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UMA ANÁLISE GENEALÓGICA DA PEC 215 E SUA POTÊNCIA
RIZOMÁTICA
Autora: Rayane Bartolini Macedo
E-mail: [email protected]
Coautora: Simone Becker
E-mail: [email protected]
O objetivo desse trabalho é trazer à pessoa interessada em lê-lo, a possibilidade de
experimentar/testar a potência de noções (ao invés de conceitos) de alguns dos franceses
rebeldes, em especial, Deleuze-Guattari1 e Foucault, na interface de questões tão polêmicas e
conflituosas como a PEC 215 e o Racismo (de Estado). Trata-se, portanto, de nos deixarmos
enlevar pela experimentação2 da com-fluência (confluência) do projeto de mestrado de
Bartolini e do de pós-doutorado de Becker.
Assim, se num primeiro momento um dos projetos tinha um viés mais binário,
colocando em oposição os discursos de indígenas e ruralistas; posteriormente, com o
aprofundamento nos discursos e com o auxílio bibliográfico, principalmente a partir de
Foucault, Deleuze e Guattari, o olhar sobre a PEC foi se transformando e se expandindo. Quanto
mais lia, mais notava a amplitude dos discursos que a compunham, e o que inicialmente parecia
binário mostrou-se em meio a uma multiplicidade. Por isso, o processo de construção deste
trabalho atravessado pelo caso exemplar da PEC215, foi o de destrinchar os discursos e
significações que a compõem.
1 Cada vez mais nos convencemos de que o conhecimento se produz no coletivo e as produções de Deleuze e
Guattari como sinaliza Viveiros de Castro (2015) são desse uno não individualizado, instituído no e a partir do
duo que não é a soma de dois sujeitos. Ou ainda desse autor-dual como coloca o antropólogo. 2 Diferentemente do que comumente usamos nas ciências humanas, aqui ao invés de evocarmos a interpretação
enfatizaremos a experimentação de múltiplos sentidos aos sentidos por nós atribuídos às discussões que atravessam
tanto os conflitos fundiários quanto dos racismos que acentuam os etnocentrismos mundanos.
A ideia de fazer uma analogia da PEC215 com batatas – como abaixo a imagem
visibilizará –, é uma forma de tornar mais palpável e compreensível a multiplicidade e conexão
dos discursos e relações que a compõem. Para compreender melhor esta analogia comecemos
por definições. O que é um rizoma e o que isso tem a ver com batatas? De acordo com o
dicionário de biologia vegetal:
Os rizomas invadem as áreas próximas à planta-mãe, e cada nó pode originar
um novo eixo caulinar. (...) A batata inglesa é propagada artificialmente a
partir de segmentos de tubérculos , cada um com um ou mais “olhos
”. Nos fragmentos da batata (conhecidos popularmente como “sementes’), o
“olho” origina uma nova planta (RAVEN, 2014, p.346)
Em outras palavras, o rizoma é um caule subterrâneo que dá origem a diversas
ramificações, não apresentando uma única entrada e uma única saída, mas múltiplas. Quando
acumula muito material nutritivo origina tubérculos, ou seja, batatas. Como exemplo ilustrativo
do rizoma citado, vejamos a imagem:
Figura 1: Rizoma
Fonte: Raven - Biologia Vegetal
O processo de transformação da PEC215 em uma “batata” ocorreu com base nas
reflexões de Deleuze e Guattari, no texto intitulado “Rizoma”, parte introdutória do volume 1
do livro Anti-Édipo. No texto os autores se utilizam do termo rizoma justamente a partir desta
definição provinda da biologia, principalmente devido às características de multiplicidade e
interconexão desta, pois os autores propõem uma construção do conhecimento que não parta de
uma lógica binária.
Pensar no rizoma é pensar em suas características de multiplicidade, heterogeneidade,
em redes, no interconectado, no sem eixo; é uma espécie de labirinto, mas este labirinto não
tem um começo ou um fim. Quando partimos da noção de genealogia como a busca por uma
única e precisa de origem podemos dentro desta concepção afirmar que o rizoma é anti-
genealógico, ou seja, ele não parte por uma busca da origem de um conceito. Cabe destacar que
esta noção de genealogia enquanto a busca por uma origem difere da noção de genealogia
foucaultiana (este ponto será abordado no texto com maior profundidade a seguir). Como
descrevem Deleuze & Guattari:
Ele (rizoma) não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções
movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual
cresce e transborda (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.15).
