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LITERATURA "A Marca do Z" retrata percurso de Jorge Zahar, pioneiro na publicação de títulos de ciências humanas e sociais no país. Por Marina Della Valle, para o Valor, de São Paulo Uma vida de livros A o completar 60 anos, a editora Zahar decidiu comemorar a data com um livro sobre seu funda- dor, Jorge Zahar (1920-1998), pioneiro na publicação de livros de ciên- cias humanas e sociais no Brasil: "A Marca do Z" (296 págs., R$ 59,90), do jornalista e escritor Paulo Roberto Pires. "Queríamos contribuir para o registro da história dos editores do Brasil. Não temos esse hábito de publicar biografias, as vidas dos edito- res. São capítulos da história do livro que se perdem", diz Ana Cristina Zahar, filha de Jorge e diretora editorial da Zahar. Não que o pai fosse afeito ao destaque. 0 livro mostra um homem afável no trato, ge- neroso em compartilhar conhecimento e um ouvinte atento — mas avesso à exposi- ção gratuita. "Ele condicionava entrevistas ao trabalho dele", conta Pires, que fez a últi- ma entrevista concedida por Zahar. "Posava para a foto apenas ao lado do livro, coisas assim. Ele achava que o trabalho era mais importante." Uma das poucas concessões que fez foi sua participação na série "Editan- do o Editor", da Edusp, transcrição de um depoimento seu na Universidade de São Paulo, cujo texto final insistiu em editar. Dez anos antes do primeiro lançamento da Zahar, Jorge e os irmãos Ernesto e Lu- cien haviam montado a livraria Ler, parce- ria em família que se repetiria na fundação da editora. De acordo com "A Marca do Z", Zahar já via na importação e venda de li- vros uma responsabilidade política e cultu- ral. Teria a mesma visão do papel de editor. "Para ele, era parte da função social. A ge- ração dele se preocupou em formar o país. Isso se perdeu", afirma Ana Cristina. A Ler já se destacava no campo das ciên- cias sociais, antes mesmo da criação da edi- tora. Os estudos acadêmicos na área de ciências humanas passavam por um mo- mento de organização e desenvolvimento, gerando estudantes ávidos por material atualizado e livros difíceis de serem encon- trados. Foi nesse ambiente que se deu a criação da Zahar Editores, voltada para li- vros de não ficção que pudessem atender a demanda dos universitários sem alienar o leitor não especializado. Em 1957, o primeiro livro da Zahar Edito- res chegava às prateleiras das livrarias: o "Ma- nual de Sociologia", de Jay Rumney e Joseph Maier, que também inaugurava a coleção Bi- blioteca de Ciências Sociais. Era o início de um catálogo que incluiria Bronislaw Mali- nowslci, Karl Mannheim, Charles Wright Mills, Sigmund Freud, Carl Jung, Wilhelm Reich e "A História da Riqueza do Homem", de Leo Huberman, que Zahar chegou a decla- rar ter sido o livro de sua vida de editor. Jorge Zahar não se interessava pelo livro do momento, que gerava um grande nú- mero de vendas imediatas. Preocupou-se em montar um catálogo de fundo, que se- guiria vendendo ao longo dos anos. A edi- tora foi responsável por difundir a obra de uma série de autores consagrados na área da psicanálise no Brasil, como Erich Fromm, Jung e, principalmente, Jacques Lacan. Foi pela Zahar Editores que Fernan- 26 I Valor I Sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Uma vida de livros - ftp.zahar.com.brftp.zahar.com.br/.../valoreconomico_euefimdesemana_24.11.2017.pdf · de livros Ao completar 60 anos, ... Foi o em-brião da coleção Clássicos

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LITERATURA

"A Marca do Z" retrata percurso de Jorge Zahar, pioneiro na publicação de títulos de ciências humanas e sociais no país. Por Marina Della Valle, para o Valor, de São Paulo

Uma vida de livros A

o completar 60 anos, a editora Zahar decidiu comemorar a data com um livro sobre seu funda-dor, Jorge Zahar (1920-1998),

pioneiro na publicação de livros de ciên-cias humanas e sociais no Brasil: "A Marca do Z" (296 págs., R$ 59,90), do jornalista e escritor Paulo Roberto Pires. "Queríamos contribuir para o registro da história dos editores do Brasil. Não temos esse hábito de publicar biografias, as vidas dos edito-res. São capítulos da história do livro que se perdem", diz Ana Cristina Zahar, filha de Jorge e diretora editorial da Zahar.

