Upload
duongmien
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNESP
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“Júlio de Mesquita Filho”
Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes
Mestrado
TEATRO UNIÃO E OLHO VIVO:
CULTURA TRADICIONAL E ARTE POPULAR
SIMONE CARLETO
São Paulo
2009
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNESP
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“Júlio de Mesquita Filho”
Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes
Mestrado
TEATRO UNIÃO E OLHO VIVO:
CULTURA TRADICIONAL E ARTE POPULAR
SIMONE CARLETO
Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial
exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área
de concentração em Artes Cênicas, linha de pesquisa
Teoria, prática, história e ensino das Artes Cênicas, sob
orientação do Professor Livre Docente Reynúncio
Napoleão de Lima para a obtenção do título de Mestre em
Artes.
São Paulo
2009
ii
C279t
Carleto, Simone
Teatro União e Olho Vivo: cultura tradicional e arte popular / Simone Carleto. - São Paulo :
[s.n.], 2009.
148 f. il.
Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Reynúncio Napoleão de Lima
Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes.
1. Teatro popular. 2. Teatro brasileiro. I. Lima, Reynúncio Napoleão de. II. Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título
CDD – 792.0981
iii
Para Edmilson,
que me inspirou e me incentivou em todos os momentos.
iv
Agradecimentos
A Gabrielle, pela doçura e a tradução para o inglês.
Ao Lucas, pela proteção e transcrição da entrevista.
A Elisabetta e Valdir, meus pais, fundadores do Jornal Olho Vivo, motivos da minha
determinação.
Ao Fábio, meu fantástico irmão. Obrigada pela revisão do texto.
Ao Rey Lima, muito mais que um orientador, um amigo imprescindível, que foi
generosíssimo nos momentos em que mais precisei de ajuda. Meu mestre mais
querido.
Aos mestres Alberto Ikeda e Alexandre Mate, por confiarem em mim e
compreenderem minhas limitações.
A Claudete Ribeiro e Alessandra Jacob, pela profundidade do trabalho que realizam.
Ao Teatro Popular União e Olho Vivo, com quem aprendi muito mais do que aqui se
apresenta e que me transformou numa pessoa melhor.
A César Vieira e Graciela Rodrigues,
pela confiança e solidariedade.
v
Resumo
Na presente pesquisa proponho a reflexão sobre a presença de manifestações
da cultura popular tradicional como o bumba-meu-boi, o circo, a literatura oral e de
cordel, nas obras do grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, como elementos
estruturais na abordagem de temas de relevância social, tais como greves, conflitos de
classe, étnicos e religiosos, alienação.
São tomados como base os textos O Evangelho segundo Zebedeu, 1970 e
Bumba, meu queixada, 1978; obras representativas dos mais de 40 anos de atividades
do grupo nas periferias de São Paulo. Discuto questões significativas para subsidiar o
interesse sobre o conceito e prática do Teatro Popular postulado pelo grupo,
estabelecendo nexos entre cultura popular tradicional, teatro popular e consciência
crítica. Além disso, são abordados aspectos como as formas de produção artística,
envolvendo o público ao qual se destina, os locais das apresentações e os elementos
que caracterizam a formação do grupo. A atividade do TUOV é uma alternativa
significativa de resistência à cultura de massa e o capitalismo pós-moderno, por
socializar conhecimento e difundir práticas humanísticas com sua arte teatral. O grupo
tem organização semelhante aos grupos de cultura tradicional das comunidades, em
que o popular é entendido no sentido de participar da criação, manutenção e
divulgação da obra artística.
Palavras-chave: teatro, teatro popular, cultura tradicional
vi
Abstract
In this research I propose a reflection on the presence of manifestations of popular
culture like the traditional bumba-meu-boi, the circus, oral literature and cordel
literature, in the works of the group Teatro Popular União e Olho Vivo, as structural
elements in addressing issues of social relevance, such as strikes, conflicts of class,
ethnics and religious, alienation.
Are taken as base the texts O Evangelho segundo Zebedeu, 1970 and Bumba,
meu queixada, 1978; representative works of more than 40 years of activities of the
group in the outskirts of São Paulo.
I discuss significant issues to subsidize the interest on the concept and
practice of the Popular Theater postulated by the group, establishing linkages between
traditional popular culture, popular theater and critical conscience. Furthermore, are
approached aspects such as forms of artistic production, involving the public wich is
intended, the locations of the presentations and the elements that characterize the
formation of the group. The activity of TUOV is a significant alternative to resistance
to culture of mass and post-modern capitalism, for socializing knowledge and
disseminate humanistic practices with their theater art. The group is organized
similarly to groups of traditional culture of the communities, in which the popular is
understood in the sense of participate of the creation, maintenance and dissemination
of artistic work.
Keywords: theater, popular theater, traditional culture.
vii
elogio do aprendizado
aprenda o mais simples! para aquelescuja hora chegoununca é tarde demais!aprenda o ABC; não basta, masaprenda! não desanime!comece! É preciso saber tudo!você tem que assumir o comando!
aprenda, homem no asilo!aprenda, homem na prisão!aprenda, mulher na cozinha!aprenda, ancião!você tem que assumir o comando!frequente a escola, você que não tem casa!adquira conhecimento, você que sente frio!você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.você tem que assumir o comando.
não se envergonhe de perguntar, camarada!não se deixe convencerveja com seus olhos!o que não sabe por conta próprianão sabe.verifique a contaé você que vai pagar.ponha o dedo sobre cada itempergunte: o que é isso?você tem que assumir o comando.
Bertolt Brecht(1898-1956)
Jornal do Goethe Institut e Fundação Clóvis Salgado, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em divulgação de evento referente aos 40 anos da morte de Bertolt Brecht, de 8 a 28 de setembro de 1996.
viii
Sumário
Introdução___________________________________________________________ 1
1. A resistência do Teatro União e Olho Vivo e sua identidade com o popular_____ 13
1.1. Histórico do grupo___________________________________________17
1.2. Peças e espetáculos__________________________________________ 20
1.3. César Vieira, o Idibal Pivetta___________________________________29
2. A estética de um teatro da militância___________________________________ 36
2.1. Características da cultura popular presentes nas peças do TUOV_______49
3. Desenvolvimento do trabalho coletivo___________________________________58
3.1. O Evangelho segundo Zebedeu__________________________________74
3.2. Bumba, meu queixada_________________________________________84
4. Considerações finais_________________________________________________94
Bibliografia________________________________________________101
Anexos____________________________________________________106
ix
Lista de Imagens
Imagem 1: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____12
Imagem 2: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____34
Imagem 3: Foto do espetáculo Barbosinha Futebó Crubi______________________35
Imagem 4: Foto do espetáculo João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata_____57
Imagem 5: Cartaz do espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, de 1970_________73
Imagem 6: Foto do espetáculo Bumba, meu queixada_________________________82
Imagem 7: Capa da edição de 1980 de Bumba, meu queixada__________________83
x
Introdução
Na presente pesquisa proponho a reflexão a respeito da presença de elementos
da cultura popular tradicional como o bumba-meu-boi, o circo, a literatura oral e de
cordel, nas obras do Teatro Popular União e Olho Vivo, e o aproveitamento de seus
elementos característicos na abordagem de temas de relevância social, tais como
greves, conflitos de classe, étnicos e religiosos, alienação. Serão tomados como base os
textos O Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978), obras
representativas das atividades do grupo nas periferias de São Paulo. Mencionarei
questões significativas acerca do conceito e da prática do teatro popular postulados
pelo grupo, estabelecendo nexos entre cultura popular tradicional e consciência crítica.
Serão abordadas as formas de produção artística, envolvendo o público a que se
destina, os locais das apresentações e a formação do grupo.
O teatro de grupo vem sendo valorizado nos últimos anos como forma
significativa de produção e fruição artística, considerando sua proximidade das
comunidades da periferia da cidade, outras em “situação de rua” etc. A experiência do
Teatro Popular União e Olho Vivo é uma das mais conhecidas pelo seu trabalho junto
a esse segmento. Busco compreender certos aspectos fundamentais do trabalho deste
grupo a partir de alguns problemas.
1
Qual a relação entre o posicionamento ideológico do grupo e o conceito de
cultura popular por ele defendido? Por quais motivos a produção do grupo pode ser
considerada como resistência cultural? Quais os fatores determinantes para a
continuidade do grupo por mais de 40 anos e qual a relação com o tipo de teatro
postulado? Que mecanismos internos se relacionam à posição política de seus
integrantes e à produção artística voltada para o público popular? Como o grupo
contextualiza sua produção? Como são definidos os temas e a forma dos espetáculos?
Quais os critérios utilizados para a escolha das manifestações tradicionais como base
dos espetáculos? Qual a efetividade do trabalho do grupo para a mobilização das
comunidades no sentido da solução de problemas coletivos?
Esse estudo torna-se necessário pelo crescimento do interesse de minha
geração pelo universo das culturas e do teatro populares diante do contexto em que
predomina a cultura de massa. Acredito que o Teatro Popular União e Olho Vivo
desenvolveu um conceito próprio de teatro popular, que vem sendo registrado pelo
grupo e alguns pesquisadores. Encontro uma lacuna bibliográfica no que diz respeito
às manifestações populares tradicionais como elementos formais das obras do TUOV.
Outra questão fundamental e mais genérica é a intensificação do interesse, não
só acadêmico, a respeito do que se chama teatro de grupo e de pesquisadores que
2
sistematizam informações e reflexões sobre os meios de produção, veiculação e
recepção das obras artísticas. Estes procedimentos presentes na atualidade contribuem
de modo significativo para o teatro de pesquisa, de caráter explicitamente ideológico,
de comprometimento ético e estético em recusa da ambição comercial, do lucro
empresarial, da cultura de massa, considerando teatro popular e teatro comercial
como antagônicos. Para tanto, utilizo a abordagem qualitativa num estudo de caso.
Preliminarmente procedo a revisão documental e bibliográfica, recorrendo aos
registros realizados pelo grupo, como suas publicações, além de alguns autores que
pesquisaram ou fazem referências ao trabalho dele. Além disso, recorro a seus
integrantes, no sentido de proceder uma pesquisa que retome a história de
desenvolvimento do grupo, por meio do estudo de caso, observando sua produção
artística essencialmente popular. Para tanto, seleciono duas obras do grupo para
analisá-las do ponto de vista formal: a construção do texto, expedientes que
caracterizam a forma popular, bem como a presença de elementos da cultura popular
tradicional. Verifico, ainda, outras formas de interação adotadas pelo grupo. Lanço
mão de entrevistas, discos, fitas e vídeos.
Uma preocupação fundamental da pesquisa é a relação entre o teatro e as
culturas populares, como instrumento crítico de transformação ou resistência social.
3
Como Bertolt Brecht, que pretende a realização de um teatro proletário em que se
mantenha a atualidade do popular, não preocupado com grandes lotações e com o
lucro, mas atento a pequenos agrupamentos com os quais se pode estabelecer um
diálogo efetivo sobre os problemas sociais, a partir da própria cultura das platéias,
como forma crítica de resistência cultural. Assim, o espectador, enriquecido por essa
experiência de análise do real, assume uma nova consciência da necessidade de
justiça social e de superação de desigualdades humilhantes e empobrecedoras.
Para fundamentar a questão da cultura popular, são estabelecidas relações com
a sociedade, a partir das contribuições de Florestan Fernandes (1978), para quem as
manifestações folclóricas e tradicionais se mantém pela necessidade humana de se
relacionar coletivamente e pela representação de vida que elas contém, dos
sentimentos e valores do homem. Ou seja, a representatividade de nossa cultura
guarda nossa história, nossas crenças e a conexão com os diversos momentos de
nossa vida, os nossos antepassados e, consequentemente, as gerações futuras.
Anatol Rosenfeld (1977), em diversas publicações, trata do teatro popular
como elemento necessário para apontar as contradições de sua própria continuidade
como resistência, mantendo vivo o espírito de insatisfação que impulsiona para a
transformação. É um elogio ao protesto, à reivindicação de ideais e valores, sempre
4
presentes na história do teatro, sobretudo popular, desde as primeiras manifestações
das quais temos informação, desde o teatro grego, passando por Shakespeare e pelo
teatro épico de Brecht, para quem o conceito de popular se altera em face das
transformações sociais e do povo. Então, destacarei esta dialética na trajetória artística
do Teatro Popular União e Olho Vivo, transformando-se internamente por quatro
décadas, atento à dinâmica histórica, realizando espetáculos em locais da periferia,
estimulando a formação de pessoas que atuem nas comunidades em busca deste teatro
popular e reformulando suas práticas em decorrência desses contatos. Também busco
referência em Terry Eagleton, para quem a possibilidade do acúmulo de forças para a
transformação é algo efetivo no momento presente da sociedade, com base no
materialismo dialético.
No primeiro capítulo do trabalho, comento a respeito das atividades do grupo,
a partir das quais se torna possível uma reflexão a respeito do teatro popular como um
todo. No segundo, contextualizo a permanência do grupo abordando os conceitos de
cultura tradicional e popular. No terceiro capítulo, trato especificamente das obras O
Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978); explicitando a
estrutura que se apropria de elementos da cultura popular tradicional, relacionados a
conteúdos sócio-políticos. Abordo as questões referentes às manifestações populares
5
tradicionais como circo, bumba-meu-boi, marujada, literatura oral e de cordel.
Proponho uma reflexão a respeito da forma e conteúdo, de acordo com as pretensões
político-ideológicas do TUOV, suas experiências e relevância.
A investida teatralista humorada e contundente do TUOV, alimentada pela
influência dos folguedos populares como tradição de convívio social e pelo encontro
do público das periferias, insere-se num contexto mais amplo da cultura brasileira de
reconhecimento dos valores de suas raízes ancestrais ao sincretizar as contribuições
dos povos branco, indígena e negro. Num sentido ideológico, insere-se ainda num
movimento libertário mundial, marcado pelo desejo de tomada de consciência do
trabalhador no que se refere às conquistas de seus direitos de cidadania, em confronto
com a exacerbada dominação do capital em detrimento da valorização da força de
trabalho.
No Brasil, a juventude dos anos 1960 e subsequentes, imbuída da visão crítica
acerca dessa circunstância histórica, quer construir um mundo de novas e mais justas
relações sociais. Para essa transformação, faz-se necessária a apropriação de formas
diversas de encontro, socialização de informações, de procedimentos e a divulgação
de uma atitude diante da complexidade do processo de mudança. É preciso buscar
parceiros nas diversas áreas de atuação social, nos postos de trabalho, nas
6
comunidades. É preciso conscientizar os mais prejudicados pelo sistema e acumular
forças, a partir de diversos meios de construção de consciência libertária e
transformadora. A cultura, a arte, o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas, os
quadrinhos, a dança, são, antes de tudo, formas de expressão e comunicação. Neste
sentido, a onda contestatória apropriou-se dessas formas para impulsão dos ideais de
mudanças sociais e políticas.
É assim que, no final dos anos 1950 e início dos de 1960, cresce no país uma
ânsia revolucionária. O golpe militar de 1964, expressão armada da ideologia de
privilegiados, reprime esse movimento contestatário, expresso no desejo das reformas
de bases propostas no governo do Presidente João Goulart e apoiadas pelos grupos
mais progressistas, intelectuais, estudantes e artistas como César Vieira e muitos
outros. É o momento que propicia a união desses contestadores e o olho vivo
direcionado a contar a verdadeira história que foi ocultada. A ditadura militar cessa
em 1984, mas as contradições do sistema e as seculares diferenças sociais, as
injustiças, a fome e miséria dos povos, o profundo desrespeito aos direitos humanos,
os processos de exploração do trabalho e dos recursos da natureza não terminam com
as mentiras demagógicas da globalização. Atualmente, depois da decepção daqueles
que, por muito tempo, acreditaram que tudo pudesse ser diferente com representantes
7
legítimos dos trabalhadores no poder, dos escândalos do governo Lula e da
continuada dependência do país ao mundo globalizado, a ditadura ideológica dos
privilegiados torna ainda muito forte a necessidade de atitudes combativas. A
aparente liberdade de escolha e as falsas promessas de um sistema que ainda
privilegia poucos e assola os demais com pobreza, discriminação e a imposição de um
modo de vida, os recursos da televisão e demais mídias, o incansável apelo ao
desenvolvimento econômico em detrimento das condições de vida mais igualitárias,
ilude e conforma. Anestesia e confunde. Os métodos teatrais do TUOV continuam a
desmistificar as inverdades sobre as condições de opressão da humanidade, seja pelos
temas que insiste contundentemente em tratar, seja pela determinação em ocupar
locais e espaços nada disputados pela arte comercializada e tão negligenciados que
são em nosso meio. Os parceiros continuam a ser buscados e o TUOV já acumula o
lastro de mais de 40 anos de luta, na qual os frutos subjetivos desse trabalho
certamente revertem em acúmulo significativo para a revolução do pensamento, da
ação e da possibilidade de mudanças efetivas. Aliando a construção interna de
procedimentos que privilegiam o coletivo, profundo respeito pela cultura brasileira
como elemento de convergência entre grupo e público e a tomada de posição a favor
das classes subalternas, o TUOV realiza sua proposta de arte popular como meio de
8
descortinar possibilidades de transformação social e até de promover a auto-
transformação do grupo e de seus integrantes. Para além de pressupostos politizantes
no que se refere ao público, verifica-se a coerência interna na realização de um
trabalho que privilegia o coletivo sem, no entanto, abrir mão das diferenças
individuais criativas que contribuem para o enriquecimento da troca de experiências
entre os participantes do grupo e destes com a comunidade.
A divulgação da cultura brasileira e de suas manifestações tradicionais são
mais elementos que caracterizam a resistência do grupo à cultura massificada, já que
sua utilização como forma de criação e veiculação dos espetáculos atribui a elas um
caráter de inovação, a partir da apropriação estrutural que faz, sem esvaziá-las de seu
objetivo primeiro, a socialização e a integração de seus participantes. Além disso, sua
preocupação com o popular se revela nas demais esferas citadas, nas quais a
abrangência de suas atividades confirma sua opção pelo popular desde a formação do
elenco, dos espetáculos e do público. Fazer do teatro um meio de comunicar-se e, ao
mesmo tempo, como um fim em si mesmo, demonstra o amadurecimento do grupo
durante quatro décadas de atividade, considerando o fazer artístico coletivo como sua
maior riqueza, sem se preocupar com o acúmulo de capital de forma individualizada.
A socialização de procedimentos de construção de espetáculos, pesquisa de temas,
9
escrita dramatúrgica e desenvolvimento da proposta de encenação, a partir dos
integrantes que estão há mais tempo no grupo com aqueles que ingressam, é uma ação
de desprendimento e solidariedade, bastante próxima do que ocorre nos núcleos
familiares e comunitários que se dedicam às manifestações populares tradicionais.
Seus conhecimentos dos folguedos e práticas artísticas populares são passadas de pai
para filho, de geração em geração, como forma de perpetuar hábitos significativos
para a identificação de valores comuns e de algo que una os seres humanos em torno
daquilo que se lhes apresenta como característica comum, aglutinadora e até festiva.
São ações que aproximam, congratulam, potencializando a convivência pacífica e o
bem comum. Privilegiam ações coletivas em contraponto à competição. Possibilitam
o diálogo em substituição da imposição. Essas práticas se tornam educativas, muitas
vezes mais significativas para os participantes que os conteúdos veiculados no ensino
formal, sabidamente tão desgastado na atualidade. Não se trata, porém, de buscar o
conservadorismo e o conformismo a partir das manifestações populares, mas
apropriar-se delas, de forma contextualizada e dinâmica, a partir de pesquisas
respeitosas e de apropriação consequente, seja para aguçar o potencial crítico das
comunidades, seja para a criação dos espetáculos em si, ou ainda para os processos de
construção do trabalho dos atores. A opção pelo popular, a despeito de seus primeiros
10
idealizadores serem pessoas bastante intelectualizadas, orienta-se pela possibilidade
de transformação social a partir da identificação de ideais comuns àqueles que estão
dispostos a abrir mão de benefícios e possibilidades individuais, com a certeza de que
a vida pode ser melhor se, para a maior parte das pessoas, o bem puder ser partilhado,
em vez da idéia de competitividade, de superação individual e da ilusão das riquezas
materiais que denotam poder e supremacia de uns sobre outros. Na coletividade, a
troca iguala os seres em torno de objetivos comuns e a atividade teatral no caso do
TUOV, apenas por essa característica, representa já um excelente exercício de
resistência e de cidadania.
11
Imagem 1: Oswaldo Ribeiro como João Cândido em João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata. Foto de Graciela Rodrigues.
O TUOV busca explicitar a realidade social do país, poeticamente, sensibilizando a platéia para o exercício crítico da cidadania.
Para mim, no Brasil, o teatro popular ou o teatro comercial não podem ficar alheios à realidade que os cerca. O teatro deve espelhar a realidade, despertar aqueles que o fazem e aqueles que o assistem para essa realidade. Deve fazer um diagnóstico. Deve ser como uma radiografia estética, bem feita, não panfletária. Uma radiografia que acuse o tumor onde ele existe... (Trecho de entrevista de César Vieira à Folha de S. Paulo, p. 39. s.d. Provavelmente 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.)
12
1. A resistência do Teatro Popular União e Olho Vivo e sua identificação com o
popular
O União e Olho Vivo vai continuar sulcando os mares da fantasia desfraldando a bandeira da utopia.” (Frase impressa nos materiais do grupo e proferida no discurso de César Vieira na ocasião do recebimento do Prêmio Santo Dias1, na Assembléia Legislativa, em 12 de dezembro de 2003.)
O TUOV atua desde a sua fundação numa perspectiva da estética a serviço
da ética, na qual a utopia pode ser compreendida como um paradigma a ser
construído nas ações práticas do dia-a-dia, em que se busca o que se pode chamar de
coerência. Terry Eagleton propõe-nos uma visão dialética da utopia, aplicável nesse
caso:
Se a cultura como crítica deve ser mais do que uma fantasia ociosa, precisa ser indicativa daquelas práticas presentes que prefiguram algo da amizade e satisfação pelas quais anseia. Ela as encontra em parte da produção artística, e em parte naquelas culturas marginais que ainda não foram totalmente absorvidas pela lógica da utilidade. Ao absorver a cultura nesses outros sentidos, a cultura como crítica tenta evitar o modo puramente subjuntivo de “má” utopia, o qual consiste simplesmente em uma espécie de anseio melancólico, um “como seria bom se” sem base alguma no real. O equivalente político disso é a doença infantil conhecida como radicalismo de esquerda, que nega o presente em nome de algum futuro alternativo inconcebível. 2
A atenção do TUOV para os temas históricos e a cultura tradicional relacionando-os com problemas e aspirações das comunidades, busca aproximar-se daquilo que Eagleton (2005:9) recomenda:
1Santo Dias foi um trabalhador, morto pelas forças policiais da ditadura, na capital paulista, em 30 de outubro de 1979. Foi militante nos movimentos de operários e das comunidades eclesiais de base. Sua atuação e sua morte foram marcos na luta contra a repressão às manifestações políticas.
2Terry EAGLETON. A idéia de cultura, São Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 8.
13
A “boa” utopia, ao contrário, descobre uma ponte entre o presente e o futuro naquelas forças no presente que são potencialmente capazes de transformá-lo. Um futuro desejável deve ser também um futuro exeqüível. Ao ligar-se a esses outros sentidos de cultura, que pelo menos têm a virtude de realmente existirem, o tipo mais utópico de cultura pode, assim, tornar-se uma forma de crítica imanente, julgando deficiente o presente ao medi-lo em relação a normas que ele próprio gerou. Nesse sentido, também, a cultura pode unir fato e valor, sendo tanto uma prestação de contas do real como uma antecipação do desejável. Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo “cultura” está destinado a olhar em duas direções opostas. A desconstrução, que mostra como uma situação acaba forçosamente violando a sua própria lógica justamente na tentativa de aderir a ela, é simplesmente um nome mais recente para essa noção tradicional de crítica imanente. Para os românticos radicais, a arte, a imaginação, a cultura folclórica ou comunidades “primitivas” são sinais de uma energia criativa que deve ser estendida à sociedade política como um todo. Para o marxismo, que surge na esteira do romantismo, ela é uma forma bem menos exaltada de energia criativa, aquela da classe operária, que pode transfigurar a própria ordem social da qual é o produto.
Então, pode-se dizer que a escolha pelo popular, identificada tanto na forma de
produção artística, quanto ao público a que se destina e do estilo teatral buscado para
a comunicação com este público, passa por uma opção dos artistas do grupo: a de
dimensionar o papel da arte com assuntos de interesse popular, como seus próprios e
relevantes para o público.
O TUOV propõe a troca de experiências com comunidades e se apresenta
como paradigma para alguns grupos que postulam comunicar-se com o público
popular. Esses grupos tornam-se afins e estabelecem uma rede de solidariedade e
respeito, como é o caso de Rogério Tarifa, da Cia. São Jorge de Variedades, que
14
homenageou César Vieira, em 2007, com seu espetáculo Francisco pés após pés.3 É
Ariano Suassuna4 que argumenta oportunamente:
Podemos dizer que, depois de escolher sua Arte, o artista, aos poucos, tateando até encontrar o verdadeiro caminho necessário ao desenvolvimento de sua personalidade, escolherá, talvez até de modo a princípio inconsciente, uma família de espíritos afins, uma linhagem de parentes mais velhos à qual ele se filia, seguindo aquele impulso tão natural ao espírito humano de, mesmo quando vai renovar, apoiar-se numa tradição ou num exemplo. A originalidade não deve ser colocada, pelos jovens, como preocupação anterior: ela só é legítima quando é involuntária e espontânea.
O Teatro Popular União e Olho Vivo completou quarenta e dois anos de sua
trajetória em 2008, com trabalho voltado para as formas populares, a cultura
tradicional e o público como co-participante do espetáculo, os temas de interesse
popular, que dizem respeito aos trabalhadores, moradores de comunidades carentes e
de lugares não convencionais para exibições teatrais. O grupo se apresenta em
quaisquer lugares a que for chamado e adapta-se às possibilidades de interação com o
público. O debate é sempre um pressuposto para a troca de idéias e realização da
função do espetáculo de contextualizar historicamente os acontecimentos relatados na
fábula. A característica principal é a independência do grupo, que se mantém com
venda de espetáculos para prefeituras e instituições diversas, revertendo a verba para
3Em 2007, numa casa antiga, no bairro do Bexiga, Rogério Tarifa dedica seu espetáculo, Francisco pés após pés, ao diretor do Teatro Popular União e Olho Vivo, César Vieira. É uma fábula sobre o homem contemporâneo, seus fracassos e questões, contada a partir da história de Francisco, um morador de rua. Tendo como ponto de partida uma reflexão filosófica, a peça aprofunda uma discussão sobre as relações sociais. Extremamente poética, sensível e teatral, a peça emociona e nos faz pensar no mundo em que vivemos, como somos e o que podemos fazer com nosso passado, nosso presente e para o futuro. César Vieira é um dos nomes mais respeitados pela classe teatral em São Paulo e no país. Como referência de trabalho coletivo com o TUOV e de atuação militante. Rogério justifica a dedicatória pela profunda admiração que dedica ao artista e à sua atuação com o TUOV.
4 Ariano SUASSUNA. Iniciação à estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 264.
15
financiar suas apresentações nas áreas mais distantes e carentes, além da abertura da
sede para apresentação de espetáculos. Com essa tática batizada de “Robin Hood”,
vende-se espetáculos para entidades que podem comprá-los, aplica-se a receita para as
idas a bairros, com ingressos a preços reduzidos ou gratuitos; adquire-se
reconhecimento público por sua trajetória artística, por seu posicionamento político,
seu trabalho incontestável, sua permanência ativa e participações em eventos que
marcam a organização da classe artística, com intervenções claramente políticas.
O TUOV não tem pretensões comerciais, nas mídias ou nos grandes circuitos;
firma uma opção ideológica de estar junto à classe popular, ainda que tenha o respeito
de teatrólogos e artistas reconhecidos no cenário nacional. É um conjunto brasileiro
que luta pela dignidade dos injustiçados, pela história trazida à tona em versões pouco
ou nada divulgadas. E o faz de modo coletivo, decidindo e atuando em grupo,
buscando socializar sua experiência, sua trajetória e seus procedimentos de criação,
contemplando o ato de educar e o de divertir. Envolvido e provocado ao mesmo
tempo, o espectador tende a reconhecer sua história e a mobilizar-se para interagir
com a realidade. Nesta proposição artística, o grupo também se transforma, de modo
dialético, reafirmando a cultura popular tradicional como valor de reconhecimento e
aproximação dos indivíduos da construção de sua história social. O grupo se
apresenta sempre aos finais de semana, também utilizados para ensaios e preparação
de seus espetáculos. Todos os integrantes desempenham outras funções profissionais
durante a semana.
16
1.1. Histórico do grupo
O grupo surgiu na década de 1960, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco. Por
esse motivo, o seu primeiro nome foi "Teatro do Onze". O nome atual surgiu em
1971, com a encenação do espetáculo Rei Momo, em que aparece o Grêmio
Recreativo Escola de Samba União e Olho Vivo. Este também foi o nome dado ao
circo no qual a peça era encenada, no Parque do Ibirapuera, conforme registram os
cartazes da época. A personagem D. Pedro I utilizava a saudação: “União e olho
vivo!”. César Vieira, em curso ministrado na FUNARTE – São Paulo, em 2005,
relatou que a saudação, na verdade, aparecia nas cartas amorosas de D. Pedro:
“(...)não esqueça a chupadinha, união e olho vivo”. Daí a vocação popular do grupo
em sua essência, ou seja, exercer a possibilidade de rir daquilo que nos aprisiona,
zombar do poder e de nós mesmos, aproximar-se de forma diferenciada de
situações, problemas e poder encontrar coletivamente possíveis saídas e, na
atividade teatral, trocar experiências e percepções da realidade. Em seu estatuto, de
1978, o grupo se declara “em busca de um teatro popular”. A afirmação, em sua
simplicidade, traz a carga de compromisso com uma atuação cidadã na sociedade.
Sempre esteve envolvido com a produção artística de espetáculos e atividades
educacionais, como cursos e seminários, que aprofundam o olhar sobre a pesquisa
socializadora e contextualizada em sua realização. O grupo utiliza como sede, há
mais de dezoito anos, um galpão no bairro do Bom Retiro, à Rua Newton Prado,
766, onde realiza ensaios, reuniões, apresentações, cursos e troca de experiências
com entidades que têm finalidades comuns, sejam culturais, artísticas ou políticas. O
galpão, construído pelo próprio grupo, localiza-se em imóvel cedido pela Prefeitura
Municipal e recebe um público de até 120 pessoas em cada apresentação.