Deste modo, o rizoma é feito de “platôs”. Os platôs estão sempre no meio, são a
multiplicidade em movimento, conectáveis que estendem e formam um rizoma. Por isso,
visualizar uma batata nos ajudou na compreensão da PEC215. A PEC não pode ser pensada
apenas de maneira binária, ela também não é só um discurso jurídico, nem tampouco a matriz
da lógica do “contraditório” a partir do qual a “verdade” é produzida por esse (BECKER, 2008).
A PEC215 está submersa em um labirinto de discursos e relações que a compõem, ela também
não é significada de uma só forma.
Assim, a PEC envolve: saber jurídico por se tratar de uma lei; relações políticas;
conflitos/violência e organização de dos grupos envolvidos - indígenas e ruralistas; é composta
por discursos de significação da terra; envolve economia, pois pensar em terra também envolve
produção/consumo sob a lógica estrutural do capitalismo; engloba discursos e relações de
gênero, pois podemos notar uma predominância masculina nestas relações, mesmo quando há
proeminência de mulheres agenciando as relações e discursos; envolve racismo, pois há uma
construção histórica negativa sobre a figura do indígena, que é (re)produzida e muitas vezes
reforçados pela mídia, para além de outros discursos de autoridade (BOURDIEU, 1998).
Lidar com esta multiplicidade de discursos e relações não significa que as pesquisas que
deram vazão a este trabalho vão aprofundar cada uma destas questões teóricas – gênero,
racismo, economia, política, etc. -, até porque isto não seria possível devido à amplitude. Afinal,
cada uma destas questões acaba dando margem a outras implicações que não correspondem a
PEC somente. Mas este trabalho se norteou pela seguinte questão ou pergunta de pesquisa:
Quais são as significações dadas a PEC215? Ou seja, quais são os discursos que a
permeiam/compõem? Por isso, o foco é observar como estes discursos e relações se
movimentam e estão inter-relacionados compondo a PEC.
Ao perceber esta multiplicidade que compõe a PEC215 é possível também refletir sobre
a ligação desta com as categorias foucaultianas que permeiam estas pesquisas, que são
saber/poder/verdade. O trabalho aqui desenvolvido lida com a análise de discurso sobre a
PEC215. Para Foucault (2015) discursos são construídos a partir de um saber, e este saber
produz discursos de “verdade”. Por isso, Foucault não dissocia saber e poder, saber é poder, e
todo poder provém de um saber, cuja observação se dá necessariamente pelo acompanhamento
compreensivo dos exercícios a partir dos quais o poder se (per)faz.
Cabe também ressaltar que para Foucault o poder é capilarizado. Então, vejamos
o que significa a capilarização do poder em Foucault:
Todos conhecem as grandes transformações, os reajustes institucionais que
implicaram a mudança de regime político, a maneira pela qual as delegações
de poder no ápice do sistema estatal foram modificadas. Mas quando penso
na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que
o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em
seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida
quotidiana (FOUCAULT, 2015, p. 74).
