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Uma teoria da prova criminal: o paradigma indiciário Primeira parte – Elementos – Tomo II - capítulos 18 a 24 Marco Aydos Guernica, de Pablo Picasso (detalhe) Florianópolis Novembro/2014 1/61

Uma teoria da prova criminal: o paradigma indiciário · Guernica, de Pablo Picasso (detalhe) Florianópolis Novembro/2014 1/61. 18. História da prova criminal: começo e fim

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Uma teoria da prova criminal: o paradigma indiciário

Primeira parte – Elementos – Tomo II - capítulos 18 a 24

Marco Aydos

Guernica, de Pablo Picasso (detalhe)

Florianópolis

Novembro/2014

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18. História da prova criminal: começo e fim

janeiro 15, 2014

Mirjan Damaska demonstrou que é possível e útil abrir mão da perspectiva histórica no exame comparado de sistemas de prova criminal, nos livros The faces of justice (1986) e Evidence law adrift (1997). O autor propõe o exame do fenômeno da prova sob dois tipos ideais, desenhados a partir das formas de organização do poder, seja preponderantemente por esquemas de coordenação, no sistema anglo-americano, ou por esquemas de hierarquia, no sistema continental. São dois trabalhos concisos e esclarecedores, que indico a quem desejar uma visão geral da prova criminal no direito comparado sem os preconceitos correntes, estabelecidos por confusas abordagens misturadas, meio analíticas e meio históricas, dos tradicionais modelos acusatório/inquisitório. Simplificando um pouco, o modo analítico procede através de perguntas do tipo “o que é?”; o modo histórico pergunta “por quê?”Nossa proposta original, querendo ser prática e entrar o mais rapidamente possível na utilidade desta teoria para a investigação criminal, pretendia desconsiderar os esboços históricos enjoados que os juristas nos empurram, a contragosto dos próprios autores, nas primeiras dezenas de páginas de seus livros. A falta de realidade que sentimos ao ler esses esboços históricos é sintoma de uma doença da cultura jurídica: um historicismo que não serve para nada na vida prática. Precisamos perguntar ainda, com o radicalismo do jovem Nietzsche, quais são os “usos e desvantagens da história para a vida”, se por acaso adoecemos de historicismo, e nesse caso, como encontrar algum antídoto (Nietzsche, 1983, p. 121). A perspectiva histórica que encontramos entre os juristas é normalmente ainda a noção ingênua do progresso contínuo e unilinear: a história seria uma sucessão de formas, do bárbaro para o humano, em acúmulo de sensibilidade proporcionado pela simples sucessão de gerações. Em alguns períodos teria havido uma ruptura quase mágica, um tipo de revolução antropológica do humano bárbaro, colorido pela brutalidade e violência, para o moderno, do humanismo. A perspectiva romântica de que tudo é decadência é apenas o outro lado da mesma moeda, pois os juristas que apostam na decadência têm em suas teorias a chave para o verdadeiro progresso, que alguns dizem exigir o “giro linguístico”, em teorias mais refinadas, outros apenas que a gente obedeça ao subjetivismo do que o autor acha melhor. Os dois modos têm em comum o fato de que a história não serve para nada, então não deveríamos perder tempo com o passado. Pois se a história é uma sucessão de formas, conhecer o modo bárbaro seria mera curiosidade histórica, não necessidade; se, de outro lado, o autor tem a chave para o progresso, é suficiente fazer a pirueta que nos comandam, e por mágica, ingressaríamos no futuro.A primeira corrente padece da ingenuidade da fé nas conquistas irreversíveis. A certeza legal, método pré-moderno de olhar a prova criminal, seria “página virada no livro da História”. Essa concepção é impotente para lidar com as anomalias, pois concebe a história como um agente desobediente, que nos devolve alguns arcaísmos por pura malandragem. O italiano

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Malatesta, cuja teoria só não causa mais prejuízo por ser muito longa, enjoada e pouco lida, ao menos reconhece o fenômeno: as provas legais retornam “escondendo-se artificiosamente” em dispositivos legais diversos daqueles que tratam das provas (Malatesta, 2001, p. 100).Basta perguntar por que a certeza legal retorna, quando devia ser página virada na História, que sentimos falta de uma abordagem histórica, ou mais propriamente genealógica, que dê conta do “nascimento” do fenômeno. Eis por que o modo analítico do início da teoria mostrou-se limitado. Ao adotar por subtítulo “o paradigma indiciário”, nossa proposta buscava revalorizar o indício, que entre nós sofre de preconceito, uma generalização pejorativa que lhe nega até mesmo a qualidade de prova. A palavra preconceito já nos envolve na historicidade do fenômeno, porque preconceitos não são fatos da natureza, não existem desde sempre, nem em todo lugar do mesmo modo.Mas o mapa aristotélico da alma (capítulo 6, p. 35-37) será útil como guia também na investigação histórica, por um lado porque é mais rico que a dicotomia moderna entre racional/irracional; por outro lado, porque a história da prova criminal envolve esquemas de inferência herdados e sua crítica será também uma história das vicissitudes da razão humana na história. Vimos que o nosso paradigma indiciário é um modo de olhar a prova criminal que movimenta a capacidade intelectual que Aristóteles chamou de phrónesis (capítulo 16, p. 89-90), acompanhada ou não de uma téchne. Mas esse modo de olhar ainda é marginal entre nós, não obstante ser o modo normal, porque adequado aos limites do objeto que investiga. Nossa tradição continental, por algum motivo, teimou em descartar essas duas capacidades em favor de algo que pensava ser superior: a epistéme. E construiu, assim, o modo anormal, patológico, de olhar o fenômeno. Pois não aprendemos com suficiente radicalidade o que ensinou o Mestre, sobre como:“Não se deve exigir em todos os casos o rigor matemático”. Mesmo que saibamos que “alguns não estão dispostos a ouvir se não se fala com rigor matemático; outros só ouvem quem recorre a exemplos, enquanto outros ainda exigem que se acrescente o testemunho de poetas. Alguns exigem que se diga tudo com rigor; para outros, ao contrário, o rigor incomoda, seja por sua incapacidade de compreender os nexos do raciocínio, seja pela aversão às sutilezas. De fato, algo do rigor pode parecer sutileza; e por isso alguns o consideram um tanto mesquinho”. “Por isso, é necessário ter sido instruído sobre o método que é próprio de cada ciência.” – Aristóteles, Metafísica, 995a6-10 (2002, p. 79).Porque a tradição das provas criminais envolve modos de inferência herdados, que se transformam em dogmas e tornam-se fenômenos quase-naturais, ocorre aqui um fenômeno parecido com aquele examinado no começo do primeiro volume do Capital: o enigma da mercadoria transformada em fetiche, cujo valor de troca não permite que se veja o processo social que a produziu, as vicissitudes do trabalho e do sofrimento humano escondidas no modo de produção da mercadoria.Historicamente, o que chamamos de paradigma indiciário, o modo normal de olhar a prova criminal, desenvolveu-se no direito inglês. Mesmo uma visão aérea da história da prova criminal, se concebida de modo universal, já faz justiça à intuição de Karl Marx, que, inspirado nas ciências naturais, que procuram observar os fenômenos onde eles ocorrem de modo menos sujeito a perturbações ou, quando possível, em estado puro, chegou à conclusão de que para investigar a dinâmica da modernidade, a Inglaterra seria o lugar clássico (Marx, 1976, p. 90). A França precisou de uma revolução violenta para modernizar-se, e enfrentou sucessivas restaurações. Já na Alemanha, a modernidade subiu para a cabeça dos teóricos. Mas justamente por isso, quando precisarmos de apoio para interpretações paradigmáticas dos significados da história da prova criminal, empreitada mais próxima da filosofia que da historiografia em sentido estrito, iniciaremos nossa caminhada desde Hegel e Max Weber, que

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oferecem uma compreensão abrangente e universalista da modernidade. Mais próximo de nós no tempo, entre filósofos representativos, Michel Foucault dedica-se ao nosso tema em Vigiar e punir, mas Foucault examina a tradição continental da prova criminal e sua sofisticada engenharia como um caso exemplar de inversão da metafísica: o corpo, que na teologia cristã, fora a “prisão da alma”, vê-se sutilmente refém da alma, de quem havia sido senhor. A análise da “microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna … efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (Foucault, 1986, p. 31-2). Para esse propósito, Foucault pode dispensar, como de fato dispensa, a experiência inglesa, como “notável exceção” (p. 35). Mas a partir do momento em que a Inglaterra desenvolveu o paradigma “normal” para o problema da prova criminal, é na experiência dessa notável exceção que poderemos aprender algo. Toda história conta algo do passado, preferencialmente com começo e fim conhecidos. O modelo narrativo típico da história é o conto de fadas: no começo, era uma vez um rei, ou uma princesa, ou uma criança abandonada… até terminar, normalmente, com um casamento feliz. Depois do fim da história, vivemos no presente absoluto, dado na fórmula com que encerramos o conto: “e foram felizes para sempre…” Para organizar nossa narrativa histórica da prova criminal como uma história universal, delimitemos começo e fim.

Começo da história: 11/11/1215 – RomaA história moderna da prova criminal começa com dia certo, em 11/11/1215, quando se reúne em Roma, por convocação do Papa Inocêncio III, o 4º Concílio ecumênico, no palácio de Latrão. Praticamente todas as fontes reportam-se a esse evento, o que varia são as interpretações do fato, as consequências concretas para o fenômeno da prova criminal do cânone 18 resultante desse Concílio, que proibiu a participação de clérigos nas provas de Deus, como foram historicamente conhecidas as ordálias, ou purgações. O fato histórico é conhecido, pois estamos em tempos “com memória” escrita, segundo o clássico Sir Matthew Hale (1609-1676), que encontrou suficiente documentação para provar que os julgamentos por provações ou ordálias (ordeals) desapareceram da prática inglesa no reinado do Rei João, ou King John, falecido em 1216 (Halle, 1971, p. 98). 1215 é um divisor de águas. A Inglaterra seguiu um desenvolvimento normal, ao dotar suas instituições da possibilidade de olhar a prova criminal segundo sua qualidade (isso que estamos chamando, por falta de melhor nome, de paradigma indiciário), ao passo que o continente, sob o comando de doutores italianos, a partir de Bolonha, inventou uma sofisticada “engenharia” da prova criminal, olhando-a sob o prisma da quantidade e do peso da prova, a ser avaliado abstratamente para todo e qualquer caso segundo sofisticada tabela de pesos e medidas. Desenvolveu-se, assim, um sistema que se queria objetivo e científico, e curiosamente associou-se na história à instituição da tortura. O modo inglês dispensou a tortura, não porque os ingleses fossem mais humanos que nós, mas porque a ênfase na qualidade e não na quantidade assemelha a investigação criminal à busca de sintomas, sinais, vestígios, com que opera a medicina. Apenas nesse aspecto limitado é justificada nossa importação do nome “paradigma indiciário” do ensaio de Ginzburg. O modo continental não tem nome, ainda. A literatura oferece algumas opções, como por exemplo a divergência entre “Pascalian/Baconian approaches”, registrada por Damaska (1997, p. 57) mas esses são nomes carregados de conotações inadequadas. Chamar nosso paradigma indiciário de pascaliano por movimentar a lógica do coração é correto, mas adquiriu sentido excessivamente irracionalista, quando o modo normal de olhar a prova é um tipo de lógos adequado a seu objeto, não é um tipo moderno de irracionalismo. A opção de Ginzburg por qualificar o outro paradigma de “galileano” faz sentido, porque se trata da ênfase nas quantidades, nas reiterações, no desprezo pela ciência do fato único, irrepetível. Mas o paradigma contrário é anterior a Galileu; ainda veremos, se for possível, alguma genealogia desse modo de olhar nas questões

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políticas da pólis grega, em alguns ensaios de Jean-Pierre Vernant. Por enquanto, para termos afinal um nome, limitemo-nos a qualificar o modo continental simplesmente como “paradigma matemático”.

Fim da história: Janeiro de 1834 – HeidelbergA modernidade alemã precisou realizar-se à custa do esforço do espírito para então ganhar corpo na vida real. Mittermaier encerra o ciclo moderno da prova criminal retornando à origem, ao anunciar no prefácio de sua teoria que não fez praticamente nada novo, a não ser recolher e desenvolver “as regras de doutrinas encontradas nos jurisconsultos ingleses”, buscar ideias sobre o tema “num país onde o júri tem raízes tão antigas” e “com esforço remontar às fontes filosóficas da teoria das provas legais” (Mittermaier, 1996, p. 9). Conhecendo seu princípio correto, o espírito entra em sua liberdade, e esse é o final da história enquanto desenvolvimento, pois nada mais será progresso, pelo menos no desenvolvimento histórico: hic Rhodus, hic salta. Não podemos saltar sobre Rodes, não devemos pegar o próximo trem da História para o futuro absoluto. Essa noção será refinada com a teoria da modernidade da filósofa Agnes Heller, que compreende a dupla vinculação (double-bind) da imaginação moderna, que é tanto histórica quanto tecnológica, o que nos proporciona condições de ajuizar onde e quanto progresso é possível nas instituições de justiça, e onde e quando as correntes chamadas progressistas em realidade dão vazão ao instinto de morte. Mas há também um fenômeno moderno por excelência, sem uma data precisa, que delimita o fim de nossa história, enquanto desenvolvimento da dinâmica da prova criminal: o nascimento da prisão. O fenômeno é o mesmo estudado por Foucault, mas só se torna compreensível como um evento relevante na história universal da prova a partir do indispensável estudo de John Langbein sobre a tortura (1977), que ilumina o fim da história numa narrativa comparada sobre a história da tortura e sua relação com a prova criminal. Para não recair nas fantasias que normalmente rondam o começo da história, confio no livro de James Whitman (2008), sobre as “Origens da dúvida razoável – Raízes teológicas do julgamento criminal”, que ilumina as vicissitudes desta história desde o seu começo em 1215. Complementando a história, no ponto de vista continental, reporto-me ao clássico de Adhémar Esmein (1882), que apesar de extenso é muito bom de ler (História do procedimento criminal continental, com referência especial à França, que refiro em tradução em inglês de 1913). Com essas três fontes merecidamente respeitáveis, arrisco-me a entrar na história da prova criminal sob o ponto de vista universal.

19. Problemas da história da prova criminalabril 21, 2014

Nossa jornada encerrou com promessa de entrar de vez na matéria viva da história da prova criminal, sob o ponto de vista universal. Relendo sua perspectiva, algo indispensável a quem pretende retirar sentido de uma história, vejo que a apresentação telegráfica de oito teoremas, no capítulo 17, ficou difícil de compreender, o que também se explica pela dificuldade dos problemas enfrentados. Neste intervalo, alinho alguns esquemas de compreensão disponíveis

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e explico por que eles não são satisfatórios, e por que minha perspectiva ilumina alguma coisa nesse campo minado de problemas.O primeiro, e talvez fundamental, dentre nossos problemas, em comum com a historiografia, é o dilema entre universalidade e diferenças. Ingressei de chofre numa abordagem universalista de história da prova sem perguntar antes se ela (ainda) é possível. Existe mesmo uma história universal da prova? Ou uma construção desse tipo seria uma ilusão/dominação eurocêntrica?O dilema fica mais fácil de ser compreendido na metáfora registrada por Carlo Ginzburg, em ensaio sobre a “micro-história”:“no passado os historiadores preocupavam-se com o tronco da árvore e seus galhos; seus sucessores pós-modernos ocupam-se apenas com as folhas – quer dizer, com minúsculos fragmentos de um passado que investigam de maneira isolada, independente do contexto, maior ou menor (galhos, tronco)” (Ginzburg, 2012, p. 211).Acredito que essa querela entre modernos e pós-modernos não precisa ser resolvida de modo tão dogmático, em que uma historiografia de “folhas” soltas perde contato com a realidade, ou transforma a história em coleção de biografias, por vezes mal distinguindo seus autores entre o “verdadeiro, o falso e o fictício”, segundo aguda crítica de Carlo Ginzburg. Não vejo por que visões gerais do desenvolvimento seriam um retorno à tão falada, e pouco compreendida, metafísica, e não abro mão de buscar na historiografia um pouco de compreensão do espírito do nosso tempo. Bem adverte o norte-americano Stuntz, que nessa empreitada pós-moderna “muito da floresta se perdeu” e hoje os estudos sobre o crime e a justiça criminal “se ressentem da falta de generalistas” (Stuntz, 2011, p. 10).Mas o título “história da prova” é propenso a confusões, pois o que se propõe nos próximos passos dessa jornada é uma investigação sobre a gênese do processo criminal moderno, na procura do princípio do processo criminal moderno. O gênero de uma reflexão desse tipo não é historiografia, mas algo parecido com a “elucidação” de que fala Cornelius Castoriadis: o trabalho pelo qual se procura pensar sobre o que a gente faz e indagar como a gente pensa, sabendo que esse fazer e pensar são criações histórico-sociais (Castoriadis, 1987, p. 3).Nossa prática e nosso pensar sobre a prova são moldados pelos manuais escritos por juristas. No rigor da palavra, o que os juristas elaboram são extraordinárias fantasias históricas. Marc Bloch não exagerou quando disse que “não existe uma história do direito tal como os manuais, admiráveis instrumentos de esclerose, popularizaram” (Bloch, 1953, p. 148). Mas num trabalho de elucidação do nosso fazer e pensar, aquilo que para Marc Bloch não existe, para nós não apenas existe, como de fato “emoldura” (no sentido proposto por Castoriadis, como algo que institui nosso imaginário) nosso fazer de modo tão natural que a gente nem percebe que um dia essas fantasias foram criações da mente de determinado jurista, historiador, ou filósofo. A elucidação que buscamos deve começar por essas fantasias.

As fantasiasUm reformista francês da Ilustração disse, sobre os manuais de direito criminal de seu tempo, que quem leu um, conhece todos, pois parecem ter saído da mesma fôrma (Langbein, 1977, p. 172). A situação não é muito diferente hoje. Segundo os juristas, todos os problemas da prova criminal podem ser resolvidos pela recepção de determinado sistema de administração da prova, chamado pela tradição de sistema acusatório (alguns adotam o anglicismo adversarial para parecer mais atual). Na base dessa fantasia, a humanidade teria resolvido o problema de encontrar a verdade factual necessária para um veredicto criminal primeiro por meios mágicos, cuja superação teria dado origem aos grandes sistemas: o acusatório, na common law, e o inquisitório, no direito continental. Refiro o esquema apresentado por Garraud,

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representativo desse imaginário:O sistema acusatório de produção de provas seria equivalente, em seu formato e simbolismo, ao combate primitivo: por isso aparece em primeiro lugar na história da civilização. Esse sistema tomou forma nos julgamentos de Grécia e de Roma, depois declina e desaparece, “junto com a liberdade”, sublinha Garraud. Com a queda do império romano, reencontraremos o princípio acusatório em formas bastante primitivas, nos costumes feudais e germânicos, ao passo que, nos tempos modernos, ele “desapareceu no continente europeu, mas continua a existir na Inglaterra e nos Estados Unidos” (in Esmein, 1913, p. 7).O sistema inquisitório seria “um tipo de procedimento mais científico e complexo que o acusatório” e se adaptaria melhor às necessidades sociais de repressão. Suas características predominantes são a procura de provas em segredo, à revelia do acusado, e o emprego de tortura para obter sua confissão. A confissão aparece nesse sistema como o método por excelência de obtenção da verdade, razão por que se admitirá a tortura. Outras instituições específicas desse sistema serão as limitações aos poderes do juiz, dadas na teoria das provas legais e no sistema de recursos. Para condenar, o juiz precisaria ter à disposição algumas “quantidades” de provas definidas por lei, mas por outro lado, se em presença dessas quantidades legais, não poderia absolver o acusado segundo sua convicção. O sistema existiu de modo embrionário nas instituições tardias do império romano. Ele combina com um poder centralizador e despótico (in Esmein, 1913, p. 8-10).Com ligeiras modificações ou modernizações, este ainda é o esquema dominante de compreensão da evolução histórica da prova criminal no universo dos juristas, que costuma combinar-se com a variação evolutiva dos modos de obtenção da verdade a partir dos tipos de prova. A fantasia representativa deste esquema foi formulada pelo juiz francês Gabriel Tarde, para quem a evolução histórica da prova opera pela troca de formas religiosas de processo criminal por formas seculares. As primeiras provas são as ordálias ou provações, que corresponderiam à fase mitológica da mente humana, seguidas por provas por tortura ou pelo júri, e modernamente, por peritos. Curiosamente, Tarde compara o máximo de evolução à magia primitiva, pois “quando a ciência tornar-se rígida e dogmática, ela deverá transformar-se num ídolo e deverá proporcionar novamente oráculos investidos de infalível autoridade” (Tarde, 1912, p. 430). A respeito da preferência dos sistemas pela tortura ou pelo júri, o autor registra apenas que “na Inglaterra, tivemos primeiro as ordálias e depois o júri; no continente, primeiro ordálias e então a tortura, e depois o júri; e logo teremos o testemunho dos peritos: tais são, ou serão, sucessivamente os talismãs engendrados para a descoberta da verdade no interesse da justiça” (p. 432). Num rodapé, o juiz francês comenta que é bem verdade “que os ingleses poderiam ter tomado de empréstimo à França outras coisas que não a tortura, assim como nós poderíamos ter tomado de empréstimo aos ingleses outras coisas que não o júri” (p. 436).Os dois esquemas de compreensão histórica são formulações típicas do século 19, em que a “querela dos antigos com os modernos” ainda resumia-se, no direito probatório, em defender ou recusar o júri. O dogmatismo dos sistemas não chega a prejudicar trabalhos notáveis de historiografia, como os dois volumes de Problemas do direito criminal romano, de Strachan-Davidson (1912), que permitem, aliás, corrigir, pelo rigor historiográfico, algumas falhas dessas fantasias, como por exemplo a ideia de que um sistema republicano romano teve “continuidade” na Inglaterra, pois não há evidências de que o júri inglês tenha tido sequer inspiração em Roma, cabendo creditar-se a semelhança entre os institutos a outras circunstâncias. Mas o grande problema desses esquemas fantásticos de compreensão da história não são os abusos ou conexões não permitidas pelas provas, mas que eles descrevem algo sem preocupação de oferecer-nos uma compreensão. O que a gente busca na historiografia é o sentido da história, o “porquê” de as coisas sucederem de um jeito e não de

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outro.Se esses esquemas são corretos, por que o sistema acusatório desaparece, na versão de Garraud, junto com a liberdade, no continente, mas permanece na Inglaterra e nos Estados Unidos? Mesmo que não permaneça, por que reaparece? E por que um sistema mais primitivo, menos científico, teria sido importado pela Revolução Francesa?Mas ainda assim, com todo o seu dogmatismo, prefiro a leitura de Gabriel Tarde à dos comentaristas contemporâneos, porque o juiz francês engaja-se na sua teoria com a paixão de quem deseja construir algum progresso, e apresenta, em sua unilateralidade, extraordinária consistência. Estamos num tempo de filosofias radicais que creditam o desenvolvimento histórico a uma variável independente, ainda que se diga relativamente independente, como o desenvolvimento das forças produtivas em Marx. Gabriel Tarde, como jurista prático que julga a prova (e que na minha intuição devia ser um bom juiz) admite que não consegue explicar por que a Inglaterra saltou da ordália para o júri e por que o continente precisou de uma estação de passagem na tortura. Então credita toda a evolução a uma variável independente que seria uma característica antropológica dos juristas: nós somos em última instância animais imitativos. A propagação de instituições se faz por meio de epidemias, fenômenos parecidos com a moda. A variável independente de Gabriel Tarde não é tão dogmática quanto parece, pois que na verdade as instituições sociais são criações do imaginário, e esse imaginário é um “magma” de representações e fantasias que por vezes obedece a fenômenos parecidos com a moda.Mas por que a moda da tortura não pegou na Inglaterra, apenas no continente? E mesmo que iludidos com o produto inglês que compravam, não estavam os revolucionários franceses modernizando o processo criminal francês?

O dilema universalidade/diferenças no Espaço O dilema entre universalidade e diferenças na prova criminal é mais complicado porque conhecer os fatos do passado para aplicar uma pena criminal ou absolver mobiliza o raciocínio lógico que desenvolvemos no cotidiano, não requer rigor científico. E as inferências que esse pensamento cotidiano produz são relativamente permanentes. A ilusão ilustrada de Jeremy Bentham, para quem “em todos os assuntos relativos à prova, se os sistemas fossem racionais, a prática seria, com bem poucas diferenças, a mesma em todos” (Bentham, 1827, p. 427), não erra tanto na base do raciocínio, pois os sistemas de justiça são relativamente transculturais.Instituições de justiça são livremente copiadas de um lugar para outro. Se alguém nos pergunta hoje o que há de comum entre a Alemanha e a Turquia, teríamos dificuldade em dizer. O estudioso da prova criminal, contudo, diria: existe algo em comum, pois o código de processo penal turco de 1929, em vigor ainda em 1961 (data de sua tradução em inglês para edição em coleção de textos legais comparados) é praticamente apenas a “tradução” do código alemão de 1877 (Mueller, ed. 1962, p.1). Como prova de que uma sociedade moderna não está necessariamente amarrada à sua tradição de origem, poderíamos citar o caso de Israel, cujo sistema de justiça tem raízes britânicas, é um sistema adversarial moderno, mas não adotou o julgamento pelo júri (Friedmann, 1998, p. 57).Na situação em que nos encontramos, podemos encerrar a querela dos modernos reconhecendo que não é possível resolver todos os nossos problemas de justiça mediante a importação integral de um sistema de outra tradição. Existem limites que fazem com que os sistemas não sejam produtos tecnológicos de exportação. O júri inglês foi “importado” pela Revolução francesa, mas chegou deturpado, afrancesou-se, e ainda assim sofreu por longo tempo resistência dos juristas franceses, para os quais essa engenhosa construção não se adaptava ao “gênio” francês. Então as histórias da prova, em plural, seriam espécies de

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etnografia? Se não existir uma história universal da prova, teremos de nos resignar a conhecer o gênio de cada lugar? A explicação última da diferença por crédito ao gênio não é tão ultrapassada quanto se pensa, se apenas registrarmos que se encontra em 1977 em Ronald Dworkin, que credita a um “gênio que protege a América o fato de aí não se levar qualquer doutrina abstrata aos seus extremos lógicos” (Dworkin, 1977, p. 204). Mas essa perspectiva nega a natureza do fenômeno, que é relativamente transcultural. E mesmo que a explicação fosse a última possível, ainda teríamos presente o enigma: qual é o nosso gênio? Que gênio nos protege, e contra que perigos? Ou por que a providência, ou Deus, ou a ordem cósmica, nos privou de um gênio para proteger-nos dos perigos?Nossa fantasia típica nesse terreno é a atitude de olhar com inveja a grama do vizinho, sempre mais verde, que deve dar lugar à “prudência de começar a cultivar nosso próprio jardim”, como recomenda Damaska (1997, p. 150). Mas como cultivar nosso jardim sem saber que erva daninha mistura-se com a planta boa?Nossa prática e teoria vêm importando da Itália mais ervas daninhas que planta boa. Precisamos discernir o bom princípio, para a ele retornar, pois a crise de identidade da justiça criminal não é prerrogativa nossa. Para citar apenas dois universos de imaginação que nos influenciam fortemente: a Itália e os Estados Unidos também enfrentam crises de identidade em seus sistemas de justiça. Não conheço detalhes do que ocorre por lá, nem pretendo argumentar com a falsa autoridade dos especialistas em direito comparado que leram apenas os textos de lei de cada país, porque sei que conhecer os outros é algo bem mais árduo do que isso, mas é útil registrar que a Itália, segundo expõe Luca Marafioti, apresenta-se hoje como um sistema meio perdido “entre duas tradições” (Marafioti, 2008, p. 81-98). E a justiça criminal norte-americana, para referir apenas o título de exame crítico por Willian Stuntz, seria um sistema criminal em colapso, que precisaria do remédio forte do retorno às suas origens (Stuntz, 2011). O direito da prova, enfim, parece encontrar-se mesmo ainda “à deriva” (adrift) como posto no sugestivo título de Damaska.

