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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado TEATRO UNIÃO E OLHO VIVO: CULTURA TRADICIONAL E ARTE POPULAR SIMONE CARLETO São Paulo 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“Júlio de Mesquita Filho”

Instituto de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes

Mestrado

TEATRO UNIÃO E OLHO VIVO:

CULTURA TRADICIONAL E ARTE POPULAR

SIMONE CARLETO

São Paulo

2009

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UNESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“Júlio de Mesquita Filho”

Instituto de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes

Mestrado

TEATRO UNIÃO E OLHO VIVO:

CULTURA TRADICIONAL E ARTE POPULAR

SIMONE CARLETO

Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial

exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área

de concentração em Artes Cênicas, linha de pesquisa

Teoria, prática, história e ensino das Artes Cênicas, sob

orientação do Professor Livre Docente Reynúncio

Napoleão de Lima para a obtenção do título de Mestre em

Artes.

São Paulo

2009

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C279t

Carleto, Simone

Teatro União e Olho Vivo: cultura tradicional e arte popular / Simone Carleto. - São Paulo :

[s.n.], 2009.

148 f. il.

Bibliografia

Orientador: Prof. Dr. Reynúncio Napoleão de Lima

Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes.

1. Teatro popular. 2. Teatro brasileiro. I. Lima, Reynúncio Napoleão de. II. Universidade

Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título

CDD – 792.0981

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Para Edmilson,

que me inspirou e me incentivou em todos os momentos.

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Agradecimentos

A Gabrielle, pela doçura e a tradução para o inglês.

Ao Lucas, pela proteção e transcrição da entrevista.

A Elisabetta e Valdir, meus pais, fundadores do Jornal Olho Vivo, motivos da minha

determinação.

Ao Fábio, meu fantástico irmão. Obrigada pela revisão do texto.

Ao Rey Lima, muito mais que um orientador, um amigo imprescindível, que foi

generosíssimo nos momentos em que mais precisei de ajuda. Meu mestre mais

querido.

Aos mestres Alberto Ikeda e Alexandre Mate, por confiarem em mim e

compreenderem minhas limitações.

A Claudete Ribeiro e Alessandra Jacob, pela profundidade do trabalho que realizam.

Ao Teatro Popular União e Olho Vivo, com quem aprendi muito mais do que aqui se

apresenta e que me transformou numa pessoa melhor.

A César Vieira e Graciela Rodrigues,

pela confiança e solidariedade.

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Resumo

Na presente pesquisa proponho a reflexão sobre a presença de manifestações

da cultura popular tradicional como o bumba-meu-boi, o circo, a literatura oral e de

cordel, nas obras do grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, como elementos

estruturais na abordagem de temas de relevância social, tais como greves, conflitos de

classe, étnicos e religiosos, alienação.

São tomados como base os textos O Evangelho segundo Zebedeu, 1970 e

Bumba, meu queixada, 1978; obras representativas dos mais de 40 anos de atividades

do grupo nas periferias de São Paulo. Discuto questões significativas para subsidiar o

interesse sobre o conceito e prática do Teatro Popular postulado pelo grupo,

estabelecendo nexos entre cultura popular tradicional, teatro popular e consciência

crítica. Além disso, são abordados aspectos como as formas de produção artística,

envolvendo o público ao qual se destina, os locais das apresentações e os elementos

que caracterizam a formação do grupo. A atividade do TUOV é uma alternativa

significativa de resistência à cultura de massa e o capitalismo pós-moderno, por

socializar conhecimento e difundir práticas humanísticas com sua arte teatral. O grupo

tem organização semelhante aos grupos de cultura tradicional das comunidades, em

que o popular é entendido no sentido de participar da criação, manutenção e

divulgação da obra artística.

Palavras-chave: teatro, teatro popular, cultura tradicional

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Abstract

In this research I propose a reflection on the presence of manifestations of popular

culture like the traditional bumba-meu-boi, the circus, oral literature and cordel

literature, in the works of the group Teatro Popular União e Olho Vivo, as structural

elements in addressing issues of social relevance, such as strikes, conflicts of class,

ethnics and religious, alienation.

Are taken as base the texts O Evangelho segundo Zebedeu, 1970 and Bumba,

meu queixada, 1978; representative works of more than 40 years of activities of the

group in the outskirts of São Paulo.

I discuss significant issues to subsidize the interest on the concept and

practice of the Popular Theater postulated by the group, establishing linkages between

traditional popular culture, popular theater and critical conscience. Furthermore, are

approached aspects such as forms of artistic production, involving the public wich is

intended, the locations of the presentations and the elements that characterize the

formation of the group. The activity of TUOV is a significant alternative to resistance

to culture of mass and post-modern capitalism, for socializing knowledge and

disseminate humanistic practices with their theater art. The group is organized

similarly to groups of traditional culture of the communities, in which the popular is

understood in the sense of participate of the creation, maintenance and dissemination

of artistic work.

Keywords: theater, popular theater, traditional culture.

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elogio do aprendizado

aprenda o mais simples! para aquelescuja hora chegoununca é tarde demais!aprenda o ABC; não basta, masaprenda! não desanime!comece! É preciso saber tudo!você tem que assumir o comando!

aprenda, homem no asilo!aprenda, homem na prisão!aprenda, mulher na cozinha!aprenda, ancião!você tem que assumir o comando!frequente a escola, você que não tem casa!adquira conhecimento, você que sente frio!você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.você tem que assumir o comando.

não se envergonhe de perguntar, camarada!não se deixe convencerveja com seus olhos!o que não sabe por conta próprianão sabe.verifique a contaé você que vai pagar.ponha o dedo sobre cada itempergunte: o que é isso?você tem que assumir o comando.

Bertolt Brecht(1898-1956)

Jornal do Goethe Institut e Fundação Clóvis Salgado, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em divulgação de evento referente aos 40 anos da morte de Bertolt Brecht, de 8 a 28 de setembro de 1996.

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Sumário

Introdução___________________________________________________________ 1

1. A resistência do Teatro União e Olho Vivo e sua identidade com o popular_____ 13

1.1. Histórico do grupo___________________________________________17

1.2. Peças e espetáculos__________________________________________ 20

1.3. César Vieira, o Idibal Pivetta___________________________________29

2. A estética de um teatro da militância___________________________________ 36

2.1. Características da cultura popular presentes nas peças do TUOV_______49

3. Desenvolvimento do trabalho coletivo___________________________________58

3.1. O Evangelho segundo Zebedeu__________________________________74

3.2. Bumba, meu queixada_________________________________________84

4. Considerações finais_________________________________________________94

Bibliografia________________________________________________101

Anexos____________________________________________________106

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Lista de Imagens

Imagem 1: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____12

Imagem 2: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____34

Imagem 3: Foto do espetáculo Barbosinha Futebó Crubi______________________35

Imagem 4: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____57

Imagem 5: Cartaz do espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, de 1970_________73

Imagem 6: Foto do espetáculo Bumba, meu queixada_________________________82

Imagem 7: Capa da edição de 1980 de Bumba, meu queixada__________________83

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Introdução

Na presente pesquisa proponho a reflexão a respeito da presença de elementos

da cultura popular tradicional como o bumba-meu-boi, o circo, a literatura oral e de

cordel, nas obras do Teatro Popular União e Olho Vivo, e o aproveitamento de seus

elementos característicos na abordagem de temas de relevância social, tais como

greves, conflitos de classe, étnicos e religiosos, alienação. Serão tomados como base os

textos O Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978), obras

representativas das atividades do grupo nas periferias de São Paulo. Mencionarei

questões significativas acerca do conceito e da prática do teatro popular postulados

pelo grupo, estabelecendo nexos entre cultura popular tradicional e consciência crítica.

Serão abordadas as formas de produção artística, envolvendo o público a que se

destina, os locais das apresentações e a formação do grupo.

O teatro de grupo vem sendo valorizado nos últimos anos como forma

significativa de produção e fruição artística, considerando sua proximidade das

comunidades da periferia da cidade, outras em “situação de rua” etc. A experiência do

Teatro Popular União e Olho Vivo é uma das mais conhecidas pelo seu trabalho junto

a esse segmento. Busco compreender certos aspectos fundamentais do trabalho deste

grupo a partir de alguns problemas.

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Qual a relação entre o posicionamento ideológico do grupo e o conceito de

cultura popular por ele defendido? Por quais motivos a produção do grupo pode ser

considerada como resistência cultural? Quais os fatores determinantes para a

continuidade do grupo por mais de 40 anos e qual a relação com o tipo de teatro

postulado? Que mecanismos internos se relacionam à posição política de seus

integrantes e à produção artística voltada para o público popular? Como o grupo

contextualiza sua produção? Como são definidos os temas e a forma dos espetáculos?

Quais os critérios utilizados para a escolha das manifestações tradicionais como base

dos espetáculos? Qual a efetividade do trabalho do grupo para a mobilização das

comunidades no sentido da solução de problemas coletivos?

Esse estudo torna-se necessário pelo crescimento do interesse de minha

geração pelo universo das culturas e do teatro populares diante do contexto em que

predomina a cultura de massa. Acredito que o Teatro Popular União e Olho Vivo

desenvolveu um conceito próprio de teatro popular, que vem sendo registrado pelo

grupo e alguns pesquisadores. Encontro uma lacuna bibliográfica no que diz respeito

às manifestações populares tradicionais como elementos formais das obras do TUOV.

Outra questão fundamental e mais genérica é a intensificação do interesse, não

só acadêmico, a respeito do que se chama teatro de grupo e de pesquisadores que

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sistematizam informações e reflexões sobre os meios de produção, veiculação e

recepção das obras artísticas. Estes procedimentos presentes na atualidade contribuem

de modo significativo para o teatro de pesquisa, de caráter explicitamente ideológico,

de comprometimento ético e estético em recusa da ambição comercial, do lucro

empresarial, da cultura de massa, considerando teatro popular e teatro comercial

como antagônicos. Para tanto, utilizo a abordagem qualitativa num estudo de caso.

Preliminarmente procedo a revisão documental e bibliográfica, recorrendo aos

registros realizados pelo grupo, como suas publicações, além de alguns autores que

pesquisaram ou fazem referências ao trabalho dele. Além disso, recorro a seus

integrantes, no sentido de proceder uma pesquisa que retome a história de

desenvolvimento do grupo, por meio do estudo de caso, observando sua produção

artística essencialmente popular. Para tanto, seleciono duas obras do grupo para

analisá-las do ponto de vista formal: a construção do texto, expedientes que

caracterizam a forma popular, bem como a presença de elementos da cultura popular

tradicional. Verifico, ainda, outras formas de interação adotadas pelo grupo. Lanço

mão de entrevistas, discos, fitas e vídeos.

Uma preocupação fundamental da pesquisa é a relação entre o teatro e as

culturas populares, como instrumento crítico de transformação ou resistência social.

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Como Bertolt Brecht, que pretende a realização de um teatro proletário em que se

mantenha a atualidade do popular, não preocupado com grandes lotações e com o

lucro, mas atento a pequenos agrupamentos com os quais se pode estabelecer um

diálogo efetivo sobre os problemas sociais, a partir da própria cultura das platéias,

como forma crítica de resistência cultural. Assim, o espectador, enriquecido por essa

experiência de análise do real, assume uma nova consciência da necessidade de

justiça social e de superação de desigualdades humilhantes e empobrecedoras.

Para fundamentar a questão da cultura popular, são estabelecidas relações com

a sociedade, a partir das contribuições de Florestan Fernandes (1978), para quem as

manifestações folclóricas e tradicionais se mantém pela necessidade humana de se

relacionar coletivamente e pela representação de vida que elas contém, dos

sentimentos e valores do homem. Ou seja, a representatividade de nossa cultura

guarda nossa história, nossas crenças e a conexão com os diversos momentos de

nossa vida, os nossos antepassados e, consequentemente, as gerações futuras.

Anatol Rosenfeld (1977), em diversas publicações, trata do teatro popular

como elemento necessário para apontar as contradições de sua própria continuidade

como resistência, mantendo vivo o espírito de insatisfação que impulsiona para a

transformação. É um elogio ao protesto, à reivindicação de ideais e valores, sempre

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presentes na história do teatro, sobretudo popular, desde as primeiras manifestações

das quais temos informação, desde o teatro grego, passando por Shakespeare e pelo

teatro épico de Brecht, para quem o conceito de popular se altera em face das

transformações sociais e do povo. Então, destacarei esta dialética na trajetória artística

do Teatro Popular União e Olho Vivo, transformando-se internamente por quatro

décadas, atento à dinâmica histórica, realizando espetáculos em locais da periferia,

estimulando a formação de pessoas que atuem nas comunidades em busca deste teatro

popular e reformulando suas práticas em decorrência desses contatos. Também busco

referência em Terry Eagleton, para quem a possibilidade do acúmulo de forças para a

transformação é algo efetivo no momento presente da sociedade, com base no

materialismo dialético.

No primeiro capítulo do trabalho, comento a respeito das atividades do grupo,

a partir das quais se torna possível uma reflexão a respeito do teatro popular como um

todo. No segundo, contextualizo a permanência do grupo abordando os conceitos de

cultura tradicional e popular. No terceiro capítulo, trato especificamente das obras O

Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978); explicitando a

estrutura que se apropria de elementos da cultura popular tradicional, relacionados a

conteúdos sócio-políticos. Abordo as questões referentes às manifestações populares

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tradicionais como circo, bumba-meu-boi, marujada, literatura oral e de cordel.

Proponho uma reflexão a respeito da forma e conteúdo, de acordo com as pretensões

político-ideológicas do TUOV, suas experiências e relevância.

A investida teatralista humorada e contundente do TUOV, alimentada pela

influência dos folguedos populares como tradição de convívio social e pelo encontro

do público das periferias, insere-se num contexto mais amplo da cultura brasileira de

reconhecimento dos valores de suas raízes ancestrais ao sincretizar as contribuições

dos povos branco, indígena e negro. Num sentido ideológico, insere-se ainda num

movimento libertário mundial, marcado pelo desejo de tomada de consciência do

trabalhador no que se refere às conquistas de seus direitos de cidadania, em confronto

com a exacerbada dominação do capital em detrimento da valorização da força de

trabalho.

No Brasil, a juventude dos anos 1960 e subsequentes, imbuída da visão crítica

acerca dessa circunstância histórica, quer construir um mundo de novas e mais justas

relações sociais. Para essa transformação, faz-se necessária a apropriação de formas

diversas de encontro, socialização de informações, de procedimentos e a divulgação

de uma atitude diante da complexidade do processo de mudança. É preciso buscar

parceiros nas diversas áreas de atuação social, nos postos de trabalho, nas

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comunidades. É preciso conscientizar os mais prejudicados pelo sistema e acumular

forças, a partir de diversos meios de construção de consciência libertária e

transformadora. A cultura, a arte, o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas, os

quadrinhos, a dança, são, antes de tudo, formas de expressão e comunicação. Neste

sentido, a onda contestatória apropriou-se dessas formas para impulsão dos ideais de

mudanças sociais e políticas.

É assim que, no final dos anos 1950 e início dos de 1960, cresce no país uma

ânsia revolucionária. O golpe militar de 1964, expressão armada da ideologia de

privilegiados, reprime esse movimento contestatário, expresso no desejo das reformas

de bases propostas no governo do Presidente João Goulart e apoiadas pelos grupos

mais progressistas, intelectuais, estudantes e artistas como César Vieira e muitos

outros. É o momento que propicia a união desses contestadores e o olho vivo

direcionado a contar a verdadeira história que foi ocultada. A ditadura militar cessa

em 1984, mas as contradições do sistema e as seculares diferenças sociais, as

injustiças, a fome e miséria dos povos, o profundo desrespeito aos direitos humanos,

os processos de exploração do trabalho e dos recursos da natureza não terminam com

as mentiras demagógicas da globalização. Atualmente, depois da decepção daqueles

que, por muito tempo, acreditaram que tudo pudesse ser diferente com representantes

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legítimos dos trabalhadores no poder, dos escândalos do governo Lula e da

continuada dependência do país ao mundo globalizado, a ditadura ideológica dos

privilegiados torna ainda muito forte a necessidade de atitudes combativas. A

aparente liberdade de escolha e as falsas promessas de um sistema que ainda

privilegia poucos e assola os demais com pobreza, discriminação e a imposição de um

modo de vida, os recursos da televisão e demais mídias, o incansável apelo ao

desenvolvimento econômico em detrimento das condições de vida mais igualitárias,

ilude e conforma. Anestesia e confunde. Os métodos teatrais do TUOV continuam a

desmistificar as inverdades sobre as condições de opressão da humanidade, seja pelos

temas que insiste contundentemente em tratar, seja pela determinação em ocupar

locais e espaços nada disputados pela arte comercializada e tão negligenciados que

são em nosso meio. Os parceiros continuam a ser buscados e o TUOV já acumula o

lastro de mais de 40 anos de luta, na qual os frutos subjetivos desse trabalho

certamente revertem em acúmulo significativo para a revolução do pensamento, da

ação e da possibilidade de mudanças efetivas. Aliando a construção interna de

procedimentos que privilegiam o coletivo, profundo respeito pela cultura brasileira

como elemento de convergência entre grupo e público e a tomada de posição a favor

das classes subalternas, o TUOV realiza sua proposta de arte popular como meio de

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descortinar possibilidades de transformação social e até de promover a auto-

transformação do grupo e de seus integrantes. Para além de pressupostos politizantes

no que se refere ao público, verifica-se a coerência interna na realização de um

trabalho que privilegia o coletivo sem, no entanto, abrir mão das diferenças

individuais criativas que contribuem para o enriquecimento da troca de experiências

entre os participantes do grupo e destes com a comunidade.

A divulgação da cultura brasileira e de suas manifestações tradicionais são

mais elementos que caracterizam a resistência do grupo à cultura massificada, já que

sua utilização como forma de criação e veiculação dos espetáculos atribui a elas um

caráter de inovação, a partir da apropriação estrutural que faz, sem esvaziá-las de seu

objetivo primeiro, a socialização e a integração de seus participantes. Além disso, sua

preocupação com o popular se revela nas demais esferas citadas, nas quais a

abrangência de suas atividades confirma sua opção pelo popular desde a formação do

elenco, dos espetáculos e do público. Fazer do teatro um meio de comunicar-se e, ao

mesmo tempo, como um fim em si mesmo, demonstra o amadurecimento do grupo

durante quatro décadas de atividade, considerando o fazer artístico coletivo como sua

maior riqueza, sem se preocupar com o acúmulo de capital de forma individualizada.

A socialização de procedimentos de construção de espetáculos, pesquisa de temas,

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escrita dramatúrgica e desenvolvimento da proposta de encenação, a partir dos

integrantes que estão há mais tempo no grupo com aqueles que ingressam, é uma ação

de desprendimento e solidariedade, bastante próxima do que ocorre nos núcleos

familiares e comunitários que se dedicam às manifestações populares tradicionais.

Seus conhecimentos dos folguedos e práticas artísticas populares são passadas de pai

para filho, de geração em geração, como forma de perpetuar hábitos significativos

para a identificação de valores comuns e de algo que una os seres humanos em torno

daquilo que se lhes apresenta como característica comum, aglutinadora e até festiva.

São ações que aproximam, congratulam, potencializando a convivência pacífica e o

bem comum. Privilegiam ações coletivas em contraponto à competição. Possibilitam

o diálogo em substituição da imposição. Essas práticas se tornam educativas, muitas

vezes mais significativas para os participantes que os conteúdos veiculados no ensino

formal, sabidamente tão desgastado na atualidade. Não se trata, porém, de buscar o

conservadorismo e o conformismo a partir das manifestações populares, mas

apropriar-se delas, de forma contextualizada e dinâmica, a partir de pesquisas

respeitosas e de apropriação consequente, seja para aguçar o potencial crítico das

comunidades, seja para a criação dos espetáculos em si, ou ainda para os processos de

construção do trabalho dos atores. A opção pelo popular, a despeito de seus primeiros

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idealizadores serem pessoas bastante intelectualizadas, orienta-se pela possibilidade

de transformação social a partir da identificação de ideais comuns àqueles que estão

dispostos a abrir mão de benefícios e possibilidades individuais, com a certeza de que

a vida pode ser melhor se, para a maior parte das pessoas, o bem puder ser partilhado,

em vez da idéia de competitividade, de superação individual e da ilusão das riquezas

materiais que denotam poder e supremacia de uns sobre outros. Na coletividade, a

troca iguala os seres em torno de objetivos comuns e a atividade teatral no caso do

TUOV, apenas por essa característica, representa já um excelente exercício de

resistência e de cidadania.

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Imagem 1: Oswaldo Ribeiro como João Cândido em João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata. Foto de Graciela Rodrigues.

O TUOV busca explicitar a realidade social do país, poeticamente, sensibilizando a platéia para o exercício crítico da cidadania.

Para mim, no Brasil, o teatro popular ou o teatro comercial não podem ficar alheios à realidade que os cerca. O teatro deve espelhar a realidade, despertar aqueles que o fazem e aqueles que o assistem para essa realidade. Deve fazer um diagnóstico. Deve ser como uma radiografia estética, bem feita, não panfletária. Uma radiografia que acuse o tumor onde ele existe... (Trecho de entrevista de César Vieira à Folha de S. Paulo, p. 39. s.d. Provavelmente 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.)

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1. A resistência do Teatro Popular União e Olho Vivo e sua identificação com o

popular

O União e Olho Vivo vai continuar sulcando os mares da fantasia desfraldando a bandeira da utopia.” (Frase impressa nos materiais do grupo e proferida no discurso de César Vieira na ocasião do recebimento do Prêmio Santo Dias1, na Assembléia Legislativa, em 12 de dezembro de 2003.)

O TUOV atua desde a sua fundação numa perspectiva da estética a serviço

da ética, na qual a utopia pode ser compreendida como um paradigma a ser

construído nas ações práticas do dia-a-dia, em que se busca o que se pode chamar de

coerência. Terry Eagleton propõe-nos uma visão dialética da utopia, aplicável nesse

caso:

Se a cultura como crítica deve ser mais do que uma fantasia ociosa, precisa ser indicativa daquelas práticas presentes que prefiguram algo da amizade e satisfação pelas quais anseia. Ela as encontra em parte da produção artística, e em parte naquelas culturas marginais que ainda não foram totalmente absorvidas pela lógica da utilidade. Ao absorver a cultura nesses outros sentidos, a cultura como crítica tenta evitar o modo puramente subjuntivo de “má” utopia, o qual consiste simplesmente em uma espécie de anseio melancólico, um “como seria bom se” sem base alguma no real. O equivalente político disso é a doença infantil conhecida como radicalismo de esquerda, que nega o presente em nome de algum futuro alternativo inconcebível. 2

A atenção do TUOV para os temas históricos e a cultura tradicional relacionando-os com problemas e aspirações das comunidades, busca aproximar-se daquilo que Eagleton (2005:9) recomenda:

1Santo Dias foi um trabalhador, morto pelas forças policiais da ditadura, na capital paulista, em 30 de outubro de 1979. Foi militante nos movimentos de operários e das comunidades eclesiais de base. Sua atuação e sua morte foram marcos na luta contra a repressão às manifestações políticas.

2Terry EAGLETON. A idéia de cultura, São Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 8.

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A “boa” utopia, ao contrário, descobre uma ponte entre o presente e o futuro naquelas forças no presente que são potencialmente capazes de transformá-lo. Um futuro desejável deve ser também um futuro exeqüível. Ao ligar-se a esses outros sentidos de cultura, que pelo menos têm a virtude de realmente existirem, o tipo mais utópico de cultura pode, assim, tornar-se uma forma de crítica imanente, julgando deficiente o presente ao medi-lo em relação a normas que ele próprio gerou. Nesse sentido, também, a cultura pode unir fato e valor, sendo tanto uma prestação de contas do real como uma antecipação do desejável. Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo “cultura” está destinado a olhar em duas direções opostas. A desconstrução, que mostra como uma situação acaba forçosamente violando a sua própria lógica justamente na tentativa de aderir a ela, é simplesmente um nome mais recente para essa noção tradicional de crítica imanente. Para os românticos radicais, a arte, a imaginação, a cultura folclórica ou comunidades “primitivas” são sinais de uma energia criativa que deve ser estendida à sociedade política como um todo. Para o marxismo, que surge na esteira do romantismo, ela é uma forma bem menos exaltada de energia criativa, aquela da classe operária, que pode transfigurar a própria ordem social da qual é o produto.

Então, pode-se dizer que a escolha pelo popular, identificada tanto na forma de

produção artística, quanto ao público a que se destina e do estilo teatral buscado para

a comunicação com este público, passa por uma opção dos artistas do grupo: a de

dimensionar o papel da arte com assuntos de interesse popular, como seus próprios e

relevantes para o público.

O TUOV propõe a troca de experiências com comunidades e se apresenta

como paradigma para alguns grupos que postulam comunicar-se com o público

popular. Esses grupos tornam-se afins e estabelecem uma rede de solidariedade e

respeito, como é o caso de Rogério Tarifa, da Cia. São Jorge de Variedades, que

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homenageou César Vieira, em 2007, com seu espetáculo Francisco pés após pés.3 É

Ariano Suassuna4 que argumenta oportunamente:

Podemos dizer que, depois de escolher sua Arte, o artista, aos poucos, tateando até encontrar o verdadeiro caminho necessário ao desenvolvimento de sua personalidade, escolherá, talvez até de modo a princípio inconsciente, uma família de espíritos afins, uma linhagem de parentes mais velhos à qual ele se filia, seguindo aquele impulso tão natural ao espírito humano de, mesmo quando vai renovar, apoiar-se numa tradição ou num exemplo. A originalidade não deve ser colocada, pelos jovens, como preocupação anterior: ela só é legítima quando é involuntária e espontânea.

O Teatro Popular União e Olho Vivo completou quarenta e dois anos de sua

trajetória em 2008, com trabalho voltado para as formas populares, a cultura

tradicional e o público como co-participante do espetáculo, os temas de interesse

popular, que dizem respeito aos trabalhadores, moradores de comunidades carentes e

de lugares não convencionais para exibições teatrais. O grupo se apresenta em

quaisquer lugares a que for chamado e adapta-se às possibilidades de interação com o

público. O debate é sempre um pressuposto para a troca de idéias e realização da

função do espetáculo de contextualizar historicamente os acontecimentos relatados na

fábula. A característica principal é a independência do grupo, que se mantém com

venda de espetáculos para prefeituras e instituições diversas, revertendo a verba para

3Em 2007, numa casa antiga, no bairro do Bexiga, Rogério Tarifa dedica seu espetáculo, Francisco pés após pés, ao diretor do Teatro Popular União e Olho Vivo, César Vieira. É uma fábula sobre o homem contemporâneo, seus fracassos e questões, contada a partir da história de Francisco, um morador de rua. Tendo como ponto de partida uma reflexão filosófica, a peça aprofunda uma discussão sobre as relações sociais. Extremamente poética, sensível e teatral, a peça emociona e nos faz pensar no mundo em que vivemos, como somos e o que podemos fazer com nosso passado, nosso presente e para o futuro. César Vieira é um dos nomes mais respeitados pela classe teatral em São Paulo e no país. Como referência de trabalho coletivo com o TUOV e de atuação militante. Rogério justifica a dedicatória pela profunda admiração que dedica ao artista e à sua atuação com o TUOV.

4 Ariano SUASSUNA. Iniciação à estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 264.

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financiar suas apresentações nas áreas mais distantes e carentes, além da abertura da

sede para apresentação de espetáculos. Com essa tática batizada de “Robin Hood”,

vende-se espetáculos para entidades que podem comprá-los, aplica-se a receita para as

idas a bairros, com ingressos a preços reduzidos ou gratuitos; adquire-se

reconhecimento público por sua trajetória artística, por seu posicionamento político,

seu trabalho incontestável, sua permanência ativa e participações em eventos que

marcam a organização da classe artística, com intervenções claramente políticas.

O TUOV não tem pretensões comerciais, nas mídias ou nos grandes circuitos;

firma uma opção ideológica de estar junto à classe popular, ainda que tenha o respeito

de teatrólogos e artistas reconhecidos no cenário nacional. É um conjunto brasileiro

que luta pela dignidade dos injustiçados, pela história trazida à tona em versões pouco

ou nada divulgadas. E o faz de modo coletivo, decidindo e atuando em grupo,

buscando socializar sua experiência, sua trajetória e seus procedimentos de criação,

contemplando o ato de educar e o de divertir. Envolvido e provocado ao mesmo

tempo, o espectador tende a reconhecer sua história e a mobilizar-se para interagir

com a realidade. Nesta proposição artística, o grupo também se transforma, de modo

dialético, reafirmando a cultura popular tradicional como valor de reconhecimento e

aproximação dos indivíduos da construção de sua história social. O grupo se

apresenta sempre aos finais de semana, também utilizados para ensaios e preparação

de seus espetáculos. Todos os integrantes desempenham outras funções profissionais

durante a semana.

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1.1. Histórico do grupo

O grupo surgiu na década de 1960, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco. Por

esse motivo, o seu primeiro nome foi "Teatro do Onze". O nome atual surgiu em

1971, com a encenação do espetáculo Rei Momo, em que aparece o Grêmio

Recreativo Escola de Samba União e Olho Vivo. Este também foi o nome dado ao

circo no qual a peça era encenada, no Parque do Ibirapuera, conforme registram os

cartazes da época. A personagem D. Pedro I utilizava a saudação: “União e olho

vivo!”. César Vieira, em curso ministrado na FUNARTE – São Paulo, em 2005,

relatou que a saudação, na verdade, aparecia nas cartas amorosas de D. Pedro:

“(...)não esqueça a chupadinha, união e olho vivo”. Daí a vocação popular do grupo

em sua essência, ou seja, exercer a possibilidade de rir daquilo que nos aprisiona,

zombar do poder e de nós mesmos, aproximar-se de forma diferenciada de

situações, problemas e poder encontrar coletivamente possíveis saídas e, na

atividade teatral, trocar experiências e percepções da realidade. Em seu estatuto, de

1978, o grupo se declara “em busca de um teatro popular”. A afirmação, em sua

simplicidade, traz a carga de compromisso com uma atuação cidadã na sociedade.

