 2º, “§ 14 da Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004 sobre o Programa
Bolsa Família (PBF). Ressalta-se que, apesar de bastante interligados na prática, o PAIF e o Bolsa Família
possuem critérios diferentes para escolha do responsável familiar. Isso será melhor discutido mais à frente.
que sendo indicadas como responsáveis familiares prioritárias, acabava-se por (re)afirmar a
imagem de mulher no âmbito doméstico e familiar, bem como as colocariam à frente do
cumprimento de todas as condicionalidades exigidas pelos programas, projetos e serviços
dessa política; consequentemente, seriam culpabilizadas nos casos de inadimplência. Por
outro lado, o MDSA defende sua determinação, alegando a finalidade de proporcionar um
protagonismo feminino e uma melhoria das condições familiares, ainda mais quando aliada
a outras ações da PNAS e demais políticas públicas.
Diante dessa problemática, me proponho a investigar o PAIF para além dessa
regulamentação, compreendendo, a partir da construção de sua noção de família, os
contornos estabelecidos para a categoria9 mulher. É com base nessa concepção que as(os)
profissionais que executam a PNAS irão atuar, manejando as demandas que envolvam
questões de gênero e que farão com que essa política se configure como
predominantemente estigmatizadora ou potencializadora da pluralidade de sujeitos. Em vista
disso, foram analisados os principais documentos oficiais que norteiam o PAIF.
II. GÊNERO E MULHER NO TRABALHO SOCIAL DO PAIF
O PAIF é desenvolvido por meio do “Trabalho Social com Famílias”,
entendido como um “conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos
éticos, conhecimento teórico-metodológico e técnico-operativo, com a finalidade de
contribuir para a convivência, reconhecimento de direitos e possibilidades de
intervenção na vida social” das famílias usuárias (BRASIL, 2012b, p. 11).
Nesse sentido, seus objetivos materializam-se no fortalecimento da
função protetiva da família; prevenção da ruptura dos vínculos de seus membros e
destes com a comunidade; fornecimento de apoio as famílias que possuem
integrantes que necessitam de cuidados10, e promoção de aquisições sociais11 e
materiais12 (BRASIL, 2012a). Tendo como impactos sociais almejados: a melhoria
9 Vale dizer que estamos considerando “categoria” de acordo com o Michaelis online, enquanto um “conjunto de
pessoas ou coisas que partilham características ou propriedades comuns, o que lhes possibilita serem agrupadas
sob um mesmo conceito ou concepção genérica”. 10 Para a PNAS são as crianças, adolescentes, jovens, idosos e pessoas com deficiência (BRASIL, 1993). 11 São as seguranças de acolhida, de convívio familiar e comunitário, e de desenvolvimento de autonomia
(BRASIL, 2012a). Vamos aprofundar essa última mais à frente. 12 Tratam-se da inclusão da família, quando for o caso, nos programas de transferência de renda (Bolsa Família e
Benefício de Prestação Continuada – BPC), bem como nos benefícios eventuais (oferta transitória de bens
materiais e/ou em pecúnia – geralmente voltados à auxílio natalidade ou morte) (BRASIL, 2005).
da qualidade de vida de seus usuários; a superação das situações de fragilidade
identificadas; a potencialização do protagonismo e autonomia familiar e comunitária;
o usufruto de direitos e o estabelecimento de espaços grupais de escuta e troca de
experiências (BRASIL, 2009a).
Suas diretrizes teórico-metodológicas, entre outros conteúdos,
determinam o respeito a diversidade dos arranjos familiares e a rejeição de todos os
tipos de preconceitos, discriminações e estigmatizações. Portanto, negam posturas
profissionais “prescritivas, adaptativas e modeladoras”, bem como que coloquem a
mulher em condição de subalternidade ou que possam sobrecarregar qualquer um
dos responsáveis familiares nos cuidados com seus membros (BRASIL, 2012b, p.
106). Desse modo, o PAIF propõe-se a desenvolver ações preventivas, protetivas e
proativas que não reforçam “os papéis tradicionais, que promovem desigualdades.
Além de desnaturalizar a violação de direitos no âmbito doméstico, contribuindo para
a construção de relações intrafamiliares mais equânimes...” (BRASIL, 2012a, p. 20).
