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Uma_estrela_atrás da porta

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História de Natal

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Isabel Mendonça Soares

“Histórias no Jardim”

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Uma estrela atrás da porta

A senhora Docelinda tinha um nome tão mal posto!Não lhe dizia com a alma, nem lhe dizia com o rosto.Fora engano dos padrinhos o baptizarem-na assim, visto que ela era embirrenta e de coração ruim.Que mulher tão barulhenta! Que feitio mais rezingão! Chamaram-lhe doce, a ela? Só por troca. A Docelinda, azeda como limão!E como quem é azeda tem sempre a testa franzida e a cara toda amarela ou cinzenta cor de greda, a tal Docelinda era a criatura mais feia que havia na sua aldeia.Viesse pedir-lhe alguém:- Ó vizinha, dá-me lume?Respondia logo pronta, com os maus modos do costume:- Não tenho nem uma brasa!- E a pobre da vizinha voltava com frio para casa.Se outra lhe batia à porta:- Tem um pezinho de salsa?- Eu hoje não fui à horta! E que fosse!... A dar aos outros o que é meu, estava servida. Ainda acabava descalça!Vinha a velha tia Marta, que tinha o neto na tropa, a pedir com humildade:- Recebi hoje uma carta... Se a senhora Docelinda me fizesse a caridade de ma ler....- Tenha paciência. Agora estou ocupada. Há-de haver aí na aldeia muita gente que lha leia.E os que na aldeia moravam, uns para os outros comentavam: - Ai, credo! Que mulher esta! Não dá nada.- Nem empresta. Passa-lhe um desgraçadinho mesmo diante da porta, pois pensam que ela se importa? Que lhe dá um tostãozinho?E a "boa-tarde"? O "bom-dia"? Nunca lhe saem da boca. Daquela boca fechada.Nunca diz "se faz favor"; nem sequer "muito obrigada".Compadre quer que lhe diga: a Docelinda da Encosta não tem uma só amiga.Pois quem é que dela gosta? Repare vossemecê numa coisa que acontece: é costume cá da gente, às pessoas que conhece, mesmo sem ser seu parente, tratá-las por tio ou tia. Ora diga francamente se a alguém apetecia tratá-la desta maneira?Desde a fonte até ao rio, as línguas do mulherio não paravam de falar, e a senhora Docelinda ia atirando com as portas e dando

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respostas tortas aos que a iam procurar. Más palavras e maus modos era o que tinha para todos. Sempre azeda e mal disposta, torcendo a tudo o nariz, a Docelinda da Encosta afinal era infeliz porque tinha a alma dura, seca, peca e toda escura.Até que chegou Dezembro, o mês mais lindo do ano.É um mês frio? Ora, ora: nisso é que está o engano. Como pode haver friagem, se há calor no coração? É a verdadeira razão, é a razão principal que o mundo vem aquecer: porque é o mês do Natal e que Jesus vai nascer.Os meninos da doutrina andavam a ensaiar uma canção pequenina que na festa iam cantar.- Manuel, Celeste, Inês e tu, Joaquim, vamos cantar outra vez para ficar bem aprendida do princípio até ao fim.E, afinal, Senhor Padre, quando é que se arma a lapinha?Se me querem ajudar, já não há tempo a perder. Pode-se já começar.Eu quero.- Eu quero.- Eu também.Foram buscar o caixote das figurinhas de barro o João e o Manuel.-Ora cá. as temos todas embrulhadas em papel. Um rei mago... Uma pastora...Olha aqui está o burrinho.Três ovelhas... Outro rei... O moleiro ou o moinho...- Esta é a Nossa Senhora. E o S. José, onde está?Não tenhas pressa, Joaquim. A seu tempo aparecerá.- Olha o Menino Jesus! Como é lindo e rosadinho! Se eu soubesse fazer malha, fazia-Ihe um casaquinho.- Aqui ao fundo, na palha, ponho o burro e a vaquinha, mais um pastor... Mais um rei... Com estes já faz os três; onde é que os ponho?- Não sei.- Aqui ficam bem, Inês.- Cá temos o S. José de que andavas à procura. Ah! Mas que cabeça a minha! Ainda não temos verdura!Foram buscar buxo e hera a Celeste e o João, mais um ramo de azevinho; mas de musgo para o chão era preciso também arranjar um bocadinho.Disse o João:- Sei de um sítio onde há-de haver todo o que a gente quiser.Disse a Celeste:- E haverá?