Sempre esteve envolvido com a produção artística de espetáculos e atividades

educacionais, como cursos e seminários, que aprofundam o olhar sobre a pesquisa

socializadora e contextualizada em sua realização. O grupo utiliza como sede, há

mais de dezoito anos, um galpão no bairro do Bom Retiro, à Rua Newton Prado,

766, onde realiza ensaios, reuniões, apresentações, cursos e troca de experiências

com entidades que têm finalidades comuns, sejam culturais, artísticas ou políticas. O

galpão, construído pelo próprio grupo, localiza-se em imóvel cedido pela Prefeitura

Municipal e recebe um público de até 120 pessoas em cada apresentação.

A formação do grupo é dinâmica desde o seu surgimento e se mantém coerente

com a proposta inicial nestes anos de atividade. Seus integrantes assumem funções

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diferenciadas, partilhando-as, enriquecendo os processos de troca e difundindo uma

série de procedimentos específicos de uma atuação verdadeiramente coletiva.

Em 2006 e 2007, o TUOV buscou divulgar sua trajetória de 40 anos com

apresentações, publicações, cursos, seminários e registros de toda a sua produção. Ao

longo desses anos, publicou todos os seus textos encenados, acompanhados de

reflexão sobre sua atuação, com o histórico de suas apresentações e das trocas de

experiências com as comunidades em que se apresentaram, inúmeras e tantas

intervenções realizadas em São Paulo e em todo o Brasil. Ativo, vivo e crítico, o

grupo amplia suas atividades e suas relações com a comunidade artística e

interessados em geral, trabalhadores de todas as áreas, estudantes, professores, de

modo a confirmar sua ação, seus procedimentos e sobretudo a atitude militante de

seus participantes.

No processo de amadurecimento de sua metodologia de criação e do

desenvolvimento de mecanismos para sua permanência, o TUOV passou de uma

produção intelectual voltada ao popular para uma produção coletiva com a

participação de pessoas da classe popular na formação do grupo. Desde a iniciativa

dos debates após os espetáculos já na década de 1960, passando pelo início de seu

percurso deambulante na década de 1970, e pela consolidação dessa prática junto ao

movimento operário na década de 19805. Nos anos 1990 até a atualidade, se configura

a necessidade de valorização do trabalho artístico e da organização de grupos de

atuação. O Teatro Popular União e Olho Vivo reafirmou-se como coletivo que

também colabora com outros tantos grupos e ações de mobilização e organização

política, artística ou cultural. A reflexão aqui apresentada sobre as duas peças O

Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978), se justifica pelo

fato de que, entre as duas, há a mudança de procedimento com relação à forma de

produção artística. O trabalho coletivo tem início no processo de construção da

5Esta idéia é aqui apresentada de forma esquemática, para oferecer um panorama da atividade do grupo. As informações relativas aos debates e a sua característica mambembe permanecem como pressupostos adequados às necessidades de cada momento.

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segunda, enquanto que, com relação à primeira, já havia sido deixado um lastro de

experiência socializante. O espetáculo permitiu o estabelecimento de uma dinâmica

do popular como forma, como conteúdo, a partir do tema, do local escolhido para as

apresentações e pela dinâmica de debates. Com a intensificação da relação com as

comunidades e da sensibilidade dos participantes do grupo para compreender a

necessidade de adaptação, surge naturalmente a idéia de construir também

coletivamente a obra teatral, com a participação de todos os envolvidos no processo

dos espetáculos: elenco, cenografia, iluminação etc. E também a partir das

observações do público, comentários de parceiros, membros das entidades e todas as

oportunidades de coletivização da criação artística foram muito bem aproveitadas,

para que o Teatro Popular União e Olho Vivo pudesse realizar por tanto tempo e

sempre com uma dinâmica de auto-transformação, a sua arte-militância. Por esse

motivo figura em incontáveis eventos de importância notável para a organização

artística e social.

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1.2.Peças e espetáculos

São muitos os espetáculos do grupo. Corinthians, meu amor (1967), teve texto

final de César Vieira, resultante de trabalho coletivo, com direção de Sérgio Pimentel.

Estreou no Teatro Casarão, no centro de São Paulo. O texto foi publicado pela Editora

Júlio e as músicas do texto foram gravadas pela RCA Victor, com Inezita Barroso.

O Evangelho segundo Zebedeu (1970), com texto final de César Vieira, com direção

de Silney Siqueira, músicas de Murilo Alvarenga Júnior, cenários e figurinos de José

de Anchieta. O texto foi publicado na Revista de Teatro SBAT, número 404, e

também nas revistas Dialog, da Polônia; Conjunto, de Cuba; e Teatro da Juventude,

da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

Rei Momo (1973), com texto final e direção de César Vieira, músicas de Carlos

Castilho, direção musical de Vitor Bertollucci Júnior, cenários e figurinos de Laura

Tetti e expressão corporal de Luíza Barreto Leite. Pesquisa de José Carlos Rston. O

texto foi publicado na Revista de Teatro SBAT, número 411, de 1976.

Bumba, meu queixada (1978), trabalho coletivo, com coordenação de texto de César

Vieira, músicas de José Maria Giroldo e cenários e figurinos de Laura Tetti. O texto

foi publicado pela Editora Grafitti (1980), e em disco pela Gravadora Marcus Pereira.

América, nossa América (1981), apresentação musical-teatral, tem disco pela Coleção

Clássicos da MPB, da Gravadora Marcus Pereira.

Morte aos brancos: a lenda de Sepé Tiarajú (1984), com texto final e direção de

César Vieira, músicas de José Maria Giroldo e expressão corporal de Luíza Barreto

Leite. Foi publicado pela Editora Tchê, Porto Alegre, 1987; Revista de Teatro SBAT,

número 456 e, em espanhol, pela Editora Casa de las Americas, Havana, Cuba.

Barbosinha Futebó Crubi: uma estória de Adonirans (1991), trabalho coletivo. Teve

como coordenadores César Vieira (texto final e direção), José Maria Giroldo

(músicas) e Graciela Rodrigues (cenários e figurinos). Foi publicado na revista

Teatro da Juventude, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1999.

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Us Juãos e os Magalis (1996), com texto final e direção de César Vieira; cenários e

figurinos de Graciela Rodriguez; músicas de José Maria Giroldo. Foi publicado pela

Revista de Teatro SBAT número 500, em 1997.

Brasil Quinhentão !? (2000), seleção de textos do grupo, com direção de César

Vieira, cenários e figurinos de Graciela Rodriguez. O espetáculo apresenta

retrospectiva das encenações históricas do TUOV, com uma visão crítica dos 500

anos da "descoberta" do Brasil.

João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata (2001), tem texto final e direção de

César Vieira. Estreou em novembro de 2001. Foi publicado pela Editora Casa

Amarela, em 2003.

Entre a carreira de um espetáculo e outro, o TUOV realizou apresentações

musicais-teatrais: Império Brasílico; Apito de fábrica; Ivoti Pitá: uma flor vermelha

e Barbosinha F.C. II.

O grupo também recebeu diversos prêmios e estímulos financeiros: melhor

texto, melhor figurino e melhor música, pela APCA, Associação Paulista de Críticos

de Arte, em 1971; melhor espetáculo popular, também pela APCA, Associação

Paulista de Críticos de Arte,em 1973;

Prêmio Anchieta, pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 1978;

Prêmio Mambembe, pelo INACEN, Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1980;

Prêmio Casa de las Américas, de Havana, Cuba; Prêmio Ollantay, por CELCIT, de

Caracas, Venezuela, em 1985;

Prêmio Estímulo ao Teatro, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em

1995;

Bolsa de Dramaturgia pela FUNARTE, em 1996;

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Prêmios Mambembe e Flávio Rangel, pelo Ministério da Cultura, em 1997;

Prêmio Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 1998;

Prêmio Carlos Miranda, pela Secretaria de Estado da Cultura, São Paulo; Prêmio

Encena Brasil; Prêmio Teatro Cidadão, da Secretaria Municipal de Cultura de São

Paulo, em 2001;

Lei de Fomento ao Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; Prêmio

Santo Dias de Direitos Humanos, da Assembléia Legislativa, pelas atividades do

TUOV em defesa do teatro popular, da liberdade e justiça social, em 2003

O grupo também participou de inúmeros festivais internacionais e outras

atividades:

Festival Internacional de Teatro de Nancy, França, em 1971;

Festival Mundial de Teatro de Wroclaw, Polônia, em 1973;

Festival Mundial da Juventude, Havana, Cuba, em 1978;

Apresentações em Lisboa, Portugal e temporada em Luanda, Angola, em 1981;

Festival Latino Americano de Teatro de Córdoba, Argentina, em 1984;

8º Festival Internacional de Teatro do Cairo, Egito; Espetáculo para o Papa João

Paulo II , em Castelgandolfo, Itália; ENTEPOLA, Encontro de Teatro Popular Latino

Americano, Encontro Internacional dos Excluídos, São Paulo, em 1996;

Encontro Nacional de Dramaturgos, SBAT, Rio de Janeiro, em 1998;

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II Encontro de Teatro de Grupo, São Paulo; Campanha em defesa da sede do TUOV,

Participação no Bloco Carnavalesco Morro da Casa Verde, Campeão do Carnaval

Paulista, em 1999;

Trabalho junto à ONG Meninos do Morumbi, São Paulo, em 2002;

Colaboração no desfile do GRES Camisa Verde e Branco de São Paulo com samba

enredo sobre João Cândido, Criação do Grupo Fonteatro Olho Vivo do Jaraguá, a

partir do Programa Municipal de Fomento ao Teatro e Participação no Movimento

Arte Contra a Barbárie, em 2003;

Encontro Nacional do Movimento de Teatro de Rua, Fórum Mundial de Cultura, São

Paulo, Inauguração do acervo do TUOV no Arquivo Multimeios do Centro Cultural

São Paulo, em 2004;

12º Porto Alegre em Cena, Porto Alegre; apresentações do documentário Fala,

mulher!, realizado a partir do contato com a Escola de Samba Camisa Verde e

Branco, em 2005;

Eventos comemorativos do aniversário de 40 anos de resistência do TUOV;

Seminário sobre Dramaturgia coletiva, no Teatro de Arena, Funarte, São Paulo, em

2006;

Temporada de espetáculos em Guarulhos, em diversos bairros, em 2007.

A atuação do grupo, os eventos que participa e as obras que realiza, atestam o

conceito de popular, a coerência entre discurso e prática, a linguagem teatral como

forma de comunicação com comunidades periféricas e de excluídos socialmente e à

margem da produção artística dos grandes centros. O tipo de teatro desenvolvido por

grupos como o TUOV têm sido acusados de “panfletários” (como se não o fossem

tantas outras produções consideradas de alta qualidade). Mas pode-se rejeitar estas

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pelo inverso: por não contemplarem assuntos de relevância social. Podemos recorrer,

ainda, à ampliação destes conceitos, no tocante ao TUOV em mais de quatro décadas

de atividade em relação a seu significado simbólico. Para adotarmos uma perspectiva

dialética ao refletirmos sobre a atuação assumidamente engajada do TUOV, vêmo-la

inserida no contexto em que os movimentos estudantis contam com o envolvimento

de intelectuais e artistas no concernente à relação entre cultura, arte e militância

política, ainda que se possa avaliar criticamente o posicionamento de alguns de seus

organizadores. Terry Eagleton (2005:11) reflete a propósito:

Se a palavra “cultura” guarda em si os resquícios de uma transição histórica de grande importância, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Se a cultura significa cultivo, um cuidado, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e que o mundo nos faz. É uma noção “realista”, no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão “construtivista”, já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que reconhecer que o termo 'cultura' já é uma tal desconstrução.

César Vieira, após ser presidente da UNE e acompanhar o movimento dos Centros

Populares de Cultura, os CPCs6, desenvolve seu trabalho teatral em parceria com o

grupo que virá a se tornar TUOV na década de 1970. Dessa forma, a visão da cultura

com seu poder transformador se mantém, apropriando-se cada vez mais do conceito

de popular a partir das adequações de forma e conteúdo de espetáculos, bem como

6 Os Centros Populares de Cultura eram vinculados à União Nacional dos Estudantes, formados por estudantes, intelectuais e artistas, e realizavam atividades político-culturais na década de 1960. Entre seus ativistas estavam Álvaro Vieira Pinto, Carlos Estevam, Ferreira Gullar, Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.

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dos debates com a comunidade. Nas primeiras décadas se observam as discussões de

problemas dos locais e atualmente de questões relativas ao teatro, como atividade de

interesse das comunidades, provavelmente pela intensificação de ações públicas e de

grupos teatrais que envolvem apresentações artísticas em espaços alternativos,

oferecimento de oficinas e projetos de formação de público. A valorização da cultura

e mais especificamente da arte como forma de conscientização e enriquecimento

pessoal, e também como elemento potencializado pedagogicamente, tende a colocar o

termo cultura numa perspectiva mais abrangente. César Vieira socializa seu

conhecimento erudito e o utiliza a favor de uma arte popular, priorizando a

dramaturgia coletiva. Ao referir-se ao espetáculo Bumba, meu queixada:

(...)às vezes estréia um espetáculo com cenas que eu absolutamente não colocaria, mas aquilo é escolha do coletivo. Na estréia de um espetáculo encontram-se cenas que eu absolutamente não concordaria que pudessem estar lá, como autor, como dramaturgo. Mas faz parte da criação coletiva, porque representa um ponto de vista de alguém que foi adotado pela maioria, tendo votos contrários ou não. Daí passo a esposar aquela idéia, e tentar transformá-la, na hora que eu sou diretor, como uma coisa esteticamente factível. Adoto aquilo e jamais vou dizer que não estou de acordo com essa cena. Seria fugir às normas do coletivo.7

Como coordenador do processo de dramaturgia coletiva, César Vieira teve publicados

todos os textos encenados pelo TUOV, ainda que os espetáculos possam apresentar

adaptações, diferenciando-se dos textos em vários momentos. Dramaturgia coletiva é

o nome que se dá ao processo de construção do texto teatral realizado no grupo. Há

uma “ficha dramática”8. São confeccionadas inúmeras fichas que darão subsídios à

7 César VIEIRA. Entrevista concedida a Alexandre Mate e Simone Carleto, São Paulo, 29 de abril de 2008.

8 Formulário utilizado por integrantes do grupo durante o processo de pesquisa para a construção do texto do espetáculo. Base da dramaturgia coletiva, contém campos para preenchimento de informações: tema do espetáculo, pesquisador, fonte e data da pesquisa, sugestão de personagens, ação, época, conflitos e detalhes importantes para a elaboração da cena.

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confecção do chamado “quadro dramático”9, base do texto que será elaborado pela

comissão de dramaturgia. As cenas são improvisadas posteriormente a partir do texto

já rascunhado. Após apresentações preliminares e registro de impressões, é feita a

versão final, adaptável a espaços convencionais e não-convencionais. Como resultado

desse processo têm-se a apropriação do conteúdo e da criação do espetáculo por parte

do grupo, comprometido com todas as fases de elaboração dos trabalhos.

Participantes das apresentações, da confecção de cenários, figurinos e adereços, da

montagem e desmontagem necessárias para a realização dos espetáculos nos bairros e

dos debates que ocorrem após a encenação, os atores têm a possibilidade de aprimorar

seu trabalho expressivo, a partir da prática dinâmica constante. Refletir a respeito da

opinião do público e das percepções dos espectadores e artistas do grupo permite a

afinação do espetáculo e o fortalecimento das relações solidárias no grupo. A

proposta do grupo em realizar espetáculos populares reúne as condições necessárias

para fazê-lo de forma que contemple os objetivos de comunicar-se com o público,

atraindo seu interesse para os temas significativos apresentados nos espetáculos do

TUOV. Sobre as opiniões da crítica a respeito dos espetáculos, na entrevista já

mencionada, César Vieira pontua:

Aprendi na escola de jornalismo, na aula de crítica, que um cara para analisar, falando especificamente do teatro, não de um livro, de um filme, de um quadro, tem que ter lido o texto e tem que ter um mínimo de noções de teatro. Para saber o que é marcação, onde a marcação confronta com o texto, onde segue e onde esquece o texto. Então, a primeira obrigação de um crítico seria ler esse texto, antes de analisá-lo. A segunda, é considerar todas as nuances que formam um espetáculo. Desde a expressão corporal, a marcação, a dicção, a iluminação e o som. Tem que considerar tudo isso, para depois apresentar a “palavra final”. Coisa que, infelizmente, eu acho não acontecer no Brasil(...) O crítico tem uma certa responsabilidade. Ele tem o jornal, tem seus leitores, para ter lido isso, analisado aquilo, vendo onde está a criação, até para respeitar o diretor. O diretor pode

9Apresenta um esquema que resume a coleta de dados para o espetáculo, contendo cenas, personagens, ações e conflitos. É um roteiro que reúne os temas apresentados para a criação do espetáculo.

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até ter mexido em tudo. Teve época que eu falava: Que é isso? Está mudando a minha peça? (...) Teve diretor que tirou o circo de O Evangelho segundo Zebedeu. Você tira o circo e a peça fica de pé. Ficou uma peça católica. Então, eu não vou aceitar isso!

Texto e encenação são dinâmicos no TUOV. Os textos são transportados para

os palcos, adaptando-se em processo, considerando os elementos de criação

apontados. Existe a priorização do público popular, que interage com as obras

apresentadas, fazendo sugestões que muitas vezes serão incorporadas ao espetáculo

As peças que o dramaturgo César Vieira assina, pela organização do trabalho

coletivo, são montadas pelo grupo e podem ser cedidas para montagens de outros

grupos. Um dos objetivos com as publicações mais recentes10 é justamente a

possibilidade do conhecimento e estudo destes textos por grupos de teatro formados

em comunidades ou para participantes de oficinas de teatro.11

10 Em Guarulhos, no ano de 2008, foram editados os textos teatrais montados pelo Teatro Popular União e Olho Vivo, em cinco volumes: volume 1 O Evangelho segundo Zebedeu; volume 2 Corinthians, meu amor e Rei Momo; volume 3 Bumba, meu queixada e Morte aos Brancos; volume 4 Barbosinha Futebó Crubi e Us Juãos i os Magalis; volume 5 João Cândido do Brasil. Este projeto foi financiado pelo Funcultura (Fundo Municipal de Cultura da Prefeitura de Guarulhos, coordenado pela Secretaria de Cultura) que aprovou projeto apresentado pelo Centro de Arte e Cultura Milton Santos, coordenado pela professora Célia Firmiano Virgino. Foram disponibilizados exemplares da coleção e realizadas palestras sobre a trajetória do grupo nos locais de desenvolvimento de atividades culturais e oficinas de teatro, como Pontos de Cultura (em 2008, funcionavam 17 na cidade, em decorrência da parceria realizada entre a Prefeitura de Guarulhos e o Governo Federal, através do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura – Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Ministro da Cultura Gilberto Gil) e outros equipamentos da Secretaria de Cultura. Nestes locais foram realizadas apresentações do TUOV no ano de 2007, pelo Programa Teatro Aberto, mantido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Guarulhos, de 2001 a 2008 – período em que Elói Pietá foi o prefeito da cidade e Edmilson Souza Secretário de Cultura. Os Pontos de Cultura estavam localizados nos seguintes bairros: Ponto de Cultura Cabuçu, Ponto de Cultura Cidade Jardim Cumbica, Ponto de Cultura Jardim Aeródromo/Lavras/Jardim Soberana, Ponto de Cultura Jardim Angélica, Ponto de Cultura Jardim Cumbica, Ponto de Cultura Jardim Jovaia/Cocaia, Ponto de Cultura Jardim Rosa de França, Ponto de Cultura Jardim Santa Emília/ Taboão, Ponto de Cultura Jardim São João /Lenize, Ponto de Cultura Jardim Uirapuru, Ponto de Cultura Parque Cecap, Ponto de Cultura Parque Continental, Ponto de Cultura Parque das Nações/Jurema, Ponto de Cultura Pimentas, Ponto de Cultura Ponte Alta, Ponto de Cultura Vila Augusta e Ponto de Cultura Vila São Rafael.

11 Nos mesmos locais, a Secretaria de Cultura de Guarulhos manteve, de 2001 a 2008, o Programa Oficinas Culturais, realizando cursos nas áreas de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, com oficinas de canto coral, capoeira, cerâmica, circo, dança afro, dança contemporânea, dança de salão, dança para crianças e

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O grupo pratica em sua organização interna o que divulga. Todos são

comprometidos com a atuação artística, em sua perspectiva ampla, a de uma atuação

que prime pela valorização do cidadão na coletividade. Ou seja, o popular não se

apresenta apenas na teoria, nos coloridos dos figurinos e cenários, ou ainda na música

das manifestações tradicionais da cultura brasileira, mas na opção pelo popular, na

tomada de partido a favor das causas sociais e pelo “desfraldar estético” da bandeira

do socialismo.

adolescentes, desenho, hip-hop (DJ - discotecagem, MC – mestre de cerimônoias, break – dança e grafite)musicalização para crianças, percussão, pintura, violão, teatro para crianças e adolescentes. Em atividades de teatro foram utilizados os textos do TUOV para conhecimento dos particpantes e a realização de exercícios diversos.

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1.3. César Vieira, o Idibal Pivetta, o César Vieira, o Idibal Pivetta, o César Vieira...

O nome César Vieira é o nome artístico do advogado Idibal Pivetta. Foi um

dos pseudônimos utilizados pelo dramaturgo, além de Id Almeida, Igor Palik. O

currículo de César Vieira, encontrado no sítio com informações sobre o grupo e em

suas publicações, começa da seguinte forma: “Nome: Idibal Pivetta. Residente em São

Paulo, S.P. Fundador do Teatro Popular União e Olho Vivo. 41 anos de TUOV”. Daí

em diante, segue com toda a sua atuação, de advogado a preso político, de professor a

ator, de estudante a diretor. Uma trajetória militante. Nasceu em 28 de julho de 1931,

em Jundiaí, Estado de São Paulo. Advogado formado pela PUC, Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo e jornalista formado pela Faculdade de Jornalismo

Cásper Líbero, em São Paulo. No seu histórico, acumula diversos prêmios, cargos e

funções de relevância política e social: Prêmio Literário IV Centenário da Cidade de

São Paulo, em 1954; Presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto da Faculdade

Direito da PUC, SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), em 1957;

Presidente do Centro Acadêmico Cásper Líbero, da Faculdade de Jornalismo, SP, em

1958; Presidente em exercício da UNE, em 1958; Membro da Casa Civil do Estado de

São Paulo, em 1960; Prêmio do Seminário Carioca de Dramaturgia, em 1967; Melhor

Autor Nacional, pela APCA, em 1970; Prêmio Casa das Américas, Havana, Cuba, em

1982; Prêmio Ollantay, CELCIT, Caracas, Venezuela, em 1984; Prêmio Mambembe,

FUNDACEN (Fundação Nacional para as Artes Cênicas), em 1986; Prêmio Vladimir

Herzog, do Sindicato dos Jornalistas, São Paulo, em 1988; Advogado de Presos

Políticos, de 1964 a 1988. Foi detido por 90 dias em maio de 1973 em defesa dos

presos políticos; Coordenador da Comissão de Direitos Humanos pela OAB (Ordem

dos Advogados do Brasil), em 1990; Presidente da APART, Associação Paulista de

Autores Teatrais, em 1991; Conselheiro da OAB, Ordem dos Advogados do Brasil,

SP., em 1994; Cidadão Honorário de SP, pela Câmara dos Vereadores, em 1994;

Presidente da SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em 1995; Medalha

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Pedro Ernesto da Câmara dos Vereadores, RJ, em 1996; Prêmio Estímulo de Teatro,

da Secretaria de Estado da Cultura, SP , em 1995, Prêmio Dramaturgia, FUNARTE -

MINC (Fundação Nacional das Artes – Ministério da Cultura), em1996.

Em 41 anos de carreira como dramaturgo, escreveu as seguintes obras: Mar de lama

(novela); Amores de Napoleão (novela); Alexandre de Gusmão (biografia); Santos

Dumont (biografia);O julgamento de Mané Garrincha (poesias); Em busca de um

teatro popular (ensaio); Em busca da verdade eleitoral (ensaio). Para teatro,

escreveu: Um uísque para o Rei Saul; O Evangelho segundo Zebedeu; Corinthians,

meu amor; O elevador; O transplante; Alguém late lá fora; Rei Momo; Bumba, meu

queixada; Morte aos brancos: a lenda de Sepé Tiarajú; Barbosinha Futebó Crubi:

uma estória de Adonirans; Us Juãos i os Magalis; Brasil Quinhentão!?!!; João

Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata.

Nas apresentações do TUOV, César Vieira chega com o grupo e, enquanto o elenco

prepara figurinos, cenários, adereços, ele coordena todo o processo de montagem,

conversa com os organizadores da apresentação no bairro, com o público, escolhe

com o grupo o melhor local para a montagem. É o mestre de cerimônia, apresentando

o grupo e a história que irão contar. Durante o espetáculo, observa a reação do

público e, ao final, apresenta o elenco, tomando cada um pela mão, dizendo nome,

idade, profissão e tempo como integrante do grupo. É uma forma de valorizar os

atores, pois cada um é importante para o sucesso do grupo e ao propósito de levar

espetáculos de qualidade às comunidades. O espectador se identifica com os atores

por serem pessoas comuns, como ele, desmistificando a relação que costuma haver

entre público e artistas, considerando o “estrelismo” de muitos daqueles que atuam na

televisão e nos palcos. Especificamente no TUOV, os atores estão mais próximos do

público e, embora tenham larga experiência, são considerados amadores. No TUOV,

qualquer pessoa comprometida com as atividades de pesquisa e artísticas pode vir a

integrá-lo. Essa característica possibilita qualidade ao trabalho e legitimidade para

estabelecer o diálogo com pessoas da classe popular, também representada hoje,

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segundo César Vieira, em 70% do TUOV; diferentemente do seu início, quando 70%

das pessoas eram de classe média. É uma inversão da lógica de perpetuação da

diferença entre os que têm acesso à produção cultural e aos que estão à margem dela,

para torná-los seres ativos de sua construção.

César Vieira abre mão muitas vezes de sua opinião individual, diante da necessidade

de construir algo para além do estético. Sua história de vida, o contato cotidiano com

os eventos da comunidade e os religiosos, a trajetória escolar, o contato com o circo, o

teatro, a história, a necessidade de contestar, foram fontes de sua dramaturgia. Esse

conjunto de vivências darão ao artista arcabouço de suas opções artísticas e políticas.

Vieira conta que, na sua infância e adolescência, em Jundiaí, participava dos eventos

que aconteciam na comunidade, como a Festa da Uva, as missas aos domingos, o

footing (quando jovens de várias classes passeavam na praça), as sessões do cinema

(Cine Politeama), o futebol de várzea e os bailes de carnaval. Depois mudou com os

pais para o Tatuapé e passou a estudar no Colégio Arquidiocesano. Daí a vivência com

ladainhas e missas, presentes em muitas das peças que escreve, como também aspectos

do futebol e da religiosidade. A primeira vez que viu teatro foi no colégio, uma história

sobre Maurício de Nassau. Frequentou também com sua tia o Teatro Brasileiro de

Comédia e o Teatro Cultura Artística. Um professor de Língua Portuguesa, Felipe

Jorge, o incentivou a escrever. Já no Colégio Bandeirantes, conheceu peças de

Shakespeare, o que, segundo ele, foi um motivo para que haja abordagem de assuntos

de natureza histórica na dramaturgia que produz. A experiência de vida de César

Vieira o tornou um homem de teatro, preocupado com as questões historicistas,

socialmente relevantes e com a divulgação e afirmação da cultura popular brasileira, a

busca de um teatro popular. Vieira lembra muito das feiras livres em Jundiaí, das falas,

das cores. Tanto em Jundiaí como no Tatuapé, teve oportunidade de assistir a

espetáculos no circo. Em Jundiaí, chegou a assistir A paixão de Cristo mais de dez

vezes. Gostou muito dos espetáculos de variedades e truques circenses. A cultura

popular, para Vieira e o grupo, é uma forma legítima de expressão, pura e bastante

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efetiva, porque se torna um forte vínculo com o público e para aqueles que a praticam.

Ele diz:

Procuramos assimilar, guardar a beleza, a maravilhosa transparência dos símbolos populares, desses símbolos que de tão claros parecem ter jorrado de uma fonte de água cristalina. Procuramos ficar envolvidos na verdade do sonho, da fantasia que, lentamente, vai se transformando em realidade (...) Esses símbolos verdade; esses sonhos-vida; essa fantasia-luta da qual sairá o único e inequívoco caminho da arte e da libertação.12

Nesse momento, verifica-se a idealização da cultura popular como elemento de

valorização nacional. Mais adiante haverá a conformação desses elementos da cultura

popular aos ideais do grupo, atraindo o público com suas cores, sonoridade e

desenvoltura, próprios do universo popular, veiculando o tema da greve, buscando

conscientizar o público, na maior parte das vezes nessa década, de trabalhadores.

Como presidente da UNE, União Nacional dos Estudantes, em 1958 e a partir da atuação dos CPCs, César Vieira passa a vislumbrar a atividade teatral do movimento estudantil que, a exemplo do espetáculo Morte e vida Severina, da obra de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque, dirigido por Silney Siqueira, se torna a grande possibilidade artística de intervenção social. Vieira comenta, em entrevista já citada que:

(...) Esse espetáculo foi um grande sucesso e colocou o teatro universitário no mesmo nível do teatro profissional. E com mais profundidade, devido ao seu conteúdo ideológico. (...) Aí o pessoal do XI de Agosto me procura porque queria fazer um espetáculo refundando ou praticamente fundando o novo Teatro do XI de Agosto. Então eu estava terminando uma peça chamada o Evangelho segundo Zebedeu.

