324
Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSÊNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira Rio de Janeiro 2011

Uma Etnografia Para Muitas Ausências

  • Upload
    antonio

  • View
    261

  • Download
    1

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Um estudo sobre o desaparecimento civil de pessoas

Citation preview

  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Museu Nacional

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social

    Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira

    Rio de Janeiro

    2011

  • ii

    UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social

    Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira

    Tese de Doutorado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social do Museu Nacional,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    como parte dos requisitos necessrios

    obteno do ttulo de Doutor em

    Antropologia.

    Orientadora: Adriana de Resende Barreto

    Vianna

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2011

  • iii

    UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social

    Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira

    Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

    Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

    dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia. Aprovada por:

    _________________________________________

    Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna, Presidente da Banca

    PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

    _________________________________________

    Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima

    PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

    _________________________________________

    Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira

    PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

    _________________________________________

    Prof. Dr. Srgio Lus Carrara

    Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    (IMS/UERJ)

    _________________________________________

    Prof. Dra. Claudia Lee Williams Fonseca

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul (PPGAS/UFRGS)

    _________________________________________

    Prof. Dr. John Cunha Comerford (Suplente)

    PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

    _________________________________________

    Prof. Dra. Mara Gabriela Lugones (Suplente)

    Universidad Nacional de Crdoba

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2011

  • iv

    FERREIRA, Letcia Carvalho de Mesquita.

    Uma Etnografia para Muitas Ausncias: O Desaparecimento de Pessoas

    como Ocorrncia Policial e Problema Social./Letcia Carvalho de Mesquita

    Ferreira. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2011.

    xvi, 308 p.; 31 cm.

    Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.

    Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, 2011.

    Referncias Bibliogrficas: pp. 281-293.

    1. Desaparecimento de Pessoas 2. Pessoas Desaparecidas 3. Ocorrncia

    Policial 4. Problema Social 5. 6. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social. III. Ttulo.

  • v

    RESUMO

    O desaparecimento de pessoas um tipo de ocorrncia registrado diariamente nas delegacias

    de polcia brasileiras. Ao mesmo tempo, tambm tema de eventos pblicos, dedicados a

    debater e promover iniciativas para seu combate e preveno. A presente tese tem o propsito

    de compreender como solicitaes, acontecimentos e ausncias mltiplas e heterogneas so

    tanto classificadas como mesmo tipo de ocorrncia policial, quanto encaradas como

    manifestaes particulares de um s problema social. O texto resultado de trabalho de

    campo realizado inicialmente no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da antiga

    Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro (Centro/Capital), repartio policial dedicada a

    investigar exclusivamente casos de desaparecimento, e estendido para eventos da Rede

    Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes Desaparecidos

    (ReDESAP), que rene rgos governamentais e organizaes no-governamentais que lidam

    com desaparecimentos de pessoa. Ao longo de cinco capitulos, as rotinas burocrticas e os

    artefatos de gesto por meio dos quais casos de desaparecimento so registrados, investigados

    e arquivados por policiais so objeto de descrio. Ademais, os embates e jogos de fora

    estabelecidos entre agentes sociais engajados em eventos pblicos sobre o tema, ponto nodal

    da constituio do desaparecimento de pessoas como problema social, tambm so descritos.

    Narrativas de casos particulares hoje arquivados no SDP atravessam todos os captulos. A

    partir dos casos narrados e dos embates, artefatos e rotinas descritos, constata-se que o

    registro, investigao e arquivamento de casos de desaparecimento em delegacias produzem

    cotidianamente a irrelevncia desse tipo de ocorrncia, ao passo que eventos sobre o tema

    esforam-se por conferir-lhe visibilidade e inseri-lo na agenda pblica. No obstante, tanto em

    reparties policiais, quanto em eventos pblicos so igualmente empreendidas classificaes

    que implicam processos de (des)responsabilizao. Para policiais, desaparecimentos so

    problemas de famlia; para outros agentes sociais engajados no tema, desaparecimentos so problemas de segurana pblica ou problemas de assistncia social. Por meio dessas classificaes, policiais, mes de pessoas desaparecidas e gestores de polticas pblicas

    posicionam-se uns em relao aos outros e constroem, juntos, denncias pblicas de mltiplas

    ausncias. Enquanto a falta de uma pessoa em espaos geogrficos e teias de relaes sociais

    em que se esperava que ela pudesse ser localizada objeto de comunicao em reparties

    policiais, em eventos pblicos sobre o desaparecimento a falta de um Estado assistente, uma

    famlia protetora e uma polcia sensvel e competente so objeto de denncia.

    Palavras-chave: Desaparecimento de Pessoas, Pessoas Desaparecidas, Ocorrncia Policial,

    Problema social

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2011

  • vi

    ABSTRACT

    The disappearance of people is a type of event recorded daily in Brazilian police stations. At

    the same time, it is also the subject of public events dedicated to debating and promoting

    initiatives to its combat and prevention. This thesis aims at understanding how requests,

    events, and many heterogeneous absences are both classified as the same type of police

    report, and seen as particular manifestations of a single social problem. The text is the result

    of fieldwork carried out initially in the Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP), a sector of

    the former Homicide Division of Rio de Janeiro devoted exclusively to investigating cases of

    disappearance, and extended to events of the Rede Nacional de Identificao e Localizao de

    Crianas e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), an assemblage of governmental and

    nongovernmental organizations dealing with missing persons. Over five chapters, the

    bureaucratic routines and management artifacts through which disappearance cases are

    recorded, archived and investigated by the police are subject of description. Moreover, the

    conflicts and power games between social actors engaged in public events on the theme,

    which are the nodal point constituting the disappearance of persons as a social problem, are

    also described. Narratives of individual cases archived in the SDP cut through all the chapter.

    Based on the cases recounted and the battles and routines described, it appears that the

    registration, investigation and filing of cases of disappearance by police officers routinely

    produce the irrelevance of such occurrence, while events on the subject strives to turn the

    issue visible and insert it into the public agenda. However, classifications entailing

    assignments (and retreats) of responsibility are undertaken both in police departments, and in

    public events. For police officers, disappearances are "family problems", whereas to other

    social actors engaged in the subject, disappearances are "issues of public safety" or "social

    service problems". Through these rankings, police officers, mothers of missing persons and

    government officials position themselves in relation to each other and build together public

    denunciations of multiple absences. While the lack of a person in geographic sites and webs

    of social relations in which he/she were expected to be located is the subject of

    communication in police offices, at public events about the disappearance the lack of a

    provider state, a protective family and a sensitive and competent police are the subject of

    denunciation.

    Key-words: Disappearance of people, Missing Persons, Police Report, Social Problem

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2011

  • vii

    AGRADECIMENTOS

    Adriana de Resende Barreto Vianna, minha querida orientadora, costuma chamar os

    casos que encontrei nos arquivos da polcia de contos da burocracia mgica. Adriana

    assim: volta sempre seu olhar certeiro para as fabulaes e efeitos mgicos que todo objeto de

    estudo pode despertar, desde o mais rido at o mais facilmente envolvente. Aprender com ela

    os melhores sentidos da palavra autonomia, contar com sua orientao to firme quanto

    carinhosa, e poder compartilhar os gostos e desgostos da pesquisa, da antropologia e da vida

    so luxos impossveis de agradecer altura. Ainda assim, registro aqui meus mais sinceros

    agradecimentos pelo privilgio inestimvel que contar com a leveza da sua confiana.

    A Antonio Carlos de Souza Lima, agradeo por cada curso, indagao e palavra de

    incentivo. Ao longo do mestrado e do doutorado, em diversas ocasies e em especial nos

    Exames de Qualificao, sua presena franca e clarividente sempre me pareceu uma imensa

    sorte. A ele agradeo ainda por ter me ensinado, atravs de sua prpria postura, que o trabalho

    intelectual no algo que deva ficar encastelado e inacessvel, nem se pretender excepcional.

    Ao lado de Antonio Carlos, o professor Moacir Palmeira levou poesia para os Exames

    de Qualificao que precederam a escrita desta tese. Agradeo enormemente suas leituras,

    idias e indicaes quando minha relao com o material de pesquisa era ainda bastante

    confusa e, no entanto, recebeu dele uma bela dose de Carlos Drummond de Andrade.

    A Cludia Fonseca, Sergio Carrara, Mara Gabriela Lugones e John Comerford, que

    aceitaram compor a Banca de Defesa ao lado de Antonio Carlos de Souza Lima e Moacir

    Palmeira, registro aqui meu muito obrigada por concederem tempo e ateno ao meu trabalho.

    Sou igualmente grata a cada professor com que tive chance de fazer cursos e trocar

    idias no PPGAS/Museu Nacional nos ltimos seis anos e meio, em especial Lygia Sigaud (in

    memoriam), Federico Neiburg, Luiz Fernando Dias Duarte, Olvia Cunha, Antondia Borges

    e Fernando Rabossi. Tambm aos funcionrios da Secretaria, da Biblioteca e da Xerox,

    registro aqui meus agradecimentos pela presteza e dedicao. Agradeo a todos no nome da

    adorvel e sempre gentil Carla de Freitas. Agradeo ainda o apoio do CNPq e da FAPERJ,

    que me concederam bolsas de estudo ao longo do doutorado.

    Durante a realizao da pesquisa, pude contar tambm com recursos do projeto

    Polticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de Direitos: Estudos Antropolgicos das

    Prticas, Genros Textuais e Organizaes de Governo DIVERSO, realizado no

  • viii

    Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), Museu

    Nacional/UFRJ, em convnio com a FINEP.

    Paulo Esteves, amigo querido, foi quem me apresentou o Museu Nacional e apontou o

    caminho que me trouxe at aqui. A ele, nem sei como agradecer pelas inmeras oportunidades

    criadas e oferecidas desde minha graduao na PUC-Minas, quando fui sua aluna e

    orientanda, at minha acolhida (e retorno) no Instituto de Relaes Internacionais da PUC-

    Rio, agora como professora.

    Adentrando o mundo que gostamos de encantar chamando de campo, registro meus

    agradecimentos aos policiais do Setor de Descoberta de Paradeiros da antiga Delegacia de

    Homicdios do Centro/Capital, em especial e com muito carinho ao inspetor Robson

    Fontenelle, por terem partilhado comigo a preciosidade que alimenta a pesquisa

    antropolgica: seu cotidiano. Nessa cidade em que tanto se pensa e fala sobre a polcia, foi

    um privilgio ouvir o que pensam e falam os policiais do SDP.

    Aos membros do comit gestor da Rede Nacional de Identificao e Localizao de

    Crianas e Adolescentes Desaparecidos, sou grata pela chance de compartilhar uma causa.