O dilema universalidade/diferença no TempoNo Tempo, o enigma envolve as noções de progresso/regresso. Não é possível negar que a prova criminal evoluiu, desenvolveu-se, ao longo da história. Mas como explicar os aparentes regressos? Em nossa tradição, difunde-se como epidemia, hoje, o vocabulário típico da doutrina pré-moderna da certeza legal, que facilitava a absolvição confiante em que meia-prova seria suficiente para remeter o acusado para a roda da tortura. Absolvo, porque não tenho prova plena, apenas indícios, dizem nossos tribunais no século 21, e a moda vai pegando. Gabriel Tarde era jurista prático e sabia o que dizia: somos animais imitativos.Se nossa prática aparentemente não constrói progresso, ela precisa de elucidação para voltar ao bom caminho. Em primeiro lugar será útil termos noção do que significa progresso. Porque os sistemas de justiça são relativamente transculturais, não estamos aprisionados em nossa tradição. Podemos progredir, do contrário seria inútil o esforço de construir uma teoria da prova para perseguir algum progresso. Mas será seguro distinguir, com Collingwood, mudança e progresso. Nem toda mudança é progresso, só será progresso a mudança que troque o bom pelo melhor, sem contabilizar perdas, pois se tivermos de contar perdas e ganhos não progredimos (Collingwood, 1946, p. 329).Cultivar nosso jardim, aqui, significa que podemos importar algumas soluções, mas não todas, e tudo que importarmos chegará aqui diferente do que era na origem: não se “pula” para o progresso recepcionando solução mágica, como a solução nominal dos juristas, de adoção de um sistema acusatório ou adversarial. Não se pula para o progresso abrindo mão do progresso que historicamente se ganhou: o direito de julgar a prova (também) segundo dita a nossa consciência, para contrariar o que vem pregando os evangelhos de Luigi Ferrajoli e, entre nós,

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Lênio Streck.A impressão de regresso não é uma experiência brasileira. Dou um exemplo de choque de temporalidade no julgamento de Adriano Sofri, cujo erro judiciário penso ter sido bem demonstrado por Carlo Ginzburg:“Um leve sentimento de desorientação… a primeira impressão de alguém que, acostumado por razões profissionais a ler as transcrições de julgamentos da Inquisição dos séculos 16 e 17 – começa a ler os procedimentos preliminares de uma investigação judicial desenvolvida em 1988 por Antonio Lombardi (juiz de instrução) e Ferdinando Pomarici (promotor de justiça), contra Leonardo Marino e seus alegados cúmplices. Desorientação porque, entre os documentos de uns e outros aparece, contrariamente a nossas expectativas, uma curiosa familiaridade…” (Ginzburg, 1999, p. 7, em paráfrase, retraduzindo do italiano, via inglês).Adianto uma interpretação, que talvez não seja disponível ao horizonte dos historiadores, pois diz respeito à nossa prática: é possível que tenhamos aqui um erro representativo da importação de instituto do direito americano. A importação do plea bargaining pela tradição continental, na quadra final do século vinte, talvez repita a primeira grande importação na história da prova, a do júri inglês pela Revolução Francesa. Os dois fenômenos históricos apontam a dificuldade da empreitada hermenêutica, pois o produto que compramos, na realidade, está na nossa “imaginação” e não lá na origem. A história da prova demonstra à exaustão, contrariamente ao que creem os adeptos de Gadamer, que não existe fusão de horizontes.Examino adiante mais detidamente o caso Adriano Sofri e o livro de Ginzburg para discutir questões relevantes numa teoria da prova, como as noções de verdade formal e verdade material, de verdade judicial e verdade histórica, de verdade e memória, quando em (eventual) confronto com o trânsito em julgado da absolvição ou do decreto de anistia. Por enquanto cito o exemplo como um caso paradigmático de erro judiciário. Não existe teoria que impeça o erro, o que podemos fazer é conhecê-los em suas causas. Nesse terreno, retorno à sabedoria de Bentham: os erros de avaliação da prova decorrem de apenas dois motivos: improbity and folly (improbidade e folia: compreendam-se aqui preconceitos, inclusive aqueles forjados por teorias ruins). Não existe sistema à prova de improbidade, de modo que um erro judiciário recente e representativo na tradição norte-americana, como os júris em que um perito desonesto produziu prova científica que convenceu os jurados, entre outros, do caso Michael Peterson (Agent Deaver, SBI), não indicam que o júri por si seja mais vulnerável que o juiz de carreira à prova científica. Uma teoria da prova não pode ter a pretensão ou a ilusão de ensinar probidade, mas podemos compreender as folias que deixam um sistema mais vulnerável. No caso específico, arrisco uma hipótese de que o aparente regresso no tempo que desorienta o historiador Ginzburg pode dever-se à importação de institutos norte-americanos como o plea-bargaining, que pode dotar um sistema continental de maior vulnerabilidade à improbidade (dada na fórmula, o criminoso já temos, só nos faltam as provas), pois esse sistema, fundado em critérios eminentemente utilitários, não é uma tecnologia completamente exportável, pois funciona numa sociedade de vínculos fortemente comunitários, e de maior apego à probidade do que permite a nossa tradição continental-absolutista.Quem modernamente pronuncia a palavra história pensa, querendo ou não, em desenvolvimento, civilização, e com isso pensa inevitavelmente no progresso. Disse modernamente porque os gregos não pensavam assim, eles concebiam a história como um ciclo de idas, vindas e retornos, como as estações do ano. A história começa a ter começo e fim como história sacra, segundo o modelo judaico e depois cristão. A fantasia dos juristas oscila entre as duas concepções da história: por vezes a “liberdade” entra e sai da história, em ciclos inexplicáveis, por outras, caminhamos sempre para mais progresso, de modo que um

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jurista hoje precisa apresentar-se como portador do novo, que supera ou, segundo o imaginário típico, revoga, o antigo. Minha perspectiva adota os dois modos típicos de conceber a história, com Hegel e Freud: houve evolução e a “grande narrativa” conta a gênese da modernidade, e chega ao “fim” da história. Mas depois do fim da história, porque não fomos felizes para sempre, o passado que não passa retorna à superfície de frágil civilização da modernidade sempre que crises de identidade precisarem da “certeza” que ficou para trás. Interpreto esse eterno retorno do mesmo com leitura filosófica de Freud, com todos os mal-entendimentos que isso implica, até porque para nós o que é mais importante, as teorias do narcisismo e da sublimação, são temas que não foram esgotados, apenas sugeridos, por Freud.Talvez os oito teoremas do capítulo 17 fiquem um pouco menos abstratos: eles devem ser compreendidos não como história, mas como uma teoria da modernidade. Ainda somos modernos, o que se chama pós-moderno não é um tempo depois da modernidade, mas uma atitude (a atitude reflexiva em relação à modernidade). O primeiro teorema diz respeito à história no sentido de desenvolvimento, progresso do espírito. O capítulo 18 e os próximos, em realidade, apenas desenvolvem este primeiro teorema. O vocabulário que apresenta o “fim da História”, marcadamente hegeliano, na realidade é uma interpretação da gênese da modernidade: “conhecendo seu princípio correto, o espírito entra em sua liberdade, e esse é o final da história: hic Rhodus, hic salta.” Os teoremas 2 a 7 sugerem que depois do fim da história, vivemos no presente absoluto, e por isso remetem-nos à memória, pois a memória é de algo que passou mas continua com a gente aqui e agora. Nosso fazer e pensar atuais sobre tudo que diz respeito à prova mostram que as chamadas páginas viradas da História são ao mesmo tempo passado e presente, pois vêm escritas em papel muito fino, tipo Bíblia, que deixa transparente o que passou. O desenvolvimento continental, embalado pelo princípio patológico, está associado a poderosos traumas, que retornarão em situações de crise. O teorema 2 poderia chamar esse presente absoluto de frágil superfície civilizatória erguida sobre um subterrâneo bárbaro. O teorema 3 associa o maior trauma da modernidade à morte de Deus. Os teoremas 4 a 6 distinguem o desenvolvimento inglês e o continental a partir da capacidade de sucesso ou insucesso de sublimação da morte de Deus, a que correspondem estruturas mais densamente ou menos densamente metafísicas de pensamento. O teorema 7 indica que sinais de memória do passado que não passa estarão permanentemente ativos em nossa tradição à medida que não conseguimos naturalizar ou constituir a liberdade como normalidade. O teorema 8 retorna ao teorema 1, que havia apenas declarado, não demonstrado, o princípio da modernidade, e retorna ainda à parte final do capítulo 16, que propunha como possível saída para os preconceitos que embalam nossas teorias e práticas da prova o retorno ao bom princípio. E ali se diz sobre esse princípio: “é o que põe o lógos em movimento, e não pode ser deduzido logicamente”. Então fica no ar a pergunta: como chegaremos a discernir o princípio sem arbitrariedade? (p. 93). O princípio, ou fundamento, da modernidade, não pode ser demonstrado, só pode ser “escolhido numa confissão de fé” (p. 96).Prossigo com o questionamento: qual é o princípio moderno da prova criminal. Digo questionamento no sentido heideggeriano:

“O questionamento trabalha na construção de um caminho. Por isso, aconselha-se a considerar sobretudo o caminho e não ficar preso às várias sentenças e aos diversos títulos. O caminho é um caminho do pensamento” (Heidegger, 2006, p. 11).

Eis o caminho da “minha teoria”, que me arrisco a compartilhar porque permitiu que eu compreendesse melhor a historicidade da prova e nosso fazer/pensar atuais, e indicar uma saída possível para nossa crise de identidade. Mas teoricamente não invento nada: adapto, com todos os mal-entendidos que isso implica, uma teoria da modernidade disponível no

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mercado, ainda que injustamente pouco conhecida. A seguir elaboro, com essa teoria, temas relacionados: o princípio e a essência da modernidade.

20. O princípio, a morte de Deus e o fim da metafísica

maio 27, 2014

Nosso caminho é curioso, pois o começo está no fim. Antes de começar nossa jornada, peço novamente dobro de paciência para um intervalo mais densamente especulativo. O termo princípio tem sido abusado pelos juristas. Com sua verve iconoclasta habitual, Lênio Streck diz que os juristas brasileiros inventaram a “panprincipiologia”. Resta saber se o que Lênio ensina pode ajudar-nos a sair do atoleiro da crise de identidade da investigação criminal. Lênio Streck e Luigi Ferrajoli juntaram forças e nos dizem: “vem por aqui!”.E nós, para onde vamos? Eu sei que “não vou por aí”. Mas para explicar isso, é preciso filosofar um pouco.O caminho é uma boa metáfora, pois descortina um horizonte, indica a presença de outros caminhantes, mas também porque oferece paisagens. Miremos um pouco a paisagem da página ao lado, no ícone “As três lógicas da modernidade e o duplo vínculo da imaginação moderna”, ensaio da filósofa Agnes Heller que traduzi para estudar, mas também para reportar algumas de suas conclusões sem o dogmatismo das citações. Admiramos ali essa noção de princípio da modernidade:A modernidade não tem fundamento porque nasceu da destruição de todos os fundamentos. Dito de outro modo: ela é fundada na liberdade. Mas a liberdade não se presta bem para o papel de fundamento, então vivemos o paradoxo de um fundamento que não fundamenta.O que chamamos pós-moderno não é um tempo histórico, são antes diversas atitudes em relação ao paradoxo da liberdade, o mais frágil entre todos os fundamentos possíveis. Uma tentação recorrente é recusar o paradoxo, buscar fundamento mais sólido, fundante: o caminho do chamado ‘fundamentalismo’, seguro para uns, mas inseguro para as nossas liberdades. Deve haver saída melhor.Para onde ir? Por que insistir em conhecer o ‘princípio’ do processo criminal moderno?Minha hipótese é que o princípio do processo criminal moderno é o mesmo fundamento frágil da modernidade: ele nos liberta de algo, nos desamarra de fundamentos antigos, sólidos, mas também permite que o fundamento novo faça o chão abrir-se num abismo.A gente sente falta de algum fundamento. Não se constrói uma casa sem alicerces, ou ela desabará um dia. A filósofa emprega o termo princípio no sentido aristotélico, no termo grego arché. Segundo o manual usado no Greek-Latin Institute, na pronúncia da palavra deve-se ler o ‘ch’ com aspiração, semelhante ao termo alemão lachen, e a letra final, eta, como ei. O termo grego é traduzido modernamente no alemão e no inglês como Grund e ground: o princípio grego é literalmente o chão onde pisamos, solo firme onde começamos a erguer a

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construção. Mas o idioma alemão é mais interessante porque constrói a palavra abismo a partir do radical Grund: a falta de princípio é o abismo, Abgrund.Por onde caminhamos, não estamos sós. Outros te chamam: “vem por aqui”. Seria legítimo dizer: cada um vai por onde quiser, para isso somos livres. Mas uma teoria é também um produto que se oferece no mercado e o consumidor espera algo parecido com um ‘certificado de garantia’. Se me dedico a construir esta teoria, além do esquisito divertimento de filosofar, é também para que a gente encontre algum poder salvador contra os perigos, e não sejamos enfeitiçados e atraídos para os abismos que se abrem pelo caminho.IINão se constrói um argumento racional sem acordo prévio, com o destinatário de nossas razões, sobre o sentido de alguns nomes que empregaremos. Um desses nomes é o hoje abusado nome chamado princípio. Sem prévio acordo semântico, vige a luta de todos contra todos, a torre de Babel das linguagens privadas, que com violência se digladiam entre si, porque um falante carrega como verdade, no seu bolso, a definição daquele nome oferecida por seu autor preferido, e o impõe como a verdade daquele nome a seu colega, que ocasionalmente gosta mais de outro autor. Assim, por exemplo, parece violência sofística a crítica de Lênio Streck a Fux, por conta do suposto ‘erro’ de Fux na definição do princípio da presunção de inocência, violência que Lênio Streck, com certa má consciência, procura disfarçar chamando-a de “constrangimento epistemológico”, como se ele fosse o dono da verdade (Streck, 2011). Pois eu penso que nenhum dos dois está certo, mas não é ainda hora de falarmos sobre a função, se é que ela terá alguma utilidade, da presunção de inocência numa teoria da prova.Por isso quero discutir, um pouco, o nome princípio, que será concebido aqui no sentido filosófico, e mais especificamente, por conta da diversidade de sentidos da palavra na história da filosofia, no sentido grego e aristotélico de arché – o primeiro termo, mas também o elemento governativo de tudo.Como primeiro termo, o princípio é aquilo que possibilita o lógos. Por isso, o princípio não pode ser deduzido logicamente. Porque a gente seguiria perguntando infinitamente de onde vem a premissa maior. Castoriadis, no final de sua obra magna A instituição imaginária da sociedade, reporta-se à indemonstrabilidade do princípio em Aristóteles, e lembra que Aristóteles chama de apaideusía a atitude de querer demonstração de tudo.Mas que será apaideusía?A palavra não admite ser traduzida simplesmente por ignorância, como na solução do tradutor brasileiro Marcelo Perine. Hugh Tredennick, na edição bilíngue Loeb, optou por lack of education, com remissão a um rodapé explicativo: seria falta de instrução em lógica, o que sugere o problema enfrentado pelo tradutor, mas não é solução melhor. O ideal seria compreender primeiro o que é paidéia, para então compreender o termo agregado com o chamado alpha privativo: a falta de paidéia. Mas a paidéia é uma instituição imaginária de difícil compreensão. Werner Jaeger escreveu um (excelente) livro para explicar o que significaria a ‘formação’ integral do homem grego, e sugere que o termo moderno mais aproximado seria o germânico Bildung (formação polifacética que não barbariza o indivíduo através da especialização), mas ainda assim temos só uma aproximação (Jaeger, 1989, p. 10). Possivelmente será o grego Castoriadis quem nos dará uma via de acesso a essa compreensão, ao vincular a apaideusía à violência sofística que destrói a racionalidade de qualquer argumento, violência originária do “uso exclusivo e sem piedade da lógica identitária” (Castoriadis, 1987, p. 350), que desconhece como “a razão é um instrumento poderoso, mas é poderosa dentro de seus limites. [pois] Não há verdade última que possa ser estabelecida pela

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razão” (Heller, 1999, p. 230).Deve existir um caminho para conhecer o primeiro termo, indemonstrável, e que uma vez estabelecido permite a existência do lógos (isto é, da argumentação racional).No mapa aristotélico da alma, desenhado rapidamente no capítulo 6 (desta teoria), encontramos o noûs (lê-se nus), a capacidade da alma que apreende o primeiro termo e o último termo, não passíveis de demonstração (Ética a Nicômaco, VI, 1143 a 35ss). Pedir que o noûs seja demonstrado é pedir o impossível (Metafísica, Gamma, 1004 b 22-25), algo que só faz quem sofre de “apaudeusía” (1006 a 4-11). Castoriadis compreende o termo como falta “daquilo que torna o homem humano, e um humano vivendo na cidade” (Castoriadis, 1987, p. 404, nota 13). Essa definição já nos conduz a outra noção importante: viver na cidade envolve ser ‘urbano’ e ter ‘urbanidade’. Não por acaso, a palavra urbano, asteîon, nasceu ao tempo da ilustração grega, no tempo de Eurípides, em que, oposta ao conceito de rústico (agroîkon), tornou-se sinônimo de culto, mas também de educado ou ‘civilizado'(Jaeger, 1989, p. 271). Ter paidéia é ter urbanidade, sem por isso deixar de polemizar, de brigar pela nossa verdade. Apaideusía é o contrário disso.Castoriadis compreende, com Aristóteles, que sem noûs não existe o lógos. O noûs é aquilo que institui, mas também limita, enquadra, como numa moldura (no sentido em que Castoriadis emprega o termo “instituição imaginária”, mas também no sentido heideggeriano de Gestell) todo o lógos, e assim torna possível o discurso racional ou lógico. Isso é verdade ainda hoje, pois não conseguimos começar a conversar com alguém que não compartilha conosco de um solo firme, de um princípio (ou um fim compartilhado, que nesse sentido também opera como princípio) por onde se pode começar.A primeira tentação seria chamar o noûs de intuição. Mas a interpretação que demos para esse ‘termo minado’ de problemas, como o chamou Ginzburg (capítulo 11, p. 57/63 na versão pdf), concluiu que toda intuição é pós-cognitiva, não pré-cognitiva (quem estabelece o primeiro termo do silogismo intuitivo é a totalidade da personalidade: somatório de elementos heterogêneos, que envolve conhecimentos prévios, sentimentos, caráter moral, história, etc.).A segunda tentação é traduzir modernamente o termo por fé. Se não podemos conhecer o primeiro termo racionalmente (isto é com lógos, através do silogismo), talvez possamos pôr fé no primeiro termo, acreditar nele. É assim que a modernidade estabeleceu seu primeiro termo, pois seus documentos de fundação empregam a expressão pôr fé, acreditar, como diz a declaração de independência norte-americana:“We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.” A declaração de independência americana não é só um belo documento, é uma proposição filosófica que traduz um princípio, ou melhor, ‘o’ princípio da modernidade. E esse é de fato um primeiro termo, indemonstrável, porque ninguém consegue provar, logicamente ou cientificamente, que isso é verdade. Querer demonstração do princípio da modernidade é apaideusía, agora já podemos compreender um pouco isso, com Aristóteles e Castoriadis: é pôr-se fora dos limites da paidéia, que significa algo compartilhado e que estabelece o primeiro termo e assim torna possível o lógos, o discurso racional, sem o qual só haverá violência. Não é por outro motivo que Castoriadis também reporta, ao falar do princípio, a semelhança que Aristóteles indicou entre o filósofo e o sofista (Castoriadis, 1987, p. 350), bem como seu elemento de diferença: são as escolhas morais que distinguem o filósofo e o sofista (modernizando por escolhas morais o termo proairesis).Aqui começamos a qualificar um pouco nossa jornada e a fazer algumas escolhas: considero

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essa verdade como algo evidente em si mesmo, e convido aqueles que quiserem seguir por este caminho a pôr fé nessa verdade: o princípio do processo criminal moderno é a livre apreciação da prova. Fora dele, teremos apaideusía, ou seja, violência.Mas esse princípio tem lá suas dificuldades. A começar pela pequena dificuldade de parecer limitado à diferença continental, e não universal. Mirjan Damaska, que leva a sério o estudo comparado dos sistemas de prova, ao falar sobre o ‘futuro’ no final de seu livro, cujo sugestivo título poderia ser vertido como “O direito da prova à deriva”, sugere que:“uma das pedras fundamentais da prova continental moderna – o princípio da livre apreciação da prova – exigirá ser repensada e reconceituada no futuro próximo” (Damaska, 1997, p. 151).O celebrado professor croata da Yale University está certo e errado. Certo ao declarar o princípio moderno da prova criminal, mas errado ao imaginar que ele não seria universal, o que talvez se deva à sua abordagem analítica, e não histórica. Porque o princípio moderno não aparece escrito como slogan ou bandeira de luta na origem, no direito inglês, apenas porque lá não precisou disso, já que se constituiu de modo quase natural. Onde a liberdade não se constitui de modo natural, ela precisa ser escrita na lei revolucionariamente, ou, onde isso não ocorre, precisa subir para a cabeça dos filósofos e dos juristas para ser posta numa teoria. Nós precisávamos haver escrito esse princípio no direito continental para que ele existisse. Evidentemente contribui nisso tudo a ilusão (de todos nós, não só dos juristas) de que aquilo que se escreve na lei não será revogado. Aqui também o fim da história é o (nosso) começo. Foi anunciado por Mittermaier em 1843, explicitamente legislado no código prussiano em 1846 (Langbein, 1976, p. 178, nota 19), e chegou ao processo penal brasileiro em 1941. Demorou um pouco, mas chegou. Mas hoje a gente não sabe se esse princípio sobreviverá.Desde que comecei esta teoria, em junho de 2012, até agora, ainda prefiro acreditar no princípio da modernidade. E nisso percebo que preciso equacionar mais dois termos essenciais ao nosso diálogo: pístis kaì lógos, Fides et Ratio: razão e fé. Peço sua paciência para uma última digressão especulativa, que ficará mais difícil por ser a conclusão telegráfica de temas difíceis que não posso desenvolver.IIINão caminharemos tão longe do mapa aristotélico da alma ao simplificarmos as cinco capacidades racionais da alma numa equação de apenas dois termos: razão e fé. Porque as cinco virtudes dianoéticas de Aristóteles (que estudamos brevemente no capítulo 6) não formam uma “hierarquia epistêmica”, como equivocadamente ensina o mais recente manual disponível no Brasil para facilitação da filosofia aristotélica (Höffe, 2008, p. 44). E não resolve ao platonismo dessa interpretação dizer que Aristóteles “liga a diferença normativa de formas de saber inferiores e superiores com uma medida de tolerância epistêmica que raramente pode ser encontrada” (p. 45), fraseado aparentemente elegante, mas que não diz coisa nenhuma. Pois aí se faz uma leitura superficial das cinco capacidades da alma, enumeradas no livro VI da Ética a Nicômaco, em desencontro com a função do noûs aristotélico, tal como nos apresenta o livro Gamma da Metafísica. Porque a função do noûs é diferente da função das outras quatro capacidades: o noûs conhece o princípio, o primeiro termo, que estabelece o lógos, e assim torna possível a existência das demais virtudes dianoéticas que, cada uma a seu modo, compartilham do lógos. Mas a dicotomia que surge daí – entre o termo que estabelece o lógos e as capacidades que se relacionam de algum modo com o lógos estabelecido – não admite ser tratada em termos da dicotomia moderna do racional/irracional. Então não é ilegítimo modernizar os termos e falar de uma dicotomia entre pístis e lógos, razão e fé.

