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1 UMA LEITURA DE "REDEMPTORIS MATER" INTRODUÇÃO Poderia haver vários caminhos para abordar a Encíclica de João Paulo II sobre a Mãe do Redentor, tão rica ela é: um estudo teológico selecionado e comentando sobretudo os aspectos teológico-bíblicos que ela destaca e que dizem respeito diretamente à Virgem; um estudo histórico que mencionasse particularmente os diversos momentos do dogma marlal ao longo dos séculos; um estudo pastoral que se demorasse na análise e no aprofundamento dos aspectos concretos visados pelo papa ao propor ao mundo católico essa Encíclica Marial; até mesmo um estudo espiritual poderia ser tentado, tanto o papa sublinha, ao longo dó seu texto, o papel de Maria na vida espiritual dos cristãos e no mistério da Igreja. Entre esses aspectos salienta-se o sentido do Ano Marial de que o papa fala ao final da Encíclica (cf n.° 48-50). Todas essas leituras seriam possíveis e, tomadas isoladamente, teriam a vantagem de aprofundar o sentido e a orientação do conteúdo, apresentando uma análise mais ou menos completa, apoiada em argumentos quiçá subjacentes ao texto, situados, porém, bem acima dele. Talvez possa ver-se um inconveniente nesse parcelamento excessivo do texto, esquecenodo a visão de conojunto da Encíclica. Outrossim, para noão perder essa visão de conjunto do texto, será apresentado noeste estudo uma leistura mais global, mais fácil e também mais simples, mas de qualquer modo, mais acessível. Esse estudo levará em conta a finalidade da Encíclica 1 , para depois demorar-se em cada uma das partes dela, seguinodo, assim, de perto sua metodologia e seu desenovolvimento: — Maria no mistério da Igreja; — a Mãe de Deus noo centro da Igreja peregrina; — a mediação maternoal.

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UMA LEITURA DE "REDEMPTORIS MATER"

INTRODUÇÃO

Poderia haver vários caminhos para abordar a Encíclica de João Paulo II sobre a Mãe do Redentor, tão rica ela é: um estudo teológico selecionado e comentando sobretudo os aspectos teológico-bíblicos que ela destaca e que dizem respeito diretamente à Virgem; um estudo histórico que mencionasse particularmente os diversos momentos do dogma marlal ao longo dos séculos; um estudo pastoral que se demorasse na análise e no aprofundamento dos aspectos concretos visados pelo papa ao propor ao mundo católico essa Encíclica Marial; até mesmo um estudo espiritual poderia ser tentado, tanto o papa sublinha, ao longo dó seu texto, o papel de Maria na vida espiritual dos cristãos e no mistério da Igreja. Entre esses aspectos salienta-se o sentido do Ano Marial de que o papa fala ao final da Encíclica (cf n.° 48-50).

Todas essas leituras seriam possíveis e, tomadas isoladamente, teriam a vantagem de aprofundar o sentido e a orientação do conteúdo, apresentando uma análise mais ou menos completa, apoiada em argumentos quiçá subjacentes ao texto, situados, porém, bem acima dele.

Talvez possa ver-se um inconveniente nesse parcelamento excessivo do texto, esquecenodo a visão de conojunto da Encíclica. Outrossim, para noão perder essa visão de conjunto do texto, será apresentado noeste estudo uma leistura mais global, mais fácil e também mais simples, mas de qualquer modo, mais acessível.

Esse estudo levará em conta a finalidade da Encíclica1, para depois demorar-se em cada uma das partes dela, seguinodo, assim, de perto sua metodologia e seu desenovolvimento:

— Maria no mistério da Igreja;— a Mãe de Deus noo centro da Igreja peregrina;— a mediação maternoal.

A FINALIDADE DA ENCÍCLICA

Ao começar sua Enocíclica pela conohecida passagem do Gn 4,4-6 — sobre a plenoitude dos tempos, quanodo Deus eno via seu Filho nascido de UMA mulher2 —, o papa apresenote já a finoalidade da Enocíclica.

Quisera, também eu, começar minha reflexão sobre o sentido do papel que Maria tem no mistério de Cristo e sua presença ativa e exemplar na vida da Igreja (no.° 1).

1.1 A PLENITUDE DOS TEMPOS, OU OMISTÉRIO NA HISTÓRIA

A finalidade da Encíclica está claramente formulada com termos significativos e ricos de sentido. Fiel à intuição do Concílio que está colhendo jà os frutos de uma serenoa e aprofundada reflexão marial, o papa situa o papel de Maria no interior do mistério de Cristo Este noão pode mais ser com preenodido sem se fazer refe rência à história de Maria, eis que noa plenoitude dos tempo: o Cristo noasceu de uma mulher. É a história de Maria que tornoa

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possível o ser histórico do Filho de Deus com tudo o que isso implica de humanoização e mesmo de fraqueza.

Sem penetrarmos num comenotário mais profundo sobre a questão da maternidade de Maria, assinalemos, desde logo, o conteúdo da fórmula "nascido de uma mulher", de acordo com algunos exegetas.

No contexto paulino de GI 4,4-6, não se deve exagerar o alcance da frase "nascido de urna mulher". Essa expressão nada mais é do que um modo de sublinhar a condição humana e histórica de Jesus4. Mas esse nível simples, considerado, porém, no ãmago da finoa lidade da Encíclica, torna-se importante: sublinha a relação íntima e profunda que de hoje em diante, sob o ponto de vista histórico, vai existir na plenitude dos tempos entre Jesus e sua mãe.

Essa plenitude dos tempos que determina o momento fixado desde toda a eternidade em que o Pai enviou seu Filho indica, na bela expressão do papa, a entrada da eternidade no tempo (no.° 1) fazendo assim do próprio tempo, salvo e penetrado pelo mistério do Cristo, um "tempo de salvação”. É o abraço da eternidade com o tempo, em outras palavras, o entrelaçamento profunodo e íntimo do mistério do Cristo com a história do homem, em geral, e com a história de Maria em particular.

Compreenode-se, então, que o papa, após ter sublinhado esse entrelaçamento inegável entre a história de Maria qu se torna mistério, e o mistério do Cristo que se torna história, possa falar da presença ativa e exemplar da Virgem na vida da Igreja (no.° 1).

É a Igreja que prolonga o mistério do Cristo, de hoje em diante profunodamente enraizada noa história da humanoidade e noa história de cada homem. Ela é o corpo de Cristo, chamamenoto que valoriza a dimensão inoterior, misteriosa e invisível da Igreja5. Mas é tam-bém o povo de Deus, noção que expressa, melhor que qualquer outra, a continuidade de Deus na vida dos homens. Essa noção tem também um grande valor antropológico, mostranodo que a Igreja não se pode reduzir ao aspecto institucional. Ela é composta de homens e de mulheres que compartilham as alegrias e as angústias dos homens deste tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem (GS 1) e são testemunhas do fermento evangélico no interior da comunidade humana (cf. LG 40-45). Em conseqüência faz jus à historicidade da Igreja e permite reconhecer que ela está sujeita ao pecado, tendo necessidade constante de reforma.

Apelando para esses dois conceitos eclesiológicos, poder-se-á compreenoder melhor o pensamento do papa quando fala da presença ativa e exemplar de Maria na vida da Igreja.

1.2 A PRESENÇA ATIVA DE MARIA NA VIDA DA

IGREJA

Ligada de forma eminente e única ao mistério do Cristo, ela própria membro já to-talmente remida no interior desse corpo de Cristo — que é a Igreja —, a presença ativa de Maria se traduz no papel que desempenhou e continua desempenhando na economia da salvação em favor de toda pessoa humana.

Da Anunciação ao Cenáculo, incluindo Caná e o Calvário, a vida da Virgem, graças ao "Pai Misericordioso", foi um dom total a serviço do mistério do Cristo, e, portanto, a serviço da condição humana a ser redimida. O “eis a serva do Senhor, faça-se ema mim segundo a tua

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palavra” (Lc 1,38) não pode ser entendido senão nessa perspectiva de serviço que é dom de si aos outros.

Essa perspectiva de uma presença ativa de mediação está muito bem sublinhada pelo Concílio quando fala de Maria, retomando a linguagem dos Padres:

“O Pai das Misericórdias quis que a encarnação fosse precedida pela aceitação daquela que era predestinada a ser mãe de seu Filho, que, assim, como a mulher contribuiu para a morte, também a mulher contribuísse para a vida. O que de modo excelentíssimo se aplica à Mãe de Jesus, a qual deu ao mundo a própria vida, que tudo renova, e foi por Deus enriquecida com dons dignos para tamanha função” (LG 56).

O texto do Concílio refere essa presença ativa da Virgem Maria no momento da encar-nação. Mas é verdadeira ao longo de toda sua vida. Dois dos elementos evocados acima — Caná e o Calvário — constituem também ótimo exemplo de mediação ativa.

Em Caná é ela que toma a iniciativa de se dirigir a Jesus para mudar uma situação, no mínimo desagradável, no contexto em que se passava: as núpcias.

Na cruz, o evangelista diz que ela se mantinha de pé. Será que não é possível ver nesse "mantinha-se de pé", na hora em que estava perdendo seu Filho segundo a carne, para receber seu Filho segundo o espírito, um ato de coragem, certamente sustentado pela graça, em que supera a profunda piedade maternal relativamente a seu Filho segundo a carne e assume, de maneira excepcional, a maternidade espiritual relativamente aos fiéis representados ao pé da cruz pelo discípulo bem-amado?6 Impõe-se acreditar nisso, o que representa, de maneira bem concreta, essa presença ativa da Virgem a favor da humanidade, ontem e hoje.

Ainda hoje, pois, é a missão que decorre de sua presença ao pé da cruz, da maternidade espiritual que encontra, nessa cena, o seu começo. Mas é necessário fazer uma referência à presença de Maria no Cenáculo no qual se encontrava com os apóstolos e algumas outras mulheres, todos assíduos na oração (cf. At 1,14).

Há consenso em ver na vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos e Maria no Cenáculo o começo da Igreja. O sermão de Pedro, logo após a descida do Espírito Santo, inaugurando assim a pregação apostólica dirigida aos pagãos, é um momento inicial, muito significativo, desse começo da Igreja. Maria estava lá, nessa plenitude do tempo realizada, que, segundo o papa, designa o início da caminhada da Igreja (cf. nº 1). Nessa caminhada, Maria torna-se sinal de esperança para todos os homens, conforme sublinhou o Concílio, ao mesmo tempo em que a apresenta como o protótipo e o começo da Igreja:

A Mãe de Jesus, tal como está nos céus já glorificada de corpo e alma, é a imagem e o começo da Igreja como deverá ser consumada no tempo futuro. Assim também brilha aqui na terra como sinal da esperança segura e do conforto para o povo de Deus em peregrinação (L.G. 68).

Ser sinal de esperança poderia multo bem ser a missão que o Espirito Santo lhe confia, na hora da partida dos apóstolos para a missão, como um eco e uma realização em plenitude da missão que o Filho lhe havia confiado ao pé da cruz. O papel do Espírito Santo é muito importante aqui. Ele desce duas vezes sobre Maria, e em dois momentos decisivos da economia da salvação: na Anunciação, em que o mistério do Cristo queima as distâncias e reúne a história humana; e no Cenáculo, onde o mistério da Igreja nascente reúne o homem na

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sua história. Em ambos os casos é a irrupção da graça, vinda do Cristo, que acontece na his-tória humana. E tudo isso é fruto do poder do Espírito Santo, que se torna fonte da atividade salvífica de Deus no mundo8.

A descida "ruidosa", do Espírito Santo sobre a Virgem, no Pentecostes esclarece a des-cida "silenciosa", do Espírito Santo sobre a Virgem, na humildade de Nazaré. Esclarece sobretudo o fato de que Maria havia sido estabelecida por seu Filho, ao pé da cruz, como mãe dos crentes. O Pentecostes ratifica e realiza efetivamente essa maternidade relativa a todos os homens, e sua presença ativa em favor da humanidade ao longo da peregrinação da Igreja.

Assim o expressa Philippe Ferlay, quando fala do "mistério do Cenáculo": o Espírito Santo não desce sobre Maria da mesma forma que desce sobre o grupo Apostólico, nem sobre a comunidade dos discípulos reunidos. Suas vocações permanecem diferentes, e é essa diferença que permite compreender as missões distintas do "Espírito". A missão de Maria está voltada para o cumprimento de sua nova ta- refa, eminentemente eclesial:

Maria acolhe essa nova vinda do Espírito para o cumprimento de uma tarefa, sua nova tarefa. Seu Filho glorificado junto ao Pai replena-a novamente do Espírito, para que ela participe em seu lugar da construção desse corpo eclesial. Autentica a palavra que pronunciou sobre a cruz: a humanidade é teu Filho, tão realmente quanto eu mesmo sou, porque o Pai quer, desde toda a eternidade, que ela se recapitule em mim, e que assim se realize o seu crescimento espiritual. A palavra pronunciada desde a cruz é confirmada pelo dom do Espírito e recebe nesse dia de Pentecostes toda sua força criadora. E nós podemos adivinhar que no coração de Maria a resposta é a mesma que em Nazaré: permaneço a serviço do Senhor, para esta nova missão; que tudo se cumpra para mim e para os homens como ele quiser.9

A presença ativa de Maria ao longo de toda a caminhada da Igreja na sua humanidade é confirmada no Pentecostes. E a Virgem do silêncio quisera conduzir seus filhos a seu Filho. A exemplo do papa que fala do "Magnificat dos séculos" (cf. n.° 20), poder-se-ia falar aqui dum sim que se prolonga na Igreja e na história. Essa "continuidade histórica" de seu fiat nada mais é do que essa presença ativa de Maria no meio da Igreja, corpo do Cristo e povo de Deus.