    Luiz Henrique Oliveira, Ivanise Esperidio da Silva, Vnia Nogueira, Laura Argllo, Elton

    Galindo e Adriano Severino Santos mobilizam o que podem e o que no podem para atender

    familiares de desaparecidos e procurar maneiras de lidar com casos impossveis. Em nome

    deles, registro minha gratido e admirao por todos os membros da ReDESAP.

    Na Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, agradeo queles que

    articularam a ReDESAP nos ltimos anos e me abriram espaos e fizeram convites. Benedito

    Santos, Walisson Arajo, Beatriz Brando e Denille Melo, ao coordenar e promover eventos

    da rede, renem idias que me motivaram (e motivam) a pensar sobre o tema desta tese.

    Tambm me motivaram e motivam, no s a pensar sobre o tema deste trabalho, mas a

    deix-lo de lado em momentos essenciais, meus queridssimos amigos e familiares.

    Julia ODonnell foi literalmente a primeira pessoa que conheci no Museu, e desde

    aquele comeo dividimos bairros, apreenses e surpresas. Como se j no fosse tanto, Julia

    colocou no mundo, ao lado do querido Leonardo Pereira, nossa pequena Helena e tudo o que,

    com ela, ainda est por vir. E Fernanda Figurelli, com sua doce presena estrangeira, me

    ajudou a fazer do Rio minha/nossa casa. Estou e estarei sempre espera de suas visitas.

    Zoy Anastassakis, minha grega do corao, uma amiga dessas que s se faz uma vez

    na vida e se leva para a vida inteira. S posso dizer que toro pelas conquistas dela

    exatamente como anseio pelas minhas. E Andr Dumans Guedes, mineiro mais carioca que

  • ix

    h, sempre uma inspirao para antropologias, idias e, sobretudo, para um mundo to lido,

    quanto corrido. Pela gentileza de ter lido parte desta tese e escrito preciosas pginas sobre ela,

    a ele devo meu melhor obrigada.

    Paula Lacerda, Rita Santos, Slvia Aguio, Juliana Farias, Martinho Silva, Laura

    Lowenkron, Cludia Cunha e Liane Braga esto presentes neste trabalho por seus incentivos,

    leituras, comentrios e, sobretudo, desejos de que tudo desse certo no final. Em nome deles,

    que acompanharam de perto resultados parciais da pesquisa, agradeo a todos com que

    compartilhei as salas de aula do Museu. Liane agradeo ainda pela generosa oportunidade

    de trabalho no Claves/Fiocruz, que me deu tranqilidade para escrever depois de encerrado o

    prazo regular do doutorado.

    Com Paula e Rita pude tambm compartilhar outras salas de aula e muitos quartos de

    hotel em viagens que fizemos para realizar cursos de capacitao de atores da ReDESAP.

    Admiro cada detalhe do modo honesto, decidido e ao mesmo tempo terno e colorido com que

    as duas levam a vida, e no consigo imaginar melhores companhias para aquela empreitada e

    para todas as outras que, tenho certeza, ainda enfrentaremos juntas.

    minha companheira de desterro Camila Meireles, agradeo pelas infinitas gentilezas

    e delicadezas com que preenche nossa amizade. E aos meus saudosos amigos de BH, hoje

    espalhados pelo mundo, registro meu obrigada pelo carinho distncia, pela tolerncia diante

    de minhas ausncias e pelas deliciosas visitas feitas nos ltimos anos.

    Com minha amada irm Luciana compartilho uma famlia, uma histria e muitas

    memrias, mas quero agradecer imensamente pela certeza do que ainda vamos dividir. Pelas

    viagens que faremos, os lbuns de fotografia que preencheremos, as conquistas que

    comemoraremos e as alegrias, surpresas e bobagens de que riremos juntas.

    Meu pai, Eduardo, acompanha minhas escolhas e rumos com muito carinho, respeito e

    entusiasmo. Saber que posso contar com seu apoio um conforto que no cabe em palavras.

    A ele agradeo tambm pela reviso do texto e pelos comentrios deixados nos cantos das

    pginas, que aplacaram muito da solido que escrever uma tese.

    Minha me, Wnia, construiu nos ltimos anos uma casa que mais parece um pedao

    de paraso. Busquei a imagem dessa casa todas as vezes que parei por alguns instantes diante

    de dificuldades que passaram e de idias que ficaram nesta tese. Isso sempre me serviu como

    uma injeo de nimo, aconchego e alegria. Coisa de me!

    E ao meu amor, Srgio Veloso, devo vrios obrigadas pela companhia, pelo incentivo

    e por cada uma das vezes que o ouvi tocando violo pela casa enquanto escrevia estas

  • x

    pginas. No sei se ele sabe, mas no comeo da pesquisa minha inteno (e inquietao) era

    entender no s como algumas pessoas desaparecem, mas tambm como tantas outras voltam

    diariamente para suas casas, tranqilas e determinadas, sem sequer aventar a possibilidade de

    sair por a e perder-se no mundo. A ele agradeo por ser um dos meus melhores motivos.

  • xi

    LISTA DE QUADROS E FIGURAS

    Quadro 1 Classificaes de Sindicncias 48

    Quadro 2 Mesas e Temas do II Encontro Nacional da ReDESAP 64

    Quadro 3 Grupos de casos 124

    Quadro 4 Alguns nmeros da ReDESAP 192

    Figura 1 Situando o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas 240

  • xii

    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    BPM Batalho da Polcia Militar

    Cedae Companhia Estadual de guas e Esgotos

    CT Conselho Tutelar

    DAIRJ Delegacia de Polcia do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro

    DEAM Delegacia Especial de Atendimento Mulher

    DESIPE Departamento do Sistema Penitencirio do Rio de Janeiro

    DETRAN-RJ Departamento de Trnsito do Rio de Janeiro

    DP Delegacia Policial

    DH Delegacia de Homicdios

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    MJ Ministrio da Justia

    MP Ministrio Pblico

    FCNCT Frum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares

    Fenseg Federao Nacional de Seguros Gerais

    FIA-RJ Fundao para a Infncia e Adolescncia do Rio de Janeiro

    HSA Hospital Municipal Souza Aguiar

    HFM Hospital Ferreira Machado

    ICCE Instituto de Criminalstica Carlos boli

    IFP Instituto Flix Pacheco

    IML Instituto Mdico-Legal

    IMLAP ou

    IML-RJ

    Instituto Mdico-Legal Afrnio Peixoto ou Instituto Mdico-Legal do Rio de

    Janeiro

    INSS Instituto Nacional do Seguro Social

    IPERJ Instituto de Previdncia do Estado do Rio de Janeiro

    ISP Instituto de Segurana Pblica

    ONG Organizao No-Governamental

    PAF

    PNCFC

    Projtil de Arma de Fogo

    Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e

    Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria

    POLINTER Polcia Interestadual

  • xiii

    PF Polcia Federal

    RG Registro Geral

    Rede

    INFOSEG

    Rede de Integrao Nacional de Informaes de Segurana Pblica, Justia e

    Fiscalizao

    ReDESAP Rede Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes

    Desaparecidos

    SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia

    SDP Setor de Descoberta de Paradeiros

    SENASP Secretaria Nacional de Segurana Pblica

    SEDH/PR Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

    SICRIDE/PR Servio de Investigao de Crianas Desaparecidas do Paran

    SPC Servio de Proteo ao Crdito

    SPDCA Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente

    TJ Tribunal de Justia

  • xiv

    SUMRIO

    Prlogo 1

    Introduo 2

    Uma forma para muitas ausncias 10

    Atravs da porta que fica aberta 19

    Organizao da tese 25

    1. Nada opor: um problema de pesquisa e seus trmites 27

    1.1 Por um paradeiro ou por um papel? 29

    1.2 A entrada em campo e a abertura dos arquivos 36

    1.3 A burocracia e seus becos: o SDP 45

    1.4 A pesquisa e suas curvas: a ReDESAP 60

    2. Salvo melhor juzo: uma ocorrncia policial e suas rotinas 72

    2.1 Uma rotina para um fato atpico 73

    2.2 De que feito um enigma 94

    2.3 problema do Estado 112

    2.4 (Outros) 120

    3. Esgotadas todas as possibilidades: uma ocorrncia policial e seus artefatos 129

    3.1 So essas coisas de todo instante 131

    3.2 Aborrecimentos, conselhos e compromissos 140

    3.3 Desvios, suspeitas e reputaes 149

    3.4 Perturbaes, cuidados e dependncia 160

    3.5 Errncia, corpos e territrios 171

    4. o que me cumpre informar: um problema social e seus embates 187

    4.1 Outras portas que se abrem 193

    4.2 Uma rede e seus enlaces 198

    4.3 Uma rede e seus ns 206

    4.3.1 H famlias desestruturadas em todas as classes sociais 207

    4.3.2 Minha famlia se desestruturou depois que minha filha desapareceu 211

    4.3.3 No temos a estrutura necessria 222

    4.4 De quantas ausncias feito um problema 227

    5. Isso coisa do destino: algumas formas escorregadias de classificao 234

    5.1 Sem destino certo 238

    5.2 Mas com tudo arrumado 246

    5.3 Algumas formas eficazes de excluso 255

    5.4 Uma nota sobre participao 265

  • xv

    Consideraes finais: procura de Lusa Porto 271

    Referncias Bibliogrficas 281

    Anexos

    I. Documentos 295

    II. ndice alfabtico e resumos dos casos 298

    III. Membros da ReDESAP 305

    IV. Eventos da ReDESAP 307

  • xvi

    Mais do que comer, correr ou flechar a carne

    alheia, mais do que aquecer a prole sob a

    palha, ns nos sentamos e damos nomes, como

    pequenos imperadores do todo e de tudo. Uma

    mulher dirigiu seus passos ao poente e sumiu;

    sabem o que fez aquele que ela abandonou,

    enquanto fitava o poente com os olhos cavos?

    Ele grunhiu, e este grunhido virou o nome da

    desaparecida. Ele lhe deu um nome, ele ganhou

    seu nome, como um cogulo, uma reteno

    daquilo que passava, confuso, por ele, um

    poente paralelo ao poente diante dele.

    Nuno Ramos,

  • 1

    Prlogo

    O stimo andar do edifcio sede da Polcia Civil correspondia, naquela poca,

    Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro Centro/Capital. Depois de devidamente

    identificado na portaria, quem a ele ascendia via, assim que saa de um dos quatro elevadores

    do prdio, alguns corredores e muitas portas. Todas as portas tinham placas indicando o que

    funcionava e/ou quem trabalhava nas respectivas salas. De um lado, a primeira porta que se

    avistava era a dos Delegados Adjuntos. Do outro, a porta da sala 709, cuja placa indicava

    Seo de Descoberta de Paradeiros. Era esta sala que eu procurava naquela manh. O ms

    era maro e o ano, 2008.