Fundamentando-se na concepção de que a família é um espaço definido
por estruturas geracionais e de gênero, o PAIF estabelece que os conflitos e
desigualdades intrafamiliares sejam analisados e trabalhados “a partir da
diferenciada distribuição de poder e responsabilidade entre seus membros”
(BRASIL, 2009b, p. 12). Assim, sob esse enfoque, no primeiro contato das famílias
com o Serviço, as(os) profissionais que as receberem farão a acolhida, momento o
qual irão ouvir e compreender a situação familiar em seus múltiplos significados
(BRASIL, 2012b).
De acordo com as necessidades e demandas identificadas, a família será
convidada a participar de serviços, programas, e projetos que poderão contribuir
para superação ou prevenção das situações de vulnerabilidade. Nesse caso, no
âmbito do PAIF, são disponibilizadas as atividades de: oficinas 13 , ações
comunitárias14, encaminhamentos15, ações particularizadas e ações coletivas16.
13 Consistem em encontros previamente preparados com a finalidade de “suscitar reflexão sobre um tema de
interesse das famílias, sobre vulnerabilidades e riscos, ou potencialidades identificados”, propiciando “a
problematização e reflexão crítica das situações vividas em seu território, além de questões muitas vezes
cristalizadas, naturalizadas e individualizadas” (BRASIL, 2012b, p. 24). 14 Entre as principais formas de sua execução, tem-se as palestras, campanhas e eventos (BRASIL, 2012b). 15 São “processos de orientação e direcionamento” das famílias ou de seus membros “para serviços e/ou
benefícios socioassistenciais ou de outros setores” quando suas demandas excedem o escopo do PAIF (BRASIL,
2012b, p. 44). 16Como exemplos, podemos citar as visitas domiciliares, mediações, orientações psicossociais, etc. (BRASIL,
2012b).
Embora cada uma delas possa demandar o trabalho com questões
relacionadas a gênero, vamos evidenciar as oficinas, pois além de serem
classificadas pelo MDSA como as mais importantes ações do PAIF, as sugestões de
temas propostos na cartilha de orientação do Serviço colaboram bastante para
refletir a categoria mulher nesse espaço (BRASIL, 2012b). De tal modo, destacamos
o exemplo trazido para oficina no mês de março:
“Dia Internacional da Mulher – o que comemorar e o que reivindicar?”, nas quais podem ser trabalhadas, junto às mulheres e homens do território, questões ligadas aos padrões de beleza, desigualdades de gênero, violência contra a mulher, sobrecarga feminina nos cuidados com a família, resgaste de histórias de mulheres importantes na sociedade e naquele território... (BRASIL, 2012b, p. 36, grifo nosso).
Também vale mencionar a temática “Quais são e como acessar nossos
direitos”, em que é indicada uma discussão sobre “direitos das mulheres” que tem
como proposta refletir sobre o “...isolamento social das mulheres, feminização da
pobreza...”, bem como identificar “características do território e do município que
geram estratégias de superação do isolamento” (BRASIL, 2012b, p. 31).
Outro assunto relevante dentro do recorte de gênero é “Os desafios da
vida em família”, que são apresentados: direitos da família (promove, entre outros,
um debate sobre papéis desempenhados e democratização do ambiente familiar);
adolescência e juventude (destaque para questão da paternidade e maternidade
responsável) e sexualidade (igualdade de direitos e reflexão sobre orientações
sexuais) (BRASIL, 2012b).
Todas as atividades do PAIF devem afiançar, aos seus usuários,
aquisições baseadas nas seguranças ou garantiras sociais que norteiam as ações
da PNAS (BRASIL, 2012b). Dentre as que estão relacionadas com a temática do
presente artigo, salienta-se a segurança de desenvolvimento de autonomia que,
entre outros resultados, deve promover a autoestima, a autocompreensão e o
empoderamento das usuárias. Vale dizer que, no contexto do PAIF,
“empoderamento” denota além de uma emancipação individual, uma consciência
coletiva da dependência social e da dominação política (equivalente a imposição de
ideologias dominantes). Portanto, esse conceito relaciona-se com a ideia de
“autocompreensão”, entendida como a habilidade de compreender esses
contextos/sistemas nos quais os sujeitos estão inseridos como influentes da maneira
como as pessoas se percebem e agem (BRASIL, 2012b).