1.3 A PRESENÇA EXEMPLAR DE MARIANA VIDA DA IGREJA

Sempre na introdução da encíclica, o papa, em paralelo com a presença ativa, fala da presença exemplar de Maria na vida da Igreja. Pode ser que essa outra faceta da presença de Maria no povo dos fiéis seja mais apreensível quando encaramos a Igreja como "povo de Deus", uma Igreja peregrina na obscuridade da fé e sob o peso do pecado e da fraqueza que atingem a condição humana.

Não esquecendo, embora, que Maria foi, desde toda a eternidade, predestinada a ser Mãe do Salvador, convém sublinhar que ela é também a mulher resgatada que se acha no meio de seu povo; a mulher que teve necessidade da graça que ela recebeu em plenitude. Quando o Concílio estabelece a relação entre a Virgem e a Igreja, sublinha fortemente essa humanidade da Virgem, após ter referido o dom de uma graça exímia que a coloca muito acima de todas as criaturas celestes e terrestres (LG 53).

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O Concílio continua: Mas ao mesmo tempo está unida, na estirpe de Adão, com todos os homens a serem salvos. Mais ainda: é verdadeiramente a Mãe dos membros de Cristo... porque cooperou pela caridade para que na Igreja nascessem os fiéis que são os membros desta cabeça, E por causa disso é saudada também como membro supereminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo excelente na fé e na caridade. E a Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade filial como mãe amantíssima (LG 53).

LG 53 põe, pois, em destaque, num resumo teológico multo denso, essa presença exemplar da Virgem, de que fala o papa. Exemplo admirável para o povo de Deus em marcha, que por sua vez, Impelido pelo Espírito Santo, lhe tributa um sentimento filial de piedade, traduzido, entre outras, na prece de louvor, ação de graças, mas também de intercessão, de par com a união e Cristo, pela prática da virtude. O papa, recordando o ensi namento do Concílio, explica essa exemplaridade da Virgem modelo na fé, esperança e caridade, uma vez que

a Igreja caminha no tempo, no sentido da consumação dos séculos, e procede para o encontro com o Senhor que vem. Mas nesta caminhada a Igreja procede seguindo as pegadas do itinerário percorrido pela Virgem Maria, a qual avançou na peregrinação da fé, mantendo fielmente a união com o seu Filho até a cruz (n.° 2).12

1.3.1 O retorno entre o cair e o erguer-se

A exemplaridade está aí como um chamamento, um sinal de esperança, para dizer ao povo cristão que é sempre possível superar os limites humanos, e que o pecado não pode ter a última palavra na vida desse povo cristão. Há, certamente, de maneira positiva, a imitação das virtudes de Maria. Mas há também, na condição humana, ferida pelo pecado, aquilo que o papa chama, no final de Encíclica, a Verdade do grande retorno (n.° 52). Trata-se de

um retorno histórico essencial que persiste de maneira Irreversível: o retorno entre o cair e o erguer-se (n.° 52).

Esse retorno não pode operar-se a não ser no Cristo e em sua graça. Aliás, o papa su-blinha-o, embora de passagem,quando diz que este é determi nado para o homem pelo mis tério da encarnação. Mas nc centro desse mistério este Maria e sua mediação mater nal. Sem dúvida, é somente a g.-aça que opera esse retor no entre o cair e o erguer-se entre a vida e a morte, com( o papa o assinala. Desde en tão, há

um desafio incessante às consciências humanas, un desafio a toda consciência his tórica do homem: o desafie que consiste em caminhar sen 'cair sobre os caminhos serr pre antigos e sempre novos, e em erguer-se se caiu" (n.° 52; sublinahdo no texto)

Nesse desafio incessant só Deus dá a vida e conced ao homem a graça de pôr-s a caminho para Deus. Mas Ma ria pode conduzi-lo ao long desse caminho semeado, pc vezes, de tantas ciladas e dif culdades. Ela pode conduzir homem na sua função medis neira (entendida no context da mediação do único medis dor, o Cristo), porque ela s situa “na charneira entre o pecado e a graça” 13. Isto quer dize que, embora isenta de toda fa ta, Maria não está confinad numa existência celeste, long da cotidiana condição de peei dores do homem e da mulher comuns. Seria esquecer que ausência de pecado não torna menos humano, senão mais humano.

Compreende-se então multo bem o cuidado do papa na sua luta a favor do homem, a favor de uma existência mais humana do homem, propondo-lhe, na véspera do terceiro

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milênio, o recurso constante a Maria, enquanto "cooperadora" exímia e única no mistério da salvação, ao mesmo tempo que –

profundamente radicada na história da humanidade, na eterna vocação do homem, segundo o desígnio providencial que Deus predispôs eternamente para ele (n.° 52).

1.3.2 Vinde em socorro

O papa conserva a antífona final à Santíssima Virgem Maria (na hora de Completas), . que traduz de maneira tão límpida o apelo (e a nostalgia) da humanidade pecadora: Vinde em socorro do vosso povo que cai e anela por erguer-se (n.° 51).

Neste sentido apenas conserva urna oração, no meio de tantas outras, muito cara ao a povo católico, acentuando es-e se mesmo grito de socorro e a mesma esperança que habita ta o homem pecador, quando a se confia àquela que teve a a plenitude da graça. Bastaria aqui recordar a salve-rainha, em que a Virgem é chamada nossa esperança, na qual clamamos a ela gemendo e chorando neste vale de lágrimas; advogada nossa, pedimos-lhe volva a nós seus olhos misericordiosos. Assim também na ave-maria, em que lhe pedimos explicitamente que rogue por nós pobres pecadores.

Para uma mentalidade cristã não-católica, esta "familiaridade suplicante" à Virgem pode parecer estranha, não bíblica e ferindo o único mediador entre Deus e os homens, o Cristo, ferindo a única mediação salvífica, a do Cristo.

É verdade que não se vê nessas orações do povo cristão sua origem bíblica, embora tão clara na Ave-Maria. Será necessário por isso rejeitá-las? Não o creio porque não há nada, tampouco, na Escritura que se oponha a que o Homo viator se dirija à Virgem e aos santos. É simplesmente vê-los e situá-los no interior do mistério do Cristo presente em nós e presente neles, graças à comunhão eclesial, graças à comunhão dos santos. É no interior dessa comunhão eclesial no Cristo, e graças a ela, que devemos situar a devoção e a intercessão à Virgem e aos santos. Mais uma vez: a única mediação salvífica é a do Cristo. A Virgem e os santos têm o "poder" de levar a essa mediação salvífica14.

É nessa mediação secundária que haure sua eficácia da eficácia da mediação do Cristo; que o povo cristão, ao longo de sua caminhada na história, caminhada pontilhada de tã angústias e mesmo de insuridade cessos, soube voltar-se para a Virgem, pois ela é a "estrela do mar", a "porta do céu". Ne- - la a esperança do povo cristão não se frustrou. O povo cristão sabe disso. Suas intuições não o enganam. A Virgem se faz presente. Sua presença no meio do povo cristão é sempre uma presença ativa e, portanto uma presença, eficaz; presença exemplar e, portanto, uma presença que é apelo.

Trata-se de penetrar mais a fundo, estudando mais de perto, embora bastante rapida-mente, o conteúdo da Encíclica, após termos situado acima a presença ativa e exemplar da Virgem, a partir da Introdução e da Conclusão da Encíclica.

2. MARIA NO MISTÉRIO DO CRISTO

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Após haver definido a finalidade da encíclica, o papa volta a sublinhar elementos fun-damentais em que sempre aparece um liame entre Maria e a Igreja, entre Maria e o Cristo, ou entre os três ao mesmo tempo. Vamos reter entre eses elementos os seguintes: o mistério de Maria se ilumina no mistério de Cristo (cf. n.°s 4, 19 e 22); o itinerário da Igreja, no decorrer dos tempos, se inspira no da Virgem (cf. n.° 2); Maria está unida especialmente à Igreja e ao Cristo. Mais: ela se torna figura da Igreja que, por sua vez, como Maria, se torna Virgem e Mãe (cf. n.° 5 e 42); a "peregrinação na fé" (esta expressão volta seguidamente na encíclica), que caracterizou a caminhada da Virgem na sua união com o Cristo, pode aplicar-se a todo o povo de Deus, não apenas numa perspectiva individualista, em que a peregrinação da fé designa a história interior das almas, mas também numa perspectiva comunitária em que a peregrinação da fé designa a "história dos homens submetidos a uma condição transitória sobre esta terra" (n.° 6). Maria, sendo já a consumação escatológica da Igreja, não cessa de ser a estrela do mar para todos os que ainda vivem a peregrinação da fé (cf. n.os 5 e 6)15.

2.1 - DA ANUNCIACÃO À CRUZ

Reunidos assim os atributos da Virgem, o papa entra no corpo da encíclica, começando por estudar Maria no mistério de Cristo16. Essa primeira parte, sem que isto seja um comen-tário exegético detalhado, é profundamente bíblica, dividida em três parágrafos apoiados em seqüências bíblicas bem conhecidas. Três parágrafos que se interpenetram, sem serem absolutamente compartimentos estanques, sobretudo no nível da temática e da teologia que aí são apresentadas17. Embora correndo o risco de simplificar, sigamos o papa na divisão que ele mesmo apresenta.

Maria entra no mistério de Cristo porque é cheia de graça (cf. nos 7-11), e é defini-tivamente introduzida nele pela Anunciação (cf. n.° 8). Da plenitude da graça anunciada pelo Anjo, e significando o dom do próprio Deus, João Paulo II passa à fé da Virgem, proclamada por Isabel, quando da Visitarão. Essa fé mostra como a Virgem Maria respondeu ao dom do próprio Deus, isto é, à plenitude da graça recebida: ela o acolhe como um dom que a leva inteiramente à obediência da fé (cf. n.°s 12-19).

Finalmente, o papa evoca a cena da Virgem ao pé da cruz (cf. Jo 19,25-27), onde é dada por mãe ao discípulo bem-amado. O papa estuda nessa parte o papel da maternidade de Maria, não apenas com relação ao próprio Jesus mas também com relação aos cristãos (cf. n.°0 20-24).

2.2 - A PRESENÇA DA MULHERNO MISTÉRIO

Três partes distintas, com um traço de união, um ponto comum que dá certa coerência a essa divisão tripartida: quer se trate da plenitude da graça-bênção, sem dúvida, única e excepcional, concedida a Maria — em virtude do caráter único de seu lugar no mistério do Cristo (cf. n.° 9); quer se trate dessa outra bênção proclamada por Isabel em razão da fé com que pronunciou seu fiai (cf. n.° 13) e viverá seu itinerário rumo a Deus (cf. n.° 14); quer se trate da nova maternidade que adquire seu sentido na fé e obediência à Palavra (cf. n.0 20), no centro dessas três dimensões sempre está a mulher e seu lugar no mistério do Cristo. E pode-se mesmo dizer, seu lugar na história do homem, tanto, de uma parte, o mistério do Cristo está ligado ao "mistério do homem", na sua trajetória histórica e escatológica; como de outra parte,

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ela é a Mãe da Igreja, a Mãe do Povo de Deus e sua nova maternidade segundo o Espírito, nada mais é que a solicitude de Maria para com todos os homens. Um primeiro anúncio dessa mediação se deu em Caná, mas o papa diz, citando o Concílio:

"Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura ininterruptamente... até a perpétua consumação de todos os eleitos" (LG 62).

2.2.1 - A Plenitude da Graça

De cada uma dessas três partes o papa sabe maravilhosamente tirar proveito para apresentar um comentário bíblico bem coerente, reafirmando sempre, com solicitude, a doutrina da tradição católica.

A plenitude da graça é uma bênção especial concedida a essa mulher única no mistério de Cristo: é porque nela habita a plenitude da graça que ela é bendita entre todas as mulheres (cf. n.° 8). A plenitude da graça significa concretamente várias coisas: Antes de mais nada, a eleição de Maria para Mãe de Deus (cf. n.° 9), de par com todos os dons sobrenaturais de que goza em virtude dessa eleição, como, por exemplo, a vida nova que ela recebe em plenitude: é isenta da herança do pecado original (cf. n.° 10).

A seguir, o papa lembra (sempre apoiado no Concílio) que ela é cheia de graça, sobretudo porque a Encarnação se realiza e se completa nela (cf. n.° 9). Encarnação que é o cumprimento supremo da promessa, promessa que abre o homem à esperança: o pecado já não terá a última palavra. Aí está a salvação advinda à humanidade pelo Filho do Homem. Trata-se do dom supremo: o dom de si mesmo à humanidade. Mas no bojo desse dom há a intervenção da mulher, cuja descendência vencerá o mal do pecado em sua raiz, eis que ela esmagará a cabeça da serpente (cf. n.° 11).

2. 2.2 - A Fé da Virgem Maria

Os números 12-19 falam da fé da Virgem. Essa já está presente na Anunciação em que o papa declara o momento "decisivo" da fé para, depois, dizer que já na Anunciação Maria dá-se inteiramente a Deus na "obediência da fé", que comporta durante toda sua vida dois elementos inseparáveis: colaboração perfeita no mistério do Cristo e disponibilidade perfeita à ação do Espírito (cf. n.° 13).

A fé da Virgem é, então, comparada à de Abraão, e o paralelismo é levado ao ponto de relacionar à fé da Virgem o começo da Nova Aliança, assim como a de Abraão estava no começo da Antiga Aliança (cf. n." 14 e 15).

Dentro desta nova aliança o Papa refere-se a uma segunda Anunciação feita a Maria- a do idoso Simeão - . A palava de Simeaõ sublinhará a dimensão histórica em que Jesus vai realizar a sua missão. Esta dimensão histórica implicará inevitavelmente a imcompreensão e o sofrimento (cf. n. 16).