    Logo que sa do elevador encontrei, parados diante da porta da sala 709, Maria e

    Jeferson. Eles aguardavam um policial especfico, de nome Fernando, que nas palavras dela j

    sabia do que se tratava. Perguntei ento se eles queriam registrar o desaparecimento de

    algum parente, ao que Maria respondeu negativamente: estavam ali, ao contrrio, para pedir a

    suspenso das investigaes em torno do paradeiro de uma pessoa que eles mesmos haviam

    localizado. Pensando pouco e pressupondo muito, imediatamente eu disse que deveria ser um

    grande alvio reencontrar algum dado como desaparecido. Para minha surpresa, Maria assim

    me contestou: Pra mim no alvio nenhum. Eu preferia que ele evaporasse.

    Segundo relatos de Maria, Antnio, a pessoa que ela preferia que evaporasse, era seu

    ex-marido, de quem estava separada h cerca de vinte anos. Ainda que separados, viviam na

    mesma casa, habitada tambm por Jeferson, atual companheiro dela. Nas palavras de Maria,

    mais do que algum com quem fora casada no passado, Antnio era algum que lhe dava

    muito trabalho no presente. Desaparecer, fazendo com que ela e seu companheiro tivessem

    que procurar no s por ele, mas tambm pelos servios da polcia, era um exemplo desse

    trabalho.

    Enquanto Maria enumerava outras tarefas em que consistia o trabalho que Antnio lhe

    dava, um policial saiu da sala, abrindo subitamente a porta diante da qual conversvamos. Era

    o inspetor Fernando, policial que, conforme havia dito Maria, sabia do que se tratava. Ao

    constatar que estvamos aguardando h algum tempo, o inspetor Fernando afirmou que no

    precisvamos ter esperado do lado de fora. Poderamos ter entrado quando quisssemos, j

    que, nas palavras dele, a porta do Setor fica aberta.

  • 2

    Introduo

    Em dezembro de 2009, o Instituto de Segurana Pblica do Rio de Janeiro (ISP),

    autarquia estadual dedicada pesquisa e capacitao de servidores na rea de segurana

    pblica, divulgou um estudo sobre casos de desaparecimento de pessoas ocorridos no estado.

    Intitulado Pesquisa de Desaparecidos, o estudo teve como objetivo

    mapear as ocorrncias de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro,

    no ano de 2007. A base de dados utilizada proveniente de ocorrncias

    registradas pela Polcia Civil naquele perodo (...) na tentativa de traar o perfil dessas pessoas (sexo, raa, idade, nacionalidade, naturalidade, renda,

    escolaridade, local de moradia e localizao da ocorrncia), alm de

    identificar as circunstncias das ocorrncias e as possveis causas. (ISP, 2009)

    Na solenidade de divulgao dos achados da pesquisa, diante da presena de redes de

    televiso e emissoras de rdio, foram destacados os seguintes dados: em 2007, a incidncia de

    casos concentrou-se na capital do estado e entre pessoas do sexo masculino que tinham entre

    10 e 19 anos; outros grupos que teriam destaque numrico nos casos eram idosos, pessoas

    com problemas mentais e usurios de drogas e lcool (ISP, 2009); e, da amostra de

    ocorrncias analisadas, 71,3% tiveram como desfecho o retorno dos desaparecidos s suas

    casas ou ao menos a descoberta de seus paradeiros. Esse ltimo percentual serviu de mote

    para o momento central da apresentao da pesquisa, em que seus resultados foram

    comparados ao que seria o perfil das vtimas de homicdios dolosos no estado. Contrastando

    com casos de desaparecimento, homicdios dolosos ocorreriam a pessoas com idades entre 20

    e 29 anos, o que indicaria que a poro da populao envolvida em desaparecimentos

    distinta da composta pelas vtimas de homicdio. Ademais, enquanto mais de 80% das vtimas

    de homicdios dolosos seriam homens, entre os desaparecidos essa cifra baixaria para 60%.

    H algo de reconfortante na idia de que possvel definir quem so as pessoas que

    desaparecem em determinado local, afirmando inclusive que essas pessoas no s so

    localizadas, como tambm no so vulnerveis a certo tipo de crime e no mais das vezes

    retornam para suas casas. Estive presente na solenidade de divulgao da pesquisa do ISP e o

    tom de otimismo que nela reinou no me deixou dvidas a esse respeito. Por outro lado, esse

    mesmo tom de otimismo me legou um conjunto de indagaes de outra natureza: a produo

  • 3

    daqueles dados buscava atenuar que desconfortos e preocupaes? Se havia otimismo em sua

    divulgao, qual seria o cenrio de pessimismo que ela confrontava?

    Um ano antes da solenidade do ISP, a organizao no-governamental (ONG) Rio de

    Paz promoveu uma manifestao em Copacabana que ficou conhecida como Protesto Forno

    de Microondas. Pilhas de pneus foram distribudas nas areias da praia, de modo a expor o

    que seria um mtodo de assassinato e carbonizao de corpos utilizado por criminosos,

    sobretudo atuantes no trfico de drogas, nas chamadas comunidades do Rio de Janeiro. Dentro

    das pilhas de pneus, pessoas e bonecos representavam as vtimas desses crimes; na frente de

    cada pilha, um cartaz dizia: 9.000 pessoas desaparecidas nos ltimos 2 anos. Suspeita-se que

    6.300 pessoas desaparecidas foram assassinadas.

    Se o ISP separou os dois tipos de ocorrncia, afirmando que as parcelas da populao

    atingidas por cada um so distintas, a manifestao da ONG exps um possvel nmero de

    homicdios dolosos que estariam encobertos no universo mais amplo dos desaparecimentos.

    Ao faz-lo, explicitou com bastante eloqncia alguns dos desconfortos e preocupaes a que

    os resultados da pesquisa do Instituto pareciam se contrapor. Contudo, como apresento ao

    longo da presente tese, um olhar detido sobre casos, sobre a rotina de pessoas que com eles

    lidam e sobre eventos pblicos dedicados ao tema revela que h outras razes para certo

    pessimismo em torno do desaparecimento de pessoas alm de sua possvel vinculao a

    crimes como, por exemplo, homicdio e destruio de cadveres.

    A prpria classificao de um conjunto de fatos como desaparecimento carrega

    consigo mais incmodos que certezas. Mais do que isso, efetuada no decurso de uma cadeia

    de comunicaes entre pessoas e instituies, a designao de fatos e experincias como

    desaparecimento constituda por questionamentos e incertezas. Policiais, gestores de

    polticas pblicas, famlias e grupos de pessoas que lidam com essa classificao, seja por

    fora de suas atribuies profissionais, seja por circunstncias pessoais, vem-se envolvidos

    em complexas tramas de significados volteis e imprecisos. No saber o paradeiro de uma

    pessoa, comunicar esse no saber a rgos pblicos e/ou ter que registr-lo, investig-lo e

    administr-lo como policial, assistente social ou funcionrio de uma ONG implica lidar com

    inmeras dvidas e imprecises. Tais imprecises so obliteradas tanto em resultados de

    pesquisas estatsticas que buscam traar perfis fechados, como o estudo do ISP, quanto por

    protestos como o da ONG Rio de Paz, que cola desaparecimentos a homicdios.

    O desaparecimento no implica uma cadeia unilinear de fatos, em que algum some,

    procurado e, caso tudo acontea como esperado, localizado e retorna ordem de coisas e

  • 4

    relaes em que estava inscrito anteriormente. Embora seja essa a viso recorrente no senso

    comum, e embora aqueles que lidam com casos particulares muitas vezes esforcem-se para

    constru-los narrativamente assim, ela no resiste a um olhar mais atento. Citado no Prlogo,

    meu encontro com Maria, cujo ex-marido desapareceu e foi encontrado, sugere o quo contra-

    intuitivo pode ser um caso de desaparecimento. Enquanto eu imaginava que ela estaria

    aliviada por t-lo localizado, Maria preferia que Antnio evaporasse. Por outro lado, como

    sugere o mesmo encontro, no necessariamente o desaparecimento relaciona-se aos

    fenmenos da criminalidade e da violncia urbana. Antnio, afinal, foi dado por desaparecido

    enquanto descansava da vida longe do Rio de Janeiro.

    O que, ento, o desaparecimento de pessoas? A que referentes esse termo pode ou

    pretende ser conectado em seus diversos usos? Se os chamados desaparecimentos polticos,

    inscritos dentre as prticas de represso constitutivas de alguns regimes ditatoriais, so alvo

    de debates, comisses e indenizaes, que tratamento dado ao que, por contraste, Oliveira

    (2007) chama de desaparecimentos civis?

    Casos de desaparecimento no qualificados como polticos so muitas vezes definidos

    por desconhecimento e excluso. Freqentemente, o termo utilizado quando no se sabe

    onde uma pessoa est, no se pode assegurar se ela foi vtima de crime, se optou por deixar o

    local e o crculo social em que habitualmente se encontrava ou se sofreu algum acidente. A

    exceo mais visvel a esse uso aparece no habitual emprego do termo desaparecimento em

    casos de intempries, catstrofes e acidentes que deixam vtimas fatais cujos corpos no so

    encontrados, ou vtimas com vida, mas impossibilitadas de retornar aos locais de onde saram.

    Mesmo nesses casos, no entanto, no se sabe onde a pessoa est e no se pode determinar com

    preciso o que lhe ocorreu.

    Perguntar-se sobre o que esse termo pode significar descortina o quo escorregadias

    so as idias que compem seu campo semntico. Alm de se tratar de uma classificao por

    excluso, o fato designado como desaparecimento de uma pessoa se faz sempre em relao

    outra ou outras. No h como desaparecer em absoluto: se a pessoa est fora do alcance de

    outra, possivelmente est ou esteve ao alcance de uma terceira, inscrita em um cenrio ou

    conjunto de circunstncias inacessveis apenas para a segunda. Tampouco h como

    estabelecer de forma absoluta as coordenadas espao-temporais que marcam onde e quando

    uma pessoa desapareceu. O mximo que se pode tentar afirmar, fazendo uso de idias apenas

    aproximativas e da voz passiva, a hora e o local em que algum foi visto pela ltima vez

    por outra pessoa que o conhecia ou pde reconhec-lo.