A formação do grupo é dinâmica desde o seu surgimento e se mantém coerente
com a proposta inicial nestes anos de atividade. Seus integrantes assumem funções
17
diferenciadas, partilhando-as, enriquecendo os processos de troca e difundindo uma
série de procedimentos específicos de uma atuação verdadeiramente coletiva.
Em 2006 e 2007, o TUOV buscou divulgar sua trajetória de 40 anos com
apresentações, publicações, cursos, seminários e registros de toda a sua produção. Ao
longo desses anos, publicou todos os seus textos encenados, acompanhados de
reflexão sobre sua atuação, com o histórico de suas apresentações e das trocas de
experiências com as comunidades em que se apresentaram, inúmeras e tantas
intervenções realizadas em São Paulo e em todo o Brasil. Ativo, vivo e crítico, o
grupo amplia suas atividades e suas relações com a comunidade artística e
interessados em geral, trabalhadores de todas as áreas, estudantes, professores, de
modo a confirmar sua ação, seus procedimentos e sobretudo a atitude militante de
seus participantes.
No processo de amadurecimento de sua metodologia de criação e do
desenvolvimento de mecanismos para sua permanência, o TUOV passou de uma
produção intelectual voltada ao popular para uma produção coletiva com a
participação de pessoas da classe popular na formação do grupo. Desde a iniciativa
dos debates após os espetáculos já na década de 1960, passando pelo início de seu
percurso deambulante na década de 1970, e pela consolidação dessa prática junto ao
movimento operário na década de 19805. Nos anos 1990 até a atualidade, se configura
a necessidade de valorização do trabalho artístico e da organização de grupos de
atuação. O Teatro Popular União e Olho Vivo reafirmou-se como coletivo que
também colabora com outros tantos grupos e ações de mobilização e organização
política, artística ou cultural. A reflexão aqui apresentada sobre as duas peças O
Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba, meu queixada (1978), se justifica pelo
fato de que, entre as duas, há a mudança de procedimento com relação à forma de
produção artística. O trabalho coletivo tem início no processo de construção da
5Esta idéia é aqui apresentada de forma esquemática, para oferecer um panorama da atividade do grupo. As informações relativas aos debates e a sua característica mambembe permanecem como pressupostos adequados às necessidades de cada momento.
18
segunda, enquanto que, com relação à primeira, já havia sido deixado um lastro de
experiência socializante. O espetáculo permitiu o estabelecimento de uma dinâmica
do popular como forma, como conteúdo, a partir do tema, do local escolhido para as
apresentações e pela dinâmica de debates. Com a intensificação da relação com as
comunidades e da sensibilidade dos participantes do grupo para compreender a
necessidade de adaptação, surge naturalmente a idéia de construir também
coletivamente a obra teatral, com a participação de todos os envolvidos no processo
dos espetáculos: elenco, cenografia, iluminação etc. E também a partir das
observações do público, comentários de parceiros, membros das entidades e todas as
oportunidades de coletivização da criação artística foram muito bem aproveitadas,
para que o Teatro Popular União e Olho Vivo pudesse realizar por tanto tempo e
sempre com uma dinâmica de auto-transformação, a sua arte-militância. Por esse
motivo figura em incontáveis eventos de importância notável para a organização
artística e social.
19
1.2.Peças e espetáculos
São muitos os espetáculos do grupo. Corinthians, meu amor (1967), teve texto
final de César Vieira, resultante de trabalho coletivo, com direção de Sérgio Pimentel.
Estreou no Teatro Casarão, no centro de São Paulo. O texto foi publicado pela Editora
Júlio e as músicas do texto foram gravadas pela RCA Victor, com Inezita Barroso.
O Evangelho segundo Zebedeu (1970), com texto final de César Vieira, com direção
de Silney Siqueira, músicas de Murilo Alvarenga Júnior, cenários e figurinos de José
de Anchieta. O texto foi publicado na Revista de Teatro SBAT, número 404, e
também nas revistas Dialog, da Polônia; Conjunto, de Cuba; e Teatro da Juventude,
da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.
Rei Momo (1973), com texto final e direção de César Vieira, músicas de Carlos
Castilho, direção musical de Vitor Bertollucci Júnior, cenários e figurinos de Laura
Tetti e expressão corporal de Luíza Barreto Leite. Pesquisa de José Carlos Rston. O
texto foi publicado na Revista de Teatro SBAT, número 411, de 1976.
Bumba, meu queixada (1978), trabalho coletivo, com coordenação de texto de César
Vieira, músicas de José Maria Giroldo e cenários e figurinos de Laura Tetti. O texto
foi publicado pela Editora Grafitti (1980), e em disco pela Gravadora Marcus Pereira.
América, nossa América (1981), apresentação musical-teatral, tem disco pela Coleção
Clássicos da MPB, da Gravadora Marcus Pereira.
Morte aos brancos: a lenda de Sepé Tiarajú (1984), com texto final e direção de
César Vieira, músicas de José Maria Giroldo e expressão corporal de Luíza Barreto
Leite. Foi publicado pela Editora Tchê, Porto Alegre, 1987; Revista de Teatro SBAT,
número 456 e, em espanhol, pela Editora Casa de las Americas, Havana, Cuba.
Barbosinha Futebó Crubi: uma estória de Adonirans (1991), trabalho coletivo. Teve
como coordenadores César Vieira (texto final e direção), José Maria Giroldo
(músicas) e Graciela Rodrigues (cenários e figurinos). Foi publicado na revista
Teatro da Juventude, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1999.
20
Us Juãos e os Magalis (1996), com texto final e direção de César Vieira; cenários e
figurinos de Graciela Rodriguez; músicas de José Maria Giroldo. Foi publicado pela
Revista de Teatro SBAT número 500, em 1997.
Brasil Quinhentão !? (2000), seleção de textos do grupo, com direção de César
Vieira, cenários e figurinos de Graciela Rodriguez. O espetáculo apresenta
retrospectiva das encenações históricas do TUOV, com uma visão crítica dos 500
anos da "descoberta" do Brasil.
João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata (2001), tem texto final e direção de
César Vieira. Estreou em novembro de 2001. Foi publicado pela Editora Casa
Amarela, em 2003.
Entre a carreira de um espetáculo e outro, o TUOV realizou apresentações
musicais-teatrais: Império Brasílico; Apito de fábrica; Ivoti Pitá: uma flor vermelha
e Barbosinha F.C. II.
O grupo também recebeu diversos prêmios e estímulos financeiros: melhor
texto, melhor figurino e melhor música, pela APCA, Associação Paulista de Críticos
de Arte, em 1971; melhor espetáculo popular, também pela APCA, Associação
Paulista de Críticos de Arte,em 1973;
Prêmio Anchieta, pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 1978;
Prêmio Mambembe, pelo INACEN, Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1980;
Prêmio Casa de las Américas, de Havana, Cuba; Prêmio Ollantay, por CELCIT, de
Caracas, Venezuela, em 1985;
Prêmio Estímulo ao Teatro, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em
1995;
Bolsa de Dramaturgia pela FUNARTE, em 1996;
21
Prêmios Mambembe e Flávio Rangel, pelo Ministério da Cultura, em 1997;
Prêmio Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 1998;
Prêmio Carlos Miranda, pela Secretaria de Estado da Cultura, São Paulo; Prêmio
Encena Brasil; Prêmio Teatro Cidadão, da Secretaria Municipal de Cultura de São
Paulo, em 2001;
Lei de Fomento ao Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; Prêmio
Santo Dias de Direitos Humanos, da Assembléia Legislativa, pelas atividades do
TUOV em defesa do teatro popular, da liberdade e justiça social, em 2003
O grupo também participou de inúmeros festivais internacionais e outras
atividades:
Festival Internacional de Teatro de Nancy, França, em 1971;
Festival Mundial de Teatro de Wroclaw, Polônia, em 1973;
Festival Mundial da Juventude, Havana, Cuba, em 1978;
Apresentações em Lisboa, Portugal e temporada em Luanda, Angola, em 1981;
Festival Latino Americano de Teatro de Córdoba, Argentina, em 1984;
8º Festival Internacional de Teatro do Cairo, Egito; Espetáculo para o Papa João
Paulo II , em Castelgandolfo, Itália; ENTEPOLA, Encontro de Teatro Popular Latino
Americano, Encontro Internacional dos Excluídos, São Paulo, em 1996;
Encontro Nacional de Dramaturgos, SBAT, Rio de Janeiro, em 1998;
22
II Encontro de Teatro de Grupo, São Paulo; Campanha em defesa da sede do TUOV,
Participação no Bloco Carnavalesco Morro da Casa Verde, Campeão do Carnaval
Paulista, em 1999;
Trabalho junto à ONG Meninos do Morumbi, São Paulo, em 2002;
Colaboração no desfile do GRES Camisa Verde e Branco de São Paulo com samba
enredo sobre João Cândido, Criação do Grupo Fonteatro Olho Vivo do Jaraguá, a
partir do Programa Municipal de Fomento ao Teatro e Participação no Movimento
Arte Contra a Barbárie, em 2003;
Encontro Nacional do Movimento de Teatro de Rua, Fórum Mundial de Cultura, São
Paulo, Inauguração do acervo do TUOV no Arquivo Multimeios do Centro Cultural
São Paulo, em 2004;
12º Porto Alegre em Cena, Porto Alegre; apresentações do documentário Fala,
mulher!, realizado a partir do contato com a Escola de Samba Camisa Verde e
Branco, em 2005;
Eventos comemorativos do aniversário de 40 anos de resistência do TUOV;
Seminário sobre Dramaturgia coletiva, no Teatro de Arena, Funarte, São Paulo, em
2006;
Temporada de espetáculos em Guarulhos, em diversos bairros, em 2007.
A atuação do grupo, os eventos que participa e as obras que realiza, atestam o
conceito de popular, a coerência entre discurso e prática, a linguagem teatral como
forma de comunicação com comunidades periféricas e de excluídos socialmente e à
margem da produção artística dos grandes centros. O tipo de teatro desenvolvido por
grupos como o TUOV têm sido acusados de “panfletários” (como se não o fossem
tantas outras produções consideradas de alta qualidade). Mas pode-se rejeitar estas
23
pelo inverso: por não contemplarem assuntos de relevância social. Podemos recorrer,
ainda, à ampliação destes conceitos, no tocante ao TUOV em mais de quatro décadas
de atividade em relação a seu significado simbólico. Para adotarmos uma perspectiva
dialética ao refletirmos sobre a atuação assumidamente engajada do TUOV, vêmo-la
inserida no contexto em que os movimentos estudantis contam com o envolvimento
de intelectuais e artistas no concernente à relação entre cultura, arte e militância
política, ainda que se possa avaliar criticamente o posicionamento de alguns de seus
organizadores. Terry Eagleton (2005:11) reflete a propósito:
Se a palavra “cultura” guarda em si os resquícios de uma transição histórica de grande importância, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Se a cultura significa cultivo, um cuidado, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e que o mundo nos faz. É uma noção “realista”, no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão “construtivista”, já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que reconhecer que o termo 'cultura' já é uma tal desconstrução.
César Vieira, após ser presidente da UNE e acompanhar o movimento dos Centros
Populares de Cultura, os CPCs6, desenvolve seu trabalho teatral em parceria com o
grupo que virá a se tornar TUOV na década de 1970. Dessa forma, a visão da cultura
com seu poder transformador se mantém, apropriando-se cada vez mais do conceito
de popular a partir das adequações de forma e conteúdo de espetáculos, bem como
6 Os Centros Populares de Cultura eram vinculados à União Nacional dos Estudantes, formados por estudantes, intelectuais e artistas, e realizavam atividades político-culturais na década de 1960. Entre seus ativistas estavam Álvaro Vieira Pinto, Carlos Estevam, Ferreira Gullar, Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.
24
dos debates com a comunidade. Nas primeiras décadas se observam as discussões de
problemas dos locais e atualmente de questões relativas ao teatro, como atividade de
interesse das comunidades, provavelmente pela intensificação de ações públicas e de
grupos teatrais que envolvem apresentações artísticas em espaços alternativos,
oferecimento de oficinas e projetos de formação de público. A valorização da cultura
e mais especificamente da arte como forma de conscientização e enriquecimento
pessoal, e também como elemento potencializado pedagogicamente, tende a colocar o
termo cultura numa perspectiva mais abrangente. César Vieira socializa seu
conhecimento erudito e o utiliza a favor de uma arte popular, priorizando a
dramaturgia coletiva. Ao referir-se ao espetáculo Bumba, meu queixada:
(...)às vezes estréia um espetáculo com cenas que eu absolutamente não colocaria, mas aquilo é escolha do coletivo. Na estréia de um espetáculo encontram-se cenas que eu absolutamente não concordaria que pudessem estar lá, como autor, como dramaturgo. Mas faz parte da criação coletiva, porque representa um ponto de vista de alguém que foi adotado pela maioria, tendo votos contrários ou não. Daí passo a esposar aquela idéia, e tentar transformá-la, na hora que eu sou diretor, como uma coisa esteticamente factível. Adoto aquilo e jamais vou dizer que não estou de acordo com essa cena. Seria fugir às normas do coletivo.7
Como coordenador do processo de dramaturgia coletiva, César Vieira teve publicados
todos os textos encenados pelo TUOV, ainda que os espetáculos possam apresentar
adaptações, diferenciando-se dos textos em vários momentos. Dramaturgia coletiva é
o nome que se dá ao processo de construção do texto teatral realizado no grupo. Há
uma “ficha dramática”8. São confeccionadas inúmeras fichas que darão subsídios à
7 César VIEIRA. Entrevista concedida a Alexandre Mate e Simone Carleto, São Paulo, 29 de abril de 2008.
8 Formulário utilizado por integrantes do grupo durante o processo de pesquisa para a construção do texto do espetáculo. Base da dramaturgia coletiva, contém campos para preenchimento de informações: tema do espetáculo, pesquisador, fonte e data da pesquisa, sugestão de personagens, ação, época, conflitos e detalhes importantes para a elaboração da cena.
25
confecção do chamado “quadro dramático”9, base do texto que será elaborado pela
comissão de dramaturgia. As cenas são improvisadas posteriormente a partir do texto
já rascunhado. Após apresentações preliminares e registro de impressões, é feita a
versão final, adaptável a espaços convencionais e não-convencionais. Como resultado
desse processo têm-se a apropriação do conteúdo e da criação do espetáculo por parte
do grupo, comprometido com todas as fases de elaboração dos trabalhos.
Participantes das apresentações, da confecção de cenários, figurinos e adereços, da
montagem e desmontagem necessárias para a realização dos espetáculos nos bairros e
dos debates que ocorrem após a encenação, os atores têm a possibilidade de aprimorar
seu trabalho expressivo, a partir da prática dinâmica constante. Refletir a respeito da
opinião do público e das percepções dos espectadores e artistas do grupo permite a
afinação do espetáculo e o fortalecimento das relações solidárias no grupo. A
proposta do grupo em realizar espetáculos populares reúne as condições necessárias
para fazê-lo de forma que contemple os objetivos de comunicar-se com o público,
atraindo seu interesse para os temas significativos apresentados nos espetáculos do
TUOV. Sobre as opiniões da crítica a respeito dos espetáculos, na entrevista já
mencionada, César Vieira pontua:
Aprendi na escola de jornalismo, na aula de crítica, que um cara para analisar, falando especificamente do teatro, não de um livro, de um filme, de um quadro, tem que ter lido o texto e tem que ter um mínimo de noções de teatro. Para saber o que é marcação, onde a marcação confronta com o texto, onde segue e onde esquece o texto. Então, a primeira obrigação de um crítico seria ler esse texto, antes de analisá-lo. A segunda, é considerar todas as nuances que formam um espetáculo. Desde a expressão corporal, a marcação, a dicção, a iluminação e o som. Tem que considerar tudo isso, para depois apresentar a “palavra final”. Coisa que, infelizmente, eu acho não acontecer no Brasil(...) O crítico tem uma certa responsabilidade. Ele tem o jornal, tem seus leitores, para ter lido isso, analisado aquilo, vendo onde está a criação, até para respeitar o diretor. O diretor pode
9Apresenta um esquema que resume a coleta de dados para o espetáculo, contendo cenas, personagens, ações e conflitos. É um roteiro que reúne os temas apresentados para a criação do espetáculo.
26
até ter mexido em tudo. Teve época que eu falava: Que é isso? Está mudando a minha peça? (...) Teve diretor que tirou o circo de O Evangelho segundo Zebedeu. Você tira o circo e a peça fica de pé. Ficou uma peça católica. Então, eu não vou aceitar isso!
Texto e encenação são dinâmicos no TUOV. Os textos são transportados para
os palcos, adaptando-se em processo, considerando os elementos de criação
apontados. Existe a priorização do público popular, que interage com as obras
apresentadas, fazendo sugestões que muitas vezes serão incorporadas ao espetáculo
As peças que o dramaturgo César Vieira assina, pela organização do trabalho
coletivo, são montadas pelo grupo e podem ser cedidas para montagens de outros
grupos. Um dos objetivos com as publicações mais recentes10 é justamente a
possibilidade do conhecimento e estudo destes textos por grupos de teatro formados
em comunidades ou para participantes de oficinas de teatro.11
10 Em Guarulhos, no ano de 2008, foram editados os textos teatrais montados pelo Teatro Popular União e Olho Vivo, em cinco volumes: volume 1 O Evangelho segundo Zebedeu; volume 2 Corinthians, meu amor e Rei Momo; volume 3 Bumba, meu queixada e Morte aos Brancos; volume 4 Barbosinha Futebó Crubi e Us Juãos i os Magalis; volume 5 João Cândido do Brasil. Este projeto foi financiado pelo Funcultura (Fundo Municipal de Cultura da Prefeitura de Guarulhos, coordenado pela Secretaria de Cultura) que aprovou projeto apresentado pelo Centro de Arte e Cultura Milton Santos, coordenado pela professora Célia Firmiano Virgino. Foram disponibilizados exemplares da coleção e realizadas palestras sobre a trajetória do grupo nos locais de desenvolvimento de atividades culturais e oficinas de teatro, como Pontos de Cultura (em 2008, funcionavam 17 na cidade, em decorrência da parceria realizada entre a Prefeitura de Guarulhos e o Governo Federal, através do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura – Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Ministro da Cultura Gilberto Gil) e outros equipamentos da Secretaria de Cultura. Nestes locais foram realizadas apresentações do TUOV no ano de 2007, pelo Programa Teatro Aberto, mantido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Guarulhos, de 2001 a 2008 – período em que Elói Pietá foi o prefeito da cidade e Edmilson Souza Secretário de Cultura. Os Pontos de Cultura estavam localizados nos seguintes bairros: Ponto de Cultura Cabuçu, Ponto de Cultura Cidade Jardim Cumbica, Ponto de Cultura Jardim Aeródromo/Lavras/Jardim Soberana, Ponto de Cultura Jardim Angélica, Ponto de Cultura Jardim Cumbica, Ponto de Cultura Jardim Jovaia/Cocaia, Ponto de Cultura Jardim Rosa de França, Ponto de Cultura Jardim Santa Emília/ Taboão, Ponto de Cultura Jardim São João /Lenize, Ponto de Cultura Jardim Uirapuru, Ponto de Cultura Parque Cecap, Ponto de Cultura Parque Continental, Ponto de Cultura Parque das Nações/Jurema, Ponto de Cultura Pimentas, Ponto de Cultura Ponte Alta, Ponto de Cultura Vila Augusta e Ponto de Cultura Vila São Rafael.
11 Nos mesmos locais, a Secretaria de Cultura de Guarulhos manteve, de 2001 a 2008, o Programa Oficinas Culturais, realizando cursos nas áreas de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, com oficinas de canto coral, capoeira, cerâmica, circo, dança afro, dança contemporânea, dança de salão, dança para crianças e
27
O grupo pratica em sua organização interna o que divulga. Todos são
comprometidos com a atuação artística, em sua perspectiva ampla, a de uma atuação
que prime pela valorização do cidadão na coletividade. Ou seja, o popular não se
apresenta apenas na teoria, nos coloridos dos figurinos e cenários, ou ainda na música
das manifestações tradicionais da cultura brasileira, mas na opção pelo popular, na
tomada de partido a favor das causas sociais e pelo “desfraldar estético” da bandeira
do socialismo.
adolescentes, desenho, hip-hop (DJ - discotecagem, MC – mestre de cerimônoias, break – dança e grafite)musicalização para crianças, percussão, pintura, violão, teatro para crianças e adolescentes. Em atividades de teatro foram utilizados os textos do TUOV para conhecimento dos particpantes e a realização de exercícios diversos.
28
1.3. César Vieira, o Idibal Pivetta, o César Vieira, o Idibal Pivetta, o César Vieira...
O nome César Vieira é o nome artístico do advogado Idibal Pivetta. Foi um
dos pseudônimos utilizados pelo dramaturgo, além de Id Almeida, Igor Palik. O
currículo de César Vieira, encontrado no sítio com informações sobre o grupo e em
suas publicações, começa da seguinte forma: “Nome: Idibal Pivetta. Residente em São
Paulo, S.P. Fundador do Teatro Popular União e Olho Vivo. 41 anos de TUOV”. Daí
em diante, segue com toda a sua atuação, de advogado a preso político, de professor a
ator, de estudante a diretor. Uma trajetória militante. Nasceu em 28 de julho de 1931,
em Jundiaí, Estado de São Paulo. Advogado formado pela PUC, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e jornalista formado pela Faculdade de Jornalismo
Cásper Líbero, em São Paulo. No seu histórico, acumula diversos prêmios, cargos e
funções de relevância política e social: Prêmio Literário IV Centenário da Cidade de
São Paulo, em 1954; Presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto da Faculdade
Direito da PUC, SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), em 1957;
Presidente do Centro Acadêmico Cásper Líbero, da Faculdade de Jornalismo, SP, em
1958; Presidente em exercício da UNE, em 1958; Membro da Casa Civil do Estado de
São Paulo, em 1960; Prêmio do Seminário Carioca de Dramaturgia, em 1967; Melhor
Autor Nacional, pela APCA, em 1970; Prêmio Casa das Américas, Havana, Cuba, em
1982; Prêmio Ollantay, CELCIT, Caracas, Venezuela, em 1984; Prêmio Mambembe,
FUNDACEN (Fundação Nacional para as Artes Cênicas), em 1986; Prêmio Vladimir
Herzog, do Sindicato dos Jornalistas, São Paulo, em 1988; Advogado de Presos
Políticos, de 1964 a 1988. Foi detido por 90 dias em maio de 1973 em defesa dos
presos políticos; Coordenador da Comissão de Direitos Humanos pela OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil), em 1990; Presidente da APART, Associação Paulista de
Autores Teatrais, em 1991; Conselheiro da OAB, Ordem dos Advogados do Brasil,
SP., em 1994; Cidadão Honorário de SP, pela Câmara dos Vereadores, em 1994;
Presidente da SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em 1995; Medalha
29
Pedro Ernesto da Câmara dos Vereadores, RJ, em 1996; Prêmio Estímulo de Teatro,
da Secretaria de Estado da Cultura, SP , em 1995, Prêmio Dramaturgia, FUNARTE -
MINC (Fundação Nacional das Artes – Ministério da Cultura), em1996.
Em 41 anos de carreira como dramaturgo, escreveu as seguintes obras: Mar de lama
(novela); Amores de Napoleão (novela); Alexandre de Gusmão (biografia); Santos
Dumont (biografia);O julgamento de Mané Garrincha (poesias); Em busca de um
teatro popular (ensaio); Em busca da verdade eleitoral (ensaio). Para teatro,
escreveu: Um uísque para o Rei Saul; O Evangelho segundo Zebedeu; Corinthians,
meu amor; O elevador; O transplante; Alguém late lá fora; Rei Momo; Bumba, meu
queixada; Morte aos brancos: a lenda de Sepé Tiarajú; Barbosinha Futebó Crubi:
uma estória de Adonirans; Us Juãos i os Magalis; Brasil Quinhentão!?!!; João
Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata.
Nas apresentações do TUOV, César Vieira chega com o grupo e, enquanto o elenco
prepara figurinos, cenários, adereços, ele coordena todo o processo de montagem,
conversa com os organizadores da apresentação no bairro, com o público, escolhe
com o grupo o melhor local para a montagem. É o mestre de cerimônia, apresentando
o grupo e a história que irão contar. Durante o espetáculo, observa a reação do
público e, ao final, apresenta o elenco, tomando cada um pela mão, dizendo nome,
idade, profissão e tempo como integrante do grupo. É uma forma de valorizar os
atores, pois cada um é importante para o sucesso do grupo e ao propósito de levar
espetáculos de qualidade às comunidades. O espectador se identifica com os atores
por serem pessoas comuns, como ele, desmistificando a relação que costuma haver
entre público e artistas, considerando o “estrelismo” de muitos daqueles que atuam na
televisão e nos palcos. Especificamente no TUOV, os atores estão mais próximos do
público e, embora tenham larga experiência, são considerados amadores. No TUOV,
qualquer pessoa comprometida com as atividades de pesquisa e artísticas pode vir a
integrá-lo. Essa característica possibilita qualidade ao trabalho e legitimidade para
estabelecer o diálogo com pessoas da classe popular, também representada hoje,
30
segundo César Vieira, em 70% do TUOV; diferentemente do seu início, quando 70%
das pessoas eram de classe média. É uma inversão da lógica de perpetuação da
diferença entre os que têm acesso à produção cultural e aos que estão à margem dela,
para torná-los seres ativos de sua construção.
César Vieira abre mão muitas vezes de sua opinião individual, diante da necessidade
de construir algo para além do estético. Sua história de vida, o contato cotidiano com
os eventos da comunidade e os religiosos, a trajetória escolar, o contato com o circo, o
teatro, a história, a necessidade de contestar, foram fontes de sua dramaturgia. Esse
conjunto de vivências darão ao artista arcabouço de suas opções artísticas e políticas.
Vieira conta que, na sua infância e adolescência, em Jundiaí, participava dos eventos
que aconteciam na comunidade, como a Festa da Uva, as missas aos domingos, o
footing (quando jovens de várias classes passeavam na praça), as sessões do cinema
(Cine Politeama), o futebol de várzea e os bailes de carnaval. Depois mudou com os
pais para o Tatuapé e passou a estudar no Colégio Arquidiocesano. Daí a vivência com
ladainhas e missas, presentes em muitas das peças que escreve, como também aspectos
do futebol e da religiosidade. A primeira vez que viu teatro foi no colégio, uma história
sobre Maurício de Nassau. Frequentou também com sua tia o Teatro Brasileiro de
Comédia e o Teatro Cultura Artística. Um professor de Língua Portuguesa, Felipe
Jorge, o incentivou a escrever. Já no Colégio Bandeirantes, conheceu peças de
Shakespeare, o que, segundo ele, foi um motivo para que haja abordagem de assuntos
de natureza histórica na dramaturgia que produz. A experiência de vida de César
Vieira o tornou um homem de teatro, preocupado com as questões historicistas,
socialmente relevantes e com a divulgação e afirmação da cultura popular brasileira, a
busca de um teatro popular. Vieira lembra muito das feiras livres em Jundiaí, das falas,
das cores. Tanto em Jundiaí como no Tatuapé, teve oportunidade de assistir a
espetáculos no circo. Em Jundiaí, chegou a assistir A paixão de Cristo mais de dez
vezes. Gostou muito dos espetáculos de variedades e truques circenses. A cultura
popular, para Vieira e o grupo, é uma forma legítima de expressão, pura e bastante
31
efetiva, porque se torna um forte vínculo com o público e para aqueles que a praticam.
Ele diz:
Procuramos assimilar, guardar a beleza, a maravilhosa transparência dos símbolos populares, desses símbolos que de tão claros parecem ter jorrado de uma fonte de água cristalina. Procuramos ficar envolvidos na verdade do sonho, da fantasia que, lentamente, vai se transformando em realidade (...) Esses símbolos verdade; esses sonhos-vida; essa fantasia-luta da qual sairá o único e inequívoco caminho da arte e da libertação.12
Nesse momento, verifica-se a idealização da cultura popular como elemento de
valorização nacional. Mais adiante haverá a conformação desses elementos da cultura
popular aos ideais do grupo, atraindo o público com suas cores, sonoridade e
desenvoltura, próprios do universo popular, veiculando o tema da greve, buscando
conscientizar o público, na maior parte das vezes nessa década, de trabalhadores.
Como presidente da UNE, União Nacional dos Estudantes, em 1958 e a partir da atuação dos CPCs, César Vieira passa a vislumbrar a atividade teatral do movimento estudantil que, a exemplo do espetáculo Morte e vida Severina, da obra de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque, dirigido por Silney Siqueira, se torna a grande possibilidade artística de intervenção social. Vieira comenta, em entrevista já citada que:
(...) Esse espetáculo foi um grande sucesso e colocou o teatro universitário no mesmo nível do teatro profissional. E com mais profundidade, devido ao seu conteúdo ideológico. (...) Aí o pessoal do XI de Agosto me procura porque queria fazer um espetáculo refundando ou praticamente fundando o novo Teatro do XI de Agosto. Então eu estava terminando uma peça chamada o Evangelho segundo Zebedeu.
12 César VIEIRA. Bumba, meu queixada. São Paulo: Grafitti, 1980, p.10.
32
Esse é um momento de efervescência cultural e artística, no qual os intelectuais e
artistas discutem acerca da eficácia da arte para a conscientização política. Partia-se do
pressuposto de que as massas eram doutrinadas com idéias que nem sempre
correspondiam aos anseios desta mesma massa. Cogitavam-se então as possibilidades
de atuação artística e cultural, junto às massas tidas como alienadas, aos portadores da
cultura popular tradicional com suas manifestações tidas como alienantes e tudo o que
não fosse explicitamente comprometido ideologicamente. Conforme defende Eagleton
(2005:41-12):
Como idéia, a cultura começa a ser importante em quatro pontos de crise histórica: quando se torna única alternativa aparente a uma sociedade degradada; quando parece que, sem uma mudança social profunda, a cultura no sentido das artes e do bem viver não será nem mesmo possível; quando fornece os termos nos quais um grupo ou povo busca sua emancipação política; e quando uma potência imperialista é forçada a chegar a um acordo com o modo de vida daqueles que subjuga... A cultura, em outras palavras, chegou intelectualmente a uma posição de destaque quando passa a ser uma força politicamente relevante.