12 César VIEIRA. Bumba, meu queixada. São Paulo: Grafitti, 1980, p.10.

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Esse é um momento de efervescência cultural e artística, no qual os intelectuais e

artistas discutem acerca da eficácia da arte para a conscientização política. Partia-se do

pressuposto de que as massas eram doutrinadas com idéias que nem sempre

correspondiam aos anseios desta mesma massa. Cogitavam-se então as possibilidades

de atuação artística e cultural, junto às massas tidas como alienadas, aos portadores da

cultura popular tradicional com suas manifestações tidas como alienantes e tudo o que

não fosse explicitamente comprometido ideologicamente. Conforme defende Eagleton

(2005:41-12):

Como idéia, a cultura começa a ser importante em quatro pontos de crise histórica: quando se torna única alternativa aparente a uma sociedade degradada; quando parece que, sem uma mudança social profunda, a cultura no sentido das artes e do bem viver não será nem mesmo possível; quando fornece os termos nos quais um grupo ou povo busca sua emancipação política; e quando uma potência imperialista é forçada a chegar a um acordo com o modo de vida daqueles que subjuga... A cultura, em outras palavras, chegou intelectualmente a uma posição de destaque quando passa a ser uma força politicamente relevante.

Daí considerarmos os extremos desses encaminhamentos, a partir dos quais se

aprisiona a arte em critérios excludentes de pessoas e possibilidades de ampliação de

referências. César Vieira demonstra respeito à diversidade como riqueza e exercício da

democracia:

Acho que o grupo dentro da sua proposta, dentro das possibilidades, consegue fazer que esse ideal permanente, através das transformações estéticas que sofre, das mudanças de praticidade, consegue atingir seu objetivo, fazendo um espetáculo que colabora para a transformação social. Um espetáculo esteticamente bem feito. Sempre temos muito cuidado em fazer esteticamente bem feito. Vai ver que tem gente que não gosta. A gente reconhece que tem alguns desníveis de ator, cada dia menos. Mas faz parte do jogo. (Entrevista citada)

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Imagem 2: Elenco de João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata, no Abrigo Boracéa, em São Paulo, que atende pessoas em “situação de rua”. Foto de Graciela Rodrigues.

A versatilidade dos espetáculos permite apresentações em locais alternativos. A forma de cortejo popular garante a convocação do público para as apresentações, com intervenções populares características: instrumentos, canto, cores e interatividade.

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Imagem 3: Barbosinha Futebó Crubi em versão para a rua. Foto de Graciela Rodrigues.

A carnavalização se manifesta a partir do tratamento futebolístico, da acidez e do sarcasmo. O TUOV intervém no cotidiano, tanto pela forma, como pelo conteúdo da apresentação de suas peças.

Por formação a gente pertence a uma pequena burguesia cultural e vem por isso impregnada de uma série de preconceitos. Por mais que se lute eles estão aí e são resultado de anos de intoxicação. Os preconceitos resultantes de sua intoxicação estão também ativos em nossa formação teatral. Para romper com eles só existe um caminho: ir às origens, às origens populares.Trecho de entrevista de César Vieira à Folha de S. Paulo, p. 39. s.d., provavelmente 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.

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2.A estética de um teatro de militância

Ao estudar essa “estética de militância”, é necessário lembrar dos movimentos

de ruptura que possibilitaram que a arte mobilizasse para além da contemplação e da

mera reprodução da realidade. O conceito de realidade pode ser relativizado a partir

de um ponto de vista. Desde o surgimento da perspectiva na representação plástica e,

posteriormente, da quebra literal desta para a apresentação do cubismo, tem-se a

concretização das possibilidades de se ver, ao mesmo tempo, vários ângulos de uma

mesma cena e, consequentemente, de uma mesma situação. Esse desenvolvimento e

as aquisições das vanguardas para a realização do teatro moderno e contemporâneo

permanecem nas criações artísticas, assim como outras tantas ainda mais antigas.

Podemos pensar sobre a utilização, apropriação e re-elaboração de expedientes e

características gerais da arte em diversos períodos da história, que se coadunam às

necessidades expressivas que surgem de tempos em tempos, sempre relacionadas ao

desejo de permanência ou de mudanças no âmbito social. Desse modo, a arte (ainda

que possa dizer que está “acima do bem e do mal”) se propõe, sempre, a tornar

explícita uma idéia, uma visão de mundo. Renato Ortiz13 reflete:

A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre mudanças profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano. Se o modernismo é considerado por muitos como um ponto de referência, é porque este movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava esparsa na sociedade.

Neste período, intelectuais e artistas burgueses viajavam à Europa e tinham acesso a

uma fruição dos movimentos de vanguarda. Essas influências manifestam-se em suas

obras, costumes e realização de eventos que possibilitaram uma efervescência cultural

13 Renato ORTIZ. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, pp. 39 - 40.

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e a troca de experiências entre eles, sem, no entanto, representar uma organização da

atuação política, ainda que de inestimável contribuição, por abordar as temáticas

sociais em obras artísticas. O tema da brasilidade nacionalista foi bastante difundido

na música, na pintura, em várias linguagens artísticas, inclusive no teatro. Na década

de 1950, a criação do ISEB14 e suas produções intelectuais valorizam o nacionalismo

sem valorizar o cidadão brasileiro, ainda hoje apresentado de forma confusa. A idéia

de preservação e difusão cultural dificilmente passa pela defesa daqueles que

produzem a arte e a cultura, da discussão acerca da democratização do acesso a essa

produção e da garantia de uma convivência que possibilitará o desenvolvimento

subjetivo da arte e da cultura. Ortiz (2006:47-48) contextuliza:

Na esfera cultural, a influência do ISEB foi profunda. Ao me referir a este pensamento como matriz, o que procurava descrever é que toda uma série de conceitos políticos e filosóficos que são elaborados no final dos anos 50 se difundem pela sociedade e passam a constituir categorias de apreensão e compreensão da realidade brasileira. No início dos anos 60 dois movimentos realizam, de maneira diferenciada, é claro, os ideais políticos tratados teoricamente pelo ISEB. Refiro-me ao Movimento de Cultura Popular no Recife e ao CPC da UNE. Se tomarmos a título de referência dois intelectuais proeminentes desses movimentos, Paulo Freire e Carlos Estevam Martins, observamos que as relações com o ISEB são substanciais. Carlos Estevam foi assistente de Álvaro Vieira Pinto e trabalhava no ISEB no momento em que assume a direção do CPC.

As vanguardas artísticas prepararam o terreno para a atuação engajada nas décadas

seguintes; os intelectuais do ISEB difundem pressupostos que servirão como base na

atuação do CPC da UNE. Os conceitos de povo e de cultura popular defendidos

14 O Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1955, contava com a participação de intelectuais de diversas orientações político-ideológicas, entre eles Hélio Jaguaribe, Ewaldo Correia Lima, Cândido Mendes de Almeida, Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto. Este esteve à frente do Instituto em sua última fase, juntamente com Nelson Werneck Sodré, até sua extinção com a instauração da ditadura militar.

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nesses âmbitos, intrinsecamente relacionados aos posicionamentos ideológicos

desses intelectuais, refletem o momento e a necessidade crescente da compreensão

desse fenômeno de engajamento de produtores de cultura na necessidade de

transformação social. Então, a criação dos Centros Populares de Cultura, como

veremos, tratará da inclinação da apropriação da cultura do povo, sem, no entanto,

valorizá-la como expressão autêntica, mas via de regra como manifestação

conservadora e atrasada. Além disso, vai proporcionar a difusão da idéia de que toda

arte não-engajada é alienante. Ortiz (2006:48) cita:

Mas a influência isebiana ultrapassa o terreno da chamada cultura popular, ela se insinua em duas áreas que são palco permanente de debate sobre a cultura brasileira: o teatro e o cinema. É suficiente ler os textos de Guarnieri e de Boal sobre o teatro nacional para se perceber o quanto eles devem aos conceitos de cultura alienada, de popular e de nacional. Fala-se, assim, da necessidade de se implantar um “teatro nacional” em contraposição a um “teatro alienado”, cujo modelo seria o Teatro Brasileiro de Comédia.

A necessidade da arte como instrumento de conscientização tem relação direta

com a valorização de ideais socialistas difundidos pelo comunismo, do qual alguns

intelectuais isebianos foram partidários. Para contextualizar filosoficamente, Renato

Ortiz (2006: 52) cita Balandier:

(...) a consciência é apreendida numa situação social que se desenvolve acusando as relações de dominador a dominado, os antagonismos entre esses dois termos – ela conduz a uma tomada de consciência que aspira a uma transformação radical da situação, a um progresso. Isto Hegel já exprimiu afirmando que a servidão do trabalhador é a fonte de todo progresso humano, social e histórico. Marx, em seguida, anunciou o papel histórico do proletariado, papel que não depende somente da evolução das forças produtivas materiais e das relações de produção, mas ainda de uma tomada de consciência que permite constituir o proletariado em classe.

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Ortiz (2006:59) enfatiza uma condição: “Se, como dizem alguns isebianos, o

Ser do homem colonizado está alienado no Ser do Outro, é necessário dar início a um

movimento que restitua ao colonizado a sua 'essência'. Isto só pode ocorrer se o

discurso extravasar do terreno filosófico para o domínio público.”

Daí a influência na atuação do CPC que, de acordo com a reflexão de Ortiz e

pode-se inferir, a partir da opção pela arte como instrumento de comunicação e

expressão desses ideais, a prática implementada pelos CPCs vai além da elaboração

intelectual. Embora continue a considerar uma elaboração artística desprovida de

política explícita como alienada. Trata-se da junção entre o ideário dos intelectuais do

ISEB e as experiências artísticas das vanguardas relacionadas às abordagens

temáticas e formalistas do chamado popular, a saber, dos assuntos relacionados às

condições de vida do povo e de suas manifestações culturais compreendidas como

expressão do nacional. Vejamos a explicação de Renato Ortiz (2006: 68-69):

O que é interessante na experiência do CPC é que ela está teoricamente vinculada à filosofia isebiana, muito embora seja uma radicalização à esquerda dessa perspectiva. (...) Para o ISEB os intelectuais têm um papel fundamental na elaboração e na concretização de uma ideologia do desenvolvimento; são eles que devem explicitar o processo de tomada de consciência, e, por conseguinte, viabilizar o projeto de transformação do país.

Já a pesquisadora Silvana Garcia15, que tratou especificamente sobre o teatro

da militância, considera os Centros Populares de Cultura da UNE como a versão

cabocla do agitprop (agitação e propaganda) na Rússia pós-revolução. A autora cita a

Rússia como berço do fenômeno em que os fatos políticos determinam a conjuntura

para que seja instituído o teatro político, com apoio do Partido Comunista e do Estado

Soviético. Ou seja, os fatos políticos no mundo e no Brasil determinaram as

possibilidades e abriram campo para a atuação artística engajada politicamente. Além

15 Silvana GARCIA. Teatro da militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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disso, marcou a utilização da arte como forma de comunicação popular, independente

dos pressupostos que ofereceram a base para essa opção. As formas diversificadas de

atuação artística e a convivência entre artistas e intelectuais, arte e política,

basicamente por coincidências de interesses ou ainda de inclinações semelhantes em

termos de opção ideológica, demonstraram caminhos efetivos de propagação de idéias

e mobilização popular. Com Silvana Garcia (2004:3), completa-se este pensamento:

“A presença de uma 'massa' de operários sem acesso à produção artística estimulou a

reflexão sobre a arte, em especial o teatro, enquanto meio pelo qual se poderia

mobilizar os trabalhadores e fazer avançar a luta revolucionária.”

Porém, esse caráter utilitário da arte abrirá precedentes para a discussão da

necessidade da independência da arte como forma de expressão e não a serviço de

uma idéia ou de um ideário mais complexo. Para Ernst Fisher16, a arte é

historicamente condicionada e, ao mesmo tempo, guarda mecanismos de superação:

(...) toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. Jamais devemos subestimar o grau de continuidade que persiste em meio à luta de classes, apesar dos períodos de mudança violenta e de revolução social. Como acontece com a evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade. Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós – frequentemente sem que as percebamos – e de repente vêm à superfície e começam a nos falar (...)

Ao mesmo tempo em que a arte é democratizada por extrapolar os espaços

convencionais e circuitos comerciais, passa a se desenvolver como linguagem

independente de interesses e financiamentos. Seu caráter amadorístico surge em

16 Ernst FISHER. A necessidade da Arte: uma interpretação marxista. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p.17.

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contraponto à arte elitizada e relacionada ao sublime, ou às belas artes. As formas

artísticas conhecidas são subvertidas para dizer do povo aquilo que se pretende

transformar, questionar. Investigam-se novas possibilidades de abarcar conteúdos

sociais. Nas formas populares vão ser buscados os modos efetivos de comunicação

com o povo. Esse desenvolvimento em função dos assuntos que se quer contemplar

condiciona a criação artística aos temas e necessidades da revolução ou do

pensamento revolucionário. Silvana Garcia (2004:10) comenta:

No princípio, as estruturas dramáticas tradicionais persistem ao lado das vacilantes tentativas de instituição de uma nova linguagem e das soluções intermediárias de adaptação de velhas formas aos conteúdos revolucionários. No repertório dos inúmeros grupos que atuam excursionando pelas cidades e fronts, convivem o melodrama – agora tingido de vermelho pela mensagem comunista -; as montagens de textos e poesias e todas as versões imagináveis de manifestações corais (recitação, canto e dança); os esquetes e as cenas curtas, inspirados no cabaré literário e nas tradições populares, como o teatro de feira e o guignol russo, além da forma por excelência do agit soviético, o jornal-vivo, desenvolvido a partir das leituras orais do noticiário da Revolução.

Essas características influenciaram na construção da estética do TUOV, de um

modo particular de teatro sob a tônica jornalística, reportando a realidade social.

Afinal, César Vieira é jornalista. Como advogado colabora para trazer sempre à tona

uma discussão sobre justiça, abordando constantemente dois lados ou perspectivas de

uma mesma situação. O que possibilita em suas obras um trânsito e a identificação e o

antagonismo entre opressores e oprimidos.

As aproximações entre vanguarda e agitprop para Silvana Garcia (2004:34),

são possíveis a partir da vocação popular de ambos. Na Rússia, os movimentos em

comum assimilaram as tradições da arte e do teatro populares russos:

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(...) mobilidade cênica não atrelada a padrões estéticos, ideal de teatro militante e experimental, vinculado ao presente, sem pretender sua transposição mimética para a cena; predominância do jogo do ator – ou do atuante, se considerarmos que a quase totalidade dos participantes dos núcleos agitpropistas não tinha qualquer experiência anterior; rompimento entre palco e platéia e intenção explícita de provocar a reação crítica e ativa do espectador.

Da Alemanha do final da Primeira Grande Guerra, Silvana Garcia (2004:77)

destaca a atuação de Erwin Piscator à frente do teatro proletário, que buscava romper

com o modo de produção capitalista, alterando relações hierárquicas dentro dos

grupos e na relação com o público.17 A situação política da URSS e dos países

capitalistas, o teatro operário militante busca superar conjunturas, a partir de suas

manifestações como legítimas da classe trabalhadora, compreendida como classe

responsável pela tomada de posição contra o sistema vigente e que vai intervir na

realidade. Para tanto, utiliza-se do teatro e de outras manifestações artísticas como

forma de contestação e mobilização das massas de trabalhadores. Para Garcia

(2004:77): “Aqui, o teatro é um meio – instrumento de ação política que pretende

tornar-se fim - produto expressivo ideologicamente adequado de uma determinada

categoria social.”

Manifestações como o cabaré, o circo, a revista, são utilizados como base, com

estruturas mais simples de cenas, esquetes, pantomimas e sainetes, sendo que há

utilização de quadros independentes para que se construa uma dramaturgia. Há uma

busca da desalienação, proporcionada pelas relações de trabalho e pela ilusão do

17Garcia (2004:56) cita que “ (...) o Teatro Proletário percorreu a periferia de Berlim com seus espetáculos. Piscator valorizava o bom desempenho técnico do ator para a eficácia política do espetáculo, tendo trabalhado apenas com operários no elenco, enquanto não surgiram profissionais identificados com a ideologia da proposta.”

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capitalismo como sistema que tudo pode. Silvana Garcia (2004:61) comenta:

“Piscator também utilizava procedimentos tradicionais do cabaré e do circo, entre

outros expedientes, como o jogo de opostos entre sério e cômico, burguesia e

proletariado, construindo um raciocínio junto com o público.”

O TUOV procura construir a necessidade de uma utopia que muitos não verão

realizada. Valores como solidariedade, respeito e direito à diferença são postulados

em práticas coletivas que desejam transformar-se. Essa dinâmica é possibilitada

internamente aos grupos teatrais como o TUOV e individualmente por seus

participantes que, inseridos no grupo, reelaboram constantemente suas práticas de

modo crítico e autocrítico, podendo dar testemunhos das vivências significativas e das

mudanças que proporcionam aos outros e a si mesmos.

O desenvolvimento da arte engajada, no mundo e no Brasil, permitiu que fosse

transformada também esta primeira inclinação ideológica que se sobrepunha ao

estético, ao conceito de obra bem-feita que, priorizando a criação artística,

possibilitou a elaboração das produções, comprovando que a arte não precisa se

descaracterizar como tal porque veicula conteúdos de natureza social e que as formas

eruditas não são inacessíveis ao povo. Pelo contrário, é fundamental que se possibilite

o acesso a quaisquer formas de arte (tanto no que diz respeito à fruição, como à

produção) independente da classe social.

Obviamente, esta idéia é praticamente recente e muitas vezes rechaçada, o que

evidentemente interessa ainda àqueles que se utilizam do acesso aos bens culturais

como forma de status, sendo comum observar salas do teatro convencional ou

comercial lotadas de pessoas bem vestidas e que, mesmo que não tenham nenhuma

afinidade intelectual com obras apresentadas.

O desenvolvimento da arte como meio de expressão humana e da aceitação de

sua função de “inutilidade”, a partir do conceito de arte liberta de imposições de

qualquer natureza, até para que não seja também, nesse sentido, acusada de arte

menor por se assumir como arte posicionada ideologicamente a favor da

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transformação social. Tema comumente dado como desgastado, mas cada vez mais

necessário, até para que se defenda sua atualidade quando, em tempos de

globalização, há uma insistência em desconstruí-lo para incutir a idéia de

possibilidades generalizadas, sendo que há uma generalização mundial da pobreza e

da alienação.

Da arte como imitação da realidade à arte como descompromisso com a

realidade social e a partir de especulações de natureza diversa, podemos retomar

alguns conceitos filosóficos para resignificar o belo. Nas obras do TUOV, o belo se

apresenta na surpresa de seu conteúdo contextualizado historicamente a partir das

pesquisas temáticas, elaborado esteticamente a partir de uma inspiração do popular,

construído com e para pessoas da classe popular. A discussão dessa beleza

reconhecida através da realização de uma estética a serviço da ética, como o

postulado pelo grupo, é essencial na caracterização do trabalho artístico, composto

por elementos objetivos e subjetivos. A apreensão das questões objetivas podem se

dar a partir da compreensão da fábula e a elaboração subjetiva pode se dar desde a

reminiscência ativada pelo contato com elementos da cultura oral e tradicional, até

pela criação de imagens poéticas na composição dos cenários, figurinos e no trabalho

dos atores na reconstituição crítica de personagens de nossa história, reais ou fictícias.

Cabe retomar idéias de Ariano Suassuna (2008:274):

Assim, poder-se-ia responder aos etnólogos e psicanalistas que a Arte nem é somente uma tentativa mágica de capturar o real, nem uma forma de conhecimento, nem é apenas resultado dos traumas, neuroses e frustrações do artista. Ela é tudo isso e mais alguma coisa. A inteligência está presente na Arte, mas o papel fundamental, na criação artística, é desempenhado pela imaginação criadora. Existe muita coisa de intelectual na criação e na fruição da Arte; existe mesmo uma forma de conhecimento na Arte, mas é uma forma de conhecimento bastante diferente das que são exercidas pela Ciência e pela Filosofia: é um conhecimento poético, concreto e resultante da simples apreensão, quando a inteligência, movida pela Beleza do que aprendeu, se põe naturalmente e sem esforço a refletir sobre o que viu.

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A busca de uma linguagem que possibilite aguçar o senso crítico, veicular

informações e contemplar a necessidade estética, de modo que a obra teatral

possibilite o ato de educar e divertir, ao mesmo tempo, tem ressonância constante no

modo de produção do TUOV que, com os procedimentos e a metodologia

desenvolvida para a produção e circulação dos espetáculos, consegue que o público

dos bairros da periferia e populares, se interesse e goste de seu teatro. Essa

funcionalidade é perseguida a partir da técnica desenvolvida pelo grupo, mas,

sobretudo, pelo amadurecimento estético a partir do contato constante com as

comunidades, durante as apresentações, debates e outras atividades realizadas pelo

grupo nos locais por onde passa e pelos projetos desenvolvidos ao longo de sua

carreira. Mais importante que a elaboração estética esvaziada de sua legitimidade

coletiva, até para que se configure a apropriação da funcionalidade que terá o

espetáculo ao ser apresentado à comunidade, é a deliberação coletiva, com opiniões e

atuação na elaboração artística desde a pesquisa dos temas até a criação das

personagens. Um procedimento fundamental que concretiza uma estética que, do

ponto de vista ético, busca coerência entre o discurso (proposta de conscientizar

socialmente) e a prática (vivenciar internamente procedimentos socializadores). Para

refletir sobre possíveis divergências do gosto ou do reconhecimento da excelência do

trabalho estético do grupo, retomo Suassuna (2008:29) clara ou confusa, racionalista

ou anti-racionalista, todo artista tem sua estética particular; é formulando uma estética

que os pensadores irracionalistas a combatem; em qualquer dos casos, portanto, tanto

uns quanto outros professam uma estética e é dela que se valem para combater a

Estética.”

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O estético pode, assim, caracterizar-se como elaboração sensível de conteúdos

que artisticamente traduzem-se como elemento fundamental da expressividade

humana que, retomando funções de ritualidade e convivência comunitária, se revelam

enquanto possibilidade de socialização da experiência cidadã. As questões

relacionadas ao gosto podem estar embasadas em uma determinada concepção de

estético que, ao prescindir de paradigmas nos quais a arte aparece como

descomprometida, aparenta, na verdade, negar sua própria parcialidade em

determinadas obras, sendo que todo artista, também como filho de sua época,

transmite informações, sedimenta ideologias e concretiza visões de mundo por

intermédio de sua criação artística, ou ainda estética.

Aqui o termo estético, segundo Ariano Suassuna, do ponto de vista filosófico,

oferece embasamento para a discussão em torno de produções teatrais assumidamente

engajadas que buscam temas de relevância social oferecidos na fruição das formas

teatrais. O União e Olho Vivo atravessa quatro décadas nessa perspectiva, tendo

influenciado diversos grupos afins que, independentemente das aproximações e

distanciamentos possíveis entre a natureza dos trabalhos, postulam a transformação

social na perspectiva do combate ao capitalismo e do aguçar da consciência crítica de

artistas e espectadores.18

182007. Na sede do Teatro da USP (TUSP), a Cia. do Latão, num encontro com atores de outras companhias: Folias d'Arte, Cia. São Jorge de Variedades e Núcleo Argonautas, de São Paulo e Teatro do Pequeno Gesto, do Rio de Janeiro - apresentou O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, acerca da legitimidade do direito à posse de bens materiais e afetivos, em disputas entre privilegiados e gente humilde. O espetáculo inicia com uma projeção do trabalho desenvolvido pela companhia junto ao Movimento Sem-terra, no assentamento Carlos Lamarca, Sarapuí, São Paulo. Lá, o Latão desenvolve uma atividade teatral com o grupo Filhos da Mãe...Terra e apresenta sua obra como uma referência contextualizada da luta pela terra hoje. Integrantes do grupo estiveram na periferia de Guarulhos, em 2007, para assistir ao Teatro Popular União e Olho Vivo numa apresentação de João Cândido do Brasil, no bairro Aeródromo. Na ocasião, César Vieira agradeceu a oportunidade de parceria com um dos mais importantes movimentos políticos da atualidade, considerando a luta pela terra extremamente relevante. Em João Cândido do Brasil e O círculo de giz caucasiano, espetáculos diferentes entre si, há a utilização de expedientes de distanciamento, para contar uma história de caráter político-social. Em ambos, têm-se a dimensão de pontos de vista antagônicos, mas Brecht propõe que o público tire suas conclusões. Ao fazer a explicitação dos motivos pelos quais cada personagem age de determinado modo, ele o

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César Vieira, Neriney Moreira, Wilson Xavier, José Maria Giroldo, Ana Lúcia

Silva, Lucas César, todos com mais de 15 anos de TUOV, entre outros também há

mais de dez anos no grupo, resistem aos apelos da massificação globalizante, fazendo

arte que evoca as consciências para a realidade, com bom humor e irreverência e uma

contribuição decisiva para o teatro popular brasileiro.

A temática, a abordagem, a preocupação estética e ética apresentam-se no

sentido de elaborar os conteúdos de maneira significativa, instigante, provocadora. A

construção das imagens, dos cenários, figurinos, material de divulgação e apoio dos

espetáculos têm unidade, feitos com uma imagética simples, direta, colorida e

popular, como as manifestações tradicionais que embasam as produções.

O desenvolvimento qualitativo do modo de produção artística do grupo e da

ampliação das condições efetivas para o desenvolvimento desse tipo de trabalho são

elementos que seus integrantes também contribuíram para que se tornassem realidade,

sempre participando de eventos de caráter coletivo e que se propõem a intensificar as

ações na área artística, sobretudo no que se refere ao teatro. A forma de atuação dos

grupos de teatro na sociedade foi reconfigurada pela ação constante dos que se

preocupam com a transformação social. Para César Vieira, com relação ao

relacionamento do TUOV com outros grupos, é antes de tudo uma questão de

parceria:

Não diria que nós somos paradigma. Estamos colaborando, a pedido, com uns quinze grupos, considerando também o VAI19.(...) O nosso relacionamento é muito bom, e, inclusive, colocamos a sede à disposição. Até partidos políticos novos que estão surgindo, jovens,

faz de forma que fique claro, também, o seu posicionamento. No segundo caso, o grupo assume também o ponto de vista da classe trabalhadora na construção dramatúrgica. Pode-se supor que essa diferença se dê, não pelo propósito, semelhante em sua essência, mas em termos de construção estética.

19VAI – Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Instituído pela LEI Municipal nº 15.540, de 24 de março de 2003, decretada pela então prefeita Marta Suplicy, tendo como Secretário de Cultura Celso Frateschi. Este programa subsidia atividades de agrupamentos culturais nos bairros da cidade de São Paulo. Grupos de teatro também participam com espetáculos e oficinas oferecidos à comunidade.

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fazem reunião lá na sede. Com relação aos grupos acho que o intercâmbio é o melhor possível, considerando a troca e a amizade.

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2.1. Características da cultura popular nas peças do TUOV

No período em que o Teatro Popular União e Olho Vivo inicia suas atividades,

há uma tendência geral a incentivar os assuntos vinculados à nacionalidade. Colocado

pela necessidade de criar ideais comuns num tempo em que os regimes ditatoriais se

espalharam por todo o mundo com promessas de desenvolvimento e moralização dos

costumes, a idéia de proteção nacional surge como um sentimento inegável e

cativante. Essa inclinação serviu a muitos interesses e colocou a cultura nacional

muito focada nas manifestações da cultura popular tradicional, até então

compreendida como folclore, como elemento de fortalecimento da unidade nacional.

Ocorreu e ainda ocorre dessa pseudovalorização dar-se ao nível do discurso, mas

raramente se traduz em ações de valorização dos praticantes dessas manifestações.20

Durante esse primeiro período, a utilização das manifestações pelo TUOV se

assemelham também às produções da época com intenção de se reportar ao popular

enquanto público. Então a opção pelas formas populares tinha a ver com o desejo de

comunicar idéias de modo acessível, na perspectiva da comunicação eficiente. Os

espaços de apresentação e aglutinação de pessoas com interesses na discussão política

e de organização social também se deram de forma alternativa. No caso do teatro,

além dos espaços universitários e em locais utilizados pelas comunidades de bairro,

havia iniciativas como o circo de lona no qual o TUOV desenvolveu atividades.

Atualmente, essa opção se apresenta de forma complexa, na qual o popular está

totalmente contemplado na produção do grupo, desde a composição do elenco, até a

utilização de exercícios de preparação do ator muito próprios das manifestações

20As manifestações populares são apropriadas de acordo com os interesses de dominadores, tendo em vista os processos históricos de colonização, de dominação religiosa ou mesmo da globalização no século XXI. Formas de expressão populares são apropriadas para veicular informações, interesses e disseminação de idéias consolidantes do processo de alienação.