Não que o pai fosse afeito ao destaque. 0 livro mostra um homem afável no trato, ge-neroso em compartilhar conhecimento e um ouvinte atento — mas avesso à exposi-ção gratuita. "Ele condicionava entrevistas ao trabalho dele", conta Pires, que fez a últi-ma entrevista concedida por Zahar. "Posava para a foto apenas ao lado do livro, coisas assim. Ele achava que o trabalho era mais importante." Uma das poucas concessões

que fez foi sua participação na série "Editan-do o Editor", da Edusp, transcrição de um depoimento seu na Universidade de São Paulo, cujo texto final insistiu em editar.

Dez anos antes do primeiro lançamento da Zahar, Jorge e os irmãos Ernesto e Lu-cien haviam montado a livraria Ler, parce-ria em família que se repetiria na fundação da editora. De acordo com "A Marca do Z", Zahar já via na importação e venda de li-vros uma responsabilidade política e cultu-ral. Teria a mesma visão do papel de editor. "Para ele, era parte da função social. A ge-ração dele se preocupou em formar o país. Isso se perdeu", afirma Ana Cristina.

A Ler já se destacava no campo das ciên-cias sociais, antes mesmo da criação da edi-tora. Os estudos acadêmicos na área de ciências humanas passavam por um mo-mento de organização e desenvolvimento, gerando estudantes ávidos por material atualizado e livros difíceis de serem encon-trados. Foi nesse ambiente que se deu a criação da Zahar Editores, voltada para li-

vros de não ficção que pudessem atender a demanda dos universitários sem alienar o leitor não especializado.

Em 1957, o primeiro livro da Zahar Edito-res chegava às prateleiras das livrarias: o "Ma-nual de Sociologia", de Jay Rumney e Joseph Maier, que também inaugurava a coleção Bi-blioteca de Ciências Sociais. Era o início de um catálogo que incluiria Bronislaw Mali-nowslci, Karl Mannheim, Charles Wright Mills, Sigmund Freud, Carl Jung, Wilhelm Reich e "A História da Riqueza do Homem", de Leo Huberman, que Zahar chegou a decla-rar ter sido o livro de sua vida de editor.

Jorge Zahar não se interessava pelo livro do momento, que gerava um grande nú-mero de vendas imediatas. Preocupou-se em montar um catálogo de fundo, que se-guiria vendendo ao longo dos anos. A edi-tora foi responsável por difundir a obra de uma série de autores consagrados na área da psicanálise no Brasil, como Erich Fromm, Jung e, principalmente, Jacques Lacan. Foi pela Zahar Editores que Fernan-

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"A geração dele [Jorge Zahar] se preocupou em formar o país. Isso se perdeu", afirma Ana Cristina Zahar, filha de Jorge e diretora editorial da Zahar

do Henrique Cardoso publicou seu "De-pendência e Desenvolvimento na América Latina", escrito em parceria com Enzo Fa-letto. A editora também foi responsável pe-la estreia de Maria da Conceição Tavares (com "Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro", de 1972).

A sociedade com os irmãos se desfez em 1973, e Zahar se associou à editora Guana-bara Koogan até 1984. No ano seguinte, em sociedade com os filhos Ana Cristina e Jorge Júnior, fundou a Jorge Zahar Editor. Ana Cristina havia começado a trabalhar com o pai aos 17 anos, em 1970, mas, visada pela ditadura, foi para a Inglaterra, onde estu-dou linguística, tipografia e comunicação gráfica até voltar de vez, em 1977. Hoje, aos 65 anos, segue à frente da editora, que pas-sou a se chamar somente Zahar, como dire-tora editorial, ao lado da filha, Mariana, di-retora-executiva. Mais que uma sociedade familiar, a Zahar segue independente, em um mercado que passou por fusões e for-mação de conglomerados editoriais. "A in-

dependência é uma das coisas das quais mais nos orgulhamos", diz Ana Cristina.