Daí considerarmos os extremos desses encaminhamentos, a partir dos quais se
aprisiona a arte em critérios excludentes de pessoas e possibilidades de ampliação de
referências. César Vieira demonstra respeito à diversidade como riqueza e exercício da
democracia:
Acho que o grupo dentro da sua proposta, dentro das possibilidades, consegue fazer que esse ideal permanente, através das transformações estéticas que sofre, das mudanças de praticidade, consegue atingir seu objetivo, fazendo um espetáculo que colabora para a transformação social. Um espetáculo esteticamente bem feito. Sempre temos muito cuidado em fazer esteticamente bem feito. Vai ver que tem gente que não gosta. A gente reconhece que tem alguns desníveis de ator, cada dia menos. Mas faz parte do jogo. (Entrevista citada)
33
Imagem 2: Elenco de João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata, no Abrigo Boracéa, em São Paulo, que atende pessoas em “situação de rua”. Foto de Graciela Rodrigues.
A versatilidade dos espetáculos permite apresentações em locais alternativos. A forma de cortejo popular garante a convocação do público para as apresentações, com intervenções populares características: instrumentos, canto, cores e interatividade.
34
Imagem 3: Barbosinha Futebó Crubi em versão para a rua. Foto de Graciela Rodrigues.
A carnavalização se manifesta a partir do tratamento futebolístico, da acidez e do sarcasmo. O TUOV intervém no cotidiano, tanto pela forma, como pelo conteúdo da apresentação de suas peças.
Por formação a gente pertence a uma pequena burguesia cultural e vem por isso impregnada de uma série de preconceitos. Por mais que se lute eles estão aí e são resultado de anos de intoxicação. Os preconceitos resultantes de sua intoxicação estão também ativos em nossa formação teatral. Para romper com eles só existe um caminho: ir às origens, às origens populares.Trecho de entrevista de César Vieira à Folha de S. Paulo, p. 39. s.d., provavelmente 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.
35
2.A estética de um teatro de militância
Ao estudar essa “estética de militância”, é necessário lembrar dos movimentos
de ruptura que possibilitaram que a arte mobilizasse para além da contemplação e da
mera reprodução da realidade. O conceito de realidade pode ser relativizado a partir
de um ponto de vista. Desde o surgimento da perspectiva na representação plástica e,
posteriormente, da quebra literal desta para a apresentação do cubismo, tem-se a
concretização das possibilidades de se ver, ao mesmo tempo, vários ângulos de uma
mesma cena e, consequentemente, de uma mesma situação. Esse desenvolvimento e
as aquisições das vanguardas para a realização do teatro moderno e contemporâneo
permanecem nas criações artísticas, assim como outras tantas ainda mais antigas.
Podemos pensar sobre a utilização, apropriação e re-elaboração de expedientes e
características gerais da arte em diversos períodos da história, que se coadunam às
necessidades expressivas que surgem de tempos em tempos, sempre relacionadas ao
desejo de permanência ou de mudanças no âmbito social. Desse modo, a arte (ainda
que possa dizer que está “acima do bem e do mal”) se propõe, sempre, a tornar
explícita uma idéia, uma visão de mundo. Renato Ortiz13 reflete:
A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre mudanças profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano. Se o modernismo é considerado por muitos como um ponto de referência, é porque este movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava esparsa na sociedade.
Neste período, intelectuais e artistas burgueses viajavam à Europa e tinham acesso a
uma fruição dos movimentos de vanguarda. Essas influências manifestam-se em suas
obras, costumes e realização de eventos que possibilitaram uma efervescência cultural
13 Renato ORTIZ. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, pp. 39 - 40.
36
e a troca de experiências entre eles, sem, no entanto, representar uma organização da
atuação política, ainda que de inestimável contribuição, por abordar as temáticas
sociais em obras artísticas. O tema da brasilidade nacionalista foi bastante difundido
na música, na pintura, em várias linguagens artísticas, inclusive no teatro. Na década
de 1950, a criação do ISEB14 e suas produções intelectuais valorizam o nacionalismo
sem valorizar o cidadão brasileiro, ainda hoje apresentado de forma confusa. A idéia
de preservação e difusão cultural dificilmente passa pela defesa daqueles que
produzem a arte e a cultura, da discussão acerca da democratização do acesso a essa
produção e da garantia de uma convivência que possibilitará o desenvolvimento
subjetivo da arte e da cultura. Ortiz (2006:47-48) contextuliza:
Na esfera cultural, a influência do ISEB foi profunda. Ao me referir a este pensamento como matriz, o que procurava descrever é que toda uma série de conceitos políticos e filosóficos que são elaborados no final dos anos 50 se difundem pela sociedade e passam a constituir categorias de apreensão e compreensão da realidade brasileira. No início dos anos 60 dois movimentos realizam, de maneira diferenciada, é claro, os ideais políticos tratados teoricamente pelo ISEB. Refiro-me ao Movimento de Cultura Popular no Recife e ao CPC da UNE. Se tomarmos a título de referência dois intelectuais proeminentes desses movimentos, Paulo Freire e Carlos Estevam Martins, observamos que as relações com o ISEB são substanciais. Carlos Estevam foi assistente de Álvaro Vieira Pinto e trabalhava no ISEB no momento em que assume a direção do CPC.
As vanguardas artísticas prepararam o terreno para a atuação engajada nas décadas
seguintes; os intelectuais do ISEB difundem pressupostos que servirão como base na
atuação do CPC da UNE. Os conceitos de povo e de cultura popular defendidos
14 O Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1955, contava com a participação de intelectuais de diversas orientações político-ideológicas, entre eles Hélio Jaguaribe, Ewaldo Correia Lima, Cândido Mendes de Almeida, Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto. Este esteve à frente do Instituto em sua última fase, juntamente com Nelson Werneck Sodré, até sua extinção com a instauração da ditadura militar.
37
nesses âmbitos, intrinsecamente relacionados aos posicionamentos ideológicos
desses intelectuais, refletem o momento e a necessidade crescente da compreensão
desse fenômeno de engajamento de produtores de cultura na necessidade de
transformação social. Então, a criação dos Centros Populares de Cultura, como
veremos, tratará da inclinação da apropriação da cultura do povo, sem, no entanto,
valorizá-la como expressão autêntica, mas via de regra como manifestação
conservadora e atrasada. Além disso, vai proporcionar a difusão da idéia de que toda
arte não-engajada é alienante. Ortiz (2006:48) cita:
Mas a influência isebiana ultrapassa o terreno da chamada cultura popular, ela se insinua em duas áreas que são palco permanente de debate sobre a cultura brasileira: o teatro e o cinema. É suficiente ler os textos de Guarnieri e de Boal sobre o teatro nacional para se perceber o quanto eles devem aos conceitos de cultura alienada, de popular e de nacional. Fala-se, assim, da necessidade de se implantar um “teatro nacional” em contraposição a um “teatro alienado”, cujo modelo seria o Teatro Brasileiro de Comédia.
A necessidade da arte como instrumento de conscientização tem relação direta
com a valorização de ideais socialistas difundidos pelo comunismo, do qual alguns
intelectuais isebianos foram partidários. Para contextualizar filosoficamente, Renato
Ortiz (2006: 52) cita Balandier:
(...) a consciência é apreendida numa situação social que se desenvolve acusando as relações de dominador a dominado, os antagonismos entre esses dois termos – ela conduz a uma tomada de consciência que aspira a uma transformação radical da situação, a um progresso. Isto Hegel já exprimiu afirmando que a servidão do trabalhador é a fonte de todo progresso humano, social e histórico. Marx, em seguida, anunciou o papel histórico do proletariado, papel que não depende somente da evolução das forças produtivas materiais e das relações de produção, mas ainda de uma tomada de consciência que permite constituir o proletariado em classe.
38
Ortiz (2006:59) enfatiza uma condição: “Se, como dizem alguns isebianos, o
Ser do homem colonizado está alienado no Ser do Outro, é necessário dar início a um
movimento que restitua ao colonizado a sua 'essência'. Isto só pode ocorrer se o
discurso extravasar do terreno filosófico para o domínio público.”
Daí a influência na atuação do CPC que, de acordo com a reflexão de Ortiz e
pode-se inferir, a partir da opção pela arte como instrumento de comunicação e
expressão desses ideais, a prática implementada pelos CPCs vai além da elaboração
intelectual. Embora continue a considerar uma elaboração artística desprovida de
política explícita como alienada. Trata-se da junção entre o ideário dos intelectuais do
ISEB e as experiências artísticas das vanguardas relacionadas às abordagens
temáticas e formalistas do chamado popular, a saber, dos assuntos relacionados às
condições de vida do povo e de suas manifestações culturais compreendidas como
expressão do nacional. Vejamos a explicação de Renato Ortiz (2006: 68-69):
O que é interessante na experiência do CPC é que ela está teoricamente vinculada à filosofia isebiana, muito embora seja uma radicalização à esquerda dessa perspectiva. (...) Para o ISEB os intelectuais têm um papel fundamental na elaboração e na concretização de uma ideologia do desenvolvimento; são eles que devem explicitar o processo de tomada de consciência, e, por conseguinte, viabilizar o projeto de transformação do país.
Já a pesquisadora Silvana Garcia15, que tratou especificamente sobre o teatro
da militância, considera os Centros Populares de Cultura da UNE como a versão
cabocla do agitprop (agitação e propaganda) na Rússia pós-revolução. A autora cita a
Rússia como berço do fenômeno em que os fatos políticos determinam a conjuntura
para que seja instituído o teatro político, com apoio do Partido Comunista e do Estado
Soviético. Ou seja, os fatos políticos no mundo e no Brasil determinaram as
possibilidades e abriram campo para a atuação artística engajada politicamente. Além
15 Silvana GARCIA. Teatro da militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 2004.
39
disso, marcou a utilização da arte como forma de comunicação popular, independente
dos pressupostos que ofereceram a base para essa opção. As formas diversificadas de
atuação artística e a convivência entre artistas e intelectuais, arte e política,
basicamente por coincidências de interesses ou ainda de inclinações semelhantes em
termos de opção ideológica, demonstraram caminhos efetivos de propagação de idéias
e mobilização popular. Com Silvana Garcia (2004:3), completa-se este pensamento:
“A presença de uma 'massa' de operários sem acesso à produção artística estimulou a
reflexão sobre a arte, em especial o teatro, enquanto meio pelo qual se poderia
mobilizar os trabalhadores e fazer avançar a luta revolucionária.”
Porém, esse caráter utilitário da arte abrirá precedentes para a discussão da
necessidade da independência da arte como forma de expressão e não a serviço de
uma idéia ou de um ideário mais complexo. Para Ernst Fisher16, a arte é
historicamente condicionada e, ao mesmo tempo, guarda mecanismos de superação:
(...) toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. Jamais devemos subestimar o grau de continuidade que persiste em meio à luta de classes, apesar dos períodos de mudança violenta e de revolução social. Como acontece com a evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade. Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós – frequentemente sem que as percebamos – e de repente vêm à superfície e começam a nos falar (...)
Ao mesmo tempo em que a arte é democratizada por extrapolar os espaços
convencionais e circuitos comerciais, passa a se desenvolver como linguagem
independente de interesses e financiamentos. Seu caráter amadorístico surge em
16 Ernst FISHER. A necessidade da Arte: uma interpretação marxista. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p.17.
40
contraponto à arte elitizada e relacionada ao sublime, ou às belas artes. As formas
artísticas conhecidas são subvertidas para dizer do povo aquilo que se pretende
transformar, questionar. Investigam-se novas possibilidades de abarcar conteúdos
sociais. Nas formas populares vão ser buscados os modos efetivos de comunicação
com o povo. Esse desenvolvimento em função dos assuntos que se quer contemplar
condiciona a criação artística aos temas e necessidades da revolução ou do
pensamento revolucionário. Silvana Garcia (2004:10) comenta:
No princípio, as estruturas dramáticas tradicionais persistem ao lado das vacilantes tentativas de instituição de uma nova linguagem e das soluções intermediárias de adaptação de velhas formas aos conteúdos revolucionários. No repertório dos inúmeros grupos que atuam excursionando pelas cidades e fronts, convivem o melodrama – agora tingido de vermelho pela mensagem comunista -; as montagens de textos e poesias e todas as versões imagináveis de manifestações corais (recitação, canto e dança); os esquetes e as cenas curtas, inspirados no cabaré literário e nas tradições populares, como o teatro de feira e o guignol russo, além da forma por excelência do agit soviético, o jornal-vivo, desenvolvido a partir das leituras orais do noticiário da Revolução.
Essas características influenciaram na construção da estética do TUOV, de um
modo particular de teatro sob a tônica jornalística, reportando a realidade social.
Afinal, César Vieira é jornalista. Como advogado colabora para trazer sempre à tona
uma discussão sobre justiça, abordando constantemente dois lados ou perspectivas de
uma mesma situação. O que possibilita em suas obras um trânsito e a identificação e o
antagonismo entre opressores e oprimidos.
As aproximações entre vanguarda e agitprop para Silvana Garcia (2004:34),
são possíveis a partir da vocação popular de ambos. Na Rússia, os movimentos em
comum assimilaram as tradições da arte e do teatro populares russos:
41
(...) mobilidade cênica não atrelada a padrões estéticos, ideal de teatro militante e experimental, vinculado ao presente, sem pretender sua transposição mimética para a cena; predominância do jogo do ator – ou do atuante, se considerarmos que a quase totalidade dos participantes dos núcleos agitpropistas não tinha qualquer experiência anterior; rompimento entre palco e platéia e intenção explícita de provocar a reação crítica e ativa do espectador.
Da Alemanha do final da Primeira Grande Guerra, Silvana Garcia (2004:77)
destaca a atuação de Erwin Piscator à frente do teatro proletário, que buscava romper
com o modo de produção capitalista, alterando relações hierárquicas dentro dos
grupos e na relação com o público.17 A situação política da URSS e dos países
capitalistas, o teatro operário militante busca superar conjunturas, a partir de suas
manifestações como legítimas da classe trabalhadora, compreendida como classe
responsável pela tomada de posição contra o sistema vigente e que vai intervir na
realidade. Para tanto, utiliza-se do teatro e de outras manifestações artísticas como
forma de contestação e mobilização das massas de trabalhadores. Para Garcia
(2004:77): “Aqui, o teatro é um meio – instrumento de ação política que pretende
tornar-se fim - produto expressivo ideologicamente adequado de uma determinada
categoria social.”
Manifestações como o cabaré, o circo, a revista, são utilizados como base, com
estruturas mais simples de cenas, esquetes, pantomimas e sainetes, sendo que há
utilização de quadros independentes para que se construa uma dramaturgia. Há uma
busca da desalienação, proporcionada pelas relações de trabalho e pela ilusão do
17Garcia (2004:56) cita que “ (...) o Teatro Proletário percorreu a periferia de Berlim com seus espetáculos. Piscator valorizava o bom desempenho técnico do ator para a eficácia política do espetáculo, tendo trabalhado apenas com operários no elenco, enquanto não surgiram profissionais identificados com a ideologia da proposta.”
42
capitalismo como sistema que tudo pode. Silvana Garcia (2004:61) comenta:
“Piscator também utilizava procedimentos tradicionais do cabaré e do circo, entre
outros expedientes, como o jogo de opostos entre sério e cômico, burguesia e
proletariado, construindo um raciocínio junto com o público.”
O TUOV procura construir a necessidade de uma utopia que muitos não verão
realizada. Valores como solidariedade, respeito e direito à diferença são postulados
em práticas coletivas que desejam transformar-se. Essa dinâmica é possibilitada
internamente aos grupos teatrais como o TUOV e individualmente por seus
participantes que, inseridos no grupo, reelaboram constantemente suas práticas de
modo crítico e autocrítico, podendo dar testemunhos das vivências significativas e das
mudanças que proporcionam aos outros e a si mesmos.
O desenvolvimento da arte engajada, no mundo e no Brasil, permitiu que fosse
transformada também esta primeira inclinação ideológica que se sobrepunha ao
estético, ao conceito de obra bem-feita que, priorizando a criação artística,
possibilitou a elaboração das produções, comprovando que a arte não precisa se
descaracterizar como tal porque veicula conteúdos de natureza social e que as formas
eruditas não são inacessíveis ao povo. Pelo contrário, é fundamental que se possibilite
o acesso a quaisquer formas de arte (tanto no que diz respeito à fruição, como à
produção) independente da classe social.
Obviamente, esta idéia é praticamente recente e muitas vezes rechaçada, o que
evidentemente interessa ainda àqueles que se utilizam do acesso aos bens culturais
como forma de status, sendo comum observar salas do teatro convencional ou
comercial lotadas de pessoas bem vestidas e que, mesmo que não tenham nenhuma
afinidade intelectual com obras apresentadas.
O desenvolvimento da arte como meio de expressão humana e da aceitação de
sua função de “inutilidade”, a partir do conceito de arte liberta de imposições de
qualquer natureza, até para que não seja também, nesse sentido, acusada de arte
menor por se assumir como arte posicionada ideologicamente a favor da
43
transformação social. Tema comumente dado como desgastado, mas cada vez mais
necessário, até para que se defenda sua atualidade quando, em tempos de
globalização, há uma insistência em desconstruí-lo para incutir a idéia de
possibilidades generalizadas, sendo que há uma generalização mundial da pobreza e
da alienação.
Da arte como imitação da realidade à arte como descompromisso com a
realidade social e a partir de especulações de natureza diversa, podemos retomar
alguns conceitos filosóficos para resignificar o belo. Nas obras do TUOV, o belo se
apresenta na surpresa de seu conteúdo contextualizado historicamente a partir das
pesquisas temáticas, elaborado esteticamente a partir de uma inspiração do popular,
construído com e para pessoas da classe popular. A discussão dessa beleza
reconhecida através da realização de uma estética a serviço da ética, como o
postulado pelo grupo, é essencial na caracterização do trabalho artístico, composto
por elementos objetivos e subjetivos. A apreensão das questões objetivas podem se
dar a partir da compreensão da fábula e a elaboração subjetiva pode se dar desde a
reminiscência ativada pelo contato com elementos da cultura oral e tradicional, até
pela criação de imagens poéticas na composição dos cenários, figurinos e no trabalho
dos atores na reconstituição crítica de personagens de nossa história, reais ou fictícias.
Cabe retomar idéias de Ariano Suassuna (2008:274):
Assim, poder-se-ia responder aos etnólogos e psicanalistas que a Arte nem é somente uma tentativa mágica de capturar o real, nem uma forma de conhecimento, nem é apenas resultado dos traumas, neuroses e frustrações do artista. Ela é tudo isso e mais alguma coisa. A inteligência está presente na Arte, mas o papel fundamental, na criação artística, é desempenhado pela imaginação criadora. Existe muita coisa de intelectual na criação e na fruição da Arte; existe mesmo uma forma de conhecimento na Arte, mas é uma forma de conhecimento bastante diferente das que são exercidas pela Ciência e pela Filosofia: é um conhecimento poético, concreto e resultante da simples apreensão, quando a inteligência, movida pela Beleza do que aprendeu, se põe naturalmente e sem esforço a refletir sobre o que viu.
44
A busca de uma linguagem que possibilite aguçar o senso crítico, veicular
informações e contemplar a necessidade estética, de modo que a obra teatral
possibilite o ato de educar e divertir, ao mesmo tempo, tem ressonância constante no
modo de produção do TUOV que, com os procedimentos e a metodologia
desenvolvida para a produção e circulação dos espetáculos, consegue que o público
dos bairros da periferia e populares, se interesse e goste de seu teatro. Essa
funcionalidade é perseguida a partir da técnica desenvolvida pelo grupo, mas,
sobretudo, pelo amadurecimento estético a partir do contato constante com as
comunidades, durante as apresentações, debates e outras atividades realizadas pelo
grupo nos locais por onde passa e pelos projetos desenvolvidos ao longo de sua
carreira. Mais importante que a elaboração estética esvaziada de sua legitimidade
coletiva, até para que se configure a apropriação da funcionalidade que terá o
espetáculo ao ser apresentado à comunidade, é a deliberação coletiva, com opiniões e
atuação na elaboração artística desde a pesquisa dos temas até a criação das
personagens. Um procedimento fundamental que concretiza uma estética que, do
ponto de vista ético, busca coerência entre o discurso (proposta de conscientizar
socialmente) e a prática (vivenciar internamente procedimentos socializadores). Para
refletir sobre possíveis divergências do gosto ou do reconhecimento da excelência do
trabalho estético do grupo, retomo Suassuna (2008:29) clara ou confusa, racionalista
ou anti-racionalista, todo artista tem sua estética particular; é formulando uma estética
que os pensadores irracionalistas a combatem; em qualquer dos casos, portanto, tanto
uns quanto outros professam uma estética e é dela que se valem para combater a
Estética.”
45
O estético pode, assim, caracterizar-se como elaboração sensível de conteúdos
que artisticamente traduzem-se como elemento fundamental da expressividade
humana que, retomando funções de ritualidade e convivência comunitária, se revelam
enquanto possibilidade de socialização da experiência cidadã. As questões
relacionadas ao gosto podem estar embasadas em uma determinada concepção de
estético que, ao prescindir de paradigmas nos quais a arte aparece como
descomprometida, aparenta, na verdade, negar sua própria parcialidade em
determinadas obras, sendo que todo artista, também como filho de sua época,
transmite informações, sedimenta ideologias e concretiza visões de mundo por
intermédio de sua criação artística, ou ainda estética.
Aqui o termo estético, segundo Ariano Suassuna, do ponto de vista filosófico,
oferece embasamento para a discussão em torno de produções teatrais assumidamente
engajadas que buscam temas de relevância social oferecidos na fruição das formas
teatrais. O União e Olho Vivo atravessa quatro décadas nessa perspectiva, tendo
influenciado diversos grupos afins que, independentemente das aproximações e
distanciamentos possíveis entre a natureza dos trabalhos, postulam a transformação
social na perspectiva do combate ao capitalismo e do aguçar da consciência crítica de
artistas e espectadores.18
182007. Na sede do Teatro da USP (TUSP), a Cia. do Latão, num encontro com atores de outras companhias: Folias d'Arte, Cia. São Jorge de Variedades e Núcleo Argonautas, de São Paulo e Teatro do Pequeno Gesto, do Rio de Janeiro - apresentou O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, acerca da legitimidade do direito à posse de bens materiais e afetivos, em disputas entre privilegiados e gente humilde. O espetáculo inicia com uma projeção do trabalho desenvolvido pela companhia junto ao Movimento Sem-terra, no assentamento Carlos Lamarca, Sarapuí, São Paulo. Lá, o Latão desenvolve uma atividade teatral com o grupo Filhos da Mãe...Terra e apresenta sua obra como uma referência contextualizada da luta pela terra hoje. Integrantes do grupo estiveram na periferia de Guarulhos, em 2007, para assistir ao Teatro Popular União e Olho Vivo numa apresentação de João Cândido do Brasil, no bairro Aeródromo. Na ocasião, César Vieira agradeceu a oportunidade de parceria com um dos mais importantes movimentos políticos da atualidade, considerando a luta pela terra extremamente relevante. Em João Cândido do Brasil e O círculo de giz caucasiano, espetáculos diferentes entre si, há a utilização de expedientes de distanciamento, para contar uma história de caráter político-social. Em ambos, têm-se a dimensão de pontos de vista antagônicos, mas Brecht propõe que o público tire suas conclusões. Ao fazer a explicitação dos motivos pelos quais cada personagem age de determinado modo, ele o
46
César Vieira, Neriney Moreira, Wilson Xavier, José Maria Giroldo, Ana Lúcia
Silva, Lucas César, todos com mais de 15 anos de TUOV, entre outros também há
mais de dez anos no grupo, resistem aos apelos da massificação globalizante, fazendo
arte que evoca as consciências para a realidade, com bom humor e irreverência e uma
contribuição decisiva para o teatro popular brasileiro.
A temática, a abordagem, a preocupação estética e ética apresentam-se no
sentido de elaborar os conteúdos de maneira significativa, instigante, provocadora. A
construção das imagens, dos cenários, figurinos, material de divulgação e apoio dos
espetáculos têm unidade, feitos com uma imagética simples, direta, colorida e
popular, como as manifestações tradicionais que embasam as produções.
O desenvolvimento qualitativo do modo de produção artística do grupo e da
ampliação das condições efetivas para o desenvolvimento desse tipo de trabalho são
elementos que seus integrantes também contribuíram para que se tornassem realidade,
sempre participando de eventos de caráter coletivo e que se propõem a intensificar as
ações na área artística, sobretudo no que se refere ao teatro. A forma de atuação dos
grupos de teatro na sociedade foi reconfigurada pela ação constante dos que se
preocupam com a transformação social. Para César Vieira, com relação ao
relacionamento do TUOV com outros grupos, é antes de tudo uma questão de
parceria:
Não diria que nós somos paradigma. Estamos colaborando, a pedido, com uns quinze grupos, considerando também o VAI19.(...) O nosso relacionamento é muito bom, e, inclusive, colocamos a sede à disposição. Até partidos políticos novos que estão surgindo, jovens,
faz de forma que fique claro, também, o seu posicionamento. No segundo caso, o grupo assume também o ponto de vista da classe trabalhadora na construção dramatúrgica. Pode-se supor que essa diferença se dê, não pelo propósito, semelhante em sua essência, mas em termos de construção estética.
19VAI – Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Instituído pela LEI Municipal nº 15.540, de 24 de março de 2003, decretada pela então prefeita Marta Suplicy, tendo como Secretário de Cultura Celso Frateschi. Este programa subsidia atividades de agrupamentos culturais nos bairros da cidade de São Paulo. Grupos de teatro também participam com espetáculos e oficinas oferecidos à comunidade.
47
fazem reunião lá na sede. Com relação aos grupos acho que o intercâmbio é o melhor possível, considerando a troca e a amizade.
48
2.1. Características da cultura popular nas peças do TUOV
No período em que o Teatro Popular União e Olho Vivo inicia suas atividades,
há uma tendência geral a incentivar os assuntos vinculados à nacionalidade. Colocado
pela necessidade de criar ideais comuns num tempo em que os regimes ditatoriais se
espalharam por todo o mundo com promessas de desenvolvimento e moralização dos
costumes, a idéia de proteção nacional surge como um sentimento inegável e
cativante. Essa inclinação serviu a muitos interesses e colocou a cultura nacional
muito focada nas manifestações da cultura popular tradicional, até então
compreendida como folclore, como elemento de fortalecimento da unidade nacional.
Ocorreu e ainda ocorre dessa pseudovalorização dar-se ao nível do discurso, mas
raramente se traduz em ações de valorização dos praticantes dessas manifestações.20
Durante esse primeiro período, a utilização das manifestações pelo TUOV se
assemelham também às produções da época com intenção de se reportar ao popular
enquanto público. Então a opção pelas formas populares tinha a ver com o desejo de
comunicar idéias de modo acessível, na perspectiva da comunicação eficiente. Os
espaços de apresentação e aglutinação de pessoas com interesses na discussão política
e de organização social também se deram de forma alternativa. No caso do teatro,
além dos espaços universitários e em locais utilizados pelas comunidades de bairro,
havia iniciativas como o circo de lona no qual o TUOV desenvolveu atividades.
Atualmente, essa opção se apresenta de forma complexa, na qual o popular está
totalmente contemplado na produção do grupo, desde a composição do elenco, até a
utilização de exercícios de preparação do ator muito próprios das manifestações
20As manifestações populares são apropriadas de acordo com os interesses de dominadores, tendo em vista os processos históricos de colonização, de dominação religiosa ou mesmo da globalização no século XXI. Formas de expressão populares são apropriadas para veicular informações, interesses e disseminação de idéias consolidantes do processo de alienação.
49
populares, como é o caso do maculelê e tantos outros jogos que possibilitam
processos de soltura21 e socialização. Outro diferencial dessa apropriação mais que
devida da cultura popular é a pesquisa e divulgação de temas relacionados a
personalidades brasileiras desconhecidas da maior parte das pessoas e omitidas nas
aulas de história da educação formal, como é o caso de João Cândido22, da peça João
Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata (2001). Nessa apropriação bem colocada da
cultura popular, defendem-se de fato os interesses da classe popular num enfoque
nacionalista que persiste até hoje. Entretanto, é oportuno ter em vista as palavras de
Eagleton (2005:125):
Se o nacionalismo volta o seu olhar para um passado (geralmente fictício), é sobretudo para pressionar em direção a um futuro imaginado. Essa particular deformação temporal, que reinventa o passado como uma forma de reivindicar o futuro, tem sido responsável em nossa época por alguns admiráveis experimentos em democracia popular, assim como por uma estarrecedora quantidade de fanatismo e carnificina. Política de identidade é uma das categorias mais inutilmente amorfas de todas as categorias políticas, pois inclui aqueles que desejam libertar-se de patriarcas tribais juntamente com aqueles que desejam exterminá-los. Mas um pós-modernismo que está ocupado liquidando tanto o passado como o
21Busca-se aqui descondicionar o corpo dos bloqueios físicos e mentais e das dificuldades de expressão. Os procedimentos adotados pela educação formal, de modo geral, tendem a uniformizar os indivíduos como seres iguais em suas capacidades e necessidades de aprendizagem. Para isso, condiciona uma série de comportamentos que, posteriormente, dificultam quaisquer processos, incluindo os artísticos, que necessitem da aplicação do potencial criativo e libertador dos indivíduos. Tanto a arte-educação, como os processos informais que envolvem processos sócio-educativos têm-se configurado como espaços de discussão e de intervenção artística, como exemplos da capacidade transformadora da Arte, no plano da intervenção social. Talvez por esse motivo verifica-se o crescimento da intervenção na área teatral também em cursos, oficinas e formação de grupos de teatro em comunidades, por exemplo. Mas esta é uma outra discussão que aqui não será esgotada.
22João Cândido Felisberto foi um militar da Marinha Brasileira, expulso em 1910, por ter liderado a Revolta da Chibata, no mesmo ano, opondo-se ao castigo do chicoteamento imposto aos marinheiros insubordinados. João Cândido foi ainda internado por um ano como louco. Em 1933, adere à Ação Integralista Brasileira de caráter fascista. Faleceu em 1969, anônimo e sem quaisquer direitos previdenciários, pois nunca mais foi reconduzido à Marinha.
50
futuro em nome de um presente eterno, dificilmente pode dirigir-se adequadamente a essa espécie de política.