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A tradução latina dos termos, Fides et Ratio, remete-nos à encíclica de João Paulo II, de 14/9/1998, que proclama os nubentes para um possível casamento feliz, com simpática ênfase no conhecimento proporcionado pelas filosofias, às quais lança um apelo:“O meu apelo dirige-se ainda aos filósofos e a quantos ensinam a filosofia, para que … tenham a coragem de recuperar as dimensões de autêntica sabedoria e de verdade, inclusive metafísica, do pensamento filosófico” (p. 138) “A Igreja acompanha com atenção e simpatia as suas investigações” (p. 139) [porque] “O pensamento filosófico é frequentemente o único terreno comum de entendimento e diálogo com quem não partilha a nossa fé” (p. 136). “Esse terreno comum de entendimento e diálogo é ainda mais importante hoje, se se pensa que os problemas mais urgentes da humanidade [...] podem ter solução à luz duma colaboração clara e honesta dos cristãos com os fiéis de outras religiões e com todos os que, mesmo não aderindo a qualquer crença religiosa, têm a peito a renovação da humanidade” (p. 136).Sábias palavras. Penso que a filosofia não é estranha às religiões, por isso quero explicar bem o ‘fundamento’, ou princípio moderno da prova criminal, porque num dos teoremas apresentados no capítulo 17 escrevi que a modernidade também envolve a morte de Deus. Mas isso não deve ser compreendido como ateísmo, até porque o ateísmo é o outro lado da moeda do fanatismo religioso, não das religiões (sobre o relacionamento da filosofia com Deus, talvez não esteja ultrapassado o célebre dito, referido por Hegel no prefácio à filosofia do direito: meia filosofia te afasta de Deus, mas a filosofia inteira te aproxima Dele (atribuído a Bacon, em De Aug. Sc. i, 5, pelo tradutor Knox, nota 38, p. 304). Segundo João Paulo II, “a Igreja continua profundamente convencida de que fé e razão ‘se ajudam mutuamente'” (Fides et Ratio, 1998, p. 133).Admitindo um possível preconceito racionalista, não consigo compreender na encíclica como funciona essa ajuda mútua. Será que opera em igualdade de condições? Ou um dos termos socorre o outro quando em perigo? Quando é que a razão está em perigo? Quando é que a fé corre perigo? Será que é possível que a fé de quem tem fé possa correr algum perigo? E para quem não tem fé, faz sentido falar no perigo de perdê-la?Desde que a encíclica apela à filosofia, equaciono os termos ‘fides et ratio’, razão e fé, numa filosofia, mais especificamente nos termos das conclusões da teoria da modernidade da filósofa Agnes Heller (mais uma vez, pois me sustento sempre na mesma filosofia, primeiro, porque quero evitar inconsistências no argumento, segundo, porque se trata de uma boa filosofia, contemporânea, que enxerga os temas e problemas, o horizonte, do nosso tempo). Segundo a filósofa, a relação entre pístis e lógos inverteu-se na modernidade. Os antigos tinham enorme facilidade em pôr fé nos fundamentos do mundo em que viviam (o cosmos, os mores, as instituições, o modo de vida). Tinha-se pouca responsabilidade pela fé, mas responsabilidade enorme pelo uso da razão. Porque o uso da razão (compreendida aqui como razão argumentativa que diz: isso não é justo, algo diferente disso é que é justo) destruía os fundamentos sólidos daquele mundo pré-moderno. Mas o uso dessa razão argumentativa, a favor ou contra os fins mais sagrados, é hoje algo absolutamente normal. Só que, ao contrário dos antigos, nós temos dificuldade em ter fé: aqui compreendida não como o oposto de conhecimento, nem algo identificado com a vontade, mas em confronto com a razão argumentativa, no sentido da aceitação de algo num salto de fé (arguing or accepting according to the leap of faith, 1999, p. 231). Nós modernos carregamos responsabilidade enorme por tudo em que depositamos nossa fé. Diz a filósofa que “credo quia non absurdum est” é uma proposição normativa, não empírica, na modernidade. Os fins em que resolvemos acreditar não podem ser absurdos. O absurdo pode ser pragmaticamente absurdo ou moralmente absurdo. Pragmaticamente absurdo é o fim impossível de se alcançar. Para dizer o que é moralmente absurdo, proponho acompanharmos a filósofa na recepção da fórmula

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kantiana, concebendo o absurdo moral como o uso de outra pessoa apenas como meio, ou seja, a instrumentalização absoluta dos outros para chegar aos nossos fins (Heller, 1999, p. 231/232).Mas a equação entre razão e fé apenas se inverteu, porque também o mundo moderno não sobrevive sem pístis, que possibilita o lógos. IVVolto à noção aristotélica de arché, porque um termo difícil deve ser bem esclarecido. Depois de enumerar vários sentidos em que se diz princípio, Aristóteles diz ser comum a todos os significados o fato de o princípio ser o primeiro termo a partir do qual algo é gerado ou é conhecido (Metafísica, Delta, linha 1013a 17-19). Nosso longo caminho pela história da prova procura saber como foi gerado o processo criminal moderno, qual é sua gênese. Adiantei uma proposta: é possível que o processo penal moderno tenha nascido na Inglaterra por volta de 1215, e é possível que esse desenvolvimento tenha sido seu modo normal de desenvolvimento. (Adiante, pretendo conjugar esse princípio ao trauma da morte de Deus, como arché, Grund, ground, talvez com algum abuso da linguagem de Freud: o modo normal sublima esse trauma, embalado por Eros, razão por que se desenvolveu na Inglaterra, e apenas lá, uma teoria dos “Dois corpos do rei”; no continente o trauma permanece latente, para retornar violentamente, em crises de identidade, como acontece hoje. Por isso, esse fundamento seguro, Deus, retorna em sistemas metafísicos populares, como o garantismo de Luigi Ferrajoli, não por acaso como dualismo gnóstico dos dois deuses: o da redenção e o da criação). É possível também que o continente não tenha conseguido realizar esse parto sem graves convulsões, e tenha enveredado pelo caminho patológico, que não por acaso associou-se à instituição da tortura judicial (a tortura para obtenção de prova apta à condenação). Contarei, nos próximos capítulos, a história do processo criminal inglês, desde o nascimento até seu ápice no século 19 (século de ouro do processo penal), após o qual enfrentam eles, como nós, séria crise de identidade. Mas convenhamos: a crise inglesa é bem mais suave que a nossa. Não costumamos olhar nossa imagem no espelho sem narcisismo, mas a televisão faz isso por nós: recente série de reportagens procura as causas do desastre da investigação criminal no Brasil, e aponta números sugestivos: nós conseguimos desvendar 8 ou 9% de crimes de homicídio, muito distantes dos 80 ou 90% de sucesso do Reino Unido. Minha hipótese de compreensão ignora os aspectos sociais, econômicos ou políticos: não é só porque eles são mais ricos que conseguem esse sucesso todo.Mas então por que escrever uma teoria brasileira da prova criminal? Por que não importar logo um inglês para nos ensinar a chave do sucesso?A essa justa objeção respondo com um pouco de experiência: não adianta importar um professor inglês ou, o que tem sido mais comum, norte-americano, porque eles simplesmente não entendem os nossos problemas. Precisamos de autoajuda (brincando um pouco com o termo), e por isso precisamos (mais do que eles de compreender a nossa diferença) compreender a diferença deles, a alteridade (quase absoluta) do outro. Porque eles chegam aqui com toda a simpatia do mundo e dizem: não consigo entender por que vocês não usam a prosecutorial discretion, que aqui aporta pelo nome de barganha ou colaboração premiada. E nossos colegas voltam do encontro com o simpático norte-americano e dizem, em coro: queremos prosecutorial discretion, e com esse fármaco milagroso iremos curar a doença do nosso processo criminal.Aqui é justo realçar essa curiosidade, bem observada por Damaska, sobre a relação entre universalidade e diferenças em processo criminal: seguidamente, uma tradição busca remédios de outra que, na origem, as pessoas já vão abandonando, ou criticando seriamente, seguindo o provérbio de que a “grama do vizinho é sempre mais verde” (Damaska, 1997, p.

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150). A crítica contemporânea ao sistema de justiça norte-americano reside essencialmente na necessidade de domesticar essa tal discretion. Deixo de traduzir o termo, porque em nossa tradição o termo natural “discricionariedade” é inseparável do direito administrativo (francês) e da liberdade gerencial para escolher os meios, quando são dados os fins, algo que não pode existir em direito criminal, nem aqui nem nos Estados Unidos, porque seria puro arbítrio, ou para dizê-lo com Agnes Heller e Kant, algo “moralmente absurdo”. (De passagem, aqui também se mostra o espírito gnóstico de Ferrajoli, que compreende que qualquer decisão criminal seria por natureza sempre injusta, porque os espaços de discricionariedade do juiz seriam inelimináveis).Uma teoria é um trabalho da razão, que por isso não acredita em milagres, inclusive porque milagres são fins pragmaticamente absurdos. Então procuramos pelo princípio na gênese da prova criminal moderna, para ter alguma orientação nesse tema relevante numa teoria da prova. Uma boa chave para início de compreensão está no “duplo vínculo da imaginação moderna”. Porque o nosso ‘problema’ é também de ajuste de técnicas (ou seja, um problema que pode ser mais bem resolvido). Mas não é só isso, ele é um problema que radica na nossa alma, no modo como fomos concebidos, crescemos e nos desenvolvemos. Há que conhecer nossa ‘moldura histórica’, pois ela nos emoldura e limita.Aqui chegando, peço que se olhe um pouco mais para a paisagem ao lado, sobre o duplo vínculo da imaginação moderna. Penso que não se conseguirá minimamente compreender os nossos problemas se aportarmos para essa compreensão apenas a moldura heideggeriana (Gestell). Partindo da compreensão de que somos duplamente emoldurados, tecnologicamente e historicamente, decretar que a solução milagrosa virá em banir o tal princípio inquisitório e adotar o tal princípio acusatório, será puro diversionismo ou solução de problemas apenas no papel, comum aos juristas que ‘doutrinam’, isto é, dão-nos todas as respostas antes de terem feito as perguntas. Simplesmente porque esse universal não é um produto de exportação: ele será sempre a mescla de universalidade e diferença, a investigação criminal tem algo de técnica e algo de ‘alma local’. Precisaremos saber combinar ou manter sob tensão as duas imaginações, e para isso é bom saber em que elas se distinguem (trazendo algo da paisagem para o nosso caminho):A imaginação tecnológica é resolvedora de problemas (problem-solving thinking), orientada para o futuro, para o progresso, para o acúmulo de conhecimentos, para o domínio da natureza e dos outros como meios, relativamente indiferente a tradições e ideologias, praticamente um produto de exportação, razão por que seus produtos são hoje universais empíricos.A imaginação histórica é doadora de sentidos (meaning-rendering thinking), orientada para o passado, para a observação e contemplação desinteressadas da natureza, fortemente impregnada de tradições e forjadora de ideologias, razão por que resiste a projetos de exportação.Se uma constituição como produto tecnológico – para seguir no argumento da filósofa – não “funciona como uma constituição”, e torna-se apenas um pedaço de papel, um sistema de processo penal é algo parecido: podem ser tentadas algumas soluções técnicas inspiradas em outras tradições, mas elas jamais ‘funcionarão’ entre nós como funcionam na origem. Para esticar um pouco nosso exemplo, a prosecutorial discretion (entre nós, a barganha) não funcionará aqui como lá, porque precisaria de uma válvula compatível dada apenas no nascimento: a possibilidade, estritamente liberal, de alguém declarar-se culpado (to plead guilty) diante de uma imputação, e isso fazer precluir, dispensar o seu julgamento. Não admitiremos isso nunca: nossa tradição nos protege quase como crianças, em nome de nossos direitos irrenunciáveis, o que na realidade resulta de algo completamente oposto: em nossa tradição nós alienamos todos os nossos direitos ao soberano, sem resguardar nenhum direito

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natural.VA filosofia é por definição o “comportamento cognitivo no nível dos princípios” (Heidegger, 2009, p. 43). Nesta fase de nossa teoria não há como escapar dela. Mas os teoremas filosóficos não aparecem aqui de graça. A gente só começa a procurar pelo princípio, ou especular sobre ele, quando ele corre perigo, e já não se encontra alicerçado naturalmente, quando o espírito de negação da dinâmica da modernidade ameaça a casa de cair, e assim nos levar ladeira abaixo, ou para o abismo.No caminho, vejo juristas decretarem que o princípio da modernidade, a liberdade, aqui qualificada como livre apreciação da prova, é o Outro, o Inferno, o Errado, a causa de todos os males. Exemplifico a negação do princípio moderno com Lênio Streck e Luigi Ferrajoli, o mais brasileiro dos juristas italianos. Para o pai da instituição imaginária denominada garantismo:“O abandono das provas legais em favor da livre convicção, do modo como foi concebido e praticado pela cultura jurídica pós-iluminista, correspondeu a uma das páginas mais amargas e intelectualmente deprimentes da história das instituições penais. A fórmula da ‘livre convicção’ que por si mesma expressa apenas um trivial princípio negativo [...] foi acriticamente entendida como um critério discricionário de valoração, substitutivo das provas legais [...] E terminou por transformar-se em um tosco princípio potestativo, idôneo para legitimar o arbítrio dos juízes” (Ferrajoli, 2010, p. 133-4).Se toda casa precisa de um alicerce, só se pode recusar um princípio encontrando um substituto. Na origem desta teoria da prova, comecei um projeto de compreensão do garantismo como o “Evangelho de Luigi Ferrajoli”. Minha intuição era que Ferrajoli retira a liberdade dos modernos da posição de fundamento e retorna a Deus. Ferrajoli, que foi juiz, retrata na sua teoria a autodeificação que constitui a autoimagem de juízes também no Brasil, e constrói um sistema metafísico popular. Mas um Deus só é pouco para Ferrajoli, que retorna – obviamente sem o saber – ao dualismo gnóstico: ele quer ser o deus da redenção que é só bondade. Nessa duplicação, Ferrajoli empurra para o acusador público a outra parte da divindade: somos o deus da criação e por isso somos causadores do mal. Nesse passo, Luigi Ferrajoli, no espírito das religiões gnósticas, inverte todos os valores do mundo criado. O criminoso transforma-se na vítima que o juiz garantista deve socorrer contra a maldade do criador. A teoria do garantismo penal de Ferrajoli é uma instituição imaginária poderosa, que leva o desejo de morte da modernidade ao paroxismo, a seu momento culminante, e por isso é tão interessante como objeto de compreensão, ainda que seja um sistema metafísico medíocre e sequer possua uma teoria consistente sobre a prova.A filosofia de Lênio Streck caminha no mesmo sentido, embora por trilhos aparentemente mais sofisticados. Buscando inspiração em Heidegger, Gadamer e Dworkin, Streck adverte a comunidade jurídica, com a empáfia característica de sua retórica, de que:“a livre apreciação da prova [é] o ovo da serpente da manutenção de um sistema de gestão da prova ultrapassado” … “dizer que a livre apreciação da prova é melhor que o modelo da prova legal é, no mínimo, falta de visão paradigmática (e, portanto, histórica)” (no Consultor jurídico, 15/4/2013: Como assim “cada um analisa de acordo com seu convencimento?”).Segundo Lênio, apreciar livremente a prova é sinônimo de ser inquisidor, ter fé em algo que não existe, a tal “verdade real”; é examinar a prova sob um paradigma antiquado que distingue sujeito e objeto, fazendo do sujeito e de sua consciência um sujeito solipsista, o que em direito significaria um tirano arbitrário. A solução para isso tudo estaria em receber, através do sistema acusatório, o “paradigma que proporcionou a grande revolução no campo

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da filosofia: o giro linguístico-ontológico, pelo qual os sentidos não mais se dão pela consciência do sujeito e, sim, pela intersubjetividade, que ocorre na linguagem. Sendo mais simples: trata-se do fenômeno da invasão da filosofia pela linguagem” .Mas Lênio Streck, como Ferrajoli, não tem uma teoria consistente da prova criminal. Não li a vasta obra do jurista, mas procurei onde sua teoria da prova deveria estar, isto é, no seu livro “O que é isto – decido conforme minha consciência?” (Streck, 2013). Em vão, porque em 120 páginas o autor não nos apresenta mínima orientação sobre o que significa o princípio acusatório segundo Lênio Streck. O livro estica o artigo com exemplos da casuística que nunca se casam com a filosofia do autor, e observações ligeiras, quase como aforismos, sobre “que tempos vive(ncia)mos…”, que forjam longos excursos românticos contra a mediocridade de nosso público, de nossos juristas e juízes. Ninguém por aqui lê os livros certos, e quando os lê, não conhece o idioma original e, se lê no original, não adianta, ninguém entende direito. E o autor ainda pergunta: “por que escrever livros?” (Streck, 2013, p. 83).Com a morte de Deus como chão, solo firme, ground ou Grund, seu lugar é ocupado pelo mais frágil dos fundamentos, a liberdade, que além de tornar possível o abismo (Abgrund) ainda por cima é algo paradoxal, por ser um fundamento que não fundamenta. Assim podemos compreender a revolta de Lênio Streck e Ferrajoli contra a liberdade: para eles, o fundamento da modernidade seria culpado pela tirania dos juízes que decretam o resultado de seus julgamentos como bem entendem. Mas culpar a liberdade pela tirania significa apenas reconhecer o fundamento da modernidade: porque em liberdade podemos escolher livremente a tirania, assim como podemos escolher a auto-escravização à razão dos outros, ou a seus fundamentos.Não será casual que Lênio Streck recepcione com satisfação a ‘vasta’ obra de Luigi Ferrajoli. Para Lênio Streck “a crítica do direito brasileiro não seria o que é sem a sua ‘teoria garantista'” (Streck et al. 2012, p. 59). Mas a verdade é todo o contrário disso: a prática da justiça criminal brasileira não seria o fiasco que é sem a ajuda poderosa do jurista italiano, que não proporciona crítica alguma, porque fundamenta a instituição imaginária dominante, comprada pelos juristas brasileiros porque Ferrajoli lhes oferece aquilo que desejam: satisfação para fantasias de poder.VIEmbalado pela imaginação tecnológica, Lênio Streck pensa que existiria apenas um paradigma filosófico que nos daria acesso à verdade, e todos os outros seriam “encobrimento do ser” (para falar um pouco na linguagem de Heidegger). Para evitar esse primeiro erro, discuti brevemente, com o filósofo que o inventou, o termo paradigma no capítulo 7 (19/11/2012, p. 40-46 na versão pdf). O paradigma único só faz sentido nas ciências físicas, e ainda assim, nos momentos de desenvolvimento da ciência normal. Na filosofia e nas ciências sociais, a constituição espiritual de nosso tempo é de pluralidade de paradigmas, e nessa pluralidade o paradigma da linguagem joga apenas o papel do “mais imperialista” dos paradigmas (na expressão da filósofa). À objeção de que esta é uma crítica externa ao ponto de vista da linguagem na filosofia, adiciono a autocrítica de um partidário do “giro linguístico”. Richard Rorty, ao rever depois de vinte e cinco anos seu depoimento original sobre o poder da linguagem, que situaria os filósofos do paradigma da linguagem num lugar privilegiado na história da filosofia, diz que essa opinião ressoa apenas como o que de fato era: a tentativa de um jovem filósofo de 33 anos de convencer a si mesmo de que tivera a sorte de nascer no tempo certo (Rorty, 1992, p. 371).Para compreender o fenômeno complexo e heterogêneo da prova criminal, o mínimo que se pode dizer é que Lênio Streck escolhe mal seus companheiros de caminhada. Já expliquei por que Gadamer não tem nada de relevante a nos ensinar, em discussão sobre os preconceitos

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(capítulos 12 e 13, p. 63/73 da versão pdf). Permito-me dedicar breves linhas à história da metafísica contada por Heidegger.O núcleo da história da metafísica, para Heidegger, é o poder concebido como domínio sobre a natureza e sobre os outros, e por isso sua história é sinalizada principalmente nos personagens Protágoras-Descartes-Nietzsche. Segundo Heidegger, toda essa longa história seria a história de encobrimento da verdade do ser como um todo e dos seres vistos em particular. Mas Heidegger mesmo nos recorda como sua história é radicalmente unilateral (e não se pode criticar isso numa filosofia, porque um conhecimento eclético ou pretensamente multilateral já não será filosofia, mas isso que se ensina nos manuais). Lá pelo final de suas lições sobre Nietzsche (quando relaciona Nietzsche à metafísica), diz o filósofo: no início da metafísica algo foi decidido sobre a essência da verdade como desencobrimento, mas “essa essência [ao longo dessa história] se retrai mas jamais chega a desaparecer” (em paráfrase, pois cito do inglês, 1991, III, p. 238).Essa observação rápida de Heidegger, “mas jamais chega a desaparecer”, para nós é essencial, porque aí está contida toda a história da metafísica pelas ‘margens’. Mesmo na perspectiva unilateral de Heidegger, em todo o desenvolvimento da metafísica sempre houve ‘espaços’ marginais por onde a verdade do ser como um todo, ou dos seres, ainda se descortinava sem o dito “encobrimento”. E nos ocuparemos apenas com esses espaços marginais, porque o fenômeno que nos ocupa é heterogêneo. O conhecimento e o julgamento da prova criminal não mobilizam apenas a Razão governativa dos sistemas metafísicos, mas também aquilo que a história mais densamente metafísica do pensamento ocidental marginalizou como as ‘partes baixas’ da alma, por exemplo, os sentimentos. Por isso, pouco nos interessa a história do ‘poder’ contada por Heidegger, pois nada de útil encontraremos em Protágoras, Descartes e Nietzsche para iluminar nossos obscuros caminhos (pelo menos não no Nietzsche da metafísica da ‘vontade de poder’, mas admitamos que esse Nietzsche é possivelmente uma invenção de Heidegger).Mas é interessante perguntar, com Heidegger: que acontece depois do fim da metafísica? Em minhas palavras, diz o filósofo que toda a conversa sobre o fim da metafísica não pretende sugerir que no futuro não existirão pessoas pensando metafisicamente, ou até mesmo pessoas que construirão sistemas metafísicos, e muito menos que a humanidade não viverá mais sob o fundamento metafísico. O fim da metafísica é pensado como o começo da “ressurreição” do conhecimento sob formas diferentes, que se nutrirão da história exaurida da (antiga) metafísica, que assume a posição puramente econômica de fornecer “matérias primas” com as quais um mundo de conhecimentos poderá ser construído novamente (Heidegger, 1991, capítulo 22, livro IV, p. 148).Penso que a inversão de olhar proporcionada pela filósofa Agnes Heller aqui também nos será essencial: compreenderemos melhor a história da metafísica trocando o termo ‘fim’, que sugere o fim da vida, envelhecimento, exaurimento de energias, e depois a morte, pelo termo ‘nascimento': o nascimento da modernidade, enquanto tal, envolve a morte de Deus como Grund, ground, arché, mas também envolve filosofar sem pressuposições, e construir, com Hegel, a primeira teoria abrangente e compreensiva da modernidade, que de fato começa a obra de destruição da metafísica (Heller, 1999). Assim que a modernidade nasce como destruição de todos os fundamentos, é natural que também a metafísica seja destruída. Mas é preciso completar a história contada por Heidegger, pois o ‘fim’ da metafísica não ocorre com a consumação da metafísica por Nietzsche (que opera apenas a inversão do platonismo, e ainda assim, a ser finalizada por Freud): a obra de destruição adentra pelo século 20 e só termina quando a filosofia destrói o último bastião em que a metafísica reinava absoluta, isto é, na ciência, e isso se dá apenas com Thomas Kuhn e sua teoria dos paradigmas. Também na história do poder, a rigidez metafísica só é destruída quando Michel Foucault explora a

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pluralidade dos espaços do poder, a “microfísica” do poder.Uma teoria da prova deve ajudar-nos a caminhar com segurança em dois momentos diferentes: na colheita da prova e no julgamento da prova. Nesses dois momentos, a ‘microfísica’ do poder é diferente. No momento de julgamento da prova podemos ver a imagem tradicional, poderosa, do rei: Vigiar e punir, de fato, inspira-se no magistral estudo de Kantorovicz sobre Os dois corpos do rei, e a partir desse olhar renuncia “à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do contrato ou ao da conquista” para examinar o poder como se fosse uma “anatomia política”: “A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna” (Foucault, 1986, p. 30-31). No julgamento, a prova é de fato um ‘retrato’ do rei ou sua radiografia: para o bem ou para mal, porque “um fraco rei faz fraca a forte gente”, como cantou o poeta lusitano. Como retrato fiel do poder, não só o seu poder mas também a impotência do rei (hoje, do Estado) transparecem retratadas nos julgamentos criminais. Por isso o historiador Marc Bloch (e antes dele Montesquieu) não exagerava quando dizia: “Como é que os homens eram julgados? Não há melhor pedra de toque do que esta para [se conhecer] um sistema social” (Bloch, 2009, p. 423).No momento de colheita da prova, a situação é bem outra, pois que o rei aí está nu, ou pelo menos, fragilizado: quem tem poder é o outro, o criminoso. Praticar um crime é uma afronta ao poder, mas não deixa de ser um exercício de poder. O criminoso pratica um crime porque pode cometer esse crime. E evidentemente tentará praticar esse poder sem ser descoberto: o que envolve um relação de poder em relação ao saber fazer, o know how daquele crime: ele sabe como o praticou, nós não sabemos. As tradições se apartam em relação a esse poder: nossa tradição confiou por séculos na confissão, que não dispensou a tortura. Mas que se passa quando se proíbe a tortura? Descobrimos que não aprendemos como “o bom Deus está nos detalhes”, descobrimos que não sabemos investigar. Ainda hoje os delegados saem da academia de polícia aprendendo a ‘ouvir’ pessoas, e nada mais. E então não surpreende nossa taxa de sucesso de 8 ou 9%.Mas nesses dois momentos existe algo em comum: que nossos juízos jamais são ‘puros’ como pretenderia uma metafísica densa: são juízos misturados com as ditas ‘partes baixas’ da alma. O julgamento criminal mobiliza sentimentos, e por isso – já advertia Aristóteles – não pode existir aqui uma ciência. Para compreendê-lo, é preciso caminhar por vias marginais da história da metafísica: todos os filósofos que se ocuparam dos sentimentos o fizeram por trilhas marginais nessa grande narrativa de poder, inclusive Descartes que certa feita dedicou-se às “paixões da alma”, mas quase como se fosse uma distração do trabalho sério, isto é, metafísico. Por isso iniciamos nossa caminhada, e ainda seguiremos, com Aristóteles, cuja Retórica nos apresenta na história a primeira teoria de sentimentos.Outro equívoco sério da recepção romântica de Heidegger, nos caminhos jurídicos, está na ideia de que depois do fim da metafísica teria ‘morrido’ o sujeito, ou sua consciência (ou, segundo a proposta de Lênio Streck: que o sujeito solipsista da modernidade deve morrer para nascer o sujeito não-solipsista do paradigma da linguagem). Mas dizer que a consciência moral do indivíduo não existe mais é algo que não se sustenta à crítica do senso comum, e precisa ser destruído pelo riso libertador da ‘mulher da Trácia’, pelo espírito da comédia que desafia soluções que só existem no papel. Porque, quando erramos, mesmo sem intenção, mas por simples culpa, ainda sentimos um pouco de ressaca, e isso é um fenômeno positivo de que a consciência ainda existe. Heidegger não ensina nada sobre a consciência moral, porque sua filosofia especulativa não lida com problemas morais. A consciência é um fenômeno que possui sua historicidade: nasceu em determinado tempo (precisamente na Grécia antiga, com Sócrates) e por ser produto histórico pode desaparecer: mas isso não é um progresso. Porque o Outro absoluto da consciência é a vergonha. O retorno de uma civilização moderna à

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regulação absoluta pela vergonha é uma ocorrência típica do totalitarismo. No mundo soviético, baniu-se a consciência (assim como deixaram de vigorar os dez mandamentos) em nome da vergonha, e em decorrência disso denunciava-se o pai ou o filho ou o amigo como ‘traidor’ do regime, praticamente sem remorso (sentimento típico de que ainda vigora a consciência moral):“O desenvolvimento da consciência, ou moralidade propriamente dita, foi o único progresso que o comportamento ético humano conquistou no curso da história” (Heller et al. 1983, p. 208). Mas:“Na moralidade bolchevique, algo extraordinário se passou. Se as pessoas não internalizam as normas morais e tornam-se incapazes de aplicá-las por si mesmas, individualmente, estamos autorizados a falar da reintrodução da cultura da vergonha. A ética bolchevique produziu uma cultura da vergonha, pela simples razão de que as normas não eram aplicadas individualmente, e tinham de ser aceitas sem qualquer reflexão. A vergonha funcionava, então (ainda que apenas para os comunistas fiéis) como se fosse a consciência” (Heller et al. 1983, p. 209)Um último parêntesis: Lênio Streck também equivoca-se, filosoficamente, em imaginar que a filosofia moral tenha sido engolida pelo direito, e não faz diferença que diga isso ancorado na autoridade de Habermas (Streck, 2012, p. 76). Que a moralidade seja um ‘momento’ da ética já fora um desenvolvimento da filosofia de Hegel, cuja teoria da modernidade (a primeira teoria abrangente e compreensiva da modernidade) não por acaso chamava-se ‘filosofia do direito’. Mas as gambiarras de Hegel para a sobrevivência da modernidade comprovaram-se frágeis: a negação pode ir tão longe até o ponto de destruir a modernidade e seu fundamento: a liberdade. O totalitarismo do século 20 prova isso, não se precisa de demonstração filosófica. Mas demonstrar esse argumento foge demais ao nosso foco, e será suficiente para cobrir o vazio indicar ao leitor uma boa Ética geral (da filósofa Agnes Heller, General ethics, 1988, já há tradução para o espanhol, Centro de estudios constitucionales, 1995; em seguida, A philosophy of morals, 1990, ainda só em inglês).Nosso caminho será marginal, também porque não elabora uma fantasia de poder. Todo romantismo exacerbado é uma fantasia de poder que nasce do narcisismo secundário, de onde nasce também o desejo de morte. Por isso Carl Schmitt concluiu com acerto, ao examinar o fenômeno romântico na política, que o romantismo está sempre a serviço de energias que não são nada românticas (Schmitt, 1986, p. 162). E desde que comecei com o poeta, encerro com ele, dizendo que:

Não, não vou por aí! Só vou por ondeMe levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós respondePor que me repetis: “vem por aqui!”?