O maior desafio desta pesquisa não foi lidar com esta multiplicidade, mas “costurar”
esta multiplicidade tendo em vista que a PEC215 ainda está em construção, ou seja, sem perder
de vista mudanças em sua redação, pois seu trâmite também influi diversos conflitos entre
indígenas e ruralistas. Todas estas questões acabam também por influenciar sua significação
que não é singular. Assim, como uma forma de lidar com este rizoma o método desenvolvido
foi a análise de discurso através da genealogia. Reforço que a genealogia aqui desenvolvida não
é a busca de uma origem, mas uma genealogia foucaultiana que inspirada na genealogia da
moral nietzsheana busca pluralizar os sentidos dos nossos (des)caminhos mundanos. Se não,
vejamos:
E preciso se livrar do sujeito constituinte,
livrar−se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta
da constituição do
sujeito na trama histórica. E isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma
forma de história que
dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto,
etc., sem ter que se
referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de
acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história
((FOUCAULT, 2015, p.12)
A genealogia foucaultiana apresenta essa similaridade com um dos princípios do
rizoma, a cartografia, que é justamente a ideia de se mapear atores, relações e poderes. Para tal,
A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de
materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus "monumentos
ciclópicos" não a golpes de "grandes erros benfazejos" mas de "pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo". Em suma, uma
certa obstinação na erudição. (FOUCAULT, 2015, p.12)
Observando estas colocações de Foucault (2015) para desenvolver a genealogia da
PEC215, Bartolini debruçou-se sobre diversos documentos. Primeiramente, devido à sua falta
de familiaridade, focou em buscar compreender a PEC215 sob um olhar jurídico, tanto no que
diz respeito ao processo de tramitação - ou seja, ao processo burocrático percorrido para se
efetivar ou não enquanto uma mudança real na Constituição - quanto aos documentos jurídicos
sobre ela produzidos e disponibilizados no site da câmara. Outros documentos de cunho jurídico
que não fizeram parte da tramitação, como relatórios e pareceres técnicos sobre a PEC215 e ou
interligado a esta (como o voto de Carlos Ayres Britto sobre a Raposa do Sol) também fizeram
parte do campo desta pesquisa.
Assim, a pesquisa seguiu a partir da análise dos discursos focando principalmente na
observação de repetições das palavras e as significações que a estas são atribuídas que
apareceram nos documentos analisados.
A pesquisa desenvolve uma espécie de "costura" desses enunciados, de modo a esmiuçar
como estas palavras se interconectam nos discursos possibilitando visualizar os agentes, as
relações de poder que permeiam agentes e discursos.
Considerações sobre a perspectiva jurídica e suas ramificações
Para que possamos compreender a PEC215, cabe primeiramente contextualizarmos
Estado e Constituição. O conceito de Constituição aparece definido pelo dicionário Aurélio
(2001) como:
Ato ou efeito de constituir; modo que se constitui uma coisa, ser vivo ou um
grupo de pessoas; organização; lei fundamental de um Estado que contém
normas sobre a formação dos poderes públicos, direitos e deveres do cidadão.
Como podemos notar, os significados citados remetem a ideia de algo que
forma, compõe que organiza alguma coisa, no caso aqui apontado, ao Estado
(AURÉLIO, 2001, p 400).
Tal definição se aproxima do discurso jurídico, de acordo com José Afonso da Silva
(2005) - um dos teóricos do direito mais recorrente nas ementas de cursos de graduação em
ciências jurídicas, em especial na disciplina de Direito Constitucional - a Constituição é um
conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado, cujo objetivo é
estabelecer:
A estrutura do Estado, a organização de seus órgãos, o modo de aquisição do
poder e a forma de seu exercício, limites de sua atuação, assegurar os direitos
e garantias dos indivíduos, fixar o regime político e disciplinar os fins socio-
economicos do Estado, bem como os fundamentos dos direitos econômicos,
sociais e culturais. (SILVA, 2005, p.43)
Devemos ainda destacar que as leis não podem ser desvinculadas da realidade social
(SILVA, 2005), muito embora o vínculo entre leis escritas e realidade social não seja de
espelhamento, como Howard Becker (2008) e outros cientistas sociais historicamente
evidenciam. E também nosso contexto brasileiro, tão espinhoso, no tocante aos propalados três
poderes montesquianos. As leis representam culturas – enquanto sistemas simbólicos -
tendendo a representar o discurso dominante dentro de uma determinada sociedade em um dado
momento histórico. Entretanto, como as sociedades não são estáticas, suas mudanças também
influenciam na criação e reformulação de leis. Afinal de contas ou no final das contas, o normal
é aquele que apresenta o condão de ditar normas, diferentemente do patológico ou do discurso
marginal.
Assim, ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer a necessidade de mudanças, é
preciso ter mecanismos que dificultem que as mudanças possam vir a gerar instabilidade na
organização do Estado. Sob o ledo engano de que tais mecanismos contenham os
agenciamentos e resistências dos sujeitos. Esse mecanismo é pautado em normas que
formalizam o que pode ou não mudar e o processo para ser realizada a mudança. Como afirma
Silva (2005), a Constituição deve assegurar certa estabilidade, permanência e durabilidade das
instituições, por isso, a rigidez técnica é uma forma de permitir a mudança visando às
necessidades e o bem-social sem, contudo, de estabilizar as instituições.