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populares, como é o caso do maculelê e tantos outros jogos que possibilitam

processos de soltura21 e socialização. Outro diferencial dessa apropriação mais que

devida da cultura popular é a pesquisa e divulgação de temas relacionados a

personalidades brasileiras desconhecidas da maior parte das pessoas e omitidas nas

aulas de história da educação formal, como é o caso de João Cândido22, da peça João

Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata (2001). Nessa apropriação bem colocada da

cultura popular, defendem-se de fato os interesses da classe popular num enfoque

nacionalista que persiste até hoje. Entretanto, é oportuno ter em vista as palavras de

Eagleton (2005:125):

Se o nacionalismo volta o seu olhar para um passado (geralmente fictício), é sobretudo para pressionar em direção a um futuro imaginado. Essa particular deformação temporal, que reinventa o passado como uma forma de reivindicar o futuro, tem sido responsável em nossa época por alguns admiráveis experimentos em democracia popular, assim como por uma estarrecedora quantidade de fanatismo e carnificina. Política de identidade é uma das categorias mais inutilmente amorfas de todas as categorias políticas, pois inclui aqueles que desejam libertar-se de patriarcas tribais juntamente com aqueles que desejam exterminá-los. Mas um pós-modernismo que está ocupado liquidando tanto o passado como o

21Busca-se aqui descondicionar o corpo dos bloqueios físicos e mentais e das dificuldades de expressão. Os procedimentos adotados pela educação formal, de modo geral, tendem a uniformizar os indivíduos como seres iguais em suas capacidades e necessidades de aprendizagem. Para isso, condiciona uma série de comportamentos que, posteriormente, dificultam quaisquer processos, incluindo os artísticos, que necessitem da aplicação do potencial criativo e libertador dos indivíduos. Tanto a arte-educação, como os processos informais que envolvem processos sócio-educativos têm-se configurado como espaços de discussão e de intervenção artística, como exemplos da capacidade transformadora da Arte, no plano da intervenção social. Talvez por esse motivo verifica-se o crescimento da intervenção na área teatral também em cursos, oficinas e formação de grupos de teatro em comunidades, por exemplo. Mas esta é uma outra discussão que aqui não será esgotada.

22João Cândido Felisberto foi um militar da Marinha Brasileira, expulso em 1910, por ter liderado a Revolta da Chibata, no mesmo ano, opondo-se ao castigo do chicoteamento imposto aos marinheiros insubordinados. João Cândido foi ainda internado por um ano como louco. Em 1933, adere à Ação Integralista Brasileira de caráter fascista. Faleceu em 1969, anônimo e sem quaisquer direitos previdenciários, pois nunca mais foi reconduzido à Marinha.

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futuro em nome de um presente eterno, dificilmente pode dirigir-se adequadamente a essa espécie de política.

Talvez nesse ponto pode-se discutir as aproximações de dois extremos: o da

valorização das pessoas da classe popular para sua afirmação como classe capaz de

orientar criticamente seu próprio destino; e o da apologia do popular e da tradição

como algo perdido e que romanticamente se “resgata” sem, ao menos, se questionar

porque teria se “perdido”. Já no modernismo da década de 1920, esses conceitos se

apresentaram de forma contraditória, servindo depois a movimentos políticos ou

estéticos mais libertários e também aos de caráter reacionário. Os posicionamentos

ainda se confundiram, como o célebre caso da manifestação mais que discutida a

respeito das críticas do escritor Monteiro Lobato23 ao “modernismo” das telas de

Anita Malfatti. Terry Eagleton (2005:25) associa a visão do nacionalismo que serve

aos tempos atuais com seu surgimento nessa mesma época, com o nome de exotismo:

O exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com o crescimento da moderna antropologia cultural. Ele aflorará bem mais tarde, dessa vez numa roupagem pós-moderna, numa romantização da cultura popular, que agora assume o papel expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham desempenhado anteriormente as culturas “primitivas”.

23Monteiro Lobato foi um dos primeiros pesquisadores a sistematizar procedimentos de coleta de dados sobre folclore, quando publicou seu livro O Saci-pererê: resultado de um inquérito (1918), a partir de coluna que mantinha no jornal O Estado de S. Paulo. Teve uma contribuição inestimável nesse sentido e, como se sabe, com sua contribuição literária ao imaginário infantil com o Sitio do Picapau Amarelo (1920). Porém, também é signatário da visão (preconceituosa) que temos do caipira como alguém atrasado e preguiçoso, imagem, de certo modo, eternizada pela personagem Jeca Tatu, na obra Urupês(1918).

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A discussão da identidade, a partir da visão da preservação das singularidades de

cada povo ou cultura, de acordo com um certo exotismo das manifestações

propriamente ditas destas culturas, serve hoje tanto à criação de propostas de

valorização (inclusive financeira) dos portadores dessas manifestações por órgãos

do governo, como é o caso do Ministério da Cultura, no Brasil, como serve à

mercantilização da cultura como objeto de lucro e até mesmo de poder. Eagleton

(2005:106-107) observa com aguda crítica:

Enquanto isso, aqueles que são vítimas dessa cultura de mercado voltam-se cada vez mais para formas de particularismo militante. Numa interação em três frentes, a cultura como espiritualidade é corroída pela cultura como mercadoria, para dar origem à cultura como identidade. Numa escala global, o conflito relevante aqui é entre cultura como mercadoria e cultura como identidade... O pós modernismo, com o seu desdém por tradição, individualidade estável e solidariedade de grupo, é revigorantemente cético a respeito dessas políticas, mesmo estando equivocado em não ver nada na tradição senão a mão morta da história e nada na solidariedade senão o consenso coercivo.

Em muitos casos, a afirmação da identidade, então, tem menos a ver com a defesa

de ideais comuns e de preservação da humanidade e mais com a disputa entre a

supremacia de uma determinada cultura sobre outra. Valores como solidariedade e

igualdade social são escassos no capitalismo, que reproduz essas idéias apenas como

slogans. A competitividade e o lucro falam mais alto e calam as vozes dissonantes.

É uma forma de manter a hegemonia de um sistema que, para se manter vivo,

perpetua diferenças e intensifica a destruição do planeta, ao passo que acumula para

poucos riquezas que jamais serão usufruídas pela grande maioria e que só se

prestam a legitimar o poder de uma classe privilegiada. Projetos de um outro mundo

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possível são desqualificados constantemente como experiências que só dão certo em

situações muito específicas; invalidadas por seu caráter restrito a um número

pequeno de pessoas; entre outras tantas formas de se desqualificar propostas

alternativas de sobrevivência e de se manter viva a chama de um pensamento

socialista. Aliás, a cultura de massa também veicula, através de propagandas de

ajuda mútua como “Crianças Esperanças” e outros tantos sensacionalismos, o falso

desejo de ajudar ao próximo, a não ser para se desincumbir de uma tarefa mais

efetiva na sociedade. Sempre tentando, também, descaracterizar o político como

função de intervenção social, a cultura da alienação favorece o pensamento

individualista também nos inúmeros projetos de valorização do voluntariado, como

ação fragmentada e heróica. Não é de se estranhar que a globalização possibilite,

inclusive, a semelhança desse tipo de programação televisiva por todo mundo e que

igrejas “universais” fiquem cada vez mais próximas de se concretizarem como tal.

Eagleton (2005:112) esclarece uma diferença importante:

Tanto a cultura pós-moderna como a cultura como identidade tendem a confundir o cultural e o político. Elas também são semelhantes em sua suspeita particularista em relação às pretensões universalistas da alta cultura. O pós-modernismo não é universalista, mas cosmopolita, o que é uma coisa bem diferente. O espaço global do pós-modernismo é híbrido, ao passo que o espaço do universalismo é unitário. O universal é compatível com o nacional – a cultura universal, por exemplo, vê a si mesma como uma galeria dos melhores trabalhos das culturas nacionais – ao passo que a cultura cosmopolita transgride fronteiras nacionais tão seguramente quanto o fazem o dinheiro e as empresas transnacionais.

Estas contradições do contexto histórico da atualidade reiteram a presença do estético

como reafirmação de idéias e a propagação de ideais. O lugar do estético abrange

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desde as campanhas de mercado que vendem todo e qualquer tipo de produto até o

suprimento das necessidades estéticas da humanidade com as telenovelas. O modo de

vida difundido nesses meios se torna não só atraente como até mesmo numa regra

lançada ao inconsciente das pessoas, incutida no dia-a-dia, desde a escola, as

histórias, os brinquedos infantis e no âmbito da família, das relações de amizade, nas

quais tudo é cada vez mais descartável e imediato. A cultura do individualismo,

mesmo que revestida de frases confeccionadas pelo capital com “amor e carinho”,

revelam como retorno ao popular, para me referir às pessoas da classe popular, uma

imposição de “viver também como” as pessoas ricas e vazias das revistas em que

mostram inadvertidamente suas “caras” e “outras partes”. Terry Eagleton (2005:113)

descreve a apropriação do estético:

Como a alta cultura, o pós-modernismo é muito atraído pelo estético, embora mais como estilo e prazer do que como artefato canônico; mas é também um tipo de cultura 'antropológica', incluindo clubes, casas de moda, arquitetura e shopping centers tanto quanto textos e vídeos. Como a cultura como modo de vida, ele celebra o particular, embora um particular que é mais provisório do que enraizado, mais híbrido do que um todo. Contudo, já que o pós-modernismo afirma o popular e o vernáculo onde quer que os encontre no globo, combina o seu particularismo com certa indiferença altiva ao lugar. Suas simpatias populares nascem mais de um ceticismo quanto a hierarquias do que, como no caso da cultura como solidariedade, de um compromisso com os expropriados.

Desse modo e reiterando a hipótese explicitada segundo a qual a valorização da

cultura popular não passa necessariamente pela valorização do popular, o

etnomusicólogo Alberto Ikeda (2007:54), para quem a preocupação com os membros

das comunidades guardiãs dos saberes populares, para além do interesse nos

fenômenos das manifestações populares, é algo inovador, relata:

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(...) o modo predominante de incorporação das expressões populares tradicionais no cenário cultural tem se dado atualmente pela via estética, ou seja, como arte, espetáculos para puro entretenimento, e, ainda, como apresentações de folclore, na forma de expressões de representação da identidade nacional (brasilidade), das regionalidades ou das localidades. Esse último tipo de intervenção é comum quando se elegem algumas práticas tradicionais, notadamente as que envolvem música, dança e dramatizações, como atrações artísticas ou turísticas das suas localidades, compreendendo-as como fenômenos isolados dos seus contextos históricos e sociais que lhes dão sentido.(...) Naturalmente, não se pode desconsiderar a dimensão estética que se ressalta em tantas expressões populares tradicionais, mas na maioria das vezes não são estas as dimensões mais significativas para os próprios participantes (...)24

Este pensamento abarca também a reflexão até aqui contida, no sentido da

apropriação das manifestações da cultura popular tradicional que, embora também

transformada na trajetória do TUOV, desde o princípio foi utilizada para valorizar o

popular. Retornemos a Eagleton (2005:124) para pontuarmos a discussão acerca do

popular como fenômeno: “Esta é a razão pela qual ouvimos falar hoje em dia em

hibridez, etnicidade e pluralidade, em vez de liberdade, justiça e emancipação.”

Uma atitude como a do Teatro Popular União e Olho Vivo é demonstrada pela sua

opção em defender ideais que, segundo César Vieira, permanecem para a

humanidade, por mais que os tempos sejam outros. Para ele, perseguir alguns

pressupostos de abrangência social é o mais importante trabalho a ser desenvolvido

pelo grupo, diante de sua determinação em buscar o teatro popular constantemente:

(...)Algumas coisas importantes não mudaram para o Olho Vivo e não mudaram para o resto da humanidade. Os bem intencionados, sempre se nortearam, se norteiam e vão se nortear pela busca do bem comum e de um ideal. Escolhem um

24 Alberto, IKEDA. Manifestações tradicionais: rituais, artes, ancestralidades. In: Prêmio Cultura Viva: um prêmio à cidadania. p. 54 São Paulo: CENPEC, 2007).

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ideal e procuram realizá-lo. Essa busca, acrescida de todas as transformações sociais que acontecem, o advento da informática, tudo isso é acoplado, dinamizado no trabalho do Olho Vivo e incorporado ao seu trabalho. Permanece a busca e a concretização de um ideal permanente, que é o bem comum. E isso nós guardamos como uma chama e pretendemos que continue sempre sendo aplicada através dos nossos espetáculos, da nossa dinâmica, que nunca é estática, sempre é modificada de acordo com a época, mantendo uma linguagem estética popular. (Entrevista citada.)

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Imagem 4: João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata. Foto de Graciela Rodrigues.

Valorizar o trabalhador e as manifestações tradicionais, em prol da arte popular, é pressuposto da obra humanística do TUOV.

Fazer teatro popular não é apenas veicular a chamada cultura de elite, mas acima de tudo buscar formas populares de teatralização. No Brasil essas formas estariam principalmente nas festas populares – Folias de Reis, Congadas, Catiras etc. - nos Circos e nas Escolas de Samba e Cordões, onde houve a assimilação e transformação de uma forma imposta pelo Estado Novo – o samba enredo. O objetivo é fazer cultura popular com elementos populares. Procurou-se as formas teatrais do Rei Momo muito mais nas apresentações das escolas menores (do 3º grupo) que desfilam na Praça Onze, do que nas grandes escolas “turistizadas”, que se apresentam na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Não se levou em conta os grandes circos de estilo europeu ou norte-americanos, ultimamente tão em moda, mas os nossos “pavilhões”, onde se apresentam os Luiz Gonzagas, os Teixeirinhas ou os Tonico e Tinocos. (Trecho de artigo do Jornal Possível, p. 7, de outubro de 1972.)

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3. Desenvolvimento do trabalho coletivo

Para o TUOV, o conceito de popular permeia local, produção e circulação das

obras. Na definição de César Vieira:

Aí nós temos uma definição mais ou menos fechada do que seria o teatro popular: um teatro feito por integrantes populares; dirigido para um público popular, se possível feito gratuitamente; com um conteúdo popular; e com uma estética popular. O Olho Vivo preenche desses cinco ítens, quatro e metade do outro, porque ainda tem seis participantes que eu chamaria de classe média. O resto todo e os novos integrantes são povo. (Entrevista citada.)

No início do trabalho do grupo, com o movimento estudantil, se tratava

basicamente de falar sobre os problemas do povo. A partir do convite para

apresentações em diversas comunidades da peça Corinthians, meu amor (1967data?), o

grupo passa a conviver com o público dos bairros e a assumir a deambulação como

característica primordial. Em seguida, como o espetáculo O Evangelho segundo

Zebedeu (1970) e Rei Momo (1973), é estabelecido o debate como pressuposto de

discussão sobre o espetáculo, relacionado aos problemas sociais. Já em Bumba, meu

queixada (1978), há o envolvimento do elenco e de todo o grupo na pesquisa do tema e

na construção da dramaturgia, por meio da confecção das fichas dramáticas e do

quadro dramático, que dão origem ao texto organizado pela comissão de dramaturgia e

escrito pelo dramaturgo. Desde então o grupo vem se tornando cada vez mais popular

no sentido de incorporar pessoas oriundas da classe popular na sua formação.

O espetáculo eficaz nosso, hoje, tem muito pouco a ver com o espetáculo eficaz d'O Evangelho segundo Zebedeu, porque ele tem o ator popular e no O Evangelho segundo Zebedeu havia o

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ator burguês. Já é uma grande diferença. Qual é a grande transformação? A transformação é que nós estamos colocando o povo no palco. Como personagem e como intérprete. O Arena coloca o povo como personagem no palco. Não é o nosso objetivo, mas está acontecendo. (Entrevista citada.)

A presença de participantes identificados com causas vivenciadas por eles na

realidade confere sentido de pertencimento aos temas dos espetáculos e do processo

artesanal de sua confecção, dado o modo de produção semelhante ao das

manifestações da cultura popular, como é o caso dos folguedos. O fator de formação

do grupo a partir de núcleos familiares, com saberes que passam de pai para filho,

torna o “fazer cultural” significativo para as pessoas que fazem parte da comunidade,

constitui sua própria história. Alberto Ikeda (2007:54) analisa:

Há que se considerar que os fenômenos das culturas tradicionais guardam valores morais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros tantos, que foram herdados e, portanto, de algum modo refletem a própria história das suas comunidades, repondo o passado no presente, e sendo então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que, repetidas ciclicamente, reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para os grupos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos coletivamente, são instrumentos de identidade e inclusão social, e, até mesmo de resistência política diante dos problemas que as comunidades enfrentam.

Para César Vieira, a forma de organização do grupo facilita sua permanência:

O grupo tem muito isso, de casais e tal. A Graciela Rodrigues não é mãe do Lucas César, mas formamos um núcleo de três pessoas. O Will Martinez e a mulher dele, a Cátia Fantin formam outro. Esses pequenos núcleos familiares permitem que não se tenha a pressão externa.

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Esse tipo de estrutura também apresenta semelhança à de grupos praticantes das

manifestações da cultura popular tradicional. A identificação do grupo com o popular

finalmente se verifica ainda na opção de atuar em conjunto com outros grupos que

têm a mesma preocupação. A opção de estar nas periferias, atuando não só na

produção de espetáculos, mas em oficinas, cursos e outras iniciativas educativas

caracterizam um projeto social para além do assistencialismo. Busca instrumentalizar

as pessoas das comunidades para a expressão, tomadas de decisão e envolvimento

comunitário para a solução dos problemas. César Vieira cita o trabalho do grupo

Pombas Urbanas, com o Ponto de Cultura em Cidade Tiradentes, periferia de São

Paulo, como um dos trabalhos mais importantes no sentido da atuação de grupos de

teatro junto a comunidades:25

O que eu sinto das conversas com os mais variados grupos é uma ânsia, uma angústia, uma necessidade de falar para o povo do bairro, para o popular. Existem muitos e realizando isso muito bem, dentro das possibilidades de dinheiro, econômicas, de morar no bairro. Eu cito o Pombas Urbanas, por exemplo, como uns caras que tinham uma opção estética e agora partiram para uma opção de vida. Sem discutir o mérito de que eles até não estejam fazendo espetáculos tão bons como eles faziam e que eles não estejam fazendo tantos espetáculos porque o social absorveu praticamente tudo. Nós estivemos lá agora, há quinze dias, e quem viu no início e vê agora, eles têm 50, 100, 200 alunos de computação, desenho, teatro e tudo lá, funcionando. Eles largaram seus locais de residência no centro da cidade ou dos bairros de classe média e foram morar lá. É uma opção que acho muito corajosa, não é a ideal. Não é que obrigatoriamente tenha de ser assim, mas uma das experiências mais importantes que acontecem é essa do Pombas Urbanas, um trabalho seríssimo.(Entrevista citada.)

25Em 2008 e desde 2005, o grupo Pombas Urbanas, sediado num galpão no bairro Cidade Tiradentes, de São Paulo é transformado num Ponto de Cultura. Projeto do Ministério da Cultura que financia projetos culturais em todo o país, chamado Cultura Viva. Lá, o Pombas desenvolve uma série de atividades artísticas e educativas, desde oficinas, até espetáculos e festivais de teatro. César Vieira, em entrevista, considera este trabalho como um dos principais realizados por grupos de teatro em termos de militância. Provavelmente o que chama a atenção do dramaturgo é que os artistas do Pombas Urbanas abrem mão de suas moradias e até de pressupostos estéticos, do ponto de vista profissional, para dedicar-se ao teatro e ações comunitárias.

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Nesta entrevista, César Vieira comenta as semelhanças e diferenças do trabalho de

grupos teatrais da atualidade e da época da ditadura:

Nos primórdios da primeira dentição do Arte Contra a Barbárie, eu acho que, embora já existissem alguns grupos com esse início, com essa gravidez em busca de alguma coisa com continuidade, do esteticamente bem feito, falando do popular e desejando falar para o popular, desejando que seu grupo, se não era, se transformasse pelo menos em parte, em popular. Situando em tempo, seria, talvez, dois anos antes do Arte Contra a Barbárie26, como um marco em que se abrem e que se solidificam, pelo menos, uns vinte grupos; poderíamos citar alguns que estão andando pelos bairros, estes que estão participando do Fomento27. Isso permite um florescer e um reflorescer de idéias, com conteúdo, com objetividade, colocando a fama e o lucro numa posição terciária, objetivando espetáculos e transformações no palco bastante claros. Considero muito importante o que acontece hoje com esses grupos atuantes, populares ou não. Não vou citar todos, acho que são mais ou menos vinte, o trabalho do Luís Alberto de Abreu, dos Parlapatões, cada um com suas nuances. Cada um com divergências entre si e uma convergência de ideal e de busca de nova estética ou de manutenção de estéticas que estavam sendo exterminadas.

Os projetos desenvolvidos pelos grupos, em linhas gerais, assim como na atividade do

TUOV, precursor desse tipo de iniciativa que aproxima artistas e público ao buscar

intervenção social, politização e difusão cultural e artística, pressupõem ações de

formação de público, produção e circulação de espetáculos, realização de debates,

oficinas, discussões temáticas e formação de novos grupos. Formas de registro e

26Arte Contra a Barbárie é o movimento criado em 1998, que reúne artistas e grupos de teatro de São Paulo. Busca refletir de forma aprofundada sobre as condições da Arte e da Cultura na sociedade, bem como discute a relação do poder público com grupos de teatro, solicitando a implementação de ações de continuidade e não apenas de realização de eventos. Defende o teatro como forma de arte essencial e com uma função social, e a produção, circulação e fruição dos bens culturais como direito do cidadão. O documento com manifesto foi consultado no sítio da Companhia do Latão, em outubro de 2008: http://www.companhiadolatao.com.br.

27 Lei de Fomento é a LEI Nº 13.279, de 8 DE JANEIRO DE 2002 (Projeto de Lei nº 416/00, apresentado pelo Vereador Vicente Cândido – PT), promulgada pela então Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, com o objetivo de apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo.

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avaliação das ações desenvolvidas são parecidos com instrumentos pedagógicos

utilizados na educação formal, quando esta se propõe a utilizar metodologias

alternativas. Muitas vezes estas ações praticadas como forma de educação informal

são igualmente ou mais significativas do que aquelas praticadas nas escolas. O TUOV

aplica como procedimento de registro e avaliação, por exemplo, desenhos de crianças

ou mesmo de adultos, sobre os espetáculos que assistem. É uma forma de reflexão

lúdica e bastante eficaz, além de educativa. A confecção das fichas dramáticas pelo

grupo, depois da realização de pesquisa ou de observação da realidade, também se

caracteriza num procedimento educativo, a partir do qual é possível partilhar não só a

produção estética, mas possibilitar o desenvolvimento da autonomia e da

responsabilidade, com o ator participante da produção do espetáculo, com a

possibilidade de compreender a estrutura, a dramaturgia e os objetivos do espetáculo.

Em geral, as obras do TUOV mantém suas características, construídas a partir da

elaboração do coletivo.

Para exemplificar estas características generalizáveis para as demais obras do

TUOV, foram escolhidas duas peças O Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba,

meu queixada (1978). Ambas trazem à tona a realidade e a história brasileira: “De que

vale esse país orgulhar-se de ser parte atuante do surto tecnológico e no avanço da

globalização se em cada porão de delegacia, em cada esquina, em cada sinal de

trânsito, em cada favela, em cada FEBEM, minuto a minuto, se apaga uma centelha

impedindo-a de se transformar em chama?”28

Muitos dos fatos importantes para a compreensão de quem somos e do sistema

social do qual fazemos parte ficaram encobertos ou esquecidos. Nas escolas e nos

28 Sítio do Teatro Popular União e Olho Vivo, consultado em 10 de janeiro de 2005.

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livros, a história oficial deixa um vazio de conhecimento para as futuras gerações e

reafirmam valores impregnados de preconceitos, deformações, inverdades e

injustiças. A partir de um árduo trabalho de pesquisa, porque na maior parte das vezes

existe uma grande dificuldade de acesso a documentos e fontes de informação sobre a

história real, o TUOV desenvolve assuntos que dificilmente serão tratados no teatro

comercial ou na televisão. O ponto de vista adotado pelo grupo é o da classe popular,

motivo pelo qual as personagens que as representam são apresentadas como

fundamentais para mudar o curso da história. Independente de suas encenações

abordarem temas diversos como a Guerra de Canudos, a Revolta de Chibata ou as

greves de metalúrgicos em São Paulo, fica marcado o ponto de vista dos chamados

oprimidos e a necessidade de inquietação, de revolta, de ação transformadora da

realidade. A coletividade é exaltada, o senso crítico exacerbado e a forma ácida com

que o grupo e o dramaturgo César Vieira alinhavam o texto trazem à cena humor

inteligente e provocativo. Os poderosos, como recomendado por Bertolt Brecht, são

representados de modo exagerado e escarnecedor, ficando expostos ao público de

maneira bastante ridícula e instigante. Revelam-se os interesses de classe que

motivam as ações dessas personagens.

Para Suassuna (2007:155): “esse 'riso' é uma espécie de castigo ou de

reprimenda que o grupo inflige a algo que o ameaça. A sociedade, no seu impulso

para a vida e o movimento, defende-se contra o esclerosamento, contra o

endurecimento mecânico de suas formas, e o riso é um dos tipos de defesa de que ela

se vale.” A abordagem cômica é uma forma original de discussão da realidade,

estimulando a percepção e a tomada de posição diante dos acontecimentos do dia-a-

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dia que, muitas vezes, tornam-se imperceptíveis e, por isso, tendem a ser aceitos

como permanentes.

Ao assistir aos espetáculos engajados, pode ser que o espectador considere a

obra, pejorativamente, panfletária. Pode ser que o olhar do espectador já esteja

deformado, dependendo de sua origem social e sua formação ideológica, ainda que

possa apreciar o trabalho do grupo. Quando o TUOV se apresenta num bairro, o

público tende a se identificar de tal forma com a obra de modo a evidenciar o alcance

dos objetivos definidos pelo grupo. Há uma comunicação efetiva e os olhos atentos

denotam a compreensão da obra para além do plano estético. Existe uma comunhão

verdadeira entre artistas, obra e público, em que se estabelece o fenômeno teatral em

sua plenitude. Para tanto, a identificação ocorre no plano das idéias expostas em cena

e não pela imitação da realidade. Pelo contrário, é o estranhamento que possibilita a

reflexão e, consequentemente, o reconhecimento da realidade social discutida na

cena. Nesse sentido, Ariano Suassuna (2008:197) adverte :

(...)a “imitação”, ou “mímesis”, de que fala Aristóteles, não deve se confundir com a imitação estreita e servil do real – coisa, aliás, além de não desejável, impossível, em Arte. Esta não imita o real, parte de elementos reais que, na imaginação do artista, são remanejados e recriados, para a criação de um novo universo, no qual a criação da Beleza não é a preocupação exclusiva, mas é, sem dúvida, o objetivo principal a ser atingido pela Arte.

No sentido da construção estética, o grupo é influenciado pelas referências

populares, daquilo que funciona do ponto de vista da comunicação com o público.

Expedientes diversos que mantém a atenção e o envolvimento da platéia: a música, a

proximidade do elenco com o público, os cenários e figurinos de extrema

funcionalidade e beleza, além de apresentarem informações sintéticas que facilitam a

compreensão do enredo e da característica social das personagens.

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Assim como a produção brechtiana foi influenciada pela convivência com

Piscator, a política e o agitprop, a produção do TUOV foi marcada pelos movimentos

estudantil e social. Muitas são as referências no Brasil e no mundo, que contribuem

para a efetivação de um teatro com os pressupostos populares como o TUOV. Brecht,

sem dúvida, é a principal referência no que diz respeito à sistematização de

procedimentos de construção coletiva da obra teatral e da utilização de expedientes

que possibilitam o exercício do senso crítico e, para além disso, a tomada de atitude.

Para Silvana Garcia (2004), Brecht estudou as teorias marxistas e a partir de 1926,

buscou a militância, a organização partidária e uma estética comprometida com a

ética. Buscou nas formas populares a apropriação de procedimentos para falar dos

interesses populares, aos populares e com eles, preocupando-se ainda com o teatro

proletário, no qual a atividade teatral possibilitasse a instrumentalização para a

atuação social e política, autônoma, coletiva e crítica, com vistas à transformação, ou

melhor, à revolução. Com o fim do sistema capitalista e a implantação do socialismo.

Para Silvana Garcia (2004:80), ainda sobre Brecht: “Da Bavária, ele já traz uma forte

influência que o aproxima dos gêneros “menores”, consequência da profunda

admiração que dedicava ao trabalho do clown Karl Valentin(...)

Brecht desenvolve toda uma possibilidade teatral a partir de seu engajamento

crítico e político, estudando e apropriando-se de diversos elementos do teatro popular

para ressignificá-los em obras que vão aguçar o senso crítico e a reflexão do

espectador, de modo que este possa sentir-se responsável pelas mudanças necessárias

ao desenvolvimento humano da sociedade. Cenas independentes, interrupções

propositais da narrativa para explicitar o caráter teatral das obras em contraponto às

estruturas lineares que buscam uma função pática. Brecht lança mão de recursos de

distanciamento, com o fazer teatral explicitado. Utiliza cartazes, projeções, músicas

que comentam as cenas ou acontecimentos, de modo a revelar as contradições das

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personagens e das situações. Da mesma forma, cria o gestus29 das personagens, de

modo a caracterizar a sua atitude e seu posicionamento social. São demonstradas as

relações de poder que caracterizam o sistema capitalista e a falibilidade das ações do

homem é comentada e questionada constantemente. É preciso tomar partido e rebelar-

se contra o que o sistema faz de nós. Podemos, sim, questioná-lo e desafiá-lo.

Independente de o Teatro Popular União e Olho Vivo ter estudado

sistematicamente as teorias e ensinamentos de Brecht, o trabalho postulado pelo

dramaturgo e encenador atingiu fortemente o trabalho do grupo, seja pelo caldo de

cultura da época em que o grupo surge, seja pelas ramificações advindas de outros

autores e diretores de teatro brasileiros. Anatol Rosenfeld e Augusto Boal são citados

por César Vieira como mestres. Estes, pesquisaram e praticaram muitos dos

ensinamentos preconizados por Brecht. Para Garcia (2004:86): (...) Na cena

brechtiana todos esses componentes se metabolizam em linguagem cênica: todas as

influências se somam para a construção de um produto novo que é essencialmente

teatro . Este se institui como político e, enquanto forma, em contraposição ao teatro

enquanto mediação de uma vontade política.

Pode-se inferir que o desenvolvimento desse tipo de teatro, assumidamente

engajado, colocou-o em lugar de inquestionável valor artístico, tendo em vista a

habilidade de Brecht para desenvolver assuntos de natureza política de forma

irrepreensível esteticamente. Daí o teatro de forma épica.