A fé é um contacto com o mistério de Deus (cf. n. 17): por isso esta dimensão histórica é transferiada, por assim dizer, ao mistério de Maria vivido na fé e o sofrimento do Filho, será inevitavelmente o sofrimento da mãe. Ela partilhar, sem dúvida alguma, a dor do Filho. A profecia de Simeão tem sentido, e sua palavra, "Uma espada trespassará a tua alma" (Lc 2, 34), compreendida no seu contexto, significa que Israel se encontrará dividido perante a

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mensagem de Jesus e Maria será dilacerada por esta tragédia. Talvez nós podemos ver em tudo isto um anúncio da paixão19. Mas então, e de manaira talvez mais profunda, aos pés da Cruz, Maria participa, pela fé, no mistério emocionante e perturbante so sofrimento de seu filho. Inspirado no texto bíblico que fala do abaixamento do Filo - Fil 2, 5-8 -, o Papa não tem medo de falar, certamente por similaridade, da "kenosis" de Maria (voltarei a este tema mais tarde, pp 25 - 30) que só pode ser entendido na fé. E ele diz textualmente:

"É provavelmente a« kenosis "de fé mais profunda na história da humanidade. Pela fé, Madre envolvido na morte de seu filho, a sua morte redentora "(No. 18).

Na mensagem do anjo, porque ela é cheia de graça, descobrimos que Maria está presente no mistério do seu filho: porque ela acreditou, ela aceitou também levar a sua cruz até ao fim, de tornar este mistério de sofrimento presente em toda a sua peregrinação terrena.

2.2.3 - Maria, Mãe

A última parte, sempre profundamente bíblica terá como tema a realidade de Maria. O papa se empenha, partindo do evangelho, em descobrir o "novo sentido" da maternidade, além da maternidade física (cf. n.°s 20 e 21). Esse novo sentido não se alcança, senão na fé, na obediência, na capacidade de "guardar" e meditar a Palavra.

Em que consistirá essa "nova maternidade"? O papa responde bastante explicitamente, podendo-se resumir seu pensamento: "A nova maternidade nada mais é do que o serviço, o fato de estar ocupado nos negócios do Reino, os negócios do Pai. É o sentido da resposta de Jesus a essa mulher que, sem o saber, inaugura, segundo a belíssima expressão do papa, o "Magnificat dos séculos": "Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam" (Lc 11,28; cf. n." 20).

Então a maternidade nova, segundo o Cristo, é a solicitude de Maria para com todos os homens. Neste sentido Caná é um belíssimo exemplo: "Eles não têm mais vinho". É maternidade mediadora com caráter de intercessão. Mas é também maternidade que encoraja, que apela para a conformidade com a vontade do Filho. Segundo as palavras do papa: "Ela é a porta-voz da vontade do Filho" (n.° 21). "Fazei tudo o que ele vos disser". Temos, pois, mediação maternal de Maria, que toma sua origem no Cristo, e, ao mesmo tempo, orienta na direção dele. Sua maternidade na função da graça é totalmente voltada para a revelação do poder salvifico de seu Filho. A mediação de intercessão de Maria não tem sentido, a não ser na mediação salvífica de Jesus21.

A cena da cruz (Jo 19,25-27) confirma a maternidade de Maria: é estabelecida na fé e no amor e resulta do cumprimento pleno do mistério pascal. Ela é a participação no amor redentor de seu Filho (cf. n.° 23). Mas sua presença maternal não para aí: o n.° 24 introduz maravilhosamente a segunda parte da encíclica, quando, aceitando o ensinamento tradicional católico, vemos em São João a figura de todos e de cada um dos homens (cf. n.° 23). Então, a maternidade de Maria se prolonga na Igreja e pela Igreja representada por João ao pé da cruz (cf. n.° 24). Vejamos tudo isso mais de perto.

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A MÃE DE DEUS NO CENTRO DA IGREJA PEREGRINA

A segunda parte da encíclica sublinha o caráter peregrino da Igreja e também apresenta

três subdivisões:- a Igreja-povo-de-Deus presente em todas as nações da terra (25-28);- a caminhada da Igreja e a unidade dos cristãos (29-34);- o Magnificat da Igreja que caminha (35-37).

3.1 . A Igreja — Povo-de-Deus presente em todas as nações da terra.

A primeira parte, que acabamos de ver, tem como pano d efundo a Bíblia. A segunda parte (como, aliás, a terceira) tem como pano de fundo, de um modo espeical, o Concílo. As citações e referências do Concílio ocorrem com freqüência.

O n.° 25, após definir a Igreja como o conjunto de todos aqueles que olham com fé para Jesus, sublinha também seu caráter peregrino: caráter, a um tempo externo, pois que é visível no tempo e no espaço, e essencialmente interior, pois que se trata de uma peregrinação mediante a fé.

É exatamente nessa peregrinação que Maria está presente, como esteve presente no dia de Pentecostes no exato momento do início da caminhada-peregrinação da Igreja através da história. Maria não esteve presente como os apóstolos que receberam diretamente a missão de testemunhas até os confins do mundo (At 1,8)22.

Maria está presente como “testemunha especial do mistério de Jesus” (nº 26, sublinhado no texto), que precedeu os apóstolos na fé. É por isso, continua o Papa, que todos os que participam na herança misteriosa do Cristo, que se prolonga no mistério da Igreja, participam, em certo sentido, na fé de Maria (nº27). Ela que acolheu o mistério apoia nossa fé (cf. nº 27), fé transmitida ao mesmo tempo pelo conhecimento e pelo coração (n° 28)23.

Isso lembra a presença de Maria, que, segundo o Papa, conhece múltiplos meios de expressão nos dias de hoje como, aliás, ao longo de toda a história da Igreja (n° 28). Esses meios de expressão da presença de Maria vão desde a fé e a piedade dos fiéis individualmente até a força de atração e irradiação dos grandes santuários que reúnem naquele entusiasmo de fé que torna “visível o invisível” das multidões de crentes para cantar os louvores de Maria e receber com ela e por ela o dom do Filho sua plenitude, sua graça, ser mistério.

3.2 A caminhada da Igreja e a unidade dos cristãos

O Papa aborda, a seguir, um problema particularmente importante e necessário à Igreja de hoje: o ecumenismo. Essa unidade somente pode ser encontrada na "obediência da fé", de que Maria Santíssima é o primeiro (e o mais luminoso) exemplo (n° 29). A unidade é necessária à Igreja para que o mundo creia que Jesus foi enviado (cf. Jo 17,21). A relação entre fé e unidade está, pois, estabelecida. A unidade dos cristãos implica a unidade da fé, e esta dará coerência à construção de toda unidade (cf. nº 30).

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O Papa consagra quatro números (31-34) a relembrar as realizações concretas que demonstram a existência de grande veneração à Virgem entre outras confissões, sobretudo entre os orientais.

Nessa caminhada rumo à unidade, pde-se às Igrejas que permaneçam à escuta do Espírito, como fez Maria, a Mãe de toda a Igreja.

3.3 - O "Magnificat” da Igreja-em-marcha

O Papa termina sua reflexão nesta segunda parte com um pequeno comentário do Magnificat.

É uma prova da presença da Virgem na Igreja, em cujo coração não cessa de ressoar através dos séculos (cf. n° 30). É uma profissão de fé inspirada,

“na qual resplandece um clarão do mistério de Deus, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem (nº 36; sublinhado no texto).

Destaquemos, sempre dentro do pensamento do Papa dois elementos importantes no bojo desse hino que brota do coração da Virgem: a fé e a pobreza.

3.3.1 - A "kénose" da fé

O Magnificat é uma profissão de fé. Apelando para tradição da Igreja dos primeiros séculos, o Papa relembra o paralelismo Eva/Maria para falar, por antítese, da "desconfiança" do começo, nascida no coração de Eva, e da "verdade" sobre Deus que Maria proclama como resposta à saudação de Isabel (cf. n° 37); da dúvida à certeza, do pecado de incredulidade à fé total que se traduz na adesão pessoal e obediente de Maria ao mistério de Deus

A fé da Virgem, em seguimento à de Abraão e de outra figuras bíblicas ao longo da peregrinação de Israel, apaga a "desconfiança" de Eva, portadora de sofrimento e de dor para converter num hino a "verdade" de Deus. À loucura de Eva, à sua aventura suicida e destruidora (e toda e qualquer dúvida é sempre destruidora) sucede a humildade e confiante aceitação da aventura de Deus da parte de Maria, que se tornará a portadora de vida, a "mãe dos viventes". De Eva a Maria há toda a história de Israel, ou melhor, toda a história de Deus, que decide misteriosamente confiar-se à mulher, para o melhor e para o pior. Em definitivo, para o melhor: Maria apaga Eva

“e sua fé aparece como ponto de síntese que diz sim ao projeto de Deus. O Emanuel pode chegar: a terra dos homens, em Maria, está pronta para acolhê-lo”24.

Mas se esse projeto de Deus foi possível em virtude da obediência da fé da Virgem, e se "a terra dos homens" fecundou-se da presença de Deus, é preciso sublinhar, ao lado dessa "glória" e da alegria que traz consigo, a outra vertente do mistério dessa fé única a que o Papa faz alusão no n.° 18, quando, recordando a kénose do Filho, sublinha a kénose da Mãe, que nada mais é do que a participação de Maria, pela fé, no desconcertante mistério do despojamento do Filho, participação na sua morte redentora.

A kénose do Filho torna-se a kénose da Mãe. O lado exultante da saudação de Isabel, por ela ter acreditado, não esconde o lado mais doloroso da presença de Maria ao pé da cruz, onde a fé se torna kénose: a kénose da fé. No mistério do Filho, como no da Mãe, pobreza e

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glória se completam formando um todo. Um chama o outro e os dois juntos dizem da fé da Virgem em todos seus aspectos e em todas as circunstâncias de sua vida.

3.3.2 - A "kénose" da virgindade: a pobreza

Há um segundo elemento muito importante no Magnificat, sobretudo na segunda parte (cf. Lc 1,51-55): os pobres e a pobreza, começando pela pobreza de Maria.

É preciso voltar sobre a kénose de Maria, não mais sob o ângulo da fé, mas sob o angulo da virgindade que, ao menos na cultura de Israel na época de Jesus, era considerada não apenas como sinal de pobreza, mas até de baixeza e desprezo.

O caminho de Maria no mistério do Cristo e no que ela virá a ser para a Igreja (mãe e modelo) não será compreendido plenamente e em profundidade, senão quando encarada também sob este ângulo: o da pobreza, mas a pobreza de coração que ilumina ab intra toda pobreza humana, esta, a um tempo, "fruto e sinal do pecado"26.

Maria, não podendo ser situada nessa pobreza humana, “fruto e sinal do pecado” só pode ser encarada na pobreza de coração, a pobreza dos anawin do Antigo Testamento, aqueles cuja vida é totalmente transparente ao plano de Deus, desde o fiat até a cruz. Essa pobreza de coração deve ser relacionada, no caso de Maria, com sua virgindade:

“Maria é o modelo desses pobres de coração e, imersa no contexto judaico, sua virgindade plenamente consentida aparece como uma pobreza que transfigura esse clima do coracão. Porque em Israel a virgindade é, assim como a esterilidade, uma baixeza e fonte de desprezo que priva a mulher daquilo que lhe dá direito ao respeito. Jesus nasceu, pois, da pobreza, de uma kénose (a de sua mãe, virgem) que tornava fecunda e gloriosa a pobreza transparente do coração de Maria e sua disponibilidade ao poder do Espirito de Deus.27

(Tillard, Le salut : mystère de pauvreté).

À kénose da fé que acompanha Maria ao longo de sua vida — especialmente no Calvário mas já embrionária no "Cântico do Magnificat que jorrou da profundidade da fé da Virgem" (n.° 35), na visitação — sucede a kénose da sua pobreza virginal tornada fecunda pelo Espírito Santo.

A kénose da fé teve seu ponto culminante na participação de Maria no mistério do Calvário com tudo o que isso significa de desconcerto e despojamento. Esse despojamento não é somente vivido na fé, mas representa a pobreza, talvez a maior e mais profunda que uma mulher possa suportar: a perda de seu filho. Podemos, então, aplicar a Maria o que Tillard aplica explicitamente a Cristo:

“sua vida inteira será dirigida, po sua vez, até a pobreza da cruz por essa pobreza de coração”28

Essa pobreza da cruz se traduzirá, para Jesus, no cumprimento perfeito da vontade do Pai. Contudo é na conjunção dessas duas pobrezas - da cruz e do coração - que brotará a salvação e se fará presente na história humana, desde agora resgatada. A Ressurreição brota da Cruz e é precisamente porque há o abaixamento na Cruz que Ele (Cristo) será exaltado e feito Senhor.30

Guardadas as distâncias, esse raciocínio pode ser aplicado à Virgem Maria31(cf. LG 59). Não se encontra ela também na conjunção da pobreza da Cruz que a dispõe à aceitação e, talvez, à compreensão do aniquilamento de seu Filho, e da pobreza do coração que a dispõe

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ao mistério de Deus, por sua disponibilidade total, por sua obediência dócil e, ao mesmo tempo, exigente? Não é sua resposta ao anjo, quando tudo parecia envolto na impossibilidade humana, a conformidade total à vontade do Senhor que desce do céu, absolutamente pobre, à procura da mediação humana (a da Virgem Maria)?

“Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,37). O alimento da Virgem será, como o de Jesus, fazer a vontade daquele que, desde sempre, a havia escolhido” (cf. Jo 4,34).

