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Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma

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Page 1: Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma

Público • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 39

Extremo ocidental

A nova “agenda para o crescimento” não muda nada na economia, apenas serve para eurocrata ver

Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma

Uma comédia de máscaras, um jogo de ilusões. Ao ler a extensa lista das “50 medidas” da Iniciativa para a Compe-titividade e o Emprego, fi ca-se com um sabor amargo na boca. Não há ali um

arremedo de um plano ou de uma estratégia, apenas mais uma guinada na direcção das políticas públicas provocada, desta vez, única e exclusivamente pela necessidade de ir a Bruxelas dizer que se estão a promover reformas.

Porventura o exemplo mais acabado da incoerên-cia das medidas anunciadas é o fornecido pelas que se dizem destinadas a “aumentar a competitividade do mercado de trabalho”. Pretende-se, reza o texto ofi cial, “incentivar as novas contratações e a cria-ção de emprego”, mas a única medida com efeitos imediatos tornará as contratações ainda mais caras para os empregadores, pois obriga-os a criarem um fundo para despedimentos futuros. A ideia espanho-la desse desvairado fundo já era má, o que se sabe sobre o fundo português é ainda pior. Porquê? Por-que em vez de se fazer o que era necessário – baixar os custos associados ao trabalho, nomeadamente a taxa social única – cria-se uma nova taxa, que nem sequer se sabe se será guardada nos cofres das em-presas ou do Estado, taxa essa que onerará todas as novas contratações.

Mesmo assim, com tal resolução do Conselho de Ministros no bolso, Sócrates lá seguiu ontem para Bruxelas a anunciar a boa nova do reformismo go-vernamental, mas é duvidoso que alguém se deixe convencer, sobretudo que os famosos “mercados” se comovam com medidas que ou são contraprodu-centes (como a do fundo para despedimentos) ou só terão efeito daqui por uma dúzia de anos (como a da modifi cação das regras de cálculo das indem-nizações). Pelo caminho atropelaram-se de novo os direitos dos que estão desempregados, sobretudo dos jovens: depois de a reforma da segurança social os ter expropriado das suas pensões futuras, esta modifi cação nas leis laborais coloca-os em pé de desigualdade de direitos com quem já está empre-gado. Pelo caminho continua-se sem se tocar no principal motivo da rigidez do mercado de trabalho, o despedimento individual.

Mas se as ideias originais deste pacote de medidas são, no essencial, más, as boas ideias – que também existem – não são originais. Por exemplo: a anunciada decisão de “promover o

investimento na reabilitação urbana e a dinamiza-ção do mercado de arrendamento” é correcta, mas chega com dois anos de atraso. Convém mesmo lembrar que, ainda nem tinha começado a campa-nha eleitoral de 2009, e já a então presidente do PSD, Manuel Ferreira Leite, defendia que se deviam trocar “os investimentos megalómanos” por “inves-timentos de proximidade que têm efeitos imediatos sem gerarem endividamento externo”, dando os exemplos da reabilitação urbana e da recuperação do património. Tivemos, contudo, de suportar dois anos de gritaria em torno do TGV, do novo aeroporto e da imprescindibilidade do grande investimento público para relançar a economia para, de repente, assistirmos esta quarta-feira a uma conferência de imprensa de quatro ministros onde avultava pela ausência o ministro das Obras Públicas. Signifi cativo, mas triste, senão trágico.

E o pior é que nem se tomam nem as medidas correctas nem, sobretudo, as necessárias para pro-mover realmente a reabilitação urbana, uma área fundamental: em Portugal o que se gasta em reabi-litação representa menos de 10 por cento do mer-cado da construção, quando na Europa se investe o equivalente a 36 por cento, e estima-se que existam

800 mil casas a necessitar de obras de conservação ou recuperação. Só que este tipo de obras só poderá ser feito de forma célere e efi caz se o mercado de arrendamento premiar tais investimentos – e o mercado do arrendamento não se estimula acelerando apenas os processos de despejo, como se prevê neste “pacote”. Também aqui pesa sobre Portugal e a economia portuguesa uma lei do arrendamento que, mais de quatro anos depois de entrar em vigor, apenas induziu um décimo dos novos contratos que deveria induzir… por ano. Ninguém falou,

contudo, em rever essa aberração legislativa do Go-verno Sócrates I.