De tal modo, a escolha e promoção de objetivos, crenças e práticas
conscientes nas diversas esferas da vida caracterizam o que o PAIF denomina
protagonismo e autonomia. Condições fundamentais para o alcance da “autoestima
positiva”, que aqui aparece como uma capacidade de valorização de si mesmo como
sujeito de direitos, sendo necessário para tanto, uma desnaturalização da diferença
traduzida como desigualdade, bem como a adoção de uma postura de respeito e
valorização da pluralidade (BRASIL, 2012b).
Esses conceitos norteiam o fazer profissional para além de uma ação que
vise apenas uma mudança pratica automática e imposta, mas que leve a uma
transformação ideológica em que as próprias usuárias possam fazer suas escolhas.
Portanto, tendo entendido que o combate as discriminações e estigmatizações
derivadas de questões de gênero é ato prescrito no PAIF e que essas são
percebidas como situações que geram e agravam as vulnerabilidades e riscos
sociais, fica claro que o Serviço exige o agenciamento de reflexões sobre papéis
sociais de gênero e as ideologias opressoras que os fixam. Até mesmo porque a
ideia central do PAIF é de promover o desenvolvimento da família enquanto “grupo
cidadão”, ou seja, não somente por meio do fortalecimento de seus vínculos, mas
também pelo desenvolvimento dos sujeitos individualmente, pois seria a partir do
bem estar de cada um do seus membros que a família se manteria unida e funcional
(BRASIL, 2012).
III. DE QUE MULHER(ES) ESTAMOS FALANDO?
De acordo com o que foi apresentado até esse ponto, inferimos que o PAIF
entende o ser mulher como uma construção social em que a família ocupa um papel
fundamental nesse processo, (re)produzindo saberes, poderes e opressões. A partir disso,
vamos iniciar nossa análise da categoria mulher no PAIF compreendendo o que se entende
por família nesse serviço.
Para a PNAS “...estamos diante de uma família quando encontramos um
conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de
solidariedade” (BRASIL, 2005, p. 41). Ou seja, não existe uma delimitação de espaço
(residência em comum) e nem de parentalidade biológica; o vínculo socioafetivo seria a
característica mais expressiva da família. Esse conceito apontaria uma tentativa da PNAS
de trazer fidedignidade as atuais mudanças sociais que afetam o grupo familiar, “uma vez
que as três dimensões clássicas de sua definição (sexualidade, procriação e convivência) já
não têm o mesmo grau de imbricamento que se acreditava outrora” (BRASIL, 2005, p. 41).
Contudo, algumas questões permanecem invisíveis, visto que a Constituição
restringe esse conceito ao reconhecer a família exclusivamente como instituição formada
por homem e mulher (ligados pelo casamento ou união estável; com filhos ou não) (Art. 226,
§ 3º) ou por um dos genitores com sua prole (Art. 226, § 4º). Portanto, são distinguidos dois
modelos inteligíveis: a família heterossexual e monogâmica17, ou ainda, a monoparental.
Embora em todas as normativas da PNAS e do PAIF seja declarado que pretende-se
combater todos os tipos de discriminação social, bem como descontruir a noção de modelo
ideal de família, respeitando a heterogeneidade dos arranjos familiares.
Ter como embasamento das relações de parentesco essa matriz heterossexual
(conceitualizada como heterossexualidade compulsória), ao mesmo tempo que naturaliza a
heterossexualidade, produz abjeção e invisibilidade de outras vivências. Nesse enquadre
tão voltado para a finalidade reprodutiva da sexualidade, associa-se indistintamente sexo-
gênero-prática e desejo sexual, o que nos leva a outra naturalização, a da cisnormatividade,
ocultando existências, identidades e identificações de gênero divergentes desse modelo
(VERGUEIRO, 2015).