E não será esse cântico do Magnificat o mesmo em que ela exalta o Senhor, em que seu espírito exulta em Deus, seu Salvador, o cântico que traduz a própria exaltação da Virgem, porque (Deus) olhou para a baixeza de sua serva e doravante todas as gerações a proclamarão bem-aventurada: porque o Todo-Poderoso fez nela maravilhas (cf. Lc 1,47-48). O hino exprime, assim, a um tempo, a exultação e a exaltação da Virgem, no qual transpira a experiência pessoal de sua fé profunda e a experiência de amor de seu coração inundado de alegria. O Papa o expressa sucintamente no n.° 36:

“No arrocho do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude de Cristo”32.

Nela, pois, cumpriu-se a promessa feita outrora aos Pais e, portanto, rumo a ela, como Mãe de Cristo, orienta-se toda a economia da salvação, na qual se manifesta o Deus da Aliança (cf. n° 36).

3.3.3 - O "Magnificai" e o amor preferencial aos pobres.

O Magnificat de Maria é o “Magnificat da Igreja que está a caminho”33 (n.° 33) porque o amor do Todo-Poderoso que em Maria fez maravilhas se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem. A segunda parte do Magnificat sublinha admiravelmente essa dimensão histórica. O Magnificat dos séculos inaugurado pela mulher desconhecida (cf. n.° 20; Lc 11,27) torna-se o Magnificat na história, na Igreja, e de maneira espantosa, estranha a toda lógica humana: é o pobre exaltado, enquanto o rico é despedido de mãos vazias.

E fácil, pois, deduzir, a partir daí, um duplo aspecto, essencial à vida da Igreja: porque Maria é a serva pobre de Deus, o modelo da Igreja, a mãe dos membros de Cristo (cf. LG 53), a própria Igreja é chamada a tornar-se pobre, por um lado e, por outro (a dimensão histórica do Magnificat), é chamada a mostrar eficazmente um amor preferencial aos pobres.

Trata-se aí - e o Papa o diz explicitamente no n.° 37 - da fidelidade renovada da Igreja à sua própria missão. A própria Igreja é enviada a proclamar a Boa Nova aos pobres; deve andar pelo caminho da santidade e da pobreza (n.° 34). É chamada a tornar-se serva e pobre35

(n." 35) e a amar os pobres36 (n.° 36).

Esse amor preferencial pelos pobres está admiravelmente inscrito no Magnificat, e é no Magnificat que a Igreja também tomará consciência cada vez maior dessa dupla verdade, que jamais poderá separar, a saber:

“Não se pode separara verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor

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que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus” (n.° 37).

Em outras palavras, isso quer dizer que a própria Igreja, Povo de Deus em marcha, deve tornar-se, ao mesmo tempo, "povo pobre" e "povo dos pobres"37 (n.° 37).

3.3.3.1 - A Igreja, povo dos pobres.

A Igreja, povo dos pobres. A Encíclica sublinha-o, convém repeti-lo, com vigor, no n.° 37, ao retomar a passagem bíblica de Isaías (66,1-2), retomada por Lucas (4,16,22), e citando ao final o n.° 97 da Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação, da Congregação para a Doutrina da Fé, sublinhando que Maria "é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos".

Maria, mãe e modelo da Igreja, está lá para revelar-lhe a integralidade e o sentido de sua missão. E no ãmago dessa missão encontram-se os dois elementos da mensagem do Magnificat, que não se podem separar, mas, ao contrário, ter a importância salvaguardada: de um lado a importãncia que têm, na Palavra do Deus vivo, os pobres e, do outro, a opção preferencial pelos pobres (cf. nº 37).

Seria interesante de ver por que essa preferência é constitutiva da missão da Igreja, mesmo se, por vezes, ela o esqueceu no curso da história.

Antes de mais nada, são os pequenos, os humildes, os pobres de qualquer condição ou raça as vítimas mais esmagadas pelo pecado da humanidade inteira e que têm, pois, necessidade maior de ouvir a Boa Nova da esperança. Salvar o mundo é salvar todos os homens, mas sobretudo os pobres, que suportam com maior sofrimento e realismo o peso trágico do pecado do homem. Eis por que Jesus os ama com ternura especial. E Maria, na escola de seu Filho e na escuta do Espírito, não poderia agir de outra forma.

Seria preciso ainda sublinhar outra razão dessa preferência pelos pobres: o próprio Jesus se identificou com os pobres, os mais desamparados, os prisioneiros (cf. Mt 25,35-46). Ele se preferiu pobre e escolheu os pobres38. Então, acolher os pobres, aliviá-los em suas angústias físicas ou morais, não é nada extrínseco à missão da Igreja. Esse acolhimento está no âmago de sua missão. Acolher o pobre é prestar homenagem a seu Senhor:

“Sobre a terra o Cristo é indigente na pessoa de seus pobres... É preciso, pois, temer o Cristo do céu e reconhecê-lo sobre a terra” 39 (op. cit.).

Falamos aí da comunhão e identificação totais do Cristo, o homem sofredor, esmagado, explorado. Entre o sofrimento do Servo Sofredor e o dos pobres, há "mais do que um elo de semelhança, há uma real comunidade de sorte"40 (op. cit.) A Saulo o Cristo não diz "por que persegues os cristãos"; diz-lhe "por que me persegues", e o texto de Mateus (25,35-46) é muito claro também: “Tive fome e vós me destes de comer...”

Se no centro da missão da Igreja se encontra a exigência de dar testemunho de Cristo e torná-lo presente no meio dos homens, ela o conseguirá à medida que acolher e amar eficazmente os pobres, verdadeiro "sacramento" do Cristo sofredor sobre a terra. S. João relembra que ela é chamada a amar verdadeiramente em atos: Filhinhos, não amemos com palavras, nem com a língua, mas por atos e em verdade (1Jo 3,18). Não se trata de uma opção

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com dupla possibilidade — sim ou não. Trata-se de uma missão a cumprir, se não quiser trair o mandato de seu Senhor.

3.3.3.2 - A Igreja, povo pobre.

A Igreja será tanto mais a Igreja dos pobres, à medida que se tornar Igreja serva e pobre, uma Igreja "povo pobre". O Concílio redescobriu e sublinhou essa dimensão fundamental na Igreja: ela deve trilhar o caminho da pobreza e o espírito de caridade e de pobreza é a glória e o sinal da Igreja de Cristo42 (cf. GS).

O motivo é muito simples: eis que ela é o Corpo Místico de Cristo e que a salvação do mundo deve continuar-se nela e por ela; a dimensão de pobreza presente no mistério de Jesus deve perpetuar-se na Igreja. É questão fundamental: a pobreza é característica essencial da Igreja porque ela vive no e pelo Cristo43.

A salvação foi o fruto do sacrifício de um pobre morto sobre a cruz. É a pobreza de Jesus, o Servo de Javé, abandonado de todos, que se torna fonte de salvação para o mundo. O Cristo encontrou sua Senhoria e sua vitória na pobreza da cruz. Aquilo, pois, que se passou na Cabeça para a Redenção do mundo acha-se doravante destinado ao corpo inteiro, isto é, à Igreja, que tem por missão tornar presente sobre a terra, até a parusia, a salvação da Páscoa.

A pobreza pertence, pois, ao núcleo essencial do mistério da Igreja, ao ponto de condicionar sua missão evangélica44. Nesse sentido, a Igreja prolonga, em si (ao menos deveria prolongar) e na história, a kenose do Cristo Jesus:

“A Igreja peregrina é uma Igreja da kénose. A razão humana e sobretudo o espirito de mesquinho egoísmo que dormita no coração de todo batizado pode escandalizar-se com isto. Mas é um mistério. Não admiti-lo é recusar consentimento a toda a loucura do plano divino” 45 (op. cit.).

A Virgem, mais que qualquer outro, aceitou plenamente essa loucura do plano divino, vivendo de maneira extraordinária, intimamente unida à história de seu Filho, a plenitude do mistério redentor. Na kénose de sua fé e de sua virgindade fecunda, ela é, com os apóstolos na hora do Pentecostes, a primeira cristã a viver na Igreja nascente essa kénose fundamental, a continuar agora ao longo da história da Igreja peregrina. Na kénose de sua fé e de sua pobreza virginal, a Virgem pode ser - certamente o é - um exemplo primordial a fazer conhecer e iluminar a marcha da Igreja solicitada a viver em estado de kénose. E ela pode fazê-lo em razão de sua presença na Igreja e de sua medição maternal, que o Papa recorda na terceira parte da Encíclica.

A MEDIAÇÃO MATERNAL DE MARIA

A terceira e última parte da Encíclica Redemptoris Mater é subordinada a esse título geral: a mediação maternal. Poderíamos chamá-la a “parte pastoral” da Encíclica, porque trata do serviço que a serva do Senhor (cf. 38-41) continua prestando na vida da Igreja e de cada cristão46 (cf. 42-47). O ano marial que o Papa propõe, no final desta terceira parte (cf. n.° 48-

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50), nada mais é do que um convite para viver, de maneira bem concreta, essa mediação maternal de Maria, a fim de descobrir ainda melhor, na vida da Igreja e de cada cristão,

“o vínculo especial da humanidade com esta Mãe... no período que antecede a conclusão do segundo milênio do nascimento de Cristo” (n.° 48).

É interessante que quando o Papa explicita a finalidade desse ano marial o faz praticamente nos mesmos termos que definiam o objetivo geral da Encíclica47. Na linha do Concílio, o Papa, ao proclamar esse ano marial, deseja pôr em relevo a presença especial da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja (n.° 48).

– De uma reflexão... a uma presença especial

Relativamente à finalidade da Encíclica, o Papa dizia que se tratava duma reflexão sobre o sentido e o papel de Maria no mistério do Cristo e de sua Igreja. Aqui, em relação ao sentido e à finalidade do ano marial, trata-se de pôr em relevo a presença especial de Maria nesse mesmo mistério48.

Trata-se de um ótimo exemplo para mostrar que uma boa atividade pastoral, bem como uma autêntica espiritualidade (marial, no caso) deveriam construir-se sempre sobre a base de sólida reflexão bíblica e teológica49.

De outra forma, poder-se-ia cair sempre num ativismo mais ou menos piedoso, mais ou menos social, mas insuficientemente enraizado na palavra de Deus, única a poder dar-lhe sua força e coerência, não tanto sob o ponto de vista de sua eficácia exterior (não desprezível, certamente), mas, sobretudo, sob o ponto de vista que faz (ou deveria fazer) da atividade pastoral, uma atividade que encontra sua fonte no amor que o próprio pastor vota a Deus, e seu cumprimento num amor transbordante e gratuito a seus irmãos, seu rebanho50. Esse problema é o que o Papa expressa, por outras palavras no nº 48:

“O Ano Mariano deverá promover também uma leitura nova e aprofundada daquilo que o Concílio disse sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja... "Trata-se aqui não só da doutrina da fé, mas também da vida de fé, e, portanto, da autêntica "espiritualidade mariana" vista à luz da Tradição e, especialmente, daquela espiritualidade a que nos exorta o Concílio” 51 (n.° 48).

4.2 - O horizonte do futuro

Nessa caminhada da vida de fé, o Papa faz ainda outra observação relativa ao Ano Mariano, que é bom sublinhar. A observação aplica-se à Igreja, mas convém também a cada cristão em particular: trata-se de viver esse Ano Mariano numa perspectiva de futuro.

O Ano Mariano abre-se sobre o horizonte do terceiro milênio cristão que solicita e faz apelo a uma nova perspectiva (cf. n.° 49). Está aí uma nota importante relativa à esperança cristã, já presente na história, que em nada diminui a tensão que a projeta no futuro. Maria pode ser invocada com o nome de Mãe da esperança. E o Papa lembra então que:

“por meio deste Ano Mariano, a Igreja é chamada não só a recordar tudo o que no seu passado testemunha a especial cooperação materna da Mãe de Deus, na obra da salvação em Cristo Senhor, mas também a preparar para o futuro, na parte que lhe toca, os caminhos desta cooperação” (n.° 49).

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A Igreja é, pois, convidada neste fim-de-século a passar da lembrança ao futuro, do que já cumpriu à tarefa ainda por cumprir, de uma perspectiva antiga a uma nova perspectiva. E tudo isso para que Maria, que ocupa constantemente o primeiro lugar na caminhada da Igreja através da história da humanidade (cf. n.° 49), ajude o homem e a Igreja, no dealbar do terceiro milênio, a realizar uma virada fundamental: a virada entre o cair e o erguer-se, entre a morte e a vida (cf. n.° 52). Trata-se, diz o Papa, de aceitar um desafio:

“desafio incessante às consciências humanas, desafio a toda a consciência histórica do homem: o desafio para seguir os caminhos do "não cair", com os recursos sempre antigos e sempre novos, e do "ressurgir, se caiu" (n.° 52).

Para que o homem se reerga ou não caia, o Papa quer que se invoque Maria. Ela é a estrela do mar que, ainda noje, vem em auxílio. Ela é hoje, como outrora, a Mãe-Medíaneira.

É precisamente em razão dessa mediação maternal que ela pode estar bem no âmago desse desafio, ajudando a Igreja e o povo-em-marcha para efetuar a transição da lembrança ao futuro, do cair ao erguer-se neste fim de milênio.

4.3 - Um só mediador: o Cristo.

Ao falar-se em mediação, relativamente a Maria, é preciso ficar atento, quer sob o ponto de vista teológico, quer pastoral ou eclesial, ao alcance real deste termo.

O Papa o faz muito bem, lembrando sempre o Concílio que, por sua vez, se faz eco da teologia de São Paulo:

“Há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens, que se deu em resgate por todos” (1Tm 2,5-6).