Ao buscar a comunicação com as massas em espaços públicos, muitos

intelectuais envolvidos em ações de conscientização popular apropriaram-se das

manifestações da cultura popular tradicional, que facilitaram o trabalho em espaços

não convencionais de intervenções artísticas. Por um lado elas serviriam aos

29Alexandre Mate considera, dentre outros aspectos, gestus como uma atitude contraditória, portanto de leitura dialética “(...) o trabalho do ator com a chamada gestualidade social, paradoxalmente, intenta uma gestualidade poética.” (MATE, Alexandre. A formação do ator épico numa abordagem práxica, 2006, p.11.)

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interesses desses intelectuais identificados com as causas populares, mas seriam

desconsideradas do ponto de vista de seu significado como resistência cultural, dado o

fato de estes intelectuais considerarem, via de regra, essas manifestações ou a

valorização delas como românticas e conservadoras. Elas eram então esvaziadas de

seus conteúdos, comumente religiosos, e recheadas de conteúdos teoricamente

revolucionários.

Ao abrir mão do teatro convencional e optar pelo popular, o TUOV trilha seu

caminho na arte popular. Assume então o caráter dinâmico das manifestações,

valorizando-as em seu dinamismo, sem tentar recriá-las. Atualmente, as práticas

relacionadas ao treinamento dos atores são registradas nas publicações mais atuais,

dando conta de que a cultura popular faz parte do aquecimento, do canto e da criação

de personagens. O grupo incorporou procedimentos e as contribuições de seus

participantes para a construção das obras que tornam populares por excelência. Ainda

assim, existem apropriações indevidas da cultura popular, muitas vezes para

descaracterizá-la.

O TUOV representa uma história viva do Brasil e acompanhou ações necessárias e

bastante válidas nas décadas anteriores, contribuindo para divulgar a história social

brasileira, com sua artemilitância, ao tornar assuntos de extrema complexidade em

obras teatrais. O TUOV cumpre seus pressupostos e atinge os objetivos, com

espetáculos bem cuidados, seja no espaço teatral convencional, seja no bairro, com as

adaptações adequadas às características originais e condições técnicas adicionais

(iluminação, acústica, espaço protegido de intempéries etc.). A diferença do espaço,

porém, interfere de modo significativo na troca entre elenco e platéia. Permanecendo

extremamente forte, pela forma com que os artistas se comportam, convidando o

público a participar criticamente do espetáculo), a troca é mais intensa no bairro,

mesmo se comparada à experiência que ocorre em apresentações na sede. Para tanto,

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foram desenvolvidos também materiais e acessórios para adaptar satisfatoriamente os

espaços, de modo que o público esteja acomodado e, desse modo, possa acompanhar

todo o espetáculo. Muitos grupos desejam falar ao popular, mas não se preocupam em

oferecer condições efetivas para que a obra seja contemplada no tocante às

acomodações, por exemplo. A coerência mantida nesse aspecto, garante que o público

atribua significado à experiência vivida ao assistir aos espetáculos do TUOV. Além

de sentir-se parte da encenação interativa, o público reconhece suas preocupações

trazidas para a cena. Tem aplicação, aqui, a aspiração de Suassuna (2008:305):

Somente para quem não conheça, por dentro, os caminhos da Arte, é que pode parecer um paradoxo a afirmação de que, por mais estranho que pareça a princípio, cada um desses mundos particulares revelados pelos grandes artistas termina por ser identificado pela comunidade como algo seu, algo que estava escondido nas suas camadas subterrâneas, irrevelado ou esquecido, e que agora, de repente, um espírito poderoso revelou e trouxe à superfície, para ensinar de novo à comunidade aquilo que ela é, sem saber.

Para o público constituído por populares, o espetáculo do TUOV cativa pela

forma, pela estrutura e conteúdo populares identificados pela presença de expedientes

característicos das manifestações populares: música, dança e comicidade, por

exemplo. Já os intelectuais, pode-se dizer que exaltam o conteúdo político-social. Ao

explicitar o caráter popular das obras do TUOV, é interessante observar a semelhança

dos procedimentos de criação das manifestações da cultura tradicional brasileira, com

os do processo de criação do grupo. O olhar dos praticantes dessas manifestações é

diferente daqueles que podemos chamar de público, bem como dos pesquisadores que

se interessam por elas. Então, é importante verificar os interesses de quem analisa

determinados fenômenos e a contaminação do olhar por uma visão de classe social,

ou ainda, num sentido mais amplo, ideológica. Para o grupo, o conceito de popular

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defendido por eles se concretiza no modo de produção que prioriza a participação de

pessoas oriundas da classe popular; nas apresentações em locais não convencionais,

sobretudo nas periferias; e pela abordagem dos temas históricos e divulgação da

cultura brasileira. Podemos acrescentar a esses critérios a adoção de um ponto de

vista e a tomada de um partido, mesmo por aqueles considerados representantes da

classe média ou da burguesia (para utilizar a mesma nomenclatura adotada pelo

grupo), a favor dos interesses do povo, aqui entendido como pessoas da classe

popular. A opção por estar ao lado destas é uma constante para os integrantes do

grupo, independente de sua origem de classe. Ao refletir sobre o olhar que se

apresenta por parte de alguns pesquisadores, críticos e mesmo outros artistas a

respeito deste posicionamento,é possível dizer que este olhar pode estar deformado

pela origem de classe. Também a adoção de critérios relativos a outras formas

artísticas e mais especificamente de teatro, pode ter uma relação com as temáticas

apresentadas nas obras, além da estrutura adotada para veiculá-las. A arte do TUOV

pode ser ainda mais valorizada por essa característica de tornar belos e atraentes esses

temas densos e comprometidos politicamente. Pode-se observar, em diversas obras do

grupo, a divisão existente entre opressores e oprimidos, privilegiados e

desprivilegiados, ricos e pobres. Esse maniqueísmo, comum a algumas histórias e

característico de obras infantis ou didáticas servem à objetividade necessária a uma

obra popular, delimitando claramente papéis sociais. Brecht vai mais além ao

aprofundar em suas obras a contradição e mostrar sutilezas dos poderosos e mesmo

dos trabalhadores que, contaminados pela cultura capitalista, se metamorfoseiam em

comportamentos nada próprios de sua condição social. Essa complexidade não se

apresenta em obras essencialmente populares, mas pode apresentar-se em obras que

conservam seu caráter erudito. Porém não deixam de ser acessíveis a quaisquer

públicos. Pelo contrário, esse conceito seria mais uma conformação social e inclusive

estética. Do mesmo modo, o maniqueísmo pode ser considerado apenas como uma

opção, tão válida quanto a outra. De qualquer maneira, talvez seja uma das

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possibilidades desse tipo de arte ser considerada menor. O esquematismo ou a

objetividade deixaria mais claras as relações de poder, o que pode tornar mais

chocante a compreensão de uma realidade que no cotidiano é velada. São hipóteses

sobre as quais podemos refletir para a ampliação da percepção do fenômeno teatral.

Sobre a utilização de expedientes do teatro de forma épica e de elementos dos

folguedos populares, temos a seguinte reflexão de Silvana Garcia (2004:211):

Do mesmo modo como utilizam Brecht, os grupos também se apropriaram de procedimentos que, por vias diversas e indiretas, herdaram do teatro russo e do agitprop de primeira geração. Assim, retomaram as matrizes populares, no nosso caso, o circo, o folguedo, as danças e ritmos populares, o cordel e a revista-e assimilaram as formas originais geradas pelo agitprop (o jornal-vivo ou teatro-jornal e a idéia de teatro-foro). Não desenvolveram com tanta frequência peças curtas (esquetes, sainetes) nem o teatro de rua – este até por motivos óbvios - mas preservaram características como uma certa praxe de começar os espetáculos fora do palco, na calçada e no meio do público, e a construção de estruturas dramatúrgicas maiores, tomando por base fragmentos independentes.

Ainda que possa parecer que, na atualidade, esses temas e a defesa dos interesses do povo sejam lugar comum, cada vez mais as formas de exploração e dominação se ampliam e se diversificam em tantas outras. O teatro, por ser uma atividade coletiva por excelência, já desafiaria em tese a imposição do individualismo e da concorrência. Para além dessa característica, está a utilização do teatro como ferramenta de transformação, a partir da tomada de consciência dos participantes de grupos e do público para os quais se apresenta.

Os poderes dos governantes não insistem no uso de coerção se podem assegurar um consenso; contudo, como a brecha entre ricos e pobres no mundo aumenta constantemente, toma agora um vulto a perspectiva, para o próximo milênio, de um capitalismo autoritário cada vez mais amuralhado, sitiado, num panorama de decadência

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social, por inimigos internos e externos cada vez mais desesperados, abandonando finalmente toda a pretensão de um governo consensual em favor de uma defesa brutalmente franca do privilégio.30

Uma das qualidades da atuação do TUOV é compreender e respeitar a

diferença como forma de interagir aos contextos de resistência artística, cultural e

política, ao considerar que existem diversos grupos e formas de fazer teatro engajado

na transformação da sociedade, em que os ideais não se transformaram no decorrer de

sua carreira, mas ampliaram a atuação de diversos agrupamentos, sérios e dedicados,

independente do tipo de teatro que postulam, dentro da perspectiva de se comunicar

com o popular como público. A esse respeito, podemos considerar o exposto por

Eagleton (2005:105):

De qualquer modo, o pós modernismo erodiu progressivamente as fronteiras entre a arte de minoria e seus correlatos de massa ou popular. A cultura pós-moderna pode ser antielitista, mas o seu desdém popular pelo elitismo pode ajustar-se bem facilmente a um endossamento de valores conservadores. Nada, afinal, é mais inexoravelmente nivelador de valores do que a forma de mercadoria, uma forma que dificilmente deixa de ter aprovação em sociedades de mentalidade conservadora... O mercado é o melhor mecanismo para assegurar que a sociedade seja ao mesmo tempo altamente liberada e profundamente reacionária. A cultura comercial, assim, preserva muitos dos valores da alta cultura, os quais despreza como elitistas. Acontece apenas que ela é capaz de embrulhar esses valores em uma atraente embalagem antielitista, o que a alta cultura não consegue.

Os procedimentos utilizados no modo de criação artística do TUOV, que

envolve desde a escolha dos temas à definição do público, constituem-se num

contraponto aos modos de produção comuns. Significa coerência aos ideiais

30Terry EAGLETON, Op. cit. p. 77.

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defendidos pelo grupo, considerando sua forma de organização semelhante aos

grupos familiares e tradicionais que praticam as manifestações populares e guardam

saberes e fazeres bastante característicos da convivência comunitária, que tem sua

base na solidariedade e ajuda mútua. Relação que, obviamente, também apresenta

conflitos internos e externos que, no caso do TUOV, os resolve de maneira

consensual, a partir de uma rodada de conversa e argumentação. As decisões

importantes necessitam do consenso para a solução, que encaminhe os participantes à

ação prática, sem discussões posteriores.

Ainda sobre a importância do processo criativo e da valorização de aspectos mais

significativos que os proporcionados pela lógica comercial, César Vieira cita em

entrevista que o mais importante do movimento de teatro de grupos em São Paulo é a

mudança do foco da produção teatral de alguns deles, valorizando os conteúdos

abordados de relevância social sem perspectiva do lucro e da fama. A despeito da

lógica de mercado imperar em nossa sociedade, quando se pensa se as mudanças

propostas pela arte se tornam efetivas, temos que a atividade teatral em si, ao

proporcionar o diálogo com pequenos agrupamentos, subverte a lógica reprodutivista

e inaugura novas possibilidades de ação, preenchendo estas brechas do sistema com

algo que busca preservar, antes de tudo, a humanidade das pessoas. A educação

estética, a troca de idéias e a busca de alternativas possíveis para a construção de um

outro mundo, encontra ressonância não só no teatro, mas noutras iniciativas como

feiras e comunidades de trocas solidárias, escolas que conquistam independência de

seu projeto pedagógico e outros tantos pequenos agrupamentos que se articulam,

garantindo a diversidade de opinião e de conduta, no interior de um sistema fadado à

transformação, dada a insustentabilidade de sua proposta.

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Imagem 5: Cartaz do espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, de 1970. Foto de Graciela Rodrigues a partir do original.

A busca do teatro popular tem início na década de 60 e se desenvolve com a permanência da opção pelo popular. O grupo atua na divulgação dos produtores de cultura populares, reconhecendo a cultura como parte intrínseca de suas práticas sociais.

...A finalidade desse trabalho é mais a de despertar o interesse de populares para a produção cultural artística, teatral ou não, latente mas embotada por suas condições de vida e de sobrevivência, e que assim dentro de suas necessidades, caminhem então sozinhos. A arte popular existe, nós só pretendemos tirar-lhe a carapuça. (Trecho de artigo do Jornal Possível, Coluna Et cetera, p. 7, de outubro de 1972.)

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3.1. O Evangelho segundo Zebedeu

Com a encenação desse texto iniciam-se as atividades de contato do grupo com

o público habitual do Circo Irmãos Tibério, depois chamado Circo União e Olho

Vivo. O espetáculo discutia artisticamente problemas sociais do país, suscitando

debates em sequência. O espetáculo anterior, Corinthians, meu amor, já percorrera as

periferias atendendo pedidos. Os espetáculos produzidos posteriormente fixam

debates e deambulação como pressupostos para a efetivação do teatro popular. Com

uma equipe competente artisticamente, a força e a atualidade dos temas sociais, o

espetáculo se torna uma referência teatral naquele momento, ao associar o universo

circense à discussão de um dos capítulos mais representativos da história da luta de

classe em nosso país, a Guerra de Canudos. De modo a abordar a opressão do

trabalhador e as condições do trabalho artístico, sobretudo dos artistas populares

circenses. Sem pretensões realistas, a forma do espetáculo reúne as características dos

dramas circenses e busca encontrar a fórmula de teatro painel essencialmente

nacional, assumido como drama épico.

A Revolta de Canudos (1896-1897) ocorreu no sertão da Bahia durante o

governo civil republicano de Prudente de Morais (1894-1898), que representando os

interesses das oligarquias cafeeiras e de outros latifundiários, decidiu enfrentar o

líder Antônio Conselheiro, devido a sua influência sobre o povoado de Canudos,

notadamente pela impossibilidade de a Igreja controlar as práticas religiosas por todo

o país. Conselheiro jamais aceitara o poder republicano, sendo perseguido e atacado

pelas autoridades que temiam a proliferação de movimentos populares da mesma

natureza. Após diversas investidas desastrosas que subestimaram as condições de

combate dos jagunços de Conselheiro, em sua quarta expedição, o Exército consegue

dizimar brutalmente a população de Canudos. No povoado, os moradores dominavam

a terra, da qual tiravam seu sustento e viviam com suas famílias. Conselheiro não

reconhecia também a igreja, que havia aceitado o novo regime. Os militares, por sua

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vez, advertiam os republicanos sobre a necessidade de manter a ordem, ou a república

fracassaria. Embora não se tenha verificado nenhum tipo de apoio efetivo das forças

monarquistas, Conselheiro acreditava no Império e no retorno do lendário D.

Sebastião.31Canudos foi um exemplo de resistência à opressão, tornando-se

emblemática no que diz respeito às questões ligadas à ocupação de terras no país.

A peça de César Vieira, de 1970, conta a história escrita por Zebedeu Martins,

personagem que perdeu a língua em acidente, ao engolir fogo numa exibição circense.

Uma trupe encena a história de Canudos, escrita por Zebedeu. Narra os fatos com

liberdade poética, estabelecendo relações entre a vida do povo pobre de Canudos e a

dos artistas do circo, generalizando-as para as relações sociais mais amplas. Em dois

atos, o primeiro com seis cenas e o segundo com oito cenas, independentes entre si,

traz-se à tona capítulos da vida, paixão e morte de Antônio Conselheiro, entremeados

pela realidade do circo, num espetáculo recheado de críticas à igreja, ao militarismo e

às desigualdades sociais. A estréia aconteceu no Circo Irmãos Tibério, no Parque do

Ibirapuera, em 1970, com direção de Silney Siqueira, músicas de Murilo Alvarenga,

cenário e figurinos de José de Anchieta e coreografia de Ruth Rachou. Para Silney

Siqueira, o espetáculo dionisíaco atinge o universal pelo regional.

O tema circense utiliza-se da forma de cordel, em versos. As músicas,

apresentadas pelo coro, comentam as cenas e há a presença de um “ponto” (pessoa

escondida que diz ou “sopra” o texto para os atores durante o espetáculo, caso

esqueçam suas falas). O “ponto”, no caso, impõe o texto para os atores que nem

sempre o seguem, como é o caso do ator que representa o Conselheiro.

31El Rei D. Sebastião era neto de João III e, aos 24 anos, desapareceu em Marrocos durante a Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Sebastião considerava-se um capitão de Cristo convocado a uma nova cruzada contra os mouros, invasores da Península Ibérica. Seu corpo não foi encontrado, o que deu origem ao mito do retorno desse rei português para libertar os oprimidos. Tal expectativa se alastrou na Península pelos séculos posteriores e também no nordeste brasileiro, especialmente em Canudos.

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O primeiro ato apresenta Antônio Conselheiro e sua missão; o segundo mostra

as contradições internas do exército do governo e os episódios da Guerra de Canudos.

O “drama circense”, com assunto histórico, tem abordagem cômica, ligada à

estrutura do circo. Os expedientes cômicos do texto, a estrutura metalinguística e os

expedientes narrativos são elementos de distanciamento32, de caráter teatralista, que

trazem à tona o assunto e o generaliza para outros lugares e épocas, explicitando a

situação ocorrida no circo e suas contradições internas. O público fica atento às

diversas situações do enredo, instigado a conhecer o assunto da Guerra de Canudos e

a saga de Antônio Conselheiro. Portanto, para os elementos do grupo, é possível

refletir-se sobre a condição do artista. Referindo-se à repressão e a censura política, a

arte, a imprensa e a cultura, o dramaturgo coloca em cena um autor sem língua. O fato

dele não poder falar, mas se expressar através da escrita, remete à repressão imposta

pela ditadura deste período em que a peça é encenada, em que não se pode falar

contra o autoritarismo. Assim recorre-se a um simbolismo crítico expresso em obras.

Apesar disso, a obra foi censurada em partes.

Na peça, no momento da morte de Pajeú, um dos principais líderes do bando

de Conselheiro, o coro emite o lema do grupo, frase de César Vieira: “Sou que nem a

soca da cana, me corte que eu nasço sempre!” Referindo-se aos revolucionários e

bravos da história brasileira, identificados com o povo, fica claro que mais forte que

os indivíduos é a força da coletividade.

Ao término da peça dentro do espetáculo, o conflito continua entre os artistas

do circo, mostrando que, na realidade, ainda há muito por fazer. Na saída, o público

recebia um cartão. Acerca dele, consta na peça publicada a seguinte referência:

32Alexandre Mate, ao citar Gerd Bornheim, lembra que: “(...) as técnicas de distanciamento – que se prendem a uma possibilidade de apreensão crítica da conjuntura social, do ponto de vista estético – não podem ser enfeixadas como se fossem meras técnicas fixas de atuação. Elas aparecem na dramaturgia, no tratamento cenográfico, na elaboração dos adereços cênicos, na direção, na música, no processo de recepção da obra (tendo em vista que o público é parceiro) e em tudo que concerne ao espetáculo. Para além disso, o distanciamento se caracteriza em um caminho ao qual novas experiências precisariam se somar”. (Op. cit., p. 26)

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No lado da frente, em cima, os dizeres: “Retrato do artista Vouques”. No meio, um círculo de papel prateado de proteger cigarros, que reflita deformando o rosto de quem olhar. Flecha indicativa com os dizeres “Isto é um espelho”. No outro lado do cartão, estarão impressos os dizeres: “Vendo ele que a espada vem sobre a terra, deve tocar a trombeta e avisar o povo”(Ezequiel, 33-4).33

Depois de chamar o público a acompanhá-los, as personagens Vouques

(abrasileiramento de Volks, povo, em alemão) e Bailarina tiram as roupas circenses

e estão com trajes comuns, para que o público complete sua identificação com os

atores e com o universo do massacre de Canudos. Essa identificação se dá a partir

do aguçamento do senso crítico e da capacidade humana de se solidarizar aos

outros. Eagleton (2005:75) esclarece acerca das homologias de sentimentos entre

comunidades várias:

Mas isso é também porque não se precisa saltar fora da própria pele para saber o que um outro está sentindo; com efeito, há ocasiões em que é preciso antes entocar-se mais profundamente dentro dela. Uma sociedade que sofreu colonização, por exemplo, precisa apenas consultar sua própria existência 'local' para sentir solidariedade com outra colônia. É claro que existirão diferenças básicas; contudo, os irlandeses do início do século XX não precisavam recorrer a alguma misteriosa faculdade intuitiva para saber alguma coisa sobre como se sentiam os indianos do início do século XX. São aqueles que fetichizam as diferenças culturais que são aqui os reacionários.

O passado histórico é revisitado na cena, iluminam-se os interesses sociais, a luta de classes, a distância cultural monstruosa entre os civilizados poderosos da 33 César VIEIRA. O Evangelho segundo Zebedeu. In: Teatro da Juventude, nº 14. Secretaria de Estado da Cultura. São Paulo, 1997, p.111.

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República e os miseráveis fanáticos, atrasados partidários do Império destronado. E o público de nosso tempo pode refletir sobre aquele momento. Parece-nos oportuno recorrermos à clareza de Eagleton (Idem):

Foi por fazer parte de sua própria história cultural, e não por colocá-la temporariamente de lado, que essas sociedades foram capazes de ir além dela. Não é cessando de ser eu mesmo que compreendo você, pois nesse caso não haveria ninguém para efetuar essa compreensão. E sua compreensão de mim não é uma questão de reduplicar em você mesmo o que eu estou sentindo, uma suposição que poderia muito bem levantar questões espinhosas sobre como você consegue ultrapassar a barreira ontológica entre nós dois. Acreditar nisso é presumir que estou em perfeita posse de minha própria experiência, sou luminosamente transparente para mim mesmo, e o único problema é como você poderia ter acesso a essa autotransparência. Mas eu não estou, de fato, em plena posse de minha própria experiência; posso às vezes estar bastante enganado acerca do que estou sentindo, quanto mais pensando; você pode muitas vezes compreender-me melhor do que eu mesmo, e a forma pela qual você me compreende é em muito a forma como compreendo a mim mesmo.

O mesmo autor, no entanto, adverte para o risco de se confundir compreensão com

empatia:

Compreender não é uma forma de empatia. Não é empatizando com uma fórmula química que eu a compreendo. Não é verdade que eu seja incapaz de simpatia por um escravo simplesmente porque nunca fui escravizado, ou incapaz de avaliar os sofrimentos envolvidos em ser mulher porque não sou uma mulher. Acreditar nisso é cometer um erro grosseiramente romântico a respeito da natureza da compreensão. Mas esses preconceitos românticos, a julgar por algumas formas de política de identidade, estão claramente vivos e passando bem.(Idem)

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Para tanto, os expedientes de distanciamento são utilizados em diversos momentos do

espetáculo, dados pelo texto ou pela encenação. As músicas comentam as cenas e são

bastante utilizadas. Há ainda diversas intervenções do circo, com a função de troca de

cenários. O coro é utilizado para comentar criticamente as cenas, explicitando seu

caráter de esclarecimento dos fatos. Os atores de revezam nos diferentes papéis,

havendo correspondência entre as personagens que representam no circo e no drama.

Para o revezamento, lançam mão de figurinos básicos, compostos por adereços que

identificam as personagens. Há distanciamento também dos atores em relação as

personagens que representam. Num recurso metalinguístico, o ator Vicente, que

representa Conselheiro, age como se “esquecesse o texto”. Este recurso relativiza a

imagem apresentada da personagem. Outro recurso que contribui nesse aspecto é a

utilização de expedientes cômicos para tratar de assuntos densos. Também são

utilizados quadros e outros suportes com textos que têm a função de comentar o

espetáculo. Além dessas, há outras características populares, como a utilização de

repentismo e narração futebolística para comentário ou representação nas cenas.

A presença da formação católica, erudita e socialista do autor César Vieira fica

evidente na leitura do texto, dadas as informações apresentadas no texto advindas de

uma pesquisa do tema na perspectiva da história, outra de perspectiva de rompimento

com a veracidade das informações, buscando aguçar o senso crítico da platéia.

Referências bíblicas apóiam a versão da história de Conselheiro relacionada à de

Jesus Cristo; da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, foram apropriados textos de

cordel colhidos deste autor em sua incursão em Canudos, os quais registrou na obra.

Além disso, Vieira lança mão do conhecimento da estrutura de manifestações

populares como o próprio circo, os dramas populares e religiosos como a Paixão de

Cristo, recorrendo ainda ao futebol e à comédia, em tiradas que desconstróem a

relação dramática, mesmo em momentos de tensão, como é o caso da morte de

Antônio Conselheiro, incluindo a informação dos exames realizados no cérebro do

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beato. Porém, Vieira descreve em verso um desfecho diferente do original de

Euclides da Cunha:

E cortaram a cabeça do Conselheiro

e trouxeram num caixote de sal

no selim de um animal.

Examinando o crânio, na capital,

a ciência disse: normal!

(VIEIRA, 1997, p.10)

O Evangelho contou ainda com outras montagens pelo Brasil, por diversos grupos,

incluindo uma, também dirigida por Silney Siqueira, com o grupo Teatro da Cidade,

de Santo André.

A história nem sempre é contada conforme os fatos. O papel do TUOV é

discutir a realidade, relacionando passado, presente e futuro. O compromisso com a

verdade é reiterado na inscrição do quadro apresentado na última cena: “E se alguém

fizer qualquer acréscimo às verdades contidas neste drama, Deus lhe acrescentará os

flagelos nele escritos; e se alguém tirar qualquer coisa, Deus tirará dele a sua parte na

árvore da vida”. (Ibidem, p. 111)

O elenco do circo anuncia a próxima peça A morte do Capitão-Mor. No

período de escrita do texto e da temporada do espetáculo, o Brasil vivia o auge da

ditadura militar, sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974),

que impunha a toda a população a suspensão dos direitos políticos e a violência

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repressiva, disfarçadas em propagandas populistas, nas quais a aparente defesa do

país com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, sugeria a ameaça aos que não

aceitavam o regime militar. O crescimento econômico denominado “Milagre

Brasileiro”, a partir do Plano Nacional de Desenvolvimento, proporcionou em

seguida uma grande crise que fortaleceu com argumentos o espírito contestador da

oposição da época, mobilizado para exigir a volta da democracia. As reações ao

governo posterior de Ernesto Geisel (1974-1979), que, ao perceber a impossibilidade

de manutenção do poder militar desgastado pela crise, passou a aceitar a devolução

gradual do poder aos civis. Isso deflagrou um processo de rebeldia de alguns

comandantes, militares regionais. Em São Paulo, nas dependências do Estado foi

assassinado o jornalista Vladimir Herzog, em 1975. O AI-5 foi extinto em 1978 e a

sucessão presidencial trouxe ao poder o General João Figueiredo, que assumiu o

compromisso de permitir a “abertura” política, tendo em vista a crescente pressão

social. Há então o fortalecimento do movimento sindical e a mobilização grevista, nos

quais se destacará a atuação de Luiz Inácio da Silva, líder metalúrgico. Resultados do

processo de mobilização da oposição foram a anistia aos punidos pela ditadura com

exílio ou cassação dos direitos políticos; e a criação de novos partidos políticos. O

PDS surge no lugar da ARENA, o PMDB substitui o MDB; são criados o PT (Partido

dos Trabalhadores), o PDT (Partido Democrático Trabalhista), o PTB (Partido

Trabalhista Brasileiro). Na mesma tendência dos movimentos populares, o TUOV

direcionou uma das suas produções ao tema e ao diálogo com esses trabalhadores

interessados nas melhorias das condições de trabalho e sociais. Também esteve na

pauta de discussões a dívida externa e a dependência do FMI (Fundo Monetário

Internacional), a inflação e o desemprego. A cultura de massa desenvolvida já na

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década de 1960, preparou terreno para sua consolidação em bases não apenas

econômicas, mas profundamente ideológicas. Após o trabalho do TUOV em Rei

Momo (1973), discutindo o autoritarismo e a imposição do poder a despeito da

democracia, veio, em seguida, o espetáculo Bumba, meu queixada (1978).

Imagem 6: Bumba, meu queixada, elenco de 1978. Foto de Graciela Rodrigues a partir da original.

Funcionalidade de adereços e figurinos garantem comunicação com o público.

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Imagem 7: Capa da edição de 1980 de Bumba, meu queixada. Foto de Graciela Rodrigues, a partir do original.

As cores vermelha e preta são utilizadas para identificar a luta organizada: o trabalhador é reconhecido como personagem principal da História, que é a protagonista de todas as peças do TUOV.

Inexiste um conceito de “Teatro Popular”. Mas ele deve ser sempre dinâmico e nunca estático. Um espetáculo pode ser feito com base num texto popular e resultar não popular. Não há regras fixas. O ideal seria fazer Teatro Popular partindo-se de um texto simples, sem pretensões, mas com intenções, montado por um grupo de operários e apresentado em bairros da periferia. Em síntese: Teatro Popular é a soma do texto, grupo, montagem e local populares. (Trecho de entrevista de César Vieira ao jornal Última Hora, de 10 de julho de 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.)