  • 5

    Ademais, delegacias de polcia so procuradas por pessoas que comunicam como

    desaparecimentos fatos que, aps investigaes, passam a ser designados raptos, homicdios,

    seqestros ou outros crimes que anulam sua definio inicial como desaparecimentos. Nessas

    ocasies, desaparecimento designa o desconhecimento e a inacessibilidade que uma pessoa

    experimenta em relao ao paradeiro de outra e, ainda, o desejo de buscar ajuda e/ou delegar a

    terceiros a busca por ela. Caso essa busca permita conhecer o paradeiro do desaparecido, o

    termo passa a ser substitudo por outro. Um bom exemplo o caso das onze vtimas da

    chamada Chacina de Acari, ocorrida em 1992 no municpio fluminense de Mag. Inicialmente

    consideradas pessoas desaparecidas por alguns de seus parentes que procuraram a polcia, ao

    longo das investigaes as vtimas passaram a figurar em livro (Nobre, 2005), trabalho

    acadmico (Arajo, 2007) e inquritos policiais como vtimas de seqestro e homicdio. Por

    fim, a despeito do fato de seus corpos jamais terem sido encontrados, algumas foram

    registradas como mortas em certides de bito. Em suma, tanto quanto determinar o local do

    fato algo mais complexo do que pode parecer, registros policiais que classificam um

    acontecimento como desaparecimento so freqentemente passveis de negao.

    No obstante ser to escorregadio, o desaparecimento de pessoas encarado,

    alternadamente, como problema social decorrente da omisso ou da ineficincia de

    mltiplos agentes que disputam o poder de defin-lo. Familiares de pessoas desaparecidas,

    policiais civis e militares, gestores governamentais de polticas pblicas e funcionrios de

    ONGs acusam-se mutuamente de serem responsveis ora pela ocorrncia de

    desaparecimentos, ora pela no-soluo de muitos casos, e ora pelo dever de preveni-los.

    Embora abordem o fenmeno de formas distintas e apresentem-se como plos opostos em

    embates variados, porm, esses agentes partem de um ponto comum: a falta de preciso

    quanto a definies e diretrizes para enfrent-lo. Dispersas por distintas searas da

    administrao pblica, as competncias e responsabilidades de gerir e combater o

    desaparecimento so to escorregadias e imprecisas quanto o prprio vocabulrio disponvel

    para falarmos dele.

    Tenho me deparado com tais imprecises desde maro de 2008, quando conheci

    Maria, Jeferson, o inspetor Fernando e o caso de desaparecimento de Antnio, citados no

    Prlogo. Naquela ocasio, iniciei formalmente minha pesquisa de doutorado. Atravs de

    trabalho de campo no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicdios

    do Rio de Janeiro, acompanhei a rotina de agentes da Polcia Civil que trabalham

  • 6

    exclusivamente com casos de desaparecimento.1 Seguir essa rotina incluiu ler, transcrever e

    analisar os documentos por eles produzidos acerca dos casos que recebem, investigam e

    arquivam diariamente. Acompanhar o cotidiano de uma repartio pblica, afinal, significa

    tomar contato com quadros administrativos burocrticos constitudos por funcionrios

    pblicos e arquivos de documentos e expedientes. No primeiro captulo da tese, detenho-me

    sobre minha entrada em campo junto aos agentes do SDP e seus arquivos.

    O SDP a seo da Delegacia de Homicdios responsvel por investigar casos de

    desaparecimento de pessoas registrados nas delegacias distritais compreendidas entre a 1 e a

    44 Delegacia Policial (DP) do Rio de Janeiro. Todo caso de desaparecimento registrado

    nessas delegacias que no seja solucionado no prazo de quinze dias remetido ao SDP, onde

    deve ser investigado por um dos cinco policiais que integram o quadro ativo do Setor.2

    Contudo, com considervel freqncia casos registrados em delegacias no compreendidas

    entre a 1 e a 44 DP tambm so remetidos ao SDP, e o prazo de quinze dias usualmente

    estendido por perodos de tempo muito variados. Entre maro de 2008 e dezembro de 2009,

    com dois intervalos, freqentei o SDP regularmente. Nesse perodo, acompanhei, li e

    transcrevi um total de 172 casos de desaparecimento recebidos no SDP entre 2004 e 2009.

    Desse conjunto, uma seleo de 57 casos objeto de reflexo no corpo da tese.3

    Minha presena no Setor levou-me a estabelecer relaes tambm com membros da

    Rede Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes Desaparecidos

    (ReDESAP), coordenada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da

    Repblica (SEDH/PR)4. A rede articula 47 instituies, entre ONGs e rgos de

    1 Desde janeiro de 2010, a referida Delegacia de Homicdios (DH) passou a ter estatuto de Diviso, tendo tido

    seu quadro de pessoal aumentado e sua estrutura fsica e organizacional alterada. Contudo, como encerrei a

    pesquisa no SDP no ms anterior, em dezembro de 2009, fao referncia em todo o texto da tese Delegacia de

    Homicdios, e no atual Diviso de Homicdios. 2 Procedimento regulado pela Resoluo 513/1991 da Secretaria de Segurana Pblica do Rio de Janeiro. Essa

    resoluo objeto de reflexo mais adiante. 3 Os casos no foram selecionados a partir de critrios de representatividade e capacidade de generalizao, nem

    tampouco aleatoriamente. Como adverte Small (2009), associar pesquisa de campo a esses critrios de seleo de

    casos implica anular o potencial heurstico prprio do conhecimento etnogrfico. luz dessa advertncia,

    escolhi para tratar mais detidamente casos particulares que proporcionam oportunidades e espaos narrativos

    para a apresentao dos aspectos especficos do desaparecimento de pessoas que busco destacar. Em suma, a

    escolha dos casos ela mesma uma estratgia narrativa de que fao uso tendo como finalidade algo que

    caracterstico do texto etnogrfico: a persuaso do leitor. Evidentemente no se trata de buscar convencer o leitor

    s expensas de compromissos com as pessoas e informaes enredadas no texto, mas sim o contrrio disso.

    Afinal, uma vez que se comea a olhar para os textos de etnografia, alm de olhar atravs deles, e se percebe que eles so construdos, e construdos para persuadir, aqueles que os produzem passam a ter muito mais por que responder. (Geertz, 1988, p.181). 4 Desde maro de 2010, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SEDH/PR)

    passou a ser designada apenas Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Esta alterao foi

    parte de um conjunto de modificaes na organizao de Presidncia da Repblica e dos Ministrios institudas

    por Medida Provisria (432/2010) convertida em Lei (12.314/2010) em agosto de 2010. Como a maior parte da

  • 7

    administrao pblica municipal, estadual e federal, como conselhos tutelares, rgos de

    assistncia social e delegacias de polcia.5 No curso da pesquisa, passei a frequentar as

    reunies do comit gestor da ReDESAP, ento composto por trs delegados de Polcia Civil, a

    presidente de uma associao de mes de desaparecidos, uma conselheira tutelar, o diretor de

    um programa estadual de busca de crianas e adolescentes desaparecidos e um gestor da

    SEDH/PR. Ao longo do ano de 2010, participei de reunies do grupo centradas na principal

    iniciativa em torno da qual a rede est mobilizada atualmente: o projeto ainda no

    implementado do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.

    Alm disso, tambm em 2010 preparei material didtico (cartilha), coordenei e

    ministrei curso sobre desaparecimento de pessoas intitulado Programa de Capacitao de

    Atores Estratgicos no mbito da ReDESAP, idealizado pela SEDH/PR e executado em

    convnio com uma ONG e uma fundao de ensino e pesquisa. O pblico-alvo do Programa

    consistiu em conjunto de servidores pblicos e membros de organizaes da sociedade civil

    que lidam com casos de desaparecimento de pessoas, mais ou menos diretamente, em seis

    unidades da federao: Rio de Janeiro, So Paulo, Sergipe, Par, Distrito Federal e Gois. Os

    debates levados a cabo nos eventos da rede em que estive presente ao longo da pesquisa, entre

    eles o curso, so objeto de reflexo na tese.6 A trajetria que percorri do SDP para a

    ReDESAP apresentada no primeiro captulo.

    O cotidiano do SDP, na Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro, e os eventos

    promovidos pela ReDESAP nas cidades do Rio de Janeiro, Braslia, So Paulo, Aracaju,

    Goinia e Boa Vista apresentaram-me os dilemas e desafios que casos de desaparecimento

    colocam para todos que com eles se envolvem, tanto em diversos nveis e searas da

    administrao pblica, quanto em experincias classificadas como pessoais e/ou familiares.

    Mais do que isso, a rotina da delegacia e os encontros da rede sugeriram-me que dilemas e

    desafios so o que constitui o desaparecimento como fenmeno passvel, por um lado, de

    enfrentamento e gesto pblica, e, por outro, de investigao antropolgica.

    A ausncia de uma pessoa em lugares ou crculos em que se espera que ela seja

    encontrada no a nica falta que determina um caso de desaparecimento. Ao contrrio,

    muitas vezes essa ausncia apenas um de seus vrios elementos constitutivos. Tanto quanto

    ela, a ausncia de definies precisas do que seja desaparecimento e sobre quem recaem as

    pesquisa foi realizada antes dessa modificao, contudo, refiro-me em todo o texto da tese Secretaria Especial

    de Direitos Humanos. 5 No Anexo III encontra-se a listagem dos membros da ReDESAP. 6 No Anexo IV encontra-se um quadro que compila os eventos da ReDESAP em que estive presente, listando os

    locais onde ocorreram e dados sobre minha participao.

  • 8

    responsabilidades de sua gesto e de seu combate determina o curso de cada caso particular.

    Por isso, essa ausncia de definies o eixo em torno do qual as questes analisadas na tese

    esto organizadas. Em outros termos, apresento casos com que tive contato no SDP e debates

    de que participei na ReDESAP colocando em relevo essa falta de definies. O que o

    desaparecimento de pessoas, nesse sentido, no apenas uma pergunta retrica ou

    narrativamente estratgica que se presta a introduzir este trabalho, como utilizei acima. Antes,

    trata-se tambm de uma indagao evocada pelos agentes que lidam com casos particulares,

    envolvem-se em debates pblicos em torno do desaparecimento e, cotidianamente, definem,

    redefinem e questionam seus significados.