A editora segue com a proposta de man-ter um catálogo de fundo robusto. Sob a ba-tuta de Ana Cristina, foi responsável pela publicação da obra do pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Seria o au-tor da vida editorial da filha de Zahar? "Foi em quem eu mais investi. Na época, o Bau-man não era tão famoso assim, foi um inves-timento pessoal muito grande", diz.

Com a terceira geração da família, a edi-tora passou a publicar de maneira consis-tente também livros de ficção — foi pelas mãos de Mariana, fã de Lewis Carroll (1832-1898), que a Zahar publicou em 2001 uma luxuosa edição anotada reunin-do os livros "As Aventuras de Alice no Pais das Maravilhas" e "Alice Através do Espe-lho", que venceu o Jabuti de tradução, feita por Maria Luiza X. de A. Borges. Foi o em-brião da coleção Clássicos Zahar, que in-clui obras de Arthur Conan Doyle, Alexan-dre Dumas e Julio Verne. A editora também

publica literatura infantojuvenil pelo selo Pequena Zahar.

Também foi pelas mãos de Mariana que a Zahar passou a apostar, desde 2003, no seg-mento dos e-books. Hoje 80% de seu catálogo está disponível em formato digital, e algumas obras são lançadas apenas em e-book. 0 fatu-ramento da editora no segmento foi de 5%, em 2015, para 6%, no ano passado, enquanto a média das grandes editoras é 4,5%. "Fomos uma das primeiras editoras a adotar o e-book. Era tudo muito difícil, trilhamos um caminho pioneiro", diz Ana Cristina. "Essa postura ini-cial veio da Mariana, que percebeu como um catálogo de fundo poderia se valer do e-book. Hoje temos um resultado muito bom."

Inovações à parte, basta uma olhada pelo catálogo da editora para perceber que o ca-minho editorial de Jorge Zahar segue orien-tando a editora. "Creio que a escolha dele de publicar não ficção veio da vontade que te-ve de participar da vida acadêmica", afirma Ana Cristina. Fora dela, deixou uma contri-buição ímpar para seu desenvolvimento.

Sexta-feira, 24 de novembro de 2017 I Valor I 27

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Zahar, . o homem que ponderava

Há quem diga que os homens das le-tras não rendem boas biografias por passarem a vida debruçados sobre livros, sem grandes aventu-

ras. "A Marca do Z" vem contrariar esse ra-ciocínio. Jorge Zahar não viveu, de fato, epi-sódios mirabolantes. No entanto, a mescla bem dosada de contextualização histórica, carreira e vida pessoal tornam o livro uma leitura interessante.

Paulo Roberto Pires, jornalista e editor, au-tor do perfil biográfico "Hélio Pellegrino, a Paixão Indignada" (Relume Dumará, 1998) e dos romances "E se Um de Nós Morrer" (2011, Alfaguara) e "Do Amor Ausente" (Rocco, 2000), passou três anos pesquisando a vida de Zahar, "entre idas e vindas". Diz que conhecia pouco o editor, mas "falava com ele razoavel-mente" — um dos muitos interlocutores que Zahar cultivou ao longo da vida. Terminou por fazer a última entrevista do editor. "Ele odiava ser objeto de um perfil. Era uma coisa da personalidade dele. Mesmo no caso do de-poimento na USP [livro da série "Editando o Editor", da Eduspb penaram para ele falar, e depois ele quis editar o texto."

Em sua pesquisa, Pires levantou informa-ções que surpreenderam até a filha de Zahar, Ana Cristina. "Havia coisas do come-

GABRIEL DE PAIVA/AGÉNCIA O GLOBO

Jorge Zahar: interesse pelo mundo acadêmico

ço da vida dele que eu não sabia, ou havia escutado de maneira diferente", diz Ana.