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Anda comigo acolá ao princípio da encosta. No muro da Docelinda há musgo como um veludo.E se ela nos vê? Vai tudo raso. Já estou a tremer.Ela nunca limpa os muros, para não gastar com isso. A gente sem pedir paga, presta-lhe o mesmo serviço. Até é para agradecer. Tenho aqui um canivete; corta o musgo num instante.Nisto abriu-se uma janela.Era a Docelinda. Era ela!Que é lá isso, ó meu tratante! Girem daqui! Os dois! Já.Mas a gente não fez mal... Vinha só apanhar musgo para o presépio de Natal...- Não quero saber de razões! Seus patifes! Seus ladrões! Toca a andar, senão vou lá!A Celeste e o João foram-se embora a correr, pela encosta até à estrada.O céu pôs-se a escurecer, anunciando trovoada.A Docelinda, zangada com os dois pobres garotos, em casa barafustava:- Os atrevidos! Marotos! Não queriam eles mais nada!Ouviu-se um grande trovão:- Santa Barbara! Deus meu! É trovoada decerto... Ai, outro trovão mais perto! Até a casa tremeu.Olhou para o lado, e que viu atrás da porta a luzir?Era uma luz, pisca-pisca... Seria alguma faísca que ali viera cair? E uma voz suave dizia:- Desculpa, dá-me licença?- Quem será a atrevida que se esconde ali atrás? Ande lá à sua vida e deixe-me cá em paz.- Sou uma estrela...- Uma estrela?!!! Ora adeus, sua impostora! Saia já daí para fora, senão dou-lhe com uma vassoura!Mas parou, admirada! A vassoura ficou cheia de uma poeira doirada, como se fosse uma teia de aranha de ouro!- É bruxedo!- Sossegue, não tenha medo. Vou explicar-lhe quem sou eu. Sou uma estrela cadente que andava a correr pelo céu... Mas veio uma trovoada... Eu assustei-me e fugi. Muito aflita e já cansada, entrei, e abriguei-me aqui. Chove ainda tanto lá fora. Por Deus, não me mande embora.- Uma coisa tão esquisita só a mim acontecia! Mas quem é que me acredita se eu contar isto algum dia?- Não precisa de contar. É um segredo só nosso.- Não. Vai-te embora daqui; não podes ficar.