(José Régio, Cântico negro)

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21. A velha-nova sociedade feudal

junho 21, 2014 I – Aproximação

Escrevi em outro capítulo que notas autobiográficas numa teoria cabem, com muita parcimônia, nos rodapés. Mas abro uma exceção, para justificar a extensão que terá este capítulo e a retomada, em nossa narrativa, do que escrevi sobre o ‘princípio gnóstico’ no projeto anterior, de crítica do garantismo (O Evangelho de Luigi Ferrajoli). No capítulo 21, que já havia começado a redigir, apareceriam alguns constituintes da sociedade feudal, mas num quadro de pinceladas ligeiras, meio impressionista, como cenário da morte de Deus enquanto fundamento do julgamento criminal, evento que se localiza no final da segunda idade feudal, já nos primórdios da nossa modernidade, por volta do início do 1200 de nossa era. Mas fato recente, por capricho ou necessidade do destino, deslocou minha câmera fotográfica da panorâmica para o close-up, imagem que emprego lembrando o elogio de Carlo Ginzburg ao historiador Marc Bloch, que nos serve de cicerone nessa empreitada: Ginzburg diz que Marc Bloch conseguiu fugir do dilema entre a ‘grande narrativa’ e a ‘micro-história’ por sua habilidade no manejo da câmera, das cenas panorâmicas para o estudo do detalhe, em close-up (Ginzburg, 2012, p. 211). Se o jurista é por excelência o ‘animal imitador’, como tão bem o definiu Gabriel Tarde (1912, p. 429), o escritor de uma história também tem lá seus modelos: aprendo com Ginzburg, que aprendeu com Marc Bloch.Tive recentemente oportunidade de observar de perto a violência que abate nossa sociedade, numa de suas formas especialmente perversa, a do ‘justiçamento’, o que me convenceu da utilidade de expandir o cenário de nosso personagem, o processo criminal moderno, em capítulo isolado, e também de propor, adiante, uma discussão sobre as verdades: a verdade jurídica ou formal (a única que ‘transita em julgado’) e a verdade material, natural, real, ou, por fim, histórica. Tipos de verdade cuja confusão gera problemas de difícil solução, entremeados, hoje, no slogan do chamado ‘direito à verdade’ e à memória. O problema da verdade histórica em confronto, ou oposição à verdade do julgamento criminal, proposto por Ginzburg a propósito de erro judiciário no julgamento de Adriano Sofri, deve ser mais bem equacionado a partir de sua outra face: quando o dito erro judiciário não se dá por condenação, mas por absolvição ou anistia. Como se resolve? Terá o historiador, nessa condição, direito de acusar? E de condenar alguém? Terá o biógrafo esse direito? Podemos resolver contar a história de nossas vidas imputando crimes aos outros? Deixo o problema em aberto, por enquanto, pois examino aqui um dos fenômenos da violência contemporânea, o ‘justiçamento’, que se divide em dois tipos: justiçamento pelo povo e justiçamento pelo poder (policial-militar). Os dois tipos são sintomas da mesma doença. Percebi que as ‘doenças’ que buscamos curar na colheita e no julgamento da prova criminal são o que o vocabulário clínico chama de epifenômenos. Na verdade, o ‘corpo do rei’ está fraco (para seguir empregando a metáfora que norteia o magistral estudo de Kantorowicz). E “um fraco rei faz fraca a forte gente”. Levado a visitá-lo em unidade de terapia intensiva, obtive um começo de diagnóstico: o rei sofre de uma espécie de choque séptico: a violência o abate de modo generalizado. Discursos abstratos sobre direitos humanos, ainda mais quando carregados de preconceitos e ideologias politicamente corretas, não apenas servem para quase nada, como até fragilizam ainda mais o doente. Principalmente porque tais ideólogos não costumam ser autênticos: com tais discursos ganha-se prestígio, poder, viagens internacionais, mas na hora de enfrentamento da violência que nasce do crime, onde estão? A fragilidade dos discursos de direitos humanos radica na incapacidade, ou falta de vontade, de compreender a

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violência. Este intervalo servirá como cenário para o nosso foco, a gênese do processo criminal moderno, e também como aproximação ou tentativa de compreensão da situação real de saúde do corpo do rei.Tive uma intuição teórica, em 2012, de que uma das causas do estado de saúde do rei vem do maltrato que ele mesmo desfere às forças policiais que deviam servi-lo, e servindo-o bem, salvar-nos, ou minimizar a violência de que somos vítimas. Ali escrevi, a propósito do fim da greve de policiais e bombeiros na Bahia e no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2012, que:“A Polícia Militar, silenciada por meios ilícitos e sem ter chegado a um justo acordo de paz, tende a ressentir-se da própria democracia, sem perceber que ela tornou-se um império que permite que os mais iguais sigam recebendo remunerações mais possíveis, e lhes sobre apenas o impossível. Esse ressentimento – quando se vive na linha tênue de fronteira da miséria, retorna agressivo no acréscimo gradual da violência policial contra nós, cidadãos. E mal podemos reclamar se também somos responsáveis por essa violência”.Ao remeter o leitor a esse texto (Aydos, 2012), peço que ignore o argumento ‘constitucional’, que ficou meio ‘erradinho': pecou por não começar pela interpretação do significado da denominação, com a qual o jurista resolvedor-de-problemas, e agora também o Supremo Tribunal, dão por resolvido o dilema. Devia ter proposto inicialmente que a definição dos policiais militares como “militares dos estados” se tornou letra morta de uma lei que perdeu o espírito, e permanece no corpo da Constituição como um fantasma, impondo aos policiais essa condição de fantasmas: que não têm carne, vida, sangue, filhos, contas, etc. A omissão desse começo confere ao argumento a justa censura de sofística: minha única justificativa é que errei na lógica, mas não no conteúdo: poderia ter melhorado o argumento, se não tivesse lido a Constituição pelo site do Planalto, o que favorece a interpretação ‘às tiras’ ou recortes. Talvez algo mais profundo explique minha negligência: o texto foi escrito mais com a lógica do coração que da razão: a alma sindicalista do autor enxergou na Constituição o que quis, e não leu o que não queria. Vi em 2012 a doença no seu nascimento, antes do corpo ser completamente tomado, e murmurei um ‘protesto tímido': isso não vai terminar bem, isso vai sobrar para os cidadãos mais fracos, sem poder, sem amigos, sem conexões, sem noção de seus direitos. A experiência que deslocou minha câmera fotográfica da panorâmica para o close-up não modifica a conclusão daquele texto. Embora não seja a única causa, pois o fenômeno da violência é bem complexo, um constituinte poderoso da violência que sofremos é o maltrato que transforma em escravos as patentes iniciais de polícia militar, praças, soldados e bombeiros, por conta de governadores autoritários que, em nosso nome, mas sentados confortavelmente na cadeira do poder, em primeiro lugar, os agravam e ofendem em sua condição humana mais primária: o nível da mera sobrevivência. E quem paga por isso já não é o ‘corpo do rei’, mas aqueles corpos, ainda mais fragilizados, de seus súditos mais fracos. Nosso quadro geral de saúde civil é de impotência generalizada diante da dupla violência: a que nasce no universo do crime, e aquela que retorna, sobre o corpo dos cidadãos inocentes, a partir do universo da força e do poder.

II – O título: a velha-nova sociedade feudalO nome ‘refeudalização’ tem sido empregado para compreender a violência do nosso tempo. Proponho um nome um pouco modificado, não por desejo fútil de originalidade, mas porque me convenci, com a leitura da teoria da modernidade de Blumenberg, em sua última conclusão, que “a história não conhece repetições do mesmo; ‘renascimentos’ são a sua contradição” (Blumenberg, 1983, p. 596). O Renascimento é bom exemplo disso: o que acontece lá é que os atores sociais buscam compreender os dilemas do presente, tomando consciência de sua historicidade, a partir de precedentes que podem servir como ‘analogia’.“O Renascimento foi a primeira era que escolheu para si mesma um passado. Sartre

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corretamente viu nisso um qualificativo da liberdade …. Escolher um passado significa que as pessoas ou as classes de determinada época selecionam a partir da história do passado e de seus mitos, interpretados historicamente, aqueles em que encontram afinidades, sejam elas positivas ou negativas … Mesmo que haja alguma verdade no dito de Hegel de que nada se aprende com a história, é preciso adicionar a isso que as pessoas jamais seriam capazes de fazer história sem acreditar que aprenderam algo com a história, o que fazem justificando suas ações e decisões por referência a instâncias similares extraídas do passado” (Heller, 1978, p. 90-91).Será verdade que cada geração escolhe seu passado?Acredito que sim. Mas existem diferentes modos existenciais de escolher o passado. Um deles é o modo romântico, de fuga do presente, para o sonho impossível de viver naqueles tempos (sempre mitificados, daí a ideia dos ‘anos dourados’). Nosso tempo é de renovado romantismo: jovens, nascidos após a libertação, que começou em 1984 e consolidou-se com a Constituição de 1988, cultuam a ditadura militar porque naqueles tempos se podia ser herói (em essência, é a mesma nostalgia pela ‘grandeza’, perdida para a ‘prosa do mundo moderno’, do romantismo alemão do século 19). Também há muita inautenticidade nessas escolhas: pessoas que conhecemos hoje como defensores de ideais politicamente corretos, se numa espécie de máquina do tempo fossem transportadas para a ditadura, poderiam revelar-se bem diferentes da imagem que nos vendem. Outro modo ocorre na escolha do passado clássico, grego e romano, pela Renascença: pois que o homem renascentista escolhia o seu momento, inspirando-se no passado para aprender. Nesse sentido ‘renascentista’ podemos escolher o passado feudal. Não porque gostaríamos de viver naquele tempo, que em nosso imaginário só tem barbárie, violência e arbitrariedade, mas porque escolhemos viver o nosso tempo e para isso queremos compreendê-lo. Então buscamos luz em períodos do passado que apresentam ‘afinidades’ com o nosso tempo. O período que mais afinidade apresenta com o nosso é o tempo histórico da sociedade feudal. Mas que significa ‘sociedade feudal’?Eu não me arriscaria a (re)inventar esse passado sem a compreensão que obtive com Marc Bloch, cujo estudo, A sociedade feudal (adiante abreviado nas referências por SF), recomendo, pois além do mérito acadêmico pode ser lido como um grande romance. Como substituto do nome refeudalização, proponho o nome composto ‘velha-nova sociedade feudal’, inspirado no título de Theodor Herzl sobre a velha-nova Terra. Porque aquela velha sociedade feudal não renasceu, já que renascimentos não existem. Mas do mesmo modo como a configuração social feudal representou algo novo na história, naquele tempo, a afinidade que percebemos com ela, hoje, indica que existe algo novo também para nós. A melhor palavra para isso talvez seja o combinado empregado por Herzl: nossa sociedade é velha-nova porque essas duas configurações, vistas sob o ângulo espiritual (e existencial) de nossa câmera fotográfica, produzem retratos extraordinariamente parecidos.

III – A alma da sociedade feudal Fantasiamos demais sobre o passado, e costumamos dar à nossa fantasia um nome que parece autoexplicativo: os homens e as mulheres da sociedade feudal, para nós, seriam bárbaros, cruéis, insensíveis, por isso viveram no tempo que o inglês chama de dark age, no escuro, na idade das trevas. Não tenho conhecimento científico, no sentido biológico ou da neurociência, sobre a mente humana em períodos tão antigos, então suponho, por hipótese, que a constituição mental das pessoas daquele tempo era mais ou menos igual à nossa. Mas o que constituía a sua essência, que homem era aquele, como era sua alma?Aqui a primeira diferença: Deus não havia morrido, ainda! Para nós, modernos, Deus morreu, porque se tornou assunto da ordem eminentemente particular do indivíduo. Então temos dificuldade em conceber a diferença de um tempo em que “a mentalidade religiosa favorecia,

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à sua maneira, a fusão das camadas sociais” (SF, p. 113). Ou mais radicalmente: Deus era o único elo que vinculava os diferentes estratos de uma sociedade carente de Estado. Também o ‘nacionalismo’, até mesmo do idioma, era naquele tempo um sentimento desconhecido (SF, p. 66).Nosso quadro será necessariamente impressionista, porque “não existe qualquer instrumento que permita avaliar a influência do meio circundante sobre a alma do homem feudal” (SF, p. 97). Mas esse quadro de pinceladas ligeiras tem a vantagem de impedir que caminhemos pela via falsa das histórias recortadas, como costumam ser as histórias do direito. Pois “a ficção de trabalho que nos leva a recortar num ser de carne e de sangue esses fantasmas: homo oeconomicus, philosophicus, juridicus, é sem dúvida necessária, mas apenas suportável se recusarmos deixar-nos enganar por ela” (SF, p. 81).É possível que minha descrição exagere essa característica, pois tenho olhos para o nosso tempo. Mas pode-se resumir a alma do homem feudal dizendo que é um homem que tem medo. Emprego o pronome masculino inclusivo do gênero feminino, porque, embora existissem de fato, na idade feudal, mulheres poderosas que administravam castelos, a hierarquia da sociedade era masculina, e dividida em três grupos humanos: “aqueles que oram, aqueles que lutam e aqueles que trabalham”. Dado que “o orgulho é um dos ingredientes essenciais de toda consciência de classe” é útil registrar que o cavaleiro considerava sua missão superior à dos clérigos, e obviamente, superior à dos que trabalhavam, “tanto mais que a guerra, para eles, não era apenas um dever ocasional: para com o senhor, para com o rei, para com a linhagem. Ela representava muito mais: uma razão de viver” (SF, p. 345).O homem da primeira idade feudal, com termo inicial por volta do ano 800 de nossa era, não era só temente a Deus, ele tinha um medo generalizado de tudo. A Europa vinha do desmantelamento de antigos impérios e do saque diuturno por invasores muçulmanos, húngaros e pelos chamados “pagãos do Norte” (ou normandos, cujo nome provém de Nordman, homens do Norte), “cujas incursões, desencadeadas bruscamente cerca do ano 800, durante um século e meio, fariam gemer o Ocidente” (SF, p. 34). A sociedade feudal é uma sociedade que vive em “estado de perpétuo alerta”. Por conta de invasões e saques, a vida e os bens materiais não encontravam segurança, e verificavam-se grandes movimentações de população, em geral buscando refúgio nas montanhas (SF, p. 64). O medo do saque e da morte violenta aproximava as populações, mas ainda assim, naqueles tempos, até as regiões de maior concentração de pessoas, possuíam fraca densidade populacional … “Por toda parte havia espaços vazios, matagais, florestas, que ofereciam percursos adequados às surpresas” (SF, p. 77). A civilização feudal aparece para os modernos como um paradoxo de universalidade e particularidades extremas. A universalidade era favorecida pelo uso do latim como língua culta, as particularidades eram fortemente favorecidas pelas dificuldades de comunicação. “Uma carta escrita por Gregório VII, em Roma, em 8 de dezembro de 1075, chegou a Goslar, junto do Harz, a 1º de janeiro do ano seguinte: o seu portador tinha percorrido, em linha reta, cerca de 47 quilômetros por dia; na realidade, evidentemente, muito mais” (SF, p. 85). O único serviço de transportes de cartas mais ou menos regular unia Veneza a Constantinopla, e era assim praticamente alheio ao Ocidente (SF, p. 88). (Hoje, o latim como linguagem universal deu lugar ao inglês e ao youtube, que modificaram nossa noção de Espaço, com a noção de ciberespaço que nos situa imaginariamente em todos os lugares: mas surpreendentemente não compreendemos quase nada dos outros, e nos voltamos para nossa particularidade, com redobrada violência: veja-se o retorno do antissemitismo violento na Hungria, por exemplo). A economia era pré-monetarista: “a penúria de espécies [de moeda] era agravada pela anarquia na cunhagem das moedas, resultado, ela própria, ao mesmo tempo do retalhamento político e da dificuldade das comunicações” (SF, p. 90). A natureza, para o

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homem feudal, não era domesticada e suave para ser admirada como paisagem, como se tornou para a sensibilidade moderna: “as noites [eram] mal iluminadas, … o frio, mesmo nas salas dos castelos, mais rigoroso”. A mortalidade infantil era enorme, os lutos quase normais. “Quanto à vida dos adultos, mesmo independentemente dos acidentes de guerras, era em média relativamente curta” (SF, p. 98). “Aquele mundo .. que se julgava velho, era de fato governado por homens jovens”. “A instabilidade de sentimentos era característica da era feudal … A higiene … medíocre … [e] Finalmente, como se podem negligenciar os espíritos constante e quase doentiamente atentos a toda espécie de presságios, de sonhos, de alucinações. Esta particularidade era sobretudo intensa nos meios monásticos” (SF, p. 98).Uma última observação, que recolho de Langbein, notável estudioso da tortura judicial como meio de prova, ajudará a compreender melhor a imagem que fazemos da ‘crueldade’ ou ‘barbárie’ do homem medieval. Se hoje a gente se pergunta como o filósofo Francis Bacon, “pôde ser fervoroso partícipe em investigações sob tortura?”, normalmente não pensamos na experiência do homem daquele tempo a respeito da dor física. “É possível que as torturas e as punições daquela época não parecessem tão cruéis a seus contemporâneos… Os remédios para tirar a dor que usamos todo dia, assim como as anestesias, praticamente eliminaram a experiência da dor de nossas vidas. [Mas] Na doença, no parto, nas cirurgias e na dentística, nossos ancestrais estavam acostumados a um nível de sofrimento [físico] que hoje consideramos incompreensível” (Langbein, 1977, p. 185). E vejamos que Langbein está referindo-se a um período moderno, ou de modernidade nascente.O homem feudal vivia a experiência da dor física, da mutilação na guerra, da morte violenta, do saque de seus bens, do estupro das mulheres pelo invasor, como experiência cotidiana. E quem tem medo quer proteção. Não existindo Estado, a sociedade feudal (clássica) torna-se uma sociedade que funciona como uma rede de proteção e de dependências pessoais, celebradas pela instituição da homenagem.

IV – O desenvolvimento feudal clássico Seguirei a intuição de Marx sobre o ‘lugar clássico’ de desenvolvimento, que também estrutura a narrativa de Marc Bloch, mesmo que ele não refira isso, pois Marx faz parte da infraestrutura da alma dos historiadores que vieram depois dele. O lugar clássico de desenvolvimento da modernidade é a Inglaterra; já o lugar clássico de desenvolvimento feudal é o Continente, mais especificamente a França. A Inglaterra teve o que Marc Bloch denomina de “feudalismo de importação”. Não terei espaço para discutir outros sistemas imperfeitos, por diferenças locais, nas situações alemã, e nas penínsulas ibérica e itálica. O quadro terá foco no feudalismo clássico, francês, e na exceção inglesa, que nos interessa por ser o cenário da gênese do processo criminal moderno.Para início de caminhada, convém limpar o terreno de fantasias correntes. A expressão ‘servo da gleba’, empregada por Lênio Streck como representativa do homem medieval, não caracteriza corretamente a estrutural feudal clássica, pelo menos no período de seu desenvolvimento, entre os anos 800 e 1200. Ao comparar, ainda que brevemente, a evolução da prova criminal da ‘certeza legal’ para a ‘livre apreciação da prova’, Lênio Streck diz que:“Ora, ora. E mais um ‘ora’. Este tipo de comparação me faz lembrar que o absolutismo foi melhor que o medievo… Pois é. Claro que foi. Afinal, sair da condição de servo da gleba para a de súdito foi um avanço. Mas isso não quer dizer que o ‘absolutismo foi bom'” (Streck, 2013).O texto não é publicação acadêmica, é comentário quase jornalístico. Mas a estrutura do pensamento do autor é a mesma em seus livros publicados. O romantismo de Lênio Streck na avaliação do presente combina-se com o positivismo histórico das ‘evoluções’. Mas na

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compreensão da história é possível que a gente não deva mais perguntar que período foi bom. Pela primeira razão, óbvia, de que a pergunta é incompleta, pois é sempre preciso adicionar: tal ou qual período da história foi bom ou melhor, mas para quem? A Atenas de Péricles não era ruim para o masculino, ateniense e bem nascido. Mas não era o paraíso para a bárbara Medéia, que introduz pela mão do moderno Eurípides, não apenas a simpatia que sentimos pelo estrangeiro, sem direitos, mas pela mulher que saiu de casa para alertar às mulheres de Corinto sobre as barbaridades que sofria, sobre as violências constantes na vida da mulher que, só no parto, morria mais frequentemente que os homens em suas guerras. A escola histórica do século 19 finalmente pareceu ter resolvido o dilema, na fórmula de Ranke: não podemos comparar os períodos da história, pois ‘todas as gerações estão igualmente próximas de Deus’ (citado por Jaeger, 1989, p. 332). Mas a experiência do século 20 talvez nos impeça de crer na fórmula de Ranke: depois de Auschwitz e do gulag não é possível acreditar nela. Então, será melhor deixar de lado todo romantismo e todo evolucionismo, e adotar a lucidez do primeiro grande intérprete da modernidade (Hegel), para quem a modernidade tem ‘perdas e ganhos’, adicionando a essa lucidez a fórmula de Collingwood para o progresso: só constitui progresso o ganho sem equivalentes perdas, porque perdas e ganhos são incomensuráveis. A cada momento que contabilizarmos as ‘perdas’ das colheitas do progresso, corremos sério risco de instrumentalizar as gerações que nos antecederam, tratar nossos antepassados apenas como ‘meios’ e não como fins em si mesmos.Operando a limpeza do terreno de nossas fantasias, é preciso compreender que o sistema feudal de senhores e vassalos não conheceu a figura do ‘servo da gleba’, expressão que sugere a figura do camponês que nasce ligado a determinado campo por vínculo de hereditariedade, e sugere ao mesmo tempo um sistema de opressão sobre os menos favorecidos. Mas nada disso é correto para caracterizar o sistema feudal em seu desenvolvimento mais perfeito ou clássico, isto é, entre os francos, pois que “a vassalagem era uma forma de dependência própria das classes superiores, determinada acima de tudo pela vocação guerreira e pelo comando” (SF, p. 180), e como tal “a vassalagem não se transmitia pelo sangue, [logo] também não podia a remuneração do vassalo revestir um caráter hereditário, o que seria paradoxal.” Então, o que qualifica esse vínculo de vassalagem?Numa sociedade que vive na completa anarquia, na qual, mesmo sendo livre, a gente tem medo (concreto, não um medo abstrato que o século 19 chamará de angústia) de perder pela violência a vida e os bens que juntamos com nosso esforço, e isso constantemente, em permanente ‘estado de alerta’, o homem procura proteção ‘pessoal’, pois o que conhecemos por Estado não existe. O vassalo será em essência o ‘homem de outro homem‘. Mas este é curiosamente um tipo de contrato entre livres, embora não seja de reciprocidade simétrica (o que o distingue da figura do contrato do direito privado tradicional, de obrigações e direitos para cada parte). É um contrato livre de reciprocidade assimétrica. No modelo franco clássico, ele é formalizado pelo ritual da homenagem: o vassalo toma a mão de seu senhor com suas duas mãos (não com um aperto de mão, como fazemos, mas com as duas mãos, num sinal de entrega absoluta de sua fidelidade) e o beija na boca. Então está selada a homenagem. O ritual foi adotado no modo clássico apenas entre os francos. Feudalismos de importação jamais o adotaram: na Itália, mais acostumada ao estudo do direito romano, que jamais se interrompeu, era suficiente “o juramento de fé”, e ali “a homenagem de boca e de mãos nunca é mencionada” (SF, p. 214).Como a homenagem é um acordo entre homens livres, ela é algo completamente diferente da servidão que prende o homem à terra. O vassalo era juridicamente diferente do ‘colono’ romano, “homem livre cujo estatuto pessoal o fazia ‘escravo da terra onde nasceu'”. Onde a constituição imperial havia dito “que o colono seja devolvido à sua terra de origem”, um manual de direito redigido nos começos do século VI, conforme as necessidades do Estado

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visigótico, escrevia “que ele seja restituído ao seu senhor”. “Não foi sem motivo que, diferentemente de tantos termos do vocabulário jurídico latino, colonus, por fim, não deixou traços nos falares galo-românicos” (SF, p. 304). A etimologia da palavra feudo e suas principais instituições (p. ex. a faide, que veremos adiante), não é latina, mas provém das línguas escandinavas e do germânico antigo.“a história deste famoso vocábulo é clara. As antigas línguas germânicas possuíam todas uma palavra que, aparentada de longe à latina pecus, … servia para designar não só os bens mobiliários em geral, mas também a forma então mais divulgada e preciosa, destes bens; o gado. O alemão … escreve Vieh. O galo-romano, por empréstimo dos invasores germanos, fez dele “fief”, (em provençal feu) – feudo”. (SF, p. 200). Curiosamente, a Inglaterra de hoje persiste em chamar fee aos honorários do médico ou do advogado. “O feudo (Lehn)” dirá finalmente, no século XIV, o Comentário do Espelho dos Saxões, “é o soldo do cavaleiro” (SF, p. 203).Um contrato entre homens igualmente livres, mas sem reciprocidade de obrigações: em que consistia?Do vassalo, esperava-se que ‘servisse’ a seu senhor, no sentido guerreiro da palavra: auxiliar a protegê-lo dos perigos e, em reciprocidade, ser protegido pelo senhor. O preço dessa proteção, numa época que não conhecia meio circulante (moeda), seria prestado em partes das colheitas, prestada pelos vassalos de estamento inferior, ou vavassalos, ou, em vinculação mais próxima, por serviços que hoje consideramos ‘domésticos’, na figura dos vassalos denominados ‘acasados’. Essa associação mútua de proteção, desigual em sua simetria, é a característica principal do feudalismo. De seu senhor e protetor, o vassalo também “esperava boa e rápida justiça”. A proteção feudal impunha assim ao vassalo uma espécie de ‘imunidade’ às outras jurisdições. Em troca disso, “o primeiro dever de um membro de uma linhagem era a vingança”. Toda a justiça do mundo medieval elabora-se em torno da ideia de vingança privada: “Esta, [que seja] bem entendido, cabia em primeiro lugar como o mais sagrado dos deveres, ao indivíduo lesado. Mesmo além da morte” (SF, p. 158). Em caso de morte, evidentemente, era executada pelos ‘parentes’. Mas a noção de parente, na sociedade feudal, não se limita aos laços de sangue. É até curioso que os homens e mulheres da sociedade feudal clássica não se interessassem em ter nomes de família. Os patronímicos que usamos hoje para identificar famílias são bem mais modernos, surgem por pressão dos poderes monárquicos em fase de dissolução do sistema feudal clássico. À ‘parentela’ consanguínea somava-se o vínculo de fidelidade mais poderoso de um ‘vassalo’. Em suma, um homem livre, isolado, sem parentes, podia tornar-se membro de determinada linhagem pelo vínculo da ‘homenagem’, uma espécie de contrato que criava uma ‘fraternidade’ fictícia: e mais poderosa que os vínculos de sangue – como se “o único contrato de sociedade verdadeiramente sólido fosse aquele que, não se baseando na consanguinidade, pelo menos lhe imitasse os vínculos” (SF, p. 164).