    Inspirada primordialmente na problemtica antropolgica do gestar e gerir (Souza

    Lima, 2002), a pergunta mais ampla que rene as questes aqui tratadas a seguinte: como

    construdo e gerido o desaparecimento de pessoas no Brasil contemporneo? Ao compilar

    anlises processuais sobre a instaurao e utilizao de espaos e categorias sociais que so

    alvos e caues de uma burocracia destinada a geri-las, em si fragmentada, comportando

    histrias de constituio muito diversa e articulando setores sociais heterogneos (Souza

    Lima, 2002, p.17), Souza Lima explora o universo prescritivo e pedaggico das prticas,

    tcnicas e saberes constitutivos do que, em sentido lato, podemos chamar de administrao

    pblica. Conforme a abordagem do autor, em categorias jurdico-normativas, polticas

    pblicas e problemas sociais, tanto quanto na crescente formao de especialistas e tcnicos

    em reas temticas diversas, h mais que aplicao de regras, normas e procedimentos

    burocrticos a realidades supostamente dadas ao conhecimento. Importa, portanto, investigar

    os processos de mtua constituio atravs dos quais categorias, polticas e problemas

    conectam-se aos mundos sociais que buscam circunscrever.

    Tomada como pergunta, a dupla gestar e gerir proporciona reflexes sobre casos

    particulares e debates pblicos em torno do desaparecimento de pessoas que no naturalizam

    categorias e mantm no horizonte analtico a idia de que todo fenmeno tomado como objeto

    de administrao pblica , necessariamente, construdo por tcnicas, prticas e saberes que

    sobre ele incidem. Estabelecer a pergunta do gestar e gerir como pilar de um trabalho sobre

    o desaparecimento de pessoas, portanto, significa admitir por princpio que o objeto em foco

    no o desaparecimento de pessoas, e sim aquilo que construdo como desaparecimento de

    pessoas, procurando compreender o processo por meio da qual se d tal construo.

    A interrogao sobre a constituio e gesto do desaparecimento de pessoas desdobra-

    se, aqui, em duas indagaes principais: como casos particulares de desaparecimento so

  • 9

    construdos como ocorrncias policiais, e como o desaparecimento de pessoas construdo,

    em outro plano, como problema social. Tais indagaes desdobram-se, ainda, em uma

    terceira: a pergunta acerca das unidades e responsabilidades construdas e atribudas em casos

    particulares de desaparecimento e em debates pblicos em torno do fenmeno. Famlia,

    polcia e Estado so termos constantemente evocados nos referidos casos e debates, da

    minha opo por me perguntar, tambm, como so construdas unidades e atribudas

    responsabilidades diante de desaparecimentos de pessoas.

    As reflexes incitadas pelos casos e debates apresentados na tese so devedoras de um

    conjunto de etnografias que, ao tomar como objeto prticas classificadas como

    administrativas, burocrticas e/ou judicirias, prestam-se a pensar sobre processos de

    formao de Estado e constituio de sujeitos. Em franco dilogo com a filosofia de Michel

    Foucault, tais trabalhos, que aparecem ao longo da tese no s em citaes explcitas, mas

    tambm e principalmente como interlocutores com os quais gostaria de dialogar, promovem

    reflexes que revelam a faceta mais dinmica e insidiosa do poder de Estado: a arte de

    governar seres humanos e suas relaes (Inda, 2005). Alguns desses estudos so as

    etnografias realizadas em contextos estrangeiros e compiladas por Das & Poole (2004) e Inda

    (2005), alm dos trabalhos de Lugones (2004, 2009) em tribunais da provncia argentina de

    Crdoba, e, com especial destaque, os estudos voltados para a realidade brasileira realizados

    por Souza Lima (1995), Vianna (1999, 2002) e Schuch (2009). Tambm compem esse

    quadro as coletneas organizadas por Souza Lima (2002) e Fonseca & Schuch (2009).

    Almejando dialogar com os trabalhos citados, busco discutir as questes centrais

    acima introduzidas ao longo de cinco captulos, cujos contedos encontram-se resumidos no

    final dessa Introduo. Antes disso, faz-se necessrio ressaltar que os casos de

    desaparecimento com que tive contato no SDP e que selecionei para apresentar na tese

    atravessam os cinco captulos, fazendo-se presentes no corpo do trabalho como um todo.

    Casos so a matria prima mais fundamental da tese, e sem referncia a eles nenhuma das

    questes tratadas teria sido sequer levantada. Em suma, atravs deles que busco

    compreender como o desaparecimento gestado e gerido no Brasil contemporneo.7

    7 Todos os casos com que tive contato nos arquivos do SDP tiveram lugar no estado do Rio de Janeiro, o que a

    princpio demandava que eu circunscrevesse meu objetivo de pesquisa ao Rio de Janeiro contemporneo, e no

    ao Brasil. Porm, a pesquisa estendeu-se para eventos da ReDESAP ocorridos em outras unidades da federao,

    onde conheci e conversei sobre outros desaparecimentos alm dos investigados no SDP e tomei contato com

    formas de abord-los e geri-los empreendidas em outros locais, permitindo ampliar o escopo da tese.

  • 10

    Uma forma para muitas ausncias

    Cada caso de desaparecimento investigado no SDP equivale a uma pasta de

    documentos que rene registros relativamente autnomos. Produzidos em diversas reparties

    e encaminhados para o Setor em datas variadas, Registros de Ocorrncia (RO), Ofcios,

    Despachos, fotografias e bilhetes pessoais, entre outros suportes materiais de informao, so

    compilados ali sob o ttulo de Sindicncias.8 As gavetas dos arquivos do SDP renem

    Sindicncias que so numeradas e organizadas ora segundo datas de desaparecimentos, ora

    segundo datas de registros dos casos, e ora segundo suas datas de arquivamento. 9

    Abrir qualquer gaveta do Setor significa encontrar maos de papis reunidos em pastas

    cujos indexadores so os nomes das pessoas desparecidas. Cada pasta equivale a uma

    Sindicncia. Diante da mistura de registros heterogneos reunida nas Sindicncias, a ordem de

    produo e as conexes entre os papis por elas compilados s podem ser compreendidas se

    nos debruarmos sobre cada pasta durante certo tempo, dedicando-nos a analisar as peas

    documentais ali depositadas e a construir enredos que as renam, impondo-lhes uma ordem.

    Formular enredos coerentes a partir das fragmentrias colees de documentos guardadas nas

    pastas , nesse sentido, ficcionar (Ortega, 2008). No que traar percursos narrativos a partir

    daqueles documentos implique construir farsas, falcias ou iluses. Antes, convertir en

    ficcin ficcionar no significa dar rienda suelta a fantasias escapistas, sino inducir un efecto

    de realidad a travs del uso de prticas discursivas cuyos referentes estn en disputa. (Ortega,

    2008, p.61). O referente central em disputa nos registros de casos de desaparecimento, como

    demonstro ao longo da tese, o prprio termo desaparecimento.

    Atos oficiais de nomeao, os documentos reunidos em cada Sindicncia de

    desaparecimento arrogam para si o estatuto de verdade e assim produzem verdades

    autorizadas (Bourdieu, 2008), a despeito de sua heterogeneidade e aparente incoerncia. J os

    enredos que se pode construir a partir deles, ao contrrio, carregam consigo tons de fico,

    medida que lhes impem certa coerncia, mas induzem um efeito de realidade crucial para seu

    entendimento e anlise. Enquanto freqentei o SDP dediquei-me sobretudo compreenso

    daquelas peas documentais e a tentativas de construo de enredos que as ordenassem. Nessa

    8 No Anexo I encontra-se um quadro listando os documentos que, em combinaes variadas, podem compor uma

    Sindicncia. No quadro so apresentadas caractersticas bsicas de cada documento. 9 Trs critrios de guarda de Sindicncias podem ser encontrados nas gavetas dos arquivos do SDP. H casos

    guardados em gavetas segundo o ano em que a pessoa que d nome Sindicncia desapareceu; h casos

    guardados em gavetas segundo o ano em que o registro de ocorrncia de desaparecimento foi firmado em uma

    DP, que muitas vezes no corresponde ao ano do desaparecimento; e, por fim, h casos em que o que conta o

    ano em que o caso foi arquivado. A maioria dos casos obedece ao primeiro critrio.

  • 11

    empreitada, busquei tratar os documentos que toquei, li e transcrevi como artefatos

    etnogrficos especialmente reveladores de tcnicas e procedimentos burocrticos estatais

    (Riles, 2006) e, ao mesmo tempo, de representaes e marcas sociais produzidas e

    perpetuadas por tais tcnicas e procedimentos (Cunha, 2002). Como no deixam dvidas os

    trabalhos de Souza Lima (1995), Carrara (1998), Vianna (1999, 2002), Cunha (2002) e

    Lombardo (2010), apenas para ficar no mbito institucional mais prximo desta tese,

    etnografias em arquivos e sobre arquivos no so trabalhos destoantes ou raros no campo da

    Antropologia Social, embora muitas vezes sejam assim apresentadas. Na lida com os papis

    produzidos e arquivados no SDP, sigo a trilha percorrida por esses autores e mantida aberta

    por trabalhos anualmente defendidos em programas de ps-graduao e/ou apresentados em

    eventos como, por exemplo, o seminrio Quando o campo o arquivo: etnografias, histrias

    e outras memrias guardadas, realizado em novembro de 2004.10

    Nesse sentido, encaro os documentos compilados nos arquivos que pesquisei como

    precipitaes de encontros e relaes. No se tratam de encontros entre menores e policiais no

    comeo do sculo passado (Vianna, 1999), entre vadios e policiais nos arredores da dcada de

    1930 (Cunha, 2002) ou entre pleiteantes e administradoras de guardas judiciais em tribunais

    (Lugones, 2009), embora essas dades ocupem lugar crucial na construo da tese, como

    inspiraes analticas e metodolgicas. A especificidade das relaes que se precipitam nos

    documentos aqui estudados decorre do fato de que eles centram-se na falta de uma pessoa, ela

    mesma ausente do encontro que os produz: o desaparecido.

    Da perspectiva que orientou a pesquisa e a escrita desta tese, cada pea documental

    guardada nas gavetas do SDP produto de encontros entre pessoas que se dirigiram a

    delegacias para comunicar desaparecimentos e policiais civis que os registraram, alm de

    servidores pblicos e funcionrios de instituies diversas. Os encontros entre esses agentes e

    os documentos que deles resultam implicam o emprego de recursos narrativos variados e,

    determinando forma e contedo do que resta arquivado, implicam tambm a incidncia de

    regras e padres de registro. Nos termos de Bourdieu, poderamos dizer que tais encontros

    implicam um compromisso entre interesse expressivo e uma censura constituda pela prpria

    estrutura do campo onde o discurso produzido e tambm circula. (Bourdieu, 2008, p. 131).