De uma forma geral o “pacote” legislati-vo incorre no mesmo tipo de erro que tem provocado o fracasso deste tipo de iniciativas legislativas: não acaba com a burocracia, antes a “adapta” ou “agili-

za”, rebaptizando-a com nomes pomposos – “Sim-plex Exportações”,“Balcão do Empreendedor”, “Licenciamento Zero” ou “Dossier Electrónico da Empresa” – que muitas vezes apenas disfarçam, e mal, a longa mão dos decisores públicos que conti-nuarão a determinar quem é inovador e quem não é, quem é um bom exportador ou quem merece um incentivo fi scal. Mais: em vez de melhorar a lei geral, criam-se novas excepções, através de novos PIN, que tornarão o sistema ainda mais labiríntico e menos transparente.

Curiosamente, no mesmo dia em que se anuncia-vam as medidas, também foi conhecida a propos-ta de aumento das tarifas da electricidade, muito acima da infl ação. Porquê? Porque quando deviam

ter aumentado, há uns anos, o ministro de então, Manuel Pinho, entendeu “empurrar com a barriga” o problema do défi ce tarifário e ele acaba de voltar agora, devendo agravar signifi cativamente os custos das empresas quando estas menos podem. Ou seja, faz-se o que não é preciso em vez de fazer o que se deve – e o que se devia fazer era simplesmente dimi-nuir os custos de contexto a todas as empresas para que cada uma fosse capaz de procurar o melhor ca-minho para crescer com base nas suas capacidades e qualidades, dispensando a mãozinha do Estado que apoia hoje para desapoiar amanhã.

Por fi m, e para que o pacote fi casse completo e fosse mesmo perfeito, não podia faltar um toque de proteccionismo. E lá o encontramos, precisamen-te na última das medidas: “Reforçar o controlo da entrada no território nacional de produtos equi-valentes aos produzidos internamente, mas cujo processo produtivo não tenha sido sujeito ao mesmo tipo de condições que os produtos portugueses.” Não sei porquê, mas cheira-me a proteccionismo antiloja-do-chinês, sinal de que vivemos bem com os iPhones vindos da China mas menos bem com as havaianas de borracha reles e olhos em bico que, supõe-se, qualquer fabriqueta nacional também pode muito bem colocar no mercado ao triplo do preço das orientais…

Perguntar-se-á: e porquê todo este foguetó-rio? Porquê esta obsessão com conseguir a aprovação exterior ou uma pequena evo-lução nas estatísticas comparadas?

Só encontro uma resposta: o primeiro-ministro já percebeu que para prolongar a sua so-brevivência já não lhe bastam as sucessivas fugas em frente que têm caracterizado o seu mandato, tem mesmo de conseguir evitar o recurso à ajuda externa. É que em Portugal, neste momento, o FMI só é fatal para a sobrevivência política de José Só-crates – nós, todos os outros, não passaremos por certo pior com o fundo do que com esta constante deriva.

O raciocínio do chefe do Governo é simples: pri-meiro, como não tem maioria na Assembleia, sabe que não controla os timings políticos e que a sua única esperança é durar o mais tempo possível. So-bretudo se puder falar muito de “agenda do cresci-mento” em vez de andar a justifi car medidas de aus-teridade. Depois, Sócrates conhece sufi cientemente bem Cavaco Silva para saber que este não tomará, em condições de normalidade política e económica, a decisão de dissolver a Assembleia da República. Ou seja, interessa-lhe prolongar a sua vida até ao OE de 2012, altura em que espera poder repetir o discurso da “responsabilidade” e comprometer de novo o PSD, evitando o chumbo do documento e um pretexto para eleições antecipadas. Com Cavaco reeleito, mesmo que por larga margem, Sócrates acredita que antes de uma crise no Parlamento não haverá novas eleições – isto é, acredita que Cavaco II não será como Sampaio II.

O que é que pode alterar este equilíbrio no fi o da navalha? A vinda do FMI. Com os técnicos do fundo, e da União Europeia, a desembarcarem na Portela, o Presidente teria um pretexto para convocar eleições em nome da necessidade de relegitimar o Governo (ou teria mesmo a obrigação de o fazer). Nessa altura nem o argumento da instabilidade funcionaria, pois a Irlanda já lá tem o FMI e, por causa dele, até terá eleições antecipadas. Como, para além do mais, se prevê que as maiores difi culdades surjam lá para Março, quando Portugal voltar aos mercados da dívida, altura em que já teremos o Presidente re-eleito, a palavra de ordem em São Bento é tentar sobreviver, sobreviver, sobreviver… Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

José Manuel Fernandes

Em Portugal, neste

momento, o FMI só seria

fatal para a sobrevivência

política de José Sócrates

– todos os outros não

passaríamos por certo pior

com o fundo do que

com esta constante deriva

e improvisação

DANIEL ROCHA