V – As justiças da sociedade feudalMuitas questões interessantes desse sistema de ‘dependências’ e de proteção pessoal entre homens livres ficarão de lado, pois não posso, no limite deste cenário, nem mesmo descrever em pinceladas ligeiras os principais constituintes da longa evolução, desde a origem do sistema na primeira idade feudal, até o seu enfraquecimento na chamada ‘ilustração feudal’, que vê o gradual desaparecimento do sistema, através do comércio de ‘feudos’ transformados em cargos públicos , remunerados por custas (judiciais, por exemplo), chamados de ‘dignidades’, que rapidamente tornaram-se, contrariamente ao espírito feudal clássico, transmissíveis por hereditariedade (SF, p. 227). Evolução que dará origem a uma nova classe social, a nobreza, de um lado, e ao fortalecimento de outra classe social em luta contra a

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estrutura feudal, de outro: os burgueses, que também organizam para si mecanismos de proteção pessoal, mas com característica completamente oposta àquela que unia o vassalo ao senhor. Pois que a reciprocidade entre esses dois é assimétrica, ao passo que a solidariedade entre os burgueses é simétrica, uma espécie de ajuda mútua. O juramento mútuo dos burgueses fez nascer na França um ser coletivo novo, cuja denominação ‘comuna’ fará formidável carreira na modernidade:“Evidentemente, que estes primitivos grupos urbanos nada tinham de democrático. Os ‘altos burgueses’ que foram os seus autênticos fundadores e que muitas vezes os pequenos não seguiram sem dificuldade, eram para a gente pobre, senhores por vezes muito duros e credores impiedosos. Mas ao substituírem a promessa de obediência, remunerada pela proteção, pela promessa de entreajuda, introduziam na Europa um elemento novo de vida social, profundamente alheio ao espírito a que podemos chamar feudal” (SF, p. 421).A persistência, na Inglaterra, de uma instituição muito semelhante à fiança mútua dos burgueses, denominada frankpledge, também fará com que o feudalismo de importação ali não fosse jamais perfeito, “instituição cujos precedentes eram certamente anglo-saxões, mas que os primeiros reis normandos, preocupados com uma boa polícia, tinham regularizado e desenvolvido” (SF, p. 320).Se for permitido um intervalo para ver no presente a nossa velha-nova sociedade feudal, é interessante observar como o sistema feudal de pertencimentos pessoais sobrevive entre nós no crime organizado, mas com uma diferença: o vassalo entrava e poderia sair da relação de dependência pessoal livremente: “A saída voluntária da parentela era uma faculdade antiga e geral”, embora fosse raramente exercida na prática, pelo menos enquanto não começasse a ter existência algo parecido com o poder de um Estado que prometesse ao cidadão alguma proteção. As organizações criminosas que conhecemos hoje, especialmente no caso do tráfico de drogas, operam com vínculos feudais de ‘dependência’ mediante remuneração, associação na qual o vassalo novo ingressa em liberdade, mas dela não sairá mais (salvo, excepcionalmente, por intervenção de algum poder que o Estado possa opor para o desmantelamento dessa organização, para o resgate de um associado mediante troca de nome e outros institutos que nossa imaginação política inventa, que a prática tem dificuldade em tirar do papel). Enquanto permanece na associação criminosa, o ‘homem de outro homem’ tem regulados alguns direitos, em especial um direito muito parecido com o feudal, que é o de ajuda pelo senhor quando ele ‘cair’, isto é, for citado pela justiça pública. Ocorre com frequência que o afeto societário não termine com a ‘queda’ de um associado para a justiça, porque o crime organizado é profissão, e não conhece impulso ou eventualidade: o senhor oferece advogado, por vezes o preço da fiança (muito em voga entre nós, mas que combinada com o imaginário garantista já começa a ser largamente abusada). Essa ressurgência feudal no universo do crime é favorecida pela fragilização do Estado e pela impotência de sua justiça criminal. Não apenas o povo não crê na justiça criminal: as guarnições de polícia ostensiva, não crendo nessa justiça, são levadas a fechar as ocorrências a seu modo. Justiçamentos não surgem como fenômenos novos porque os cidadãos, de repente, resolvem ser cruéis ou bárbaros, mas por conta de um fracasso, semelhante ao que caracterizava, essencialmente, a sociedade feudal. Pois que:“O grande erro do feudalismo foi precisamente sua inaptidão para construir um sistema judiciário verdadeiramente coerente e eficaz” (SF, p. 273). Por isso, a França é a pátria do desenvolvimento clássico do feudalismo, porque lá “o enfraquecimento do poder público, e o ‘açambarcamento’ das justiças tinham sido levados mais longe” (SF, p. 297). O sistema de justiça do feudalismo clássico caracteriza-se pelo “prodigioso retalhamento dos poderes judiciários e também o seu entrelaçamento” e finalmente por sua “medíocre eficácia”. Incapazes de fazer chegar a justiça real até os súditos, por deficiência de uma burocracia

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organizada, os fracos reis continentais aproveitaram a rede de dependências pessoais entre vassalos e senhores, mas isso gerou formidáveis confusões e conflitos, pois que um vassalo podia ter mais de um senhor, assim como seu senhor era vassalo de um senhor mais poderoso, e nisso “os recursos subiam, de escalão em escalão, ao longo da fileira das homenagens” (SF, p. 440). Pode-se dizer que todo chefe era juiz de seus homens: o emprego do testemunho era raro, e aplicar justiça significava “conhecer os gestos prescritos e as palavras necessárias, que encerram os trâmites num espartilho de formalismos” (SF, p. 425). Objeto de quase todos os litígios era a saisine, a posse de um pedaço de terra sancionada pelo uso continuado, “juntamente, como é óbvio, com os crimes e as contravenções” (modifiquei a tradução portuguesa que diz ‘delitos’). Mas, neste caso, a ação dos tribunais era, na prática, singularmente limitada pela vingança privada” (SF, p. 425). O direito criminal feudal organizou-se em torno da vingança da parentela ou linhagem, denominada faide no germânico antigo, ou no italiano, vendetta. Uma prática que, contrariamente a nossa imaginação corrente, era extraordinariamente bem regulada. Na Frísia, não era necessária a morte do assassino para que o cadáver, em paz, fosse depositado no seu túmulo: bastava a morte de um membro da família daquele …[mas] 40 dias era o prazo que se devia esperar para executar a vingança, para que as linhagens fossem devidamente avisadas do perigo” (SF, p. 158). Num mundo que vivia em permanente estado de alerta, a guerra era coisa de todo dia, e assim a vingança por crime contra algum dos ‘seus homens’ constituía um ‘dever’. “O primeiro dever de um membro de uma linhagem era a vingança. Igualmente para aqueles que tinham prestado ou recebido homenagem. … Esta igualdade de vocação entre a parentela e o vínculo vassálico, iniciada pela ‘faide’ continuava diante do juiz. Desde que não tenha, pessoalmente, assistido ao crime, diz um consuetudinário inglês, do século XII, ninguém pode constituir-se acusador, em caso de assassínio, a menos que seja parente do morto, seu senhor ou seu homem pela homenagem. Esta obrigação impunha-se com a mesma força ao senhor em relação ao seu vassalo e ao vassalo para com o senhor” (SF, p. 268).Ainda que seja um feudalismo de importação, é interessante registrar um costume judiciário inglês no interrogatório do suspeito. Primeiro, pergunta-se ao acusado se “tem senhor?” (ocorrência entre os anos 925 e 935, SF, p. 217). Dado que tal situação é prejudicial ao exercício das sanções, sua família, perante a assembleia judicial pública, deverá designar-lhe um ‘lord’ (como seria, hoje, um ‘defensor dativo’). Se ela não quer ou não pode fazer tal indicação, o acusado ficará ‘fora-da-lei’, e qualquer pessoa que o encontrar poderá matá-lo. Essa prática, contudo, era limitada às classes mais desfavorecidas, e “não atingia personagens colocadas suficientemente alto para se encontrarem submetidas à autoridade imediata do soberano; essas respondiam por si próprias” (SF, p. 217).Diferentemente do que ocorreu na Inglaterra, no continente a faide permaneceu por longo tempo como parte integrante de um código moral do qual os poderes públicos não queriam abdicar, limitando-se a “proteger os inocentes contra os abusos mais escandalosos da solidariedade coletiva … distinguir as represálias autorizadas dos meros assaltos, cometidos sob o disfarce de uma expiação”. Em suma “exceto em Inglaterra, onde, após a Conquista, o desaparecimento de qualquer direito legal de vingança foi um dos aspectos da ‘tirania’ real – limitaram-se a moderar os excessos de práticas que não podiam, nem desejavam, talvez, impedir”. É significativa a partilha prescrita pelo código municipal de Arques, no Artois, em 1232, em caso de homicídio: “ao senhor, os bens do culpado; o corpo deste, para ser morto, aos parentes da vítima” (SF, p. 161).Quando a faide faz presença nas ruas, não devemos nos impressionar com nossa crueldade. Antes de julgar nossos antepassados como bárbaros, cruéis e insensíveis, talvez devêssemos perguntar que alternativa tem uma sociedade que não dispõe de justiça pública? Porque somos hoje muito parecidos com o homem feudal, cujos nervos permanecem à flor da pele,

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cujo espírito vive em permanente estado de alerta, com medo da violência que pode cair sobre seu caminho com a mesma ‘naturalidade’ de um fenômeno da natureza, como um raio numa tempestade: temos medo justificado da violência, que nasce do crime, e medo justificado do Estado que deveria proteger-nos. Esse medo não é a angústia do final do século 19, que era um ‘medo abstrato’ de tudo e de nada, pois que é um medo concreto de perigos reais e cotidianos. Precisaremos compreender como se estrutura, em nossa sociedade, a ineficiência quase absoluta do sistema judiciário criminal, que deveria funcionar como uma rede de proteção geral a todos os cidadãos inocentes, pois que essa ‘desordem’, que acaba criando uma nova ordem, constitui o segundo mais poderoso constituinte de nossa velha-nova sociedade feudal. Esse é um fracasso que também nasce do medo. Mas de um medo diferente. O medo que dá forma a uma mentalidade que aparenta ser revolucionária e progressista, como o garantismo penal de Luigi Ferrajoli, bastante responsável pelo fracasso da justiça criminal entre nós, é o medo da contingência, um tipo de terror cósmico que acomete os homens e mulheres modernos, que perderam Deus e não tiveram suficiente coragem de pôr em lugar de Deus a Liberdade como fundamento da sociedade moderna, porque a liberdade é paradoxalmente o fundamento que não fundamenta. Esse é um medo que se transforma numa fantasia de poder que ressuscita o princípio das religiões gnósticas. Para compreendê-lo, retomo discussão sobre esse princípio, no próximo intervalo de nossa jornada.

22. O garantismo como retorno do princípio gnóstico

junho 21, 2014

O sentimento unificador da antiga sociedade feudal era o medo: homens e mulheres eram tementes a Deus, aos demônios, às forças da natureza, à violência cotidiana.Quem tem medo quer proteção: os vínculos sociais da sociedade feudal eram vínculos de dependência pessoal: o vassalo era ‘o homem de outro homem’, ao qual devia servir e proteger, e ser por ele protegido. Outro aspecto existencial desse medo constituiu-se do sentimento de não ‘pertencer’ ao mundo, de ter sido jogado no mundo por acaso, jogado na Liberdade que é sinônimo de ter sido jogado no Nada: pela ausência de pertencimentos. Uma reação a esse terror cósmico busca amparo na teologia simplificada das religiões gnósticas, para as quais o mundo é dividido entre duas forças opostas: o Bem, de um lado, o Mal, do outro, e governado por dois deuses: o Deus do Bem, da redenção, e o Deus do mal, responsável pela criação do mundo. Celebrado intérprete da história das religiões compreende a teologia da Igreja católica como resposta ao desafio proposto pelo gnosticismo. Talvez a teoria mais interessante de compreensão da modernidade em relação ao desafio gnóstico seja a de Hans Blumenberg (em paráfrase):“A tese que pretendo desenvolver aqui começa por admitir que há uma conexão entre a época moderna e o gnosticismo, mas a interpreta em sentido invertido: a modernidade é a segunda

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superação do gnosticismo. Pressuposto dessa tese é que a superação do gnosticismo no começo da Idade média não foi bem sucedida. … O fracasso da primeira tentativa de pôr de lado o gnosticismo assegura seu retorno” (Blumenberg, 1983, p. 126-7).Na antiga sociedade feudal na Europa ocidental, entre os anos 800 e 1200, “não só o catolicismo estava ainda muito longe de ter definido plenamente sua dogmática … [como] na indecisa margem onde a heresia cristã se degradava em religião oposta ao cristianismo, o velho maniqueísmo conservava, em certo lugares, mais que um adepto, dos quais não se sabe ao certo se teriam herdado a sua fé de grupos que obstinadamente se haviam mantido fiéis, desde os primeiros séculos da Idade Média, a esta seita perseguida, ou se, pelo contrário, a tinham recebido, depois de longa interrupção, da Europa Oriental” (Bloch, 2009, p. 108).Adiante discuto, a partir da compreensão proporcionada pela obra de Hans Jonas, os significados do gnosticismo (retomando texto que havia sido produzido como compreensão da instituição imaginária dominante no direito criminal brasileiro, o garantismo do italiano Ferrajoli, como ‘retorno’ do princípio gnóstico).Qual é o princípio comum às religiões gnósticas?Hans Jonas compreende a essência do gnosticismo como resposta existencial à experiência do terror cósmico decorrente de um choque cultural representado pelo avanço do helenismo rumo ao Oriente. O trauma político é a conquista do Oriente por Alexandre (334-323 a.C). Para entender essa crise é preciso distinguir o que significa ser grego antes e depois de Alexandre.Toda periodização é um pouco aleatória, mas para compreender diferenças essenciais em relativamente curto espaço de tempo podemos seguir a organização por Jonas de quatro fases na cultura grega: (1) Antes de Alexandre: período clássico de uma cultura grega ainda associada a polis; (2) depois de Alexandre, período do helenismo como cultura secular e cosmopolita; (3) o helenismo tardio, como cultura de religião pagã; (4) o bizantinismo, como cultura grega e cristã. Cada um desses períodos envolve concepções existenciais distintas do que significa ‘estar no mundo’.Antes de Alexandre, a cultura grega clássica era cultura de uma pólis integrada. A filosofia é um gênero agonístico: a luta de Sócrates e Platão para substituir a tradição religiosa, substrato ‘sagrado’ da ordem harmoniosa da pólis, por outro fundamento, foi uma resposta ao desafio dos sofistas. A ilustração grega (séc5 aC) literalmente quebrou a tradição, relativizando o caráter sagrado das normas, desmascarando-as como meras convenções até o limite de um realismo bruto, que identificava a justiça ao poder, na proposição do sofista Trasímaco, retratado em diálogo com Sócrates na República. O paradoxo da luta de Sócrates e Platão é que o recurso à razão em substituição à religião traz consigo o germe da universalidade e reforça o que precisamente demolira aquela bela tradição: o ingresso na pólis do homem privado. Junte-se à ilustração sofista o desenvolvimento de uma civilização urbana e chegaremos à segunda fase, de um helenismo como cultura secular cosmopolita. Nesse período (300 aC-séc1 dC) o espírito grego foi representado pelas grandes escolas. A Academia já se encontrava em franca decadência, entregue a epígonos sem relevância, desde que Aristóteles, após a morte de Platão (348/7 aC) foi rechaçado em favor de um sobrinho de Platão, Espeusipo, na sua direção: “A marcha de Aristóteles e Xenócrates foi uma secessão. Dirigiram-se à Ásia menor com a convicção de que Espeusipo havia herdado simplesmente o cargo, mas não o espírito” da Academia. Aristóteles voltará a Atenas somente depois de 13 anos – 335/4, com a subida de Alexandre ao trono da Macedônia (Jaeger, 1946, p. 132, 357).Do ponto de vista das novas gerações, praticamente nada havia a construir depois de Platão e Aristóteles: restava viver a filosofia, experiência existencial que explica o surgimento das

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escolas de Epicuro e dos estóicos (experiência que se repetirá depois de consumado o edifício sistemático da filosofia moderna por Hegel, quando restará às novas gerações viver a filosofia, não mais apenas interpretar o mundo. É significativo o interesse do jovem Marx por Epicuro, em sua dissertação doutoral). Mas a teoria grega dominante nesse primeiro helenismo ainda tinha um forte apelo de ‘pertencimento’, não mais nos limites da pólis, mas do mundo. Concebia-se o cosmos agora como “a verdadeira e grande pólis de todos”.O terceiro período do helenismo é caracterizado pelo retorno à religião. Não uma volta à tradição grega original, que já se quebrara tanto pela ilustração sofística como pela expansão dos limites da pólis. O retorno à religião se produzirá sob influência de forças espirituais contrárias ao espírito grego e modificará o sentido que o indivíduo dava ao seu ‘estar no mundo’, a concepção que tinha do ‘cosmos’. (O quarto período não nos interessa neste contexto).O ‘pertencimento’ do cidadão a pólis foi o modelo imitado nas concepções gregas sobre um ‘cosmos’ que seria uma ordem tão harmoniosa quanto a pólis. O cosmos grego significa ‘ordem’, seu princípio interno é a razão e sua forma sensível é a beleza.A expansão de Alexandre para o Oriente leva consigo a ideia de que ser um cidadão grego já não será privilégio do bom nascimento. Ser grego será algo que pode ser adquirido por assimilação, exigirá aprender a língua, apropriar a herança cultural grega. Mas é evidente que um processo de aculturação como esse não será inocente. A helenização do Oriente foi um processo que se fez sob compromissos e reciprocidade. Aqui se pode dizer que ocorreu o primeiro ‘multiculturalismo’ (para empregar um termo contemporâneo) do tipo melting-pot.O resultado mais importante do trauma da sujeição política é que as religiões orientais, perdendo a função política de estruturação de suas sociedades, como que pairam no ar, isto é, tornam-se apenas religiões, no sentido moderno da palavra. Pairando no ar, elas simultaneamente se abstraem dos modos de vida tradicionais, mas se fortalecem como religiões. Religiões tradicionais que eram substrato de formas de vida sentirão necessidade de se construírem como teologias.Possivelmente a melhor analogia para compreender esse encontro das religiões orientais com o lógos grego será a do desenvolvimento de uma neurose individual, de trauma-latência-retorno do reprimido.Inicialmente poderosas, as forças espirituais do Oriente – o monoteísmo judaico, a astrologia babilônica e o dualismo iraniano – calaram-se numa espécie de latência. O lógos grego encontrou um pensamento oriental não-conceitual, rígido, ainda exposto sob forma de mitos e ritos. Mas a imposição do lógos grego esteve longe de ser apenas uma ditadura de força. Desde que esse lógos continha em germe a universalidade ele foi também libertador. O Oriente não foi apenas ‘matéria morta’ para a ‘forma grega’. Lentamente os ‘instrumentos’ proporcionados pelo lógos grego libertam os modos tradicionais de pensamento, que vão encontrando uma forma lógica de expressão, para renascerem numa espécie de contra-ataque oriental. Resultam desse movimento teologias que nascem da experiência de indivíduos que não pertencem mais à polis e não acreditam que pertencem a um mundo concebido como “a grande pólis de todos”, pois a sujeição política ao grego, em última instância estrangeiro, não permite a concepção de um ‘cosmos-políteis‘ (cidadão do mundo). É esse caldo de cultura que produz o gnosticismo.O indivíduo gnóstico percebe-se como alguém que foi jogado no mundo e não encontra razão de ser porque não pertence a nada: seu sentimento é de terror cósmico. Geworfenheit, a principal característica do Dasein de Heidegger, é um termo que deriva dessa experiência gnóstica (Jonas, 2001, p. 335). O mundo no qual o indivíduo foi jogado não é mais um

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cosmos bem ordenado, é ao contrário um cosmos opressor, que não tem sentido nem razão, cuja ordem é pautada pela ‘ignorância’. Nesse cosmos opressor o indivíduo precisa de salvação. As religiões gnósticas podem ser definidas pelo critério comum de serem religiões dualistas, transcendentes e de salvação. O caminho da salvação chama-se Gnosis, em oposição à ignorância que regula a ordem cósmica do mundo opressor.IIArrogantes, irresponsáveis, inventivos, dissolutos, ímpios, hereges, covardes! Esses gnósticos precisariam ser instruídos sobre as belezas do cosmos, se é que em sua arrogância admitem tal coisa! (Plotino, em Jonas, 2001, p.253). ‘Não passa um dia sem que um deles invente algo novo!’ registra uma fonte da Patrística (Irenaeus, em Jonas, 2001, p.42).Os gnósticos foram calados à força e marginalizados. E impropérios contra suas heresias partem de duas tradições: da cultura grega e da nascente tradição católica, que logo tratou de excomungá-los. O que une essas duas tradições em violento combate?Se do lado dos gregos, o a-cosmismo gnóstico é visto com certo desprezo como ‘curiosidade’ e arrogância, o combate da Igreja não é tão compreensível, pois afinal o Cristianismo também tem sua própria tendência a-cósmica, pois o Reino de Deus não é deste mundo. Incomodará contudo à nascente Igreja o dualismo gnóstico. Harnack, clássico estudioso de Marcião, propôs a tese de que o Catolicismo se construiu em oposição a Marcião (Blumenberg, 1983, p. 131). Para combater o gnosticismo a Igreja se concentrará na doutrina bíblica da Criação, incompatível com o dualismo gnóstico, pois Deus criou todas as coisas e disse ‘isso é bom’. O apóstolo Paulo insistia em que Deus é bom e justo. É evidente que justificar o mal fica mais difícil para a teologia da Igreja, que precisará de esforços teóricos e alguma dialética mais sutil que a simplificada fórmula dualista de separar radicalmente as fontes do bem e as origens do mal.Segundo interessante formulação de Nietzsche, o mundo grego não precisava de uma teodiceia (a palavra vem de théos + díke, e significa especulação que tenta provar a justiça da criação de Deus), porque os deuses gregos provavam a beleza de sua criação vivendo junto com os mortais (Nietzsche, 1956, p. 30). O gnosticismo é um pouco diferente, mas do mesmo modo dispensava a teodiceia, pois o problema da origem do mal fica definitivamente ‘resolvido’ com a separação dualista de Bem e Mal como duas instâncias ontologicamente diferentes. É uma teologia simplificada, mas eficiente.O deus gnóstico da salvação é um deus estrangeiro que não participa da criação, logo não é responsável. Mas o a-cosmismo gnóstico não significa negação de que exista um cosmos, uma ordem, ele é antes manifestação de repugnância pela ordem desse cosmos. O cosmos belo e racional dos gregos é substituído pela heimarméne, um destino cósmico opressivo: “a vastidão, o poder, e a perfeição do cosmos não evocam mais contemplação e imitação, mas revolta e aversão” (Jonas, 2001, p. 253).Misturando elementos gregos com religiões orientais, os gnósticos produzirão sistemas de pensamento construídos de “empréstimos” e “alegorias” (o que hoje fazemos pela colagem de citações) que não guardam compromisso com a tradição original. Os sistemas gnósticos dão vazão a um tipo de revolta existencial contra a falta de pertencimento. Todos eles têm em comum a rebeldia. Seus argumentos, mítico-filosóficos, dão forma a essa rebeldia pelo choque, inversão de sinais e valores. Como essa resposta provém de terror cósmico pela falta de pertencimento do indivíduo, os sistemas serão obras idiossincráticas de cada gnóstico (por isso são recriminados como ‘inventivos’). Os sistemas gnósticos, de modo consistente, pregam ‘autonomia absoluta da moralidade individual’ e ‘soberania do espírito’. O que Norberto Bobbio elogia em Ferrajoli, que sua “obra não é um corpo inanimado. Sopra dentro

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dela o espírito vivificador que emana de uma ética da liberdade sinceramente vivida” (Ferrajoli, 2010, p. 12) não é senão um forte acento gnóstico, pois esse espírito é concebido por Ferrajoli como autonomia absoluta da moral (Ferrajoli, 2010, p.854).Mas ainda que sejam criações idiossincráticas, os gnósticos possuem traços comuns:(1) Dualismo radical governa as relações de Deus com o mundo. A divindade é absolutamente de outro mundo, alheia e estrangeira a este mundo.(2) A salvação individual consiste no “conhecimento” (gnosis) dessa divindade estrangeira.(3) A-cosmismo, ou seja, absoluta irresponsabilidade em relação ao cosmos, pois ele foi criado por poderes “subalternos”. O cosmos é uma “vasta prisão, governada tiranicamente”.(4) Apesar de ser “a-cósmica”, toda religião gnóstica reconhece que existe no mundo uma ordem, mas uma ordem inferior, porque governada pela Justiça, e não pela Caridade. É uma ordem vingativa.(5) Essa visão do cosmos é eminentemente prática e acarreta dois tipos de atitude no mundo: ascética ou libertina. A Lei do mundo inferior não obriga um gnóstico: “no geral a moralidade gnóstica é marcada pela hostilidade em relação ao mundo e desprezo por todos os vínculos mundanos”, de modo que um gnóstico pode tudo, não está obrigado com nada, ou por outro lado tenta manter-se o mais possível distante de “contaminação” pelo nosso cosmos (da Lei, da Justiça, etc.).O inconformismo pode ser considerado um princípio do gnosticismo, associado à doutrina da “soberania do espírito como fonte de conhecimento e iluminação” (Jonas, 2001, p. 42). Soberanos que reivindicam autonomia absoluta da moralidade individual, os gnósticos criam suas teologias a partir de colagens de todos os elementos disponíveis: “mitologias orientais, doutrinas astrológicas, teologia iraniana, elementos da tradição judaica, sejam bíblicos, rabínicos ou ocultistas, escatologia cristã da salvação, termos e conceitos platônicos” (Jonas, 2001, p. 25).O estudo do gnosticismo é fascinante porque em geral suas narrativas são fantásticas alternativas à doutrina bíblica da Criação, com os elementos alegóricos mais impressionantes e inesperados. A quem lembrar que Platão também recorreu a alegorias e mitos, é importante assinalar que o uso gnóstico da alegoria é peculiar. Em Platão é um apelo à autoridade do mito, que dava caráter sagrado à tradição, quando o argumento racional já não se mostra suficiente. Platão não consegue provar apenas com razões, por exemplo, que entre sofrer o mal ou praticá-lo a pessoa decente escolherá sofrê-lo, porque ninguém consegue provar essa fórmula apenas racionalmente. O gnóstico usa a alegoria como prova de uma verdade mais profunda encontrada através de um procedimento do tipo do desmascaramento. Faz parte desse método a reversão de papeis entre bem e mal, sublime e abjeto, piedoso e ímpio, o bendito e o amaldiçoado. “A entonação rebelde desse tipo de alegoria não pode ser desconsiderada, até porque ela é um dos sinais que marcará a posição revolucionária do gnosticismo na cultura clássica tardia” (Jonas, 2001, p. 93).Os evangelhos gnósticos são criados para uso esotérico, limitado aos iniciados de sua comunidade, ou para fins exotéricos, como religiões de massas. Dentre os que fundaram religiões, o gnóstico mais interessante foi Marcião, a quem me dedico mais detidamente porque é o sistema de sua teologia que ressuscitará no garantismo penal de Luigi Ferrajoli.III