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- Não posso?- Que é que eu fazia de ti? Não me ajudas a varrer, nem a lavar ou comer, nem a fazer o comer, nem mesmo a tratar da horta.- Era lindo possuir uma estrela atrás da porta!- Oh! Que serventia tem?- Posso ajudá-la daqui, e penso que muito bem. Tem a testa tão franzida! Porquê? E nunca se ri? Também não sabe cantar? Gostava de a ensinar. É tão fácil experimentar... Quando estiver aborrecida, ou triste, ou até zangada, verá como isso a conforta, pense em mim que estou escondida, aqui por detrás da porta. Posso até, se preferir e a coisa correr mal, ligeiramente tossir para lhe fazer sinal. Quer aceitar a experiência?- Que disparate! Que asneira, entrar nessa brincadeira!- Com bons modos no falar e um pouquinho de paciência... Assim só... deste tamanho...- Está bem... se tens empenho.Entretanto, à mesma hora, em casa da tia Aurora, dizia ela ao marido:- Ora esta! Já não tenho nem um fiozinho de azeite para fritar as filhós. E o Zé da loja já vendeu todo o que havia!- Pede a alguém que to ceda. A Docelinda, talvez.- A Docelinda?!! Essa azeda?!!- Podias experimentar, pergunta-lhe e logo vês.Vai daí a tia Aurora bateu ao portão fechado.- Quem será a maçadora? - resmungou a Docelinda.Mas a estrela estava atenta:- Ah, ah, olhe o combinado!- Não estou habituada ainda. Então, o que hei-de fazer?- Vá abrir p'ra ver quem é. Se estiver atrapalhada, lembre-se de que estou ao pé.Foi a Docelinda abrir e ouviu a Aurora pedir:- Vizinha, faça o favor, tem azeite que me venda? Já se acabou o da tenda. Logo à noite é a consoada e as filhós estão por fritar... - Azeite! Mas quem lhe disse que eu o tinha para lhe dar? - disse logo a Docelinda. - Assim não, que é rabugice - segredou a estrela linda.A Docelinda emendou:- Espere aí... Talvez se arranje. Traz aí para onde o deite?E foi buscar o azeite.Quando a tia Aurora saiu, a estrelinha aplaudiu com a sua luz pisca-pisca:- Bravo! Para começar não se saiu nada mal. Mas podia desejar também um feliz Natal.

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- Pronto. A conversa acabou - disse a Docelinda, arisca. E o jantar que está ao lume, se calhar já se queimou!Na cozinha grande e fria, a Docelinda comeu. Depois levantou a mesa. Atrás da porta luzia, muito viva, muita acesa, a estrela vinda do céu.- Não vai à missa do Galo? - Perguntou ela, baixinho.- Com poucas pessoas falo. E está tão mau o caminho. Não vou por aí assim, aos tropeções sem ter luz.- Pois quê?! Queria ir sem mim ao presépio de Jesus? Estou pronta para a guiar. Escute bem o que lhe digo: tem uma lanterna, não tem? Eu meto-me dentro dela. Pode levar-me consigo.Deste modo a Docelinda, com a lanterna na mão e dentro dela a estrelinha, desceu à povoação.A igreja estava cheia, com toda a gente da aldeia.- Parece que estou no céu! Nunca vi coisa mais linda!- Então faça como eu: cante também, Docelinda - disse-lhe a estrela em segredo.- Eu?! Tenho vergonha. E medo. Porque sou desafinada.- Experimente, não custa nada.E a Docelinda cantou.Por fim, a missa acabou. Todo o povo no portal desejava boas festas: - Feliz e santo Natal!- Boas festas, Docelinda. Inda bem que está presente. Não quer ir à nossa casa para consoar com a gente? - convidou a tia Aurora. - Venha provar as filhós fritinhas no seu azeite.A Docelinda hesitava, mas a estrela aconselhava, brilhando:Vá lá... Aceite.Foi uma ceia feliz, com todos à volta dela:Coma agora um bocadinho de arroz doce com canela.Oferece-lhe pinhões.- E um copo de vinho fino?Já provou dos coscorões?- Vossemecês são tão bons - dizia ela, envergonhada. - Têm tanta gentileza... Não quero mais nada, obrigada.- A gente tem muito gosto em sentá-la à nossa mesa.- E dizíamos, nós, dantes... Desculpe mas era isso: que a senhora Docelinda picava como um ouriço. E que tinha a voz azeda como sumo de limão! Vê como a gente se engana?Docelinda concordou:- Pois tinham toda a razão. Inda não há muitas horas eu era assim tal e qual. Mas tive uma boa estrela nesta noite de Natal.- E agora tem-nos a nós. Viva a tia Docelinda, mais linda do que uma estrela e mais doce do que as filhós!

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Nunca mais a Docelinda deu uma resposta torta.Tinha sempre a ajudá-la a estrelinha atrás da porta.

Isabel Mendonça Soares“Histórias do Jardim”