Então, quando se fala de mediação em relação a Maria, esta não pode ser compreendida senão em relação à única mediação de Cristo. É, pois, mediação no Cristo (cf. n° 38). Esclarecida esta idéia, para que não se atribua à Virgem o que desde toda a eternidade cabe somente a Cristo, a Encíclica apresenta algumas expressões (não muito diferentes entre si), ecos muitas vezes do Concílio, para explicar essa mediação da Virgem no Cristo.

É mediação subordinada (cf. n.° 38-41); é mediação de participação (cf. n.° 38); é cooperação maternal (cf. n.° 38); mediação participada (cf. n.° 38), isto é,

“a cooperação de Maria participa, com seu caráter subordinado, na universalidade da mediação do Redentor, único mediador” (n. 40).

Essa cooperação se fez ontem pelo acolhimento da maternidade como dom total de si, de sua pessoa ao plano salvífico de Deus (cf. n.° 39) e ainda hoje, após sua Assunção ao céu, por sua intercessão. Nesse sentido pode-se considerar a mediação de Maria como mediação de intercessão52 vivida pela vez primeira em Caná, da Galiléia, mas que prossegue na Igreja que a invoca sob muitos títulos que traduzem essa intercessão maternal: Advogada, Auxiliadora, Adjutriz, Medianeira53 (cf. LG 62).

Retomando o Concílio (LG 60), o Papa relembra a influência salutar da Virgem (cf. n° 38), influência que se poderia qualificar de trinitária, pois que tem como fonte uma disposição

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gratuita de Deus e dimana da superabundância dos méritos de Cristo, sustentado pelo Espírito Santo54. Essa função subordinada de Maria na história da salvação é uma função especial e extraordinária que promana de sua maternidade divina e somente pode ser compreendida e vivida na fé. Maria é generosamente associada à obra da Redenção (cf. n° 38), graças ao dom maternal que fizera de si (cf. n.° 40) para que a missão do Salvador se tornasse possível a um dado momento da história. Ela não salva: sua função — subordinada, mas sublime — é simplesmente dar nascimento àquele que salva: o Senhor Jesus Cristo.

4.4 - A Mediação da clemência

Nesta seção, o adjetivo maternal pode surpreender por sua repetição. Antes de explicá-la na mentalidade do Papa, sublinhemos, de passagem, uma nota em relação à mediação da Virgem, que aparece logo mencionada e que, sob o ponto de vista pastoral, é muito importante na vida do povo cristão. Essa nota aparece relativa à função própria da Mãe (cf. n° 41): A Virgem, sendo Medianeira, é a Medianeira da clemência, quando da vinda definitiva de seu Filho55.

Na morosa caminhada da humanidade e de cada cristão em particular, Maria pede e intercede pelo povo que ainda está a caminho. Mãe de todos os homens, sua missão é conduzi-los ao Cristo, apesar das dificuldades, ciladas e pecados que os espreitam na estrada. Livre do pecado, ela se faz atenta à caminhada do homem, para que também ele seja libertado, ou para que se levante quando tiver caído.

“A imaculada conceição é um anúncio (sublinhado no texto) Como vitória da "misericórdia", ela anuncia uma vitória em proveito de todos e de todas. Se Maria é preservada da influência do primeiro pecado e de todo pecado, é para o serviço de sua vocação pessoal no mistério da salvação. E, portanto, para o serviço de nossa própria libertação (eu sublinho). Sua pureza anuncia nossa purificação, nossa comunhão final com a santidade de Deus, apesar de nossas faltas. A imaculada conceição de Maria anuncia-nos a vitória final da misericórdia no mundo e no coração de cada um e cada uma de nós. 56 (Ferlay. Marie mère des hommes-Prier Marie en Eglise, p. 43).

Porque também ela - por primeiro - foi objeto dessa misericórdia. Não é, pois, de estranhar que ela vele, então, sobre seus filhos ameaçados sempre pelo pecado. Mãe universal, ela se torna, como seu Filho (lembramos mais uma vez o despojamento de Maria ao pé da cruz), sinal que fala da misericórdia de Deus:

“Maria é assim equiparada, enquanto possível, à paternidade sacrificai daquele que acolhe todos os pecadores no Amor único votado ao Bem-amado, enquanto este morre por culpa deles. Assim como Deus vê todos os homens com o mesmo amor que tem por seu Único, assim Varia se torna Mãe universal e a imagem perfeita da Misericórdia absoluta”57

(Op. cit., p. 149).

Essa mediação da clemência é, sem dúvida, um dos aspectos do serviço que Maria presta a seus filhos da Igreja-peregrina. É exatamente sobre esta nota de serviço que o n.° 41 afirma: Serva do Senhor na altura da Anunciação, permanecerá fiel, serva do Senhor e de seus filhos durante toda a vida terrena, e o caráter de serviço de sua missão, a glória de servir (n.° 41) não cessa por ser elevada ao céu e por sua exaltação real. Sua mediação maternal prossegueno serviço que ela continua prestando em favor de toda a humanidade. Num certo sentido, ela também, como Cristo o faz, atualiza a misericórdia do Pai e a de seu Filho, até

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“à plenitude definitiva do Reino, quando Deus será tudo em todos... até à realização definitiva da plenitude dos tempos, isto é, a de em Cristo recapitular todas as coisas”58 (n.° 41).

4.5 - O sentido da mediação maternal

A repetição do adjetivo “maternal” para qualificar a mediação de Maria, aparece com freqüência na Encíclica59 (vide título da 3.a parte). De fato, a mediação de Maria está estreitamente ligada à sua maternidade; decorre de sua maternidade divina (cf. n.° 38). Essa maternidade é acolhida como dom total de si aos desígnios salvíficos de Deus, e torna-se a dimensão primeira e fundamental de sua mediação: o próprio Deus submete-se à mulher. Ele quis ter necessidade dessa mediação humana que abre Maria à sua missão no mistério de Cristo e no mistério da Igreja60 (cf. n." 39).

O número 40 realiza a passagem da maternidade de Maria a respeito de seu Filho, à maternidade de Maria na ordem da graça, relativamente a todos os homens. E o Concílio (LG 62) é citado textualmente: “A maternidade de Maria, na economia da graça, perdura ininterruptamente até a perpétua consumação de todos os eleitos”61. O texto citado, uma vez mais, é o texto joanino da cena ao pé da cruz. Sem entrarmos em todos os problemas exegéticos que poderiam provocar qualquer interpretação simbólica dessa passagem62, fiquemos com a da própria Encíclica, Tmbém ela simbólica63.

Maria foi deixada como Mãe no seio da Igreja nascente. Essa maternidade irá perpetuar-se na história por uma intercessão constante em favor de seus filhos. Ela, que viveu até o fim sua peregrinação da fé, ali está, atenta aos irmãos de seu Filho, cuja peregrina ção ainda não terminou, tor. nando eficaz essa maternida de desvelada (cf. n° 23) que se realizou no começo da ati vidade messiânica do Cristo.

A cena do Calvário repre senta um fim e um começo seu Filho segundo a carne morre e, desde então, é a hu manidade que Maria dever considerar como seu filho; e a humanidade que ela deverá de então para diante, levar ao Pai. Acima do simbolismo, no momento desse despojamen to na fé e dessa pobreza to tal ao pé da cruz, acima do simbolismo intrínseco, há ali um realismo crucificante relativo a Maria.

“Neste sentido, a prova su prema para Maria no Calvário não é ver sofrer e morre aquele que ela ama, mas ouv -lo dizer-lhe do alto dessa cru que é a cátedra onde ele dita seu último ensinamento: "Eis teu filho".

Orígenes, entre os padres, percebeu melhor que outros densidade teológica dessa pa lavra de investidura. Jesus não diz a Maria, ao apontar-Ihe João: este também é teu filho, como se a humanidade pecadora e salva viesse ajuntar-se à filiação do Único, para fazer número com ela. Maria deve, de certa forma, na noite da fé, renunciar ao próprio Jesus e aceitar em seu lugar o encargo da humanidade representada por João”64 (Ferlay, Op. cit., p. 148).

Maria é, pois, investida de uma função especial na vida - da Igreja e na vida de cada : cristão. Antes de mais nada, Maria, Mãe de Deus, torna-se - modelo, ou melhor, figura da á Igreja, porque a Igreja também é chamada Mãe e Virgem (cf. n° 42.

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Citando o Concílio (LG 64) o Papa justifica assim essa maternidade e essa virgindade da Igreja:

“A Igreja se torna mãe quando, "acolhendo com fidelidade a palavra de i Deus", pela pregação e pelo batismo, gera para uma vida nova e imortal filhos concebi dos por obra do Espírito Santo e nascidos de Deus” (n° 43).

E, mais adiante, a justificação da virgindade:

“Ao mesmo a tempo, a exemplo de Maria, a Igreja permanece a Virgem fiel ao seu Esposo: também ela é Virgem, que guarda íntegra e pura a fé jurada ao Esposo” (n.° 43).

Também é possível traçar um paralelismo entre a Virgem e a Igreja, reconhecendo nesta os elementos maternais (gerar filhos e filhas para uma vida nova em Cristo), e os elementos virginais (a doação a total a Deus, fonte de especial fecundidade espiritual, isto é, fonte da maternidade no Espírito Santo) que se encontram na Virgem.

É em virtude dessa relação de exemplaridade que Maria é modelo e figura da Igreja. Mas não somente isto, diz o Papa: a maternidade da Igreja se realiza também com a cooperação de Maria. Neste sentido:

“A Igreja vai haurir copiosamente nesta cooperação de Maria, isto é, na mediação materna que é característica de Maria no sentido de que já na terra ela cooperou na regeneração e formação dos filhos e filhas da Igreja, sempre como Mãe daquele Filho que Deus constituiu o primogênito entre muitos irmãos (n° 44).

Trata-se da cooperação de seu amor maternal na ordem da graça. A resposta a esse amor maternal que a Igrejaatualiza, de certa forma, na sua tarefa apostólica se encontra no que o Papa chama “a dimensão mariana da vida dos discípulos de Cristo” (n° 45) consistindo essa dimensão na oferta de si mesma, oferta filial à Mãe de Deus que, a exemplo do discípulo bem-amado, a levou para sua casa, “acolhendo-a entre suas coisas próprias” (n° 45)65.

A partir dessa acolhida se constrói uma relação filial que nada mais é do que o abandono do filho nos braços da mãe. Nesse abandono, Maria vai orientar sempre seus filhos rumo a Cristo, mais ou menos como em Caná: Fazei tudo o que ele vos disser. A Virgem permanece, pois, a serva para sempre, testemunha do amor de Deus ao qual deseja conduzir os que se confiam a ela, homens e mulheres (cf. n° 46)66.

Assim, seria falso, ou ao menos bastante empobrece-dor, ver a função de Maria sem relacioná-la continuamente com a Igreja e o Cristo. O Concílio sublinhou bastante bem essa relação Maria/Cristo/Igreja, bem como o Papa, citando seu predecessor, Paulo VI:

“O conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre a Bem-aventurada Virgem Maria constituirá sempre uma chave para a compreensão exata do mistério de Cristo e da Igreja (n.° 47).

Maria, humana como toda mulher, mas cheia de graça como nenhuma outra, Mãe dos homens, de todos os homens, colocada acima de qualquer pecado por disposição única da graça, está presente no mistério da Igreja e do homem para ajudá-los a vencer o duro combate contra os poderes das trevas (cf. n.° 47 e GS 37), no passado, no presente e no futuro.

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Maria, a filha de Sião, permanece presente, por sua maternal intercessão, em toda a história dos homens, em toda a história do homem, como toda mãe permanece presente, sempre e em qualquer parte, na história de seu filho. E isto, por maravilhoso que seja, nada tem de surpreendente: a presença, sinal por excelência da maternidade, torna-se — e permanece — o dom e a graça da feminilidade.

CONCLUSÃO

A leitura global, a visão de conjunto da Encíclica Redemptoris Mater ao longo deste estudo, iluminou, num primeiro momento, a finalidade desse documento mariano, a saber, a função de Maria no mistério do Cristo e sua presença ativa e exemplar na vida da Igreja.

A história de Maria vem a ser indissociável da de Cristo e da Igreja: ela gerou o Cristo e é Mãe da Igreja e, neste sentido, gera na ordem da graça os novos filhos da Igreja. Trata-se de maternidade espiritual, duma cooperação ao nascimento e à educação dos filhos de Deus.

É a perspectiva da maternidade espiritual que ajuda a compreender a presença ativa e a presença exemplar da Virgem na caminhada histórica da Igreja, na vida dos cristãos que Deus salvou pelo novo nascimento do batismo (cf. Tt 3,5). Essas duas presenças destacam a presença única, maternal, de Maria junto a seus filhos ao longo de sua peregrinação da fé vivida no meio da trama humana com seus fracassos e suas alegrias.

A presença ativa da Virgem é sua função na economia da salvação. Trata-se de um serviço que a Virgem presta à 'humanidade, e, em certo sentido, que a Virgem presta ao próprio Deus que quis apelar para a mulher para que seu Filho, que é de condição divina, tomasse a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens (cf. Fi 2,6-7). Assim, a presença ativa da Virgem na economia da salvação remonta ao próprio momento da Anunciação e da Encarnação em que o Filho nasce da mulher para libertar os que estão sujeitos à Lei e torná-los filhos adotivos (cf. Ga 4, 4-5).

A seguir, na sua peregrinação da fé, encontramo-la no Cenáculo, presença viva, ativa e orante, no meio dos Apóstolos, no começo da Igreja. Entra, assim, na história da Igreja para marcar presença, atenta às suas necessidades, quer dizer, para continuar a servir. E, pelo mistério da Igreja, encontra-se com a história dos homens, a humanidade em geral feita filha sua ao pé da cruz. Aqui, nova função lhe é confiada: na Igreja e da Igreja ela se torna Mãe, intercedendo pela Igreja e pelo mundo.