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Marcião (em grego Markíon) pregou na Ásia Menor, na região de Sinob, província de Pontus, e nasceu perto do fim do 1º século d.C. ou a.D (Rudolph, 1987, p. 313). Identificando-se em parte com o apóstolo Paulo, Marcião divergiu de Paulo por rejeitar a ideia de o mesmo Deus ser bom e justo, em favor do dualismo oriental. Ainda que contrariamente aos gnósticos Marcião reserve a salvação à fé e não ao conhecimento (gnosis), o que levou o clássico estudioso de Marcião, Harnack, a não considerá-lo gnóstico, na essência sua teologia é um evangelho dualista, transcendente e de salvação. Ele busca resolver o problema de ‘que fazer com o Antigo Testamento’ e elabora o primeiro cânone do Cristianismo em livro chamado “Antíteses” (como a maior parte dos escritos gnósticos, perdido, do qual se tem notícia por citações na literatura patrística).Para Marcião, o Antigo Testamento era a Revelação do Deus da criação que se pronuncia como Lei. O Deus que se revelou em Cristo é um deus estrangeiro que é todo Bondade. Esse deus é estrangeiro porque ele não tem responsabilidade nenhuma na criação, e o cosmos que se regula pela justiça não é sua obra. Daí porque a bondade moral do indivíduo neste mundo (no cosmos) é totalmente irrelevante para sua salvação, que será obra do Deus estrangeiro e como tal um ato de pura graça (Jonas, 2001, p. 143).A ética mundana do marcionitismo é ao mesmo tempo libertina e ascética. Por um lado, por dedicar-se à sua salvação através da fé no deus estrangeiro, o marcionita não tem responsabilidade nenhuma por este mundo e não deve obediência à Lei nem às leis. Ele precisa, aliás, manter-se o mais distante possível, não se contaminando pelo cosmos, de modo que suas relações com este mundo devem ser reduzidas ao mínimo. (De passagem, o Evangelho de Luigi Ferrajoli é todo construído sobre slogans eficientes, absenteístas, porque um garantista é só bondade e não pode contaminar-se com as leis desse nosso cosmos: direito penal mínimo, última ratio e outros slogans do garantismo não são ‘ciência’, mas gnosticismo puro. O próprio termo que Ferrajoli considera central em sua construção, Cognitivismo, é apenas tradução pós-moderna de Gnosis).Marcião crê que seguir as leis do deus da criação equivale a “promover a causa do criador”, mas como ele não é o salvador, um marcionita deve abster-se de tudo que foi criado, para melhor vexar o deus da criação (Jonas, 2001, p. 144). O ascetismo de Marcião é diferente do que será praticado mais tarde nos monastérios cristãos, porque não busca a santificação da existência humana, ele é “essencialmente negativo em sua concepção, é fruto da revolta gnóstica contra o cosmos” (Jonas, 2001, p. 145).De tudo que há de chocante e perigoso no garantismo de Ferrajoli, sua característica essencial – a inversão de culpa que passa a recair na pessoa da vítima, em nome da redenção do réu, examinada na discussão do ‘A3′ (13/3/2011) – é significativa inversão praticada pelos revolucionários gnósticos. Foi formulada no Evangelho de Marcião como alegoria da redenção de Caim.IVA redenção de CaimTranscrevo duas passagens um pouco longas, que apresentam a alegoria de Caim (em Rudolph, porque é mais detalhada) e sua interpretação por Jonas. Rudolph escreve sobre o Evangelho de Marcião:“O ponto essencial da sua teologia é a antítese absoluta entre o Deus da lei e o Deus da salvação. O primeiro é o Deus do Antigo Testamento, que criou o mundo, e que o governa com o máximo rigor da lei, que é baseada na retaliação; ele é “justo” mas não conhece perdão nem bondade. Ele é por isso imperfeito e desprezível, e o mesmo é verdadeiro a respeito de sua criação. Em contraste com ele surge o deus que é “bom” e “estranho” e permanece

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desconhecido, residindo em seu próprio céu muito acima do deus menor da criação. Sua essência é feita de bondade perfeita e de perdão; em outros aspectos ele não pode ser definido nem de modo aproximado, porque nossa limitação humana é incapaz disso. Mas é em face desse pano de fundo que a limitação e a imperfeição do Deus da criação se manifestam mais claramente. Marcião viu na descrição desses contrastes uma de suas principais preocupações, e tentou descrevê-los a partir da Bíblia num de seus tratados chamado “Antíteses”, em que aparece o contraste das revelações, completamente distintas em sua orientação, do Novo Testamento em relação ao Velho Testamento. Apenas aquela do Novo Testamento é a revelação do “Deus estrangeiro”: que enviou seu filho Jesus, para salvar os homens do mundo de desesperança e miséria [criado pelo deus menor da criação, MA]. O corpo que Jesus possuiu era apenas um “fantasma” (sem o qual seu ingresso no mundo perverso teria sido impossível), mas nesse corpo Jesus sofreu a morte na cruz que o Deus da criação ordenou para Ele sem O conhecer. Antes de retornar ao Pai, Jesus desceu até o Hades, para realizar lá, também, seu trabalho de salvação. É formidável observar que aqueles que foram redimidos por Ele pertencem aos que foram condenados no Velho Testamento, como Caim, os Sodomitas, os Egípcios, e todos os Gentios, ao passo que os “justos” da história judaica da salvação ficaram no Hades [ref. Irenaeus, Adv. Haer. 127,3]. O trabalho de Cristo é compreendido por Marcião [...] primordialmente como “redenção”, como o resgate de uma dívida, em contraste com o código criminal que é obra de justiça do criador” (Rudolph, 1987, p. 315).Sobre a alegoria da redenção de Caim em Marcião, Jonas escreve:“Essa opção pelo ‘outro’ lado, pelos tradicionalmente infames, é um método herético muito mais sério do que apenas tomar sentimentalmente o partido dos excluídos [Jonas usa a expressão underdog, MA], como também não é mera indulgência ou liberdade especulativa. É óbvio que a alegoria, normalmente respeitável como modo de harmonização [de um argumento racional, MA], é aqui usada como estandarte de bravatas do inconformismo. Talvez não devêssemos falar nesse caso de alegoria, mas de um tipo de polêmica, ou seja, não de uma exegese do texto original, mas de sua recriação tendenciosa. É certo que os gnósticos nesses casos quase nunca reivindicaram apresentar o sentido correto do original, se por ‘correto’ se compreende o sentido intencionado pelo seu autor – porque viam esse autor, direta ou indiretamente, como seu maior adversário, [esse autor era ninguém menos que] o obscuro deus da criação. Sua reivindicação implícita foi sempre a de que esse autor cego tinha sem o saber embutido algo de verdade na sua versão parcial das coisas, e que essa verdade pode ser retirada de lá pondo o sentido intencionado pelo autor de cabeça para baixo. A figura de Caim, que deu origem à denominação de uma seita (a dos Cainitas, como se vê em Iren. I, 31.2) é apenas o exemplo mais proeminente do modo de operar desse método” (Jonas, 2001, p.95).VImpressiona que a alegoria mais agressiva do gnosticismo, a redenção de Caim, possa voltar em nosso tempo pós-ilustrado e pós-metafísico. Por que retorna é uma especulação mais densa. Por enquanto, descobrimos apenas que pelo recurso a essa alegoria, como seu pilar estrutural, a obra Direito e Razão pode ser interpretada como o Evangelho de Luigi Ferrajoli. Pois é uma teologia política que compartilha o a-cosmismo dos gnósticos e oferece aos recebedores de sua doutrina um compêndio de opiniões que se ajustam, como veremos adiante, à estrutura dualista dos sistemas gnósticos. E como o Evangelho de Marcião, é um manual para atitudes práticas ascéticas ou libertinas (dissolutas, cínicas).Os garantistas ascéticos viverão isolados das ‘maldades’ de nosso mundo, pelo qual não são responsáveis, ou fanaticamente tentarão nos libertar de nossos vínculos à prisão cósmica das

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leis. Ou serão libertinos para os quais essa irresponsabilidade cai como uma luva para legitimação de seus poderes, pois nada os vincula ao nosso cosmos, eles tudo podem em nome da ‘soberania do espírito’ que os conduz à Verdade pelo suposto Conhecimento. Sua salvação oferece, obviamente, muito mais que felicidade individual, ela legitima o poder de não obedecer a nada que seja criado pelo nosso cosmos. Pois nosso mundo e nossas leis são uma ordem perversa. As vítimas dos criminosos fazem parte dessa ordem, da qual o garantista feliz se auto-excluiu.Em Ferrajoli, como em Marcião, temos uma teologia pobre, sem dialética, mas extremamente eficiente, porque resolve os problemas fundamentais da existência – por que estamos no mundo, se tudo é por acaso, por que alguns sofrem, por que existe o mal, resolve enfim o problema do terror de sabermo-nos jogados no mundo sem razão nem pra quê.Demolindo a tradição moderna, Ferrajoli reconstroi inconscientemente um sistema metafísico jogando o balde no fundo do poço da história. Feito de alegorias e empréstimos, seu sistema garantista é estruturado sobre a separação ontológica do princípio do Bem, alheio, estrangeiro, e o princípio do Mal, a ordem cósmica do nosso mundo. E começamos a compreender por que não existe ‘dinâmica’ no garantismo. A ordem cósmica será sempre a mesma, e mesmo “constituições evoluídas” enfrentarão eterna resistência de práticas bárbaras, primitivas, ligadas ao deus da criação, sem noção do que é Bondade.VIJá podemos voltar nossa atenção a uma palavra do subtítulo. O Evangelho de Ferrajoli é fundador de escola e precisa de um sufixo forte: um ‘ismo’. A retórica de Ferrajoli não tem a sobriedade da ciência, é uma retórica inquisitiva. O Outro do garantismo é o Inimigo. Mais que autoritário, é diabolizado: poderoso e malandro. Matreiros, somos todos regulados pela presunção de má-fé, e o juiz garantista será alguém em permanente estado de alerta, pois todos aprontam armadilhas para que ele inocentemente pratique injustiças. A retórica de Direito e Razão é uma retórica forte de pacote, que pode ser descrita como uma caixa de emoticons que o autor fornece para uso e abuso contra os inimigos de quem se autoproclame garantista. Mas não é só isso.Ferrajoli imita a retórica de ‘chamado’ dos panfletos políticos de Marx, dos quais é paradigmático o Manifesto comunista. Como um longo e repetitivo manifesto, Direito e Razão chama: Vem para o garantismo, aqui encontrarás pertencimento, identidade, certeza, fundamento. Não devemos esquecer que Marx foi eficiente propagador de uma espécie de religião profana, ao dar aos recebedores de sua filosofia a ‘certeza’ de ‘leis’ do desenvolvimento histórico e combinar sua filosofia com um chamado para que a gente adotasse um pertencimento novo. A condição social do burguês, por exemplo, poderia ser superada pela identidade nova de quem se reunisse em espírito à classe universal e se tornasse mais um operário na grande luta. Enquanto durou, esse chamado forneceu um fundamento que afastou temporariamente a experiência de terror cósmico de sabermo-nos jogados no mundo sem pertencimentos. O paraíso estava ao alcance da mão, viria com certeza, e essa certeza dava a cada um seu pertencimento no movimento que apenas apressaria as dores do parto. Tínhamos um télos individual e coletivo, não importando que uns fossem atores secundários no palco da ‘Grande Marcha’.As revoluções de 1989 no Leste europeu aposentaram definitivamente esse télos protetor contra o terror cósmico. É compreensível o ressurgimento de sistemas gnósticos.Em favor de Marx, porém, diga-se que ele também interpretou o mundo (moderno) e por isso

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sua filosofia, como toda filosofia, está na verdade. E Marx foi sobretudo consistente. Ao demolir o sistema hegeliano pondo-o de cabeça para baixo, não disse quase nada sobre a ‘reconstrução’. Pode parecer um paradoxo, mas Marx, associado a um tipo de política (o comunismo), jamais desenvolveu uma teoria política propriamente dita. Pois a política era algo alienado, superestrutura que desapareceria. Em seu lugar relações novas, pessoas novas, apareceriam. Marx deixou a reconstrução como um espaço vazio, o que também permitiu que Lenin desse a algumas soluções pensadas rapidamente, como a fase de transição de ditadura do proletariado, o giro para o Estado totalitário bolchevique. O que justificou o título que a doutrina tomou na história, combinando dois nomes: marxismo-leninismo. Isso já não era mais filosofia, mas uma poderosa ideologia.A teologia de Ferrajoli não é uma teoria, pois jamais enxerga seu objeto com o olho da alma. É uma teologia gnóstica aparentemente extemporânea, que cumpre em nosso tempo o papel de poderosa ideologia. Não é coincidência que sua lógica divida o mundo entre amigos e inimigos. Como em toda ideologia poderosa, de um lado estarão os parvenus, que adotam essa identidade forte como bilhete de ingresso ou de permanência no poder, e de outro, os demais, relegados à condição de párias.Rótulos (labels) de identidades não são apenas passatempo de intelectuais, são (auto)definições existenciais. E não é por coincidência que o garantismo se autoproclame hoje como ‘esquerda penal‘. Mas esses cainitas pós-modernos são apenas o outro lado da moeda da felicidade positivista.O fato de o garantismo suceder à instituição imaginária do comunismo, e como aquela instalar-se confortavelmente no poder, talvez seja apenas evidência de que ideologias fundamentalistas são como as famílias felizes de Tolstoi: no fundo são todas iguais.

23. Quem matou Deus?

junho 21, 2014

A modernidade não pode conviver com a noção de Deus como arché, Grund, ground, como fundamento do arranjo social moderno. O parto da modernidade envolve a morte de Deus. Não foi a filosofia moderna quem matou Deus, ela apenas interpretou o evento. Ainda hoje culpa-se Nietzsche pela morte de Deus, mas não foi Nietzsche quem o matou. Aliás, não só o fenômeno da morte de Deus já era conhecido antes dele, como também especulações sobre a causa mortis – mais interessantes do que a mera declaração de óbito. Quase se poderia dizer que havia consenso de que Deus não morreu de morte natural: alguém o matou, mas quem?O poeta Heinrich Heine, antes de Nietzsche, descobriu algo sobre isso, e escreveu em 1835, num livro que pretendia apresentar aos franceses a alma da Alemanha, que tinha certeza sobre a identidade do assassino: quem matou Deus, segundo o poeta, foi ninguém menos que o filósofo Immanuel Kant! O filósofo da razão pura “superou em muito o terrorista Maximilian Robespierre, mas teve algo de parecido com ele … porque este matou um rei, aquele matou

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Deus” (Heine, 1959, p. 108).Porque Deus morreu, Auschwitz e o gulag foram possíveis. Escreveu o sábio Thomas Mann em seu romance Doutor Fausto (em paráfrase):para um amigo da ilustração a noção de Povo tem sempre algo de anacrônico e alarmante, pois ele sabe que é suficiente dizer às massas que elas são o Povo para despertar todo tipo de mal reacionário. Quantas coisas têm se passado debaixo de nossos olhos – ou não tão longe de nossas vistas – em nome do Povo, que jamais poderiam ter acontecido em nome de Deus, ou da humanidade, ou da lei! (Mann, 1992, p. 35).A densidade especulativa do pensamento de Nietzsche não está em ser mais um a declarar a morte de Deus, nem na procura da causa mortis, mas em olhar para o nosso tempo moderno e perguntar: depois da morte de Deus, quem mais fica sem Deus?“Quem mais o amou”, responde o filósofo no Zarathustra (Nietzsche, 1961, p. 272).A questão moderna não está em aceitar ou recusar a morte de Deus, como se isso estivesse em nosso poder. Mas em fundar de novo uma sociedade sem Deus, com outro fundamento, que não permita que em nome de outros deuses, do Povo, da Ciência, nossos parceiros de caminhada nos conduzam para o abismo e para a morte. Por isso, a modernidade põe fé na Liberdade, o fundamento mais frágil para substituir o poderoso Deus, porque pelo menos a liberdade não é um substituto potencialmente homicida, como os concorrentes, a Ciência, o Povo.Não é proibido, em liberdade, sonhar com a volta a um mundo governado por Deus. A dúvida é se esse sonho é autêntico ou politicamente perigoso. Porque nascemos em outro tempo, num tempo novo (a modernidade, no idioma alemão significa exatamente isso: Neu-Zeit), e o tempo não anda para trás, apenas para frente. Poderíamos replicar à saudade romântica: pense apenas que você poderia ter tido pouca sorte ao nascer e não teria a mínima oportunidade de mudar de rumo. Porque o mundo governado por Deus era um mundo de hierarquias naturais: recebíamos o nosso télos (aquele rumo, para onde vamos) no nascimento, e toda a liberdade que tínhamos seria aperfeiçoar esse caminho: seríamos bons, leais, corajosos cavaleiros, ou seríamos bons, leais, e corajosos escudeiros: já estamos batendo às portas do mundo moderno quando um genial comediante faz de um plebeu um cavaleiro: Don Quijote de La Mancha. A ficção moderna diz que nascemos livres, então nós de fato nascemos livres. Nascemos sob condições, determinações, ainda nascemos em berço de ouro ou à beira do lixo, mas não nascemos sob o signo da necessidade: nascemos contingentes, com tudo de bom e aterrorizante que isso envolve. Pessoas hoje são escravizadas, mas isso não é mais algo natural: libertamos os escravos do trabalho escravo, hoje, até mesmo contra a vontade desses escravos. Se é preferível nascer contingente a ter um télos ou rumo definido no berço, não podemos saber, porque nascemos contingentes e para nós “a condição moderna é a condição humana” (Heller, 1999, p. 226). Mas a condição moderna é fundada na liberdade, que não fundamenta: é o mais frágil dos fundamentos. Pode-se recusar a liberdade, mas não se retorna, por isso, a tempos pré-modernos. O barbarismo totalitário é moderno, não é um retorno à barbárie primitiva. Todo tipo de barbárie pode ser posto no lugar do fundamento moderno, porque nascendo livres também somos jogados na liberdade como alguém jogado no Nada: e a filosofia não inventa isso, apenas interpreta. Assim como a filosofia não é culpada pela morte de Deus. No barbarismo totalitário, o Deus que morreu foi substituído por um novo fundamento poderoso, a Ciência. O nazismo não matou Deus, pois que Ele já havia morrido. O nazismo seduziu-nos para um fundamento que teoricamente nos livraria do caos: a Ciência das raças. Marx não matou Deus, que já havia morrido (seja ou não o filósofo Immanuel Kant, coitado dele, seu assassino), por declarar que a religião era o ópio das massas, mas sonhou que a morte de Deus era libertária, e elaborou, com o poder da Ciência do tempo dele, leis de

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necessidade histórica que nos levariam inexoravelmente ao paraíso da sociedade sem classes: a ‘Cidade de Deus’ seria reconstruída, para Marx, como ‘Cidade do Proletariado’, guiada pela classe universal, a parcela da humanidade que mais sofreu os efeitos da alienação. E o mundo voltaria a ser alegre, cheio de deuses, como fora na infância ou juventude da humanidade, que se acreditava no século 19 pertencer aos felizes gregos. No vácuo da ligação entre a sociedade alienada que morria, e a desalienada que queria nascer, restou apenas a violência como parteira: então o bolchevismo trocou Deus pelo Partido.Aqui a poderosa especulação de Nietzsche volta a fazer sentido. Depois da morte do Partido, quem mais ficou sem Deus?Quem mais o amou fica mais sem Deus. Nós fomos apenas liberados da opressão. Não é coincidência que ortodoxos comunistas tenham renascido, não apenas como os abjetos burgueses que eles combatiam, mas como criminosos. Porque aqueles abjetos burgueses, segundo a lógica dessa narrativa, ainda tinham a sua consciência de classe, sua ética burguesa, que era mal ou bem uma ética do trabalho. E porque a substituição de Deus pelo Partido aboliu a consciência, em nome da vergonha, quem mais amou o Partido, depois da morte do comunismo, já não tinha consciência nem vergonha. O ‘mensalão’ pode ser interpretado como evento peculiar ao Brasil, para aqueles que interpretam que o brasileiro possui uma antropologia da malandragem (penso que esta é uma compreensão meio inautêntica, pois sempre exclui dessa suposta ‘condição brasileira’ o intelectual que assim escreve). Certa vez vi um documentário sobre a classe dominante na antiga república soviética da Geórgia, depois da queda do comunismo, que sugere que ocorrências semelhantes se passaram no mundo soviético e no Leste europeu.Mas em que a história da prova criminal se relaciona com a morte de Deus?IIO fenômeno que nos ocupa é relativamente transcultural, por um lado, e relativamente atemporal, de outro: pode-se dizer que a partir do instante em que a humanidade consegue fazer uso de raciocínios lógicos elementares não há muito para progredir em nossa capacidade mental, para saber o que aconteceu no passado e julgar o suspeito de crimes. Não é possível conhecer o passado a partir de escassos vestígios sem o uso de algumas inferências, sejam elas denominadas induções ou deduções. Mas toda essa lógica que usamos é parte do pensamento cotidiano. Um álibi, por exemplo, não é outra coisa senão o nome jurídico para a regra lógica de que alguém não pode estar ao mesmo tempo neste lugar e naquele outro lugar. Todas as pessoas que conseguem aplicar em seu cotidiano a lógica identitária mais elementar podem julgar seus semelhantes. Talvez a natureza tenha conferido a todos o bom senso necessário para julgar a prova criminal. Jeremy Bentham, jocosamente, replicaria: exceto aos advogados ingleses! (Bentham, 1827, p. 45). Mas Bentham, como quase todo filósofo que despreza um pouco os advogados, exagera. Por ser relativamente atemporal, não é surpreendente que a modernidade tenha ocorrido tão cedo no processo criminal. O que surpreende é o modo pelo qual Deus, o fundamento dos julgamentos até então, tenha morrido. Quem matou o Deus do processo criminal?Os homens e mulheres da sociedade feudal tinham fé, muito mais fé que temos hoje. Foi por iniciativa da Igreja que Deus começou a morrer para o processo criminal. Talvez não tenha começado a morrer só para a prova criminal. O famoso e infame Concílio de Latrão, convocado pelo papa Inocêncio III, além do cânone que proibiu os clérigos de participarem nas provas de Deus, ou ordálias, também matou Deus por convocar os príncipes cristãos a forçar os judeus a vestirem um distintivo em suas vestes. Entre Jerusalém e Auschwitz, Deus morreu em Roma em 1215.