Nesse sentido, vale dizer, que em nenhuma normativa da PNAS aparece alguma
menção a transexualidade, o que é bastante questionável para uma política que visa justiça
social em um país que registra a maior quantidade de assassinatos de transexuais e
travestis no mundo. Nos anos que trabalhei em CRAS de diferentes cidades do Maranhão
(2008-2015), por exemplo, não registrei nenhum atendimento a pessoas homossexuais ou
transgêneras, certamente, isso não se justifica pela ausência delas nos territórios.
Outra característica da família para a PNAS seria seu papel de prestação de
cuidados e proteção aos seus membros18. Vejamos como isso se desenrola na prática.
Como o PAIF tem prioridade de atendimento às famílias beneficiárias do Bolsa Família
(PBF) – e é geralmente por demandas desse programa que as usuárias do PAIF acessam
esse Serviço – é comum que as famílias optem por indicar no cadastro do CRAS o mesmo
17 Engels (2006) afirma que a monogamia foi adotada como padrão a partir do surgimento da propriedade
privada, assegurando a dominação masculina sobre a família, o que daria a garantia ao homem de que os filhos
gerados por sua companheira eram seus herdeiros legítimos (ENGELS, 2006). Freud (1918, p. 201) também
chega às mesmas conclusões, acrescentando que o tabu da virgindade feminina foi “a continuação lógica do
direto à posse exclusiva da mulher”, estendendo esse monopólio também ao passado. 18 Nesse contexto, as famílias também são caracterizadas por serem espaços contraditórios, ou seja, podem
apresentar desigualdades e conflitos. Em razão das pressões de processos de exclusão sociocultural e o
empobrecimento acelerado suas fragilidades e contradições são acentuadas, incapacitando-as ou dificultando o
exercício da função cuidadora (BRASIL, 2005).
responsável familiar identificado como titular do cartão do PBF. Embora não seja uma
obrigatoriedade, uma vez que, enquanto o PBF tem a recomendação de que seu
responsável seja preferencialmente a mulher19, o PAIF define como responsável:
“Membro adulto da família que responde pelo cuidado cotidiano dos demais membros. Pode ser a mulher que não aufere renda, mas é responsável por atividades diárias em relação ao domicilio e à família ou, ainda a avó que cuida das crianças e/ou adolescentes enquanto a mãe desempenha o papel de provedora. O responsável familiar é a pessoa assim considerada pelos demais membros, em função do reconhecimento de sua responsabilidade de proteção e autoridade no âmbito familiar. As famílias podem ter mais de um responsável e, quando isso ocorrer, é importante que o PAIF trabalhe com ambos no que tange o desempenho desse papel, de modo a não sobrecarregar somente um dos membros” (BRASIL, 2012b, p. 23, grifos nossos).
Nessa descrição, nos chama atenção a escolha de exemplos que envolvem
mulheres-mães no espaço doméstico (mãe e avó). Por outro lado, fica claro que o
responsável é aquele identificado pela família como tal, ou seja, pode-se pensar que a
presença maciça de responsáveis mulheres refletiria muito mais um papel (re)produzido na
pratica social do que uma indução da própria política, até mesmo porque esta é pautada em
um diagnóstico socioterritorial que, entre outras coisas, indica a dificuldade e precariedade
do acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a presença significativa de famílias
monoparentais femininas, o que daria sentido a opção pelos exemplos citados.
Entretanto, não justificaria um Serviço baseado na expectativa da permanência
dessas mulheres no espaço doméstico, o que parece sugerido quando na citação acima
notamos as ideias excludentes de que: ou a pessoa é a responsável ou é aquela que aufere
renda. Isso também é reforçado quando avaliamos os horários de funcionamento do PAIF,
uma vez que as atividades devem ser realizadas em horário comercial e somente ações
complementares podem, ocasionalmente, acontecer no período noturno, em feriados e finais
de semana (BRASIL, 2012a). Logo, a usuária terá dificuldade para participar do Serviço
caso possua um emprego diurno, já que, provavelmente, coincidirá com seu turno de
trabalho.