Talvez nesse ponto pode-se discutir as aproximações de dois extremos: o da
valorização das pessoas da classe popular para sua afirmação como classe capaz de
orientar criticamente seu próprio destino; e o da apologia do popular e da tradição
como algo perdido e que romanticamente se “resgata” sem, ao menos, se questionar
porque teria se “perdido”. Já no modernismo da década de 1920, esses conceitos se
apresentaram de forma contraditória, servindo depois a movimentos políticos ou
estéticos mais libertários e também aos de caráter reacionário. Os posicionamentos
ainda se confundiram, como o célebre caso da manifestação mais que discutida a
respeito das críticas do escritor Monteiro Lobato23 ao “modernismo” das telas de
Anita Malfatti. Terry Eagleton (2005:25) associa a visão do nacionalismo que serve
aos tempos atuais com seu surgimento nessa mesma época, com o nome de exotismo:
O exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com o crescimento da moderna antropologia cultural. Ele aflorará bem mais tarde, dessa vez numa roupagem pós-moderna, numa romantização da cultura popular, que agora assume o papel expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham desempenhado anteriormente as culturas “primitivas”.
23Monteiro Lobato foi um dos primeiros pesquisadores a sistematizar procedimentos de coleta de dados sobre folclore, quando publicou seu livro O Saci-pererê: resultado de um inquérito (1918), a partir de coluna que mantinha no jornal O Estado de S. Paulo. Teve uma contribuição inestimável nesse sentido e, como se sabe, com sua contribuição literária ao imaginário infantil com o Sitio do Picapau Amarelo (1920). Porém, também é signatário da visão (preconceituosa) que temos do caipira como alguém atrasado e preguiçoso, imagem, de certo modo, eternizada pela personagem Jeca Tatu, na obra Urupês(1918).
51
A discussão da identidade, a partir da visão da preservação das singularidades de
cada povo ou cultura, de acordo com um certo exotismo das manifestações
propriamente ditas destas culturas, serve hoje tanto à criação de propostas de
valorização (inclusive financeira) dos portadores dessas manifestações por órgãos
do governo, como é o caso do Ministério da Cultura, no Brasil, como serve à
mercantilização da cultura como objeto de lucro e até mesmo de poder. Eagleton
(2005:106-107) observa com aguda crítica:
Enquanto isso, aqueles que são vítimas dessa cultura de mercado voltam-se cada vez mais para formas de particularismo militante. Numa interação em três frentes, a cultura como espiritualidade é corroída pela cultura como mercadoria, para dar origem à cultura como identidade. Numa escala global, o conflito relevante aqui é entre cultura como mercadoria e cultura como identidade... O pós modernismo, com o seu desdém por tradição, individualidade estável e solidariedade de grupo, é revigorantemente cético a respeito dessas políticas, mesmo estando equivocado em não ver nada na tradição senão a mão morta da história e nada na solidariedade senão o consenso coercivo.
Em muitos casos, a afirmação da identidade, então, tem menos a ver com a defesa
de ideais comuns e de preservação da humanidade e mais com a disputa entre a
supremacia de uma determinada cultura sobre outra. Valores como solidariedade e
igualdade social são escassos no capitalismo, que reproduz essas idéias apenas como
slogans. A competitividade e o lucro falam mais alto e calam as vozes dissonantes.
É uma forma de manter a hegemonia de um sistema que, para se manter vivo,
perpetua diferenças e intensifica a destruição do planeta, ao passo que acumula para
poucos riquezas que jamais serão usufruídas pela grande maioria e que só se
prestam a legitimar o poder de uma classe privilegiada. Projetos de um outro mundo
52
possível são desqualificados constantemente como experiências que só dão certo em
situações muito específicas; invalidadas por seu caráter restrito a um número
pequeno de pessoas; entre outras tantas formas de se desqualificar propostas
alternativas de sobrevivência e de se manter viva a chama de um pensamento
socialista. Aliás, a cultura de massa também veicula, através de propagandas de
ajuda mútua como “Crianças Esperanças” e outros tantos sensacionalismos, o falso
desejo de ajudar ao próximo, a não ser para se desincumbir de uma tarefa mais
efetiva na sociedade. Sempre tentando, também, descaracterizar o político como
função de intervenção social, a cultura da alienação favorece o pensamento
individualista também nos inúmeros projetos de valorização do voluntariado, como
ação fragmentada e heróica. Não é de se estranhar que a globalização possibilite,
inclusive, a semelhança desse tipo de programação televisiva por todo mundo e que
igrejas “universais” fiquem cada vez mais próximas de se concretizarem como tal.
Eagleton (2005:112) esclarece uma diferença importante:
Tanto a cultura pós-moderna como a cultura como identidade tendem a confundir o cultural e o político. Elas também são semelhantes em sua suspeita particularista em relação às pretensões universalistas da alta cultura. O pós-modernismo não é universalista, mas cosmopolita, o que é uma coisa bem diferente. O espaço global do pós-modernismo é híbrido, ao passo que o espaço do universalismo é unitário. O universal é compatível com o nacional – a cultura universal, por exemplo, vê a si mesma como uma galeria dos melhores trabalhos das culturas nacionais – ao passo que a cultura cosmopolita transgride fronteiras nacionais tão seguramente quanto o fazem o dinheiro e as empresas transnacionais.
Estas contradições do contexto histórico da atualidade reiteram a presença do estético
como reafirmação de idéias e a propagação de ideais. O lugar do estético abrange
53
desde as campanhas de mercado que vendem todo e qualquer tipo de produto até o
suprimento das necessidades estéticas da humanidade com as telenovelas. O modo de
vida difundido nesses meios se torna não só atraente como até mesmo numa regra
lançada ao inconsciente das pessoas, incutida no dia-a-dia, desde a escola, as
histórias, os brinquedos infantis e no âmbito da família, das relações de amizade, nas
quais tudo é cada vez mais descartável e imediato. A cultura do individualismo,
mesmo que revestida de frases confeccionadas pelo capital com “amor e carinho”,
revelam como retorno ao popular, para me referir às pessoas da classe popular, uma
imposição de “viver também como” as pessoas ricas e vazias das revistas em que
mostram inadvertidamente suas “caras” e “outras partes”. Terry Eagleton (2005:113)
descreve a apropriação do estético:
Como a alta cultura, o pós-modernismo é muito atraído pelo estético, embora mais como estilo e prazer do que como artefato canônico; mas é também um tipo de cultura 'antropológica', incluindo clubes, casas de moda, arquitetura e shopping centers tanto quanto textos e vídeos. Como a cultura como modo de vida, ele celebra o particular, embora um particular que é mais provisório do que enraizado, mais híbrido do que um todo. Contudo, já que o pós-modernismo afirma o popular e o vernáculo onde quer que os encontre no globo, combina o seu particularismo com certa indiferença altiva ao lugar. Suas simpatias populares nascem mais de um ceticismo quanto a hierarquias do que, como no caso da cultura como solidariedade, de um compromisso com os expropriados.
Desse modo e reiterando a hipótese explicitada segundo a qual a valorização da
cultura popular não passa necessariamente pela valorização do popular, o
etnomusicólogo Alberto Ikeda (2007:54), para quem a preocupação com os membros
das comunidades guardiãs dos saberes populares, para além do interesse nos
fenômenos das manifestações populares, é algo inovador, relata:
54
(...) o modo predominante de incorporação das expressões populares tradicionais no cenário cultural tem se dado atualmente pela via estética, ou seja, como arte, espetáculos para puro entretenimento, e, ainda, como apresentações de folclore, na forma de expressões de representação da identidade nacional (brasilidade), das regionalidades ou das localidades. Esse último tipo de intervenção é comum quando se elegem algumas práticas tradicionais, notadamente as que envolvem música, dança e dramatizações, como atrações artísticas ou turísticas das suas localidades, compreendendo-as como fenômenos isolados dos seus contextos históricos e sociais que lhes dão sentido.(...) Naturalmente, não se pode desconsiderar a dimensão estética que se ressalta em tantas expressões populares tradicionais, mas na maioria das vezes não são estas as dimensões mais significativas para os próprios participantes (...)24
Este pensamento abarca também a reflexão até aqui contida, no sentido da
apropriação das manifestações da cultura popular tradicional que, embora também
transformada na trajetória do TUOV, desde o princípio foi utilizada para valorizar o
popular. Retornemos a Eagleton (2005:124) para pontuarmos a discussão acerca do
popular como fenômeno: “Esta é a razão pela qual ouvimos falar hoje em dia em
hibridez, etnicidade e pluralidade, em vez de liberdade, justiça e emancipação.”
Uma atitude como a do Teatro Popular União e Olho Vivo é demonstrada pela sua
opção em defender ideais que, segundo César Vieira, permanecem para a
humanidade, por mais que os tempos sejam outros. Para ele, perseguir alguns
pressupostos de abrangência social é o mais importante trabalho a ser desenvolvido
pelo grupo, diante de sua determinação em buscar o teatro popular constantemente:
(...)Algumas coisas importantes não mudaram para o Olho Vivo e não mudaram para o resto da humanidade. Os bem intencionados, sempre se nortearam, se norteiam e vão se nortear pela busca do bem comum e de um ideal. Escolhem um
24 Alberto, IKEDA. Manifestações tradicionais: rituais, artes, ancestralidades. In: Prêmio Cultura Viva: um prêmio à cidadania. p. 54 São Paulo: CENPEC, 2007).
55
ideal e procuram realizá-lo. Essa busca, acrescida de todas as transformações sociais que acontecem, o advento da informática, tudo isso é acoplado, dinamizado no trabalho do Olho Vivo e incorporado ao seu trabalho. Permanece a busca e a concretização de um ideal permanente, que é o bem comum. E isso nós guardamos como uma chama e pretendemos que continue sempre sendo aplicada através dos nossos espetáculos, da nossa dinâmica, que nunca é estática, sempre é modificada de acordo com a época, mantendo uma linguagem estética popular. (Entrevista citada.)
56
Imagem 4: João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata. Foto de Graciela Rodrigues.
Valorizar o trabalhador e as manifestações tradicionais, em prol da arte popular, é pressuposto da obra humanística do TUOV.
Fazer teatro popular não é apenas veicular a chamada cultura de elite, mas acima de tudo buscar formas populares de teatralização. No Brasil essas formas estariam principalmente nas festas populares – Folias de Reis, Congadas, Catiras etc. - nos Circos e nas Escolas de Samba e Cordões, onde houve a assimilação e transformação de uma forma imposta pelo Estado Novo – o samba enredo. O objetivo é fazer cultura popular com elementos populares. Procurou-se as formas teatrais do Rei Momo muito mais nas apresentações das escolas menores (do 3º grupo) que desfilam na Praça Onze, do que nas grandes escolas “turistizadas”, que se apresentam na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Não se levou em conta os grandes circos de estilo europeu ou norte-americanos, ultimamente tão em moda, mas os nossos “pavilhões”, onde se apresentam os Luiz Gonzagas, os Teixeirinhas ou os Tonico e Tinocos. (Trecho de artigo do Jornal Possível, p. 7, de outubro de 1972.)
57
3. Desenvolvimento do trabalho coletivo
Para o TUOV, o conceito de popular permeia local, produção e circulação das
obras. Na definição de César Vieira:
Aí nós temos uma definição mais ou menos fechada do que seria o teatro popular: um teatro feito por integrantes populares; dirigido para um público popular, se possível feito gratuitamente; com um conteúdo popular; e com uma estética popular. O Olho Vivo preenche desses cinco ítens, quatro e metade do outro, porque ainda tem seis participantes que eu chamaria de classe média. O resto todo e os novos integrantes são povo. (Entrevista citada.)
No início do trabalho do grupo, com o movimento estudantil, se tratava
basicamente de falar sobre os problemas do povo. A partir do convite para
apresentações em diversas comunidades da peça Corinthians, meu amor (1967data?), o
grupo passa a conviver com o público dos bairros e a assumir a deambulação como
característica primordial. Em seguida, como o espetáculo O Evangelho segundo
Zebedeu (1970) e Rei Momo (1973), é estabelecido o debate como pressuposto de
discussão sobre o espetáculo, relacionado aos problemas sociais. Já em Bumba, meu
queixada (1978), há o envolvimento do elenco e de todo o grupo na pesquisa do tema e
na construção da dramaturgia, por meio da confecção das fichas dramáticas e do
quadro dramático, que dão origem ao texto organizado pela comissão de dramaturgia e
escrito pelo dramaturgo. Desde então o grupo vem se tornando cada vez mais popular
no sentido de incorporar pessoas oriundas da classe popular na sua formação.
O espetáculo eficaz nosso, hoje, tem muito pouco a ver com o espetáculo eficaz d'O Evangelho segundo Zebedeu, porque ele tem o ator popular e no O Evangelho segundo Zebedeu havia o
58
ator burguês. Já é uma grande diferença. Qual é a grande transformação? A transformação é que nós estamos colocando o povo no palco. Como personagem e como intérprete. O Arena coloca o povo como personagem no palco. Não é o nosso objetivo, mas está acontecendo. (Entrevista citada.)
A presença de participantes identificados com causas vivenciadas por eles na
realidade confere sentido de pertencimento aos temas dos espetáculos e do processo
artesanal de sua confecção, dado o modo de produção semelhante ao das
manifestações da cultura popular, como é o caso dos folguedos. O fator de formação
do grupo a partir de núcleos familiares, com saberes que passam de pai para filho,
torna o “fazer cultural” significativo para as pessoas que fazem parte da comunidade,
constitui sua própria história. Alberto Ikeda (2007:54) analisa:
Há que se considerar que os fenômenos das culturas tradicionais guardam valores morais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros tantos, que foram herdados e, portanto, de algum modo refletem a própria história das suas comunidades, repondo o passado no presente, e sendo então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que, repetidas ciclicamente, reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para os grupos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos coletivamente, são instrumentos de identidade e inclusão social, e, até mesmo de resistência política diante dos problemas que as comunidades enfrentam.
Para César Vieira, a forma de organização do grupo facilita sua permanência:
O grupo tem muito isso, de casais e tal. A Graciela Rodrigues não é mãe do Lucas César, mas formamos um núcleo de três pessoas. O Will Martinez e a mulher dele, a Cátia Fantin formam outro. Esses pequenos núcleos familiares permitem que não se tenha a pressão externa.
59
Esse tipo de estrutura também apresenta semelhança à de grupos praticantes das
manifestações da cultura popular tradicional. A identificação do grupo com o popular
finalmente se verifica ainda na opção de atuar em conjunto com outros grupos que
têm a mesma preocupação. A opção de estar nas periferias, atuando não só na
produção de espetáculos, mas em oficinas, cursos e outras iniciativas educativas
caracterizam um projeto social para além do assistencialismo. Busca instrumentalizar
as pessoas das comunidades para a expressão, tomadas de decisão e envolvimento
comunitário para a solução dos problemas. César Vieira cita o trabalho do grupo
Pombas Urbanas, com o Ponto de Cultura em Cidade Tiradentes, periferia de São
Paulo, como um dos trabalhos mais importantes no sentido da atuação de grupos de
teatro junto a comunidades:25
O que eu sinto das conversas com os mais variados grupos é uma ânsia, uma angústia, uma necessidade de falar para o povo do bairro, para o popular. Existem muitos e realizando isso muito bem, dentro das possibilidades de dinheiro, econômicas, de morar no bairro. Eu cito o Pombas Urbanas, por exemplo, como uns caras que tinham uma opção estética e agora partiram para uma opção de vida. Sem discutir o mérito de que eles até não estejam fazendo espetáculos tão bons como eles faziam e que eles não estejam fazendo tantos espetáculos porque o social absorveu praticamente tudo. Nós estivemos lá agora, há quinze dias, e quem viu no início e vê agora, eles têm 50, 100, 200 alunos de computação, desenho, teatro e tudo lá, funcionando. Eles largaram seus locais de residência no centro da cidade ou dos bairros de classe média e foram morar lá. É uma opção que acho muito corajosa, não é a ideal. Não é que obrigatoriamente tenha de ser assim, mas uma das experiências mais importantes que acontecem é essa do Pombas Urbanas, um trabalho seríssimo.(Entrevista citada.)
25Em 2008 e desde 2005, o grupo Pombas Urbanas, sediado num galpão no bairro Cidade Tiradentes, de São Paulo é transformado num Ponto de Cultura. Projeto do Ministério da Cultura que financia projetos culturais em todo o país, chamado Cultura Viva. Lá, o Pombas desenvolve uma série de atividades artísticas e educativas, desde oficinas, até espetáculos e festivais de teatro. César Vieira, em entrevista, considera este trabalho como um dos principais realizados por grupos de teatro em termos de militância. Provavelmente o que chama a atenção do dramaturgo é que os artistas do Pombas Urbanas abrem mão de suas moradias e até de pressupostos estéticos, do ponto de vista profissional, para dedicar-se ao teatro e ações comunitárias.
60
Nesta entrevista, César Vieira comenta as semelhanças e diferenças do trabalho de
grupos teatrais da atualidade e da época da ditadura:
Nos primórdios da primeira dentição do Arte Contra a Barbárie, eu acho que, embora já existissem alguns grupos com esse início, com essa gravidez em busca de alguma coisa com continuidade, do esteticamente bem feito, falando do popular e desejando falar para o popular, desejando que seu grupo, se não era, se transformasse pelo menos em parte, em popular. Situando em tempo, seria, talvez, dois anos antes do Arte Contra a Barbárie26, como um marco em que se abrem e que se solidificam, pelo menos, uns vinte grupos; poderíamos citar alguns que estão andando pelos bairros, estes que estão participando do Fomento27. Isso permite um florescer e um reflorescer de idéias, com conteúdo, com objetividade, colocando a fama e o lucro numa posição terciária, objetivando espetáculos e transformações no palco bastante claros. Considero muito importante o que acontece hoje com esses grupos atuantes, populares ou não. Não vou citar todos, acho que são mais ou menos vinte, o trabalho do Luís Alberto de Abreu, dos Parlapatões, cada um com suas nuances. Cada um com divergências entre si e uma convergência de ideal e de busca de nova estética ou de manutenção de estéticas que estavam sendo exterminadas.
Os projetos desenvolvidos pelos grupos, em linhas gerais, assim como na atividade do
TUOV, precursor desse tipo de iniciativa que aproxima artistas e público ao buscar
intervenção social, politização e difusão cultural e artística, pressupõem ações de
formação de público, produção e circulação de espetáculos, realização de debates,
oficinas, discussões temáticas e formação de novos grupos. Formas de registro e
26Arte Contra a Barbárie é o movimento criado em 1998, que reúne artistas e grupos de teatro de São Paulo. Busca refletir de forma aprofundada sobre as condições da Arte e da Cultura na sociedade, bem como discute a relação do poder público com grupos de teatro, solicitando a implementação de ações de continuidade e não apenas de realização de eventos. Defende o teatro como forma de arte essencial e com uma função social, e a produção, circulação e fruição dos bens culturais como direito do cidadão. O documento com manifesto foi consultado no sítio da Companhia do Latão, em outubro de 2008: http://www.companhiadolatao.com.br.
27 Lei de Fomento é a LEI Nº 13.279, de 8 DE JANEIRO DE 2002 (Projeto de Lei nº 416/00, apresentado pelo Vereador Vicente Cândido – PT), promulgada pela então Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, com o objetivo de apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo.
61
avaliação das ações desenvolvidas são parecidos com instrumentos pedagógicos
utilizados na educação formal, quando esta se propõe a utilizar metodologias
alternativas. Muitas vezes estas ações praticadas como forma de educação informal
são igualmente ou mais significativas do que aquelas praticadas nas escolas. O TUOV
aplica como procedimento de registro e avaliação, por exemplo, desenhos de crianças
ou mesmo de adultos, sobre os espetáculos que assistem. É uma forma de reflexão
lúdica e bastante eficaz, além de educativa. A confecção das fichas dramáticas pelo
grupo, depois da realização de pesquisa ou de observação da realidade, também se
caracteriza num procedimento educativo, a partir do qual é possível partilhar não só a
produção estética, mas possibilitar o desenvolvimento da autonomia e da
responsabilidade, com o ator participante da produção do espetáculo, com a
possibilidade de compreender a estrutura, a dramaturgia e os objetivos do espetáculo.
Em geral, as obras do TUOV mantém suas características, construídas a partir da
elaboração do coletivo.
Para exemplificar estas características generalizáveis para as demais obras do
TUOV, foram escolhidas duas peças O Evangelho segundo Zebedeu (1970) e Bumba,
meu queixada (1978). Ambas trazem à tona a realidade e a história brasileira: “De que
vale esse país orgulhar-se de ser parte atuante do surto tecnológico e no avanço da
globalização se em cada porão de delegacia, em cada esquina, em cada sinal de
trânsito, em cada favela, em cada FEBEM, minuto a minuto, se apaga uma centelha
impedindo-a de se transformar em chama?”28
Muitos dos fatos importantes para a compreensão de quem somos e do sistema
social do qual fazemos parte ficaram encobertos ou esquecidos. Nas escolas e nos
28 Sítio do Teatro Popular União e Olho Vivo, consultado em 10 de janeiro de 2005.
62
livros, a história oficial deixa um vazio de conhecimento para as futuras gerações e
reafirmam valores impregnados de preconceitos, deformações, inverdades e
injustiças. A partir de um árduo trabalho de pesquisa, porque na maior parte das vezes
existe uma grande dificuldade de acesso a documentos e fontes de informação sobre a
história real, o TUOV desenvolve assuntos que dificilmente serão tratados no teatro
comercial ou na televisão. O ponto de vista adotado pelo grupo é o da classe popular,
motivo pelo qual as personagens que as representam são apresentadas como
fundamentais para mudar o curso da história. Independente de suas encenações
abordarem temas diversos como a Guerra de Canudos, a Revolta de Chibata ou as
greves de metalúrgicos em São Paulo, fica marcado o ponto de vista dos chamados
oprimidos e a necessidade de inquietação, de revolta, de ação transformadora da
realidade. A coletividade é exaltada, o senso crítico exacerbado e a forma ácida com
que o grupo e o dramaturgo César Vieira alinhavam o texto trazem à cena humor
inteligente e provocativo. Os poderosos, como recomendado por Bertolt Brecht, são
representados de modo exagerado e escarnecedor, ficando expostos ao público de
maneira bastante ridícula e instigante. Revelam-se os interesses de classe que
motivam as ações dessas personagens.
Para Suassuna (2007:155): “esse 'riso' é uma espécie de castigo ou de
reprimenda que o grupo inflige a algo que o ameaça. A sociedade, no seu impulso
para a vida e o movimento, defende-se contra o esclerosamento, contra o
endurecimento mecânico de suas formas, e o riso é um dos tipos de defesa de que ela
se vale.” A abordagem cômica é uma forma original de discussão da realidade,
estimulando a percepção e a tomada de posição diante dos acontecimentos do dia-a-
63
dia que, muitas vezes, tornam-se imperceptíveis e, por isso, tendem a ser aceitos
como permanentes.
Ao assistir aos espetáculos engajados, pode ser que o espectador considere a
obra, pejorativamente, panfletária. Pode ser que o olhar do espectador já esteja
deformado, dependendo de sua origem social e sua formação ideológica, ainda que
possa apreciar o trabalho do grupo. Quando o TUOV se apresenta num bairro, o
público tende a se identificar de tal forma com a obra de modo a evidenciar o alcance
dos objetivos definidos pelo grupo. Há uma comunicação efetiva e os olhos atentos
denotam a compreensão da obra para além do plano estético. Existe uma comunhão
verdadeira entre artistas, obra e público, em que se estabelece o fenômeno teatral em
sua plenitude. Para tanto, a identificação ocorre no plano das idéias expostas em cena
e não pela imitação da realidade. Pelo contrário, é o estranhamento que possibilita a
reflexão e, consequentemente, o reconhecimento da realidade social discutida na
cena. Nesse sentido, Ariano Suassuna (2008:197) adverte :
(...)a “imitação”, ou “mímesis”, de que fala Aristóteles, não deve se confundir com a imitação estreita e servil do real – coisa, aliás, além de não desejável, impossível, em Arte. Esta não imita o real, parte de elementos reais que, na imaginação do artista, são remanejados e recriados, para a criação de um novo universo, no qual a criação da Beleza não é a preocupação exclusiva, mas é, sem dúvida, o objetivo principal a ser atingido pela Arte.
No sentido da construção estética, o grupo é influenciado pelas referências
populares, daquilo que funciona do ponto de vista da comunicação com o público.
Expedientes diversos que mantém a atenção e o envolvimento da platéia: a música, a
proximidade do elenco com o público, os cenários e figurinos de extrema
funcionalidade e beleza, além de apresentarem informações sintéticas que facilitam a
compreensão do enredo e da característica social das personagens.
64
Assim como a produção brechtiana foi influenciada pela convivência com
Piscator, a política e o agitprop, a produção do TUOV foi marcada pelos movimentos
estudantil e social. Muitas são as referências no Brasil e no mundo, que contribuem
para a efetivação de um teatro com os pressupostos populares como o TUOV. Brecht,
sem dúvida, é a principal referência no que diz respeito à sistematização de
procedimentos de construção coletiva da obra teatral e da utilização de expedientes
que possibilitam o exercício do senso crítico e, para além disso, a tomada de atitude.
Para Silvana Garcia (2004), Brecht estudou as teorias marxistas e a partir de 1926,
buscou a militância, a organização partidária e uma estética comprometida com a
ética. Buscou nas formas populares a apropriação de procedimentos para falar dos
interesses populares, aos populares e com eles, preocupando-se ainda com o teatro
proletário, no qual a atividade teatral possibilitasse a instrumentalização para a
atuação social e política, autônoma, coletiva e crítica, com vistas à transformação, ou
melhor, à revolução. Com o fim do sistema capitalista e a implantação do socialismo.
Para Silvana Garcia (2004:80), ainda sobre Brecht: “Da Bavária, ele já traz uma forte
influência que o aproxima dos gêneros “menores”, consequência da profunda
admiração que dedicava ao trabalho do clown Karl Valentin(...)
Brecht desenvolve toda uma possibilidade teatral a partir de seu engajamento
crítico e político, estudando e apropriando-se de diversos elementos do teatro popular
para ressignificá-los em obras que vão aguçar o senso crítico e a reflexão do
espectador, de modo que este possa sentir-se responsável pelas mudanças necessárias
ao desenvolvimento humano da sociedade. Cenas independentes, interrupções
propositais da narrativa para explicitar o caráter teatral das obras em contraponto às
estruturas lineares que buscam uma função pática. Brecht lança mão de recursos de
distanciamento, com o fazer teatral explicitado. Utiliza cartazes, projeções, músicas
que comentam as cenas ou acontecimentos, de modo a revelar as contradições das
65
personagens e das situações. Da mesma forma, cria o gestus29 das personagens, de
modo a caracterizar a sua atitude e seu posicionamento social. São demonstradas as
relações de poder que caracterizam o sistema capitalista e a falibilidade das ações do
homem é comentada e questionada constantemente. É preciso tomar partido e rebelar-
se contra o que o sistema faz de nós. Podemos, sim, questioná-lo e desafiá-lo.
Independente de o Teatro Popular União e Olho Vivo ter estudado
sistematicamente as teorias e ensinamentos de Brecht, o trabalho postulado pelo
dramaturgo e encenador atingiu fortemente o trabalho do grupo, seja pelo caldo de
cultura da época em que o grupo surge, seja pelas ramificações advindas de outros
autores e diretores de teatro brasileiros. Anatol Rosenfeld e Augusto Boal são citados
por César Vieira como mestres. Estes, pesquisaram e praticaram muitos dos
ensinamentos preconizados por Brecht. Para Garcia (2004:86): (...) Na cena
brechtiana todos esses componentes se metabolizam em linguagem cênica: todas as
influências se somam para a construção de um produto novo que é essencialmente
teatro . Este se institui como político e, enquanto forma, em contraposição ao teatro
enquanto mediação de uma vontade política.
Pode-se inferir que o desenvolvimento desse tipo de teatro, assumidamente
engajado, colocou-o em lugar de inquestionável valor artístico, tendo em vista a
habilidade de Brecht para desenvolver assuntos de natureza política de forma
irrepreensível esteticamente. Daí o teatro de forma épica.
Ao buscar a comunicação com as massas em espaços públicos, muitos
intelectuais envolvidos em ações de conscientização popular apropriaram-se das
manifestações da cultura popular tradicional, que facilitaram o trabalho em espaços
não convencionais de intervenções artísticas. Por um lado elas serviriam aos
29Alexandre Mate considera, dentre outros aspectos, gestus como uma atitude contraditória, portanto de leitura dialética “(...) o trabalho do ator com a chamada gestualidade social, paradoxalmente, intenta uma gestualidade poética.” (MATE, Alexandre. A formação do ator épico numa abordagem práxica, 2006, p.11.)
66
interesses desses intelectuais identificados com as causas populares, mas seriam
desconsideradas do ponto de vista de seu significado como resistência cultural, dado o
fato de estes intelectuais considerarem, via de regra, essas manifestações ou a
valorização delas como românticas e conservadoras. Elas eram então esvaziadas de
seus conteúdos, comumente religiosos, e recheadas de conteúdos teoricamente
revolucionários.
Ao abrir mão do teatro convencional e optar pelo popular, o TUOV trilha seu
caminho na arte popular. Assume então o caráter dinâmico das manifestações,
valorizando-as em seu dinamismo, sem tentar recriá-las. Atualmente, as práticas
relacionadas ao treinamento dos atores são registradas nas publicações mais atuais,
dando conta de que a cultura popular faz parte do aquecimento, do canto e da criação
de personagens. O grupo incorporou procedimentos e as contribuições de seus
participantes para a construção das obras que tornam populares por excelência. Ainda
assim, existem apropriações indevidas da cultura popular, muitas vezes para
descaracterizá-la.