    Alm disso, tambm incidem sobre forma e contedo do que resta arquivado atos e artefatos

    10 O seminrio foi realizado em 25 e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundao Getlio Vargas e pelo Laboratrio de Antropologia e Histria do IFCS/UFRJ, com o apoio da Associao Brasileira de Antropologia. (Castro e Cunha, 2005, p.3). Uma seleo de trabalhos apresentados no seminrio encontra-se publicada no

    nmero 36 da revista Estudos Histricos, do CPDOC/FGV, intitulado Antropologia e Arquivos.

  • 12

    que se aproximam do que Lugones (2009) chama de formas de aconselhamento e frmulas

    de compromisso, como busco deixar claro ao longo da tese.11

    Como os documentos guardados no SDP compem um arquivo policial, a censura que

    determina sua forma e contedo em grande medida derivada das formalidades e padres de

    registro resguardados pelos prprios formulrios que do corpo aos documentos, e pelas

    hierarquias e cadeias de autoridade ao longo das quais se distribuem os vrios agentes que os

    assinam, autorizam, colocam em circulao e/ou arquivam. Tanto as cadeias de autoridade por

    que se estendem os procedimentos executados pelos policiais e demais agentes que lidam com

    desaparecimentos, quanto os documentos por eles produzidos so parte constitutiva do

    conjunto de prticas que fazem o Estado enquanto exerccio de poder. (Foucault, 2004). A

    racionalidade governamental que orienta tais prticas, com suas formalidades, hierarquias e

    padres de registro, no anula, contudo, a criatividade e habilidade narrativa dos envolvidos

    na produo dos documentos sobre os casos sejam eles comunicantes de desaparecimentos,

    policiais que atendem a esses comunicantes ou funcionrios de instituies no-policiais que

    so envolvidos nas tramas registradas.

    Em suma, por mais interessados e formalizados que sejam, registros documentais cuja

    autoria remete a encontros entre funcionrios que zelam por sua forma e cidados que

    demandam respostas de determinadas autoridades revelam as habilidades narrativas de todos

    esses agentes. (Davis, 1987). Se pensarmos nos policiais que registram e arquivam casos de

    desaparecimento, podemos notar suas habilidades para criar e manter arquivos, emblema

    mximo da burocracia moderna (Riles, 2006), suas tentativas de oficializar formas de

    aconselhamento e frmulas de compromisso (Lugones, 2009) e, ainda, sua destreza em exibir

    um suposto controle total sobre pessoas e territrios. Se pensarmos nos cidados que vo a

    delegacias de polcia solicitar investigaes em torno de um desaparecimento, por outro lado,

    podemos notar suas tentativas de emprego de recursos narrativos que sejam eficazes para

    diversos fins como, por exemplo, atribuir uma boa reputao pessoa desaparecida ou

    revestir de suspeita pessoas enredadas nos casos. Portanto, os encontros entre agentes

    11 Lugones (2009) denomina formas de aconselhamento e frmulas de compromisso as tcnicas de menorizao que observou em ato nos tribunais prevencionais de menores onde realizou trabalho etnogrfico.

    Tais formas e frmulas renem, a um s tempo, a fora intrnseca da forma (o conselho) e a eficcia prpria da formalizao dos compromissos exercida por especialistas (Lugones, 2009, p.203), alm de operacionalizarem exerccios de poder que reencaminham situaes desgovernadas atravs de atuaes pedaggicas (idem, ibidem, p.203). Registradas em autos de processos judiciais, formas de aconselhamento e frmulas de compromisso cristalizam maneiras de conduzir situaes tidas como fora de controle ao deslizarem, de modo to escorregadio quanto eficaz, entre conselhos e ordens, e entre atribuies e compromissos. por meio dessas

    tcnicas que as administradoras judiciais junto s quais Lugones fez sua pesquisa gestam e gerem os casos e os

    grupos de pessoas diante dos quais atuam. Nos captulo 2 e 3, mostro que o trabalho da autora ilumina muitos

    dos registros firmados por policiais em sua lida rotineira com casos de desaparecimento.

  • 13

    envolvidos em tramas de desaparecimento produzem registros documentais censurados por

    formalidades, mas que do margem no s ao uso de formas e frmulas padronizadas, mas

    tambm a habilidades e estratgias narrativas.12

    Para a escrita desta tese, os registros documentais com que tive contato no SDP foram

    submetidos ao compromisso entre meu interesse expressivo e a censura determinada pelas

    normas da escrita acadmica. Encontrados nos arquivos compilados em pastas, mas no

    ordenados e enredados em tramas apresentadas com comeo, meio e fim, os registros

    documentais lidos, transcritos e analisados ao longo da pesquisa foram aqui ficcionados

    (Ortega, 2008, p.61) como casos de desaparecimento. Para fins de anlise, os casos so

    tratados como se tivessem assim sido encontrados, sem que haja a qualquer pressuposto de

    objetividade ou pretenso de narrar verdades. (Riles, 2006, 16-17). Ao contrrio, fundamenta

    a construo dos casos a idia de que, sejam quais forem os artefatos etnogrficos utilizados,

    inconcebvel que o intento da etnografia seja coletar dados num suposto mundo real cuja

    verdade se queira descrever. Ser desprovida da pretenso de revelar a verdade, porm, no a

    exime de buscar a verossimilhana (Geertz, 2009, p.13-14), reconhecer seu potencial efeito de

    realidade e, sobretudo, honrar compromissos epistemolgicos e ticos com os sujeitos e

    informaes enredadas no texto:

    O que isso quer dizer que agir desse modo no livra ningum do nus da

    autoria, mas o aprofunda. Transmitir com exatido as idias de Emawayish,

    tornar seus poemas acessveis, tornar sua realidade perceptvel e esclarecer o contexto cultural em que ela existe significa colocar todas essas coisas na

    pgina de maneira suficiente para que algum possa adquirir alguma

    compreenso do que elas podem ser. E essa no apensa uma tarefa difcil, mas uma tarefa que no deixa de ter conseqncias para o nativo, o autor e o leitor (e, na verdade, para aquela eterna vtima das atividades alheias, o espectador inocente). (Geertz, 2009, p.190)

    A seguir, para colocar em cena uma das narrativas que constru a partir dos

    documentos arquivados no SDP, apresento um exemplo de caso de desaparecimento j no

    12 Em sua anlise de cartas de remisso escritas na Frana do Sculo XVI, Davis (1987) une as idias de arquivo

    e fico, ao atentar-se para os artifcios narrativos empregados pelos autores das cartas analisadas. Esses autores

    eram pessoas que cometeram crimes e pediam perdo ao rei por seus atos, mas na escrita das cartas contavam

    com o trabalho de escribas e notrios que zelavam pelas formalidades que os pedidos necessariamente deveriam

    respeitar. Por mais distante que seja, no tempo e no espao, da temtica aqui focada, a obra inspiradora para

    essa tese por partir do princpio de que as cartas resistem a ser analisadas a partir da dicotomia fico X verdade.

    As narrativas nelas produzidas visam persuaso e dizem muito das habilidades dos suplicantes como contadores de histria, embora ao mesmo tempo digam muito sobre os limites formais que margeavam essas

    habilidades. Ademais, a obra inspiradora porque, de modo semelhante ao que ocorre em alguns casos de

    desaparecimento, as cartas apresentam os suplicantes como figuras moralmente ilibadas, constroem os crimes

    como excepcionalidades em suas vidas e, ainda, revestem de suspeitas outros personagens das tramas que

    narram.

  • 14

    formato em que eles aparecem na tese. O caso escolhido o desaparecimento (e localizao)

    de Antnio, protagonizado por ele, Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, e encontra-se em

    uma caixa de texto destacada do corpo desta Introduo por quatro bordas. Esse formato

    utilizado para alguns casos que escolhi destacar. No obstante, h na tese menes a trechos,

    passagens e fragmentos de outros casos que optei por mencionar ao longo do texto, sem

    empregar o destaque formal. Utilizo esse modo de apresentao com o objetivo de

    compartilhar com o leitor algo que encontrei ao longo da pesquisa, trazendo formalmente para

    a tese caractersticas dos artefatos etnogrficos pesquisados.13

    Minha inteno que a forma

    como construo os casos espelhe, em alguma medida, a forma como os desaparecimentos de

    pessoas aparecem nos documentos que li e transcrevi.14

    Dos pontos de vista dos agentes envolvidos em casos particulares e engajados em

    debates pblicos, designar e tratar um acontecimento como desaparecimento implica

    desentranh-lo do emaranhado de atos e fatos que d corpo vida social, conferindo-lhe o

    estatuto de problema e a forma de um evento narrvel com comeo, meio e fim ainda que

    por fim entenda-se a perpetuao da ausncia do desaparecido, sem razes conhecidas.

    Nesse exerccio, recursos narrativos especficos so utilizados, concomitantemente, tanto por

    comunicantes de desaparecimentos, quanto por policiais que os registram em formulrios e,

    ainda, por agentes que os denunciam em debates pblicos. Para espelhar formalmente essa

    idia, optei por apresentar os casos narrando-os tambm com comeo, meio e fim, e

    enquadrando-os em caixas de texto que se destacam do corpo do trabalho. Os casos que assim

    aparecem na tese foram desentranhados do conjunto de papis e falas com que tive contato ao

    longo da pesquisa e formulados como narrativas. Nessa formulao, utilizo como recurso

    certo vaivm entre o que est firmado nos documentos e a leitura que fiz deles, aqui

    convertida em escrita. Fao isso permeando a narrativa de cada caso com trechos de

    documentos, que aparecem em forma de citao (entre aspas ou destacado por recuo).

    Os arquivos do SDP e os encontros da ReDESAP sugerem que a classificao de um

    acontecimento como desaparecimento desdobra-se na produo de fronteiras entre o que seria

    da ordem do ordinrio e o que seria algo excepcional a ponto de se tornar ocorrncia policial

    ou manifestao de um problema social. No obstante, os arquivos e encontros explicitam

    tambm que a produo dessas fronteiras um exerccio constante e sempre incompleto:

    13 Sigo a sugesto de Riles (2006), que sustenta que uma forma possvel de respondermos s prticas com que os

    etngrafos tomamos contato borrowing responses from the ethnographic artifact itself (here, documents and documentary practices) onto the ethnographers own terrain. (Riles, 2006, p.25) 14 No Anexo II encontra-se um quadro que compila os casos narrados ao longo da tese nesse formato destacado.

    A funo do quadro facilitar que o leitor rememore e encontre casos a partir do nome da pessoa desaparecida.