A responsabilidade da mulher sobre a família e filhos é igualmente subentendida
quando o auxílio de natalidade da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) afirma que
dará apoio a mãe em caso de natimorto ou morte do recém-nascido e só em caso da morte
da mãe é que o apoio é dado a família (BRASIL, 1993, art. 3º). Nesse caso, pode-se notar
que o cuidado familiar, no PAIF, coincide como cuidado materno, mais do que isso, exercido
por uma mãe “do lar”.
Assim, nesse contexto, a maioria das mulheres acessa essa política de
promoção de cidadania por serem mães, gerando o que CARLOTO e MARIANO (2008)
19 De acordo com o site do MDSA, 93% das titulares do PBF são mulheres.
chamam de cidadania fragilizada, ou seja, elas se reconhecem como cidadãs por uma
associação com as funções materna e de cuidado doméstico, visando atender “mais as
necessidades do arranjo familiar do que a das mulheres enquanto sujeitos” (CARLOTO;
MARIANO, 2008, p. 163). Inclusive, é nessa lógica que o PBF dá preferência às mulheres
como responsáveis familiares, pois sua escolha tem base na constatação de que elas têm a
maior capacidade de gerir recursos em prol da família.
Tendo sido útil para a sociedade capitalista e patriarcal manter as mulheres
nesse lugar, foi necessário que o movimento feminista, entre outras reinvindicações,
questionasse essa distribuição de papéis familiares, buscando relações mais justas e
equilibradas, desnaturalizando concepções e comportamentos (DORLIN, 2009). Uma vez
que a “fixação de papéis sexuais, a exemplo do aprisionamento das mulheres as tarefas
reprodutivas, contribuiria para o reforço da lógica binária de classificação e para
(re)produção da subordinação feminina” (CARLOTO; MARIANO, 2008, p. 158).
Em relação a isso, o PAIF assinala que o trabalho com um único responsável
não determina uma rigidez de papéis sociais intrafamiliares, nem a culpabilização ou
sobrecarga desse integrante, pois as oficinas do Serviço
“...podem problematizar a desigualdade na distribuição das responsabilidades familiares, sensibilizando os participantes e os profissionais, que conduzem a oficina, a convidar outros membros das famílias para refletir sobre essa desigualdade, estimulando-os a redimensionar essa desigualdade” (BRASIL, 2012b, p. 23).
Nesse sentido, CORGOZINHO (2013, p. 5) afirma que:
“...a equidade de gênero no espaço doméstico não se atinge unicamente pela melhor distribuição de tarefas entre os sexos. A sobrecarga dividida talvez não resolva questões mais estruturais que só podem ser enfrentadas a partir de políticas sociais abrangentes e de transformações nos referenciais simbólicos dominantes relativos a estereótipos de gênero”.
Quanto a isso, de acordo com a PNAS, a proteção proposta pelo Estado estaria
calcada na promoção da cidadania ativa, garantia de renda, de redes sociorrelacionais e do
funcionamento e utilização (acesso) dos equipamentos públicos de direito (BRASIL, 2004).
Contudo, CASTILHO e CARLOTO (2011) indicam que o foco na família enquanto mulher
responsável acabam por sobrecarregá-la justamente porque não existe oferta adequada de
serviços no campo dos cuidados, aumentando seu tempo de trabalho não remunerado e
diminuindo suas chances de ser inserida no mercado de trabalho, contexto ainda mais
desfavorável para famílias pobres, como é o caso das(os) usuárias(os) da PNAS.
Não obstante, é preciso considerar que a mulher solteira e sem filhos poderá
acessar o PAIF de duas formas: sendo integrante de um grupo familiar o qual não é
responsável, já que as atividades, apesar de serem voltadas prioritariamente ao
representante familiar, são abertas para qualquer membro interessado (inclusive, essa
participação deve ser estimulada) (BRASIL, 2012b); ou ainda como integrante da chamada
“família unipessoal”20. Até mesmo o benefício do PBF pode ser acessado por pessoas
sozinhas, desde que atendam ao critério de renda (que é de até R$170,00 per capta).
Decerto, nas normativas do Serviço não aparecem indicativos de que as atividades foram
delineadas também para pessoas nesses perfis.
Diante do contexto apresentado, é possível afirmar que nas regulamentações
que norteiam o PAIF lê-se um Serviço voltado para mulheres pobres, mães, cisgêneras,
heterossexuais e do lar.