O TUOV representa uma história viva do Brasil e acompanhou ações necessárias e
bastante válidas nas décadas anteriores, contribuindo para divulgar a história social
brasileira, com sua artemilitância, ao tornar assuntos de extrema complexidade em
obras teatrais. O TUOV cumpre seus pressupostos e atinge os objetivos, com
espetáculos bem cuidados, seja no espaço teatral convencional, seja no bairro, com as
adaptações adequadas às características originais e condições técnicas adicionais
(iluminação, acústica, espaço protegido de intempéries etc.). A diferença do espaço,
porém, interfere de modo significativo na troca entre elenco e platéia. Permanecendo
extremamente forte, pela forma com que os artistas se comportam, convidando o
público a participar criticamente do espetáculo), a troca é mais intensa no bairro,
mesmo se comparada à experiência que ocorre em apresentações na sede. Para tanto,
67
foram desenvolvidos também materiais e acessórios para adaptar satisfatoriamente os
espaços, de modo que o público esteja acomodado e, desse modo, possa acompanhar
todo o espetáculo. Muitos grupos desejam falar ao popular, mas não se preocupam em
oferecer condições efetivas para que a obra seja contemplada no tocante às
acomodações, por exemplo. A coerência mantida nesse aspecto, garante que o público
atribua significado à experiência vivida ao assistir aos espetáculos do TUOV. Além
de sentir-se parte da encenação interativa, o público reconhece suas preocupações
trazidas para a cena. Tem aplicação, aqui, a aspiração de Suassuna (2008:305):
Somente para quem não conheça, por dentro, os caminhos da Arte, é que pode parecer um paradoxo a afirmação de que, por mais estranho que pareça a princípio, cada um desses mundos particulares revelados pelos grandes artistas termina por ser identificado pela comunidade como algo seu, algo que estava escondido nas suas camadas subterrâneas, irrevelado ou esquecido, e que agora, de repente, um espírito poderoso revelou e trouxe à superfície, para ensinar de novo à comunidade aquilo que ela é, sem saber.
Para o público constituído por populares, o espetáculo do TUOV cativa pela
forma, pela estrutura e conteúdo populares identificados pela presença de expedientes
característicos das manifestações populares: música, dança e comicidade, por
exemplo. Já os intelectuais, pode-se dizer que exaltam o conteúdo político-social. Ao
explicitar o caráter popular das obras do TUOV, é interessante observar a semelhança
dos procedimentos de criação das manifestações da cultura tradicional brasileira, com
os do processo de criação do grupo. O olhar dos praticantes dessas manifestações é
diferente daqueles que podemos chamar de público, bem como dos pesquisadores que
se interessam por elas. Então, é importante verificar os interesses de quem analisa
determinados fenômenos e a contaminação do olhar por uma visão de classe social,
ou ainda, num sentido mais amplo, ideológica. Para o grupo, o conceito de popular
68
defendido por eles se concretiza no modo de produção que prioriza a participação de
pessoas oriundas da classe popular; nas apresentações em locais não convencionais,
sobretudo nas periferias; e pela abordagem dos temas históricos e divulgação da
cultura brasileira. Podemos acrescentar a esses critérios a adoção de um ponto de
vista e a tomada de um partido, mesmo por aqueles considerados representantes da
classe média ou da burguesia (para utilizar a mesma nomenclatura adotada pelo
grupo), a favor dos interesses do povo, aqui entendido como pessoas da classe
popular. A opção por estar ao lado destas é uma constante para os integrantes do
grupo, independente de sua origem de classe. Ao refletir sobre o olhar que se
apresenta por parte de alguns pesquisadores, críticos e mesmo outros artistas a
respeito deste posicionamento,é possível dizer que este olhar pode estar deformado
pela origem de classe. Também a adoção de critérios relativos a outras formas
artísticas e mais especificamente de teatro, pode ter uma relação com as temáticas
apresentadas nas obras, além da estrutura adotada para veiculá-las. A arte do TUOV
pode ser ainda mais valorizada por essa característica de tornar belos e atraentes esses
temas densos e comprometidos politicamente. Pode-se observar, em diversas obras do
grupo, a divisão existente entre opressores e oprimidos, privilegiados e
desprivilegiados, ricos e pobres. Esse maniqueísmo, comum a algumas histórias e
característico de obras infantis ou didáticas servem à objetividade necessária a uma
obra popular, delimitando claramente papéis sociais. Brecht vai mais além ao
aprofundar em suas obras a contradição e mostrar sutilezas dos poderosos e mesmo
dos trabalhadores que, contaminados pela cultura capitalista, se metamorfoseiam em
comportamentos nada próprios de sua condição social. Essa complexidade não se
apresenta em obras essencialmente populares, mas pode apresentar-se em obras que
conservam seu caráter erudito. Porém não deixam de ser acessíveis a quaisquer
públicos. Pelo contrário, esse conceito seria mais uma conformação social e inclusive
estética. Do mesmo modo, o maniqueísmo pode ser considerado apenas como uma
opção, tão válida quanto a outra. De qualquer maneira, talvez seja uma das
69
possibilidades desse tipo de arte ser considerada menor. O esquematismo ou a
objetividade deixaria mais claras as relações de poder, o que pode tornar mais
chocante a compreensão de uma realidade que no cotidiano é velada. São hipóteses
sobre as quais podemos refletir para a ampliação da percepção do fenômeno teatral.
Sobre a utilização de expedientes do teatro de forma épica e de elementos dos
folguedos populares, temos a seguinte reflexão de Silvana Garcia (2004:211):
Do mesmo modo como utilizam Brecht, os grupos também se apropriaram de procedimentos que, por vias diversas e indiretas, herdaram do teatro russo e do agitprop de primeira geração. Assim, retomaram as matrizes populares, no nosso caso, o circo, o folguedo, as danças e ritmos populares, o cordel e a revista-e assimilaram as formas originais geradas pelo agitprop (o jornal-vivo ou teatro-jornal e a idéia de teatro-foro). Não desenvolveram com tanta frequência peças curtas (esquetes, sainetes) nem o teatro de rua – este até por motivos óbvios - mas preservaram características como uma certa praxe de começar os espetáculos fora do palco, na calçada e no meio do público, e a construção de estruturas dramatúrgicas maiores, tomando por base fragmentos independentes.
Ainda que possa parecer que, na atualidade, esses temas e a defesa dos interesses do povo sejam lugar comum, cada vez mais as formas de exploração e dominação se ampliam e se diversificam em tantas outras. O teatro, por ser uma atividade coletiva por excelência, já desafiaria em tese a imposição do individualismo e da concorrência. Para além dessa característica, está a utilização do teatro como ferramenta de transformação, a partir da tomada de consciência dos participantes de grupos e do público para os quais se apresenta.
Os poderes dos governantes não insistem no uso de coerção se podem assegurar um consenso; contudo, como a brecha entre ricos e pobres no mundo aumenta constantemente, toma agora um vulto a perspectiva, para o próximo milênio, de um capitalismo autoritário cada vez mais amuralhado, sitiado, num panorama de decadência
70
social, por inimigos internos e externos cada vez mais desesperados, abandonando finalmente toda a pretensão de um governo consensual em favor de uma defesa brutalmente franca do privilégio.30
Uma das qualidades da atuação do TUOV é compreender e respeitar a
diferença como forma de interagir aos contextos de resistência artística, cultural e
política, ao considerar que existem diversos grupos e formas de fazer teatro engajado
na transformação da sociedade, em que os ideais não se transformaram no decorrer de
sua carreira, mas ampliaram a atuação de diversos agrupamentos, sérios e dedicados,
independente do tipo de teatro que postulam, dentro da perspectiva de se comunicar
com o popular como público. A esse respeito, podemos considerar o exposto por
Eagleton (2005:105):
De qualquer modo, o pós modernismo erodiu progressivamente as fronteiras entre a arte de minoria e seus correlatos de massa ou popular. A cultura pós-moderna pode ser antielitista, mas o seu desdém popular pelo elitismo pode ajustar-se bem facilmente a um endossamento de valores conservadores. Nada, afinal, é mais inexoravelmente nivelador de valores do que a forma de mercadoria, uma forma que dificilmente deixa de ter aprovação em sociedades de mentalidade conservadora... O mercado é o melhor mecanismo para assegurar que a sociedade seja ao mesmo tempo altamente liberada e profundamente reacionária. A cultura comercial, assim, preserva muitos dos valores da alta cultura, os quais despreza como elitistas. Acontece apenas que ela é capaz de embrulhar esses valores em uma atraente embalagem antielitista, o que a alta cultura não consegue.
Os procedimentos utilizados no modo de criação artística do TUOV, que
envolve desde a escolha dos temas à definição do público, constituem-se num
contraponto aos modos de produção comuns. Significa coerência aos ideiais
30Terry EAGLETON, Op. cit. p. 77.
71
defendidos pelo grupo, considerando sua forma de organização semelhante aos
grupos familiares e tradicionais que praticam as manifestações populares e guardam
saberes e fazeres bastante característicos da convivência comunitária, que tem sua
base na solidariedade e ajuda mútua. Relação que, obviamente, também apresenta
conflitos internos e externos que, no caso do TUOV, os resolve de maneira
consensual, a partir de uma rodada de conversa e argumentação. As decisões
importantes necessitam do consenso para a solução, que encaminhe os participantes à
ação prática, sem discussões posteriores.
Ainda sobre a importância do processo criativo e da valorização de aspectos mais
significativos que os proporcionados pela lógica comercial, César Vieira cita em
entrevista que o mais importante do movimento de teatro de grupos em São Paulo é a
mudança do foco da produção teatral de alguns deles, valorizando os conteúdos
abordados de relevância social sem perspectiva do lucro e da fama. A despeito da
lógica de mercado imperar em nossa sociedade, quando se pensa se as mudanças
propostas pela arte se tornam efetivas, temos que a atividade teatral em si, ao
proporcionar o diálogo com pequenos agrupamentos, subverte a lógica reprodutivista
e inaugura novas possibilidades de ação, preenchendo estas brechas do sistema com
algo que busca preservar, antes de tudo, a humanidade das pessoas. A educação
estética, a troca de idéias e a busca de alternativas possíveis para a construção de um
outro mundo, encontra ressonância não só no teatro, mas noutras iniciativas como
feiras e comunidades de trocas solidárias, escolas que conquistam independência de
seu projeto pedagógico e outros tantos pequenos agrupamentos que se articulam,
garantindo a diversidade de opinião e de conduta, no interior de um sistema fadado à
transformação, dada a insustentabilidade de sua proposta.
72
Imagem 5: Cartaz do espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, de 1970. Foto de Graciela Rodrigues a partir do original.
A busca do teatro popular tem início na década de 60 e se desenvolve com a permanência da opção pelo popular. O grupo atua na divulgação dos produtores de cultura populares, reconhecendo a cultura como parte intrínseca de suas práticas sociais.
...A finalidade desse trabalho é mais a de despertar o interesse de populares para a produção cultural artística, teatral ou não, latente mas embotada por suas condições de vida e de sobrevivência, e que assim dentro de suas necessidades, caminhem então sozinhos. A arte popular existe, nós só pretendemos tirar-lhe a carapuça. (Trecho de artigo do Jornal Possível, Coluna Et cetera, p. 7, de outubro de 1972.)
73
3.1. O Evangelho segundo Zebedeu
Com a encenação desse texto iniciam-se as atividades de contato do grupo com
o público habitual do Circo Irmãos Tibério, depois chamado Circo União e Olho
Vivo. O espetáculo discutia artisticamente problemas sociais do país, suscitando
debates em sequência. O espetáculo anterior, Corinthians, meu amor, já percorrera as
periferias atendendo pedidos. Os espetáculos produzidos posteriormente fixam
debates e deambulação como pressupostos para a efetivação do teatro popular. Com
uma equipe competente artisticamente, a força e a atualidade dos temas sociais, o
espetáculo se torna uma referência teatral naquele momento, ao associar o universo
circense à discussão de um dos capítulos mais representativos da história da luta de
classe em nosso país, a Guerra de Canudos. De modo a abordar a opressão do
trabalhador e as condições do trabalho artístico, sobretudo dos artistas populares
circenses. Sem pretensões realistas, a forma do espetáculo reúne as características dos
dramas circenses e busca encontrar a fórmula de teatro painel essencialmente
nacional, assumido como drama épico.
A Revolta de Canudos (1896-1897) ocorreu no sertão da Bahia durante o
governo civil republicano de Prudente de Morais (1894-1898), que representando os
interesses das oligarquias cafeeiras e de outros latifundiários, decidiu enfrentar o
líder Antônio Conselheiro, devido a sua influência sobre o povoado de Canudos,
notadamente pela impossibilidade de a Igreja controlar as práticas religiosas por todo
o país. Conselheiro jamais aceitara o poder republicano, sendo perseguido e atacado
pelas autoridades que temiam a proliferação de movimentos populares da mesma
natureza. Após diversas investidas desastrosas que subestimaram as condições de
combate dos jagunços de Conselheiro, em sua quarta expedição, o Exército consegue
dizimar brutalmente a população de Canudos. No povoado, os moradores dominavam
a terra, da qual tiravam seu sustento e viviam com suas famílias. Conselheiro não
reconhecia também a igreja, que havia aceitado o novo regime. Os militares, por sua
74
vez, advertiam os republicanos sobre a necessidade de manter a ordem, ou a república
fracassaria. Embora não se tenha verificado nenhum tipo de apoio efetivo das forças
monarquistas, Conselheiro acreditava no Império e no retorno do lendário D.
Sebastião.31Canudos foi um exemplo de resistência à opressão, tornando-se
emblemática no que diz respeito às questões ligadas à ocupação de terras no país.
A peça de César Vieira, de 1970, conta a história escrita por Zebedeu Martins,
personagem que perdeu a língua em acidente, ao engolir fogo numa exibição circense.
Uma trupe encena a história de Canudos, escrita por Zebedeu. Narra os fatos com
liberdade poética, estabelecendo relações entre a vida do povo pobre de Canudos e a
dos artistas do circo, generalizando-as para as relações sociais mais amplas. Em dois
atos, o primeiro com seis cenas e o segundo com oito cenas, independentes entre si,
traz-se à tona capítulos da vida, paixão e morte de Antônio Conselheiro, entremeados
pela realidade do circo, num espetáculo recheado de críticas à igreja, ao militarismo e
às desigualdades sociais. A estréia aconteceu no Circo Irmãos Tibério, no Parque do
Ibirapuera, em 1970, com direção de Silney Siqueira, músicas de Murilo Alvarenga,
cenário e figurinos de José de Anchieta e coreografia de Ruth Rachou. Para Silney
Siqueira, o espetáculo dionisíaco atinge o universal pelo regional.
O tema circense utiliza-se da forma de cordel, em versos. As músicas,
apresentadas pelo coro, comentam as cenas e há a presença de um “ponto” (pessoa
escondida que diz ou “sopra” o texto para os atores durante o espetáculo, caso
esqueçam suas falas). O “ponto”, no caso, impõe o texto para os atores que nem
sempre o seguem, como é o caso do ator que representa o Conselheiro.
31El Rei D. Sebastião era neto de João III e, aos 24 anos, desapareceu em Marrocos durante a Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Sebastião considerava-se um capitão de Cristo convocado a uma nova cruzada contra os mouros, invasores da Península Ibérica. Seu corpo não foi encontrado, o que deu origem ao mito do retorno desse rei português para libertar os oprimidos. Tal expectativa se alastrou na Península pelos séculos posteriores e também no nordeste brasileiro, especialmente em Canudos.
75
O primeiro ato apresenta Antônio Conselheiro e sua missão; o segundo mostra
as contradições internas do exército do governo e os episódios da Guerra de Canudos.
O “drama circense”, com assunto histórico, tem abordagem cômica, ligada à
estrutura do circo. Os expedientes cômicos do texto, a estrutura metalinguística e os
expedientes narrativos são elementos de distanciamento32, de caráter teatralista, que
trazem à tona o assunto e o generaliza para outros lugares e épocas, explicitando a
situação ocorrida no circo e suas contradições internas. O público fica atento às
diversas situações do enredo, instigado a conhecer o assunto da Guerra de Canudos e
a saga de Antônio Conselheiro. Portanto, para os elementos do grupo, é possível
refletir-se sobre a condição do artista. Referindo-se à repressão e a censura política, a
arte, a imprensa e a cultura, o dramaturgo coloca em cena um autor sem língua. O fato
dele não poder falar, mas se expressar através da escrita, remete à repressão imposta
pela ditadura deste período em que a peça é encenada, em que não se pode falar
contra o autoritarismo. Assim recorre-se a um simbolismo crítico expresso em obras.
Apesar disso, a obra foi censurada em partes.
Na peça, no momento da morte de Pajeú, um dos principais líderes do bando
de Conselheiro, o coro emite o lema do grupo, frase de César Vieira: “Sou que nem a
soca da cana, me corte que eu nasço sempre!” Referindo-se aos revolucionários e
bravos da história brasileira, identificados com o povo, fica claro que mais forte que
os indivíduos é a força da coletividade.
Ao término da peça dentro do espetáculo, o conflito continua entre os artistas
do circo, mostrando que, na realidade, ainda há muito por fazer. Na saída, o público
recebia um cartão. Acerca dele, consta na peça publicada a seguinte referência:
32Alexandre Mate, ao citar Gerd Bornheim, lembra que: “(...) as técnicas de distanciamento – que se prendem a uma possibilidade de apreensão crítica da conjuntura social, do ponto de vista estético – não podem ser enfeixadas como se fossem meras técnicas fixas de atuação. Elas aparecem na dramaturgia, no tratamento cenográfico, na elaboração dos adereços cênicos, na direção, na música, no processo de recepção da obra (tendo em vista que o público é parceiro) e em tudo que concerne ao espetáculo. Para além disso, o distanciamento se caracteriza em um caminho ao qual novas experiências precisariam se somar”. (Op. cit., p. 26)
76
No lado da frente, em cima, os dizeres: “Retrato do artista Vouques”. No meio, um círculo de papel prateado de proteger cigarros, que reflita deformando o rosto de quem olhar. Flecha indicativa com os dizeres “Isto é um espelho”. No outro lado do cartão, estarão impressos os dizeres: “Vendo ele que a espada vem sobre a terra, deve tocar a trombeta e avisar o povo”(Ezequiel, 33-4).33
Depois de chamar o público a acompanhá-los, as personagens Vouques
(abrasileiramento de Volks, povo, em alemão) e Bailarina tiram as roupas circenses
e estão com trajes comuns, para que o público complete sua identificação com os
atores e com o universo do massacre de Canudos. Essa identificação se dá a partir
do aguçamento do senso crítico e da capacidade humana de se solidarizar aos
outros. Eagleton (2005:75) esclarece acerca das homologias de sentimentos entre
comunidades várias:
Mas isso é também porque não se precisa saltar fora da própria pele para saber o que um outro está sentindo; com efeito, há ocasiões em que é preciso antes entocar-se mais profundamente dentro dela. Uma sociedade que sofreu colonização, por exemplo, precisa apenas consultar sua própria existência 'local' para sentir solidariedade com outra colônia. É claro que existirão diferenças básicas; contudo, os irlandeses do início do século XX não precisavam recorrer a alguma misteriosa faculdade intuitiva para saber alguma coisa sobre como se sentiam os indianos do início do século XX. São aqueles que fetichizam as diferenças culturais que são aqui os reacionários.
O passado histórico é revisitado na cena, iluminam-se os interesses sociais, a luta de classes, a distância cultural monstruosa entre os civilizados poderosos da 33 César VIEIRA. O Evangelho segundo Zebedeu. In: Teatro da Juventude, nº 14. Secretaria de Estado da Cultura. São Paulo, 1997, p.111.
77
República e os miseráveis fanáticos, atrasados partidários do Império destronado. E o público de nosso tempo pode refletir sobre aquele momento. Parece-nos oportuno recorrermos à clareza de Eagleton (Idem):
Foi por fazer parte de sua própria história cultural, e não por colocá-la temporariamente de lado, que essas sociedades foram capazes de ir além dela. Não é cessando de ser eu mesmo que compreendo você, pois nesse caso não haveria ninguém para efetuar essa compreensão. E sua compreensão de mim não é uma questão de reduplicar em você mesmo o que eu estou sentindo, uma suposição que poderia muito bem levantar questões espinhosas sobre como você consegue ultrapassar a barreira ontológica entre nós dois. Acreditar nisso é presumir que estou em perfeita posse de minha própria experiência, sou luminosamente transparente para mim mesmo, e o único problema é como você poderia ter acesso a essa autotransparência. Mas eu não estou, de fato, em plena posse de minha própria experiência; posso às vezes estar bastante enganado acerca do que estou sentindo, quanto mais pensando; você pode muitas vezes compreender-me melhor do que eu mesmo, e a forma pela qual você me compreende é em muito a forma como compreendo a mim mesmo.
O mesmo autor, no entanto, adverte para o risco de se confundir compreensão com
empatia:
Compreender não é uma forma de empatia. Não é empatizando com uma fórmula química que eu a compreendo. Não é verdade que eu seja incapaz de simpatia por um escravo simplesmente porque nunca fui escravizado, ou incapaz de avaliar os sofrimentos envolvidos em ser mulher porque não sou uma mulher. Acreditar nisso é cometer um erro grosseiramente romântico a respeito da natureza da compreensão. Mas esses preconceitos românticos, a julgar por algumas formas de política de identidade, estão claramente vivos e passando bem.(Idem)
78
Para tanto, os expedientes de distanciamento são utilizados em diversos momentos do
espetáculo, dados pelo texto ou pela encenação. As músicas comentam as cenas e são
bastante utilizadas. Há ainda diversas intervenções do circo, com a função de troca de
cenários. O coro é utilizado para comentar criticamente as cenas, explicitando seu
caráter de esclarecimento dos fatos. Os atores de revezam nos diferentes papéis,
havendo correspondência entre as personagens que representam no circo e no drama.
Para o revezamento, lançam mão de figurinos básicos, compostos por adereços que
identificam as personagens. Há distanciamento também dos atores em relação as
personagens que representam. Num recurso metalinguístico, o ator Vicente, que
representa Conselheiro, age como se “esquecesse o texto”. Este recurso relativiza a
imagem apresentada da personagem. Outro recurso que contribui nesse aspecto é a
utilização de expedientes cômicos para tratar de assuntos densos. Também são
utilizados quadros e outros suportes com textos que têm a função de comentar o
espetáculo. Além dessas, há outras características populares, como a utilização de
repentismo e narração futebolística para comentário ou representação nas cenas.
A presença da formação católica, erudita e socialista do autor César Vieira fica
evidente na leitura do texto, dadas as informações apresentadas no texto advindas de
uma pesquisa do tema na perspectiva da história, outra de perspectiva de rompimento
com a veracidade das informações, buscando aguçar o senso crítico da platéia.
Referências bíblicas apóiam a versão da história de Conselheiro relacionada à de
Jesus Cristo; da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, foram apropriados textos de
cordel colhidos deste autor em sua incursão em Canudos, os quais registrou na obra.
Além disso, Vieira lança mão do conhecimento da estrutura de manifestações
populares como o próprio circo, os dramas populares e religiosos como a Paixão de
Cristo, recorrendo ainda ao futebol e à comédia, em tiradas que desconstróem a
relação dramática, mesmo em momentos de tensão, como é o caso da morte de
Antônio Conselheiro, incluindo a informação dos exames realizados no cérebro do
79
beato. Porém, Vieira descreve em verso um desfecho diferente do original de
Euclides da Cunha:
E cortaram a cabeça do Conselheiro
e trouxeram num caixote de sal
no selim de um animal.
Examinando o crânio, na capital,
a ciência disse: normal!
(VIEIRA, 1997, p.10)
O Evangelho contou ainda com outras montagens pelo Brasil, por diversos grupos,
incluindo uma, também dirigida por Silney Siqueira, com o grupo Teatro da Cidade,
de Santo André.
A história nem sempre é contada conforme os fatos. O papel do TUOV é
discutir a realidade, relacionando passado, presente e futuro. O compromisso com a
verdade é reiterado na inscrição do quadro apresentado na última cena: “E se alguém
fizer qualquer acréscimo às verdades contidas neste drama, Deus lhe acrescentará os
flagelos nele escritos; e se alguém tirar qualquer coisa, Deus tirará dele a sua parte na
árvore da vida”. (Ibidem, p. 111)
O elenco do circo anuncia a próxima peça A morte do Capitão-Mor. No
período de escrita do texto e da temporada do espetáculo, o Brasil vivia o auge da
ditadura militar, sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974),
que impunha a toda a população a suspensão dos direitos políticos e a violência
80
repressiva, disfarçadas em propagandas populistas, nas quais a aparente defesa do
país com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, sugeria a ameaça aos que não
aceitavam o regime militar. O crescimento econômico denominado “Milagre
Brasileiro”, a partir do Plano Nacional de Desenvolvimento, proporcionou em
seguida uma grande crise que fortaleceu com argumentos o espírito contestador da
oposição da época, mobilizado para exigir a volta da democracia. As reações ao
governo posterior de Ernesto Geisel (1974-1979), que, ao perceber a impossibilidade
de manutenção do poder militar desgastado pela crise, passou a aceitar a devolução
gradual do poder aos civis. Isso deflagrou um processo de rebeldia de alguns
comandantes, militares regionais. Em São Paulo, nas dependências do Estado foi
assassinado o jornalista Vladimir Herzog, em 1975. O AI-5 foi extinto em 1978 e a
sucessão presidencial trouxe ao poder o General João Figueiredo, que assumiu o
compromisso de permitir a “abertura” política, tendo em vista a crescente pressão
social. Há então o fortalecimento do movimento sindical e a mobilização grevista, nos
quais se destacará a atuação de Luiz Inácio da Silva, líder metalúrgico. Resultados do
processo de mobilização da oposição foram a anistia aos punidos pela ditadura com
exílio ou cassação dos direitos políticos; e a criação de novos partidos políticos. O
PDS surge no lugar da ARENA, o PMDB substitui o MDB; são criados o PT (Partido
dos Trabalhadores), o PDT (Partido Democrático Trabalhista), o PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro). Na mesma tendência dos movimentos populares, o TUOV
direcionou uma das suas produções ao tema e ao diálogo com esses trabalhadores
interessados nas melhorias das condições de trabalho e sociais. Também esteve na
pauta de discussões a dívida externa e a dependência do FMI (Fundo Monetário
Internacional), a inflação e o desemprego. A cultura de massa desenvolvida já na
81
década de 1960, preparou terreno para sua consolidação em bases não apenas
econômicas, mas profundamente ideológicas. Após o trabalho do TUOV em Rei
Momo (1973), discutindo o autoritarismo e a imposição do poder a despeito da
democracia, veio, em seguida, o espetáculo Bumba, meu queixada (1978).
Imagem 6: Bumba, meu queixada, elenco de 1978. Foto de Graciela Rodrigues a partir da original.
Funcionalidade de adereços e figurinos garantem comunicação com o público.
82
Imagem 7: Capa da edição de 1980 de Bumba, meu queixada. Foto de Graciela Rodrigues, a partir do original.
As cores vermelha e preta são utilizadas para identificar a luta organizada: o trabalhador é reconhecido como personagem principal da História, que é a protagonista de todas as peças do TUOV.
Inexiste um conceito de “Teatro Popular”. Mas ele deve ser sempre dinâmico e nunca estático. Um espetáculo pode ser feito com base num texto popular e resultar não popular. Não há regras fixas. O ideal seria fazer Teatro Popular partindo-se de um texto simples, sem pretensões, mas com intenções, montado por um grupo de operários e apresentado em bairros da periferia. Em síntese: Teatro Popular é a soma do texto, grupo, montagem e local populares. (Trecho de entrevista de César Vieira ao jornal Última Hora, de 10 de julho de 1972. Documento de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.)
83
3.2. Bumba, meu queixada
Teve uma greve na cidade de Guarús, onde os operários sabedô dos seus direitos, assinaram em cruz; Foi uma briga feia, durou dezena e meia, uma briga danada e os operários chamavam Queixada. (VIEIRA, 1980, p.45)
Este espetáculo marca o início das atividades de trabalho coletivo do grupo,
quando seus componentes são responsáveis pela confecção das fichas dramáticas: um
apanhado de informações sobre personagens e situações que fornecem elementos para
a criação de uma cena. É gerado um quadro dramático que cruza coincidências de
fatos e personagens pesquisadas, do qual surge uma espécie de esqueleto de peça. A
comissão de dramaturgia redige o texto, que retorna aos atores para improvisações e
reescritura do texto pela comissão. Mesmo durante as apresentações, de acordo com
indicações do público, o espetáculo é modificado para tornar-se cada vez mais
funcional. Da experiência com os espetáculos anteriores, alguns em cartaz no circo
(O Evangelho segundo Zebedeu e Rei Momo), com o desenvolvimento de debates e
do processo de deambulação ocorrido com Corinthians, meu amor, é com Bumba,
meu queixada que há a comunhão entre tema, forma, procedimento, público e elenco
populares. Ao fazer esta opção definitiva pelo popular, o grupo assume sua vocação
amadora e seu pressuposto classista em todas as vertentes de sua criação. Talvez daí a
diferenciação proposta entre criação coletiva e trabalho coletivo, a primeira entendida
como criação completa da obra e o segundo como característica da pesquisa
desenvolvida para uma montagem. A partir deste espetáculo, é extinta a divisão do
trabalho criativo e são potencializadas as comissões, dando sentido estrito aos termos
união, referente à coletivização de todo o processo, acolhendo trabalhadores de
84
diversas áreas como atores e artistas do grupo; e “olho vivo”, a partir do requisito
básico de expor a história do país por intermédio da arte. Os movimentos grevistas
desta época, ligados ao movimento sindical, possibilitam a apresentação do grupo em
diversos locais, nos quais se busca solidarizar com os trabalhadores explorados de
diversas fábricas, metalúrgicas e outras. Um dos maiores expoentes políticos deste
período, Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a ser o Presidente da República, eleito
por dois mandatos consecutivos de 2003 a 2010, assistiu a este espetáculo inúmeras
vezes, tendo figurado numa das gravações disponíveis no Arquivo Multimeios do
Centro Cultural São Paulo, em acervo especial do grupo. Neste, o discurso do então
sindicalista, critica o governo da época por não valorizar a força de trabalho e
organizativa dos operários, bem como convoca a platéia para a discussão da reforma
agrária. A coerência do grupo se verifica tanto na continuidade das discussões sobre
os temas de relevância social, incluindo a questão da terra, já evidenciada no
espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu, como na permanência da opção feita,
nesse momento histórico, pelo popular em todas as suas vertentes.
A peça é apresentada em cinco cenas, independentes entre si, tendo como fio
condutor a apresentação de um bumba-meu-boi por funcionários do parque de
diversões Arco-íris. Da manifestação tradicional, é mantido o conflito entre ricos e
pobres e a musicalidade, além das cores e de algumas personagens, como o Boi e a
Pastorinha. A primeira cena apresenta o cortejo do boi e a “bilha da verdade”. Um
jogo entre as personagens, estendido à platéia, de caráter essencialmente popular.
Quem for verdadeiro, sente gosto de bebida boa; quem não for, sente gosto de bosta.