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Moses Hess, em meditação sobre “Roma e Jerusalém” escreveu: “Desde os tempos de Inocêncio III … a Roma dos Papas simboliza para os judeus um inesgotável poço de veneno” (Hess, 1943, p. 35). “O poço da história é fundo”, disse Thomas Mann, e ele sabia o que dizia. A estrela amarela nasceu nos primórdios da modernidade, quando Deus começou a morrer, e sua história teria terminado se o projeto nazista, tecnologicamente moderno, tivesse resolvido o ‘problema’ da questão judaica pelo extermínio. Os cristãos de nosso tempo – escreve Agnes Heller a propósito dos lugares de memória Auschwitz e Jerusalém – não conseguem deixar de sentir que Cristo – o filho de Deus – foi crucificado pela segunda vez em Auschwitz (Heller, 2007, p. 90). Deus morreu também para a religião em 1215? Mas quem o matou?Não foi Kant, nem foi Nietzsche: a Igreja de Deus matou Deus, e por longo tempo. O Deus que morreu em 1215 só renascerá porque João Paulo II pediu perdão pelos pecados da Igreja Católica. Talvez a Igreja não precise de outro milagre para santificar quem ressuscitou Deus, para a Igreja e para o nosso tempo. Por isso não vejo com tanta preocupação, como alguns fiéis amigos nossos, a tentativa de assassinato de Deus por Dawkins. Vejamos a questão de outro modo: só se atenta contra alguém que está vivo, não se mata um cadáver. E se o Deus que morreu foi morto também pela Ciência, a investida de Dawkins em nome da ciência, hoje, é inócua, porque essa instituição imaginária da modernidade não tem todo o poder que teve um dia. A modernidade que nasceu da morte de Deus envolveu também a destruição da metafísica, e essa destruição já terminou desde o momento em que Thomas Kuhn provou, com a teoria dos paradigmas, que a Ciência, com letra maiúscula, não é senão uma atividade humana, demasiado humana, que já não compete com as coisas divinas.A questão que nos ocupará, adiante, não é se Deus morreu ou não morreu, porque ele de fato morreu. Quero interpretar a morte de Deus como um evento que causa sofrimento, um trauma. É possível tentar ‘trabalhar’ o trauma, reconhecendo o luto sem permitir que ele descambe para a patológica melancolia, ainda que a metáfora do ‘trabalho’ do luto empregada por Freud seja um pouco desajeitada. Também é possível esquecer a morte de Deus. O problema da última via é que traumas não são jamais esquecidos, apenas adormecem. E adormecem num subterrâneo muito próximo de nós, para retornarem violentos sempre que sentirmos medo, pânico, terror, ansiedade, falta de coragem de viver a nossa condição humana: a Contingência.IIIA morte de Deus por volta de 1215 deu lugar a duas instituições políticas completamente originais: o júri inglês e a teoria da certeza legal no continente. O júri inglês ‘trabalhou’ o trauma da morte de Deus pela construção engenhosa da instituição política que mais perfeitamente soube combinar duas capacidades da alma indispensáveis para julgar os nossos semelhantes: a téchne e a phrónesis: porque soube unir no júri a técnica do magistrado e o sentimento do povo como os ‘Dois corpos do rei’. Então a história da Inglaterra é um pouco parecida com um conto de fadas: depois do casamento, eles foram felizes para sempre. Os ingleses não inventaram o júri, que já existira no Areópago de Atenas e na Roma republicana. O que eles inventaram foi o júri inglês como instituição que enquadra o princípio moderno da prova criminal, a livre apreciação da prova, numa engenharia extraordinária, a qual, contudo, não é uma tecnologia de exportação, porque radica profundamente na alma da Inglaterra. Basta dizer que atravessou o Atlântico para os Estados Unidos, mas nem lá chegou do mesmo jeito.Examinarei, adiante, a exceção inglesa ao sistema feudal, sobretudo em relação à organização de sua justiça. Para encerrar esta jornada, percorro, com botas de sete léguas, a história até o fim, em sua versão continental.O poder público, na sociedade feudal, por vezes se impõe para civilizar a faide, ou vingança

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da linhagem, como ocorreu em 1181, quando “o conde de Hainaut, depois de um assassínio, queimou antecipadamente as casas de todos os parentes do culpado, para lhes extorquir a promessa de não irem em seu socorro. No entanto, a decadência e a restrição da linhagem, unidade econômica e ao mesmo tempo órgão da faide, parece ter sido, acima de tudo, o efeito de mudanças sociais mais profundas” (Bloch, 2009, p. 173). A extraordinária originalidade do sistema político inglês esteve em ter tido ‘tiranos’ que encerrassem, com um golpe único e certeiro (a partir de diferentes estratégias políticas, como ainda veremos) os resquícios de feudalidade judiciária, mas adotando ao mesmo tempo limitações ao poder público, felicidade que o Continente não conheceu jamais, a não ser por intervalos. Não é à toa que a Inglaterra e os Estados Unidos, ao longo de sua história, não conheceram jamais algo que se aproxime do totalitarismo continental. Em seguida ao Concílio de Latrão, deixa-se de observar nos domínios ingleses a experiência da ordália, a prova do ferro quente ou a prova da água. Não é algo que ocorreu espontaneamente, mas porque “a monarquia inglesa foi excepcionalmente poderosa durante o período crítico que vai do 1000 ao 1200″ (Whitman, 2008, p. 130). No continente, o que compreendemos como ‘absolutismo’ foi, paradoxalmente, mais fraco que o poder dos reis de Inglaterra. Dispomos de notável fonte para examinar a história da morte de Deus no sistema criminal francês na obra de Robert Mandrou, Magistrados e feiceiros na França do século XVII – Uma análise de psicologia histórica. Mandrou organiza a história distinguindo as possuídas urbanas e as possuídas rurais. O que causou escândalo e começou a modificar o quadro geral da jurisprudência francesa foram as possessões citadinas, mas a causa maior do escândalo foram algumas fraudes, desmascaradas, na produção de provas. A presença no vilarejo da feitiçaria, benéfica e maléfica ao mesmo tempo, fazia da curandeira uma figura aceita, apreciada pela comunidade rural.A feitiçaria rural só começa a ser perseguida após “os grandes processos escandalosos” que decorreram de possessões citadinas (Mandrou, 1979, p.447). E o que fez Colbert no interesse da unificação da jurisprudência, desejada pelo absolutismo?Primeiro, ordenou trabalhos para reforma da justiça, que resultaram na ordenança de Saint-Germain-en-Laye, registrada pelo Parlamento de Paris em 26/8/1670. Por esse regulamento, instituía-se apelação automática (que chamamos recurso de ofício) de toda condenação pelo crime satânico, cujo nome de modo eloquente evita-se de pronunciar (Mandrou, 1979, p. 356). Depois, engenhosamente trabalhou para mudar o crime de feitiçaria de lugar, alterando o bem jurídico protegido: não seria mais um crime de lesa-majestade, mas um abuso da credulidade popular: “O edito de julho de 1682, assinado por Luís XIV, Colbert e Le Tellier, em Versalhes, que passa comumente por regulamentar em definitivo a questão do crime de feitiçaria, praticamente não trata dele” (Mandrou, 1979, p. 388). “Dos doze artigos que compõem o edito, três são consagrados aos ‘sedutores’, oito aos envenenadores” (Mandrou, 1979, p. 389). As feitiçarias passam então a ser tratadas como difamações, exploração da ignorância e da credulidade (Mandrou, 1979, p. 394, 400).Então, “por detrás da mais simples iniciativa da jurisprudência, como a proibição da prova da água” (consistente na submersão do suspeito em água por certo tempo, para registrar o testemunho de Deus sobre sua inocência, caso sobrevivesse), o que se discute em essência é a relação deste mundo com Deus. É assim que Deus morreu, um século antes da Revolução, pela mão do estrategista Colbert, pois que: “Deus e Satã deixam de intervir cotidianamente no curso natural das coisas e na vida ordinária dos homens; esta representação restitui ao homem e à natureza uma autonomia que a confusão admitida outrora entre o natural e o sobrenatural tornava impossível” (Mandrou, 1979, p. 455). Evidentemente essa mudança de jurisprudência foi um processo lento, em que “hesitações e recuos dubitativos foram mais frequentes que as adesões maciças, francas e entusiásticas … [mas é certo que] o novo caminho se impôs a duras penas, e aos mais irredutíveis foi a autoridade monárquica que

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acabou impondo esta nova jurisprudência cuja explicitação era de resto tão delicada que não pôde ser colocada preto no branco nem pelo Parlamento parisiense, seu iniciador, nem pelo chanceler do rei ou pelo rei em seu Conselho. Cerca de meio século – ou seja, no tempo humana da época, mais de uma geração – foi necessário para que prevalecesse em seu meio essa concepção nova das relações entre os homens, o mundo e Deus” (Mandrou, 1979, p. 457).Uma diferença essencial entre o direito inglês e o continental está no trauma da morte de Deus. No parto de nascimento da modernidade, o absolutismo funciona como fórceps, com todos os traumas de nascimento que isso acarretou para o bebê, mas apenas no continente: do outro lado do canal da Mancha, houve um parto natural, o outro lado da moeda do absolutismo, que se chama liberalismo. É esse parto natural da modernidade que interpretaremos como a sublimação feliz do trauma da morte de Deus. Antes disso, teremos ainda outro intervalo para um enfrentamento – algo diferente de refutação, como sempre sublinha o filósofo Heidegger – da interpretação dessa mesma história em sua formulação de maior impacto na modernidade. Refiro-me à teoria de modernidade de Max Weber, para quem, ao contrário do que proponho, a Inglaterra modernizou-se “apesar de” seu sistema judiciário e não “por causa” dele. E o júri, que será? Para Max Weber, um “resquício de magia”. Nosso enfrentamento não é uma completa refutação de Max Weber, mas um adendo: é possível que existam alguns nichos de modernidade que possam conter legítimos resquícios de magia.

24. Que significa dúvida razoável?

novembro 13, 2014

Retomo nossa caminhada, ainda nos elementos introdutórios da teoria. Para usar um termo do jornalismo, procuro um gancho que nos conecte de novo àquela jornada. Então pergunto, com Lênio Streck, por que escrever livros? (Streck, 2013, p. 83). A pergunta permite um olhar existencial para nossa caminhada: para que serve tudo isso? Cada autor terá sua própria resposta, eu tenho a minha: porque tenho experiência e estudo sobre esse tema, e compreendi alguma coisa, e porque, além da falta de dinheiro para pagar as contas ordinárias do mês, uma coisa que me incomoda nessa jornada chamada vida é a injustiça, especialmente aquela que nasce na justiça criminal. E a grande campeã no troféu das injustiças é a que nasce da má colheita e da má avaliação da prova. Aí eu vejo que está tudo muito errado, e a gente precisa começar de novo. Quando eu digo tudo errado, eu quero dizer tudo e todos: não critico só juízes, porque não há apenas maus juízes no exame da prova: há policiais burocráticos que não sabem encontrar a prova, porque não sabem procurar o que devem procurar; há promotores de justiça burocráticos que não sabem emoldurar um caso com as provas que precisam produzir ou reproduzir em juízo, enfim, há uma cadeia de produção da prova criminal que nasce errada desde o início.Recomeço nossa teoria com inspiração, mais uma vez, em Jeremy Bentham: só existem duas causas para o mau julgamento: improbidade e insensatez (improbity and folly).Essa dupla causa tem seus dilemas. Uma teoria não consegue ensinar probidade, mas não pode abrir mão de especular sobre as causas da improbidade. Então a gente fica limitado a

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desvendar as loucuras em que os juristas acreditam, que são poderosos preconceitos. Por isso, nossos elementos introdutórios divagaram, entre os capítulos 12 e 14 (pp. 63-78 na versão impressa), sobre o fenômeno do preconceito. Na verdade, uma teoria da prova criminal não é senão um capítulo de uma teoria geral dos preconceitos. Recentemente, um colega do Ministério Público, que escreveu manuais e comentários sobre processo criminal, reconheceu que pouco adianta escrever esses manuais quando a gente descobre que “é na psicologia que o barco da justiça naufraga“. Ele tem razão, mas psicólogos e psiquiatras não nos ajudarão muito, porque não têm noção do que se passa na polícia, no Ministério Público e nas cortes de Justiça. Então nossa teoria da prova é uma empreitada que transita entre diversos gêneros, aproximando-se da “psicologia coletiva” de que se ocupou o historiador francês Mandrou, ao descrever as mentalidades dos magistrados em relação ao extinto crime de feitiçaria. O risco é produzir uma formidável picaretagem. Mas é um risco que vale a pena correr, para tentar sair do atoleiro, e tirar o paciente da Unidade de Terapia Intensiva. Eis o nosso gancho. Voltemos à teoria.Discutíamos o princípio moderno da prova criminal, a livre apreciação da prova, no modo afirmativo, no capítulo 20, e como negação, no capítulo 22, negação que exemplifiquei com a teologia política do garantismo penal, o Evangelho de Luigi Ferrajoli. Prossigo discutindo por que, ao contrário do que doutrinam nossos juristas, a presunção de inocência não se presta ao papel de princípio de uma teoria da prova criminal. E especularei livremente sobre que fenômeno estranho acontece quando essa fórmula é abusada como princípio.Os juristas têm discutido à exaustão o tema dos princípios e regras. Presumivelmente, um autor escreve um livro sobre algo que lhe parece relevante, quando imagina ter algo relevante para dizer, pensando que está na verdade. É normal que se peça o consentimento dos outros para o modo como vemos o nosso tema. Mas é um tipo de violência impor aos outros o nosso acordo semântico sobre os termos principais de nossa teoria, e desafiar os que dele discordam como ignorantes ou atrasados. Com humildade, pedirei assentimento ao meu modo de ver as coisas em relação aos termos principais dessa torre de Babel. Muitos juristas vêm chamando de princípios e regras o que a teoria moral chama pelos nomes de normas e regras. Eu prefiro usar a dicotomia normas e regras, porque ela dá conta do assunto e nos libera o nome princípio como um terceiro termo. E prefiro reservar para esse terceiro termo, princípio, a dignidade filosófica que ele merece. Então, no que diz respeito a normas e regras, usarei a terminologia da filosofia moral de Agnes Heller, que discute o tema no 2º capítulo de sua Ética Geral, com título “Sittlichkeit: As normas e regras de boa conduta” (Heller, 1988, p. 31-49). Com simplificação grosseira, é possível dizer que uma regra admite desobediência ou obediência pelo sim e pelo não, como por exemplo, se alguém cruzar o sinal verde ou vermelho. Já a obediência à norma será sempre situacional, pois a norma admite obediência apenas por aproximação, é um tipo de utopia. Fiquemos com uma norma aplicável à justiça, a que comanda julgar com imparcialidade. Não temos aqui um sinal verde ou vermelho para cruzar ou parar, mas uma aproximação que requer um conjunto de outras normas e virtudes (pois a justiça é a soma total de virtudes, porque envolve os outros, e envolve sobretudo coragem, que no dizer da filósofa, é sempre 50% de todas as virtudes: mas a coragem não é ausência de medo, porque é um meio termo entre a covardia e a bravata: há que ter medo do que é temível, e principalmente medo de ser injusto, medo de deixar-se seduzir pelos preconceitos correntes: quem não tiver esse medo não terá a coragem necessária para ser imparcial). Quanto ao princípio, desde que iniciamos nossa teoria da prova com Aristóteles, usarei o termo no modo aristotélico.O emprego de três termos, ao invés de apenas dois, permitirá que a gente compreenda melhor nosso obscuro e confuso caminho, porque visualizaremos a prova criminal na perspectiva de universalidade e diferenças (ou tradições), sob o “duplo vínculo da imaginação moderna”

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(tema tratado em artigo da filósofa que traduzi e está disponível em página ao lado). O princípio é universal e não pode ser revogado, porque se for revogado perdemos a modernidade. Mas ele está emoldurado por normas e regras locais. Essa moldura (Gestell na terminologia de Heidegger) admite mudanças e progresso, pois é um produto da imaginação tecnológica que podemos chamar de engenharia da prova. Por exemplo, o júri inglês emoldurou a livre apreciação da prova (o princípio) numa engenharia de normas e regras tipicamente inglesas, pois que não conseguiu ser exportada para nenhum lugar, nem mesmo para os Estados Unidos. Separando o princípio, as normas e as regras de prova criminal, conseguiremos diminuir o risco de comprar pacotes tecnológicos que aportarão modificados ao nosso imaginário. Por exemplo, hoje desejamos, para solução de nossos problemas, a prosecutorial discretion (que é uma espécie de engenharia política), como em seu tempo a Revolução francesa desejou o júri inglês. A teoria continental paradigmática da modernidade, de Mittermaier, não fugiu a essa ingenuidade, porque organizou a história da prova sob a tradicional dicotomia (forjada sobre a imaginação tecnológica apenas) dos sistemas acusatório e inquisitório. Em nota à tradução francesa de 1848, o eminente jurista alemão permitia-se profetizar a solução de todos os males: “Há de vir o tempo, e está próximo, em que há de ser preciso, enfim, abandonar inteiramente o sistema da prova legal, tirar o direito de julgar aos juízes formados e jurisconsultos, para só o conceder aos jurados. Então, só haverá uma questão a decidir; dever-se-á preferir o sistema do júri francês ao que é seguido na Inglaterra, na Escócia e na América do Norte?” (Mittermaier, 1996, p. 394).Hoje não cremos mais nessa profecia, e sabemos que o dilema entre universalidade e diferenças não se resolve pela importação de instituições políticas idiossincráticas, forjadas como engenharia política em outra tradição. Sabemos que toda instituição social é produto do duplo vínculo da imaginação moderna com a imaginação histórica e com a imaginação tecnológica. Precisamos então aprender a conservar o princípio moderno numa moldura ou engenharia política que seja possível para nossa tradição. Se o princípio é indiscutível, as normas e regras concretas que formarão a moldura da prova são discutíveis, até mesmo no plano da mera existência: elas devem mesmo existir, ou não seria melhor deixar o juiz pensar de acordo com o modo cotidiano de procura da verdade factual? Normas e regras serão indispensáveis nesse terreno? Sua ausência criará o que se chama de anomia, ou caos? Ou será que normas e regras ruins podem ser ainda um mal pior que a falta de normas e regras? Deixemos essas perguntas em aberto.A discussão que começo agora, sobre o abuso do chamado princípio da presunção de inocência, é um prolongamento da discussão sobre o princípio moderno da prova criminal, ainda sob o ponto de vista de sua negação. O abuso de uma fórmula que não serve como princípio serve a uma finalidade social específica, que pode ser a de negação do principio verdadeiro. Prossigo com discussão analítica da presunção de inocência, e depois investigo a historicidade da fórmula da dúvida razoável, do direito inglês, que é a contraparte do nosso instituto batizado de presunção de inocência, com sua fórmula latina do in dubio pro reo.

II – Abordagem analítica da presunção de inocênciaNo começo da teoria, desmontei o silogismo da decisão criminal para descobrir como é que os seus mecanismos internos se movimentam em direção ao veredicto, e descobri dentro desse silogismo uma parte que Aristóteles chama de tópos (plural tópoi). E com a ajuda de Slomkowski, descobri que esses tópoi são silogismos hipotéticos, auxiliares, expressos na fórmula Se P, então Q. Desenvolvo, então, com Aristóteles, o tema da presunção de inocência, e por que ele não pode ser um princípio.Sobre o termo princípio, Aristóteles ensina, no livro Delta da Metafísica (em torno a linha 1013a) que ele é “num sentido, a parte de alguma coisa de onde se pode começar a mover-se”.

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Noutro sentido, princípio também é “o melhor ponto de partida para cada coisa; por exemplo, no aprendizado de uma ciência, às vezes não se deve começar do que é objetivamente primeiro e fundamento da coisa, mas do ponto a partir do qual pode-se aprender mais facilmente”. E resume todos os sentidos dizendo que “é comum a todos os significados de princípio o fato de ser o primeiro termo a partir do qual algo é ou é gerado ou é conhecido”. Mas relevante é também o princípio como elemento governativo: “aquilo por cuja vontade se movem as coisas que se movem e mudam as coisas que mudam; como são, por exemplo, as magistraturas das cidades” (Aristóteles, 2002, p. 188-90).No ponto de vista aristotélico, o que chamamos de presunção de inocência é uma regra de inferência que orienta o trabalho do juiz em determinado momento do julgamento, depois de terem as partes demonstrado suas provas. Logo, essa regra de inferência não pode ser o começo de movimento do silogismo. Mas a fórmula também não serve como princípio no sentido de elemento governativo. A presunção de inocência não governa nada no processo de formação da convicção, ela não nos orienta se e quando devemos pôr fé nos testemunhos, se e quando devemos começar a desconfiar desta ou daquela prova.Mas então que é a presunção de inocência?O advogado italiano Malatesta criticava os antigos criminalistas por “terem esfarrapado a lógica, a ponto de sobressaltarem até a sombra do pobre Aristóteles no outro mundo”, e propôs deduzir a presunção de inocência do que ele chamou de “princípio ontológico” ou “presunção-mãe”, que seria a fórmula segundo a qual o ordinário se presume (Malatesta, 2001, p. 94, 132). Ele desenvolve o argumento para resolver o problema da repartição do ônus da prova no julgamento criminal, que discutiremos somente mais adiante. É suficiente dizer, de passagem, que temos direito de não admitir presunções na prova criminal, e nesse caso de nada nos serve uma presunção-mãe, que apenas gera presunções-filhotes, porque, lembrando Aristóteles, o igual procria o igual. Por enquanto é interessante observar que Malatesta tem razão em dizer que “a presunção tem direito a uma noção sua, própria [...] embora a ciência não lhe tenha até o presente determinado a noção” (Malatesta, 2001, p. 193). Mas Malatesta conhecia bem pouco Aristóteles.No capítulo 5, concluímos que a presunção de inocência é um tópos, que pode ser definido como um silogismo hipotético auxiliar que opera dentro do silogismo da decisão criminal. Aqui é importante aproximar os dois termos, porque o tópos tem algo parecido com o princípio, que é o fato de não precisar de dedução: nós simplesmente escolhemos o tópos que nos auxiliará no julgamento, e pedimos que todos consintam com essa escolha. Depois de feita a escolha, a regra de inferência será algo óbvio e não problemático. Prova disso é que modernamente ninguém mais disputa a presunção de inocência. (De passagem: o princípio verdadeiro da prova criminal, a livre apreciação da prova, esse sim é disputado e de modo bastante acirrado). Então será melhor dizer, com Perelman no § 21 de seu Tratado da Argumentação, que a presunção de inocência, como todas as presunções, é apenas um “primeiro acordo no campo do preferível” (Perelman, 2005, p. 95). Essa presunção, que hoje posa de fundamento da prova criminal, não é mais que simples instrução de procedimento para a conclusão do silogismo, empregada por razões políticas e utilitárias, entre as quais a mais relevante é a que nos limita no tempo, pois o julgamento precisa terminar com condenação ou absolvição, para bem ou para mal. E depois disso, certo ou errado, precisa transitar em julgado, tornar-se definitivo, algo que já indicia que essa verdade produzida na justiça não é uma verdade científica, e também não é uma verdade histórica. Mas esse tema pede discussão mais aprofundada. Por enquanto pergunto: que significa, fora dos manuais de direito, essa tal presunção de inocência?Em primeiro lugar, temos aqui uma instituição da justiça criminal. Se não sabemos o seu

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significado hoje, porque ela parece uma nuvem de confusões, será útil procurar saber como ela veio ao mundo. Em se tratando de instituições sociais, procurar pela genealogia é também compreender o que é, porque essas instituições aparecem no mundo para satisfazer necessidades sociais. Prossigo com James Whitman, que dedicou rigoroso estudo para explicar os mistérios e a força mítica que a expressão conquistou também para os juristas da tradição norte-americana.

III – A dúvida razoável: instrumento de busca da verdade ou de conforto moral?Segundo a tese de James Whitman, a fórmula da dúvida razoável aparece hoje como algo misterioso e mistificado porque nós perdemos de vista sua intenção original: “Na origem, essa regra que nos parece tão familiar não se prestava à função que lhe pedimos hoje: não era uma regra precipuamente voltada para a proteção do acusado. Ao contrário disso … por estranho que pareça, a regra da dúvida razoável foi originalmente concebida para proteger as almas dos jurados da danação … não foi originalmente concebida para tornar a condenação mais difícil para os jurados. Ela foi criada para tornar a condenação mais fácil, por assegurar aos jurados que suas almas estariam seguras se eles votassem pela condenação” (Whitman, 2008, p. 3).Penso que o notável acerto da historiografia de Whitman vem de ele ter antecedido à investigação da historicidade uma abordagem analítica do fenômeno do julgamento criminal, pois isso evita que a gente entre na história com pressupostos ingênuos. A analítica do julgamento criminal revela que o fenômeno é heterogêneo. Aristóteles já ensinava que nesse terreno não pode existir precisão matemática, porque nossos juízos são envolvidos por sentimentos de prazer e de dor. Whitman parte da hipótese de trabalho segundo a qual o julgamento criminal é um combinado de institutos que nos ajudam a conhecer a verdade do fato passado com outros que nos prestam auxílio moral para suportar a dor de condenar nossos semelhantes a castigos severos.A confusão entre as duas instituições gera os maiores problemas na imaginação dos juristas. Pode-se compreender o dilema na seguinte fórmula: um bom procedimento de busca da verdade dos fatos também proporciona boa medida de conforto moral, mas nem todo procedimento forjado para atender ao conforto moral serve de padrão para a busca da verdade dos fatos. Mas o que prova a existência desses procedimentos de conforto moral?Na demonstração analítica do fenômeno podemos contentar-nos, como prova do que existe, com a simples enumeração de institutos que servem a essa função de conforto moral. Whitman ilustra sua hipótese de trabalho com o pelotão de fuzilamento. Segundo a tradição, um atirador é sorteado para receber uma bala de festim, sem que o pelotão saiba qual. A finalidade dessa bala falsa está em desanuviar o peso de ser o atirador fatal. Sempre haverá dúvida sobre qual atirador atingiu o objetivo do pelotão e qual atirou com o festim. Essa dúvida não tem outro objetivo senão o de conforto moral para o desempenho de obrigação traumática no exercício regular de uma instituição de justiça. A partir desse exemplo, Whitman enumera três tipos de institutos de conforto moral: (na dicção original) randomizing, collectivizing e agency-denial.O primeiro pode ser traduzido como princípio aleatório. Alguns juízes que atuam no nosso tribunal do júri têm empregado essa prática do pelotão de fuzilamento ao deixar de abrir e revelar o voto do sétimo jurado quando os seis primeiros já votaram pela condenação. Alguns justificam o procedimento como rigor constitucional na garantia do “sigilo das votações” do conselho de sentença. Mas acredito que a função precípua da prática tenderia ao conforto moral de suscitar, para o condenado, a dúvida sobre se algum dos jurados o teria absolvido.A invenção do júri inglês seria típica instituição de conforto moral que opera através da coletivização do veredicto. “Stephen, o grande historiador do direito criminal do século 19,

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interpretava o julgamento pelo júri nesse exato sentido: ‘ele desonera os juízes de responsabilidade'” (Whitman, 2008, p. 16).Do outro lado do canal da Mancha, a sociedade feudal seguiu por outros caminhos para desonerar os juízes da responsabilidade enorme de condenar: o Continente desenvolveu um direito probatório aparentemente tão perfeito que parecia que era a lei que decidia, não os juízes (Whitman, 2008, p. 17), como instituto de conforto moral que traduzirei por negativa de autoria do julgamento (no original, agency-denial). A fórmula, com origem na doutrina da guerra justa de Santo Agostinho, forja nossa consciência coletiva de modo tão radical que ainda hoje ouvimos, no Supremo Tribunal Federal, que é o sistema que é cruel com os pobres e leniente com os poderosos, não o magistrado. Então precisamos voltar às origens, para tentar um caminho novo.A tese de Whitman sustenta que a dúvida razoável é um procedimento típico de conforto moral, que não pode funcionar como padrão de orientação para busca da verdade dos fatos. Ela seria “o último vestígio de um mundo cristão pré-moderno que desapareceu” (Whitman, 2008, p. 3). Essa natureza da dúvida razoável seria a mesma que possuiu, a seu tempo, a ordália, ou julgamento de Deus. Vale a pena discorrer um pouco sobre a ordália, tema em que o autor destrói todas as fantasias correntes na imaginação dos juristas.Que nos dizem a tradição e nosso imaginário coletivo sobre a ordália? Não é preciso citar uma fonte, pois todos os juristas repetem a mesma concepção. A ordália ou julgamento de Deus seria um tipo de julgamento de tempos bárbaros, primitivos, em que os homens não sabiam usar a racionalidade para a colheita de provas, então recorriam ao julgamento de Deus, que seria uma espécie de “oráculo invertido”, que não profetiza o futuro, mas descobre o passado. Essa fantasia está muito longe da verdade, e tem, entre suas curiosidades, o fato de ter origem no Romantismo alemão, precisamente no “pai-fundador da história do direito medieval” que foi Jacob Grimm, um dos irmãos Grimm dos contos de fadas (Whitman, 2008, p. 67). A verdade, porém, é que a ordália não era um oráculo invertido. Acontecia na sociedade feudal histórica algo parecido com o que acontece em alguns nichos de nossa velha-nova sociedade feudal (que discuti no capítulo 21): os crimes ocorriam entre conhecidos, as pessoas sabiam tudo a respeito deles, mas simplesmente ninguém abria o bico. Hoje, como naquele tempo, é grande o risco de ser testemunha de um crime e contar o que viu. A força das monarquias na dissolução do direito feudal se impunha na mesma direção dos esforços do nosso Estado, hoje, para a proteção de testemunhas. O aparecimento de densas populações urbanas, em que se cometem crimes anonimamente, cuja descoberta de autoria seria algo como um romance policial, é algo mais moderno que o período clássico de vigência da ordália.Além de não responder à pergunta sobre quem julgava o suspeito para submetê-lo à ordália, e com que meios de prova, a fantasia romântica do oráculo invertido não consegue explicar as razões para o fato exaustivamente comprovado de que a partir de 1215 os julgamentos de Deus desapareceram na experiência inglesa, mas prosseguiram no Continente até o século 18 (Whitman, 2008, p. 126). Se houvesse uma mudança misteriosa nos métodos de descoberta da verdade, da magia para a racionalidade, não se compreende por que os juízes continentais teriam sido tão lentos em conseguir operar esse misterioso salto.A verdade é que a ordália não tinha função de descobrir a verdade, como se fosse um oráculo invertido, não tinha função epistemológica, para empregar um termo abusado pelo garantismo penal de Luigi Ferrajoli. A ordália era infligida a pessoas cuja culpa já era considerada óbvia. E aqui retornamos à hipótese analítica de Whitman: não sendo um instituto forjado para busca da verdade factual, necessariamente terá função de conforto moral. A função da ordália estava em tirar dos ombros do homem feudal, temente a Deus, a responsabilidade enorme de julgar, através da função que Whitman chama de agency-denial, e podemos traduzir por negativa de