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3.2. Bumba, meu queixada

Teve uma greve na cidade de Guarús, onde os operários sabedô dos seus direitos, assinaram em cruz; Foi uma briga feia, durou dezena e meia, uma briga danada e os operários chamavam Queixada. (VIEIRA, 1980, p.45)

Este espetáculo marca o início das atividades de trabalho coletivo do grupo,

quando seus componentes são responsáveis pela confecção das fichas dramáticas: um

apanhado de informações sobre personagens e situações que fornecem elementos para

a criação de uma cena. É gerado um quadro dramático que cruza coincidências de

fatos e personagens pesquisadas, do qual surge uma espécie de esqueleto de peça. A

comissão de dramaturgia redige o texto, que retorna aos atores para improvisações e

reescritura do texto pela comissão. Mesmo durante as apresentações, de acordo com

indicações do público, o espetáculo é modificado para tornar-se cada vez mais

funcional. Da experiência com os espetáculos anteriores, alguns em cartaz no circo

(O Evangelho segundo Zebedeu e Rei Momo), com o desenvolvimento de debates e

do processo de deambulação ocorrido com Corinthians, meu amor, é com Bumba,

meu queixada que há a comunhão entre tema, forma, procedimento, público e elenco

populares. Ao fazer esta opção definitiva pelo popular, o grupo assume sua vocação

amadora e seu pressuposto classista em todas as vertentes de sua criação. Talvez daí a

diferenciação proposta entre criação coletiva e trabalho coletivo, a primeira entendida

como criação completa da obra e o segundo como característica da pesquisa

desenvolvida para uma montagem. A partir deste espetáculo, é extinta a divisão do

trabalho criativo e são potencializadas as comissões, dando sentido estrito aos termos

união, referente à coletivização de todo o processo, acolhendo trabalhadores de

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diversas áreas como atores e artistas do grupo; e “olho vivo”, a partir do requisito

básico de expor a história do país por intermédio da arte. Os movimentos grevistas

desta época, ligados ao movimento sindical, possibilitam a apresentação do grupo em

diversos locais, nos quais se busca solidarizar com os trabalhadores explorados de

diversas fábricas, metalúrgicas e outras. Um dos maiores expoentes políticos deste

período, Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a ser o Presidente da República, eleito

por dois mandatos consecutivos de 2003 a 2010, assistiu a este espetáculo inúmeras

vezes, tendo figurado numa das gravações disponíveis no Arquivo Multimeios do

Centro Cultural São Paulo, em acervo especial do grupo. Neste, o discurso do então

sindicalista, critica o governo da época por não valorizar a força de trabalho e

organizativa dos operários, bem como convoca a platéia para a discussão da reforma

agrária. A coerência do grupo se verifica tanto na continuidade das discussões sobre

os temas de relevância social, incluindo a questão da terra, já evidenciada no

espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, como na permanência da opção feita,

nesse momento histórico, pelo popular em todas as suas vertentes.

A peça é apresentada em cinco cenas, independentes entre si, tendo como fio

condutor a apresentação de um bumba-meu-boi por funcionários do parque de

diversões Arco-íris. Da manifestação tradicional, é mantido o conflito entre ricos e

pobres e a musicalidade, além das cores e de algumas personagens, como o Boi e a

Pastorinha. A primeira cena apresenta o cortejo do boi e a “bilha da verdade”. Um

jogo entre as personagens, estendido à platéia, de caráter essencialmente popular.

Quem for verdadeiro, sente gosto de bebida boa; quem não for, sente gosto de bosta.

Ainda nesta cena, há a morte do boi, que ressuscitará na última cena. A segunda cena

apresenta o parque e seu funcionamento, com os conflitos entre patrão e empregados

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e público. A terceira cena ilustra o cotidiano de uma família Queixada (os operários

de Osasco se denominaram queixadas, por ser um tipo de animal que, organizado em

bando, se torna indestrutível), uma típica família operária brasileira. A quarta cena

apresenta uma greve deflagrada numa empresa e a quinta cena traz o espetáculo de

volta ao contexto do parque de diversões, relacionando a situação dos trabalhadores

do parque às demais cenas apresentadas. São apresentadas três possibilidades de

solução para os conflitos apresentados e o público discute no debate: reclamação na

Justiça do Trabalho; rebelião (arrebentar o Parque e depois tomá-lo); constituição de

comissões de fábrica e apoio às organizações sindicais (reunir-se, discutir, organizar-

se e depois agir).

O texto vem sendo encenado até hoje pelo grupo como Os Queixadinhas, uma

versão de 40 minutos da peça original, para ser apresentada nas comunidades, em

diversos bairros paulistas, organizações comunitárias, associações etc. Este trecho

consiste na terceira cena do espetáculo. A partir da pesquisa acerca do movimento

operário, em regiões de São Paulo, Perus, Osasco, Contagem, Santo André, São

Bernardo, São Caetano e Diadema, entre outras, foi estruturada a peça em forma de

cordel, com músicas que ora comentam as cenas, ora são utilizadas como recurso

cênico quando não há fala, com sonoplastia da cena realizada com mímica e

pantomima. O assunto é a greve, tratado de modo que seja generalizada a situação do

trabalhador para quaisquer locais e épocas, inclusive a atual. O grupo lança mão de

diversas manifestações da cultura tradicional para compor o espetáculo, como forma

de valorizá-os.

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Numa apresentação de Os Queixadinhas, em Guarulhos, em abril de 2007,

algumas pessoas se identificaram de forma sensível com a tristeza de Mamãe

Queixada, ao vivenciar a pobreza com seus filhos, e com o Papai Queixada saindo

para o trabalho. A cena também atrai especialmente a atenção das crianças.

A estrutura dramatúrgica apresenta quadros permeados por elementos do auto

do bumba-meu-boi34, em que a manifestação se apresenta como forma de convite ao

ritual teatral, no início e no final do espetáculo. Assim, foram preparadas as músicas,

registradas em LP da Gravadora Marcus Pereira. A escolha foi realizada tendo em

vista o público, na maioria nordestino, que conhece o bumba-meu-boi. O assunto

greve foi escolhido por ser de grande interesse do público, constituído por

trabalhadores, em sua maioria metalúrgicos. Foram inúmeras as pesquisas, as

conversas com trabalhadores e a investigação específica a respeito do bumba-meu-

boi, com a especialista Leda Alves, do Recife. No caso do bumba-meu-boi original, é

contada a história de Pai Francisco e Catirina (que devem satisfação ao patrão pelo

sumiço de seu boi). Em Bumba, meu queixada, diversamente, desenvolve-se a história

da greve, identifica-se opressor e oprimido, conforme o grupo explicita: “O natural

conceito maniqueísta que o povo põe em suas manifestações, esclarecendo sempre

que quem não está de um lado, está do outro, mostrando sempre que quem não está

com ele, povo, está contra.”(Op. cit., p. 9)

34Segundo Reynúncio Napoleão de Lima, “(...) os autos tradicionais de modo geral tratam da viagem de Francisco e Catirina em busca do boi extraviado, no que são auxiliados por Mateus e Bastião, guardiões de animal. Pelos caminhos, encontram personagens alegóricas e/ou representativas de tipos sociais: padre, sacristão, capangas, jagunços, coronéis, médicos, militares, curandeiros, figuras míticas, até encontrarem o boi morto, que acaba ressuscitando. Esse conjunto de elementos caracterizam um auto, espécie dramatúrgica de motivação religiosa, medieval e renascentista, com poderosos reflexos no teatro brasileiro, desde Anchieta a Suassuna e muitos outros.”Vide também artigo Globalizaram o Bumba-meu-boi. In: ARTEunesp. Vol. 13, 1997, São Paulo: Editora Unesp, 1997.

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A idéia de agir sobre a realidade e o anseio de solidariedade são colocados em

destaque: “Olha a sorte, olha a sorte; quem vai querê sua vida fazê; quem vai querê

sua vida mudá; Me dê sua mão, me dê” (Idem). E o público termina numa roda,

cantando e dançando com os atores.

Na publicação de 1980, o grupo indica os procedimentos de criação e

confecção de suas obras, a bibliografia consultada, as entrevistas realizadas, a escolha

de personagens, figurinos, cenários e todo processo de construção do espetáculo,

constituindo um histórico, de modo a subsidiar pesquisas e trabalhos de outros

grupos; o que fica claro no prefácio da publicação de Bumba, meu queixada: “Ao lado

de inúmeros outros grupos que realizam trabalho semelhante, o Teatro Popular União

e Olho Vivo vai continuar percorrendo a periferia, certo de que, modestamente, estará

dando a sua contribuição para a busca de uma sociedade em que o homem seja irmão

do homem e não patrão do homem.”(Ibidem, p.6)

Os figurinos e cenários foram confeccionados artesanalmente, sendo que as

personagens que caracterizam os oprimidos foram representadas em vermelho e as

caracterizadas como opressoras em azul, bem como utilizam máscaras. A

representação dos Queixadas é feita com máscaras que lembram o porco de mesmo

nome. A utilização do estandarte, recorrente noutros espetáculos, aparece no Bumba.

A questão do preconceito entre diferentes etnias também se apresenta nesta

peça:

Fiu de branco é menino/Fiu e negro é moleque...(Ibidem, p.25)

Neste período, é intensificada a reação do governo, em que os argumentos para

desvalorizar as manifestações de oposição foram construídos sobre o preconceito às

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diferenças, à pobreza e a quaisquer pensamentos divergentes à manutenção dos ideais

dos ricos. Nesta obra, aparece a contestação desta realidade, relacionando pobreza e

etnia.

Acerca de apropriação de elementos do bumba-meu-boi, nesse espetáculo, é

apresentada a reflexão sobre a fidelidade à manifestação tradicional: não se trata de

reproduzi-la tal e qual, mas de mostrar seu valor e revelar a preocupação com a

possível extinção da cultura popular, solapada pela cultura de massas: “Nóis num vai

mostrá o Bumba tradicioná, que é feito, infelizmente agora, em pocos lugá!”(Ibidem,

p. 27)

Comparado à divisão desigual das riquezas no país, é apresentada a divisão das carnes

do boi:

Este é do boi o testamento

pela sua morte um lamento

no qual as coisa boa fica pros poderosos

e as coisas ruim é dos andrajoso

O corredor é do seu dotô

o coração é do patrão

o chambari bote prá qui

e o que o boi cagô é dos cantadô

(Idem)

No momento do “jogo da bilha da verdade”, a rubrica revela a realização do desejo de

estar junto do público: “E seguem servindo com amor, alegria... e o povo se

comungando... e o povo com a gente... e a gente com o povo...”(Ibidem, p. 34)

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Na cena dois, que apresenta o Parque Arco-íris, é realizado o “jogo dos

bonecos”, que caem quando atingidos por bolas atiradas pelo público: “Os bonecos

simbolizam figuras conhecidas, mas que de uma forma ou de outra tomam atitudes

contrárias aos interesses da comunidade. Por sugestão do público, nos espetáculos de

São Paulo, foram colocados os bonecos de Belé, Bebeto Carlos, Baluf ou Belfim e, na

excursão pela América Latina, os bonecos eram: Somoza, Kissinger e Nixon.”

(Ibidem, p. 37)

A fala do anunciador que divulga o jogo é bastante jocosa: “Derrube a cabeça.

É o jogo do bola-bola que derruba a cabeça de quem enrola.”(Ibidem, p.38)

A cena três apresenta a música-tema do espetáculo, seguida da pantomina que

traduz a vida do trabalhador brasileiro:

Tem um porco do mato

Um porco selvagem

que quando anda em bando

Vira turma da pesada

Seu nome é Queixada

(Ibidem, p. 45)

Na cena quatro, no Refeitório da Metalúrgica Brasilina, vem à tona mais uma

faceta das condições de vida do trabalhador:

Chuvisco – Tô co'saco cheio de comê comida fria.

Agora tá faltando gás todo dia...

Zequinha - Prá mim é grupo do patrão: Fecha o gás

e economiza um dinheirão!

Chuvisco – Prá nóis é só zebra que apronta.

Sereno – E se achá ruim os home dá logo a conta.

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Onte chutaram o Edmundo.

Zequinha – Inda não confirmaram a despedida.

Vamo vê: conforme fô a gente põe a boca no mundo.

Sereno – E vai adiantá? Tem gente assim...de bizú, no lugá!

(Ibidem, p.55)

A quinta cena convoca o público à reflexão e ao debate e, utilizando a metáfora

da mão que tem o destino traçado em suas linhas e a mão que pode ser oferecida ao

outro em sinal de solidariedade, presentes na letra da música que encerra o

espetáculo:

Me dê sua mão, me dê,

quem vai querê sua vida fazê;

me dá sua mão, me dá,

Quem vai querer sua vida mudá?

(Ibidem, p. 79)

A década de 1980 foi marcada pelo processo de restituição da democracia,

assolado pela herança da ditadura militar: concentração de propriedades e renda nas

mãos de poucos em detrimento da oferta de possibilidades para a maior parte do

povo; sensível queda na qualidade da educação e consequente intensificação da

alienação, com crescimento da cultura de massa cobrindo com um denso véu as

manifestações alternativas; dominação estrangeira e divulgação do capitalismo,

intervindo nos meios de comunicação e implantação de um modo de vida identificado

ideologicamente com os dominadores; inflação e dívida externa comprometendo

definitivamente a economia do país.

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A ditadura terminou oficialmente em 1985, com o processo de abertura. Os

próximos presidentes não conseguiram romper com as exigências do sistema, muito

menos atender às necessidades básicas da população. Além disso, divulga-se até hoje

que a miséria é opção daqueles que a enfrentam, que deriva da falta de vontade para o

trabalho e enfrentamento de dificuldades. Persistem os processos de alienação e

atividades alternativas são a única forma de combater localmente a perpetuação das

diferenças. As eleições diretas ainda foram impedidas; a escolha do novo presidente é

feita por um colégio eleitoral. Paulo Maluf, “parceiro da ditadura”, é candidato ao

cargo. Tancredo Neves, porém, é o eleito, mas não chega a tomar posse, vítima de

doença que o levou à morte. Assume seu vice, José Sarney, representante dos

conservadores, que servira à ditadura militar. Em 1989, é eleito diretamente um novo

presidente civil: Fernando Collor ilude a população com sua imagem propagandística

e, em seguida, torna-se uma das maiores decepções de todos os tempos, envolvido em

corrupção. O que gera o processo de impeachment que culminou com sua renúncia.

Itamar Franco, seu vice, governou o país contemplando diversas tendências político-

ideológicas. O crescimento da indústria cultural e a massificação da comunicação não

impediu o surgimento de novos artistas engajados politicamente, bem como a

continuidade de iniciativas como a do TUOV, mesmo não interessando reconhecê-las

e divulgá-las. A preocupação em atingir as massas para difundir o pensamento

dominante abriu espaço para a intervenção junto a pequenos agrupamentos,

organizados pela defesa dos direitos de cidadania e do trabalhador. Após esse

período, é eleito, por duas vezes consecutivas, o sociólogo Fernando Henrique

Cardoso (de 1995 a 2002), até que Luiz Inácio Lula da Silva chegasse à Presidência,

em 2002. Em face de muitas esperanças ainda alimentadas ou já perdidas, de

expectativas frustradas, de poucas certezas e numerosas incertezas de certos avanços e

retrocessos na conquista de direitos do trabalhador e justiça social, vale a exortação

de Pedro Casaldáliga:35

35Pedro Casaldáliga é adepto da Teologia da Libertação, bispo emérito de São Pedro do Araguaia, Mato Grosso do Sul. Foi alvo de ameaças e também sofreu processo de expulsão durante a ditadura militar. É

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Hoje o rei está nu. Com indignação, com saudades, aquecidos por tanto sonho e luta e sangue, respondendo à dignidade ferida da maioria humana, nos voltamos para o socialismo: um socialismo novo. Porque evidentemente não se trata de repetir ensaios que deram, muitas vezes, em decepção, em violência, em ditadura, em pobreza, em morte. Trata-se de rever, de aprender do passado, de atualizar, de não se conformar e, por isso mesmo, de vivermos hoje aqui, localmente e globalmente, a sempre nova Utopia. Afirmamos categoricamente que a Utopia continua, que não é uma quimera mas um desafio. Por isso nos perguntamos como estamos de Utopia. Preocupados pela construção diária da política como arte do possível, perdemos de vista o que parece impossível e, entretanto, é necessário? Teremos de nos conformar elegendo governos mais ou menos de esquerda, e continuarmos, submissos ou derrotados, dentro do sistema capitalista de direita? Que resta da velha disjuntiva capitalismo-socialismo? Não falta quem afirme que já passou a hora das direitas e das esquerdas...Já não é possível o socialismo? Chegamos tarde demais? Não continua sendo a Utopia “necessária como pão de cada dia”?36

organizador da Agenda Latino-americana mundial, que reúne socialistas de várias partes do mundo. Ecumênica, busca reflexões libertárias e humanistas.

36 Pedro, CASALDÁLIGA. Agenda Latino-americana 2009. pp.10-11. São Paulo: Ave Maria, 2009.

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4.Considerações Finais

De todos esses erros e acertos é que nasce o conceito de teatro popular. Não estamos discutindo o sentido lato da palavra popular, o que é popular. Não dá remédio popular, que é uma merda. Seria mais ou menos por aí que eles discriminam o Olho Vivo. (César Vieira, em Entrevista citada.)

A conjunção entre o erudito e popular faz acontecer o teatro realizado pelo

TUOV. Muitas manifestações da cultura popular são apropriadas pela cultura erudita

ou modificadas e elevadas à condição de eruditas. No grupo, a apropriação retorna

para o popular como elemento de aglutinação e com função ritual que congrega as

pessoas em torno das questões sociais, das condições de vida do trabalhador, atreladas

ao sistema que padroniza e exclui, exige e conforma.

A estética a serviço da ética pode ser compreendida como a ética para além da

estética. Não se prioriza o resultado, mas o processo de união. O “olho vivo” fica por

conta da atenção dedicada às causas sociais e ainda urgentes. No combate à

perpetuação da intolerância às diferenças, à globalização da pobreza e à

universalização da competitividade. À destruição dos recursos naturais, à falência dos

sistemas públicos de saúde e à ausência de referenciais de justiça.

Formas populares de organização e comunicação são alternativas a essa

perspectiva mercadológica. Num aspecto, dependem da valorização governamental e

dos povos, mas simultaneamente independem de tudo isso, porque têm em sua

própria natureza mecanismos de permanência que são também universais: só podem

ser produzidas pelos humanos. Representam sua ancestralidade, suas verdades e sua

passagem pelo mundo. Marcam sua existência, são suas reminiscências e sua herança.

São sua marca no presente e seu presente para as gerações futuras. São aspectos

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sensíveis da realidade e de interação com o meio, descompromissadas com o lucro e

interessadas na perpetuação de seu fazer, pois representam vida e expressividade.

Singularidade e coletividade. A socialização da experiência deve vir dessa referência.

O teatro é uma dessas manifestações, porque ritualiza funções que a atualidade não

perdeu, mas que não deixa transparecer. Ao sistema, é mais importante lançar a idéia

equivocada da necessidade de um resgate, que nada mais é que uma nova armadilha

para se mercantilizar o tradicional em busca de lucro. Manter vivas as manifestações

populares implica em valorizar aqueles que produzem essa cultura, além de fomentá-

la para que outros mais possam partilhar dessa construção, em vez de serem educados

para apenas consumir.

A recorrência do TUOV às manifestações populares, em seu início, tem a ver

com uma onda de apropriação para comunicação com o popular e, em seguida, torna-

se elemento de construção estética, fazendo parte não só da obra e de seu processo de

criação, mas da defesa de uma cultura do fazer teatral socializado no grupo, em que o

dramaturgo César Vieira prioriza o consenso. Da escultura do Saci-Pererê instalada

na entrada da sede do TUOV, à forma de recepcionar os visitantes com um animado

churrasco, os elementos do popular são reafirmados na escolha do elenco e da

participação ativa dos componentes do grupo na pesquisa e elaboração artística dos

espetáculos. Hoje são muitos os grupos a realizarem obras em que o popular é

buscado como tema, com base em manifestações da cultura tradicional. Muitas vezes,

ainda, é buscado como público. Dificilmente, porém, será valorizado por seu

potencial artístico, ou mesmo respeitado por seu significado.

No início, a itinerância do TUOV é realizada em função de uma estratégia de

oposição necessária no período ditatorial. Nas décadas seguintes, se caracteriza como

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opção. A mudança de foco dos debates sobre os problemas locais para as questões

teatrais sugere ainda o desenvolvimento estético em geral e do grupo. Estes debates

foram ampliados na atualidade devido a projetos de formação de público e cultural.

Cursos e oficinas de teatro são mais acessíveis hoje, assim como equipamentos de

cultura estruturados com programações artísticas.

A proximidade entre o modo de produção do TUOV e das manifestações

populares tradicionais tem a ver com a opção do grupo por preservar o ser humano e

os valores que o caracterizam. Só o humano é capaz de ser solidário e fraterno, e de

tornar-se consciente de sua importância para a conquista do bem comum. Esse tipo de

intervenção na sociedade é mais efetivo e educativo que outras tantas formas de

educação que já estão ultrapassadas e notadamente não dão conta das demandas

sociais em termos da convivência pacífica nas comunidades e entre os povos. Cada

vez mais a competitividade toma o lugar da convivência harmoniosa. Um grupo de

teatro é uma pequena célula social que pode se comportar de forma diferente de seu

organismo mais amplo. Por mais que seja um elemento insuficiente para a

transformação total, é um elemento de resistência, de possibilidade que pode

contaminar o corpo. Um espetáculo é como uma febre, uma reação que sinaliza o

problema. É uma manifestação de um organismo sadio que luta contra a doença. Os

medicamentos alopáticos mascaram a doença e retiram a febre. Parece que tudo está

resolvido. Já a homeopatia busca externalizar as causas da doença, para que estas

sejam atacadas em suas causas. Uma opção trabalhosa, porém efetiva para que a

doença não volte a ocorrer. Situações de conflito são situações de aprendizagem.

Num espetáculo, ao confrontar pontos de vista sem fechar uma questão, é

possível chegar a conclusões inéditas, soluções inusitadas, diferentes e coletivas.

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Simbólicas do ponto de vista objetivo, se tornam novamente subjetivas. Talvez seja a

única fórmula de legitimidade, em que todos se envolvem num determinado problema

e atuam na sua solução. Essa construção se torna bastante significativa para aqueles

que dela participam, reconfortando e animando para que novas soluções sejam

encontradas para velhos problemas. Estas células, multiplicadas e sobrepondo-se às

células doentes que mobilizavam as sadias a manifestarem a febre, revitalizam um

organismo que, após vencer a crise, sente-se fortalecido a enfrentar outras tantas

doenças e, aos poucos, abandona sua fragilidade e o medo.

Os grupos de teatro, articulados internamente e entre si, constituem um órgão

no corpo social com a capacidade de se regenerar a cada dia, pulsando vivamente para

revitalizar o todo. A efetividade da mudança se dá nesse sentido, ao tornar possível

uma rede de discussão e fortalecimento, criando uma lógica diversa da estabelecida.

Mais importante que se tornar vitorioso ao defender um ponto de vista é alcançar

propostas efetivas de transformação social. O teatro deve seu desenvolvimento

consciente a esse período, mas os prejuízos são incalculáveis. A valorização

profissional das áreas ligadas à técnica ou à produtividade foram priorizadas, além

daquelas que são objeto de status. Poucas profissões, porém, exigem em seu processo

de formação o comprometimento social, fundamental em qualquer profissão. Nas

áreas ligadas às ciências humanas, a abordagem filosófica pode influenciar a tomada

de consciência. Compreender a ideologia presente no cotidiano é fundamental para

intervir praticamente. O teatro da militância e os movimentos dos quais o TUOV

participa rompem com o isolamento de agrupamentos sociais, teatrais ou não. Em

torno da arte e da cultura, esse foco de resistência artística e familiar alimenta laços de

convivência e representa a aglutinação a favor de ideais que permanecem vivos,

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graças à clareza de lideranças como César Vieira. Também são fundamentais todos os

participantes do grupo, sobretudo Neriney Moreira, José Maria Giroldo, Eliezer

Martins, Ana Lúcia Silva, Graciela Rodrigues, Oswaldo Ribeiro, Cícero Almeida,

Will Martinez. Maria Alice Silva e Lucas César, que representam a continuidade do

TUOV, e todos os outros que estão hoje no grupo e que por ele passaram,

contribuindo para sua fundação e permanência. Houve a habilidade dos

coordenadores em manter viva a chama do teatro e dos participantes e do público a

receptividade. Porque a função da arte como objeto de reflexão foi cumprida. A arte

do TUOV sensibilizou, desacomodou e com isso transformou a realidade de muitas

pessoas. Num mundo assolado pela ignorância e esvaziamento de sentido real das

vidas da maior parte das pessoas, em que independe sua condição social e seu poder

aquisitivo, as ações alternativas que socializam conhecimento são preciosas.

Coisificadas pela educação acrítica e pelo mercado de trabalho, pessoas esquecem

sonhos e se tornam máquinas. O teatro propõe então, além do acesso ao

conhecimento, a diversão. Divertir-se é uma capacidade humana que traz as noções

de pertencimento ao mundo e de coletividade. Do mesmo modo que só é possível rir

daquilo que se compreende, só se compreende aquilo que se torna acessível ao

intelecto, mediado pelas percepções sensíveis de todo o organismo. Talvez a

revolução somente se dê a partir do momento em que se perceba que não é mais

possível continuar com guerras, com a destruição do planeta e das pessoas. Quando se

der conta que a ganância por poder e dinheiro traz a miséria. A desconfiança do

homem no homem. O desrespeito e o preconceito. A falta de oportunidades iguais aos

diferentes. E a negação das características individuais pela imposição do

individualismo. As contradições escondidas sob o véu das mentiras da história. A

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fuga dos conflitos como meio de sobrevivência.

A necessidade de esclarecimento de capítulos obscuros da história brasileira

faz do TUOV um grupo que contribui decisivamente para a conscientização das

pessoas de sua importância para a construção histórica da sociedade. A poesia

presente em suas obras trata de assuntos polêmicos, tornando-os belos esteticamente e

acessíveis fisicamente. Esta presença física nas periferias é o percurso desejável para

todas as manifestações populares das comunidades. Que sejam valorizadas em seus

contextos pela beleza que guardam em informações daqueles que a produzem. São

simbólicas a respeito de suas vidas e de seu pensamento. Que sejam apropriadas por

seus pares, que invadam as escolas e outros espaços de convivência nos bairros. Que

os praticantes dessas manifestações sejam valorizados por sua cultura e não

idealizados por sua pobreza ou ignorados pela falta de posses materiais.

A esperança depositada nas eleições do Presidente Lula, oriundo das camadas

populares e comprometido anteriormente com a reforma agrária, conformou setores

inesperados e decepcionou militantes mais combativos. Mesmo assim, proporcionou a

permanência de ideais mantidos por aqueles que não se envolveram em vantagens

econômicas e que, mesmo no interior de governos por todo o país, mantém a

preocupação com pressupostos classistas da desigualdade social. Ainda há pessoas

que não fazem concessões, buscando incansavelmente o socialismo.

A inversão de prioridades se dá na comunidade, no interior do grupo e também

nas intervenções sociais em âmbitos governamentais. Por esse motivo, grupos de

teatro se organizam em torno de movimentos que buscam angariar parceiros, verbas e

desenvolvimento de políticas públicas para a arte e a cultura. A utopia é uma

possibilidade concreta porque conta com o desprendimento de pessoas que têm a

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opção de perpetuar a indiferença e se recusam a fazê-lo. Têm a oportunidade de obter

benefícios pessoais e não a aceitam. Podem viver tranquilamente com suas atividades

profissionais, mas rejeitam a estabilidade. Preferem passar seus dias

intranquilamente, buscando trilhar o caminho possível entre o mundo que se vê e

aquele que se vislumbra. Com um passo de cada vez, enxergando longe a

transformação que não presenciarão, mas que, parafraseando o educador português

José Pacheco, ficará para os filhos dos filhos dos nossos filhos... Mas dormem

descansados e com a certeza do dever cumprido... e de que há, também, tudo por

fazer.

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Artigo – In: Jornal Possível,Coluna Et cetera, São Paulo, outubro de 1972,

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Entrevista - César Vieira. In: Jornal Última Hora, de 10 de julho de 1972. Documento

de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.

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de doutoramento apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da USP, 2008

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ANEXO I

Do livro Em busca de um teatro popular. São Paulo: FUNARTE, 2007.

Os 10 itens do trabalho coletivo de dramaturgia do Teatro Popular União e Olho

Vivo:

Até meados de dezembro o TUOV terá escolhido o tema de seu futuro espetáculo. No

início foram apresentados vinte e dois assuntos, que depois de discutidos e analisados

pelo coletivo do grupo, foram reduzidos a apenas cinco, dos quais sairão a estória que

servirá de base ao novo texto. Os temas foram os mais abrangentes, desde biografias

de jogadores de futebol até generais progressistas brasileiros que participaram

ativamente nas lutas pela emancipação da América Latina. O importante é que será

obedecido o preceito principal dos trabalhos anteriores de dramaturgia: o homem

comum, o simples cidadão, será o sujeito e não o objeto da ação teatral. Eleito o

assunto, os membros do grupo seguirão as regras habituais usadas na criação de seus

textos:

1 – Pesquisa de campo e laboratório de todos os aspectos relativos ao assunto.

2 – Análise das Fichas Dramáticas, colhidas pelos elementos envolvidos na pesquisa,

abrangendo possibilidades de conflitos, sugestões de cenas e personagens, bem como

indicações para a estrutura da peça.

3 – Serão realizadas então inúmeras reuniões para estudo e debates das Fichas

Dramáticas, culminando com a construção do Quadro Dramático, que é o grande

roteiro do espetáculo.

4 – O Quadro Dramático, ou seja, o “roteirão”, é passado à Comissão de

Dramaturgia, que, seguindo a orientação do coletivo contida no Quadro Dramático,

redige o primeiro texto.

5 – Este primeiro texto é colocado em discussão pelo coletivo, o qual faz cortes,

acréscimos, sugestões etc.

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6 – Retorna o texto assim modificado à Comissão de Dramaturgia, que dá a

carpintaria necessária ao fluir da fábula em termos teatrais.

7 – Segue-se a montagem também em termos coletivos, tendo coordenadores para

várias áreas: direção, coreografia, música, cenário, figurinos e iluminação.

8 – Terminada a fase da montagem, o espetáculo é apresentado por cinco vezes para

um público convencional de teatro e dez para uma platéia dos bairros da periferia de

São Paulo.