No Brasil, a atual Constituição Federal foi promulgada/aprovada no ano de 1988, depois
de vinte e um anos de ditadura militar. A Constituição representa um marco, não só pelo fim da
ditadura como também por possibilitar maior participação popular, tanto no processo de sua
construção, quanto no que diz respeito ao reconhecimento de direitos – especialmente às
propaladas minorias de acesso às relações com o Estado.
Em sua redação, o art. 60/CF88 destina-se a Emenda à Constituição. Aliás, vivemos em
um momento em que as PEC´s pululam. Este artigo da constituição define “regras” sobre as
modificações, alterações na redação da Constituição. Tais regras são: quem pode propor
modificações à Constituição; os casos nos quais não poderá haver emendas; como serão votadas
estas propostas de emendas; e principalmente o que não pode ser modificado em nenhuma
circunstância, as chamadas cláusulas pétreas. A Constituição reconhece enquanto “intocável” a
forma federativa dos Estados, o direito ao voto sendo este secreto e universal e os direitos e
garantis individuais.
Sendo assim, são chamadas de propostas de emendas constitucionais as modificações
há serem realizadas no texto constitucional que para serem aprovadas ou rejeitadas devem
seguir as normas e etapas já estabelecidas na Constituição. Em síntese, devem seguir um ritual
(burocrático) para serem aceitas ou rejeitadas.
Para Arnold Van Gennep (2011) vida social e ritualização se inter-relacionam, ou seja,
a vida social produz rituais, e ritualizar é dar movimento e significação à vida. Por isso,
podemos pensar no trâmite jurídico enquanto um rito de passagem, afinal, uma proposta de
emenda precisa passar por várias etapas - que contém vários elementos simbólicos, como o
formato das assembleias e reuniões, além do próprio vocabulário jurídico - nas quais sua própria
redação vai se modificando/transformando para finalmente ocasionar (ou não) uma mudança
na Constituição. E quando é instituída esta mudança na Constituição acaba influenciando nas
relações sociais do cotidiano e suas significações, não em termos de espelhamento e/ou
determinismo. Mas de uma das formas de dar potência aos agenciamentos e aos sentidos de
dadas relações sociais, como aquelas enredadas pela “terra” no sul de MS.
Como Simone Becker (2008), uma das autoras desse ensaio, expõe em sua tese,
dedicada ao entendimento etnográfico e genealógico de como se produzem provas e verdade
no contexto jurídico, há um inter-relacionamento entre as instâncias do que ela chamará de
“verdades morais abstratas legais”, “verdades morais abstratas doutrinárias”; “verdades morais
concretas jurisprudenciais” e “verdades Reais”. E então entre mitos e ritos. Isto porque:
Em suma, sugiro estreitar as doutrinas aos mitos, e os diversos documentos
judiciais aos rituais, acima de tudo pelo caráter de legitimação, ora através da
reformulação, ora através da repetição que esses imprimem às doutrinas. E
mais: se os julgamentos de casos concretos feitos por juízes, por
desembargadores dos Tribunais de Justiça ou pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal reiteram posições interpretativas de seus pares (os juristas e
experts do direito) contidas nas doutrinas, tal como os rituais reforçam os
mitos, hei de considerar que também são alguns desses julgamentos que
podem reformular as duas acima denominadas verdades morais abstratas (leis
e doutrinas). Refiro-me às jurisprudências como capazes de reformular ou
impulsionar a formulação das leis secas e suas interpretações contidas (ou não)
em doutrinas (BECKER, 2008, p.79).
Mas se o Brasil é composto por diferentes etnias, raças, religiões, classes, identidades
de gênero, e etc., como a Constituição pode representar isso sem mudanças constantes? Pensar
nisso, é pensar que há uma gama complexa de motivos e argumentos que sustenta a produção
normativa, dentre elas, todas as estratégias ligadas às influências produzidas junto aos nossos
representantes, sobretudo, no Poder Legislativo. Com as ressalvas para lá de pertinentes tecidas
por Judith Butler (2003), ao expor a inevitável ligação entre representação identitária e política
dos mais diversos sujeitos e suas demandas.
