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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013
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UMA REFLEXÃO SOBRE O PÓS-MODERNO EM ELES ERAM MUITOS
CAVALOS, DE LUIZ RUFFATO, SOB A ÓTICA DOS SIMBOLISMOS DO
CAVALO EM CHEVALIER E GHEERBRANT
________________________________________________________________
Juliana Antunes Barreto1
RESUMO
Este artigo busca procurar os indícios de pós-modernidade na obra Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (2012), tomando como base teórica Gilles Lipovetsky, em A era do vazio (2009), e Octavio Ianni, em Enigmas da modernidade-mundo (2003), procurando associar as características da pós-modernidade aos simbolismos da figura do cavalo. Para isso, optamos pela pesquisa bibliográfica em Chevalier e Gheerbrant, no Dicionário de Símbolos (2009), através do qual se cruzam várias óticas sobre o cavalo. A conclusão a que se pretende chegar é que, nesta era de desencantamento, o homem busca recursos individualistas para se preencher, é um ser confuso e fragmentado, numa eterna busca de autoconhecimento; sendo que a Literatura Contemporânea de Ruffato se torna um simulacro desta atual realidade caótica e labiríntica.
Palavras-Chave: Eles eram muitos cavalos. Simbolismo do Cavalo. Pós-modernidade.
ABSTRACT
This article aims to look for evidence of post-modernity in the Luiz Ruffato's work: They were many horses (2012), based on theoretical how Gilles Lipovetsky (2009) and Octavio Ianni (2003), seeking to associate the characteristics of post-modernity to the symbolism of the horse's figure. For this, we chose the literature in Chevalier and Gheerbrant in the Dictionary of Symbols (2009), because there are, in this book, several interpretation's options that can be known about the horse. The conclusion to be reached is that in this age of disenchantment, man seeks individualistic resources to complete himself, is a being confused and fragmented in an eternal quest for self-knowledge; and the Contemporary Literature of Ruffato becomes a simulacrum of this current labyrinthine and chaotic reality.
Keywords: Eles eram muitos cavalos. Symbolism of the Horse. Post-modernity.
Introdução
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, é uma obra em que há, de uma maneira
inovadora, a mistura de gêneros textuais, uma estrutura fragmentada e lacunar,
desvelando, em suas temáticas, dramas ou banalidades do cotidiano do homem pós- 1 Mestranda em Literatura Brasileira, no PPGL – Programa de Pós-Graduação em Letras/ Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros /MG – UNIMONTES, e bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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moderno/ contemporâneo. Mosaicos textuais, vazios que podem ser preenchidos no
imaginário, retratos do desencantamento da cidade, personagens anônimos que
remetem à generalidade das temáticas, tudo isso faz com que a obra não só se encaixe na
poética pós-moderna, como também levante questionamentos sobre este período
histórico o qual vivenciamos.
O livro revela o caos labiríntico de São Paulo, as tecnologias e inovações, bem
como a maneira como o homem desta era lida com seu momento, como um ser único e
individualizado na cidade cada vez mais pluralizada, diferenciada.
De acordo com Octavio Ianni (2003), a cidade é como um local de segredos ainda
indecifrados, em que coabitam as diferenças de todos os tipos, bem como as ideias de
fragmentação e de descontinuidade na chamada metrópole. São vários homens, várias
culturas, vários encantos e desencantos que o urbano propõe. E é nesta questão que a
obra de Ruffato se coloca, pois, sendo uma espécie de mosaico de textos, ideias, vozes e
temáticas, acaba por representar a sociedade atual: pós-moderna e fragmentária.
O conceito do pós-moderno
Na dificuldade de se obter um conceito exato para este momento no qual
vivemos, optamos por procurar o significado de contemporaneidade ou pós-
modernidade, primeiramente, nos ensaios de Gilles Lipovetsky (2009). O autor traça um
caminho que percorre a modernidade, buscando também suas características e
princípios, chegando à procura dos limites que a separam da pós-modernidade, nesta
era do vazio.