Sua presença ativa na história da Igreja faz com que a Igreja fique aberta sobre o mundo e aceite o risco de sua missão: a pregação da palavra e o anúncio da salvação. Sem medo ,como outrora no Pentecostes quando os Apóstolos partem para a missão, impelidos pelo Espírito Santo. A Virgem estava lá e, graças ao Espírito, ela também assume nova missão: a de acompanhar seus filhos na peregrinação da fé e ajudá-los na travessia deste “vale de lágrimas”. Pentecostes não é o fim de sua missão; é o começo de nova tarefa: ela está presente ativamente no meio de nós.

Presente no meio de nós, cheia de graça, mãe nossa, ela fica sendo um exemplo para todos os seus filhos. Sua presença torna-se exemplar no sentido de apelo, de ideal proposto para toda vida cristã, de caminho a seguir, guiados pelo Espírito Santo. Estrela do mar, estrela da manhã, ela não conduz seus filhos a si, mas a Cristo. Se permanece apelo, ideal, não é em

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função de si própria, mas em função de seu Filho: fazei tudo o que ele vos disser. Seu apelo - enquanto exemplo e enquanto Palavra - encontra seu sentido último no Filho. É o Filho, o Cristo que é o exemplo, em definitivo, para os cristãos. A exemplaridade da Mãe, porque cheia de graça, já é fruto da graça.

Mulher redimida, não fica, por isso, menos humana. Sua presença exemplar na história da Igreja e do homem não advém de alguém “acima” da condição humana. Pelo contrário, ela está muito próxima da condição humana invadisda pelo pecado. Só a graça pode dar outra vez nao homem toda a sua humanidade, é verdade. Maria esteve sempre afastada do pecado. A Virgem, plenamente humana, intercede por nós para que a graça visite o nosso coração. E o coração humano, tocado pela graça, seguir, da melhor maneira, os caminhos de Deus.

Exemplo de toda a vida cristã, a Virgem permanece um apelo ao coração do homem em busca de plenitude e de graça. Ao mesmo tempo, ela intercede para que o percurso, na peregrinação de fé do homem, seja mais livre de espinhos e de dificuldades. Assim, o homem ainda afectado pelo pecado, tornar-se-á mais aberto e mais receptivo à graça de Deus. Assim poderá aproximar-se mais facilmente da Virgem, cujo objetivo é trazer os seus filhos ao su Filho.

Ela é presença no caminho dos homens, porque, antes, foi presença no caminho de Cristo. Participar plenamente e profundamente no mistério de Cristo, só é possível numa perspectiva de fé. Maria é bem-aventurada, porque acreditou. Nela, a fé estava esteve em contacto permanente com o mistério, ou por outras palavras, o mistério de Cristo em que ela participa, não pode ser vivido a não ser na fé. Então, não é surpreendente que, na sua fé comece a Nova Aliança. Aos pés da cruz o desfecho do mistério torna-se para Maria a "kenosis" de fé. O despojamento do Filho é o despojamento da Mãe. Mas este despojamento geran uma nova maternidade da Virgem Maria: a humanidade torna-se o seu filho.

A "peregrinação da fé" da Virgem terminará na Assunção, mas o seu serviço continua. A sua maternidade prolonga-se na Igreja e na história. É a sua mediação materna que parte de Cristo e nos orienta para ele: é junto a ele que ela interceda. O objectivo desta intercessão é a felicidade do homem, de todos os homens. Todo o homem se tornou o seu filho.

Mary também está presente na vida da Igreja peregrina, e não apenas de um modo "exterior" no tempo e no espaço, mas de um modo "interior": Maria está presente caminhando com homem, desde o dia de Pentecostes até à Parousia. Ele torna-se o testemunho, por excelência, do mistério de Cristo para todas as gerações. Todas as gerações a chamarão bem-aventurada. É a voz de Mangificat que ressoa na história. O eco contínuo desta voz diz, ao mesmo tempo, tanto a alegria como a pobreza da "serva do Senhor." A alegria vem da obediência da fé na qual Maria foi extraordinária. Por isso o Todo Poderoso fez nela maravilhas .

A obediência da fé ao plano de Deus é uma fonte de alegria. Mas nem por isso deixa de ser uma fonte de dor, de despojamento. A obediência da fé não suprime a dor do presépio nem a da cruz. Ela pode tornar-se, apesar da alegria que dá, a kenosis da fé.

O Magnificat lembra ainda outra kenosis: a dos pobres. Lembra por isso, a kenosis da pobreza virginal da Virgem, tradução "natural" de outra pobreza que a Virgem vivia ja em seu coração: pobreza do coração. Então, a virgindade que era um sinal de pobreza para a Virgem torna-se um sinal de riqueza pela graça do Espírito Santo: Cristo, riqueza para todos os que o

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recebem, nasceu desta pobreza da Virgem. Não admira então que a Igreja, seguindo o exemplo da Virgem, esteja chamada a tornar-se e manter-se "povo pobre", "povo de pobres", para não trair a mensagem que recebeu de Cristo e da Virgem. Mãe de Cristo, ela torna-se assim Mãe dos cristãos. Neste sentido, ela é a Mãe de todfos nós e a sua presença maternal na Igreja poderá trazer benefícios inestimáveis à causa da unidade dos cristãos. Esta unidade, deve ser encontrada, seguindo o exemplo de Maria, isrto é, a sua obediência da fé.

O Ano mariano, que o Santo Padre oferece, no final da Carta Encíclica pode ser uma oportunidade única para "atualizar" a presença maternal de Maria na Igreja. Não apenas em vista da unidade. A mediação materna de Maria, sempre entendida no interior da única mediação salvífica de Cristo, poderia se neste Ano mariano, uma fonte inesgotável de graça. E o seu obejctivo seria apenas este: trazer o homem para Cristo.

Fonte de graças a fazer crescer o homem na sua vida de fé, esperança e caridade, na sua vida de relacionamento com Deus. E, ao mesmo tempo, fonte de tantas graças em que a Virgem primou: humildade, serviço, escuta da Palavra, presença junto aospobres, abertura ao Espírito, colaboração com os desígnios de Deus.

Ou, ainda, na humanidade atormentada pela guerra, a fome, o medo, aspectos bem concretos da tragédia do pecado que esmaga o homem e sobretudo os pobres, não poderia a Virgem ser a inspiração da paz, da partilha e da confiança entre os homens? Certamente que sim!

Deus quis tomar rosto humano, através da mulher, através Maria. Por que, então, o homem não viria gritar sua angústia e, ao mesmo tempo, sua esperança ao coração dessa Mãe desvelada? Não é ela, de maneira especial, a mediação da clemência? Ela sempre o foi e continuará sendo, hoje, para o homem neste fim do segundo milênio. Virgem da esperança, pode ajudar o homem nostálgico a reencontrar o “paraíso perdido”. Nela a desconfiança de Eva se acaba e é a certeza da graça e sua plenitude que são oferecidas: nela e por ela, o Cristo, fonte primeira de toda graça, é oferecido ao homem em busca do verdadeiro caminho. Trata-se tão somente desse caminho — o próprio Cristo — que, por Maria, pode atingir o coração de todos os homens.

Nessa busca e nessa caminhada, Redemptoris Mater é um auxiliar precioso, dom inapreciável que o Papa entrega às mãos de todo homem de boa vontade. Trata-se de estudá-la, refleti-la e rezá-la. Com Maria. No interior da Encíclica a sugestão do Ano Mariano pode ser oportunidade única para despertar o homem do sono. Seria preciso também vivê-la com Maria, mãos nas mãos. Abrirá o coração do homempara pô-lo à escuta e dar-lhe força para pôr-se em marcha rumo à finalidade e aos resultados propostos pela Encíclica: reencontrar Maria no mistério do Cristo seu Filho, no dealbar do terceiro milênio. Seu horizonte é o ano 2.001. Está lançado o desafio às nações, às famílias, aos indivíduos. Quem ousaria não responder?

(Tradução Ir. Gelasio O. Mombach, fms)

NOTAS

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1)O objetivo da encíclica está estreitamente ligado ao significado do Ano Marial; de facto o obejctivo da Encíclica e o significado do Ano Marial são formulados em termos muito semelhantes, como veremos mais adiante.

Encontramos estes dois aspectos no início (cf. nº 1) e no final da Encíclica (cf.nº 48-50), mas eles estão intimamente relacionados. Um implica o outra e vice-versa: o obejctivo da Encíclica esclarece e dá sentido ao Ano Marial e este último encontra a sua justificação teológica nos pontos sublinhados no início da Encíclica.

2) Ga 4,4-6: "Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoçäo de filhos". Esta mesma passagem serve, aliás, como introdução ao capítulo que o Concílio Vaticano II consagra à Virgem Maria, LG 8, intitulado "A Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja."

3) Cf. Nº 20-24. O Papa retoma o tema da maternidade de um modo mais "pastoral" e menos bíblico na terceira parte da encíclica, sob o título "Mediação materna".

4) Cf. Sobre este tópico, por exemplo, ver Maria no Novo Testamento, Londres, 1978, pp 41-45. (Este é um livro escrito conjuntamente por teólogos católicos e protestantes, editado por Raymond E. Brown, Karl P. Donfried, Joseph A. Fitzmyer e John Reumann).Em estilo mais teológico e espiritual que exegético, podemos ler o capítulo, "Christ et Marie", de Philippe Ferlay, Marie Mère des Homes, Prier Marie en Église, Paris, 1985, pp 103-112.

5) Neste sentido uma eclesiologia centrada na noção de "Corpo de Cristo" contraria os excessos de uma eclesiologia centrada principalmente sobre os aspectos societais, jurídicos e institucionais da Igreja.

6) Cf.Nota j) da TOB em Jo 19, 27. A TOB observa ainda na nota h) em realção a Jo 19, 27 que, a partir do versículo 25 o possessivo "dela", está ausente, como que a sugerir que Maria já não é exclusivamente a mãe de Jesus.

7) Cf., Ac 1,14

8) Cf., João Paulo II, Domimun et Vivificantum, nº. 54 (Encíclica sobre o Espírito Santo na vida da Igreja e do Mundo).

9) Philippe FERLAY, pp 79-80.A missão da comunidade dos fiéis e apóstolos é assim descrita por FERLAY:

a) A comunidade dos crentes recebe o Espírito, para que nela se complete "o milagre da fé". É um assunto que diz respeito a todos e a cada pessoa adere a Jesus Cristo ressuscitado, reconhecido como o Senhor de sua vida. De modo que todos e cada um aceitem a Jesus como o enviado a todos para que a Boa Nova seja conhecida e o Corpo místico de Cristo

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fortalecido. A realização concreta deste Corpo místico é o objetivo final do amor trinitário, a realização de toda a obra da salvação. b) O grupo dos apóstolos recebeu o Espírito; deste modo os apóstolos tornam-se os membros activos deste Corpo até que o Senhor volte (qunado o Pai decidir), para restaurar todas as coisas no amor do Pai. Os Apóstolos recebem o Espírito para exercer um ministério, uma tarefa apostólica: trabalhar em harmonia com o Espírito Santo, de modo que a Igreja é edificada pelo seu trabalho, e, aos poucos completa este Corpo, que será concluído quando o Senhor voltar.

10) Seria uma Mariologia muito pobre, aquela que não fizesse isso (???).

11) Estou a pensar especialmente na Igreja Católica Romana e na Igreja Ortodoxa.

12) Nesse mesmo número, o Papa alude a documentos de Paulo VI: à Encíclica Christi Matri, e às Exortações Apostólicas Signum Magnum e Marialis Cultus onde Paulo VI apresenta as bases e os critérios para uma correcta veneração que a Mãe de Cristo deve recerber na Igreja. Cf., Também nº49 relativa a peregrinação de fé da Igreja.

13) Peter Hans Kolvenbach, "Marie, modèle de notre mission", Vie Consacrée 3 (1987) 131-140; a citação está na página 133. Podemos ler este artigo do P. Kolvenbach com muito interesse. No artigo, Maria é apresentada como modelo da nossa missão. Kolvenbach fala da dimensão marial das Comunidades de Vida Cristã; esta dimensão marial inspira-se na espiritualidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.

14) Sobre o "Rogai por nós", como uma oração à Virgem, ver Gabriel HARTY, Prier 1'Évangile avec Marie - A la découverte du Rosaire, Paris, 1982, pp 71-73.Quando falo de "poder", em relação a Maria e os santos, penso, por exemplo, no episódio de Caná onde, muito discretamente, mas de um modo muito "poderoso" a intercessão da Virgem fez mudar o rumo dos acontecimentos. Esta intercessão (a Virgem Maria, finalmente) foi responsável por uma transformação que vai de uma situação de "falta" a uma situação de "abundância". É Cristo que realiza esta transformação, mas foi a Virgem que preparou o caminho. Porque, duvidaraímos, então,no longo e muitas vezes difícil desenvolvimento da Igreja, dessa "capacidade" de intercessão da Virgem? No que diz respeito aos Apóstolos, existem várias passagens do NT, onde se fala de um “poder” que lhes é dado. Certamente, este poder não está necessariamente vinculado à idéia de intercessão de que falo no texto. No entanto, este poder é dado "para os outro", em favor dos outros. Mt 9,8; Mc 2: 10; Mt 10,1 e Lc 9,1 falar, por exemplo, do poder e da autoridade dada aos Apóstolos, "para que eles curem todas as doenças". Devemos ver esse poder ligado à autoridade de Jesus. Ac 4,7-10 é um maravilhoso texto que mostra essa relação: a intervenção dos apóstolos não tem sentido nem significado fora mistério de Jesus. Donde vos vem o poder para fazer isso? Em nome de quem vocês fazem isso? Pedro respondeu: pelo nome de Jesus Cristo. O poder dos Apóstolos é inseparável do poder de Cristo. Não tem qualquer significado ou eficácia fora de Cristo.