  • 15

    acontecimentos construdos como casos de desaparecimento so distinguidos da vida

    cotidiana ao serem narrados e registrados, mas, ao mesmo tempo, dela no so totalmente

    apartados. luz das propriedades da magia, pode-se dizer que temos, tambm a, mundos que

    momentaneamente se sobrepem sem que se destaquem. (Mauss, 2003, p. 150). As caixas de

    texto colocadas ao longo do corpo da tese, mas destacadas pelas bordas que as delimitam, so

    tentativas de dar forma a essas caractersticas dos casos.

    Como o caso de Antnio bem ilustra, mesmo que construdos como eventos

    extraordinrios, casos de desaparecimento so constitudos por elementos do cotidiano e so

    constitutivos do cotidiano daqueles que com eles se envolvem. Ademais, so cotidianamente

    geridos por meio de rotinas burocrticas.

    ANTNIO

    Maria e Antnio, policial civil aposentado, viveram juntos por muitos anos e esto

    separados h quase duas dcadas. Logo aps a separao, Antnio voltou a viver com sua me.

    Falecida a me, seguiu residindo no mesmo endereo, em companhia da irm. Em setembro de

    2007, porm, o imvel foi a leilo por inadimplncia. A irm de Antnio partiu para o Mato

    Grosso e ele, desde ento, voltou a residir com Maria, agora na casa que ela divide com

    Jeferson, seu atual companheiro.

    Questes financeiras, repletas de ambigidades, so parte constitutiva das relaes

    entre Maria, Antnio e Jeferson. Segundo Maria, Antnio vive em sua residncia por no ter

    meios para manter casa prpria desde o leilo do imvel em que vivia com a irm. Entretanto,

    contribui considervel e regularmente para o oramento da casa onde mora com ela e Jeferson.

    Certa manh de maro de 2008, contados quase seis meses que vinham morando sob

    mesmo teto, Maria, Antnio e Jeferson foram at uma agncia bancria em Cascadura. L,

    Antnio sacou setecentos reais de sua conta corrente e entregou a quantia, integralmente, a

    Jeferson. Do banco, os trs partiram no mesmo nibus. Maria e Jeferson desembarcaram

    primeiro, diante de um supermercado, e Antnio seguiu viagem. Ele estava a caminho de outra

    agncia bancria, no Centro, onde depositaria certa soma de dinheiro que havia colocado na

    meia antes de sair de casa.

    No comeo da tarde, Maria comeou a estranhar que Antnio no retornasse para casa

    e decidiu procurar por ele nas ruas do bairro onde moram. Como no obteve sucesso, telefonou

    em seguida para o irmo de Antnio, Walter Lcio, que surpreso informou-lhe que Antnio

    sequer sabe seu endereo. Em companhia de Jeferson, Maria foi ento agncia bancria em

    que Antnio depositaria o dinheiro que portava dentro da meia, onde foram informados que

    no consta o comparecimento de Antnio naquele estabelecimento. Frustradas essas trs

  • 16

    buscas, no bairro, na parentela e no banco, Maria decidiu procurar a polcia para registrar o

    desaparecimento do ex-marido, deciso que a conduziu a trs reparties policiais: a 29

    Delegacia Policial (DP), a 6 DP e o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de

    Homicdios (DH).

    Na 29 DP, Maria foi informada que o registro s poderia ser feito depois de passadas

    48 horas do desaparecimento.15

    Como Antnio havia desaparecido naquele mesmo dia,

    nenhuma providncia seria tomada naquela repartio. Da 29, Maria seguiu para a 6 DP, onde

    tentou mais uma vez notificar o desaparecimento. Relatou ento que seu ex-marido policial

    civil aposentado e, sob a justificativa de que se tratava de questo envolvendo policial, foi

    encaminhada para a Delegacia de Homicdios e instruda a procurar o SDP.

    Embora no seja da competncia do SDP receber solicitaes de registro diretamente

    de familiares ou conhecidos de pessoas desaparecidas, e embora no haja qualquer respaldo

    legal para a justificativa do encaminhamento de Maria diretamente DH, o inspetor do SDP

    que a recebeu achou por bem efetuar o registro. Tomou ento as declaraes de Maria e, a

    partir delas, instaurou Sindicncia em nome de Antnio. Dentre os registros que compem a

    Sindicncia, o inspetor grafou uma justificativa para a exceo concedida:

    Independentemente da peregrinao sofrida por muitos familiares de

    pessoas desaparecidas, fica cada vez mais notria a falta de informao

    dentro do prprio organismo da Polcia Civil, seja no que diz respeito ao

    registro do desaparecimento, seja a rea de sua atribuio. No ensejo de

    amenizar o priplo da comunicante e melhor definir uma soluo para que

    se d incio s buscas do paradeiro do cidado desaparecido, foram tomadas

    a termo as declaraes ora apresentadas para conhecimento e providncias cabveis.

    Passados onze dias da instaurao da Sindicncia, Maria retornou ao SDP para solicitar

    a suspenso das investigaes e registrar que ela mesma havia encontrado Antnio. Ele estava

    hospedado num hotel caro da cidade mineira de Juiz de Fora, onde disse estar descansando

    da vida. Ao relatar esse fato, Maria pediu ao inspetor do SDP que registrasse que ela no se

    preocuparia em localizar Antnio caso ele voltasse a desaparecer. Aquela era a segunda vez

    que seu ex-marido desaparecia e ela desejava ser desencarregada de procur-lo se o fato

    tornasse a se repetir.

    Negando o pedido, o policial alertou Maria de que, se era esse seu desejo, ela deveria

    se divorciar de Antnio, com quem era oficialmente casada at ento. Segundo o policial, caso

    continuasse casada no papel, Maria teria obrigaes em relao a ele. Se numa dessas ele

    15 Ronda os casos de desaparecimento de pessoas no Brasil o chamado mito das 48 horas. Embora no haja qualquer norma que afirme que registros de desaparecimento devam ser efetuados apenas 48 horas depois do

    fato, prtica comum nas delegacias do pas que policiais passem essa informao aos solicitantes. A Lei

    Federal 11.259/2005, conhecida como Lei da Busca Imediata, foi instituda para combater este mito. Contudo, ela determina a busca imediata apenas para casos de desaparecimento de crianas e adolescentes. O mito das 48 horas e a Lei da Busca Imediata so objeto de reflexo no captulo 4.

  • 17

    for atropelado ou qualquer outra coisa e ela nada fizesse, poderia ser responsabilizada por

    negligncia.

    Diante dessa advertncia, Maria descreveu o trabalho que Antnio representa em sua

    vida. O policial insistiu que a soluo para esse inconveniente seria o divrcio, nica medida

    que os desvincularia definitivamente. Em resposta, Maria deixou claro que estar casada com

    Antnio lhe permitia acesso a alguns benefcios dos quais ela no poderia abrir mo. O policial

    ento afirmou que ela deveria ter cincia de estar agindo por interesse e de possuir

    responsabilidades em relao a Antnio - como, por exemplo, reportar polcia um eventual

    novo desaparecimento dele. Encerrando o dilogo, Jeferson, companheiro de Maria que at

    ento permanecera calado, disse ao policial: . Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

    Ao se levantar para deixar o Setor, Maria por fim perguntou ao inspetor se ele no

    queria checar o documento de identidade de Antnio, que ela levou consigo para comprovar

    que o encontrara. Despedindo-se dela e de Jeferson, o inspetor afirmou que no havia qualquer

    necessidade de checagem de documento para comprovao.16

    Enquanto foi registrado como desaparecido em documentos policiais hoje arquivados

    no SDP, Antnio estava descansando da vida em um hotel. Embora para Maria ele estivesse

    misteriosamente ausente, o que a levou a solicitar investigaes policiais em torno de seu

    paradeiro, ele havia se retirado, voluntariamente, do crculo social, das obrigaes financeiras

    e do ponto no espao a que estava costumeiramente vinculado. Sendo Antnio maior de

    idade, aposentado e dotado de meios materiais para tanto, no mnimo intrigante que sua

    deciso de se retirar tenha sido registrada, sob o nome de desaparecimento, em uma DP.

    Se no pelo simples fato de que todos ns somos eventualmente acometidos pelo

    desejo de descansar da vida, ao menos a indicao de que a prpria Maria preferia que ele

    evaporasse impe que nos perguntemos, afinal, por que o que se passou com Antnio

    recebeu o nome de desaparecimento.17

    O que significa designar um acontecimento ou cadeia

    de fatos como desaparecimento? E o que registr-la em uma repartio policial implica?

    Elementos do caso de Antnio oferecem pistas para refletirmos a partir destas

    perguntas. Podemos notar, por exemplo, que as posses do ex-policial, importantes para a

    16 Os documentos relativos a esse caso compem a Sindicncia 061/08 do SDP/DH. 17 O detetive particular norte-americano Frank Ahearn fez da possibilidade de qualquer um de ns nutrir o desejo

    de descansar da vida mote para um manual, atualmente traduzido e publicado em dez pases, intitulado How to disappear: Erase Your Digital Footprint, Leave False Trails, and Vanish without a Trace (Ahearn, 2010). Em livrarias norte-americanas, encontra-se o manual de Ahearn lado a lado com seu avesso: manuais sobre como

    encontrar desaparecidos e como solucionar casos de desaparecimento, como Missing Men: the story of the Missing Persons Bureau of the New York Police Department (Ayers & Bird, 1932) e Tracking - Signs of Man, Signs of Hope: A Systematic Approach to the Art and Science of Tracking Humans (Diaz, 2005).

  • 18

    manuteno da casa de Maria, bem como as responsabilidades acarretadas pelo vnculo civil

    entre os dois figuram nos registros como razes para que a polcia fosse comunicada do

    desaparecimento. Do ponto de vista de Maria, as razes operantes seriam as primeiras; do

    ponto de vista do policial que a atendeu, seria crucial que ela agisse em funo das ltimas.

    O dilogo entre Maria e o inspetor do SDP sugere, ainda, que a comunicao do

    desaparecimento polcia seria uma forma de garantir que, caso um acidente ou crime

    acontecesse a Antnio e a polcia tomasse conhecimento, Maria fosse avisada, mas no

    culpabilizada. Oficializar, comunicar e documentar a ausncia de Antnio em sua casa e em

    seu cotidiano, enfim, seria uma forma de Maria desincumbir-se de possveis conseqncias da

    retirada voluntria dele. Tanto quanto o casamento no papel acarreta responsabilidades, o

    desaparecimento registrado nos papis de um rgo policial pode eximir um sujeito de

    algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, o desaparecimento registrado nesses papis

    pode impor polcia tarefas, encargos e, por que no, bastante trabalho.