Filho de imigrantes (pai libanês e mãe francesa), Jorge Zahar teve uma juventude de pouco dinheiro, sem oportunidades pa-ra uma educação formal— o que despertou, segundo Ana Cristina, seu interesse pelo mundo acadêmico.

0 livro mostra um homem interessado em saber mais, aberto a novas visões e opi-niões. Conversava com diferentes pessoas, observava, ponderava e decidia. Entre os co-

nhecidos, tinha um certo papel agregador, de apaziguamento, mesmo entre os melho-res amigos, o editor da Civilização Brasileira, Ênio Silveira (1925-1996), e o jornalista Pau-lo Francis (1930-1997), que viriam a adotar posições politicas bastante diferentes no fim da vida, mas mantiveram a amizade.

Essa característica talvez tenha ajudado a mantê-lo mais distante da ditadura militar. Diferentemente de Silveira e Francis, Zahar ja-mais foi preso ou interrogado pelo regime. Não deixou, porém, de ser monitorado —pelo perfil das publicações, a Zahar era vista como uma editora que disseminava ideologias in-desejadas pelos militares. Com os filhos, a his-tória foi mais complicada — Ana Cristina e a irmã, Ana Maria, foram interrogadas, e a pri-meira se mudou para a Inglaterra por sete anos, enquanto o clima no Brasil fervia.

Se era avesso a qualquer atenção que não fosse proveniente de seu trabalho, Jorge Zahar era conhecido por ser generoso ao compartilhar sua experiência no mercado editorial. Muitos o definem como paternal — pará Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, foi um mentor e uma figura paterna. Assim, discretamente, terminou por deixar sua marca — a do Z — na história do merca-do editorial brasileiro. (MDV)

Nas telas, a atualidade de Lygia Fagundes Telles De São Paulo

Autora de "Ciranda de Pedra" (1954), "Antes do Baile Verde" (1970, "As Meninas" (1973), "Conspiração das Nuvens" (2007), entre muitos ou-

tros livros, Lygia Fagundes Telles, de 94 anos, é um dos nomes mais celebrados da literatura nacional e altamente devotada da arte que abraçou para se expressar: "Se você para de es-crever, se torna infeliz, pois está desfazendo uma vocação. Está tapando os ouvidos para um chamado", disse ela certa vez.

Um documentário como "Lygia, Uma Escritora Brasileira", dirigido por Helio Goldsztejn, é, portanto, um achado: refaz a trajetória da escritora e dá a dimensão da importância de seu percurso intelec-tual. Há quase 80 anos, uma menina de apenas 15 lançava seu primeiro livro de contos, "Porão e Sobrado". Em 1987, era eleita para ocupar a cadeira de número 16 na Academia Brasileira de Letras (ABL). E,

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Lygia: tema de documentário de Helio Goldsztejn

em 2005, foi reconhecida com o Prêmio Camões por seu trabalho pela literatura em língua portuguesa.

"Lygia, Uma Escritora Brasileira", em car-taz desde ontem nos cinemas, foi original-mente exibido pela IV Cultura, emissora que

produziu o documentário e onde Goldsztejn trabalha como diretor do "Metrópolis".

A produção partiu da seguinte premissa: as obras de Lygia conseguem o feito de es-tabelecer um diálogo com jovens gerações de blogueiros e ativistas ao mesmo tempo em que mergulham em "uma São Paulo que já não existe mais". A capital paulista dos anos 40, no inicio de carreira de Lygia, era uma território fértil onde a cultura ain-da era uma questão central.

Como muitos outros filmes do gênero — caso de "Tomie Ohtake" (2015), produção anterior de Goldsztejn—, um elenco variado de depoentes pontuam as diversas fases da vida de Lygia, uma artista multifacetada. Par-ticipam nomes como Jô Soares, Ignácio de Loyola Brandão, Tati Bernardi, Ana Verônica Mautner, Walnice Nogueira Galvão, Marceli-no Freire, Paulo Wemeck e Manuel da Costa Pinto. Não menos importante: a atriz Guta Ruiz dá um brilho adicional ao trabalho com suas leituras dos textos da escritora. •