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autoria.A fantasia romântica associou a ordália ao oráculo grego. Nada mais equivocado, pois as sociedades em que essas instituições existiram eram fundamentalmente diferentes no que diz respeito à divisão do poder. A pólis grega e a república romana dividiam o poder entre dois tipos humanos: o cidadão privilegiado e o estrangeiro, sem privilégios. Essa dicotomia desaparece assim que Roma se torna um império, e aparecem distinções novas, fundadas no prestígio social. Cidadãos bem colocados (honestiores) sujeitam-se a penas de perda de bens e de banimento, ao passo que os menos bem colocados socialmente sujeitam-se às penas de trabalhos em minas e à morte na cruz (Strachan Davidson, 1912, p. 170). A sociedade feudal é uma sociedade pós-imperial que conserva as distinções sociais típicas do império romano. As provas dos diferentes tipos de julgamento de Deus variavam de acordo com o prestígio social do acusado. O julgamento por combate, do qual descende o duelo, era prerrogativa das pessoas de alto prestígio social, ao passo que as provas do ferro quente, da água fria e da água quente, eram reservadas às pessoas de baixo prestígio social. Outro fato relevante que desconhecemos em nosso imaginário da ordália, é que esses julgamentos não eram tão comuns quanto pensamos:“Os julgamentos de Deus, sejam eles por combate ou pelas ordálias, para os de menor status social, ocorriam como uma espécie de último recurso procedimental, depois que outros modos de decisão já se haviam esgotado. Eram usados apenas se quatro condições se conjugassem: 1) que um acusador formal não tenha aparecido; 2) que nenhuma testemunha tenha prestado testemunho; 3) que o acusado não tenha confessado, e 4) que o assunto não pudesse ser resolvido pelo juramento de um honorável, se acusada uma pessoa de alto status”. (Whitman, 2008, p. 60).Em suma, a pessoa era submetida à ordália por ter baixo status social, mas não havia dúvida de que era considerada autora do fato criminoso, segundo o que se chamava então de “fama”, a voz corrente da comunidade, ou “rumores, a voz do povo dizendo que uma pessoa é culpada”. O significado da ordália era para as pessoas de baixo status equivalente ao juramento exculpatório das pessoas de alto status. Quem se submetia à prova de Deus não podia exculpar-se pelo juramento, mas podia pedir a Deus que testemunhasse por si. A ordália, assim, não era um procedimento de busca da verdade real (ou factual, já que o termo verdade real incomoda a alguns de nossos comentadores): não era um teste de verdade do fato objetivo, mas um teste de veracidade subjetiva da pessoa acusada (Whitman, 2008, p. 64). A prova de Deus revela se as partes “mentiram ou ocultaram a verdade”. Nesse contexto, compreendemos por que o direito corrente da prova por combate declarava o perdedor como autor de “perjúrio”.Porém mesmo as pessoas de alto status recusavam-se ao juramento exculpatório e preferiam o combate. O homem feudal era temente a Deus. Muito mais que hoje, “nossos antepassados tinham medo de julgar, eles levavam a sério o que disse Mateus: não julgueis, ou sereis julgados!” (Whitman, 2008, p. 7).Disso tudo se deduz que a transformação política que ocorreu a partir de 1215 não foi a substituição do julgamento mágico pelo julgamento racional, mas uma gradual substituição de responsabilidades: sem dispor do julgamento de Deus, a sociedade feudal precisou impor o peso do julgamento às testemunhas.“a história do nascente julgamento pelo júri é efetivamente a história dos esforços monárquicos para obter testemunhos juramentados, a que as testemunhas seguiam resistindo. O nascimento do júri é assim um episódio na história da responsabilidade moral, não um episódio de modificação misteriosa nos modos de conhecimento dos fatos” (Whitman, 2008, p. 58).

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Um fato interessante na história do júri inglês é que os jurados, durante muito tempo, eram as próprias testemunhas do fato que julgavam. Outra verdade que desafia nosso imaginário sobre esses julgamentos de Deus é que algumas provas eram muito fáceis. Os teólogos combateram a ordália por razões estritamente religiosas, por serem provas que “tentavam a Deus” e que “envolviam o clero em derramamento de sangue”, mas também por razões sociais, pois reclamavam da alta taxa de absolvições desse modelo de provas, e que nessa sociedade feudal muitos crimes não recebiam punição (Whitman, 2008, p. 83).Pois bem, calçando agora nossas “botas de sete léguas”, vamos apressar um pouco a história. Que significou, em sua origem, a dúvida razoável? Segundo Whitman, o mesmo que a ordália: um mecanismo de responsabilidade moral. E por isso não se pode pedir que ela nos instrua sobre a incerteza, porque ela não é um instrumento de descoberta da verdade dos fatos. Se fosse, teríamos que perguntar, por qual tipo de metro nós medimos a razoabilidade da dúvida? Mas esse metro simplesmente não existe (ou melhor, como veremos adiante, não existe mais, desde que o Continente abriu mão da ciência matemática da prova, desenvolvida na Itália, e que se expandiu rapidamente, mas que simplesmente não funcionava sem a gambiarra da tortura).A fórmula da dúvida razoável deriva da fórmula teológica do safer path ou caminho mais seguro, e segundo os registros disponíveis começa a aparecer nos julgamentos ingleses por volta de 1780. Por que se precisou então de conforto moral para condenar alguém? Uma explicação razoável está no desenvolvimento dos modos de punição. Até então, as punições de sangue eram comutadas pelo banimento para a América. Desde que a Revolução americana começou, esse transporte de condenados se tornou impossível. Enquanto durou a Revolução, usou-se como punição o trabalho forçado nas galés. Apenas em 1787, o sistema inglês de punições reintroduziu o transporte dos condenados, agora para a Austrália. Foi nesse período em que a punição era incerta, entre 1775 e 1787, que se produziu uma crise no sistema de justiça inglês, e então foi introduzida a fórmula da dúvida razoável, com objetivo específico de minimizar a ansiedade dos jurados em relação ao peso do compromisso de julgar (Whitman, 2008, pp. 163, 200). Do mesmo modo como a regra da unanimidade dos 12 jurados, a fórmula é uma regra de conforto moral. “Não há nada na frase que nos diga o que fazer para determinar fatos incertos, sob qualquer padrão racional ou científico”.Por isso, conclui James Whitman, a fórmula da dúvida razoável só faz sentido no mundo moderno se voltarmos a valorizar sua função, ela só pode servir como exortação para “instruir obrigatoriamente os jurados de que a decisão deles é uma decisão ‘moral’, sobre o destino de um semelhante” (Whitman, 2008, p. 212). Em nossa tradição, ela só fará sentido se for uma fórmula que imponha ao juiz a responsabilidade de julgar e de condenar, tranquilizando sua consciência de que não está obrigado a condenar. E, no entanto, que fenômeno estranho acontece entre nós com o abuso da presunção de inocência?

IV – O abuso da presunção de inocência Se algo que não é um princípio se transforma em princípio, esse algo muda de lugar, de função, se desnatura, se transforma em outra coisa. Recentemente, em debates de rede, um colega ironizou esse princípio falso como “princípio ônibus”. A expressão é excelente, porque no princípio abusado tudo de bom e de mal pega carona impunemente. Edilson Mougenot Bonfim deu a esse princípio-ônibus o nome de Princípio da Ingenuidade (Mougenot Bonfim, 2014). Vejamos como ele o descreve.Edilson Bonfim nos pede para ser lido “com alma e calma” pois dará uma “explicação simples e direta de grande parte do que chamamos ‘impunidade’, um sem número de equivocadas absolvições por … ‘insuficiência de provas’ … que caracterizam o erro judiciário negativo’ (absolvição dos culpados), que se contam aos milhares no país, em detrimento do –

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hoje já tão raro – ‘erro judiciário positivo’ (condenação do inocente) que quando acontece vira livro ou filme”. O que ele chama de princípio da ingenuidade é o princípio da inocência, embalado com “força mítica”, que se transforma numa espécie de “mantra mágico”, de que não falam os manuais, mas que pode ser objeto de “análise da psicologia judiciária penal”.Edilson Bonfim está certo quando diz que “é na psicologia que o barco da justiça naufraga“. Por isso, não nos interessam os manuais, mas essa psicologia. Porque o princípio da ingenuidade é uma “característica da personalidade do seu portador, uma má construção psicológica que acabou por incorporar-se à sua personalidade”. Pode ser traduzido como a elevação da dúvida a “profissão de fé”. A absolvição por insuficiência de provas “é a força motriz de sua personalidade, a escora moral de seu evangelho”. O portador dessa disfunção “crê que duvida, e esse será o único evangelho de sua fé”: “Encurralado por argumentos, espremido pelos fatos, com favor dirá de alguma ‘verdade’, para em seguida recitar o chavão equívoco de que ‘a verdade é relativa’ … com ares de superioridade”.Concordo com essa descrição do fenômeno psicológico causador do erro judiciário negativo, que se apresenta em espiral inflacionária no mercado da justiça criminal de hoje, mas não chamaria isso de ingenuidade. O ingênuo não tem malícia, é simples e franco. Esse duvidador profissional, “com ar superior e condescendente”, é inteligente e astuciosamente inverte o silogismo, deslocando aquele “primeiro acordo no campo do preferível” do final do julgamento para o começo. A conclusão pela absolvição por insuficiência de provas já possui. O que lhe falta são as provas, mas para a falta de provas não é preciso prova, então malandramente pensa que não precisa provar seu julgamento, basta decretá-lo. O que resulta do seu julgamento é sempre um mau juízo, porque esse duvidador profissional não quer acertar, ele quer absolver. Ele não quer condenar ninguém porque não quer essa responsabilidade. Sempre desconfio desse juiz tão pródigo em erros judiciários negativos que será também capaz de fortalecer, astuciosamente, a pior das provas, se e quando precisar condenar alguém evidentemente inocente. Mas eu não chamaria isso tudo de ingenuidade. No mundo da justiça não existem ingênuos. Mesmo os novatos de bom coração perdem a ingenuidade na primeira rasteira que a estrutura judicial necessariamente lhes passa, porque isso é de sua essência como instituição política, cujos móveis são o poder e o prestígio. O que Edilson Mougenot chama de ingenuidade é uma disposição permanente da alma para a improbidade. Apenas de passagem, arrisco-me a considerar essa improbidade em categorias da psicologia, inspirado em Freud: o bom uso da absolvição por insuficiência de provas envolve probidade no julgamento dos fatos, discernimento sobre o tanto que se pode acreditar e o que não se pode acreditar, e isso tudo é regulado pelo Princípio de Realidade. A improbidade do duvidador profissional atende ao Princípio do Prazer. O princípio do prazer, nas instituições de justiça, por sua vez, atende aos móveis psicológicos do poder e do prestígio. Nesses motivos ocultos encontraremos os preconceitos do dia, a moda, aquilo que parece de bom tom, pacotes ideológicos como a contemporânea ‘correção política’, medo do poder difuso da opinião de todos, enfim móveis psicológicos que orientam os grupos sociais que Max Weber chama de estamentos, em oposição à motivação simplesmente econômica das classes sociais. Resumidamente, “chama-se situação estamental uma pretensão, tipicamente eficaz, a privilégios positivos ou negativos em relação à consideração social” (Weber, 1987, p. 245).Mas essa disfunção de justiça, por ser aquilo que Edilson Bonfim corretamente descreve como “má construção psicológica que acabou por incorporar-se à sua personalidade”, não pode ser diretamente preocupação de uma teoria da prova, pois esta não tem a pretensão de ensinar probidade. Se duas são as causas de mau juízo, improbidade e loucura ou insensatez (improbity and folly), nossa preocupação é com a segunda, com a loucura ou insensatez das práticas dos juristas, adquiridas por imitação, e garantidas por algumas teorias. A justiça

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criminal é uma instituição do imaginário coletivo, e esse imaginário também é garantido por teorias que promovem o tópos da presunção de inocência, ou da dúvida razoável, à condição de “mantra mágico”. Então descobriremos, surpresos, que o evangelho do duvidador profissional, de que fala Mougenot Bonfim, é o Evangelho de Luigi Ferrajoli.Não tenho espaço para decifrar todos as piruetas do garantismo penal. Mas não é necessário examinar o livro todo, porque o poder de uma ideologia está em ser adquirida sem que o candidato tenha que ler as quase mil páginas de Direito e razão para ser garantista. Prefiro retratar o juiz garantista como um personagem. Não por acaso, a literatura moderna o retratou em dois momentos culminantes, e ambos são comédias. O juiz garantista de Luigi Ferrajoli tem algo do Lord Angelo, de Shakespeare, em Measure for measure, combinado com o cavaleiro errante don Quijote, de Miguel de Cervantes.

V – O juiz garantista: Lord Angelo pós-modernoQue significa o fundamento moderno da prova criminal, a livre apreciação da prova? Essencialmente, que esse é o fundamento mais difícil, porque a Liberdade não é um fundamento seguro como era Deus. Mas Deus morreu para o processo criminal em 1215 e nos deixou de herança o peso de condenar nossos pares. A tirania inglesa empurrou esse peso para a coletividade unânime dos 12 jurados. De modo simbólico, os ingleses sublimaram com sucesso o trauma da morte de Deus, e aliviaram o peso enorme da herança pela fórmula de conforto moral da coletivização. O continente não “trabalhou” (para usar um termo da economia freudiana) o trauma: seguiu negando a morte de Deus. Substituiu o Deus ausente pela Ciência dos juristas, que fantasiaram que o peso e a credibilidade de cada prova poderiam ser pesadas, antes do fato, numa espécie de cardápio, que sequer precisou ser elevado à condição de lei (na França jamais foi). Então esse juiz continental segue recusando a responsabilidade de condenar, como se fosse ainda o homem feudal, temente a Deus, que praticava a negativa de autoria do julgamento submetendo o suspeito às provas de Deus, para que Deus testemunhasse pelo acusado. Como isso tudo é algo ridículo, é evidente que um grande comediante representaria esse juiz como personagem de comédia. Kantorovicz, em nota ao primeiro capítulo de sua formidável obra, Os dois corpos do rei, refere que Max Radin, em artigo na Harvard Law Review de 1947, “sublinha com muita ênfase a associação de Shakespeare ‘aos baderneiros estudantes de direito de Londres'” (Kantorovicz, 1998, p. 319). Shakespeare devia conhecer as grandes fórmulas do direito probatório continental e sua teologia, herdada da doutrina da guerra justa de Santo Agostinho, que exonerava o juiz de responsabilidade dizendo: não sou eu quem julga, é a lei, fórmula que aparece explícita na figura de Lord Angelo, em Measure for Measure: Be you content, fair maid. / It is the law, not I, condemn your brother. (William Shakespeare, Measure for Measure, Act 2, Scene 2, lines 100-101). O mais formidável nesse retrato psicológico do juiz continental é que Shakespeare acerta em descrevê-lo como figura da improbidade em pessoa, um falso moralista que faz troça do júri inglês em que ladrões julgam outros ladrões (The jury passing on the prisoner’s life, / May in the sworn twelve have a thief or two /Guiltier than him they try. (Act 2, Scene 1, lines 20-24), e ressuscita a lei, adormecida, a ferro e fogo, mas condenando em outros faltas que ele mesmo cometera. Nas palavras do duque, Shame to him whose cruel striking/ kills for faults of his own liking. [...] O, what may man within him hide, Though angel on the outward side! (Act 3, Scene 1, lines 447-452).Lord Angelo é o retrato em negativo do juiz garantista, o duvidador profissional descrito por Mougenot Bonfim, porque ambos têm em comum a irresponsabilidade. Eles não são responsáveis, afinal, quem julga é a lei, o sistema. Para aperfeiçoar o personagem pós-moderno do juiz garantista, precisamos recuperar o imaginário pré-moderno de exoneração de responsabilidade, a fórmula da negativa de autoria (agency denial), e associá-lo ao retorno do socialmente reprimido. O continente reprimiu o trauma da morte de Deus, mas Deus retorna

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como fundamento do garantismo. Só que o retorno do reprimido nunca traz de volta exatamente o reprimido, pois o inconsciente é matreiro. Então o Deus que retorna não é mais um, ele é dois. O deus maior é o deus da Redenção que é só Bondade, e não é responsável pela ordem de nosso mundo, onde vigoram a Justiça e a Retribuição, atributos do deus menor, da Criação. Possivelmente Miguel de Cervantes faça troça desse juiz gnóstico na figura do cavaleiro errante don Quijote, para quem “aunque los atributos de Dios son todos iguales, más resplandece a nuestro ver el de la misericordia que el de la justicia”. Porque a cavalaria andante, diz don Quijote, é uma ciência “que encierra en sí todas o las más ciencias del mundo, a causa que el que la profesa ha de ser jurisperito” (Cervantes, 1992, pp. 842, 665). O outro lado da justiça, a equidade dos ingleses, é retratado na comédia do rápido governo de Sancho na ilha Barataria. Mas nos episódios hilários das andanças do cavaleiro da Triste Figura, a coragem de don Quijote se retrai, como na ocasião em que uma venda é tomada de assalto, e Quijote diz, aqui “deténgome, porque no me es licito poner mano a la espada contra gente escuderil“, enquanto a dona da venda e sua filha “desesperaban de ver la cobardía de don Quijote, y de lo mal que lo pasaba su marido, señor y padre” (Cervantes, 1992, p. 455). É possível que os perfis de juízes, hoje forjados sobre o personagem de don Quijote, não percebam que tudo aí foi retratado de pura burla, de troça, como algo que parece sublime mas não é humano. Em suma, Cervantes não é percebido como comediante, que apenas de passagem dá seu recado, disfarçado no narrador cuja identidade nunca chegamos a saber ao certo, como quando sublinha, na Novela do curioso impertinente: “el que busca lo imposible, es justo que lo posible se le niegue” (Cervantes, 1992, p. 343). Poderíamos guardar essa mensagem como orientação geral de nossa teoria da prova sob o paradigma indiciário: quem ainda tem obsessão pela confissão do suspeito, busca o possível, mas altamente improvável: é justo que os indícios se lhe fujam, porque não os procura, e não procurando não os encontrará.O juiz garantista pós-moderno tem alma pré-moderna, é o Lord Angelo, da improbidade, somado aos sonhos nostálgicos de don Quijote, que vive num mundo reencantado (termo recorrente no romance), sem aceitar que o mundo moderno desencantou-se. Quando a tradição continental passou a desacreditar do fundamento que lhe excluía a responsabilidade, a Ciência, ela precisou de um fundamento novo. Para reforçar a negativa de autoria de responsabilidade de julgar e condenar, buscou socorro na fórmula da dúvida razoável, reencantada como princípio heurístico de descoberta da verdade, que tornaria o juiz, mais uma vez, uma espécie de cientista da prova. Mas ninguém mais acredita nesse falso deus da Ciência, então o Deus que retorna volta embrulhado numa teologia. Deus retorna na pós-modernidade, como fundamento do processo criminal, como resposta ao medo da Contingência, resposta fundamentalista ao fundamento moderno (a Liberdade): em suma, é resposta ao medo da Liberdade. A filósofa Agnes Heller declara, no final do capítulo chamado Contingência de sua filosofia da história em fragmentos, exatamente isso: “O relativismo não é uma posição epistemológica, mas a manifestação filosófica de recusa à aposta. Os relativistas são os covardes do pensamento” (Heller, 1993, p. 35).Todos os pensamentos do garantismo penal de Luigi Ferrajoli poderiam ser descritos como alegorias gnósticas. Como Evangelho gnóstico, o garantismo recolhe colagens de tudo que possa contribuir para que o juiz garantista exerça com absoluta soberania sua missão sublime de redentor dos underdogs de nosso tempo. Para Ferrajoli, underdogs são todos os acusados, independentemente de culpa formada e da gravidade de seus crimes, porque são aqueles visados pela Justiça, pela divindade menor, o Ministério Público, que não conhece o princípio supremo da Caridade, apenas o princípio de justiça da Retribuição. Não seria absurdo especular que essa teologia política de Ferrajoli tenha sido criada num momento de grave crise de identidade no direito criminal italiano, que correspondeu à tentativa de importação da

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plea-bargaining norte-americana. Porque para o juiz Ferrajoli, forjado sobre o evangelho da caridade de don Quijote, doeu demais perder o poder exclusivo de perdoar seus acusados, ao ver-se forçado a dividir poder com o deus menor da Criação, regulado pelo princípio de Justiça e Retribuição. Ferrajoli restabelece, como satisfação sub-rogada desse trauma em sua auto-estima, uma teoria criminal que seria uma ciência, em que o juiz garantista obedeceria apenas à Razão (dele, Ferrajoli). Na base da teoria, está uma formidável fantasia sobre a dupla epistemologia da decisão criminal. O que Ferrajoli chama de decisionismo (uma colagem apenas do nome cunhado por Carl Schmitt, pois que na essência a teologia política de Ferrajoli é decisionista) equivale à fantasia romântica alemã do “oráculo invertido”. Ferrajoli desconhece a historiografia da prova, então ele pensa que em tempos primitivos as pessoas eram julgadas pela decisão de alguém, algo que equivaleria a seu decreto de vontade ou capricho, como se o culpado estivesse passando pela rua e alguém lhe apontasse o dedo para persegui-lo: hereje, bruxa. Ferrajoli imagina que na Ciência dele a decisão seria resultado de um ato de Cognição (Gnose) que ele chama de Cognitivismo. Mal sabe ele que os processos de feitiçaria corresponderiam ao ideal que ele chama de cognitivista: o magistrado tinha bem pouca participação naquilo tudo, a bruxa submetia-se ao perito médico, que excluiria qualquer causa natural para a possessão, e ao perito religioso, que provaria a presença do demônio. “No debate público em torno das possessões e da intervenção diabólica nos assuntos humanos, os magistrados se mantêm recolhidos, e por assim dizer, silenciosos”. No processo de extinção do crime de feitiçaria, foram os “magistrados parisienses [que] adquiriram rapidamente essa reputação de não aceitar facilmente as provas do pacto diabólico” (Mandrou, 1979, p. 288).Mas que significa esse cognitivismo ou essa epistemologia da descoberta da verdade factual? Para Ferrajoli, um jogo em que o juiz seria uma espécie de cientista no laboratório, testando diversas jogadas no tabuleiro de xadrez, pelo método popperiano da falsificabilidade. E aí temos o erro radical de tudo, que vai redundar no evangelho do duvidador profissional descrito por Mougenot Bonfim. Para salvar todos os acusados do castigo imposto pelo deus menor da Criação, Lord Angelo/Quijote precisou encontrar a mais relativa entre todas as diversas concepções de verdade disponíveis no mercado da modernidade. A ciência é uma empreitada modesta e sua verdade é sempre relativa, algo que Max Weber descobriu, bem antes de Popper. Mas a convicção que temos sobre um fato não é, e não será nunca, uma verdade científica, nem mesmo segundo Karl Popper (discutirei isso adiante, num excurso sobre o problema das verdades).Por enquanto, encerro com o que o garantismo penal tem de mais curioso. Ferrajoli vai fazendo desfilar ao longo do livro, como numa procissão ou uma escola de samba com diversos carros alegóricos, inspirações que ele extrai livremente da tradição. Por exemplo, Ferrajoli ouviu dizer que na teoria de modernidade de Max Weber o júri seria um tipo de justiça pré-moderno, de racionalidade material e portanto de irracionalidade formal, e, assim, visto sob a perspectiva da teoria de racionalização, ou de desencantamento do mundo moderno, o júri seria uma espécie de “resquício de magia na modernidade”. Essa inspiração Ferrajoli faz desfilar na comissão de frente, porque sugere que o juiz-cientista popperiano, que ele idealiza, seria racional, e os leigos do júri inglês seriam irracionais e atrasados. Mas que curioso descobrir que mais adiante, num outro carro alegórico, Ferrajoli faz desfilar no garantismo a recusa peremptória, outro elemento mágico do júri, não apenas com aprovação, mas como herança a ser aproveitada pelo juiz gnóstico/garantista. A recusa peremptória é instituto típico do júri, utilizado para formação do conselho de sentença, que permite ao acusado recusar certo número de jurados sorteados, sem dar qualquer razão para a recusa. Pois bem, se isso é mágico, não podia ser aceito no garantismo racional de Ferrajoli. E no entanto o pai do garantismo doutrina que a recusa do juiz“por parte do imputado deve ser … o mais livre possível. O juiz [...] se não deve gozar do

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consenso da maioria, tem no entanto de desfrutar da confiança dos sujeitos individuais e concretos por ele julgados, de modo que essas pessoas não só não tenham, mas inclusive não temam, ter um juiz inimigo ou, seja como for, não imparcial. [Por isso o réu deve ter direito a recusa peremptória do juiz. É bem verdade que]: “Todos [os juristas] limitaram a livre recusa apenas aos juízes populares, excluindo-a para os juízes togados. Mas essa limitação, ao menos no direito penal, é no meu entender completamente injustificada.” (Ferrajoli, 2010, p. 536).Lord Angelo, de Shakespeare, e don Quijote, de Cervantes, foram criados para fazer graça. O juiz garantista pós-moderno, de Ferrajoli, no entanto, não só se leva a sério, como faz muita gente razoável embarcar nessa comédia como se fosse algo sério. Eu me permito encerrar o capítulo no espírito da comédia. Assim não tem graça, Luigi Ferrajoli, porque a fila de acusados na porta do juiz garantista ficará enorme, e os colegas normais sem serviço. Para fechar com um gancho com nossa próxima discussão, sobre as verdades, direi que Max Weber, esse grande filósofo que interpretou os sentidos da morte de Deus na modernidade, na fórmula do “desencantamento do mundo”, não tem culpa pelo abuso que sua teoria sofre no garantismo penal. Prosseguiremos, caminhando com Max Weber, não apenas com espírito de reverência à autoridade dele, que é enorme, mas também com amizade ao estudante de direito que detestava a soberba dos professores alemães, que doutrinavam verdades políticas em suas cátedras. Porque:

“é muito fácil ter coragem num lugar onde os ouvintes, que talvez pensem de outro modo, estão condenados ao silêncio” (Marianne Weber, 1995, p. 487).

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