III. CONCLUSÃO
Pensar a categoria mulher numa perspectiva de gênero implica entendermos
que ao (re)produzir modelos inteligíveis de feminilidades, também se está (re)produzindo
masculinidades. Meyer, Klein e Fernandes (2012) enfatizam o quanto isso vem sendo
invisibilizado nas políticas de inclusão social no Brasil e ainda levantam um interessante
debate sobre como o PAIF tem produzido uma naturalização da ausência e não
responsabilização do homem/pai nos cuidados com a família, sendo essa função paterna,
muitas vezes, substituída pela Estado.
Outro ponto que merece destaque é que a política de Assistência social
brasileira é descentralizada e estruturada pelo princípio de territorialização. Isso significa
que apesar de definir os mesmos objetivos e diretrizes nacionalmente para o PAIF, cada
localidade deve planejar suas atividades de acordo com seus diagnósticos territoriais
específicos e com as necessidades próprias de cada família atendida (BRASIL, 2009b).
Nesse sentido, as orientações técnicas dessa política podem ser colocadas em prática de
diferentes maneiras a partir do olhar (interpretação das realidades) de quem executa o
Serviço.
Portanto, para que o PAIF se configure como um Serviço promovedor da
pluralidade e empoderamento de suas(seus) usuárias(os), além de refletir sobre os
materiais normativos do MDSA, as(os) profissionais envolvidas(os) no planejamento das
atividades (que são na maioria mulheres brancas e de classe média) precisam também
questionar os fundamentos de suas profissões 21 e suas próprias posições de sujeito,
20 Identificadas pela PNAS como aquelas compostas por pessoas que moram sozinhas (BRASIL, 2005). O termo
não aparece em nenhuma cartilha PAIF. 21 Na equipe do CRAS, geralmente, são contratadas(os) Psicólogas(os), Assistentes Sociais e Pedagogas: três
categorias demarcadas social e historicamente como “profissões de mulher”. Também podem compor a equipe
Antropólogo, Economista Doméstico; Sociólogo; Terapeuta ocupacional e Musicoterapeuta (CNAS, 2011).
descontruindo visões universalistas e excludentes. “A visão é sempre uma questão do poder
ver” (HARAWAY, 1988, p. 25).
Quanto a isso, as epistemologias feministas oferecem grandes contribuições: de
um lado, demarcando a visão parcial do homem cisgênero, branco, heterossexual, ocidental
e burguês que foi tida historicamente como neutralidade científica, de outro, apontando que
a objetividade só é alcançada por meio de saberes parciais, ou seja, localizados e
responsáveis por suas produções (HARAWAY, 1988).
Sendo as usuárias do Serviço mulheres pobres e na maioria negras é
imprescindível um olhar voltado para como essas categorias em interação influenciam suas
vivências (bem como a religião, orientação sexual, etc), visto que “tais elementos
diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos
de mulheres ou que afetem desproporcionalmente alguns grupos de mulheres” (CRENSAW,
2002, p. 173).
Por fim, e não menos importante, deve-se considerar também os efeitos da atual
conjuntura política em que a Assistência Social vem sofrendo um visível retrocesso no que
diz respeito a sua histórica conquista enquanto política de Estado22, situação ainda mais
agravada pelo expressivo número de parlamentares que defendem posições de ordem
religiosa, promovendo preconceitos e discriminações nas mais variadas esferas da vida dos
cidadãos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, MDS: 2009a. _______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. _______. Lei Orgânica de Assistência Social. Senado Federal, 1993. _______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações técnicas: Centro de Referência de Assistência Social. Brasília: MDS, 2009b. _______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações técnicas sobre PAIF: O Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Famílias – PAIF, segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília: MDS, 2012a.
22 Além do retorno do primeiro-damismo e fracionamento de verbas (com a união do MDS e Ministério do
Desenvolvimento Agrário) – o que ameaça a continuidade de direitos obtidos via programas, benefícios e
serviços – vale acrescentar o bloqueio de inúmeros dados do site do MDS, inviabilizando o acesso a importantes
fatos históricos e a informações de atividades do Ministério.
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