Política e a representação são termos polêmicos. Por um lado, a representação
serve como um termo operacional no seio de um processo político que busca
estender visibilidade e legitimidade as mulheres como sujeitos políticos; por
outro lado a representação é a função normativa da linguagem que revelaria
ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres.
Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de
representá-las completa ou adequadamente pareceu necessário, a fim de
promover a visibilidade política das mulheres. Isso pareceria obviamente
importante, considerando a condição cultural difusa na qual a vida das
mulheres era mal representada ou simplesmente não representada. (BUTLER,
2003, p.18)
Eis os desafios dos movimentos sociais e suas reivindicações de universalizar
particularizando, como é o caso das plataformas feministas, cujos sentidos dados à palavra
“mulheres” não é das mais plurais possíveis. Aliás, é ela quem não dissociará gênero de etnia,
raça, classe social, geração e produção de maiores precariedades do humano a depender das
exclusões engendradas pelo Estado na articulação de tais vetores.
Como Constituição é uma forma de organizar o Estado (englobando aqui
instituições e sociedade) cabe pensarmos o papel e atuação do Estado (enquanto instituição).
Max Weber (2004) afirma que o Estado é detentor do monopólio de coação física legítima. O
Estado ao invés de concentrar o poder divide este, de forma burocratizada, e então, o direito
surge como uma burocracia do Estado, uma forma de dominação, de coerção. Como Weber
poderíamos citar os demais clássicos fundadores da sociologia como Durkheim e Marx com
suas ênfases no que toca às ciências jurídicas, mas sublinhamos que nos Estados Nacionais
Modernos não nos distanciamos de como eles se sustentam em grande medida como
disciplinadores e vigilantes no sentido preconizado por Michel Foucault (2015), ao trabalhar
com as noções de biopoder e de biopolítica (BECKER, 2008).
O biopoder e a biopolítica são termos que se inter-relacionam. Foucault (2005)
aponta que o biopoder é o poder sobre o corpo, que o Estado tem o poder de “fazer viver, deixar
morrer” – biopolítica. Em outras palavras, a biopolítica surge com a noção de população, e esta
passa a ser um problema político, biológico e científico. Assim, o Estado passa a criar
mecanismos, como políticas de intervenção, por exemplo, podem ser citados: o controle de
natalidade, de doenças, de mortalidade, etc. E isso se relaciona ao racismo de Estado, que se
desenvolve a partir de um discurso de normatização, ou seja, do que pode ou não ser
considerado normal ou patológico. De acordo com Foucault (2005):
Se poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele
tem de passar pelo racismo. E se, inversamente, um poder de soberania, ou
seja, um poder que tem direito de vida e de morte, quer funcionar como
instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da normalização, ele
também tem de passar pelo racismo. E claro, por tirar a vida não entendo
simplesmente o assassino direto, mas também tudo que pode ser assassino
indireto: fato de expor à morte, de multiplicar para alguns risco de morte ou,
pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.
(FOUCAULT, 2005, p.306).
Podemos notar que a violência não se expressa apenas na forma física, mas o Estado
através de discursos e mecanismos de normatização propaga vários tipos de violência de
maneiras até mesmo muito sutis. O próprio sistema judiciário é um destes mecanismos.
Entretanto cabe destacar que o poder do Estado vai além, como afirma Foucault:
Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer
não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se
mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma
força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso. Deve−se considerá−lo como uma rede
produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 2015, p. 44-45).
Podemos concluir então que o saber produzido pelo direito é tido enquanto uma
“verdade”, e essa “verdade” traz consigo efeitos de poder. Assim, se por um lado a Constituição
de 1988 trouxe reconhecimento de direitos, de outro há minorias lutando não somente pelo e
para ampliação destes, mas também, e principalmente para que os direitos já garantidos na
Constituição sejam postos em prática. Por isso, pensar na Constituição também é pensar nas
representações, interpretações e discursos produzidos pelos legisladores.