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Da mesma forma, se uma fala de mediação, para a Virgem e para os santos. Ainda aqui, essa mediação, o seu poder e a sua eficácia só têm sentido dentro da única mediação de Cristo. Não é apenas secundária, mas ela não existe fora de Cristo, o único mediador definitivo e permanente. Cf., ainda Ac 6,26: o poder vem de Jesus; 2 Co 13,10: São Paulo fala do poder que o Senhor lhe deu para construir e não para destruir. Se pensarmos em termos mais gerais e não apenas numa rigorosa definição de "poder", podemos dizer que toda uma existência cristã deve ser vista em função dos outros: sois o sal da terra... sois a luz do mundo...

15) Para a Introdução o Papa inspirou-se profundamente na doutrina conciliar sobre a Virgem Maria, LG chap. 8.

16) Depois do comentário relativamente longo, onde me refiro à Introdução e à Conclusão da encíclica, não entrarei em detalhes no estudo de cada capítulo. Limitar-me-ei quase a um método descritivo, para expor os mais importantes elementos teológicos de cada capítulo.

17) O Papa tem, aliás, um estilo muito repetitivo e volta ao mesmo tema coo se alargasse a sua reflexão em círculos que ele desenvolve em torno de um núcleo central. Este estilo repetitivo é ainda mais evidente na encíclica sobre o Espírito Santo.

18) Cf., especialmente nº 13;cf., também Rm 1,5; 16,26; 2 Co 10, 5-6.

19) Cf., Nota d) da TOB em Lc 2,34.

20) De passagem e, por analogia, o Papa também fala de um novo significado que a palavra “fraternidade” (e poderíamos acrescentar “sororidade” e “paternidade”) poderá adquirir. Cf., nº 20-21. O Papa recorda também que o discípulo chamado a seguir o mestre constrói na fé a sua "nova" fraternidade (sororidade ou paternidade). Seguir a Cristo é apenas servir e colocar em prática a sua palavra.

21) Esta doutrina é plenamente conciliar: cf.,nº 22 em que o Papa cita LG 60, 61, 62.

22) Cf., Nota 9 deste trabalho.

23) O Papa apoia esta afirmação, citando LG 65.

24) O Papa destaca a especial devoção à Virgem das Igrejas Orientais. Para ser realista, devemos notar que a Virgem não goza da mesma reverência nas Igrejas da Reforma, por exemplo. Sem aceitar passivamente esta realidade, podemos pensar que, numa Igreja unida, cada confissão estará aberta à contribuição e à riqueza das outras confissões, sem ter que

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copiar necessariamente "de um modo literal" os costumes e os modos de fazer de cada uma das Igrejas irmãs. Além de todo o esforço que visa compreender as diferentes sensibilidades religiosas que se desenvolveram ao longo dos séculos e além da abertura e até mesmo respeito que devemos às riquezas dos outros, devemos acrescentar que os elementos dogmáticos das diferentes Igrejas, não têm todos a mesma importância. A unidade também deve levar em conta a gradação de importância.

25) Ferlay, 69.

26) J.M.R. Tillard, Le salut mystère de pauvreté, Paris, 1968, pág. 26.

27) Tillard, 26-27.

Neste texto, Tillard, quando fala do "direito ao respeito" devido a toda a mulher que dá à luz, menciona em nota um texto de L. Legrand, La virginité dans la Bible, Paris, 1964, pp. 117-118, que diz: "Como verdadeira judia, Maria não considerou a sua virgindade como uma qualidade ou um título de glória ou de mérito, mas antes como uma extinção, uma espécie de privação, uma condição de humilhação". Levando em conta a distância temporal e cultural que nos separa da história de Israel, o que acabamos de dizer serve para olhar ainda hoje, a virgindade dentro de um certo realismo. Esse realismo diz-nos que a virgindade contem em si mesma uma certa pobreza, não no sentido de que priva o homem / mulher daquilo que lhes daria o direito ao respeito (como era o caso na cultura de Israel, e ainda hoje em algumas culturas), mas no sentido de que o / a priva de uma descendência que pode ser vista como riqueza; por outro lado, a virgindade implica tanto para o homem como para a mulher viver a sua relação a Cristo sozinhos, sem a riqueza da comunhão ou da mediação humana, presentes no casamento, por exemplo. Só neste sentido, podemos falar de celibato como a pobreza. Esta visão realista do celibato tem, além disso, outra vantagem: a de corrigir dois "desvios" relacionados com o celibato. Um deles, um tanto "oficial", especialmente evidente nos manuais e na mentalidade pré-conciliares poderia ser chamado de "triunfalista", pois defendia a "superioridade" do celibato em relação ao casamento. O outro, mais "popular", que se compadecia da "triste sorte" dos celibatários que sofreriam muito devido ao seu estado. Esta é uma visão que se poderia chamar de compaixão, ou mesmo de “ter pena de”: os "pobres" celbatários. A pobreza da virgindade não deve ser encarada desta forma. Devemos dizer não ao "triunfalismo" fácil e questionável da "superioridade", e à "comiseração" popular no imaginário das pessoas devido a um possível sofrimento fruto do celibato. O que é aceitável é um saudável “realismo” que, embora sustentado pela graça, não apaga minimamente a pobreza da virgindade que é aceite conscientemente, como é o caso, por exemplo, não apenas dos religiosos/as, mas também das pessoas solteiras ou infecundas. Em todos os casos, existe, como para a Virgem, um certo aniquilamento, uma certa forma indigência. E não é uma falsa espiritualidade, muito "pietista", que transformará esta pobreza em riqueza. A pobreza virginal deve ser vivida em todo o seu realismo, mesmo se é vivida no mistério de Cristo, com Ele, para Ele e por Ele.

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Sobre a virgindade de Maria, citamos ainda Jean GALOT, Marie dans 1'Evangile, Paris, Bruges, 1956, p. 46: " A renúncia de Maria à maternidade foi um ato excepcional, que procedia de uma atitude fundamental de alma que tinha sido desenvolvida e louvada com insistência no Antigo Testamento: a pobreza diante de Deus. Ao afastar de si a possibilidade de possuir uma numerosa família, e, ao negar-se a si própria da possibilidade de se tornar mãe, Maria agia como uma “pessoa pobre”. Ela apresentava-se ao Senhor despojada da nobre riqueza que outras mulheres cobiçavam: a de terem descendentes. Nunca esta pobreza dianta de Deus tinha penetrado tão profundamente num coração feminino ao ponto de lhe extorquir o seu desejo mais íntimo: o desejo da maternidade. Maria eleva a um vértice único a atitude de pobreza da qual os Livros Santo lhe tinham revelado o valor aos olhos de Deus”.

28) Tillard, p. 27.

29) Resumi aqui e nas páginas seguintes (cf., nota 44) o pensamento de Tillard, pp 27-35. Para a realização da vontade do Pai, cf., por exemplo, Jo 4,34; 6,37-38; 5,20; Lc 22,41-42; Ph 2,8.

30) Cf.., Fil 2,8.

Ao tomar o bem conhecido texto de Jo 12,24, Tillard, p. 29, estabeleceu este paralelo muito significativo: "A espiga de trigo vem do grão que apodrece; a senhoria de Jesus vem de sua pobreza, a salvação do homem (ligada a este senhoria) vem da kenosis de Cristo, o Senhor Jesus vem do Pobre Jesus; o Kyrios vem do Ebed Senhor. "

31) Para a exaltação da Virgem como a Rainha do Universo, cf. , por exemplo, a LG 59

32) "A plenitude da Revelação", a que se refere o Papa, um pouco antes, ao citar Dei Verbum, 2.

33) Este é o subtítulo da encíclica para os números 35-37. Aqui, o Papa destaca a dimensão da Igreja peregrina, a tal ponto que esta ideia é mesmo colocada no título da Encíclica.

34) Cf., AM 5.

35) Cf., AM 5 and GS 3.

36) Cf., LG 8, que também enfatiza que Cristo rfealiza a Redenção através da pobreza.

37) Tillard, p. P. 30 e 35.

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38) Cf.., Jn 2, 5-6 e as respectivas notas na TOB. Um texto muito bonito, onde Santiago diz que os pobres, aos olhos do mundo, são escolhidos de forma a torná-los ricos na fé (vs 5), para depois perguntar(vs 6): “Nao são os ricos que vos oprimem?”. No contexto deste capítulo "muito prático" de Santiago em que recorda os princípios que expressam o amor ao próximo, ele conclui com a conhecida frase: "A fé sem obras é morta".

39) Santo Agostinho, citado por Tillard, p. 41. Na página 40, Tillard menciona João Crisóstomo, num texto completo que se poderia resumir no seguinte: "os pobres são o altar de Cristo". João Crisóstomo afrimava: "Esta é a razão que explica que quando tens à tua frente um pobre que vive da fé, de facto tens diante dos teus olhos um altar, não para desprezar, mas de respeitar".

40) Tillard, p. 41.

41) Cf., AM 5

42) Cf.., GS 88. Na mesma ordem de ideias, o Concílio convida os sacerdotes (cf., AM 17), assim como missionários (cf., AM 24) a abraçar a pobreza voluntária. Os seminaristas também, são convidados a experimentar uma vida simsples (cf., FP 9).

43) É especialmente no Corpus Paulinus que encontramos estas expressões. Entre outras passagens cf., Rm 12,5; 16,10; 1 Co 4,10; 2 Co 1,5; 1,21; 2,17; 3,3; 5,18; 1,22 Ga; 2,17 ; Ef 1,10; 2,5

44) Tillard que me inspirou a escrita destes parágrafos (cf., nota 29) nota que a história mostra à saciedade que, quando a Igreja aceita o poder mundano, quando se torna rica, então, imediatamente o seu zelo para propagar o evangelho enfraquece. Depois menciona os nomes de António, Francisco de Assis, Domingos, Charles de Foucauld, que, em momentos cruciais da história da Igreja souberam reacender, de modo convincente, a chama da pobreza (cf., p. 32 ). Outra observação importante é a seguinte: esta pobreza da Igreja não é apenas de ordem ascética, isto é, renúncia aos bens criados para pertencermos totalmente a Deus, o único capaz de satisfazer plenamente o coração humano. Esta dimensão não é negligenciável, mas o requisito da pobreza é mais radical e mais absoluto: deve ser encontrado num plano misterioso – que continua a perpetua no mundo o mistério de Cristo pobre.

45) Tillard, p. 34.

46) Nesta ordem de ideias, poderíamos chamar a primeira parte da encíclica, a parte "exegética": nesta parte encontramos o papel de Maria no mistério de Cristo, com a menção especial de alguns títulos bíblicos (cheia de graça; bem-aventurada porque acreditaste; eis a tua mãe).

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A segunda parte poderia ser chamada a parte "conciliar", pois as citações ou referências ao Concílio são muito numerosas: das 53 notas neste capítulo, 41 são do Concílio. Por outro lado, as referências conciliares são, em geral, bíblicas também.

47) Cf., nº 1; ver pagina 4. (?????)

48) O texto que exprime o objetivo da encíclica fala também da presença activa e exemplar de Maria na vida da Igreja. No fim de contas esta presença activa e exemplar de Maria, nada mais é do que esta presença especial que o Papa refere aqui.

49) Ferlay, página 40, no parágrafo ", Imaculada, ou Inacessível"?,mostra como uma má teologia mariana levou alguns crentes a se sentirem mais perto de Jesus do que de Maria, tornada “inacessível” porque Imaculada. Ferlay escreve:

"Jesus, ao contrário, está curiosamente mais próximo. Ele é 'apenas' o irmão mais velho, ele pode compartilhar a nossa vida, isto é, os nossos sentimentos e, às vezes até, as nossas reacções menos sensatas! Há, certamente, neste caso, uma perversão da Teologia Marial, e sabemos bem que um certo discurso espiritual sobre Maria conduziu a essa situação. Vejamos alguns exemplos: muitos aceitam naturalmente as narrativas das tentações de Jesus no deserto; esses mesmos saltariam de raiva se nos atrevessemos a falar de tentações de Maria. Uma devoção marial sem um suficiente controlo teológico, conduziu alguns fiéis a este paradoxo: Jesus parece-lhes mais próximo do que Maria, e são capazes de pedir ao Filho aquilo que não se atrevem a pedir à Mãe ".

50) Aqui, penso naquela cena em que Cristo pergunta a Pedro, três vezes, se o ama mais que os outros (cf., Jo 21, 15-19). A função pastoral que ele aceita ocorreu somente após esta profissão de amor. É uma consequência dessa mesma profissão. É verdade que, se esta profissão de amor implica, de algum modo, o ónus da função pastoral, também é verdade que, a partir dela, o exercício desta tarefa pastoral é um bom testemunho, um espelho vivo deste amor para com Deus e para com o próximo vizinho. Disse antes que, se uma atividade pastoral não tem qualquer fundamento bíblico, pode degenerar em ativismo; mas também é verdade que uma reflexão bíblica que não conduz a uma boa atividade pastoral pode ser um exercício intelectual mais ou menos agradável, mais também mais ou menos inútil, sem uma influência directa na vida e na espiritualidade da comunidade. Os dois aspectos devem ser complementares, um não deve existir sem o outro.