O autor vem explicar sobre a revolução do consumismo, aprofundada após a
Segunda Guerra Mundial, caracterizando uma lógica hedonista e individualista, cuja
consequência iminente é o vazio: “a realização definitiva do indivíduo coincide com sua
dessubstancialização” (LIPOVETZKY, 2009, p. 85). Numa era em que há, por um lado, o
hedonismo, e, por outro, um enorme acesso à informação, o consumismo se torna capaz
de exercer no indivíduo pós-moderno um sentimento um tanto contraditório, um ser
informado, responsabilizado, mas fragmentado:
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Responsabilização de um tipo novo, narcísico, pode-se dizer, pelo fato de ela ser acompanhada de um lado por uma desmotivação pela coisa pública, de outro por uma descontração e desestabilização da personalidade. São inúmeros os sinais: descontração nos relacionamentos interindividuais, no culto ao natural, nos casais livres, na erupção de divórcios, na rapidez da mudança de gostos, valores e aspirações, na ética tolerante e permissiva; mas são também sinais as explosões das síndromes psicopatológicas, do estresse, da depressão (Ibidem, p. 88).
Ciente do prazer, mas também ciente da efemeridade, o homem pós-moderno
passa a buscar incessantemente outros meios de preencher esse vazio, mas numa busca
eterna, banalizada, de “se reencontrar ou de se aniquilar o sujeito” (Ibidem, p. 95).
Sobre esse processo de banalização, aniquilamento e vazio na dita pós-
modernidade, vem dizer Octavio Ianni (2003):
A mesma crescente incorporação de conhecimentos científicos pela sociedade, traduzindo ciência em técnica, implica a crescente subordinação de indivíduos e coletividades às organizações, às burocracias e aos sistemas, articulados ou em descompasso, mas em geral enlaçados uns aos outros, em cadeia. (IANNI, 2003, p. 185).
O que o autor vem nos mostrar é que, a partir do desenvolvimento do mundo, no
tocante principalmente às tecnologias e facilidades de acesso ao conhecimento e à
cultura, o indivíduo entra em um processo que o prende, como numa prisão de ferro.
Devido às tantas sistematizações, burocratizações, modernizações, o homem se vê
confinado, torna-se vítima da própria criatura criada por ele.
Ianni explora a questão do capitalismo, o qual gerou o consumismo, e este, em
consequência, tornou o homem uma espécie de escravo de si mesmo e daquilo que
inventou ou modernizou. Com essa sensação de vazio e desencantamento, fechado em si
mesmo, o homem se torna individualista, autossuficiente, mas, não de uma forma
positiva, e, sim, culminando num excesso: “o egoísmo exagerado condena-o à solidão,
onde quer que esteja” (Ibidem, p. 195).
É neste sentido que pretendemos associar as ideias de pós-modernidade em
Lipovetsky e Ianni com os simbolismos referentes à figura do cavalo na obra de Ruffato.
Pretendemos discutir a seguinte questão: em que aspecto a figuração referente ao cavalo
nessa obra se relaciona com o homem da contemporaneidade, ou seja, como nos
tornamos “cavalos”, ou nos animalizamos nesta era de vazios?
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O simbolismo do cavalo na obra de Ruffato Eles eram muitos cavalos
De acordo com Chevalier e Gheerbrant, no Dicionário de Símbolos (2009, p. 201-
212), há várias simbologias que podem ser extraídas a partir da figura do cavalo. Este,
segundo os autores, está ligado ao mistério, à noite, pode ser considerado como o
portador da vida, tanto quanto da morte, sendo, por isso, destruidor ou triunfador. Para
a psicanálise, pode representar o inconsciente, a mãe (fertilidade), ou a sexualidade.
Outra conotação interessante é a do cavalo como montaria, veículo, nave, ou ainda, como
o carro.
Os autores acrescentam que o cavalo está inseparável do destino do homem,
simboliza uma corrida que pode levar à loucura, à morte. Como funções de guia, o cavalo
também é psicopompo2: condutor de almas; e também, nos processos iniciáticos, o
cavalo pertencente a um defunto é sacrificado a fim de guiar a alma do dono.
Ainda de acordo com os autores, quando o homem é metamorfoseado em um
cavalo, isso simboliza os componentes animais do homem. Quanto à sua rapidez na
corrida, o cavalo se associa ao tempo; e nas crenças em que há imolação ou adoração ao
cavalo, este está ligado às colheitas. Há crenças de que este animal possui um dom de
fazer brotarem fontes com a pancada de seu casco; trata-se do despertar do imaginário,
uma vez que o objetivo dessas práticas é, muitas vezes, auxiliar as divindades da chuva.
Chevalier e Gheerbrant acrescentam que quando o cavalo está ligado à
transposição do umbral da puberdade, torna-se símbolo da impetuosidade do desejo, do
ardor, como também da fecundidade, da juventude, da força, da vitalidade, possuindo,
então, uma significação erótica. Para os autores, o I-Ching atribui ao cavalo força e
rapidez, sendo interessante também notar que este animal acaba por ter a atribuição de
realizar os opostos numa manifestação contínua.
Desta forma, percebemos uma vasta conceituação simbólica deste animal, sendo
necessário refletir sobre quais desses aspectos nos é interessante fazer associações com
o tema e o objetivo propostos por este trabalho.
2 Disponível em: http://www.dicio.com.br/psicopompo/. Acesso em junho de 2013.
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A fim de tornar mais prático o nosso estudo, optamos por atribuir palavras-chave
dos simbolismos apresentados acima, a fim de associá-las à análise do livro de Ruffato
Eles eram muitos cavalos, e, também, às características da contemporaneidade. São estas
as palavras-chave: carro – sexualidade – o passar do tempo – esoterismo – morte –
loucura – imaginação.
Cada uma será analisada individualmente a seguir.
Quanto ao simbolismo do cavalo voltado ao carro, observemos os fragmentos
abaixo:
O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita (RUFFATO, 2012, p. 11).
comecei a ouvir o maior tiroteio pensei em fugir mas ainda corria o risco de ter o carro roubado já pensou? aí tirei a chave da ignição deitei na poltrona de bruços um medo de morrer ali sozinha e então aconteceu uma coisa engraçada parece que eu desmaiei viajei no tempo sei lá me vi de novo mocinha com meus colegas do grupo-de-jovens numa excursão pra onde e alguém tocava violão e cantávamos e ríamos e aí começaram a buzinar atrás de mim e assustada dei um pulo liguei o carro engatei a primeira e vi os soldados na calçada arrastando pelas pernas dois sujeitos ensanguentados deviam estar mortos já (Ibidem, p. 23-24).
Como podemos perceber, são várias as citações em que há a presença da palavra
carro, remetendo-nos sempre à questão do movimento, da rapidez, próprios do cavalo.
Ainda aparecem outros exemplos que podem ser citados: “um ônibus que arranca”, “o
motor do Chevette” (p. 27); ou, ainda, neste outro fragmento: “carros e carros mendigos
vendedores meninos meninas carros e carros assaltantes ladrões prostitutas traficantes
carros e carros mais um dia terça-feira fim de semana longe as luzes dos postes dos
carros dos painéis eletrônicos dos ônibus...” (Ibidem, p. 94-95); etc. Nota-se que, quando
não há a palavra “carro”, substitui-se por similar, um outro meio de transporte,
entretanto, sempre vão aparecendo palavras desse campo semântico.
Nesta outra passagem, vemos o carro ligado à morte: “Depois, numa quebrada
escura lá para os lados da Represa de Guarapiranga, puseram ele de joelhos, deram um
tiro na nuca. O corpo foi encontrado hoje de manhã. o carro ainda não.” (Ibidem, p. 27).
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Aqui, fica clara a possibilidade de associarmos ao simbolismo já citado acima, proposto
por Chevalier e Gheerbrant, em que o cavalo se iguala a um carro na condução da alma
do defunto, uma vez que há morte e o desaparecimento do carro, dando-nos a ideia de
que este desapareceu por ter ido acompanhar a alma do morto. Obviamente, excluímos,
aqui, análises mais óbvias ligadas aos atos de violência por si sós, a fim de privilegiarmos
a literariedade e/ ou simbolismos.
No tocante à sexualidade, Ruffato nos oferece algumas passagens de seu texto que
também confirmam certos simbolismos. No capítulo 25 “Pelo telefone”, por exemplo, há
inúmeras ligações não atendidas pela personagem Luciana, caindo na caixa-postal, e a
mulher, traída, usa de palavrões, de argumentos tentando convencer a amante do seu
marido a abandoná-lo, elevando os defeitos deste, apresentando a ideia de sexualidade
ao dizer “a pessoa que está dormindo com você” (p. 53), e demonstrando também a
loucura através do desespero e do uso de inúmeras reticências, exclamações e pausas.
O capítulo 33 “A vida antes da morte” traz principalmente a questão da força e da
vitalidade, na adolescência, que levam ao uso da violência: o caçula viciado que se torna
briguento quando precisa de droga e a mais velha, de cabelo colorido, símbolo da
rebeldia. A opinião da adolescente é representada através da expressão “é um purgante
o velho” (p. 68), que está por detrás da fala do narrador. Além disso, a adolescente
costuma ser flagrada “cavalgando o parapeito da janela” (Ibidem, p. 68); aqui, a palavra
que remete ao “cavalo” nos relembra a ideia já citada da força, da vitalidade. Através
dessa animalização da personagem, vemos a representação de sua rebeldia.
No capítulo “Táxi”, as palavras, falas, ideias e argumentos são jogados
misturadamente, de forma a reproduzir a rapidez do veículo. Ao mesmo tempo, trata
também da sexualidade nas narrativas contadas pelo taxista: “O senhor vai na locadora
de vídeo e tem uma prateleira lá só de filme de sacanagem. Cada um de arrepiar! Mulher
com mulher, mulher com cavalo, com cavalo sim senhor!, mulher com cachorro, mulher
com um monte de homem, cruz credo!” (p. 84). Volta ao tema da sexualidade, ao dizer:
“Mulher que quiser sair comigo, até hoje, tem que ser desinteressada, se não, vou
confessar uma coisa, eu não consigo. Com licença da palavra, eu broxo.” (p. 86). Ficam
evidentes que são ofertadas ao leitor, quanto ao tema sexualidade, diversas formas de
linguagem, da mais simbólica, ou até mesmo, contida, até a mais exagerada e aberta,
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muitas vezes, chocando-nos como leitores. Por exemplo, há descrições erotizadas no
capítulo “Gaavá (Orgulho)”: “No entanto, bela, sempre. Uma tatuagem, um desenho
‘tribal’, enfeita as costas, quase na altura do cóccix. (...) Ar de madona adolescente – a
safada inocência... a angelical devassidão (...)” (p. 90). E mais:
No palco, narcotiza: suas botas pretas de cano alto encruzilham as penugens loiras das coxas bem torneadas, a minissaia de couro preta insinua uma vênus calipígia, as asas negras da blusa terminam em garras fesceninas, os cabelos, agora ruivos, espalham-se selvagens pelos ombros, a voz rascante, janisjopliana. (Ibidem, p. 91-92).
A sexualidade é retratada também da forma mais contemporânea, sendo
conquistada através da internet, das redes sociais. O narrador-personagem conta suas
conquistas através desse veículo de comunicação: “Você sabe... aquela conversinha... no
fundo no fundo as mulheres só querem ser comidas por alguém carinhoso, romântico...”
(p. 114); “(...) porque o prêmio, se você consegue chegar no final, é uma mulher na sua
cama... louca pra fazer tudo que você quiser... tudo!” (Ibidem, p. 114-115). Percebamos
aqui a presença de uma figura feminina mais emancipada, desprendida de estereótipos,
e, portanto, também representativa do que se vê na sociedade atual.
Nesta era de pós-modernidade, o autor da obra em questão acaba por associar a
sexualidade à danação, ou a coloca na sua mais extrema naturalidade, ou até mesmo
banalidade, como percebemos na passagem: “eu não seria feliz (ou tão feliz) sem a
recordação de seu corpo nu seus seios suas coxas sua bunda eu não seria infeliz (ou tão
infeliz) a intimidade é a morte da relação” (p. 126); e no capítulo 65 “Na ponta do dedo
(3)”, no qual a lista de anúncios de pessoas que procuram sexo apresenta várias vezes as
palavras “ativa” e “passiva”, assim como “completa”, “total”, “insaciável” (Ibidem, p. 135),
etc., evidenciando uma sexualidade nefasta, mas encarada com muita naturalidade.
No que diz respeito ao passar do tempo, “Eles eram muitos cavalos” nos traz
muitos fragmentos em que se é possível refletir sobre a efemeridade da vida. Vemos a
representação do passar rápido do tempo em expressões como: “ônibus que passa
velozmente” e “os ônibus os caminhões os carros as luzes São Paulo” (Ibidem, p. 15). É a
ideia de movimento e rapidez passada pela presença dos elementos ligados à
modernidade e pós-modernidade, e na própria rapidez da leitura: efeito causado pela
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falta de pontuação. É neste sentido, principalmente, que o autor coloca São Paulo como
algo a ser representado pela sua contemporaneidade: a presença das modernizações e
tecnologias criadas pelo homem, mas que, fatalmente, o aprisionam.
Quanto à presença das questões do mistério e do esoterismo, elas se encontram
em vários capítulos, como o 7, em que há a presença da numerologia (p. 18); no capítulo
12, em que expressões como “A lua nova, no signo de Câncer”, assim como outras de
mesma espécie, traduzem a astrologia; ou como, no capítulo 60, uma simpatia para
afastar o ciúme (p. 123).
Sobre o esoterismo, diz Lipovetsky:
Longe de ser antinômico em relação à lógica maior do nosso tempo, o ressurgimento das espiritualidades e esoterismos de todo tipo não faz mais do que cumprir sua parte, aumentando o leque de escolhas e possibilidades da vida privada, permitindo a existência de um coquetel individualista do sentido conforme ao processo de personalização. (LIPOVETSKY, op. Cit., p. 95-96).
Para o autor, o esoterismo é uma das formas de fuga, por assim dizer, desta
realidade vazia da pós-modernidade; ora, se não se verifica na realidade palpável a
felicidade buscada ou a resposta procurada, o homem passa a buscar artifícios abstratos,
religiosos, subliminares, espirituais, invisíveis, mas que possam explicar e responder
seus questionamentos, acabar com suas inquietações pessoais. Desta forma, percebemos
como as principais temáticas da obra de Ruffato realmente trabalham as questões da
contemporaneidade.
Não seria diferente com a temática da morte. Além das passagens já citadas que
entrecruzavam sexualidade e morte, carro e morte, etc., também temos a ideia de
adolescência ligada à morte, que aparece no capítulo 8 “Era um garoto”, no qual, após
inúmeras descrições misturadas propositadamente às narrativas, chega-se à conclusão
de um possível suicídio: “dezessete anos em agosto tão feliz tão lindo tão companheiro
tão querido tão inteligente tão amoroso meu deus por quê que ele foi fazer isso meu
deus por quê” (RUFFATO, op. Cit., p. 20).
A loucura também se perfaz em muitas partes da narrativa, sendo importante
destacarmos tais exemplificações: no capítulo 10 “O que quer uma mulher”, temos o
retrato de uma discussão na qual a mulher chega a chamar o marido de “lunático” (p.
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25); no capítulo 19 “Brabeza”, o uso de drogas faz com que a pessoa fique alucinada de
tal forma que o narrador utiliza a expressão “o coração cavalgou” (Ibidem, p. 42), o que
remete, inclusive, à animalização através do cavalo. Mais uma vez, o processo de
atribuição de características animalescas ao ser humano nos faz refletir sobre como o
homem pós-moderno se sente frente ao momento histórico em que está situado.
Enfim, são muitas as passagens da obra de Ruffato que servem como exemplo não
só dos simbolismos de Chevalier e Gheerbrant, como também do que nos é exposto
como o vazio da contemporaneidade, segundo o que vimos em Lipovetsky e Ianni.
Mas ainda podemos terminar a proposta da nossa análise tomando como base o
imaginário: a liberdade criativa. Em uma época em que há a dessubstancialização do ser,
o imaginário na Literatura se faz presente de forma ainda mais efetiva, para não dizer
ainda mais necessária. Como se fosse uma forma de buscar saídas deste labirinto no qual
estamos presos em nossa era.
O lado imaginativo da obra de Ruffato é diferenciado, pois se perfaz
principalmente no uso de capítulos que pouco ou nada fariam analogia ao que se espera
de uma obra literária; e isso nos mostra o quanto o autor usa do imaginário para criar,
usando textos e fragmentos de textos de diversas temáticas e gêneros, misturados, sem
sequência lógica, e, muitas vezes, não se preocupando em fazer sentido ou em
apresentar literariedade, mas, sim, em evidenciar o híbrido, o caos urbano traduzido em
forma de texto.
Vemos isso, por exemplo, na descrição das condições do tempo (p. 11); na
sequência de capítulos intitulados “Na ponta do dedo”, em que há, respectivamente, uma
lista de vagas para profissionais (p. 39-40), uma lista de anúncios de pessoas que
procuram relacionamentos (p. 88-89), e uma lista de pessoas que procuram por sexo na
sua maior abrangência, homens, mulheres, casais, e todos os tipos de sexo (p. 135);
também uma lista de livros diversos em uma estante (p. 50-51); ou a exposição de um
cardápio (p. 144).
Além disso, no capítulo “Insônia”, percebemos a imaginação quando os
personagens atropelam suas vozes e seus pensamentos, juntamente com os barulhos e
movimentos do ambiente, demonstrando uma falta de lógica e de ordem, uma vez que os
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pensamentos veem à mente de forma desordenada: as preocupações, as descrições do
que os olhos veem no momento, a reprodução do que se escuta, etc.:
merda, amanhã compromissos, freio do carro, óleo, do you wanna dance?, festinha, maria aparecida albino, loura, cara de sono, sol quente, chácara, monte de areia, pedra britada, gol, traves de chinelos, grupo escolar flávia dutra, rio pomba, vila teresa de baixo versus vila teresa de cima, maria rita, maria rita, anúncio no jornal, procura-se maria rita, bairro-jardim, favela, campo do brasil, poeira, lama, estão lááááá no campinho jogando bola, dinim preso, está fodido, virou bandido, matinê do cine edgard, me empresta a carteirinha de estudante?, chuva chove, ar encharcado, enchente, cobras, goiabas (RUFFATO, op. Cit., p. 141).
É interessante como o capítulo termina sem que a frase tenha sido concluída: “saí
roxo, tremendo, eu te amo, paris, estão te sacaneando, tecnopop, o apito guarda a noite,
as” (Ibidem, p. 143). São, de fato, vários os recursos utilizados para demonstrar o
urbano, não se limitando em falta ou excesso de pontuação; antes, abrangendo-se para
um mundo de lacunas, fragmentos, possibilidades imaginativas, enfim, um vasto mundo
de criações e perspectivas a que o livro remete o leitor.
Os cavalos aí são o próprio tempo confuso da contemporaneidade, a consciência
da efemeridade, a rapidez e a constante mudança na sociedade. São o consumismo e o
hedonismo levando o indivíduo a perder-se.
A ideia da imaginação dá sequência nas páginas 145 e 146, as quais se encontram
na cor preta, remetendo a várias possibilidades imaginativas: podem significar tudo,
qualquer coisa, ou nada. A falta de cores? A junção de cores? A falta de luz? O não-lugar?
O estado depressivo? A falta de perspectivas nesta era do vazio?
O autor não se preocupa em responder, mas em evidenciar como são comuns e
inúmeros os questionamentos que angustiam o ser humano atual. Sendo que, em
seguida, há a reprodução de um diálogo em que se tenta descobrir a origem e a causa de
um gemido que é escutado por um casal, mas que não se importa o suficiente para
levantar-se e ir descobrir do que se trata. Prevalece a imaginação do que poderia estar
acontecendo: “Porque... porque ainda pode ter alguém lá... E aí? Melhor dormir... Vai...
vira pro canto... vira pro canto e dorme... Amanhã... amanhã a gente vê... Amanhã a gente
fica sabendo... Dorme... vai...” (Ibidem, p. 148). Aqui, torna-se claro o comodismo que
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vence a curiosidade, ou até mesmo o individualismo que vence a preocupação com o
outro.
Refletindo a respeito de uma linguagem e estilo tão diferenciados em Ruffato,
podemos lembrar o que Lipovetsky diz a respeito do pós-modernismo:
não tem por finalidade nem a destruição das formas modernas, nem o ressurgimento do passado, mas, sim, a coexistência pacífica dos estilos, (...) a desestabilização dos compromissos rígidos para a figuração ou a abstração, enfim, a descontração do espaço artístico paralelamente a uma sociedade na qual as ideologias rígidas não pegam mais. (LIPOVETSKY, op. Cit., p. 98).
Não há rigor na sociedade, ou pelo menos não se espera mais que sejam
cumpridas com tanto rigor as normas que a sociedade prega. Uma certa liberdade, no
agir e no pensar, mas que aprisiona, pelas tantas oportunidades, tantas tecnologias,
tantas informações, e o já não ter o que se buscar. O vazio. A página em preto, a vida
opaca na cidade cinza coberta de prédios e pessoas comuns. A banalização.
Considerações finais
A obra de Ruffato se faz pós-moderna no sentido de atender a esse hibridismo, à
mistura de misturas, quanto a gêneros, a linguagens, a temáticas; evidenciando a própria
loucura do homem, a danação em que se encontra esse ser atomizado. Vítima do que ele
próprio criou, este homem pós-moderno é tão lacunar quanto as narrativas de Eles eram
muitos cavalos. É por isso que vemos uma obra literária fragmentada, confusa, sem se
importar com ordens ou normas, que pode ser lida sem seguir uma sequência: trata-se
de um simulacro do sentimento do homem desta era.
Os cavalos somos, de fato, nós, homens e mulheres pós-modernos, correndo em
busca de algo que ainda não sabemos, em um tempo que ainda não conseguimos de fato
nomear, por motivos que talvez se perderam ou estão escondidos por debaixo dos
tapetes da contemporaneidade.
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Referências
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. de Vera da Costa e Silva et al. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. DICIO. Disponível em: http://www.dicio.com.br/psicopompo/. Acesso em junho de 2013. IANNI, Octavio. Enigmas da Modernidade-mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Trad. de Therezinha Monteiro Deutsch. 2 reimpressão brasileira. Barueri, SP: Manole, 2009. RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso, 2012.
Artigo aceito em julho/2013