9 – Baseado nas reações e nas opiniões das platéias dessas quinze sessões, o coletivo

chega à encenação mais ou menos definitiva, com a qual seguirá carreira.

10 – O espetáculo, então definido, será mostrado por cinco ou seis anos – conforme o

histórico do TUOV – mantendo-se dinâmico e aceitando sempre as colaborações e

sugestões do público popular.

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Anexo II

Transcrição de entrevista realizada em 29 de abril de 2008, na residência de César

Vieira, em São Paulo.

Simone: Eu tenho 34 anos e minha geração é, digamos assim, alienada. Muitas coisas

da história nós não aprendemos na escola, então tenho muita dificuldade algumas

vezes em entender algo que nunca estudei, e que vejo a necessidade de estudar agora

por interesse. Queria que você falasse um pouco desse trabalho seu com o movimento

estudantil e qual a necessidade do teatro nesse movimento. Como vocês verificam as

mudanças ocorridas desde a sua atuação no movimento estudantil até a atualidade do

TUOV. E por que vocês formaram um grupo de teatro?

César Vieira: Primeiro que vinha de uma experiência de presidente da U.N.E. - União

Nacional dos Estudantes. Não participei diretamente, mas assisti o evoluir dos Centros

Populares de Cultura, no Rio de Janeiro. Isso tudo marcou profundamente o contato

com pessoas como o Chico de Assis, o Vianninha. A U.N.E. não possuia um

departamento de teatro mas passa a ter um departamento de teatro entre aspas, não era

oficializado, mas eram os Centros Populares de Cultura, que atuaram especialmente no

Rio de Janeiro, em Pernambuco e em São Paulo. Foi o primeiro contato que eu tive

com o teatro feito por estudantes e intelectuais na rua, realizado na Central do Brasil,

em Mangueira, em Madureira, Portela. Eram esquetes, sempre procurando uma

conotação política, uma abordagem dos poderes ou uma gozação. Depois disso, me

formei e comecei a advogar. Aconteceu o grande êxito de um teatro universitário

chamado TUCA, com o espetáculo Morte e vida Severina, do João Cabral, dirigido

pelo Silney, com músicas do Chico Buarque, que foi aplaudidíssimo em Nancy. Então,

esse espetáculo foi um grande sucesso e colocou o teatro universitário no mesmo nível

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do teatro profissional, com mais profundidade devido ao seu conteúdo ideológico. E o

que acontece é que, com este grande sucesso, o pessoal do XI de agosto, que de uma

forma ou de outra sempre estava no meio das lideranças universitárias e acadêmicas,

resolve também fazer um grupo de teatro. O teatro da PUC era da Universidade

Católica, mas oriundo da Faculdade de Direito, do Centro Acadêmico 22 de agosto, do

qual eu também havia sido presidente, em 1958. Essa foi uma das ramificações

interessantíssimas que aconteceram. O pessoal do XI de agosto me procurou porque

eles queriam fazer um espetáculo refundando o novo Teatro do XI de agosto. Então,

estava terminando uma peça chamada O Evangelho segundo Zebedeu. Estava

terminando de redigir essa peça que levei para eles, como levei para fazer uma leitura

para o Silney Siqueira, em Pinheiros, onde ele morava. Fomos eu e meu amigo Chico

José. Silney ficou maluco pelo espetáculo. Disse que era um Morte e vida Severina,

mais sangue, mais povo, mais simples e ficou interessado. E como tinha sido

procurado pelo pessoal do XI, indiquei o Silney como diretor renomado que havia

dirigido estudantes. O XI de agosto contratou o Silney para dirigir, trouxe o José de

Anchieta, que estava iniciando a carreira e devia ter uns 19 anos, para fazer o figurino

e o cenário, e o Murilo Alvarenga para fazer a música. Com essa equipe, monta esse

espetáculo. Assessorei um pouco, à distância, mas não da direção direta. Essa primeira

direção do Silney teve um êxito bastante considerável e foi convidado para o mesmo

festival do qual havia participado o Morte e vida Severina. Então fui convidado para

acompanhar a ida a Nancy. O espetáculo ganhou, mas não havia mais premiação. O

Zebedeu (O Evangelho segundo Zebedeu) foi considerado o melhor espetáculo do

festival por voto popular e pela crítica; foi apresentado em Paris e em várias cidades do

interior da França, voltando ao Brasil após esse êxito internacional. Fica mais um ano

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em cartaz aqui, quando começa o contato do pessoal do Zebedeu com o pessoal do

Casarão, que anteriormente havia estreado o Corinthians, meu amor, mas não em uma

carreira sequencial; fazia um espetáculo por mês, ficava dois meses sem fazer

espetáculo. O Casarão pediu o circo emprestado para o Teatro do XI, às segundas,

terças e quintas, para ensaios e para espetáculos; o Corinthians, meu amor começa a

receber convites para apresentações nos bairros. Foi uma peça feita por pessoas

populares do Casarão, num barracão que existe até hoje no comecinho da Brigadeiro

Luiz Antônio. Começaram assim as andanças e nosso objetivo de fazer teatro na

periferia. Esses dois grupos se encontram porque, às vezes, o XI de agosto ia pro circo

na quinta-feira para preparar o espetáculo para a sexta-feira (naquele tempo dava para

fazer sessões de espetáculo na sexta, sábado e domingo, dois espetáculos no sábado e

no domingo. Para você ver como caiu...) O XI pegava o povão. Eram caras que

pegavam um sanduíche e ficavam o dia inteiro lá! Começaram a discutir o Zebedeu e

também sobre os objetivos deles, como é que tinham sido as experiências e tal. Dessas

conversas todas é que nasceu o Teatro Popular União e Olho Vivo. Da soma das duas

experiências e das trocas dessas experiências entre si, uma pelo término da montagem

do Rei Momo, e a outra do Corinthians, meu amor. E discutiu-se uma ou duas tardes

inteirinhas, sobre os nomes, e vários foram apresentados: Teatro do Centro, Teatro da

Periferia...e o mais original e mais funcional, no meu entender, foi apresentado por

uma menina que se chama Tânia Mendes. Hoje é funcionária da Assembléia

Legislativa. Foi secretária particular do Zé Dirceu por vários anos. O marido dela foi

preso como guerrilheiro, ela foi presa como militante, junto comigo. Foi ela quem deu

esse nome do Teatro União e Olho Vivo. Ela ainda aparece na sede do Olho Vivo.

Simone: Ela foi do grupo?

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César Vieira: Foi do grupo, tanto é que estavam seguindo a menina para prender o

marido dela, e por isso eles foram para o bairro. Eles jamais veriam teatro. Eles

estavam seguindo a Tânia para prender o marido dela. Nós fomos para o bairro e eles

foram atrás da gente com um carro normal, não era carro de polícia. Ficaram na igreja

onde nós fazíamos o espetáculo. Ligam para o major: “– Porra, o cara não tá aqui! Mas

eles tão fazendo uma peça aqui que está xingando o governo e o exército”. E a ordem

foi: “ – Prendam eles com discrição”. Nós fomos para o restaurante e quando saímos

eles prenderam a mim e a mais dois. Nós fomos em um restaurante lá em Pinheiros, na

Rua Pinheiros, em 1973. Eles jantaram com a gente, e, quando nós saímos, eles nos

prenderam. Daí eles estabeleceram a ligação com ela. Eles me interrogaram bastante,

inclusive sobre a peça que eu estava escrevendo.

Alexandre Mate: Em que ano você se forma em jornalismo?

César Vieira: Em 1957 em jornalismo e em 1958 em direito.

Simone: Para vocês o que é popular? Esse conceito mudou desde que vocês colocaram

o termo popular no nome do grupo?

César Vieira: Vou divagar um pouquinho. Divagar devagar. No início, quando o

Corinthians, meu amor foi para o bairro, não tínhamos a intenção de levá-lo para a rua,

porque consideramos que o teatro popular pode ser feito tanto do Teatro Municipal,

como na Praça da Sé. Teatro popular não é necessariamente teatro de rua, embora o

teatro de rua normalmente seja popular. Então fizemos um espetáculo com todos os

condimentos do teatrão, do teatro burguês, e usamos todas as artimanhas: marcação,

estudo e análise do personagem, a funcionalidade do espetáculo, que não era de

grandes estudos, embora eu tivesse feito a Escola de Arte Dramática. Fiz um curso de

dramaturgia, vendo um pouco do ator em geral, mas sem visar o teatro popular, por um

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ano. Tive aula com Augusto Boal, Maria José de Carvalho, Alfredo Mesquita; Anatol

Rosenfeld, que dava aula de estética. Foram meus contemporâneos como alunos

Renata Palotini, Isaías Almada. Do Boal, fui aluno e depois advogado dele. Passei a

acompanhar o Corinthians, meu amor do Casarão; acompanhava o XI de agosto e

acompanhava o Casarão. Já no XI, não palpitando na época do Silney, mas depois já

como membro do grupo a partir do final de Zebedeu e início do Rei Momo; eles

querem continuar com outro espetáculo e eu estava escrevendo o Rei Momo. Entro no

grupo como coordenador, e no Corinthians, meu amor a mesma coisa; acompanho, até

que os participantes se unem. Então o Corinthians, meu amor vai para bairro e

acontecem os mesmos percalços que aconteceria com o Rei Momo, embora o

Corinthians, meu amor não tivesse, entre aspas, a grandiosidade do Rei Momo; o Rei

Momo tinha possibilidade até de conseguir algum dinheiro do XI de agosto; o

Corinthians, meu amor já não tinha; então, ele tem mesmo tudo aquilo que um teatro

popular e duro poderia fazer, inclusive com participantes sumamente populares. Havia

lavador de carro, taxista, operário, desempregados de monte. O bairro é um lugar

geralmente menor do que o circo e onde o público ia com camisa do Corinthians, com

bandeira, esperando ver o Rivelino etc. E haviam cenas muito fortes, por exemplo, a

cena do candomblé, em que a menina ficava tomada, a atriz e dois, três caras do

público também. Começou a ser discutido o que estava dando certo, o que não estava.

Não uma coisa premeditada: nós estamos indo para bairro, esse é o teatro para praça e

tal, mas foi na medida do funcionamento das coisas. O João Cândido tem uma versão

para palco com uma hora e quarenta e outra versão para rua que dura quarenta

minutos. Utilizamos jogos de praça. Então, fomos vendo o que ia funcionar no bairro a

partir dos convites para fazer em quadras, praças. Os caras acham ruim quando não

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fazemos espetáculo devido às intempéries, sem público, na chuva. Para o elenco ficar

doente, não vale a pena. Não é o caso quando bolamos o espetáculo para a rua. De

todos esses erros e acertos é que nasce o conceito de teatro popular. Não estamos

discutindo o sentido lato da palavra popular, o que é popular. Não dá remédio popular,

que é uma merda. Seria mais ou menos por aí que discriminam o Olho Vivo. Até por

um excesso de zelo, poderia chegar para as pessoas bem intencionadas e falar: venham

ver, daí podem “meter o pau”. Falem o que quiser, mas venham nos assistir no nosso

habitat. Nesse dia (comentando com Alexandre Mate sobre uma situação específica)

aconteceu o seguinte: foi o dia em que o Will (Martinez) quebrou a perna. No dia da

homenagem para a Heleny Guariba. Não tem justificativa, o espetáculo tem que ficar

de pé. O Movimento de Teatro de Rua que está cada vez mais organizado no país,

escolheu o Olho Vivo como paradigma deles. O nosso teatro, que 70% das vezes é

feito em local fechado, passou também a ter todos os macetes da rua. Se você assistir

ao Barbosinha hoje, é um espetáculo de rua. Dificilmente as condições do Barbosinha

vão se repetir num outro espetáculo. Dificilmente o público passante vai ficar passante.

Ele pára. Se ele não tiver um compromisso, ele fica. O cara quer saber a sequência,

então, ele não vai embora. Você está jogando com 50 cenas que tem começo meio e

fim e se intercalam e com todos os macetes. Com a música, a fala e a ação coletivas. A

ação se passando no meio do público, onde o público não entra falando, mas entra

participando porque o ator está suando do lado dele. Em Angra dos Reis, entrou um

bêbado no espetáculo. O Gil, iluminador, tentou tirar o cara e não conseguiu. Na cena

em que o juiz é xingado de filho-da-puta, o cara saiu. Nunca mais isso vai se repetir

isso. Para nós o teatro de rua é 90% popular, mas esse espetáculo pode ser feito em

local fechado, porque o grupo é o senhor do espaço. Mesmo sendo em local fechado, o

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espetáculo pode ser popular. Vamos fazer agora espetáculos em Belo Horizonte e

Porto Alegre, para o nosso público que não precisa ser paulista, paulistano; e ganhando

para isso, inclusive para a continuidade do trabalho. Chegamos no festival, nos

colocam num canto onde não tem nada, nós escolhemos o melhor local, somos os

senhores do local: encontramos a melhor acústica, colocamos a iluminação etc. Para

Minas, eu pedi lonas para o público sentar. Quero colocar para a comunidade porque

eles vão ficar uma hora ali. Colocando pessoas sentadas, melhora a visibilidade das

fileiras que estão atrás. Voltando à sua pergunta, quer dizer, resolvemos optar pelo

popular devido a ida aos bairros e de como tornar eficaz esse espetáculo, na praça, na

rua, na igreja, na quadra de basquete, numa sala de aula (muitos espetáculos foram em

salas de aula), no salão central de colégios. Fazíamos um lanche grande e tal, e

aprendemos a necessidade prática de tornar um espetáculo factível e funcional nesses

lugares, usando todas as coisas populares, coisas já usadas, provavelmente, outras

inventadas pela gente. A partir do Rei Momo, esta passa a ser a grande discussão: nós

vamos fazer teatro na periferia. Nós vamos fazer teatro na rua. Dificilmente nós

dizemos que o Olho Vivo é teatro de rua. Temos duas opções marcadas, teatro fechado

e na rua. No festival de Porto Alegre, nós vamos fazer na rua. Sepé Tiarajú vai abrir o

festival de lá. Lendo o texto, você vai encontrar pouca coisa, a não ser as linhas

mestras do outro espetáculo. Totalmente poético, dificílimo. Nós vamos fazer vários

textos. Vamos colocar uma mulher que tem uma voz altíssima e um outro cara que tem

uma voz altíssima. É duro você segurar na música. Então nós colocamos um coral,

quase um show. No show, se coloca o Gilberto Gil na rua, vai funcionar. Daí, desses

dois espetáculos, sai nossa opção pelo bairro e pelo popular. Nós discutimos: nós

estamos fazendo popular, mas o grupo vai chamar popular? Sim, não, por que não? Aí

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nós temos uma definição mais ou menos fechada do que seria o teatro popular: um

teatro feito por integrantes populares; dirigido para um público popular, se possível

feito gratuitamente; com um conteúdo popular; e com uma estética popular. O Olho

Vivo preenche desses cinco ítens, quatro e metade do outro, porque ainda tem seis

participantes que eu chamaria de classe média. O resto todo e os novos integrantes são

povo; os que eram classe média foram caindo. Agora tem acompanhantes, tem dois

caras mulatos e uma menina que estão acompanhando o grupo agora, que são povo. E

é duro acompanhar, porque a gente não tem tempo nem de conversar com eles. Dá

comida, dá lanche, passa a mão na cabeça: “- Desculpe, mas vocês vão ter que ficar

aí.”Os caras tão segurando, e, se estão segurando, vão ficar. Um é gerente do

Bradesco, outra menina é atendente de enfermagem, e a outra atendente de escritório.

Um rapaz, a irmã e a namorada. Então possivelmente vingue o núcleo. O grupo tem

muito isso, de casais e tal. A Silvana Garcia fala disso. O trabalho tem muito a ver com

núcleo, mas é muito relativo. A Graciela Rodrigues não é mãe do Lucas César, mas

formamos um núcleo de três pessoas. O Will Martinez e a mulher dele, a Cátia Fantin

formam outro. Esses pequenos núcleos familiares permitem que não se tenha a pressão

externa. O cara vai acompanhar a namorada ou o namorado que acompanha a

namorada e fica esperando. No começo pode achar bonito, depois enche o saco.

Alexandre Mate: Encontrei alguns nomes, mas tem mais: César Vieira, Igor Palik, Id

Almeida, Idibal Pivetta.

César Vieira: Idibal João Pivetta. Quando meu pai foi me batizar, Idibal Matto Pivetta

não era católico, então na hora meu pai pôs Idibal João Pivetta.

Alexandre Mate: Como autor?

César Vieira: Não. Como autor tem Idibal Almeida Pivetta. Os amores de Napoleão.

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Alexandre Mate: Tem também como Idibal Pivetta?

César Vieira: Tem o Mar de Lama. Tem muitos artigos de jornal.

Simone: Como é que vocês percebem a atuação dos grupos de teatro em São Paulo?

Com relação aos grupos e aos críticos, como vocês percebem o reconhecimento da

importância da militância e do trabalho estético do grupo?

Alexandre Mate: O TUOV se caracteriza em paradigma estético para a totalidade dos

grupos e também numa alternativa de militância, exatamente por seu caráter

mambembe. Como os grupos atualmente vêem a importância do TUOV? O TUOV,

sem sombra de dúvida, é um paradigma. É um modelo tanto do ponto de vista temático

(escolha dos temas), como do ponto de vista do modo de produção. Se bem que não há

nenhum outro grupo com um modo de produção semelhante ao do TUOV.

César: E que chega a ter dinheiro em caixa. Temos cento e cinquenta mil reais em

caixa. Isso é um milagre. Aplicados, capitalisticamente falando. Porque a gente não

paga o ator. Tem ajuda de custo proporcional ao que vai fazer. Se é no bairro e o grupo

não ganha nada, ninguém ganha nada. Se vamos para Angra dos Reis e o grupo tem

que alugar um ônibus e pagar almoço...Descontando as despesas e 30%, 40% do

grupo, se tem um cachê, nós dividimos com o grupo.

Alexandre Mate: Voltando à questão. Como os grupos vêem a importância do

TUOV? Primeiro, que é um paradigma e esse paradigma se caracteriza pela escolha

dos temas, pelo modo de produção, que é um trabalho que não é colaborativo, como

ele disse, é um trabalho coletivo. A generosidade de César é grande a ponto dele,

sendo já um autor consagrado, já reconhecido e premiado, abrir mão de escrever

textos sozinho para partilhar isso com o grupo. Isso é mais que generosidade. É ter

uma baita coerência e não só discurso. Isso precisa ser dito a todo momento.

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César: Rarissimamanete cobrei direitos autorais.

Simone: Queria saber também a opinião de vocês sobre a atuação dos grupos.

César: Por incrível que pareça, na época da ditadura, existiram grupos com mais

tempo de vida, mais solidificados e mais atuantes que no período pós-ditadura, até

quatro, cinco anos atrás. Da queda da ditadura, entre aspas, 1988 com a Constituinte,

com Figueiredo, bem ou mal, abrindo mesmo. Até ali, existiam grupos que faziam

trabalhos artisticamente bem feitos, esteticamente bem feitos e com conteúdo, e com

uma mensagem, embora não goste dessa palavra, interessante e no caminho do

popular. Quando houve a abertura, então houve aquela explosão que, talvez, não fosse

tão clara como na França, como na Alemanha, por exemplo, da juventude no meio

cultural. Explodiram dezenas de espetáculos, especialmente falando sobre sexo e

diversas coisas que tinham sido sufocadas. Na medida que a repressão sufocou as

manifestações políticas, sufocou qualquer tipo de manifestação de liberdade, inclusive

sexual. O massacre ao que é subversivo e o que é sexual. Eles combatiam justamente

essas duas coisas. Eram palavras chaves: o imoral e o subversivo. Naquela época,

haviam vários grupos: Núcleo Expressão, Truques e Traquejos, Galo de Briga. Com a

abertura, isso se dilui, acabando o inimigo comum que era a ditadura e partindo para

uma explosão até necessária. Uma gama de assuntos, de temas e formas, que não

estavam centrados num caminho, embora cada um tivesse seu caminho e todos são

absolutamente válidos. Nos primórdios da primeira dentição do Arte Contra a

Barbárie, eu acho que, embora já existissem alguns grupos com esse início, com essa

gravidez em busca de alguma coisa com continuidade, do esteticamente bem feito,

falando do popular e desejando falar para o popular, desejando que seu grupo, se não

era, se transformasse pelo menos em parte, em popular. Situando em tempo, seria,

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talvez, dois anos antes do Arte Contra a Barbárie, como um marco em que se abrem e

que se solidificam, pelo menos, uns vinte grupos; poderíamos citar alguns que estão

andando pelos bairros, estes que estão participando do Fomento. Isso permite um

florescer e um reflorescer de idéias, com conteúdo, com objetividade, colocando a

fama e o lucro numa posição terciária, objetivando espetáculos e transformações no

palco bastante claros. Considero muito importante o que acontece hoje com esses

grupos atuantes, populares ou não. Não vou citar todos, acho que são mais ou menos

vinte, o trabalho do Luís Alberto de Abreu, dos Parlapatões, cada um com suas

nuances. Cada um com divergências entre si e uma convergência de ideal e de busca

de nova estética ou de manutenção de estéticas que estavam sendo exterminadas. O

fato de querer que se renove tudo no palco é uma tendência, mas querer manter

também o tradicional que existiu é outra tendência tão respeitável quanto a primeira.

Senão nós jogaríamos toda a a arte popular no lixo. O importante é conservar e talvez

modificar. Não diria que nós somos paradigma. Estamos colaborando, a pedido, com

uns quinze grupos, considerando também o VAI. Em termos de reconhecimento, há

muitos convites para lançamento do livro do TUOV: Angra dos Reis, Ilhéus, Salvador,

Belo Horizonte, Porto Alegre, Santo André, Rio de Janeiro, Lisboa. Apesar do pouco

noticiário da imprensa burguesa. Nós ganhamos um Prêmio Ollantay, que é o prêmio

mais importante da América Latina, cinco ou seis entidades daqui ganharam. Todas

essas saíram no noticiário e nós não saímos. E esse é um prêmio burguês, entre aspas.

O nosso relacionamento é muito bom, e, inclusive, colocamos a sede à disposição. Até

partidos políticos novos que estão surgindo, jovens, fazem reunião lá na sede. Com

relação aos grupos acho que o intercâmbio é o melhor possível, considerando a troca e

a amizade.

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Simone: A ditadura funcionou como uma espécie de fermento para os artistas da

época?

César Vieira: Não diria que foi fermento, mas o cara, na medida que era ofendido,

que era castrado, era proibido, reagia com as suas armas. Se era um autor de teatro,

com o teatro; é uma reação, falar do opressor; acho que a grande castração que houve

foi no teatro, mais do que na música e do que na literatura. Teatro era mais fácil para o

bossal de direita ver, que ele não leria um livro de trezentas páginas. Teria que

contratar, pelo menos, alguns caras que entendessem de literatura. Pode ver que a

literatura flui muito. Quantos livros foram proibidos? Poucos. Jornais foram proibidos.

O teatro, acho que é a arte sempre mais perseguida por um regime autoritário, desde os

gregos.

Simone: E agora, César, neste momento. Para os grupos em São Paulo, por exemplo,

quais são as grandes causas? O que mobiliza esses grupos em termos de causas

populares?

César: O que eu sinto das conversas com os mais variados grupos é uma ânsia, uma

angústia, uma necessidade de falar para o povo do bairro, para o popular. Existem

muitos e realizando isso muito bem, dentro das possibilidades de dinheiro,

econômicas, de morar no bairro. Eu cito o Pombas Urbanas, por exemplo, como uns

caras que tinham uma opção estética e agora partiram para uma opção de vida. Sem

discutir o mérito de que eles até não estejam fazendo espetáculos tão bons como eles

faziam e que eles não estejam fazendo tantos espetáculos porque o social absorveu

praticamente tudo. Nós estivemos lá agora, há quinze dias, e quem viu no início e vê

agora, eles tem 50, 100, 200 alunos de computação, desenho, teatro e tudo lá,

funcionando. Eles largaram seus locais de residência no centro da cidade ou dos

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bairros de classe média e foram morar lá. É uma opção que acho muito corajosa, não é

a ideal. Não é que obrigatoriamente tenha de ser assim, mas uma das experiências mais

importantes que acontecem é essa do Pombas Urbanas, um trabalho seríssimo. Cito

também o movimento de teatro de rua em São Paulo e em todo Brasil. Estive no

encontro em Salvador, agora estou indo para Ilhéus. Ver ressurgir isso, talvez com

caminhos até questionáveis em termos estéticos, mas não em funcionalidade. Vejo

todos esses grupos, a não ser os mais iniciantes, com uma estética muito razoável na

prática do funcionamento, que é totalmente diferente da estética de um teatrão. É claro

que os conteúdos podem deixar, ou não, a desejar, mas o caminho está aberto. Há

cinco anos, você listaria 20 grupos de teatro de rua e agora, só em São Paulo, existem

50. E também têm se reunindo na sede do Olho Vivo. Considero muito saudável o que

está acontecendo. E há os outros grupos com temas que eu não recomendaria para o

bairro, mas penso que a escolha é deles e têm a sua validade. Não estamos dentro dos

processos para saber os porquês. De como isso está sendo realizado e de que forma.

Então, acho importante o eclodir da coisa. Há seis anos, quantos grupos existiam? A

Cooperativa Paulista de Teatro tem 500 grupos. Destes, 100, 150 grupos dirigidos a

esse objetivo. Com possibilidades diversas, mas acontecendo. Vão sobreviver, talvez,

20. Isso não importa. Teatro é o momento. Não é o texto na gaveta. Aquilo que

aconteceu conosco em Angra dos Reis, não sei se vai se repetir. Você encontra uma

cidadezinha que vive em função da Petrobrás, fazendo seu 13º Festival de Teatro de

Rua, e o público que frequenta já esperando o próximo espetáculo. Vendo o espetáculo

das cinco, esperando o espetáculo das oito e o espetáculo das dez. Aquelas donas de

casa, com as crianças, sentadas, levando as cadeiras às vezes. Pedi a lona para eles,

para as pessoas sentarem. E eles tem cadeiras. Nunca tinha visto um lugar que tivesse

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as cadeiras. Quarenta e cinco minutos de espetáculo, em pé, cansa. Tem as crianças, os

idosos e há que se preocupar com a comodidade. Há que se pensar também no público,

porque ele é o objeto da nossa ação.

Alexandre Mate: São muitos os grupos contemplados no Fomento, que não se

preocupam com a comodidade do espectador. O espetáculo acaba após a meia-noite e

não há ônibus, então não é popular. A atitude não se coaduna com o discurso. Existe a

questão da coerência a partir da qual um grupo instaura seu trabalho e desenvolve as

suas relações.

César: A nossa prática não é purista. As pessoas perguntam: Como é que vocês estão

colocando dez microfones de lapela? Nós temos quinze atores e se tiver como colocar

quinze, nós colocamos. Sem o microfone, você atinge 200 pessoas e, com o microfone,

atinge 1000. Temos um ator que tem uma voz descomunal que é o Will e não precisa

de microfone. Temos outra menina que tem uma vozinha e é tão boa atriz quanto ele,

tão popular quanto ele. Chegamos num festival, e se está marcado para as cinco horas,

vai estar escuro; então, nós usamos o refletor. Como é que vamos fazer o espetáculo no

escuro? (...)Se estivesse defendendo a tradicionalidade da arte popular, daí seria outra

coisa. Não é a nossa proposta, embora resvale para isso.

Simone: Considerando os 42 anos de resistência do TUOV, o que mudou na sociedade

em termos políticos, da ditadura até hoje?

César Vieira: Algumas coisas importantes não mudaram para o Olho Vivo e não

mudaram para o resto da humanidade. Os bem intencionados, sempre se nortearam, se

norteiam e vão se nortear pela busca do bem comum e de um ideal. Escolhem um ideal

e procuram realizá-lo. Essa busca, acrescida de todas as transformações sociais que

acontecem, o advento da informática, tudo isso é acoplado, dinamizado no trabalho do

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Olho Vivo e incorporado ao seu trabalho. Permanece a busca e a concretização de um

ideal permanente, que é o bem comum. E isso nós guardamos como uma chama e

pretendemos que continue sempre sendo aplicada através dos nossos espetáculos, da

nossa dinâmica, que nunca é estática, sempre é modificada de acordo com a época,

mantendo uma linguagem estética popular.

Simone: Nessa perspectiva da preocupação de vocês com a transformação social, com

essa questão do bem comum, qual é o significado da atuação de vocês? E os resultados

da atuação do grupo com a transformação social? O que vocês efetivamente acreditam

conseguir transformar com o teatro que vocês fazem?

César: É uma avaliação muito genérica, que se torna muito difícil de ser feita.