51) Neste capítulo e, em especial nos pontos 4.2 e 4.3, retomarei algumas idéias já tratadas em 1.3.1 e 1.3.2, completando-as sob um outro ponto de vista (o deste capítulo inteiramente dedicado à mediação maternal), ainda que a teologia que lhe está subjacente é a mesma.Estas repetições que tento reduzir ao mínimo são o resultado do método escolhido para esta leitura da Encíclica, um método descritivo e bastante literal, que segue de perto o plano da Encíclica. E embora visto sob um ângulo diferente (um mais exegético, o outro mais pastoral) o tema comentado em 1.3.1 / 1.3.2 e em 4,2 / 4-3 é o mesmo: a maternidade de Maria.

52) A expressão "mediação de intercessão" aparece literalmente no número. 40.

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53) O Papa, como apoio a esta idéia, cita o Concílo LG 62: "O seu amor maternal torna-a atenta aos irmãos de seu Filho, que continuam a viagem nesta em terra cheia de perigos e dificuldades, até que cheguem à sua pátria" .Além disso, este número 62 constitui o alicerce de toda nesta secção, "Maria, Serva do Senhor", números 38-41, onde é citada 9 vezes.

54) É semper a teologia conciliar de LG 60, que está por detrás desta visão "trinitária" da presença salutar de Maria.

55) Sobre este tema ler a nota 110 da Encíclica, que observa o quanto, no curso da história "este aspecto particular da mediação de Maria como aquele que implora e obtém clemência de seu Filho juiz" (texto da nota), esta mediação de clemência foi vivida, não apenas pelo povo simples que se sente pecador e por isso se confia à Virgem, mas também pelos santos e figuras ilustres da Igreja. A nota refere São Bernardo e o Papa Leão XIII.Poder-se-ia recordar aqui a veneração que outras igrejas cristãs não católicas têm para com Maria (o Papa consagra-lhes os números 31-34). No nº 33, o Papa faz uma referência aos icônes orientais em termos muito próximos desta mediação de clemência que a "boa gente" das nossas cidades e das nossas aldeias sabe ser muito eficaz: "estas imagens testemunham da fé e do espírito de oração de boa gente que sente a presença e a protecção da Mãe de Deus".A ladaínha da Santíssima Virgem, demonstra também esta presença e proteção para com o Povo de Deus; sentimos também essa presença protectora nas orações diárias tantas vezes repetidas, como a Salve Regina e a Ave Maria.

56) Ferlay, p. 43.

57) Idem., P. 149. Este aspecto da intercessão é fortemente sublinhado por Ferlay, que no final do parágrafo que acabo de referir, ele afirma que o objectivo do se livro é referir esta segunda missão de Maria: ser a mãe dos homens. A sua primeira tarefa era a de dar à luz a Cristo."Maria Mãe, aos pés da cruz é configurada misteriosamente a este mistério (o mistério da misericórdia divina). Ela acolhe com a mesma generosidade de ternura e de perdão esta comunidade numerosa de pecadores, que se tornam seus filhos devido à palavra de Jesus. A partir de agora, todos e cada um deles serão seus filhos, tal como Jesus. Ela carrega sobre os ombros esta pesada tarefa maternal; ela caminha connosco ao viver esta sua nova missão. Você sabe que ela está a fim de esclarecer o caráter absoluto desta segunda tarefa que me comprometia este livro. Foi para trazer à luz do dia o carácter absoluto desta segunda tarefa de Maria que arregacei as mangas para escrever este livro. É porque não damos importância a esta segunda missão de Maria, Mãe dos homens, que colocamos sobre esta mulher, Mãe de Jesus, uma coroa de privilégios que a sufocam, ao mesmo tempo que desenvolvemos uma devoção que, sem dúvida, não lhe convem. Maria é a Mãe de Jesus, para se tornar Mãe dos homens. " (p. 150).A conclusão do livro de P. Ferlay, pp 210-214 faz sobressair sempre este aspecto da intercessão de Maria. Na página 210, escreve: “Uma reflexão sobre a teologia marial, como aquela que agora fazemos valoriza a sua missão actual de Mãe da Igreja e dos homens; essa reflexão teológica baseia-se na certeza da oração actual de Maria pela Igreja e pelo mundo. "

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58) Parte final do nº 41 que faz referência a 1 Co 15, 28; Ga 4,4; 1,10 Ep.É claro que Maria foi a primeira a ser o objeto desta misericórdia absoluta do Senhor que agora ela quer para todos os seus filhos:"O pecado é apenas humano. A Misericórdia é divina, e o seu brilho irradia frente ao pecado com todo o poder vitorioso de um Deus de amor. Maria não está fora desta atmosfera vitoriosa da Misericórdia; pelo ocntrário, ela é a primeira a a colhê-la e alegra-se por isso. O seu privilégio tem algo de pedaógico: ela ensina-nos a acolher esta Misericórdia na alegria", Ferlay, 43.

59) É mesmo o título da terceira parte da encíclica números 38-50: “A mediação maternal”.

60) Cf.,nº 39. O nº 39 sublinha, ao mesmo tempo, a ideia seguinte: o serviço de Maria não aparece apenas na sua maternidade; aparece também na sua virgindade: "Podemos dizer que o consentimento que ela dá à maternidade é sobretudo o fruto do seu dom total a Deus na virgindade." E ainda:

"As palavras: ‘Eu sou a Serva do Senhor’ testemunham desta abertura de espírito de Maria, que reúne nela, de modo perfeito, o amor da virgindade e o amor característico da maternidade; nela estão reunidos e, por assim dizer, fusionados”. "

No nº 43 destes dois elementos - a maternidade e a virgindade são aplicadas à Igreja.

61) Esta ideia aparecia já no final do nº 39 onde a mediação de Maria aparece como total disponibilidade para o Senhor. Mas essa disponibilidade para o Senhor preparava-a para se tornar Mãe de todos os homens, na ordem da graça. Entre outros textos evangélicos, faz-se referência a Jo 19,25-27, que aparece ainda mais tarde.

62) Cf.. sobre este assunto, Maria no Novo Testamento, Londres, 1978, pp 206-218 onde são analisadas as diferentes possibilidades. Em primeiro lugar aparece a “teoria” conhecida de Bultmann: Maria representaria os cristãos provenientes do judaísmo e o discípulo amado os cristãos vindos do paganismo. Os autores não dão muita credibilidade a esta teoria: "essa teoria é apenas uma hipótese", p. 215.A interpretação metafórica, muito aceite pelo catolicismo romano também é analisada: "A maternidade espiritual de Maria, ou Maria Mãe dos cristãos". Esta explicação também não está isenta de dificuldades. Neste sentido é interessante a nota 477 do texto da página 215: "Hoje, os Católicos Romanos fazem uma maior distinção entre o ensino da Igreja e o ensino das Escrituras no que diz respeito a esta questão. Eles aceitam a maternidade espiritual de Maria, sem pretender, contudo, que ela seja ensinada pelas Escrituras"

Outra interpretação antiga, apresentada por Orígenes: a mãe de Jesus simboliza a Igreja e o discípulo amado os cristãos (p. 216) Finalmente, podemos também ver aí, levando em conta a mulher do Apocalipse (12,9), o simbolismo Eva / Maria (p.217).

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63) O Papa aceita também um valor simbólico para o episódio de Caná: cf. nº 21.

64) Ferlay, 148. Aqui está o seu filho: nesta nova maternidade Maria é dada como mãe a toda e a cada a pessoa humana. Todos estão incluídos/as nessa maternidade(cf., nº 23).Então compreendemos melhor a razão porque Cristo se refere a essa nova maternidade de Maria no singular (teu filho); isto põe em relevo a relação absolutamente única entre Maria e cada um de seus filhos (cf., 45).Em uma outra ordem de idéias, em certo sentido, poderíamos relacionar este singular (teu filho) com o que escrevemos na página 33, sobre a identificação de Cristo com cada um dos que aderiu a ele, na fé, e especialmente os pobres. 65) Sobre este tema ler a nota 130 da Encíclica. 66) O Papa no nº 46 menciona um problema que não desenvolve, por agora, mas que poderia desenvolver no futuro: ele diz respeito à mulher e à condição feminina, porque a "feminilidade está particularmente ligada à mãe do Redentor". E, mais à frente, o Papa, sempre neste nº 46 afirma: "podemos, pois, afrimar que ao voltar-se para Maria, a mulher encontra nela o segredo que lhe permite viver com dignidade sua feminilidade e de realisar a sua verdadeira promoção". E o Papa cita depois alguns "reflexos de beleza", que a Igreja descobre no rosto da mulher, à luz de Maria: a plenitude do dom de sim pela força do amor; a força que é capaz de resistir aos maiores sofrimentos; a fidelidade que não tem limites e a sua incansável dedicação ao trabalho; a capacidade de combinar a intuição penetrante com palavras de encorajamento e apoio. Tudo isto é verdade e será necessário desenvolvê-lo ainda para que mulher possa viver ainda mais profundamente "a sua feminilidade e realisar o seu verdadeiro crescimento". Mas é preciso dizer que a Virgem Maria, até mesmo dentro da Igreja não é o único critério a levar em conta quando se fala da feminilidade na Igreja. Assim, por exemplo quando se pensa na Quaestio Disputata: da possibilidade (ou impossibilidade) da ordenação de mulheres ao ministério sacerdotal diz-se que a Virgem "não fui sacerdote..., pelo que nenhuma mulher o poderá ser." Este argumento não pode ser um obstáculo. (Este mesmo argumento aparece na declaração "Inter Insigniores" da Congregação para a Doutrina da Fé, e ele deixa em aberto "para ser retomada de maneira mais completa, sem ideias preconcebidas," a ordenação de mulheres para ao diaconado: cf., DC 59 (1977) 158-164).Nos documentos do Magistério o argumento que parece ter mais peso, é o da Tradição. É aquele que foi posto em evidência pelo Motu Próprio ", Ministeria Quaedam" de 1972, que excluía as mulheres, não só do ministério ordenado, mas até mesmo dos "ministérios leigos" de leitor ou acólito: "ser instituído leitor ou acólito, conforme a venerável tradição da Igreja, é reservado aos homens "(Eu sublinho). Esta mesma defesa é retomada pela Instrução Inaestimabile Donum da Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos no nº18: Cf., DC 63 (1980) 643.Contudo, que se ordenem mulheres ou não (é mesmo uma questão sobre a qual a última palavra ainda não foi dita: e será que será dita um dia?, tudo recomenda que o androcentrismo na vida eclesial devia ser ultrapassado desde agora. Parece, aliás, que já está a acontecer, embora muito lentamente, e mais ao nível da reflexão do que na prática eclesial. Neste sentido, a Virgem pôde ser profundamente inspiradora. E sugestões, algumas controversas, outras aceitáveis começam a aparecer:

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J. HOURCADE, La femme dans 1'Eglise, Paris, 1986 (a sua tese para o doutoramento em Teologia) defende o verdadeiro "ministério" da mulher é a virgindade consagrada (p. 281; esta possibilidade de consagração que liga o ministério pastoral da mulher a um estado de vida também é mencionado no Cânone 604 que se refere à Ordem das Virgens). Monique HEBRARD, "D'une soumission généreuse a uma Revolução tranquille – Un certain éveil des femmes fait bouger l'Eglise," Telema 1 (1987) 19-38, na página 30, fala de um ministério de Encarnação (que ela chama também carisma da Encarnação) no sentido de que a mulher vive uma vocação que engendra não apenas cristãos, mas também a Igreja (encontramo-nos claramente, no paralelismo real com a Virgem Maria, Mãe da Igreja), e menciona o Cardeal Decoutray: "Em relação aos bispos e os sacerdotes, a primeira e insubstituível missão da mulher é de ajudá-los a serem cada vez mais bispos e padres dignos desse nome. É uma missão espiritual, intensamente humana e cristã segundo o Espírito de Cristo”.(p. 30).

Georgette BLAQUIERE, "La mission de la femme dans l'Eglise" NRT 109 (1987) 345-361, na página 356, fala de um ministério da profecia levantando uma questão: "Como fazer para que na Igreja exista um espaço necessário para que se possa exercer livremente um verdadeiro ministério profético pode ser para complementar do ministério apostólico?" (Eu sublinho). Este ministério da profecia, sem ser um apanágio da mulher, pertencer-lhe-ia de uma maneira especial: "Se o privilégio das mulheres no Evangelho é de reconhecer Deus no rosto de Cristo, e de o revelar aos apóstolos, não será esse ainda hoje, na grande praça dos ídolos contemporâneos, o papel das mulheres cristãs?" (p. 357). Philippe FERLAY, Marie Mère de hommes - Prier Marie pt Eglise, Paris, 1985, pp 184-186 fala de "feminilidade como ‘ministério’ ao afirmar que, "no que diz respeito à vida eclesial, seria talvez necessário dizer que a tarefa própria da feminilidade é um ministério de trazer à memória"(p. 185).

Do ponto de vista de termos, embora diferentes, não estamos longe do nparecer de Georgette BLAQUIERE (ver acima), mas a perspectiva é, parece-me, algo diferente. A perspectiva de G. BLAQUIERE pode ser chamada uma perspectiva "kerygmática" ou de "proclamação"; a perspectiva de FERLAY quando fala de um "ministério de trazer à memória" próprio da feminilidade é, antes, uma perspectiva de acolhimento “que presta atenção ao dom recebido para que ele chegue à maturidade”(p. 185). Se o ministério da presidência actualisa sobretudo a palavra de Cristo, e a interpelação de Deus Pai que toma sempre a iniciativa de vir ao encontro dos crentes, o ministério próprio da feminilidade poderia ser o de lembrar a todo o crente – e, em primeiro lugar, ao próprio ministro ordenado - que o homem não se dá Deus a si mesmo, bem ao contrário, deve recebê-lo, ???? e que ele deveria ser reflexivo e uma Terra pacífica dentro do qual a Palavra de Deus pode germinar. Não é uma atitude de passividade, mas uma atitude corajosa de boas-vindas "(p. 105)