Ainda nesta cena, há a morte do boi, que ressuscitará na última cena. A segunda cena
apresenta o parque e seu funcionamento, com os conflitos entre patrão e empregados
85
e público. A terceira cena ilustra o cotidiano de uma família Queixada (os operários
de Osasco se denominaram queixadas, por ser um tipo de animal que, organizado em
bando, se torna indestrutível), uma típica família operária brasileira. A quarta cena
apresenta uma greve deflagrada numa empresa e a quinta cena traz o espetáculo de
volta ao contexto do parque de diversões, relacionando a situação dos trabalhadores
do parque às demais cenas apresentadas. São apresentadas três possibilidades de
solução para os conflitos apresentados e o público discute no debate: reclamação na
Justiça do Trabalho; rebelião (arrebentar o Parque e depois tomá-lo); constituição de
comissões de fábrica e apoio às organizações sindicais (reunir-se, discutir, organizar-
se e depois agir).
O texto vem sendo encenado até hoje pelo grupo como Os Queixadinhas, uma
versão de 40 minutos da peça original, para ser apresentada nas comunidades, em
diversos bairros paulistas, organizações comunitárias, associações etc. Este trecho
consiste na terceira cena do espetáculo. A partir da pesquisa acerca do movimento
operário, em regiões de São Paulo, Perus, Osasco, Contagem, Santo André, São
Bernardo, São Caetano e Diadema, entre outras, foi estruturada a peça em forma de
cordel, com músicas que ora comentam as cenas, ora são utilizadas como recurso
cênico quando não há fala, com sonoplastia da cena realizada com mímica e
pantomima. O assunto é a greve, tratado de modo que seja generalizada a situação do
trabalhador para quaisquer locais e épocas, inclusive a atual. O grupo lança mão de
diversas manifestações da cultura tradicional para compor o espetáculo, como forma
de valorizá-os.
86
Numa apresentação de Os Queixadinhas, em Guarulhos, em abril de 2007,
algumas pessoas se identificaram de forma sensível com a tristeza de Mamãe
Queixada, ao vivenciar a pobreza com seus filhos, e com o Papai Queixada saindo
para o trabalho. A cena também atrai especialmente a atenção das crianças.
A estrutura dramatúrgica apresenta quadros permeados por elementos do auto
do bumba-meu-boi34, em que a manifestação se apresenta como forma de convite ao
ritual teatral, no início e no final do espetáculo. Assim, foram preparadas as músicas,
registradas em LP da Gravadora Marcus Pereira. A escolha foi realizada tendo em
vista o público, na maioria nordestino, que conhece o bumba-meu-boi. O assunto
greve foi escolhido por ser de grande interesse do público, constituído por
trabalhadores, em sua maioria metalúrgicos. Foram inúmeras as pesquisas, as
conversas com trabalhadores e a investigação específica a respeito do bumba-meu-
boi, com a especialista Leda Alves, do Recife. No caso do bumba-meu-boi original, é
contada a história de Pai Francisco e Catirina (que devem satisfação ao patrão pelo
sumiço de seu boi). Em Bumba, meu queixada, diversamente, desenvolve-se a história
da greve, identifica-se opressor e oprimido, conforme o grupo explicita: “O natural
conceito maniqueísta que o povo põe em suas manifestações, esclarecendo sempre
que quem não está de um lado, está do outro, mostrando sempre que quem não está
com ele, povo, está contra.”(Op. cit., p. 9)
34Segundo Reynúncio Napoleão de Lima, “(...) os autos tradicionais de modo geral tratam da viagem de Francisco e Catirina em busca do boi extraviado, no que são auxiliados por Mateus e Bastião, guardiões de animal. Pelos caminhos, encontram personagens alegóricas e/ou representativas de tipos sociais: padre, sacristão, capangas, jagunços, coronéis, médicos, militares, curandeiros, figuras míticas, até encontrarem o boi morto, que acaba ressuscitando. Esse conjunto de elementos caracterizam um auto, espécie dramatúrgica de motivação religiosa, medieval e renascentista, com poderosos reflexos no teatro brasileiro, desde Anchieta a Suassuna e muitos outros.”Vide também artigo Globalizaram o Bumba-meu-boi. In: ARTEunesp. Vol. 13, 1997, São Paulo: Editora Unesp, 1997.
.
87
A idéia de agir sobre a realidade e o anseio de solidariedade são colocados em
destaque: “Olha a sorte, olha a sorte; quem vai querê sua vida fazê; quem vai querê
sua vida mudá; Me dê sua mão, me dê” (Idem). E o público termina numa roda,
cantando e dançando com os atores.
Na publicação de 1980, o grupo indica os procedimentos de criação e
confecção de suas obras, a bibliografia consultada, as entrevistas realizadas, a escolha
de personagens, figurinos, cenários e todo processo de construção do espetáculo,
constituindo um histórico, de modo a subsidiar pesquisas e trabalhos de outros
grupos; o que fica claro no prefácio da publicação de Bumba, meu queixada: “Ao lado
de inúmeros outros grupos que realizam trabalho semelhante, o Teatro Popular União
e Olho Vivo vai continuar percorrendo a periferia, certo de que, modestamente, estará
dando a sua contribuição para a busca de uma sociedade em que o homem seja irmão
do homem e não patrão do homem.”(Ibidem, p.6)
Os figurinos e cenários foram confeccionados artesanalmente, sendo que as
personagens que caracterizam os oprimidos foram representadas em vermelho e as
caracterizadas como opressoras em azul, bem como utilizam máscaras. A
representação dos Queixadas é feita com máscaras que lembram o porco de mesmo
nome. A utilização do estandarte, recorrente noutros espetáculos, aparece no Bumba.
A questão do preconceito entre diferentes etnias também se apresenta nesta
peça:
Fiu de branco é menino/Fiu e negro é moleque...(Ibidem, p.25)
Neste período, é intensificada a reação do governo, em que os argumentos para
desvalorizar as manifestações de oposição foram construídos sobre o preconceito às
88
diferenças, à pobreza e a quaisquer pensamentos divergentes à manutenção dos ideais
dos ricos. Nesta obra, aparece a contestação desta realidade, relacionando pobreza e
etnia.
Acerca de apropriação de elementos do bumba-meu-boi, nesse espetáculo, é
apresentada a reflexão sobre a fidelidade à manifestação tradicional: não se trata de
reproduzi-la tal e qual, mas de mostrar seu valor e revelar a preocupação com a
possível extinção da cultura popular, solapada pela cultura de massas: “Nóis num vai
mostrá o Bumba tradicioná, que é feito, infelizmente agora, em pocos lugá!”(Ibidem,
p. 27)
Comparado à divisão desigual das riquezas no país, é apresentada a divisão das carnes
do boi:
Este é do boi o testamento
pela sua morte um lamento
no qual as coisa boa fica pros poderosos
e as coisas ruim é dos andrajoso
O corredor é do seu dotô
o coração é do patrão
o chambari bote prá qui
e o que o boi cagô é dos cantadô
(Idem)
No momento do “jogo da bilha da verdade”, a rubrica revela a realização do desejo de
estar junto do público: “E seguem servindo com amor, alegria... e o povo se
comungando... e o povo com a gente... e a gente com o povo...”(Ibidem, p. 34)
89
Na cena dois, que apresenta o Parque Arco-íris, é realizado o “jogo dos
bonecos”, que caem quando atingidos por bolas atiradas pelo público: “Os bonecos
simbolizam figuras conhecidas, mas que de uma forma ou de outra tomam atitudes
contrárias aos interesses da comunidade. Por sugestão do público, nos espetáculos de
São Paulo, foram colocados os bonecos de Belé, Bebeto Carlos, Baluf ou Belfim e, na
excursão pela América Latina, os bonecos eram: Somoza, Kissinger e Nixon.”
(Ibidem, p. 37)
A fala do anunciador que divulga o jogo é bastante jocosa: “Derrube a cabeça.
É o jogo do bola-bola que derruba a cabeça de quem enrola.”(Ibidem, p.38)
A cena três apresenta a música-tema do espetáculo, seguida da pantomina que
traduz a vida do trabalhador brasileiro:
Tem um porco do mato
Um porco selvagem
que quando anda em bando
Vira turma da pesada
Seu nome é Queixada
(Ibidem, p. 45)
Na cena quatro, no Refeitório da Metalúrgica Brasilina, vem à tona mais uma
faceta das condições de vida do trabalhador:
Chuvisco – Tô co'saco cheio de comê comida fria.
Agora tá faltando gás todo dia...
Zequinha - Prá mim é grupo do patrão: Fecha o gás
e economiza um dinheirão!
Chuvisco – Prá nóis é só zebra que apronta.
Sereno – E se achá ruim os home dá logo a conta.
90
Onte chutaram o Edmundo.
Zequinha – Inda não confirmaram a despedida.
Vamo vê: conforme fô a gente põe a boca no mundo.
Sereno – E vai adiantá? Tem gente assim...de bizú, no lugá!
(Ibidem, p.55)
A quinta cena convoca o público à reflexão e ao debate e, utilizando a metáfora
da mão que tem o destino traçado em suas linhas e a mão que pode ser oferecida ao
outro em sinal de solidariedade, presentes na letra da música que encerra o
espetáculo:
Me dê sua mão, me dê,
quem vai querê sua vida fazê;
me dá sua mão, me dá,
Quem vai querer sua vida mudá?
(Ibidem, p. 79)
A década de 1980 foi marcada pelo processo de restituição da democracia,
assolado pela herança da ditadura militar: concentração de propriedades e renda nas
mãos de poucos em detrimento da oferta de possibilidades para a maior parte do
povo; sensível queda na qualidade da educação e consequente intensificação da
alienação, com crescimento da cultura de massa cobrindo com um denso véu as
manifestações alternativas; dominação estrangeira e divulgação do capitalismo,
intervindo nos meios de comunicação e implantação de um modo de vida identificado
ideologicamente com os dominadores; inflação e dívida externa comprometendo
definitivamente a economia do país.
91
A ditadura terminou oficialmente em 1985, com o processo de abertura. Os
próximos presidentes não conseguiram romper com as exigências do sistema, muito
menos atender às necessidades básicas da população. Além disso, divulga-se até hoje
que a miséria é opção daqueles que a enfrentam, que deriva da falta de vontade para o
trabalho e enfrentamento de dificuldades. Persistem os processos de alienação e
atividades alternativas são a única forma de combater localmente a perpetuação das
diferenças. As eleições diretas ainda foram impedidas; a escolha do novo presidente é
feita por um colégio eleitoral. Paulo Maluf, “parceiro da ditadura”, é candidato ao
cargo. Tancredo Neves, porém, é o eleito, mas não chega a tomar posse, vítima de
doença que o levou à morte. Assume seu vice, José Sarney, representante dos
conservadores, que servira à ditadura militar. Em 1989, é eleito diretamente um novo
presidente civil: Fernando Collor ilude a população com sua imagem propagandística
e, em seguida, torna-se uma das maiores decepções de todos os tempos, envolvido em
corrupção. O que gera o processo de impeachment que culminou com sua renúncia.
Itamar Franco, seu vice, governou o país contemplando diversas tendências político-
ideológicas. O crescimento da indústria cultural e a massificação da comunicação não
impediu o surgimento de novos artistas engajados politicamente, bem como a
continuidade de iniciativas como a do TUOV, mesmo não interessando reconhecê-las
e divulgá-las. A preocupação em atingir as massas para difundir o pensamento
dominante abriu espaço para a intervenção junto a pequenos agrupamentos,
organizados pela defesa dos direitos de cidadania e do trabalhador. Após esse
período, é eleito, por duas vezes consecutivas, o sociólogo Fernando Henrique
Cardoso (de 1995 a 2002), até que Luiz Inácio Lula da Silva chegasse à Presidência,
em 2002. Em face de muitas esperanças ainda alimentadas ou já perdidas, de
expectativas frustradas, de poucas certezas e numerosas incertezas de certos avanços e
retrocessos na conquista de direitos do trabalhador e justiça social, vale a exortação
de Pedro Casaldáliga:35
35Pedro Casaldáliga é adepto da Teologia da Libertação, bispo emérito de São Pedro do Araguaia, Mato Grosso do Sul. Foi alvo de ameaças e também sofreu processo de expulsão durante a ditadura militar. É
92
Hoje o rei está nu. Com indignação, com saudades, aquecidos por tanto sonho e luta e sangue, respondendo à dignidade ferida da maioria humana, nos voltamos para o socialismo: um socialismo novo. Porque evidentemente não se trata de repetir ensaios que deram, muitas vezes, em decepção, em violência, em ditadura, em pobreza, em morte. Trata-se de rever, de aprender do passado, de atualizar, de não se conformar e, por isso mesmo, de vivermos hoje aqui, localmente e globalmente, a sempre nova Utopia. Afirmamos categoricamente que a Utopia continua, que não é uma quimera mas um desafio. Por isso nos perguntamos como estamos de Utopia. Preocupados pela construção diária da política como arte do possível, perdemos de vista o que parece impossível e, entretanto, é necessário? Teremos de nos conformar elegendo governos mais ou menos de esquerda, e continuarmos, submissos ou derrotados, dentro do sistema capitalista de direita? Que resta da velha disjuntiva capitalismo-socialismo? Não falta quem afirme que já passou a hora das direitas e das esquerdas...Já não é possível o socialismo? Chegamos tarde demais? Não continua sendo a Utopia “necessária como pão de cada dia”?36
organizador da Agenda Latino-americana mundial, que reúne socialistas de várias partes do mundo. Ecumênica, busca reflexões libertárias e humanistas.
36 Pedro, CASALDÁLIGA. Agenda Latino-americana 2009. pp.10-11. São Paulo: Ave Maria, 2009.
93
4.Considerações Finais
De todos esses erros e acertos é que nasce o conceito de teatro popular. Não estamos discutindo o sentido lato da palavra popular, o que é popular. Não dá remédio popular, que é uma merda. Seria mais ou menos por aí que eles discriminam o Olho Vivo. (César Vieira, em Entrevista citada.)
A conjunção entre o erudito e popular faz acontecer o teatro realizado pelo
TUOV. Muitas manifestações da cultura popular são apropriadas pela cultura erudita
ou modificadas e elevadas à condição de eruditas. No grupo, a apropriação retorna
para o popular como elemento de aglutinação e com função ritual que congrega as
pessoas em torno das questões sociais, das condições de vida do trabalhador, atreladas
ao sistema que padroniza e exclui, exige e conforma.
A estética a serviço da ética pode ser compreendida como a ética para além da
estética. Não se prioriza o resultado, mas o processo de união. O “olho vivo” fica por
conta da atenção dedicada às causas sociais e ainda urgentes. No combate à
perpetuação da intolerância às diferenças, à globalização da pobreza e à
universalização da competitividade. À destruição dos recursos naturais, à falência dos
sistemas públicos de saúde e à ausência de referenciais de justiça.
Formas populares de organização e comunicação são alternativas a essa
perspectiva mercadológica. Num aspecto, dependem da valorização governamental e
dos povos, mas simultaneamente independem de tudo isso, porque têm em sua
própria natureza mecanismos de permanência que são também universais: só podem
ser produzidas pelos humanos. Representam sua ancestralidade, suas verdades e sua
passagem pelo mundo. Marcam sua existência, são suas reminiscências e sua herança.
São sua marca no presente e seu presente para as gerações futuras. São aspectos
94
sensíveis da realidade e de interação com o meio, descompromissadas com o lucro e
interessadas na perpetuação de seu fazer, pois representam vida e expressividade.
Singularidade e coletividade. A socialização da experiência deve vir dessa referência.
O teatro é uma dessas manifestações, porque ritualiza funções que a atualidade não
perdeu, mas que não deixa transparecer. Ao sistema, é mais importante lançar a idéia
equivocada da necessidade de um resgate, que nada mais é que uma nova armadilha
para se mercantilizar o tradicional em busca de lucro. Manter vivas as manifestações
populares implica em valorizar aqueles que produzem essa cultura, além de fomentá-
la para que outros mais possam partilhar dessa construção, em vez de serem educados
para apenas consumir.
A recorrência do TUOV às manifestações populares, em seu início, tem a ver
com uma onda de apropriação para comunicação com o popular e, em seguida, torna-
se elemento de construção estética, fazendo parte não só da obra e de seu processo de
criação, mas da defesa de uma cultura do fazer teatral socializado no grupo, em que o
dramaturgo César Vieira prioriza o consenso. Da escultura do Saci-Pererê instalada
na entrada da sede do TUOV, à forma de recepcionar os visitantes com um animado
churrasco, os elementos do popular são reafirmados na escolha do elenco e da
participação ativa dos componentes do grupo na pesquisa e elaboração artística dos
espetáculos. Hoje são muitos os grupos a realizarem obras em que o popular é
buscado como tema, com base em manifestações da cultura tradicional. Muitas vezes,
ainda, é buscado como público. Dificilmente, porém, será valorizado por seu
potencial artístico, ou mesmo respeitado por seu significado.
No início, a itinerância do TUOV é realizada em função de uma estratégia de
oposição necessária no período ditatorial. Nas décadas seguintes, se caracteriza como
95
opção. A mudança de foco dos debates sobre os problemas locais para as questões
teatrais sugere ainda o desenvolvimento estético em geral e do grupo. Estes debates
foram ampliados na atualidade devido a projetos de formação de público e cultural.
Cursos e oficinas de teatro são mais acessíveis hoje, assim como equipamentos de
cultura estruturados com programações artísticas.
A proximidade entre o modo de produção do TUOV e das manifestações
populares tradicionais tem a ver com a opção do grupo por preservar o ser humano e
os valores que o caracterizam. Só o humano é capaz de ser solidário e fraterno, e de
tornar-se consciente de sua importância para a conquista do bem comum. Esse tipo de
intervenção na sociedade é mais efetivo e educativo que outras tantas formas de
educação que já estão ultrapassadas e notadamente não dão conta das demandas
sociais em termos da convivência pacífica nas comunidades e entre os povos. Cada
vez mais a competitividade toma o lugar da convivência harmoniosa. Um grupo de
teatro é uma pequena célula social que pode se comportar de forma diferente de seu
organismo mais amplo. Por mais que seja um elemento insuficiente para a
transformação total, é um elemento de resistência, de possibilidade que pode
contaminar o corpo. Um espetáculo é como uma febre, uma reação que sinaliza o
problema. É uma manifestação de um organismo sadio que luta contra a doença. Os
medicamentos alopáticos mascaram a doença e retiram a febre. Parece que tudo está
resolvido. Já a homeopatia busca externalizar as causas da doença, para que estas
sejam atacadas em suas causas. Uma opção trabalhosa, porém efetiva para que a
doença não volte a ocorrer. Situações de conflito são situações de aprendizagem.
Num espetáculo, ao confrontar pontos de vista sem fechar uma questão, é
possível chegar a conclusões inéditas, soluções inusitadas, diferentes e coletivas.
96
Simbólicas do ponto de vista objetivo, se tornam novamente subjetivas. Talvez seja a
única fórmula de legitimidade, em que todos se envolvem num determinado problema
e atuam na sua solução. Essa construção se torna bastante significativa para aqueles
que dela participam, reconfortando e animando para que novas soluções sejam
encontradas para velhos problemas. Estas células, multiplicadas e sobrepondo-se às
células doentes que mobilizavam as sadias a manifestarem a febre, revitalizam um
organismo que, após vencer a crise, sente-se fortalecido a enfrentar outras tantas
doenças e, aos poucos, abandona sua fragilidade e o medo.
Os grupos de teatro, articulados internamente e entre si, constituem um órgão
no corpo social com a capacidade de se regenerar a cada dia, pulsando vivamente para
revitalizar o todo. A efetividade da mudança se dá nesse sentido, ao tornar possível
uma rede de discussão e fortalecimento, criando uma lógica diversa da estabelecida.
Mais importante que se tornar vitorioso ao defender um ponto de vista é alcançar
propostas efetivas de transformação social. O teatro deve seu desenvolvimento
consciente a esse período, mas os prejuízos são incalculáveis. A valorização
profissional das áreas ligadas à técnica ou à produtividade foram priorizadas, além
daquelas que são objeto de status. Poucas profissões, porém, exigem em seu processo
de formação o comprometimento social, fundamental em qualquer profissão. Nas
áreas ligadas às ciências humanas, a abordagem filosófica pode influenciar a tomada
de consciência. Compreender a ideologia presente no cotidiano é fundamental para
intervir praticamente. O teatro da militância e os movimentos dos quais o TUOV
participa rompem com o isolamento de agrupamentos sociais, teatrais ou não. Em
torno da arte e da cultura, esse foco de resistência artística e familiar alimenta laços de
convivência e representa a aglutinação a favor de ideais que permanecem vivos,
97
graças à clareza de lideranças como César Vieira. Também são fundamentais todos os
participantes do grupo, sobretudo Neriney Moreira, José Maria Giroldo, Eliezer
Martins, Ana Lúcia Silva, Graciela Rodrigues, Oswaldo Ribeiro, Cícero Almeida,
Will Martinez. Maria Alice Silva e Lucas César, que representam a continuidade do
TUOV, e todos os outros que estão hoje no grupo e que por ele passaram,
contribuindo para sua fundação e permanência. Houve a habilidade dos
coordenadores em manter viva a chama do teatro e dos participantes e do público a
receptividade. Porque a função da arte como objeto de reflexão foi cumprida. A arte
do TUOV sensibilizou, desacomodou e com isso transformou a realidade de muitas
pessoas. Num mundo assolado pela ignorância e esvaziamento de sentido real das
vidas da maior parte das pessoas, em que independe sua condição social e seu poder
aquisitivo, as ações alternativas que socializam conhecimento são preciosas.
Coisificadas pela educação acrítica e pelo mercado de trabalho, pessoas esquecem
sonhos e se tornam máquinas. O teatro propõe então, além do acesso ao
conhecimento, a diversão. Divertir-se é uma capacidade humana que traz as noções
de pertencimento ao mundo e de coletividade. Do mesmo modo que só é possível rir
daquilo que se compreende, só se compreende aquilo que se torna acessível ao
intelecto, mediado pelas percepções sensíveis de todo o organismo. Talvez a
revolução somente se dê a partir do momento em que se perceba que não é mais
possível continuar com guerras, com a destruição do planeta e das pessoas. Quando se
der conta que a ganância por poder e dinheiro traz a miséria. A desconfiança do
homem no homem. O desrespeito e o preconceito. A falta de oportunidades iguais aos
diferentes. E a negação das características individuais pela imposição do
individualismo. As contradições escondidas sob o véu das mentiras da história. A
98
fuga dos conflitos como meio de sobrevivência.
A necessidade de esclarecimento de capítulos obscuros da história brasileira
faz do TUOV um grupo que contribui decisivamente para a conscientização das
pessoas de sua importância para a construção histórica da sociedade. A poesia
presente em suas obras trata de assuntos polêmicos, tornando-os belos esteticamente e
acessíveis fisicamente. Esta presença física nas periferias é o percurso desejável para
todas as manifestações populares das comunidades. Que sejam valorizadas em seus
contextos pela beleza que guardam em informações daqueles que a produzem. São
simbólicas a respeito de suas vidas e de seu pensamento. Que sejam apropriadas por
seus pares, que invadam as escolas e outros espaços de convivência nos bairros. Que
os praticantes dessas manifestações sejam valorizados por sua cultura e não
idealizados por sua pobreza ou ignorados pela falta de posses materiais.
A esperança depositada nas eleições do Presidente Lula, oriundo das camadas
populares e comprometido anteriormente com a reforma agrária, conformou setores
inesperados e decepcionou militantes mais combativos. Mesmo assim, proporcionou a
permanência de ideais mantidos por aqueles que não se envolveram em vantagens
econômicas e que, mesmo no interior de governos por todo o país, mantém a
preocupação com pressupostos classistas da desigualdade social. Ainda há pessoas
que não fazem concessões, buscando incansavelmente o socialismo.
A inversão de prioridades se dá na comunidade, no interior do grupo e também
nas intervenções sociais em âmbitos governamentais. Por esse motivo, grupos de
teatro se organizam em torno de movimentos que buscam angariar parceiros, verbas e
desenvolvimento de políticas públicas para a arte e a cultura. A utopia é uma
possibilidade concreta porque conta com o desprendimento de pessoas que têm a
99
opção de perpetuar a indiferença e se recusam a fazê-lo. Têm a oportunidade de obter
benefícios pessoais e não a aceitam. Podem viver tranquilamente com suas atividades
profissionais, mas rejeitam a estabilidade. Preferem passar seus dias
intranquilamente, buscando trilhar o caminho possível entre o mundo que se vê e
aquele que se vislumbra. Com um passo de cada vez, enxergando longe a
transformação que não presenciarão, mas que, parafraseando o educador português
José Pacheco, ficará para os filhos dos filhos dos nossos filhos... Mas dormem
descansados e com a certeza do dever cumprido... e de que há, também, tudo por
fazer.
100
Bibliografia
Livros
ARRABAL, José e LIMA, Mariângela Alves. O nacional e o popular na cultura
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1993.
CANCLINI, Néstor Garcia. A socialização da arte: teoria e prática na América
Latina. São Paulo: Cultrix, 1980.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de folclore. Rio de Janeiro: INL, 1976.
COIN, Cristina. A Guerra de Canudos. Coleção História em Aberto. São Paulo:
Scipione, 1994.
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
ESTEVAM, Carlos. A questão da cultura popular. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1963.
FERNANDES, Florestan. O folclore em questão.(Estudos brasileiros;8). São Paulo:
Hucitec, 1978.
FISHER, Ernst. A necessidade da Arte: uma interpretação marxista. Zahar: Rio de
Janeiro, s.d.
GARCIA, Silvana. Teatro da militância. São Paulo: EDUNESP/Perspectiva, 1990.
101
GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1965.
LEAL, Rine (organização). Teatro Escambray. Cuba: Editorial Letras Cubanas, 1990.
CHAUI, Marilena.Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2006.
MOREIRA, Romildo. Teatro popular: um jeito cênico de ser. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 2000.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense,
2006.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo. Perspectiva, 2000.
________. Teatro moderno. São Paulo. Perspectiva, 1977.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Rio de Janeiro, José Olympio, 2008.
TERRY, Eagleton. A idéia de cultura, São Paulo, Editora Unesp, 2005.
VIEIRA, César. Em busca de um teatro popular. São Paulo: FUNARTE, 2007.
___________. Em busca de um teatro popular. Santos: Confenata, 1981.
___________. Em busca de um teatro popular. São Paulo: UNESCO, 1977.
___________. Bumba ,meu queixada. São Paulo: Grafitti, 1980. Obra reeditada pela
Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, 2008, vol. 3.
102
___________. Morte aos brancos - a lenda de Sepé Tiaraju. Rio Grande do Sul:
Tchê!, 1987. Obra reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura,
2008, vol. 3.
___________. João Cândido do Brasil: a Revolta da Chibata. São Paulo: Casa
Amarela, 2003. Obra reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de
Cultura, 2008, vol.
Revistas
VIEIRA, César. Rei Momo. In: Revista de Teatro SBAT, nº 411. São Paulo, 1976.
Obra reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, 2008, vol.
2.
___________. O Evangelho segundo Zebedeu. In: Teatro da Juventude, nº 14.
Governo do Estado de São Paulo – Secretaria de Estado da Cultura. São Paulo,
1997. Obra reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, 2008,
vol. 1.
__________. Us Juãos e os Magalis. In: Revista de Teatro SBAT, nº 500. São Paulo,
1997. Obra reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, 2008,
vol. 4.
___________. Barbosinha Futebó Crubi. In: Teatro da Juventude, nº 22. Governo do
Estado de São Paulo – Secretaria de Estado da Cultura. São Paulo, 1999. Obra
reeditada pela Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, 2008, vol. 4.
IKEDA, Alberto. Manifestações tradicionais: rituais, artes, ancestralidades. In:
Prêmio Cultura Viva: um prêmio à cidadania. São Paulo: CENPEC, 2007.
103
LIMA, Reynúncio Napoleão de. Globalizaram o Bumba-meu-boi. In: ARTEunesp.
Vol. 13, 1997, São Paulo: Editora Unesp, 1997.
Entrevista - César Vieira - Diretor do Teatro Popular União e Olho Vivo. São Jorges.
Fanzine da Companhia São Jorge de Variedades, nº3. São Paulo, 2004.
Impressos
MATE, Alexandre. História do teatro. Material desenvolvido como subsídio para a
disciplina Evolução do Teatro Mundial, no Instituto de Artes da Unesp. São
Paulo, 2001.
MATE, Alexandre. A formação do ator épico numa abordagem práxica. Material
desenvolvido como subsídio para o curso de mesmo nome, realizado na
FUNARTE. São Paulo, 2006.
Sítios da Internet
http://www.companhiadolatao.com.br., outubro de 2008.
http:www.teatropopularolhovivo.hpg.com.br , janeiro de 2007.
www.palmares.gov.br, setembro de 2008.
Jornais
SANTOS, Valmir. Cia. do Latão atualiza fábula de Brecht. In: Folha de S. Paulo,
Ilustrada. São Paulo, 9 de agosto de 2006.
Entrevista – César Vieira. In: Folha de S. Paulo, São Paulo, s.d.(Provavelmente
1972.), p. 39. Documento de texto nº 4528 do Arquivo Multimeios do Centro
Cultural São Paulo.
104
Artigo – In: Jornal Possível,Coluna Et cetera, São Paulo, outubro de 1972,
p.7.Documento de texto nº 4528 do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São
Paulo.
Entrevista - César Vieira. In: Jornal Última Hora, de 10 de julho de 1972. Documento
de texto nº 4528 do arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo.
Tese
Mate, Alexandre. A produção teatral paulistana dos anos 1980 – r(ab)iscando com a
faca o chão da história: tempo de contar os pré-juízos em percurso de andança. Tese
de doutoramento apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, 2008
105
ANEXO I
Do livro Em busca de um teatro popular. São Paulo: FUNARTE, 2007.
Os 10 itens do trabalho coletivo de dramaturgia do Teatro Popular União e Olho
Vivo:
Até meados de dezembro o TUOV terá escolhido o tema de seu futuro espetáculo. No
início foram apresentados vinte e dois assuntos, que depois de discutidos e analisados
pelo coletivo do grupo, foram reduzidos a apenas cinco, dos quais sairão a estória que
servirá de base ao novo texto. Os temas foram os mais abrangentes, desde biografias
de jogadores de futebol até generais progressistas brasileiros que participaram
ativamente nas lutas pela emancipação da América Latina. O importante é que será
obedecido o preceito principal dos trabalhos anteriores de dramaturgia: o homem
comum, o simples cidadão, será o sujeito e não o objeto da ação teatral. Eleito o
assunto, os membros do grupo seguirão as regras habituais usadas na criação de seus
textos:
1 – Pesquisa de campo e laboratório de todos os aspectos relativos ao assunto.