Mas quem são estes legisladores? O Congresso é composto por senadores e deputados,
que no total somam 513 parlamentares. A população brasileira ser composta por maioria de
51,6 (BRASIL.GOV, 2016) mulheres, e por 54% (IBGE, 2016) de pessoas negras. Mas no
Congresso essas maiorias são minorias, 10% dos parlamentares são mulheres e 20% (entre
homens e mulheres) se declaram negros.
No Congresso existem ainda grupos de interesses que compõem as chamadas bancadas.
Vejamos o esquema que mostra bancadas criado pela agência de pesquisas Pública, divulgado
no site Congresso em Foco:
Fonte: CONGRESSOEMFOCO
Observemos as três de maior influência de acordo com o apresentado. O esquema acima
também tem um desenho rizomático. O que acontece é que um parlamentar pode fazer parte de
mais de uma bancada ao mesmo tempo, tudo depende do seu interesse. Tendo em vista que toda
ação é movida por interesse e este envolve motivações não somente econômicas como também
simbólicas que se desenvolvem dentro do campo social a partir das relações. Parece-nos, então
que a distinção entre a maneira como Bourdieu e Butler articularão suas inspirações junto à
Austin, será o maior ou menor compromisso com as relações mais cotidianas e capilares
possíveis, que Bourdieu e sua noção de habitus não priorizam por se ater aos esquemas mais
binários e ligados às tendências classistas.
Nota-se que a bancada chamada “Bancada dos Parentes” - tem esse nome por
representar a presença de parlamentares com grau de parentesco – é apresentada enquanto a
maior pelo esquema.
Em segundo lugar encontram-se as “Bancadas de Empreiteiras e Construtoras”
referentes aos parlamentares financiados por estas. E em terceiro a Bancada Ruralista, esta
bancada surgiu em 1988, antes conhecida como UDR - União Democrática Ruralista-, mas
somente em 1995 ela deixou de ser informal e foi criada a FPA - Frente Parlamentar da
Agropecuária- (FPA, 2016). Em entrevista à BBC Brasil, o historiador Edélcio Vigna que
estuda a bancada ruralista desde 2001 explica que parte do fortalecimento do grupo ocorreu
pela coalizão governista, que confere ao PMDB – partido mais representado na bancada e
principal membro da coligação do governo – maior poder de barganha no Congresso (BBC,
2016).
Entretanto, a união de três bancadas tem cada vez mais ganhado força e destaque na
mídia, a chamada BBB - Bancada do Boi, da Bala e da Bíblia-, referentes aos parlamentares da
bancada ruralista, aos ligados a indústria das armas, e aos evangélicos
(BECKER;OLIVEIRA;CAMPOS,2016). Nos últimos anos projetos ligados a estas bancadas
vem ganhado força, como: a PEC 215, também chamada de PEC das demarcações; o projeto
de diminuição da maioridade penal; o estatuto da família, etc.
Para não dizer que não concluímos (...)
Por fim, podemos notar que o discurso jurídico também envolve poderes, ideologias,
interesses e interpretações de quem legisla como a própria noção clássica de Weber para ação
social sinaliza. Portanto, re-iteramos que não se trata de juízo de valor no sentido pejorativo
atribuído ao termo interesse, mas à expansão de seus sentidos, considerando que não se
estabelecem relações sociais a partir do legislativo sem disparadores de sentidos interessados.
Outrossim, falar sobre a Constituição também é pensar nas representações, nas
significações e discursos produzidos pelos legisladores. E o quanto os discursos que são
construídos e naturalizados, produzidos e reproduzidos enquanto verdades se espraiem.
Entretanto, tais questões colocam o poder enquanto unilateral. Por de trás do processo
de produção de leis, de emendas, também há um “jogo de poderes” que envolve não somente
questões de interesse partidário, como também pressões feitas por manifestações populares em
forma de resistências ou re-existências foucaultianas. Tais questões atuam como platôs, ou seja,
encontram-se interconectadas, e implicam em maior ou menor influência a depender do
movimento/contexto, sem que necessariamente a estrutura consiga contê-las.
É o que esperamos em tempos tão ásperos: que brotem as re-existências transbordantes
à estrutura.
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