    Atentando para especificidades do desaparecimento de Antnio, podemos notar que

    questes financeiras, obrigaes morais e responsabilidades civis constituem as relaes entre

    o policial aposentado, sua ex-mulher e o atual companheiro dela. Ademais, podemos notar

    que essas mesmas questes, obrigaes e responsabilidades constituem a prpria ausncia do

    primeiro, ainda que temporria, na vida dos ltimos. Ainda que tenha ganhado ares de

    mistrio, tons de fato extraordinrio e estatuto de caso polcia, aparentemente destoando da

    vida cotidiana de Antnio, Jeferson e Maria, o desaparecimento do primeiro pode ser visto

    como parte constitutiva das relaes e eventos mais ordinrios entre os trs.

    Como indicam os trabalhos de Das (2007) e Kleinman (2006), para fins de anlise

    possvel e necessrio encarar o cotidiano como constitudo por fatos e acontecimentos que

    colocam em questo certezas e preceitos morais que orientam os sujeitos. Alguns desses

    eventos so classificados e vivenciados como excepcionais e desestabilizadores, ao passo que

    a outros cotidianamente negada tal classificao. Cabem ento algumas perguntas, sobre as

    quais reflito a partir da minha presena no SDP e na ReDESAP: o que faz das ausncias

    narradas em casos de desaparecimento eventos extraordinrios? Que certezas e preceitos

    morais so colocados em xeque nos casos? Como essas ausncias so produzidas como

    ocorrncias policiais? E como ganham o estatuto de manifestaes particulares de um

    problema social?

  • 19

    Atravs da porta que fica aberta

    Foi na data do reencontro entre Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, narrado no caso

    de Antnio, que ns quatro nos conhecemos. Mais do que isso, foi naquela data que conheci o

    prprio SDP e soube que ali so investigados e arquivados exclusivamente casos de

    desaparecimento de pessoa.

    O inspetor Fernando um dos cinco agentes da Polcia Civil do Rio de Janeiro que

    compem o quadro regular do Setor. Diferente da usual circulao entre delegacias e setores

    que caracteriza a carreira da maioria dos policiais civis, Fernando est lotado na Delegacia de

    Homicdios e trabalha no SDP h cerca de quinze anos. Junto a seus colegas de Setor, sua

    atribuio central investigar casos de desaparecimento registrados e no solucionados em

    quarenta e quatro delegacias comuns do Rio de Janeiro.18

    Tais investigaes originam

    registros documentais que so arquivados, organizados e contabilizados no prprio SDP com

    o estatuto de Sindicncias. At o ms de setembro de 2008, encontravam-se arquivados no

    SDP Sindicncias em nome de 9.293 pessoas que desapareceram, algumas delas mais de uma

    vez, desde o ano de 1993. Antnio uma delas. Diariamente, segundo a escala de alternncia

    e horas de trabalho seguida pelos agentes do SDP, h sempre pelo menos dois policiais

    presentes no Setor. Os desaparecimentos investigados so distribudos entre os cinco, que

    diante dos casos exercem o papel de sindicantes.

    Os nicos instrumentos legais que regulam diretamente a forma atravs da qual a

    Polcia Civil e, em particular, o SDP deve lidar com casos de desaparecimento no Brasil e no

    Rio de Janeiro so a Lei Federal 11.529, de dezembro de 2005, e a Resoluo 513 da

    Secretaria de Polcia Civil do Rio de Janeiro (hoje integrada Secretaria de Segurana

    Pblica), de dezembro de 1991. O curtssimo texto daquela Lei determina apenas que casos de

    desaparecimento de crianas e adolescentes devem gerar investigaes imediatas.19

    Relativamente mais detalhada, a Resoluo, por sua vez, normatiza prazos e diretrizes para a

    18 Grafo delegacia comum de modo a diferenciar as delegacias distritais, conhecidas como DPs, das delegacias especializadas. Durante a execuo da pesquisa que resultou nessa tese, havia 168 DPs no Rio de Janeiro, e cerca

    de 55 delegacias especializadas. No desaparecimento de Antonio, as delegacias comuns envolvidas so a 29 DP

    e a 6 DP; a especializada, por sua vez, a Delegacia de Homicdios, em cuja estrutura est inscrito o SDP. So

    exemplos de delegacias especializadas que compem a estrutura da Polcia Civil do Rio de Janeiro: a Delegacia

    de Proteo Criana e ao Adolescente (DPCA), a Delegacia Especial de Atendimento Pessoa de Terceira

    Idade (DEAPTI), a Delegacia de Combate s Drogas (DCOD), a Delegacia Especial de Apoio ao Turista (DEAT) a Delegacia de Represso do Crime Organizado (DRACO). Para uma reflexo sobre a atuao de

    delegacias especializadas, bem como sobre o conhecimento (pouco) especfico que nelas circula e produzido,

    ver Nascimento (2008). 19 A Lei 11.529/2005 foi incorporada como um pargrafo do Artigo 208 do Estatuto da Criana e do Adolescente

    (ECA).

  • 20

    investigao policial de desaparecimentos no Rio de Janeiro, e tambm utilizada como base

    legal em outros estados da federao.

    Embora a Resoluo defina padres administrativos para investigao policial, a

    averiguao dos arquivos do SDP ou mesmo um nico dia de observao dos trabalhos

    levados a cabo no Setor permite notar que, na prtica cotidiana, a heterogeneidade o que

    caracteriza o trabalho dos policiais e o conjunto de casos ali investigados. No h padro

    nico de acontecimentos, definies e desdobramentos que permitam falar de

    desaparecimento, sem contradies, como fenmeno unidimensional. Ao contrrio, h

    desaparecimentos mltiplos e definies mltiplas de desaparecimento, e com essa

    multiplicidade que os policiais do Setor trabalham.

    A pesquisa indicou-me, no obstante, que tal multiplicidade no se confina no interior

    das paredes de reparties policiais. Uma ampla gama de significados atribuda ao

    fenmeno, cotidianamente, no s por policiais, mas tambm pelas pessoas que procuram a

    polcia para comunicar desaparecimentos e, ainda, por funcionrios de instituies no-

    policiais que tambm lidam com o fenmeno, como conselhos tutelares, rgos de assistncia

    social e ONGs. A abordagem de funcionrios e servidores de todas essas instituies para o

    tratamento de casos de desaparecimento varia de forma considervel. Basta lembrarmos a

    pesquisa do ISP e o protesto da ONG carioca com que abri essa Introduo. Enquanto para o

    Instituto desaparecimentos so protagonizados por jovens que deixam seus lares apenas

    temporariamente, para a ONG essas ocorrncias encobrem crimes hediondos.

    Para alm das abordagens de agentes que lidam institucionalmente com o

    desaparecimento, tambm se distinguem bastante as abordagens dos (poucos) estudiosos

    dedicados ao fenmeno. De modo excludente, h interpretaes que classificam o

    desaparecimento como uma das faces da violncia urbana (Espinheira, 1999), enquanto

    outras o encaram como conseqncia direta da violncia intrafamiliar (Oliveira e Geraldes,

    1999) e de valores patriarcais e seus impactos sobre relaes de gnero e gerao no interior

    de famlias brasileiras (Oliveira, 2007). Vistas em conjunto, essas interpretaes constrem

    duas abordagens excludentes: em alguns trabalhos, as famlias de desaparecidos so

    encaradas como instncias produtoras de desaparecimentos (Oliveira, 2007), ao passo que

    em outros so vistas como agentes passivos que precisam ser protegidos pelos poderes

    pblicos dos impactos da violncia urbana (Soares et al, 2006), apresentada como causa

    primordial dos desaparecimentos.

  • 21

    Pesquisar o cotidiano e os arquivos do SDP e integrar reunies da ReDESAP permitiu-

    me confirmar a inexistncia de abordagens nicas do fenmeno tanto entre aqueles que o

    tomam como objeto de gesto e interveno, quanto entre os que o tomam como objeto de

    estudo. A variedade de casos particulares abarcada pelo polivalente termo desaparecimento

    resiste a ser compreendida por qualquer perspectiva unvoca. O desaparecimento de uma

    pessoa pode inscrever-se, a um s tempo, tanto na seara da segurana pblica, quanto em

    tramas familiares, e pode no consistir em acontecimento decorrente de qualquer tipo de

    violncia facilmente classificvel como intrafamiliar ou urbana, como sugerem,

    respectivamente, Oliveira e Geraldes (1999) e Espinheira (1999).

    De fato, h casos passveis de interpretao a partir da idia de violncia

    intrafamiliar. Ao longo da pesquisa me foi relatado, dentre outros exemplos, que os

    inspetores do SDP certa vez apuraram que um homem que comunicara o desaparecimento de

    sua esposa e filho recm-nascido havia agredido fisicamente aqueles que afirmou terem

    desaparecido. Nesse caso, a esposa deixara sua residncia, levando consigo o beb, para

    proteger-se (e sua prole) de novos episdios de violncia conjugal. Ao longo de eventos

    promovidos pela ReDESAP, de modo semelhante, ouvi inmeros relatos de casos tratados

    como desaparecimentos que poderiam, ao mesmo tempo, ser classificados como episdios de

    subtrao de incapazes, segundo o Cdigo Penal.20

    Tais relatos enredavam pais ou mes de

    crianas e/ou adolescentes que subtraram seu(s) filho(s) do poder de quem o tem sob sua

    guarda em virtude de lei ou de ordem judicial, conforme prev a lei, como forma de

    recrudescer conflitos conjugais.

    Contudo, junto a ocorrncias desse tipo, delegacias de polcia lidam tambm com

    desaparecimentos que, no decorrer de investigaes, passam a ser designados seqestro,

    homicdio e/ou ocultao de cadver, crimes encarados como manifestaes da violncia

    urbana na contemporaneidade. Exemplo notrio ocorrido no Rio de Janeiro a chamada

    Chacina de Acari, j mencionada nesta Introduo. Outro exemplo, sem dvida menos visvel,

    mas no menos representativo, o caso investigado pelo SDP de um homem que, segundo

    20 Subtrao de incapazes um crime tipificado pelo Cdigo Penal brasileiro no Artigo 249. Embora sua

    definio no o estabelea, em reparties policiais utiliza-se este tipo penal para tratar de casos de seqestro em

    que o seqestrador o pai, a me ou o guardador de uma criana ou adolescente. Nos termos da lei, a subtrao

    de incapazes consiste em Subtrair menor de 18 anos ou interdito ao poder de quem o tem sob guarda em virtude de lei ou de ordem judicial: Pena