2 – Análise das Fichas Dramáticas, colhidas pelos elementos envolvidos na pesquisa,
abrangendo possibilidades de conflitos, sugestões de cenas e personagens, bem como
indicações para a estrutura da peça.
3 – Serão realizadas então inúmeras reuniões para estudo e debates das Fichas
Dramáticas, culminando com a construção do Quadro Dramático, que é o grande
roteiro do espetáculo.
4 – O Quadro Dramático, ou seja, o “roteirão”, é passado à Comissão de
Dramaturgia, que, seguindo a orientação do coletivo contida no Quadro Dramático,
redige o primeiro texto.
5 – Este primeiro texto é colocado em discussão pelo coletivo, o qual faz cortes,
acréscimos, sugestões etc.
106
6 – Retorna o texto assim modificado à Comissão de Dramaturgia, que dá a
carpintaria necessária ao fluir da fábula em termos teatrais.
7 – Segue-se a montagem também em termos coletivos, tendo coordenadores para
várias áreas: direção, coreografia, música, cenário, figurinos e iluminação.
8 – Terminada a fase da montagem, o espetáculo é apresentado por cinco vezes para
um público convencional de teatro e dez para uma platéia dos bairros da periferia de
São Paulo.
9 – Baseado nas reações e nas opiniões das platéias dessas quinze sessões, o coletivo
chega à encenação mais ou menos definitiva, com a qual seguirá carreira.
10 – O espetáculo, então definido, será mostrado por cinco ou seis anos – conforme o
histórico do TUOV – mantendo-se dinâmico e aceitando sempre as colaborações e
sugestões do público popular.
107
Anexo II
Transcrição de entrevista realizada em 29 de abril de 2008, na residência de César
Vieira, em São Paulo.
Simone: Eu tenho 34 anos e minha geração é, digamos assim, alienada. Muitas coisas
da história nós não aprendemos na escola, então tenho muita dificuldade algumas
vezes em entender algo que nunca estudei, e que vejo a necessidade de estudar agora
por interesse. Queria que você falasse um pouco desse trabalho seu com o movimento
estudantil e qual a necessidade do teatro nesse movimento. Como vocês verificam as
mudanças ocorridas desde a sua atuação no movimento estudantil até a atualidade do
TUOV. E por que vocês formaram um grupo de teatro?
César Vieira: Primeiro que vinha de uma experiência de presidente da U.N.E. - União
Nacional dos Estudantes. Não participei diretamente, mas assisti o evoluir dos Centros
Populares de Cultura, no Rio de Janeiro. Isso tudo marcou profundamente o contato
com pessoas como o Chico de Assis, o Vianninha. A U.N.E. não possuia um
departamento de teatro mas passa a ter um departamento de teatro entre aspas, não era
oficializado, mas eram os Centros Populares de Cultura, que atuaram especialmente no
Rio de Janeiro, em Pernambuco e em São Paulo. Foi o primeiro contato que eu tive
com o teatro feito por estudantes e intelectuais na rua, realizado na Central do Brasil,
em Mangueira, em Madureira, Portela. Eram esquetes, sempre procurando uma
conotação política, uma abordagem dos poderes ou uma gozação. Depois disso, me
formei e comecei a advogar. Aconteceu o grande êxito de um teatro universitário
chamado TUCA, com o espetáculo Morte e vida Severina, do João Cabral, dirigido
pelo Silney, com músicas do Chico Buarque, que foi aplaudidíssimo em Nancy. Então,
esse espetáculo foi um grande sucesso e colocou o teatro universitário no mesmo nível
108
do teatro profissional, com mais profundidade devido ao seu conteúdo ideológico. E o
que acontece é que, com este grande sucesso, o pessoal do XI de agosto, que de uma
forma ou de outra sempre estava no meio das lideranças universitárias e acadêmicas,
resolve também fazer um grupo de teatro. O teatro da PUC era da Universidade
Católica, mas oriundo da Faculdade de Direito, do Centro Acadêmico 22 de agosto, do
qual eu também havia sido presidente, em 1958. Essa foi uma das ramificações
interessantíssimas que aconteceram. O pessoal do XI de agosto me procurou porque
eles queriam fazer um espetáculo refundando o novo Teatro do XI de agosto. Então,
estava terminando uma peça chamada O Evangelho segundo Zebedeu. Estava
terminando de redigir essa peça que levei para eles, como levei para fazer uma leitura
para o Silney Siqueira, em Pinheiros, onde ele morava. Fomos eu e meu amigo Chico
José. Silney ficou maluco pelo espetáculo. Disse que era um Morte e vida Severina,
mais sangue, mais povo, mais simples e ficou interessado. E como tinha sido
procurado pelo pessoal do XI, indiquei o Silney como diretor renomado que havia
dirigido estudantes. O XI de agosto contratou o Silney para dirigir, trouxe o José de
Anchieta, que estava iniciando a carreira e devia ter uns 19 anos, para fazer o figurino
e o cenário, e o Murilo Alvarenga para fazer a música. Com essa equipe, monta esse
espetáculo. Assessorei um pouco, à distância, mas não da direção direta. Essa primeira
direção do Silney teve um êxito bastante considerável e foi convidado para o mesmo
festival do qual havia participado o Morte e vida Severina. Então fui convidado para
acompanhar a ida a Nancy. O espetáculo ganhou, mas não havia mais premiação. O
Zebedeu (O Evangelho segundo Zebedeu) foi considerado o melhor espetáculo do
festival por voto popular e pela crítica; foi apresentado em Paris e em várias cidades do
interior da França, voltando ao Brasil após esse êxito internacional. Fica mais um ano
109
em cartaz aqui, quando começa o contato do pessoal do Zebedeu com o pessoal do
Casarão, que anteriormente havia estreado o Corinthians, meu amor, mas não em uma
carreira sequencial; fazia um espetáculo por mês, ficava dois meses sem fazer
espetáculo. O Casarão pediu o circo emprestado para o Teatro do XI, às segundas,
terças e quintas, para ensaios e para espetáculos; o Corinthians, meu amor começa a
receber convites para apresentações nos bairros. Foi uma peça feita por pessoas
populares do Casarão, num barracão que existe até hoje no comecinho da Brigadeiro
Luiz Antônio. Começaram assim as andanças e nosso objetivo de fazer teatro na
periferia. Esses dois grupos se encontram porque, às vezes, o XI de agosto ia pro circo
na quinta-feira para preparar o espetáculo para a sexta-feira (naquele tempo dava para
fazer sessões de espetáculo na sexta, sábado e domingo, dois espetáculos no sábado e
no domingo. Para você ver como caiu...) O XI pegava o povão. Eram caras que
pegavam um sanduíche e ficavam o dia inteiro lá! Começaram a discutir o Zebedeu e
também sobre os objetivos deles, como é que tinham sido as experiências e tal. Dessas
conversas todas é que nasceu o Teatro Popular União e Olho Vivo. Da soma das duas
experiências e das trocas dessas experiências entre si, uma pelo término da montagem
do Rei Momo, e a outra do Corinthians, meu amor. E discutiu-se uma ou duas tardes
inteirinhas, sobre os nomes, e vários foram apresentados: Teatro do Centro, Teatro da
Periferia...e o mais original e mais funcional, no meu entender, foi apresentado por
uma menina que se chama Tânia Mendes. Hoje é funcionária da Assembléia
Legislativa. Foi secretária particular do Zé Dirceu por vários anos. O marido dela foi
preso como guerrilheiro, ela foi presa como militante, junto comigo. Foi ela quem deu
esse nome do Teatro União e Olho Vivo. Ela ainda aparece na sede do Olho Vivo.
Simone: Ela foi do grupo?
110
César Vieira: Foi do grupo, tanto é que estavam seguindo a menina para prender o
marido dela, e por isso eles foram para o bairro. Eles jamais veriam teatro. Eles
estavam seguindo a Tânia para prender o marido dela. Nós fomos para o bairro e eles
foram atrás da gente com um carro normal, não era carro de polícia. Ficaram na igreja
onde nós fazíamos o espetáculo. Ligam para o major: “– Porra, o cara não tá aqui! Mas
eles tão fazendo uma peça aqui que está xingando o governo e o exército”. E a ordem
foi: “ – Prendam eles com discrição”. Nós fomos para o restaurante e quando saímos
eles prenderam a mim e a mais dois. Nós fomos em um restaurante lá em Pinheiros, na
Rua Pinheiros, em 1973. Eles jantaram com a gente, e, quando nós saímos, eles nos
prenderam. Daí eles estabeleceram a ligação com ela. Eles me interrogaram bastante,
inclusive sobre a peça que eu estava escrevendo.
Alexandre Mate: Em que ano você se forma em jornalismo?
César Vieira: Em 1957 em jornalismo e em 1958 em direito.
Simone: Para vocês o que é popular? Esse conceito mudou desde que vocês colocaram
o termo popular no nome do grupo?
César Vieira: Vou divagar um pouquinho. Divagar devagar. No início, quando o
Corinthians, meu amor foi para o bairro, não tínhamos a intenção de levá-lo para a rua,
porque consideramos que o teatro popular pode ser feito tanto do Teatro Municipal,
como na Praça da Sé. Teatro popular não é necessariamente teatro de rua, embora o
teatro de rua normalmente seja popular. Então fizemos um espetáculo com todos os
condimentos do teatrão, do teatro burguês, e usamos todas as artimanhas: marcação,
estudo e análise do personagem, a funcionalidade do espetáculo, que não era de
grandes estudos, embora eu tivesse feito a Escola de Arte Dramática. Fiz um curso de
dramaturgia, vendo um pouco do ator em geral, mas sem visar o teatro popular, por um
111
ano. Tive aula com Augusto Boal, Maria José de Carvalho, Alfredo Mesquita; Anatol
Rosenfeld, que dava aula de estética. Foram meus contemporâneos como alunos
Renata Palotini, Isaías Almada. Do Boal, fui aluno e depois advogado dele. Passei a
acompanhar o Corinthians, meu amor do Casarão; acompanhava o XI de agosto e
acompanhava o Casarão. Já no XI, não palpitando na época do Silney, mas depois já
como membro do grupo a partir do final de Zebedeu e início do Rei Momo; eles
querem continuar com outro espetáculo e eu estava escrevendo o Rei Momo. Entro no
grupo como coordenador, e no Corinthians, meu amor a mesma coisa; acompanho, até
que os participantes se unem. Então o Corinthians, meu amor vai para bairro e
acontecem os mesmos percalços que aconteceria com o Rei Momo, embora o
Corinthians, meu amor não tivesse, entre aspas, a grandiosidade do Rei Momo; o Rei
Momo tinha possibilidade até de conseguir algum dinheiro do XI de agosto; o
Corinthians, meu amor já não tinha; então, ele tem mesmo tudo aquilo que um teatro
popular e duro poderia fazer, inclusive com participantes sumamente populares. Havia
lavador de carro, taxista, operário, desempregados de monte. O bairro é um lugar
geralmente menor do que o circo e onde o público ia com camisa do Corinthians, com
bandeira, esperando ver o Rivelino etc. E haviam cenas muito fortes, por exemplo, a
cena do candomblé, em que a menina ficava tomada, a atriz e dois, três caras do
público também. Começou a ser discutido o que estava dando certo, o que não estava.
Não uma coisa premeditada: nós estamos indo para bairro, esse é o teatro para praça e
tal, mas foi na medida do funcionamento das coisas. O João Cândido tem uma versão
para palco com uma hora e quarenta e outra versão para rua que dura quarenta
minutos. Utilizamos jogos de praça. Então, fomos vendo o que ia funcionar no bairro a
partir dos convites para fazer em quadras, praças. Os caras acham ruim quando não
112
fazemos espetáculo devido às intempéries, sem público, na chuva. Para o elenco ficar
doente, não vale a pena. Não é o caso quando bolamos o espetáculo para a rua. De
todos esses erros e acertos é que nasce o conceito de teatro popular. Não estamos
discutindo o sentido lato da palavra popular, o que é popular. Não dá remédio popular,
que é uma merda. Seria mais ou menos por aí que discriminam o Olho Vivo. Até por
um excesso de zelo, poderia chegar para as pessoas bem intencionadas e falar: venham
ver, daí podem “meter o pau”. Falem o que quiser, mas venham nos assistir no nosso
habitat. Nesse dia (comentando com Alexandre Mate sobre uma situação específica)
aconteceu o seguinte: foi o dia em que o Will (Martinez) quebrou a perna. No dia da
homenagem para a Heleny Guariba. Não tem justificativa, o espetáculo tem que ficar
de pé. O Movimento de Teatro de Rua que está cada vez mais organizado no país,
escolheu o Olho Vivo como paradigma deles. O nosso teatro, que 70% das vezes é
feito em local fechado, passou também a ter todos os macetes da rua. Se você assistir
ao Barbosinha hoje, é um espetáculo de rua. Dificilmente as condições do Barbosinha
vão se repetir num outro espetáculo. Dificilmente o público passante vai ficar passante.
Ele pára. Se ele não tiver um compromisso, ele fica. O cara quer saber a sequência,
então, ele não vai embora. Você está jogando com 50 cenas que tem começo meio e
fim e se intercalam e com todos os macetes. Com a música, a fala e a ação coletivas. A
ação se passando no meio do público, onde o público não entra falando, mas entra
participando porque o ator está suando do lado dele. Em Angra dos Reis, entrou um
bêbado no espetáculo. O Gil, iluminador, tentou tirar o cara e não conseguiu. Na cena
em que o juiz é xingado de filho-da-puta, o cara saiu. Nunca mais isso vai se repetir
isso. Para nós o teatro de rua é 90% popular, mas esse espetáculo pode ser feito em
local fechado, porque o grupo é o senhor do espaço. Mesmo sendo em local fechado, o
113
espetáculo pode ser popular. Vamos fazer agora espetáculos em Belo Horizonte e
Porto Alegre, para o nosso público que não precisa ser paulista, paulistano; e ganhando
para isso, inclusive para a continuidade do trabalho. Chegamos no festival, nos
colocam num canto onde não tem nada, nós escolhemos o melhor local, somos os
senhores do local: encontramos a melhor acústica, colocamos a iluminação etc. Para
Minas, eu pedi lonas para o público sentar. Quero colocar para a comunidade porque
eles vão ficar uma hora ali. Colocando pessoas sentadas, melhora a visibilidade das
fileiras que estão atrás. Voltando à sua pergunta, quer dizer, resolvemos optar pelo
popular devido a ida aos bairros e de como tornar eficaz esse espetáculo, na praça, na
rua, na igreja, na quadra de basquete, numa sala de aula (muitos espetáculos foram em
salas de aula), no salão central de colégios. Fazíamos um lanche grande e tal, e
aprendemos a necessidade prática de tornar um espetáculo factível e funcional nesses
lugares, usando todas as coisas populares, coisas já usadas, provavelmente, outras
inventadas pela gente. A partir do Rei Momo, esta passa a ser a grande discussão: nós
vamos fazer teatro na periferia. Nós vamos fazer teatro na rua. Dificilmente nós
dizemos que o Olho Vivo é teatro de rua. Temos duas opções marcadas, teatro fechado
e na rua. No festival de Porto Alegre, nós vamos fazer na rua. Sepé Tiarajú vai abrir o
festival de lá. Lendo o texto, você vai encontrar pouca coisa, a não ser as linhas
mestras do outro espetáculo. Totalmente poético, dificílimo. Nós vamos fazer vários
textos. Vamos colocar uma mulher que tem uma voz altíssima e um outro cara que tem
uma voz altíssima. É duro você segurar na música. Então nós colocamos um coral,
quase um show. No show, se coloca o Gilberto Gil na rua, vai funcionar. Daí, desses
dois espetáculos, sai nossa opção pelo bairro e pelo popular. Nós discutimos: nós
estamos fazendo popular, mas o grupo vai chamar popular? Sim, não, por que não? Aí
114
nós temos uma definição mais ou menos fechada do que seria o teatro popular: um
teatro feito por integrantes populares; dirigido para um público popular, se possível
feito gratuitamente; com um conteúdo popular; e com uma estética popular. O Olho
Vivo preenche desses cinco ítens, quatro e metade do outro, porque ainda tem seis
participantes que eu chamaria de classe média. O resto todo e os novos integrantes são
povo; os que eram classe média foram caindo. Agora tem acompanhantes, tem dois
caras mulatos e uma menina que estão acompanhando o grupo agora, que são povo. E
é duro acompanhar, porque a gente não tem tempo nem de conversar com eles. Dá
comida, dá lanche, passa a mão na cabeça: “- Desculpe, mas vocês vão ter que ficar
aí.”Os caras tão segurando, e, se estão segurando, vão ficar. Um é gerente do
Bradesco, outra menina é atendente de enfermagem, e a outra atendente de escritório.
Um rapaz, a irmã e a namorada. Então possivelmente vingue o núcleo. O grupo tem
muito isso, de casais e tal. A Silvana Garcia fala disso. O trabalho tem muito a ver com
núcleo, mas é muito relativo. A Graciela Rodrigues não é mãe do Lucas César, mas
formamos um núcleo de três pessoas. O Will Martinez e a mulher dele, a Cátia Fantin
formam outro. Esses pequenos núcleos familiares permitem que não se tenha a pressão
externa. O cara vai acompanhar a namorada ou o namorado que acompanha a
namorada e fica esperando. No começo pode achar bonito, depois enche o saco.
Alexandre Mate: Encontrei alguns nomes, mas tem mais: César Vieira, Igor Palik, Id
Almeida, Idibal Pivetta.
César Vieira: Idibal João Pivetta. Quando meu pai foi me batizar, Idibal Matto Pivetta
não era católico, então na hora meu pai pôs Idibal João Pivetta.
Alexandre Mate: Como autor?
César Vieira: Não. Como autor tem Idibal Almeida Pivetta. Os amores de Napoleão.
115
Alexandre Mate: Tem também como Idibal Pivetta?
César Vieira: Tem o Mar de Lama. Tem muitos artigos de jornal.
Simone: Como é que vocês percebem a atuação dos grupos de teatro em São Paulo?
Com relação aos grupos e aos críticos, como vocês percebem o reconhecimento da
importância da militância e do trabalho estético do grupo?
Alexandre Mate: O TUOV se caracteriza em paradigma estético para a totalidade dos
grupos e também numa alternativa de militância, exatamente por seu caráter
mambembe. Como os grupos atualmente vêem a importância do TUOV? O TUOV,
sem sombra de dúvida, é um paradigma. É um modelo tanto do ponto de vista temático
(escolha dos temas), como do ponto de vista do modo de produção. Se bem que não há
nenhum outro grupo com um modo de produção semelhante ao do TUOV.
César: E que chega a ter dinheiro em caixa. Temos cento e cinquenta mil reais em
caixa. Isso é um milagre. Aplicados, capitalisticamente falando. Porque a gente não
paga o ator. Tem ajuda de custo proporcional ao que vai fazer. Se é no bairro e o grupo
não ganha nada, ninguém ganha nada. Se vamos para Angra dos Reis e o grupo tem
que alugar um ônibus e pagar almoço...Descontando as despesas e 30%, 40% do
grupo, se tem um cachê, nós dividimos com o grupo.
Alexandre Mate: Voltando à questão. Como os grupos vêem a importância do
TUOV? Primeiro, que é um paradigma e esse paradigma se caracteriza pela escolha
dos temas, pelo modo de produção, que é um trabalho que não é colaborativo, como
ele disse, é um trabalho coletivo. A generosidade de César é grande a ponto dele,
sendo já um autor consagrado, já reconhecido e premiado, abrir mão de escrever
textos sozinho para partilhar isso com o grupo. Isso é mais que generosidade. É ter
uma baita coerência e não só discurso. Isso precisa ser dito a todo momento.
116
César: Rarissimamanete cobrei direitos autorais.
Simone: Queria saber também a opinião de vocês sobre a atuação dos grupos.
César: Por incrível que pareça, na época da ditadura, existiram grupos com mais
tempo de vida, mais solidificados e mais atuantes que no período pós-ditadura, até
quatro, cinco anos atrás. Da queda da ditadura, entre aspas, 1988 com a Constituinte,
com Figueiredo, bem ou mal, abrindo mesmo. Até ali, existiam grupos que faziam
trabalhos artisticamente bem feitos, esteticamente bem feitos e com conteúdo, e com
uma mensagem, embora não goste dessa palavra, interessante e no caminho do
popular. Quando houve a abertura, então houve aquela explosão que, talvez, não fosse
tão clara como na França, como na Alemanha, por exemplo, da juventude no meio
cultural. Explodiram dezenas de espetáculos, especialmente falando sobre sexo e
diversas coisas que tinham sido sufocadas. Na medida que a repressão sufocou as
manifestações políticas, sufocou qualquer tipo de manifestação de liberdade, inclusive
sexual. O massacre ao que é subversivo e o que é sexual. Eles combatiam justamente
essas duas coisas. Eram palavras chaves: o imoral e o subversivo. Naquela época,
haviam vários grupos: Núcleo Expressão, Truques e Traquejos, Galo de Briga. Com a
abertura, isso se dilui, acabando o inimigo comum que era a ditadura e partindo para
uma explosão até necessária. Uma gama de assuntos, de temas e formas, que não
estavam centrados num caminho, embora cada um tivesse seu caminho e todos são
absolutamente válidos. Nos primórdios da primeira dentição do Arte Contra a
Barbárie, eu acho que, embora já existissem alguns grupos com esse início, com essa
gravidez em busca de alguma coisa com continuidade, do esteticamente bem feito,
falando do popular e desejando falar para o popular, desejando que seu grupo, se não
era, se transformasse pelo menos em parte, em popular. Situando em tempo, seria,
117
talvez, dois anos antes do Arte Contra a Barbárie, como um marco em que se abrem e
que se solidificam, pelo menos, uns vinte grupos; poderíamos citar alguns que estão
andando pelos bairros, estes que estão participando do Fomento. Isso permite um
florescer e um reflorescer de idéias, com conteúdo, com objetividade, colocando a
fama e o lucro numa posição terciária, objetivando espetáculos e transformações no
palco bastante claros. Considero muito importante o que acontece hoje com esses
grupos atuantes, populares ou não. Não vou citar todos, acho que são mais ou menos
vinte, o trabalho do Luís Alberto de Abreu, dos Parlapatões, cada um com suas
nuances. Cada um com divergências entre si e uma convergência de ideal e de busca
de nova estética ou de manutenção de estéticas que estavam sendo exterminadas. O
fato de querer que se renove tudo no palco é uma tendência, mas querer manter
também o tradicional que existiu é outra tendência tão respeitável quanto a primeira.
Senão nós jogaríamos toda a a arte popular no lixo. O importante é conservar e talvez
modificar. Não diria que nós somos paradigma. Estamos colaborando, a pedido, com
uns quinze grupos, considerando também o VAI. Em termos de reconhecimento, há
muitos convites para lançamento do livro do TUOV: Angra dos Reis, Ilhéus, Salvador,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Santo André, Rio de Janeiro, Lisboa. Apesar do pouco
noticiário da imprensa burguesa. Nós ganhamos um Prêmio Ollantay, que é o prêmio
mais importante da América Latina, cinco ou seis entidades daqui ganharam. Todas
essas saíram no noticiário e nós não saímos. E esse é um prêmio burguês, entre aspas.
O nosso relacionamento é muito bom, e, inclusive, colocamos a sede à disposição. Até
partidos políticos novos que estão surgindo, jovens, fazem reunião lá na sede. Com
relação aos grupos acho que o intercâmbio é o melhor possível, considerando a troca e
a amizade.
118
Simone: A ditadura funcionou como uma espécie de fermento para os artistas da
época?
César Vieira: Não diria que foi fermento, mas o cara, na medida que era ofendido,
que era castrado, era proibido, reagia com as suas armas. Se era um autor de teatro,
com o teatro; é uma reação, falar do opressor; acho que a grande castração que houve
foi no teatro, mais do que na música e do que na literatura. Teatro era mais fácil para o
bossal de direita ver, que ele não leria um livro de trezentas páginas. Teria que
contratar, pelo menos, alguns caras que entendessem de literatura. Pode ver que a
literatura flui muito. Quantos livros foram proibidos? Poucos. Jornais foram proibidos.
O teatro, acho que é a arte sempre mais perseguida por um regime autoritário, desde os
gregos.
Simone: E agora, César, neste momento. Para os grupos em São Paulo, por exemplo,
quais são as grandes causas? O que mobiliza esses grupos em termos de causas
populares?
César: O que eu sinto das conversas com os mais variados grupos é uma ânsia, uma
angústia, uma necessidade de falar para o povo do bairro, para o popular. Existem
muitos e realizando isso muito bem, dentro das possibilidades de dinheiro,
econômicas, de morar no bairro. Eu cito o Pombas Urbanas, por exemplo, como uns
caras que tinham uma opção estética e agora partiram para uma opção de vida. Sem
discutir o mérito de que eles até não estejam fazendo espetáculos tão bons como eles
faziam e que eles não estejam fazendo tantos espetáculos porque o social absorveu
praticamente tudo. Nós estivemos lá agora, há quinze dias, e quem viu no início e vê
agora, eles tem 50, 100, 200 alunos de computação, desenho, teatro e tudo lá,
funcionando. Eles largaram seus locais de residência no centro da cidade ou dos
119
bairros de classe média e foram morar lá. É uma opção que acho muito corajosa, não é
a ideal. Não é que obrigatoriamente tenha de ser assim, mas uma das experiências mais
importantes que acontecem é essa do Pombas Urbanas, um trabalho seríssimo. Cito
também o movimento de teatro de rua em São Paulo e em todo Brasil. Estive no
encontro em Salvador, agora estou indo para Ilhéus. Ver ressurgir isso, talvez com
caminhos até questionáveis em termos estéticos, mas não em funcionalidade. Vejo
todos esses grupos, a não ser os mais iniciantes, com uma estética muito razoável na
prática do funcionamento, que é totalmente diferente da estética de um teatrão. É claro
que os conteúdos podem deixar, ou não, a desejar, mas o caminho está aberto. Há
cinco anos, você listaria 20 grupos de teatro de rua e agora, só em São Paulo, existem
50. E também têm se reunindo na sede do Olho Vivo. Considero muito saudável o que
está acontecendo. E há os outros grupos com temas que eu não recomendaria para o
bairro, mas penso que a escolha é deles e têm a sua validade. Não estamos dentro dos
processos para saber os porquês. De como isso está sendo realizado e de que forma.
Então, acho importante o eclodir da coisa. Há seis anos, quantos grupos existiam? A
Cooperativa Paulista de Teatro tem 500 grupos. Destes, 100, 150 grupos dirigidos a
esse objetivo. Com possibilidades diversas, mas acontecendo. Vão sobreviver, talvez,
20. Isso não importa. Teatro é o momento. Não é o texto na gaveta. Aquilo que
aconteceu conosco em Angra dos Reis, não sei se vai se repetir. Você encontra uma
cidadezinha que vive em função da Petrobrás, fazendo seu 13º Festival de Teatro de
Rua, e o público que frequenta já esperando o próximo espetáculo. Vendo o espetáculo
das cinco, esperando o espetáculo das oito e o espetáculo das dez. Aquelas donas de
casa, com as crianças, sentadas, levando as cadeiras às vezes. Pedi a lona para eles,
para as pessoas sentarem. E eles tem cadeiras. Nunca tinha visto um lugar que tivesse
120
as cadeiras. Quarenta e cinco minutos de espetáculo, em pé, cansa. Tem as crianças, os
idosos e há que se preocupar com a comodidade. Há que se pensar também no público,
porque ele é o objeto da nossa ação.
Alexandre Mate: São muitos os grupos contemplados no Fomento, que não se
preocupam com a comodidade do espectador. O espetáculo acaba após a meia-noite e
não há ônibus, então não é popular. A atitude não se coaduna com o discurso. Existe a
questão da coerência a partir da qual um grupo instaura seu trabalho e desenvolve as
suas relações.
César: A nossa prática não é purista. As pessoas perguntam: Como é que vocês estão
colocando dez microfones de lapela? Nós temos quinze atores e se tiver como colocar
quinze, nós colocamos. Sem o microfone, você atinge 200 pessoas e, com o microfone,
atinge 1000. Temos um ator que tem uma voz descomunal que é o Will e não precisa
de microfone. Temos outra menina que tem uma vozinha e é tão boa atriz quanto ele,
tão popular quanto ele. Chegamos num festival, e se está marcado para as cinco horas,
vai estar escuro; então, nós usamos o refletor. Como é que vamos fazer o espetáculo no
escuro? (...)Se estivesse defendendo a tradicionalidade da arte popular, daí seria outra
coisa. Não é a nossa proposta, embora resvale para isso.
Simone: Considerando os 42 anos de resistência do TUOV, o que mudou na sociedade
em termos políticos, da ditadura até hoje?
César Vieira: Algumas coisas importantes não mudaram para o Olho Vivo e não
mudaram para o resto da humanidade. Os bem intencionados, sempre se nortearam, se
norteiam e vão se nortear pela busca do bem comum e de um ideal. Escolhem um ideal
e procuram realizá-lo. Essa busca, acrescida de todas as transformações sociais que
acontecem, o advento da informática, tudo isso é acoplado, dinamizado no trabalho do
121
Olho Vivo e incorporado ao seu trabalho. Permanece a busca e a concretização de um
ideal permanente, que é o bem comum. E isso nós guardamos como uma chama e
pretendemos que continue sempre sendo aplicada através dos nossos espetáculos, da
nossa dinâmica, que nunca é estática, sempre é modificada de acordo com a época,
mantendo uma linguagem estética popular.
Simone: Nessa perspectiva da preocupação de vocês com a transformação social, com
essa questão do bem comum, qual é o significado da atuação de vocês? E os resultados
da atuação do grupo com a transformação social? O que vocês efetivamente acreditam
conseguir transformar com o teatro que vocês fazem?
César: É uma avaliação muito genérica, que se torna muito difícil de ser feita.