Embora tenhamos até elementos para isso, graças à preservação da nossa memória

feita através de gravações de voz, de video, publicações, de debates, de discussões

sobre novos temas, tudo isso mantém a dinâmica do grupo e a forma como ele deve

funcionar; e sempre, como eu já disse, se transformando de acordo com a realidade;

nós estamos interessados em contar uma história e que essa história sirva como opção

de discussão. Nós vamos contá-la da forma que ela seja mais eficaz e mais prática para

o público popular e isso é muito mutável. Nossos primeiros espetáculos têm sempre a

música e a ação coletiva e isso foi mantido até hoje, além de todos os acréscimos que

podem vir da modernização. Nós podemos usá-los, desde que sejam úteis ao nosso

trabalho e ao que nós queremos passar para o nosso público. Se é eficaz, se está

funcionando... Não que “em time que está ganhando não se mexa”. Se mexe e se

procura aperfeiçoar. As nossas reuniões são uma continuidade desse trabalho. Tem o

espetáculo e tem que refletir sobre o que acontece no grupo. Quando você discute

horas e horas uma postura coletiva, grupal e de ideal, você resvala em discutir até o

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cachorro que está fugindo à noite, porque a pessoa que saiu não fechou o portão e ele

pode ser atropelado. Isso faz parte do jogo. Então, coisas importantes são discutidas

pelo coletivo e coisas não importantes não necessariamente serão. Mas o assunto de

uma viagem para Ilhéus foi discutido da mesma forma que a necessidade de um canil

porque os cachorros são membros vivos etc. Isso faz parte do dia-a-dia, é o feijão com

arroz. Como é que você vai para Angra dos Reis, se você tem que ter um ônibus aqui, a

tal hora, e um ônibus para trazer você de volta? Tudo isso é uma coisa pequena, mas

que na comunidade é determinante. Como num hospital, a lavagem da roupa para

evitar contaminação. Faz parte do jogo e o jogo é um coletivo. O coletivo hoje tem 25

pessoas, contando com os acompanhantes. Não gostávamos de ver fotografia coletiva,

porque tem pouca gente. Mas agora nós fomos olhar uma foto de 10 anos atrás, tem

80% do grupo lá. E, às vezes, não houve isso, outras vezes houve, mas sempre teve um

núcleo central que até mudou, mas que fica 10, 15, 20 anos lá. Tem uns mais velhos

que os outros. A faixa etária dominante agora é dos 23 anos. É molecada mesmo!

Simone: Desde a formação do grupo, vem aumentando a presença de participantes da

classe popular no grupo. Como você avalia os níveis de politização dos integrantes do

grupo?

César Vieira: Não temos um “bafômetro” para marcar a pessoa, mas acreditamos que,

na prática das discussões, na prática do exercício, do ensaio do teatro, nas reuniões, nas

apresentações, no contato com o bairro, a pessoa vai crescendo. Logicamente, se você

puser um cara para falar hoje, vai ter desníveis de oradotória, desníveis de cultura.

Mas, com relação a explicar o que é objetivo, o que o cara está fazendo ali, como é que

ele sente, não há diferença. Daria um exemplo como o Cícero, que quando chegou no

Olho Vivo, praticamente não tinha noção de nada e hoje é assessor de um deputado,

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discute em qualquer lugar, fazendo algumas colocações populares que têm mais

validade do que se estivesse falando o César Vieira, a Graciela Rodrigues, ou o próprio

Zémaria, que é o maestro. Daquele, você esperava aquilo, do outro, você espanta. Lá

em Angra, fiz uma apresentação geral do grupo, para contar a história do grupo. Falei:

“– Bom, agora o César Vieira já falou. Fala outra pessoa do grupo.” Foi outro e

respondeu três, quatro perguntas; foi outro, respondeu também. Cada um no seu

jargão, na sua colocação própria, mas sabendo o que vai falar. O cara está sendo

politizado; no sentido intelectual, não analiso. Analiso o cara lá dentro. A Monique

tem uma diferença imensa do Lucas, por exemplo, mas na hora de explicar uma coisa,

explica com sua linguagem uma coisa comum que discutimos. O livro tem tudo,

praticamente todas essas respostas, mais as que tão surgindo. O espetáculo eficaz

nosso, hoje, tem muito pouco a ver com o espetáculo eficaz d'O Evangelho segundo

Zebedeu, porque ele tem o ator popular e no O Evangelho segundo Zebedeu havia o

ator burguês. Já é uma grande diferença. Qual é a grande transformação? A

transformação é que nós estamos colocando o povo no palco. Como personagem e

como intérprete. O Arena coloca o povo como personagem no palco. Não é o nosso

objetivo, mas está acontecendo. Nós estamos colocando o povo como personagem e

como intérprete. Isso rarissimamente acontece. Você vai num grupo de teatro

profissional, você vai encontrar um cara como o Francisco Cuoco, que o pai era

vendedor de salame, então ele era uma pessoa popular. Agora, não existe a

necessidade. É que aconteceu. Não é que se entrar um burguesinho e um cara popular,

nós vamos privilegiar o cara popular. Não é um racismo às avessas. De jeito nenhum.

Mas sentir o cara crescendo. O Oswaldo, por exemplo, muito bom. A Cátia chega lá

com um livro de teatro que eu nunca vi: Teatro e ambiente. Então fui ver. Tem o

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Brecht e mais vinte articulistas. Nunca havia visto. Ela leu para mim a biografia e tal.

Isso de forma espontânea. Nasce da necessidade do cara se posicionar. E isso é bem

cobrado. Nós estamos com essa peça e foram distribuídos livros sobre o Sepé Tiarajú.

Não tive tempo de cobrar. No sábado, o cara fala: “– E os livros? Não vamos mais

estudar os livros?” Então digo: “– Vamos pegar essa semana”. Porque é difícil para

eles. Cinco estudam à noite. Vamos começar, no mês que vem, uma noite por semana.

O fato de trabalhar todo sábado e domingo, tem que fazer render. A meta hoje é

terminar essa cena. Sábado, foi das três às onze, numa cena que deu quatro minutos e

meio. Conseguimos marcar, mas é muito trabalhoso. Todo mundo tem o mesmo nível

com relação ao objetivo, ao ideal e à dinâmica de conseguir esse objetivo. O grupo é

um instrumento dessa dinâmica. Como é que ele funciona? Isso é muito mutável. Essa

comissão é muito dinâmica. Antes era muita formalidade. O Mate cometia um erro, os

três caras iam falar com ele, transmitiam a resposta ao grupo, voltavam. Agora os caras

chegam e falam: “ - Você fez tal coisa.” Já resolveu. Agora, se o cara diz: “- Não tô

errado.” Bom, tem quinze caras que acham que você está errado. Ele vai explicar no

coletivo. Em vinte colocações, vem uma para o coletivo.

Simone: Registros do grupo dão conta de que vocês sempre tiveram ao lado de

causas do bairro, muitas vezes dos movimentos para conquistar alguma benfeitoria no

bairro. O debate é um termômetro para vocês saberem se o espetáculo é eficaz?

César Vieira: Na época da ditadura, o debate começava na primeira palavra

esquecendo a peça e discutindo a situação. Diretamente. O pessoal não tinha medo,

como se talvez não estivessem sentindo diretamente. Porque a repressão inclusive

ficava mais em cima da classe média, do que dos populares, jornalistas, intelectuais,

lideranças sindicais; do que propriamente da população, camponeses e tal. Então,

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naquela época, era direto. Falar contra a ditadura, falar em liberdade, na medida das

possibilidades e da falta de medo daquele público. Não tínhamos tanto receio de

sermos presos por falar isso. Muito mais numa reunião de intelectuais, estudantil, que

você tinha esse medo; num aniversário, num casamento; do que numa reunião no

clube de futebol do bairro. Chamar o governo de filho-da-puta, seria inadmissível

para um intelectual. Numa reunião dessas, eles não iriam prender. O cara diria: “–

Que mal tem um filho-da-puta?” Dificilmente se soube de um processo assim. Mas

soube quando foi dito muito menos do que isso num jornal, e o jornalista foi

processado. E eles estavam presentes, porque tinham olheiros em todo lugar. Então, o

debate era outro. Hoje, se centra muito no espetáculo e, por incrível que pareça, na

dinâmica do Olho Vivo. “ – Esse cara aí trabalha de pedreiro, de mecânico?” para dar

um exemplo. “ – Ele é mecânico de automóvel? Como é que consegue grana?” Muita

pergunta assim. Muitas perguntas sobre o Olho Vivo. Como é que funciona, como

sobrevive, como que se entra no grupo. O cara que mora em Guarulhos está

interessado em entrar no grupo. “– Como é que eu posso entrar?” É diferente,

engraçado. As coisas eram mais ideológicas naquela época. Hoje, diria que interessa

mais saber como é que se faz uma revolta (no caso do espetáculo João Cândido do

Brasil: a revolta da Chibata), e como um grupo de teatro sobrevive. “ – Se não tem

dinheiro, como é que vocês vivem?” Nós estávamos fazendo o Bumba, meu queixada,

num sindicato do Lula, no sábado e no domingo; eles foram presos na quinta-feira.

Naquela época, nós conseguimos fazer uma peça como o Bumba (Bumba, meu

queixada), com algumas coisas escondidas, porque era terrível, meter o cacete na

repressão. Tanto é que o Lula nos levou para lá. Não era o Lula. Não era aquilo, mas

funcionava. Hoje o debate é outro tipo de coisa. O pessoal interessado em fazer teatro.

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Acho que o grupo, dentro da sua proposta, dentro das possibilidades, consegue fazer

que esse ideal permanente, através das transformações estéticas que sofre, das

mudanças de praticidade, consegue atingir seu objetivo. Está fazendo um espetáculo

que colabora para a transformação social. Esteticamente bem feito, com conteúdo

colaborativo. Temos muito cuidado em falar esteticamente bem feito. Vai ver que tem

gente que não gosta. Reconhecemos que há alguns desníveis de ator, cada dia menos.

Mas faz parte do jogo. Às vezes, estréia um espetáculo com cenas que absolutamente

não colocaria, mas aquilo é representação do coletivo. Na estréia de um espetáculo,

vou encontrar cenas que absolutamente não concordaria que estivessem lá, como

autor, como dramaturgo. Mas faz parte da criação coletiva que ela esteja lá, porque

representa um ponto de vista de alguém, que foi adotado pela maioria, tendo votos

contrários ou não. Passo a esposar aquela idéia, e tentar transformá-la, na hora que

estou diretor, como uma coisa esteticamente factível. Adoto aquilo e jamais vou dizer

que não estou de acordo com essa cena. Seria fugir às normas do coletivo.

Simone: A cultura popular é um elemento bastante significativo para a estruturação

das obras do TUOV, como forma que veicula assuntos de natureza histórica e social.

Como vocês consideram a importância dessas manifestações na construção do

trabalho de vocês?

César: Vou fazer um preâmbulo, que envolve até o texto do Alexandre Mate.

Aprendi na escola de jornalismo, na aula de crítica, que um cara para analisar, falando

especificamente do teatro, não de um livro, de um filme, de um quadro. Para analisar

um espetáculo teatral, tem que ter lido o texto e tem que ter um mínimo de noções de

teatro. Para saber o que é marcação, onde a marcação confronta com o texto, onde

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segue e onde esquece o texto. Então, a primeira obrigação de um crítico, seria ler esse

texto, antes de analisar. A segunda, é considerar todas as nuances que formam um

espetáculo. Desde a expressão corporal, a marcação, a dicção, a iluminação e o som.

Tem que considerar tudo isso, para depois dar a palavra final. Coisa que,

infelizmente, eu acho que, se acontece no Brasil, é um caso, em mil. Porque eu nunca

soube de alguém que leu um texto meu, embora depois tivesse falado maravilhas

sobre aquele texto, quando o texto, montado, tinha pouca coisa minha. Então, eu faço

esse preâmbulo, para dizer que é a minha visão do que é necessário para se fazer uma

análise. Há uma certa responsabilidade. O jornalista tem o jornal, seus leitores, para

ter lido isso, analisado aquilo, vendo onde está a criação, até para respeitar o diretor.

O diretor pode até ter mexido em tudo. Tive brigas homéricas com vários diretores.

Hoje, nem tanto, hoje eu sou mais calminho. Mas teve época que eu falava: “ – O que

é isso? Está mudando a minha peça? Esse soldado marchando aí, pô!” Na frente do

elenco todo. Algumas vezes estava até certo, nas outras totalmente errado. Proibi

peças. Tem cidade aí, não vô nem citar...Eu falei: “ – Ou você recoloca a cena ou pára

a peça.” O cara recolocou. Outro não...Teve cara que tirou o circo do Zebedeu. Você

tira o circo, a peça fica de pé. Ficou uma peça católica. Então, eu não vou aceitar isso.

O Evangelho segundo Zebedeu traz o circo e traz o cordel. A poesia está presente em

todas. Como apoio para o ator, como busca de uma beleza poética, para traduzir

aquilo que queremos dizer. A poesia a serviço de uma idéia. A estética a serviço da

ética, como colocamos. O Zebedeu vem com o cordel e com o circo. Não

abandonando o futebol. Tem uma cena de futebol no Zebedeu, que é aquela ação do

Moreira César. O exército do Moreira César e tal. Aí não é o Olho Vivo, nem trabalho

coletivo. Vem o Rei Momo, que começa-se a pensar; mas quando estou escrevendo,

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especialmente, estou pesquisando, é individual. Vou pro Rio, vou morar em

Madureira uma semana, fico com todos os caras. Quando volto de lá, estou falando o

linguajar deles. Com os mesmos erros. Fiquei uma semana lá, virei carioca. Como

jogador de futebol, quando vai jogar na Europa, volta depois de dois meses, não fala

mais português. Então, a peça Rei Momo adota um baile de gala do Teatro Municipal,

que naquela época era o grande acontecimento do carnaval; e havia eleições de Rei

Momo. Então, fazemos a eleição com uma analogia da situação política do Brasil. E

passou. Foi cortada alguma coisa. Essa peça considero a mais violenta anti-ditadura.

E passa. Colocamos um cara tomando o poder, jogando, rasgando o voto. E pondo a

coroa na cabeça, o leão de chácara. O Napoleão já foi até ultrapassado pelo

ditadorzinho do filme americano, que é o leão de chácara. Ele se elege o Rei Momo.

Tem esse baile de gala, mantendo a linguagem de cordel. Daí, seguimos para o

Bumba, meu queixada. O Corinthians, meu amor, já é diferente. É uma novela, um

guião, um roteiro de cinema, que é transformado em peça, dirigida para aquele grupo

do Casarão e também já um outro texto do Corinthians, mas diferente, que é dirigido

pelo pessoal do Mandaqui, do TEMA (Teatro do Mandaqui). É uma outra visão do

Corinthians (Corinthians, meu amor), outra direção. Não dirigi o Corinthians do

Casarão, nem o do Mandaqui. O Marco Antônio dirigiu o do Mandaqui. São

concomitantes. As peças são dirigidas ao mesmo tempo. O Corinthians não é ainda

coletivo. Passa a ser coletivo quando optamos pelo bairro e pela greve. A partir de um

tema. Qual o tema? Vinte temas. Vamos fazer uma greve...Na época em que as greves

estavam começando. Havia a grande greve de Osasco, a grande greve de Contagem,

de Minas. E tinha acontecido a greve de Perus, aqui. E estavam começando, na época,

as greves do Lula. Então, nós escolhemos esse tema, e o que chamamos de a estrutura

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do espetáculo. O espetáculo vai ser contado como se fosse um bumba-meu-boi.

Então, usamos todos os artifícios, o jogo, a poesia, a sacanagem, especialmente a

sacanagem, do bumba-meu-boi; contando a história de greve. Você pode pintar todo

o bumba-meu-boi e contar a história da greve. Com o mesmo texto, a história da

greve fica de pé. Mas ela não tem aquele sabor de ser o bumba. Quer dizer, ela tem

uma cena totalmente falada, na qual entrava o Jarbas Passarinho, que foi proibida.

Para nós foi um bem, porque hoje eu não gosto da cena, acho terrivelmente chata. Era

só falada, numa peça totalmente musical. Com essa peça começa o trabalho coletivo.

Vão participantes do grupo para Belo Horizonte, para ficar cinco dias; cada um dava

cinquenta paus. Fizemos amizades lá, com os caras do sindicato; ficavam na casa

deles, para pesquisar a greve de Contagem, que era uma greve importante. Começam

a pesquisar tudo sobre a greve de Perus, que tinha sido uma greve importantíssima,

ganha na Justiça do Trabalho. Então, fomos pesquisar o advogado, o que funcionou.

Caras que fizeram a greve; o João Breno, que está vivo até hoje. Todo esse tipo de

coisa foi pesquisado. Passa a ser trabalho coletivo. Procuramos sempre, mesmo que

depois não siga tanto, ter uma estrutura de arte popular brasileira. Trabalhamos com o

bumba-meu-boi, com o circo, com o samba, com a escola de samba, com o samba

enredo. No Us Juãos e os Magalis ela fica mais patente, com a nau catarineta, a

marujada. Foi muito estudada, com Eneyda Alvarenga. Não apenas eu, mas todo o

grupo. O que, para o ator, é um desperdício em termos de criação, mas é uma

facilidade em termos de receber munição. Entendeu o que eu quis dizer? Então,

escrevo a peça. Vai ter isso, isso e isso. Então levo, escrevo, e depois discuto;

atualmente com o Will e o Lucas. Aí, vai ser estudada a revista musical. O Rei Momo

é, praticamente, uma revista musical, no que diz respeito à estrutura. O João Cândido

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(João Cândido do Brasil: a revolta da Chibata) é uma salada. É misto de circo, de

tudo que você possa pensar.(...) Esse aprendizado da praça, quer dizer, o ator que

nasce na rua, que é um ator genuíno de rua, não adquire aquilo numa escola de arte

dramática, mas na conversa que ele quer mostrar pro público. Como o camelô. O

camelô quer vender a sua quinquilharia; ele põe no chão! Um baralho, uma lanterna,

para vender; e fica falando sobre aquela lanterna. Às vezes, ele põe uma cobra, a

cobra fica se mexendo e ele fica falando sobre a cobra. Transmite aquilo que vai

propiciar a sua subsistência. Então, ele transmite aquilo com toda a beleza que ele

pode, como ímã para atrair o público. Aquele público que vai comprar. É o verdadeiro

ator. Tem um cara no Peru que se chama Jorge Alcunha Parede, que foi um cara, que

foi, por exemplo, um Fagundes (Antônio Fagundes), numa determinada época; um

cara conhecido no país inteiro, fazendo grandes novelas. Então, um dia, dá um estalo

na cabeça dele. Ele fala: “ – Parei”. Vai para praça San Martin, e fica lá, até morrer,

fazendo espetáculo, praticamente todo dia, no fim da tarde, um mesmo espetáculo; ou

repete outro. Tinha aquele gabarito de ator popular. Não sei se ele ia de carro, se não

ia, se ele virou um franciscano e tal. Mas ele, nesse livro nosso, tem um artigo. Se não

leu, dê uma lida. Tem um artigo maravilhoso, em que fala do rompimento com as

salas perfumadas. Ele rompe com o teatro. Vamos aprendendo com a prática. A nossa

teoria não é nenhuma teoria... É a reportagem da prática. Como é que se consegue

falar? O cara fala: “ –Vamos para Jundiaí!” Quero que aquilo não se perca. Todo

mundo repete: “ – Vamos para Jundiaí!” Duma forma que essa repetição não se torne

enfadonha, nem você note. Você não nota a repetição. Mas nós repetimos isso,

calculadamente. Estava marcando uma cena de queimar o dinheiro. No texto está lá:

queima uma nota. Como é que você vai fazer isso? Tem que fazer uma puta duma

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cena. Então, é uma coisa religiosa. Os índios, cantando uma música indígena,

queimando o dinheiro. Aquilo vai levar um minuto. Então, nós enchemos de: “ –

Queimem a nota! Queimem a nota!” Isso sabemos que vai funcionar no bairro,

entende? Quando aparece o Will ou a Lúcia cantando, não é preciso nenhum artifício.

Com os outros falando, preciso de um artifício. Senão, vai ser uma peça só para atores

com uma puta voz. E você tem que passar o texto, se é com uma manifestação

popular, que morra em si, mas que traga condimentos de revolução, de sociabilidade,

é uma coisa. Uma história contada com começo, meio e fim. Então, que esse

comecinho, meio e fim termine aqui; o outro comecinho, começo, meio e fim, termine

aqui. Se o cara for perdendo esse negócio aqui, entra uma outra cena, que ele vai

seguir o sequencial. Isso funciona perfeitamente. A ponto de, antes da peça, já termos

marcado os times da risada e da participação. Nós já sabemos onde vão rir. Vão rir

aqui... “ – Pára, e dá um tempo, que vai vir o riso.” Você não vai cortar o riso. Espera,

aumenta, diminui. Isso tudo é bastante estudado. Então, essa peça está dando tempo

para fazermos tudo isso. Às vezes, não dá tempo. Nós temos que estrear em setembro.

Estamos com vinte convites do Barbosinha para fazer; o que nos rouba os sábados e

domingos.

Simone:Você falou do Fagundes algumas vezes. Como é que foi a passagem do

Caruso, do Fagundes? Como é que você vê a contribuição deles, ou a contribuição do

grupo para eles?

César: Do Fagundes é diferente, o Fagundes foi contratado quando termina O

Evangelho segundo Zebedeu do XI de agosto; começamos com outros trabalhos, que

ainda era XI. Começamos com o Rei Momo. Já era mais uma espécie de direção de

colegiado; éramos eu a Laura dirigindo, a primeira experiência minha de direção, com

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o Teatro da Cidade, de Santo André, que é um grupo de pessoas muito boas. Tinha o

Antônio Petrin, a Sônia Guedes. Contratam o Silney para fazer uma nova versão

d'OEvangelho segundo Zebedeu. O grupo se profissionaliza; todos eles são

profissionais e chamam o Fagundes para fazer o Conselheiro. O Fagundes não fez o

Conselheiro do XI de agosto, nem do Olho Vivo. Você vê que na fotografia do

Fagundes está escrito: O Evangelho segundo Zebedeu, Teatro da cidade de Santo

André. Não está como Olho Vivo. Nós só pusemos a fotografia, porque é para mostrar

o Fagundes como um dos caras. Na época, nem era tão conhecido, fez o espetáculo e

está por aí. Não temos nada contra.

Simone: Então ele fez a peça, mas nunca foi do grupo?

César: Não, nunca foi do grupo. Ele fez O Evangelho segundo Zebedeu, acho que uns

50, 60 espetáculos, num dos quais ele é levantado por um guindaste de Aeronáutica,

com um negócio de pára-quedas, e ficou preso lá em cima, quase cortou o saco. O

público aplaudindo, pensando que fazia parte e ele esperneando lá em cima. Havia

quebrado o guindaste. E aquilo aperta, um negócio que puxa assim (risos). Não sei se

castrou o cara. Tá por aí até hoje. O Caruso já é diferente. Era um ator que fazia teatro

amador na biblioteca, e entra no XI de agosto, na faculdade de direito. O pai querendo

que ele fosse advogado, e ele querendo ser ator. Se integra ao grupo que iria montar o

Rei Momo. E fica todo o período de montagem e mais um ano, mais ou menos. Então,

participou bastante. Não viajou; saiu do grupo quando o grupo foi para a Polônia. Ele

já tinha um convite. Não sei como seria hoje, mas não era Olho Vivo. Hoje, a pessoa

que sai do grupo sempre dá um aviso de noventa dias. O pessoal, normalmente, sai do

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grupo no intervalo entre uma peça e outra. É absolutamente normal. Saem alguns e

entram outros. Há exceções mais raras. Quem dá o aviso de noventa dias, geralmente é

substituído. E, geralmente, se sai numa boa; raríssimas vezes não é assim. Tanto é, que

volta todo mundo lá. Invariavelmente, uma vez por ano, passam por lá. Dos cento e

cinquenta, cento e oitenta, que passaram por lá, estão lá uma vez por ano. Gostam.

Então, o Caruso teve uma participação muito grande, porque ele é um cara bastante

criativo, dando palpites. Faz um personagem, Dom Pedro I, que é um Dom Pedro

Quixote, maravilhoso. Inclusive, teve um programa do Faustão, que eles mandaram me

entrevistar, e mandei uma fita. E o Faustão colocou, no ar, uma fita da voz dele

falando: “ – Onde o gigante...” e tal, como Dom Pedro I. Ele chorou. Falei: “ – Põe

isso no ar, que ele vai ficar louco. Daí, o Faustão disse: “ – É a sua voz!” Ele

respondeu: “ – É minha voz.” E começou a chorar. Nunca imaginou que, quarenta anos

depois, iam colocar a voz dele num programa global; e ele gritando aquilo lá. Foi no

carnaval desse ano.

Simone: Você disse que a peça O Evangelho segundo Zebedeu termina com a

convocação do público para a luta armada. Qual a sua opinião sobre isso?

César: Quando escrevi não pensava assim, hoje penso. Acho que aí é um problema de

direção. O cara pode dar uma reforçada nessa idéia, chamando para as guerrilhas

atuais, se é que elas existem com o mesmo sentido, ou diminuir a intensidade daquilo,

chamando o público só para participar com eles em outra manifestação cultural. Dá

para fazer as duas coisas. O cara que escreveu isso foi o Luis Alberto Sanz, que é um

cara que estava preso naquela época. Um bom crítico teatral, professor de teatro da

Universidade do Rio, jornalista. Ele encarava como um puta negócio. Chamando o

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cara para revolução e dizendo: o autor não tem a esperança que esse público vá fazer

isso. Eles vão continuar com a bunda sentada e não vão fazer porra nenhuma. Não

completou que iriam comer pizza depois... Mas a idéia dele era essa. Considero uma

análise muito boa. A melhor análise do Zebedeu é desse cara.

Simone: E o Bumba, meu queixada termina com a convocação à consciência coletiva

dos trabalhadores.

César: Termina com quatro opções, porque não fechei. Acharia válida, por exemplo, a

ida para a Justiça do Trabalho, se ela fosse eficaz. Mas não me pronunciei. Um chama

para luta armada, o outro para a comissão de fábrica e o outro para a Justiça do

Trabalho. A comissão de fábrica, talvez, fosse o degrau mais factível de uma melhoria,

e tal, que não existe mais. Naquela época, existia comissão de fábrica, que, em plena

ditadura, iria discutir com o patrão. O Lula se fez nisso. O Lula foi o mestre na

discussão de comissão de fábrica. Ele deixava os patrões e os advogados dos patrões

deste tamanhinho. Ele discutia muito bem, e conseguia a jogada. Na carreira dele, ele

foi um grande negociador de aumentos. É engraçado isso, né?! Depois, que ele parte

para a radicalização, não uma luta armada, mas a radicalização no sindicato. Daí, já

eram “outros quinhentos”, estava começando a abrir. Porque, em setenta e nove, ele

nunca falaria isso.

Simone: Você valoriza bastante os atores, tanto é que você está presente em todos os

espetáculos, pelo menos em todos em que eu estive.

César: A minha obrigação é a mesma dos atores. A Graciela, por exemplo, só não está

porque está doente. O Gil está em todos os espetáculos. E quando estamos fazendo de

dia, e não tem luz, então ele é um elemento que ajuda na função.

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Simone: E mesmo hoje. Dá para perceber que você sabe os detalhes da lona, do

praticável, do cubo.

César: Só não interfiro na direção. Por exemplo, nesse espetáculo fiz questão de não

dar um palpite, e nem assisti aos ensaios. Porque é o nascimento de dois novos

diretores. E dois bons, com uma condição de trabalho; logicamente tudo dentro de uma

escola olhovivense. Você vai ver um ensaio nosso, se não tiver num dia de necessidade

de estréia, é uma puta seriedade. Senão, é gozação total. O cara vai dar um palpite, aí

fala: “ – Dá um palpite, seu filha-da-puta! E não enche mais o saco!” Daí, o cara dá o

palpite, e a gente incorpora. A gozação é permanente, e isso é uma coisa que

vem...funcional pacas. Aí, depende... se chegar dez horas da noite, onze, uma hora, aí

já não...

Simone: Uma ação sua muito significativa é o fato de você tomar cada um pela mão

no final: “ – Esse aqui é torneiro mecânico, esse aqui é artesão, esse aqui é

desempregado”, enfim; é a valorização do trabalhador do teatro, e do trabalhador em

si! Como é que você vê o trabalhador hoje? O trabalhador ainda é o protagonista de

uma possível revolução, pensando em termos socialistas?

César: Acho que aí você tem que voltar no tempo do Getúlio Vargas, em trinta e sete,

quando ele fez a Carta del Lavoro, que havia todo um núcleo de trabalhadores; embora

esse cara fosse um ditador, um puta torturador, ele conseguiu uma visão de trabalhador

unido e trabalhador em busca dos seus direitos; até para acomodar e para conseguir

governar com os poderosos, fingindo que está dando as coisas pros oprimidos. Depois

disso, vem uma democracia aqui, e vem a época da ditadura militar, em que tudo é

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fechado. Mas começa o ressurgir e o grande momento do operariado organizado, que é

o movimento do Lula. Que é o movimento de Contagem, o movimento de Osasco, a

própria greve de Perus; e esses caras se organizando, fundando as grandes centrais

sindicais, que é o caso da CUT, por exemplo. E depois até a Força Sindical, embora já

seja bem mais picareta. Mas a CUT, como representante do operariado do Brasil, bem

organizada. Coisa que não houve nem na Polônia do Walessa. Esse tipo de

organização, não houve. Lembro bem que num encontro do Lula com o Leche

Walessa, o Walessa falou para ele: “ – Você está fazendo partido politico? Papel do

sindicalista não é isso.” Depois disso tudo, o Walessa rompe, funda o sindicato e se

elege presidente, antes do Lula. Coisa que ele disse que era totalmente imoral. Foi um

péssimo presidente, aliás. Acho que o movimento organizado teve essa grande

ascensão, até o início da abertura. Depois, ele vai caindo, e hoje ele é pouco

representativo. A única coisa mais ou menos representativa, mas ainda assim em

decadência, é o MST. Também devido a tudo isso que aconteceu, a proximidade do

poder, a necessidade dos caras terem dinheiro. Estão montando uma peça minha, no

sul: Morte aos brancos. E eles tem uma estrutura de levar os caras de kombi, de perua,

que nem o Olho Vivo não tem. E isso significa proximidade do poder. Porque esse

dinheiro é dado. Eles insinuam ser contra. O departamento de teatro do MST resolveu

montar o Morte aos brancos. É o problema da terra que eles enfocam, mas não vi.

Simone: Esse departamento de teatro tem a ver com o pessoal que foi em Guarulhos

ver vocês?

César: Exatamente. Eles pediram autorização para montar, e eu dei.

Simone: Nós estávamos no Jardim Aeródromo, em Guarulhos.

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César: É. Eles nos descobriram lá e foram nos ver. Depois, apresentaram esse

espetáculo num encontro do MST em Brasília, e em alguns lugares, mas eu não vi.

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