Embora tenhamos até elementos para isso, graças à preservação da nossa memória
feita através de gravações de voz, de video, publicações, de debates, de discussões
sobre novos temas, tudo isso mantém a dinâmica do grupo e a forma como ele deve
funcionar; e sempre, como eu já disse, se transformando de acordo com a realidade;
nós estamos interessados em contar uma história e que essa história sirva como opção
de discussão. Nós vamos contá-la da forma que ela seja mais eficaz e mais prática para
o público popular e isso é muito mutável. Nossos primeiros espetáculos têm sempre a
música e a ação coletiva e isso foi mantido até hoje, além de todos os acréscimos que
podem vir da modernização. Nós podemos usá-los, desde que sejam úteis ao nosso
trabalho e ao que nós queremos passar para o nosso público. Se é eficaz, se está
funcionando... Não que “em time que está ganhando não se mexa”. Se mexe e se
procura aperfeiçoar. As nossas reuniões são uma continuidade desse trabalho. Tem o
espetáculo e tem que refletir sobre o que acontece no grupo. Quando você discute
horas e horas uma postura coletiva, grupal e de ideal, você resvala em discutir até o
122
cachorro que está fugindo à noite, porque a pessoa que saiu não fechou o portão e ele
pode ser atropelado. Isso faz parte do jogo. Então, coisas importantes são discutidas
pelo coletivo e coisas não importantes não necessariamente serão. Mas o assunto de
uma viagem para Ilhéus foi discutido da mesma forma que a necessidade de um canil
porque os cachorros são membros vivos etc. Isso faz parte do dia-a-dia, é o feijão com
arroz. Como é que você vai para Angra dos Reis, se você tem que ter um ônibus aqui, a
tal hora, e um ônibus para trazer você de volta? Tudo isso é uma coisa pequena, mas
que na comunidade é determinante. Como num hospital, a lavagem da roupa para
evitar contaminação. Faz parte do jogo e o jogo é um coletivo. O coletivo hoje tem 25
pessoas, contando com os acompanhantes. Não gostávamos de ver fotografia coletiva,
porque tem pouca gente. Mas agora nós fomos olhar uma foto de 10 anos atrás, tem
80% do grupo lá. E, às vezes, não houve isso, outras vezes houve, mas sempre teve um
núcleo central que até mudou, mas que fica 10, 15, 20 anos lá. Tem uns mais velhos
que os outros. A faixa etária dominante agora é dos 23 anos. É molecada mesmo!
Simone: Desde a formação do grupo, vem aumentando a presença de participantes da
classe popular no grupo. Como você avalia os níveis de politização dos integrantes do
grupo?
César Vieira: Não temos um “bafômetro” para marcar a pessoa, mas acreditamos que,
na prática das discussões, na prática do exercício, do ensaio do teatro, nas reuniões, nas
apresentações, no contato com o bairro, a pessoa vai crescendo. Logicamente, se você
puser um cara para falar hoje, vai ter desníveis de oradotória, desníveis de cultura.
Mas, com relação a explicar o que é objetivo, o que o cara está fazendo ali, como é que
ele sente, não há diferença. Daria um exemplo como o Cícero, que quando chegou no
Olho Vivo, praticamente não tinha noção de nada e hoje é assessor de um deputado,
123
discute em qualquer lugar, fazendo algumas colocações populares que têm mais
validade do que se estivesse falando o César Vieira, a Graciela Rodrigues, ou o próprio
Zémaria, que é o maestro. Daquele, você esperava aquilo, do outro, você espanta. Lá
em Angra, fiz uma apresentação geral do grupo, para contar a história do grupo. Falei:
“– Bom, agora o César Vieira já falou. Fala outra pessoa do grupo.” Foi outro e
respondeu três, quatro perguntas; foi outro, respondeu também. Cada um no seu
jargão, na sua colocação própria, mas sabendo o que vai falar. O cara está sendo
politizado; no sentido intelectual, não analiso. Analiso o cara lá dentro. A Monique
tem uma diferença imensa do Lucas, por exemplo, mas na hora de explicar uma coisa,
explica com sua linguagem uma coisa comum que discutimos. O livro tem tudo,
praticamente todas essas respostas, mais as que tão surgindo. O espetáculo eficaz
nosso, hoje, tem muito pouco a ver com o espetáculo eficaz d'O Evangelho segundo
Zebedeu, porque ele tem o ator popular e no O Evangelho segundo Zebedeu havia o
ator burguês. Já é uma grande diferença. Qual é a grande transformação? A
transformação é que nós estamos colocando o povo no palco. Como personagem e
como intérprete. O Arena coloca o povo como personagem no palco. Não é o nosso
objetivo, mas está acontecendo. Nós estamos colocando o povo como personagem e
como intérprete. Isso rarissimamente acontece. Você vai num grupo de teatro
profissional, você vai encontrar um cara como o Francisco Cuoco, que o pai era
vendedor de salame, então ele era uma pessoa popular. Agora, não existe a
necessidade. É que aconteceu. Não é que se entrar um burguesinho e um cara popular,
nós vamos privilegiar o cara popular. Não é um racismo às avessas. De jeito nenhum.
Mas sentir o cara crescendo. O Oswaldo, por exemplo, muito bom. A Cátia chega lá
com um livro de teatro que eu nunca vi: Teatro e ambiente. Então fui ver. Tem o
124
Brecht e mais vinte articulistas. Nunca havia visto. Ela leu para mim a biografia e tal.
Isso de forma espontânea. Nasce da necessidade do cara se posicionar. E isso é bem
cobrado. Nós estamos com essa peça e foram distribuídos livros sobre o Sepé Tiarajú.
Não tive tempo de cobrar. No sábado, o cara fala: “– E os livros? Não vamos mais
estudar os livros?” Então digo: “– Vamos pegar essa semana”. Porque é difícil para
eles. Cinco estudam à noite. Vamos começar, no mês que vem, uma noite por semana.
O fato de trabalhar todo sábado e domingo, tem que fazer render. A meta hoje é
terminar essa cena. Sábado, foi das três às onze, numa cena que deu quatro minutos e
meio. Conseguimos marcar, mas é muito trabalhoso. Todo mundo tem o mesmo nível
com relação ao objetivo, ao ideal e à dinâmica de conseguir esse objetivo. O grupo é
um instrumento dessa dinâmica. Como é que ele funciona? Isso é muito mutável. Essa
comissão é muito dinâmica. Antes era muita formalidade. O Mate cometia um erro, os
três caras iam falar com ele, transmitiam a resposta ao grupo, voltavam. Agora os caras
chegam e falam: “ - Você fez tal coisa.” Já resolveu. Agora, se o cara diz: “- Não tô
errado.” Bom, tem quinze caras que acham que você está errado. Ele vai explicar no
coletivo. Em vinte colocações, vem uma para o coletivo.
Simone: Registros do grupo dão conta de que vocês sempre tiveram ao lado de
causas do bairro, muitas vezes dos movimentos para conquistar alguma benfeitoria no
bairro. O debate é um termômetro para vocês saberem se o espetáculo é eficaz?
César Vieira: Na época da ditadura, o debate começava na primeira palavra
esquecendo a peça e discutindo a situação. Diretamente. O pessoal não tinha medo,
como se talvez não estivessem sentindo diretamente. Porque a repressão inclusive
ficava mais em cima da classe média, do que dos populares, jornalistas, intelectuais,
lideranças sindicais; do que propriamente da população, camponeses e tal. Então,
125
naquela época, era direto. Falar contra a ditadura, falar em liberdade, na medida das
possibilidades e da falta de medo daquele público. Não tínhamos tanto receio de
sermos presos por falar isso. Muito mais numa reunião de intelectuais, estudantil, que
você tinha esse medo; num aniversário, num casamento; do que numa reunião no
clube de futebol do bairro. Chamar o governo de filho-da-puta, seria inadmissível
para um intelectual. Numa reunião dessas, eles não iriam prender. O cara diria: “–
Que mal tem um filho-da-puta?” Dificilmente se soube de um processo assim. Mas
soube quando foi dito muito menos do que isso num jornal, e o jornalista foi
processado. E eles estavam presentes, porque tinham olheiros em todo lugar. Então, o
debate era outro. Hoje, se centra muito no espetáculo e, por incrível que pareça, na
dinâmica do Olho Vivo. “ – Esse cara aí trabalha de pedreiro, de mecânico?” para dar
um exemplo. “ – Ele é mecânico de automóvel? Como é que consegue grana?” Muita
pergunta assim. Muitas perguntas sobre o Olho Vivo. Como é que funciona, como
sobrevive, como que se entra no grupo. O cara que mora em Guarulhos está
interessado em entrar no grupo. “– Como é que eu posso entrar?” É diferente,
engraçado. As coisas eram mais ideológicas naquela época. Hoje, diria que interessa
mais saber como é que se faz uma revolta (no caso do espetáculo João Cândido do
Brasil: a revolta da Chibata), e como um grupo de teatro sobrevive. “ – Se não tem
dinheiro, como é que vocês vivem?” Nós estávamos fazendo o Bumba, meu queixada,
num sindicato do Lula, no sábado e no domingo; eles foram presos na quinta-feira.
Naquela época, nós conseguimos fazer uma peça como o Bumba (Bumba, meu
queixada), com algumas coisas escondidas, porque era terrível, meter o cacete na
repressão. Tanto é que o Lula nos levou para lá. Não era o Lula. Não era aquilo, mas
funcionava. Hoje o debate é outro tipo de coisa. O pessoal interessado em fazer teatro.
126
Acho que o grupo, dentro da sua proposta, dentro das possibilidades, consegue fazer
que esse ideal permanente, através das transformações estéticas que sofre, das
mudanças de praticidade, consegue atingir seu objetivo. Está fazendo um espetáculo
que colabora para a transformação social. Esteticamente bem feito, com conteúdo
colaborativo. Temos muito cuidado em falar esteticamente bem feito. Vai ver que tem
gente que não gosta. Reconhecemos que há alguns desníveis de ator, cada dia menos.
Mas faz parte do jogo. Às vezes, estréia um espetáculo com cenas que absolutamente
não colocaria, mas aquilo é representação do coletivo. Na estréia de um espetáculo,
vou encontrar cenas que absolutamente não concordaria que estivessem lá, como
autor, como dramaturgo. Mas faz parte da criação coletiva que ela esteja lá, porque
representa um ponto de vista de alguém, que foi adotado pela maioria, tendo votos
contrários ou não. Passo a esposar aquela idéia, e tentar transformá-la, na hora que
estou diretor, como uma coisa esteticamente factível. Adoto aquilo e jamais vou dizer
que não estou de acordo com essa cena. Seria fugir às normas do coletivo.
Simone: A cultura popular é um elemento bastante significativo para a estruturação
das obras do TUOV, como forma que veicula assuntos de natureza histórica e social.
Como vocês consideram a importância dessas manifestações na construção do
trabalho de vocês?
César: Vou fazer um preâmbulo, que envolve até o texto do Alexandre Mate.
Aprendi na escola de jornalismo, na aula de crítica, que um cara para analisar, falando
especificamente do teatro, não de um livro, de um filme, de um quadro. Para analisar
um espetáculo teatral, tem que ter lido o texto e tem que ter um mínimo de noções de
teatro. Para saber o que é marcação, onde a marcação confronta com o texto, onde
127
segue e onde esquece o texto. Então, a primeira obrigação de um crítico, seria ler esse
texto, antes de analisar. A segunda, é considerar todas as nuances que formam um
espetáculo. Desde a expressão corporal, a marcação, a dicção, a iluminação e o som.
Tem que considerar tudo isso, para depois dar a palavra final. Coisa que,
infelizmente, eu acho que, se acontece no Brasil, é um caso, em mil. Porque eu nunca
soube de alguém que leu um texto meu, embora depois tivesse falado maravilhas
sobre aquele texto, quando o texto, montado, tinha pouca coisa minha. Então, eu faço
esse preâmbulo, para dizer que é a minha visão do que é necessário para se fazer uma
análise. Há uma certa responsabilidade. O jornalista tem o jornal, seus leitores, para
ter lido isso, analisado aquilo, vendo onde está a criação, até para respeitar o diretor.
O diretor pode até ter mexido em tudo. Tive brigas homéricas com vários diretores.
Hoje, nem tanto, hoje eu sou mais calminho. Mas teve época que eu falava: “ – O que
é isso? Está mudando a minha peça? Esse soldado marchando aí, pô!” Na frente do
elenco todo. Algumas vezes estava até certo, nas outras totalmente errado. Proibi
peças. Tem cidade aí, não vô nem citar...Eu falei: “ – Ou você recoloca a cena ou pára
a peça.” O cara recolocou. Outro não...Teve cara que tirou o circo do Zebedeu. Você
tira o circo, a peça fica de pé. Ficou uma peça católica. Então, eu não vou aceitar isso.
O Evangelho segundo Zebedeu traz o circo e traz o cordel. A poesia está presente em
todas. Como apoio para o ator, como busca de uma beleza poética, para traduzir
aquilo que queremos dizer. A poesia a serviço de uma idéia. A estética a serviço da
ética, como colocamos. O Zebedeu vem com o cordel e com o circo. Não
abandonando o futebol. Tem uma cena de futebol no Zebedeu, que é aquela ação do
Moreira César. O exército do Moreira César e tal. Aí não é o Olho Vivo, nem trabalho
coletivo. Vem o Rei Momo, que começa-se a pensar; mas quando estou escrevendo,
128
especialmente, estou pesquisando, é individual. Vou pro Rio, vou morar em
Madureira uma semana, fico com todos os caras. Quando volto de lá, estou falando o
linguajar deles. Com os mesmos erros. Fiquei uma semana lá, virei carioca. Como
jogador de futebol, quando vai jogar na Europa, volta depois de dois meses, não fala
mais português. Então, a peça Rei Momo adota um baile de gala do Teatro Municipal,
que naquela época era o grande acontecimento do carnaval; e havia eleições de Rei
Momo. Então, fazemos a eleição com uma analogia da situação política do Brasil. E
passou. Foi cortada alguma coisa. Essa peça considero a mais violenta anti-ditadura.
E passa. Colocamos um cara tomando o poder, jogando, rasgando o voto. E pondo a
coroa na cabeça, o leão de chácara. O Napoleão já foi até ultrapassado pelo
ditadorzinho do filme americano, que é o leão de chácara. Ele se elege o Rei Momo.
Tem esse baile de gala, mantendo a linguagem de cordel. Daí, seguimos para o
Bumba, meu queixada. O Corinthians, meu amor, já é diferente. É uma novela, um
guião, um roteiro de cinema, que é transformado em peça, dirigida para aquele grupo
do Casarão e também já um outro texto do Corinthians, mas diferente, que é dirigido
pelo pessoal do Mandaqui, do TEMA (Teatro do Mandaqui). É uma outra visão do
Corinthians (Corinthians, meu amor), outra direção. Não dirigi o Corinthians do
Casarão, nem o do Mandaqui. O Marco Antônio dirigiu o do Mandaqui. São
concomitantes. As peças são dirigidas ao mesmo tempo. O Corinthians não é ainda
coletivo. Passa a ser coletivo quando optamos pelo bairro e pela greve. A partir de um
tema. Qual o tema? Vinte temas. Vamos fazer uma greve...Na época em que as greves
estavam começando. Havia a grande greve de Osasco, a grande greve de Contagem,
de Minas. E tinha acontecido a greve de Perus, aqui. E estavam começando, na época,
as greves do Lula. Então, nós escolhemos esse tema, e o que chamamos de a estrutura
129
do espetáculo. O espetáculo vai ser contado como se fosse um bumba-meu-boi.
Então, usamos todos os artifícios, o jogo, a poesia, a sacanagem, especialmente a
sacanagem, do bumba-meu-boi; contando a história de greve. Você pode pintar todo
o bumba-meu-boi e contar a história da greve. Com o mesmo texto, a história da
greve fica de pé. Mas ela não tem aquele sabor de ser o bumba. Quer dizer, ela tem
uma cena totalmente falada, na qual entrava o Jarbas Passarinho, que foi proibida.
Para nós foi um bem, porque hoje eu não gosto da cena, acho terrivelmente chata. Era
só falada, numa peça totalmente musical. Com essa peça começa o trabalho coletivo.
Vão participantes do grupo para Belo Horizonte, para ficar cinco dias; cada um dava
cinquenta paus. Fizemos amizades lá, com os caras do sindicato; ficavam na casa
deles, para pesquisar a greve de Contagem, que era uma greve importante. Começam
a pesquisar tudo sobre a greve de Perus, que tinha sido uma greve importantíssima,
ganha na Justiça do Trabalho. Então, fomos pesquisar o advogado, o que funcionou.
Caras que fizeram a greve; o João Breno, que está vivo até hoje. Todo esse tipo de
coisa foi pesquisado. Passa a ser trabalho coletivo. Procuramos sempre, mesmo que
depois não siga tanto, ter uma estrutura de arte popular brasileira. Trabalhamos com o
bumba-meu-boi, com o circo, com o samba, com a escola de samba, com o samba
enredo. No Us Juãos e os Magalis ela fica mais patente, com a nau catarineta, a
marujada. Foi muito estudada, com Eneyda Alvarenga. Não apenas eu, mas todo o
grupo. O que, para o ator, é um desperdício em termos de criação, mas é uma
facilidade em termos de receber munição. Entendeu o que eu quis dizer? Então,
escrevo a peça. Vai ter isso, isso e isso. Então levo, escrevo, e depois discuto;
atualmente com o Will e o Lucas. Aí, vai ser estudada a revista musical. O Rei Momo
é, praticamente, uma revista musical, no que diz respeito à estrutura. O João Cândido
130
(João Cândido do Brasil: a revolta da Chibata) é uma salada. É misto de circo, de
tudo que você possa pensar.(...) Esse aprendizado da praça, quer dizer, o ator que
nasce na rua, que é um ator genuíno de rua, não adquire aquilo numa escola de arte
dramática, mas na conversa que ele quer mostrar pro público. Como o camelô. O
camelô quer vender a sua quinquilharia; ele põe no chão! Um baralho, uma lanterna,
para vender; e fica falando sobre aquela lanterna. Às vezes, ele põe uma cobra, a
cobra fica se mexendo e ele fica falando sobre a cobra. Transmite aquilo que vai
propiciar a sua subsistência. Então, ele transmite aquilo com toda a beleza que ele
pode, como ímã para atrair o público. Aquele público que vai comprar. É o verdadeiro
ator. Tem um cara no Peru que se chama Jorge Alcunha Parede, que foi um cara, que
foi, por exemplo, um Fagundes (Antônio Fagundes), numa determinada época; um
cara conhecido no país inteiro, fazendo grandes novelas. Então, um dia, dá um estalo
na cabeça dele. Ele fala: “ – Parei”. Vai para praça San Martin, e fica lá, até morrer,
fazendo espetáculo, praticamente todo dia, no fim da tarde, um mesmo espetáculo; ou
repete outro. Tinha aquele gabarito de ator popular. Não sei se ele ia de carro, se não
ia, se ele virou um franciscano e tal. Mas ele, nesse livro nosso, tem um artigo. Se não
leu, dê uma lida. Tem um artigo maravilhoso, em que fala do rompimento com as
salas perfumadas. Ele rompe com o teatro. Vamos aprendendo com a prática. A nossa
teoria não é nenhuma teoria... É a reportagem da prática. Como é que se consegue
falar? O cara fala: “ –Vamos para Jundiaí!” Quero que aquilo não se perca. Todo
mundo repete: “ – Vamos para Jundiaí!” Duma forma que essa repetição não se torne
enfadonha, nem você note. Você não nota a repetição. Mas nós repetimos isso,
calculadamente. Estava marcando uma cena de queimar o dinheiro. No texto está lá:
queima uma nota. Como é que você vai fazer isso? Tem que fazer uma puta duma
131
cena. Então, é uma coisa religiosa. Os índios, cantando uma música indígena,
queimando o dinheiro. Aquilo vai levar um minuto. Então, nós enchemos de: “ –
Queimem a nota! Queimem a nota!” Isso sabemos que vai funcionar no bairro,
entende? Quando aparece o Will ou a Lúcia cantando, não é preciso nenhum artifício.
Com os outros falando, preciso de um artifício. Senão, vai ser uma peça só para atores
com uma puta voz. E você tem que passar o texto, se é com uma manifestação
popular, que morra em si, mas que traga condimentos de revolução, de sociabilidade,
é uma coisa. Uma história contada com começo, meio e fim. Então, que esse
comecinho, meio e fim termine aqui; o outro comecinho, começo, meio e fim, termine
aqui. Se o cara for perdendo esse negócio aqui, entra uma outra cena, que ele vai
seguir o sequencial. Isso funciona perfeitamente. A ponto de, antes da peça, já termos
marcado os times da risada e da participação. Nós já sabemos onde vão rir. Vão rir
aqui... “ – Pára, e dá um tempo, que vai vir o riso.” Você não vai cortar o riso. Espera,
aumenta, diminui. Isso tudo é bastante estudado. Então, essa peça está dando tempo
para fazermos tudo isso. Às vezes, não dá tempo. Nós temos que estrear em setembro.
Estamos com vinte convites do Barbosinha para fazer; o que nos rouba os sábados e
domingos.
Simone:Você falou do Fagundes algumas vezes. Como é que foi a passagem do
Caruso, do Fagundes? Como é que você vê a contribuição deles, ou a contribuição do
grupo para eles?
César: Do Fagundes é diferente, o Fagundes foi contratado quando termina O
Evangelho segundo Zebedeu do XI de agosto; começamos com outros trabalhos, que
ainda era XI. Começamos com o Rei Momo. Já era mais uma espécie de direção de
colegiado; éramos eu a Laura dirigindo, a primeira experiência minha de direção, com
132
o Teatro da Cidade, de Santo André, que é um grupo de pessoas muito boas. Tinha o
Antônio Petrin, a Sônia Guedes. Contratam o Silney para fazer uma nova versão
d'OEvangelho segundo Zebedeu. O grupo se profissionaliza; todos eles são
profissionais e chamam o Fagundes para fazer o Conselheiro. O Fagundes não fez o
Conselheiro do XI de agosto, nem do Olho Vivo. Você vê que na fotografia do
Fagundes está escrito: O Evangelho segundo Zebedeu, Teatro da cidade de Santo
André. Não está como Olho Vivo. Nós só pusemos a fotografia, porque é para mostrar
o Fagundes como um dos caras. Na época, nem era tão conhecido, fez o espetáculo e
está por aí. Não temos nada contra.
Simone: Então ele fez a peça, mas nunca foi do grupo?
César: Não, nunca foi do grupo. Ele fez O Evangelho segundo Zebedeu, acho que uns
50, 60 espetáculos, num dos quais ele é levantado por um guindaste de Aeronáutica,
com um negócio de pára-quedas, e ficou preso lá em cima, quase cortou o saco. O
público aplaudindo, pensando que fazia parte e ele esperneando lá em cima. Havia
quebrado o guindaste. E aquilo aperta, um negócio que puxa assim (risos). Não sei se
castrou o cara. Tá por aí até hoje. O Caruso já é diferente. Era um ator que fazia teatro
amador na biblioteca, e entra no XI de agosto, na faculdade de direito. O pai querendo
que ele fosse advogado, e ele querendo ser ator. Se integra ao grupo que iria montar o
Rei Momo. E fica todo o período de montagem e mais um ano, mais ou menos. Então,
participou bastante. Não viajou; saiu do grupo quando o grupo foi para a Polônia. Ele
já tinha um convite. Não sei como seria hoje, mas não era Olho Vivo. Hoje, a pessoa
que sai do grupo sempre dá um aviso de noventa dias. O pessoal, normalmente, sai do
133
grupo no intervalo entre uma peça e outra. É absolutamente normal. Saem alguns e
entram outros. Há exceções mais raras. Quem dá o aviso de noventa dias, geralmente é
substituído. E, geralmente, se sai numa boa; raríssimas vezes não é assim. Tanto é, que
volta todo mundo lá. Invariavelmente, uma vez por ano, passam por lá. Dos cento e
cinquenta, cento e oitenta, que passaram por lá, estão lá uma vez por ano. Gostam.
Então, o Caruso teve uma participação muito grande, porque ele é um cara bastante
criativo, dando palpites. Faz um personagem, Dom Pedro I, que é um Dom Pedro
Quixote, maravilhoso. Inclusive, teve um programa do Faustão, que eles mandaram me
entrevistar, e mandei uma fita. E o Faustão colocou, no ar, uma fita da voz dele
falando: “ – Onde o gigante...” e tal, como Dom Pedro I. Ele chorou. Falei: “ – Põe
isso no ar, que ele vai ficar louco. Daí, o Faustão disse: “ – É a sua voz!” Ele
respondeu: “ – É minha voz.” E começou a chorar. Nunca imaginou que, quarenta anos
depois, iam colocar a voz dele num programa global; e ele gritando aquilo lá. Foi no
carnaval desse ano.
Simone: Você disse que a peça O Evangelho segundo Zebedeu termina com a
convocação do público para a luta armada. Qual a sua opinião sobre isso?
César: Quando escrevi não pensava assim, hoje penso. Acho que aí é um problema de
direção. O cara pode dar uma reforçada nessa idéia, chamando para as guerrilhas
atuais, se é que elas existem com o mesmo sentido, ou diminuir a intensidade daquilo,
chamando o público só para participar com eles em outra manifestação cultural. Dá
para fazer as duas coisas. O cara que escreveu isso foi o Luis Alberto Sanz, que é um
cara que estava preso naquela época. Um bom crítico teatral, professor de teatro da
Universidade do Rio, jornalista. Ele encarava como um puta negócio. Chamando o
134
cara para revolução e dizendo: o autor não tem a esperança que esse público vá fazer
isso. Eles vão continuar com a bunda sentada e não vão fazer porra nenhuma. Não
completou que iriam comer pizza depois... Mas a idéia dele era essa. Considero uma
análise muito boa. A melhor análise do Zebedeu é desse cara.
Simone: E o Bumba, meu queixada termina com a convocação à consciência coletiva
dos trabalhadores.
César: Termina com quatro opções, porque não fechei. Acharia válida, por exemplo, a
ida para a Justiça do Trabalho, se ela fosse eficaz. Mas não me pronunciei. Um chama
para luta armada, o outro para a comissão de fábrica e o outro para a Justiça do
Trabalho. A comissão de fábrica, talvez, fosse o degrau mais factível de uma melhoria,
e tal, que não existe mais. Naquela época, existia comissão de fábrica, que, em plena
ditadura, iria discutir com o patrão. O Lula se fez nisso. O Lula foi o mestre na
discussão de comissão de fábrica. Ele deixava os patrões e os advogados dos patrões
deste tamanhinho. Ele discutia muito bem, e conseguia a jogada. Na carreira dele, ele
foi um grande negociador de aumentos. É engraçado isso, né?! Depois, que ele parte
para a radicalização, não uma luta armada, mas a radicalização no sindicato. Daí, já
eram “outros quinhentos”, estava começando a abrir. Porque, em setenta e nove, ele
nunca falaria isso.
Simone: Você valoriza bastante os atores, tanto é que você está presente em todos os
espetáculos, pelo menos em todos em que eu estive.
César: A minha obrigação é a mesma dos atores. A Graciela, por exemplo, só não está
porque está doente. O Gil está em todos os espetáculos. E quando estamos fazendo de
dia, e não tem luz, então ele é um elemento que ajuda na função.
135
Simone: E mesmo hoje. Dá para perceber que você sabe os detalhes da lona, do
praticável, do cubo.
César: Só não interfiro na direção. Por exemplo, nesse espetáculo fiz questão de não
dar um palpite, e nem assisti aos ensaios. Porque é o nascimento de dois novos
diretores. E dois bons, com uma condição de trabalho; logicamente tudo dentro de uma
escola olhovivense. Você vai ver um ensaio nosso, se não tiver num dia de necessidade
de estréia, é uma puta seriedade. Senão, é gozação total. O cara vai dar um palpite, aí
fala: “ – Dá um palpite, seu filha-da-puta! E não enche mais o saco!” Daí, o cara dá o
palpite, e a gente incorpora. A gozação é permanente, e isso é uma coisa que
vem...funcional pacas. Aí, depende... se chegar dez horas da noite, onze, uma hora, aí
já não...
Simone: Uma ação sua muito significativa é o fato de você tomar cada um pela mão
no final: “ – Esse aqui é torneiro mecânico, esse aqui é artesão, esse aqui é
desempregado”, enfim; é a valorização do trabalhador do teatro, e do trabalhador em
si! Como é que você vê o trabalhador hoje? O trabalhador ainda é o protagonista de
uma possível revolução, pensando em termos socialistas?
César: Acho que aí você tem que voltar no tempo do Getúlio Vargas, em trinta e sete,
quando ele fez a Carta del Lavoro, que havia todo um núcleo de trabalhadores; embora
esse cara fosse um ditador, um puta torturador, ele conseguiu uma visão de trabalhador
unido e trabalhador em busca dos seus direitos; até para acomodar e para conseguir
governar com os poderosos, fingindo que está dando as coisas pros oprimidos. Depois
disso, vem uma democracia aqui, e vem a época da ditadura militar, em que tudo é
136
fechado. Mas começa o ressurgir e o grande momento do operariado organizado, que é
o movimento do Lula. Que é o movimento de Contagem, o movimento de Osasco, a
própria greve de Perus; e esses caras se organizando, fundando as grandes centrais
sindicais, que é o caso da CUT, por exemplo. E depois até a Força Sindical, embora já
seja bem mais picareta. Mas a CUT, como representante do operariado do Brasil, bem
organizada. Coisa que não houve nem na Polônia do Walessa. Esse tipo de
organização, não houve. Lembro bem que num encontro do Lula com o Leche
Walessa, o Walessa falou para ele: “ – Você está fazendo partido politico? Papel do
sindicalista não é isso.” Depois disso tudo, o Walessa rompe, funda o sindicato e se
elege presidente, antes do Lula. Coisa que ele disse que era totalmente imoral. Foi um
péssimo presidente, aliás. Acho que o movimento organizado teve essa grande
ascensão, até o início da abertura. Depois, ele vai caindo, e hoje ele é pouco
representativo. A única coisa mais ou menos representativa, mas ainda assim em
decadência, é o MST. Também devido a tudo isso que aconteceu, a proximidade do
poder, a necessidade dos caras terem dinheiro. Estão montando uma peça minha, no
sul: Morte aos brancos. E eles tem uma estrutura de levar os caras de kombi, de perua,
que nem o Olho Vivo não tem. E isso significa proximidade do poder. Porque esse
dinheiro é dado. Eles insinuam ser contra. O departamento de teatro do MST resolveu
montar o Morte aos brancos. É o problema da terra que eles enfocam, mas não vi.
Simone: Esse departamento de teatro tem a ver com o pessoal que foi em Guarulhos
ver vocês?
César: Exatamente. Eles pediram autorização para montar, e eu dei.
Simone: Nós estávamos no Jardim Aeródromo, em Guarulhos.
137
César: É. Eles nos descobriram lá e foram nos ver. Depois, apresentaram esse
espetáculo num encontro do MST em Brasília, e em alguns lugares, mas eu não vi.
138
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo