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COLÉGIO SÃO TOMAS DE AQUINO FILOSOFIA (organização: Prof. Márcio Luiz dos Santos Ewald) 1 UNIDADE I O SURGIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA 1. A FILOSOFIA Do grego F s f a: philos (amigo)+sophia (sabedoria) Buscando uma definição objetiva A Filosofia é uma disciplina tão antiga e tão enraizada em nossa cultura que arriscar uma única e objetiva definição da disciplina nos parece bastante apressado. Se um aluno solicitar a qualquer professor de filosofia uma definição objetiva e (de preferência) curta de sua área de estudos, vai ouvir com certeza uma resposta pouco esclarecedora ou mesmo não ouvirá resposta alguma. Para iniciar nosso trabalho, vamos tentar algumas definições curtas e objetivas e, em seguida, para complicar tudo, vamos mostrar por que essas definições não são boas. Definição 1 A filosofia é o amor ou amizade pela sabedoria (philos = amigo e sophia = sabedoria). Definição 2 A filosofia é uma teoria sobre a realidade geral. Definição 3 A filosofia é a mãe de todas as ciências. A definição 1 é a mais conhecida dos iniciantes no estudo de filosofia. Ela não é propriamente uma definição errada, uma vez que a análise do significado original da palavra grega Filosofia nos remete a esse suposto amor que o filosofo tem pelo saber. Entretanto, a definição parece demasiadamente incompleta. O grego Platão escreveu um diálogo, chamado O Banquete, onde o assunto central das discussões travadas é o amor. Na parte central do diálogo, o filósofo Sócrates (uma das personagens do diálogo), discorre longamente sobre o que ele acreditaria ser o amor verdadeiro (que seria o amor pela sabedoria, pela verdade). Veja só: se temos um livro inteiro sobre o assunto, qualquer tentativa de definição do amor à Filosofia em apenas uma linha parece um resumo preguiçoso. A definição 2 sugere que as ciências se ocupam com aspectos particulares da realidade e a filosofia se preocuparia com a realidade como um todo. Assim, a Física se preocuparia com o aspecto físico da realidade (o movimento, a matéria etc.), a Química com os elementos que compõe a realidade material, a Psicologia com os aspectos não físicos da existência humana (a mente, o comportamento, o inconsciente) e assim por diante. A filosofia não se deteria em nenhum aspecto particular, mas sim na realidade geral, entendida como um todo. Essa não é uma definição muito abrangente, uma vez que algumas filosofias (ou alguns filósofos) não tendem a tratar a filosofia como uma teoria geral sobre a realidade. Filósofos contemporâneos como Nietzsche e, mais recentemente, Gadamer, tentaram construir um discurso não teórico sobre a realidade. Um outro, Witggenstein, chega a dizer que toda filosofia é filosofia da linguagem (ou seja, apenas a linguagem deveria preocupar o filósofo e não a realidade como um todo). A definição 3 sugere que existiria um grau de hierarquia entre a filosofia e as demais ciências. A filosofia estudaria os fundamentos, as bases racionais sobre as quais assentariam as demais ciências como a física, biologia, história, etc. Essa é uma definição um pouco desatualizada, uma vez que a ciência moderna, por ter assumido o papel de base do desenvolvimento tecnológico do mundo contemporâneo, separou-se da filosofia de tal maneira que o estudo sério e aprofundado de Filosofia não é mais solicitado na formação de um cientista. Veja que dissemos “solicitado” e não “necessário”. A necessidade da filosofia é algo a ser discutido. Por que o mundo contemporâneo parece não precisar mais de filosofia? De qualquer forma, a ligação da Filosofia com as demais ciências não é tratada mais de forma hierárquica, como se a filosofia tivesse um grau de importância ou privilégio sobre as demais. A filosofia é hoje uma disciplina entre as demais, com seus problemas, suas respostas, suas teorias, enfim, com se escopo definido. Buscando uma definição a partir das origens Nos dias de hoje, a Filosofia atinge uma ampla gama de atividades e teorias, sendo uma disciplina ou área de estudos que envolve a investigação, análise, discussão e construção de idéias ou de visões de mundo. Essa disciplina originou-se da inquietação humana gerada pela curiosidade em compreender e questionar os valores, as idéias, as interpretações comumente aceitas por todos sobre a sua própria realidade. a) Significado etimológico A etimologia é a ciência que estuda o significado das palavras a partir de sua origem. A análise etimológica da palavra “Filosofia” sugere que sua origem é grega (f s f a ), resultando da união de outras duas palavras: “philia” (f a), que significa "amizade", "amor fraterno" e respeito entre os iguais e “sophia” (s f a), que significa "sabedoria", "conhecimento". De “sophia” decorre a palavra “sophos” (s f ), que significa “sábio”, “instruído”. Do ponto de vista etimológico,

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COLÉGIO SÃO TOMAS DE AQUINO – FILOSOFIA (organização: Prof. Márcio Luiz dos Santos Ewald)

1

UNIDADE I – O SURGIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA

1. A FILOSOFIA Do grego F s f a: philos (amigo)+sophia (sabedoria)

Buscando uma definição objetiva A Filosofia é uma disciplina tão antiga e tão enraizada

em nossa cultura que arriscar uma única e objetiva definição da disciplina nos parece bastante apressado. Se um aluno solicitar a qualquer professor de filosofia uma definição objetiva e (de preferência) curta de sua área de estudos, vai ouvir com certeza uma resposta pouco esclarecedora ou mesmo não ouvirá resposta alguma.

Para iniciar nosso trabalho, vamos tentar algumas definições curtas e objetivas e, em seguida, para complicar tudo, vamos mostrar por que essas definições não são boas.

Definição 1 A filosofia é o amor ou amizade pela sabedoria (philos = amigo e sophia = sabedoria). Definição 2 A filosofia é uma teoria sobre a realidade geral. Definição 3 A filosofia é a mãe de todas as ciências.

A definição 1 é a mais conhecida dos iniciantes no estudo de filosofia. Ela não é propriamente uma definição errada, uma vez que a análise do significado original da palavra grega Filosofia nos remete a esse suposto amor que o filosofo tem pelo saber. Entretanto, a definição parece demasiadamente incompleta. O grego Platão escreveu um diálogo, chamado O Banquete, onde o assunto central das discussões travadas é o amor. Na parte central do diálogo, o filósofo Sócrates (uma das personagens do diálogo), discorre longamente sobre o que ele acreditaria ser o amor verdadeiro (que seria o amor pela sabedoria, pela verdade). Veja só: se temos um livro inteiro sobre o assunto, qualquer tentativa de definição do amor à Filosofia em apenas uma linha parece um resumo preguiçoso.

A definição 2 sugere que as ciências se ocupam com aspectos particulares da realidade e a filosofia se preocuparia com a realidade como um todo. Assim, a Física se preocuparia com o aspecto físico da realidade (o movimento, a matéria etc.), a Química com os elementos que compõe a realidade material, a Psicologia com os aspectos não físicos da existência humana (a mente, o comportamento, o inconsciente) e assim por diante. A filosofia não se deteria em nenhum aspecto particular, mas sim na realidade geral, entendida como um todo.

Essa não é uma definição muito abrangente, uma vez que algumas filosofias (ou alguns filósofos) não tendem a tratar a filosofia como uma teoria geral sobre a realidade. Filósofos contemporâneos como Nietzsche e, mais recentemente, Gadamer, tentaram construir um discurso não teórico sobre a realidade. Um outro, Witggenstein, chega a dizer que toda filosofia é filosofia da linguagem (ou seja, apenas a linguagem deveria preocupar o filósofo e não a realidade como um todo).

A definição 3 sugere que existiria um grau de hierarquia entre a filosofia e as demais ciências. A filosofia estudaria os fundamentos, as bases racionais sobre as quais assentariam as demais ciências como a física, biologia, história, etc.

Essa é uma definição um pouco desatualizada, uma vez que a ciência moderna, por ter assumido o papel de base do

desenvolvimento tecnológico do mundo contemporâneo, separou-se da filosofia de tal maneira que o estudo sério e aprofundado de Filosofia não é mais solicitado na formação de um cientista. Veja que dissemos “solicitado” e não “necessário”. A necessidade da filosofia é algo a ser discutido. Por que o mundo contemporâneo parece não precisar mais de filosofia?

De qualquer forma, a ligação da Filosofia com as demais ciências não é tratada mais de forma hierárquica, como se a filosofia tivesse um grau de importância ou privilégio sobre as demais. A filosofia é hoje uma disciplina entre as demais, com seus problemas, suas respostas, suas teorias, enfim, com se escopo definido.

Buscando uma definição a partir das origens Nos dias de hoje, a Filosofia atinge uma ampla gama

de atividades e teorias, sendo uma disciplina ou área de estudos que envolve a investigação, análise, discussão e construção de idéias ou de visões de mundo. Essa disciplina originou-se da inquietação humana gerada pela curiosidade em compreender e questionar os valores, as idéias, as interpretações comumente aceitas por todos sobre a sua própria realidade.

a) Significado etimológico A etimologia é a ciência que estuda o significado das

palavras a partir de sua origem. A análise etimológica da palavra “Filosofia” sugere

que sua origem é grega (f s f a), resultando da união de outras duas palavras:

“philia” (f a), que significa "amizade", "amor fraterno" e respeito entre os

iguais e

“sophia” (s f a), que significa "sabedoria", "conhecimento".

De “sophia” decorre a palavra “sophos” (s f ), que significa “sábio”, “instruído”. Do ponto de vista etimológico,

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portanto, Filosofia significa amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Assim, o "filósofo" seria aquele que ama e busca a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. A tradição atribui ao filósofo Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a criação da palavra. Filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.

b) A Filosofia em suas origens Quando surgiu na Grécia (século IV a.C), a Filosofia

se preocupava com a observação e compreensão racional dos fenômenos naturais. Alguns desses fenômenos chamavam mais a atenção dos filósofos: a ordem com que as estações se repetem, a aparição de certos corpos celestes como os cometas, entre outros. Essas questões levam o homem a tentar reorganizar as inquietações que assolam o campo das idéias e, consequentemente, os padrões de pensamentos que formulam as diversas teorias agregadas ao conhecimento humano.

Contudo, o conhecimento científico por sua própria natureza torna-se suscetível às descobertas de novas ferramentas ou instrumentos que aprimoraram o campo da sua observação e manipulação, o que em última análise, implica tanto na ampliação, quanto no questionamento de tais conhecimentos. Dessa forma, a filosofia acaba por dar origem à novas formas de pensamento, mais específicas, mais especializadas. Surge o pensamento científico. Neste contexto, podemos dizer que a filosofia surge como "a mãe de todas as ciências".

As sub-disciplinas da Filosofia A Filosofia costuma ser classicamente dividida em

sub-disciplinas, que dão uma mostra do tipo de estudo levado a cabo por esta disciplina:

a) Epistemologia ou Teoria do Conhecimento Trata do estudo e da fundamentação racional do conhecimento humano. Tenta responder perguntas tais como: “que garantias posso ter de que o conhecimento que tenho da realidade corresponde à própria realidade”?

b) Ética Trata do estudo e da fundamentação dos valores que orientam a conduta humana. Tenta responder perguntas tais como: “como discernir o bem do mal, o certo do errado?”, “como levar uma vida boa”? “que garantias posso ter que os valores que uso para orientar minha vida são corretos?”

c) Filosofia da Arte ou Estética Trata do estudo e da fundamentação do belo artístico. Tenta responder perguntas tais como: “que garantias posso ter de que uma obra artística é ou não bela?”, “o belo é uma questão de gosto pessoal ou existem critérios universais para distinguir o belo do feio”?

d) Lógica Trata do estudo do uso correto e válido do raciocínio. Tenta responder perguntas tais como: “que garantias posso ter de que a conclusão de um raciocínio se segue logicamente de suas premissas?”, “qual é a diferença entre verdade e validade?”

e) Ontologia Trata do estudo da realidade em seus aspectos mais gerais e abstratos, ou seja, o estudo do Ser. Tenta responder a perguntas tais como: “se ignorarmos as propriedades particulares dos

seres, tais como matéria, forma, tempo, o que sobra”?, “o que é o Ser?”

Há, ainda, uma série de outras sub-divisões da filosofia, tais como Filosofia da Linguagem, Filosofia do Direito, Filosofia da Mente de sorte que qualquer assunto parece ter direito a possuir uma filosofia própria (filosofia da educação, filosofia da psicologia, filosofia do cotidiano etc.). Aqui, não vamos nos ocupar dessas outras subdivisões da filosofia, que aparecem apenas a título de curiosidade.

Definições dos Filósofos sobre a Filosofia Interessante notar que os próprios filósofos tentaram,

no decorrer da história dessa disciplina, defini-la das mais diferentes maneiras. Tais definições podem nos ajudar a encontrar a nossa própria definição (mesmo que intuitivamente). Vejamos algumas delas.

“É o uso do saber em proveito do homem, o que implica em (a) posse de um conhecimento que seja o mais amplo e mais válido possível, e (b) o uso desse conhecimento em benefício do homem”.

Platão, filósofo grego.

“Significa o estudo da sabedoria”. René Descartes, filósofo francês racionalista.

“É o conhecimento causal e a utilização desse em benefício do homem”.

Thomas Hobbes, filósofo escocês empirista.

“É ciência da relação do conhecimento à finalidade essencial da razão humana, que é a felicidade universal; portanto, a Filosofia relaciona tudo com a sabedoria, mas através da ciência”.

Immanuel Kant, filósofo alemão idealista.

“É a crítica dos valores, das crenças, das instituições, dos costumes, das políticas, no que se refere seu alcance sobre os bens”.

John Dewey, filósofo norte-americano.

“É a ciência da ciência em geral”. Johann Gottlieb Fichte, filósofo alemão.

“É a ciência universal que deve unificar num sistema coerente os conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares”.

Auguste Comte, filósofo francês positivista.

Filosofia da filosofia A palavra "filosofia" ganha, em dimensões específicas

de tempo e espaço, concepções novas e diferentes, tornando muito difícil sua exata definição. São muitas as discussões sobre sua definição e se possui um objeto de estudo específico. Talvez a melhor maneira de se abordar inicialmente a filosofia não seja definindo-a, pois tal definição já exigiria um exercício de filosofar. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) acreditava que não há como se definir um conceito sem que já se tenha alguma compreensão prévia da própria definição. Neste sentido, para se definir a filosofia já é necessário filosofar. Enfim, definir a filosofia é fazer uma filosofia da filosofia.

Na verdade, a maioria das definições de Filosofia não conseguem abarcar com precisão cobrir tudo aquilo a que se chama filosofia. Entretanto, isso não significa que a Filosofia

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seja algo imponderável, sobre a qual nada se pode falar. Há outros modos de se chegar a uma concepção da filosofia mesmo sem uma definição.

Atitude filosófica Alguns filósofos defendem que a Filosofia seria não

uma disciplina, mas uma atitude diante da realidade e da vida. Fazer Filosofia seria assumir uma atitude de questionamento, de dúvida, e mesmo de certa desconfiança para com os saberes estabelecidos (por exemplo, o saber científico e o senso comum).

Isso não significa, entretanto, que qualquer pessoa que duvide ou desconfie seja já um filósofo. Por exemplo, duvidar que ao enfiar o dedo na tomada levaremos um choque não faz de uma criança um filósofo (mas alguém completamente desprotegido e vulnerável). Duvidar por duvidar, sem propósito, não constrói nenhuma filosofia e pode significar apenas ignorância. O duvidar filosófico exige método, estudo, domínio dos problemas filosóficos e, em certa medida, domínio da própria história da Filosofia.

A (in-)utilidade da Filosofia Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em

nosso cotidiano. Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é

hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.

Quando digo “ele está sonhando ”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.

Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão.

A frase “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir

razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.

Mais algumas definições importantes de Filosofia Para terminar esse nosso trabalho de definição da Filosofia, vamos nos deter em mais algumas interessantes tentativas feitas por alguns importantes filósofos.

a) Aristóteles A principal característica que Aristóteles vê num filósofo é que ele não é um especialista. O sophos (o sábio, tomado aqui como sinônimo de filósofo) é um conhecedor de todas as coisas, sem possuir uma ciência específica. O seu olhar derrama-se pelo mundo, sua curiosidade insaciável o faz investigar tanto os mistérios do kosmos (o universo) e da physis (a natureza) como os que dizem respeito ao homem e à sociedade. No fundo, o filósofo é um desvelador (alguém que afasta o véu daquilo que encobre as coisas), que procura mostrar os objetos na sua forma e posição original.

b) Platão Para Platão, a primeira atitude do filósofo é a de admiração. O admirar-se leva à reflexão crítica, o que marca a filosofia como busca da verdade. Filosofar é dar sentido à experiência.

c) Whitehead Segundo Alfred Whitehead (1861-1947), a filosofia ocidental é uma nota de rodapé à obra de Platão, apenas um comentário às idéias originais de Platão.

d) Wittgenstein Para Ludwig Wittgenstein (1889-1951), a filosofia é uma espécie de terapia através da qual o sujeito, embaralhado pela metafísica, volta a utilizar as palavras no seu sentido real.

e) Gadamer Para Hans Gadamer (1900-2002), a filosofia é o saber do quanto fica de não dito quando se diz algo.

f) Strawson Para Peter Strawson (1919-2006), a filosofia é um análogo da gramática. Assim como a gramática de uma língua natural explicita as regras que os falantes seguem explicitamente, a filosofia explicita os conceitos-chave que seguimos implicitamente.

g) Rorty Para Richard Rorty (1931-2007), no espírito da posição de Whitehead, a filosofia ocidental é um gênero literário e não pode ter pretensão de verdade.

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Filosofia: Cronologia Básica

Séc. VI a.C.: Início da filosofia ocidental com Tales de Mileto. Fim do séc. VI a.C.: Morte de Pitágoras. 399 a.C.: Sócrates condenado à morte em Atenas. 387 a.C.: Platão funda a Academia em Atenas, a primeira universidade do planeta. 335 a.C.: Aristóteles funda o Liceu em Atenas, escola rival da Academia. 324 d.C.: O imperador Constantino muda a capital do Império Romano para Bizâncio. 400 d.C.: Santo Agostinho escreve Confissões. A filosofia é absorvida pela teologia cristã. 410 d.C.: Roma é saqueada pelos visigodos. 529 d.C.: Fechamento da Academia em Atenas, pelo imperador Justiniano, marca o fim da era greco-romana e consolida a entrada na Alta Idade Média. Meados do séc. XIII: Tomás de Aquino escreve seus comentários sobre Aristóteles. Era da filosofia escolástica. 1453: Queda de Bizâncio para os Turcos, fim do Império Bizantino. 1492: Colombo chega à América. Renascimento em Florença e renovação do interesse pela aprendizagem do grego. 1543: Copérnico publica Sobre as revoluções dos orbes celestes, com um modelo matemático no qual a Terra gira em torno do Sol. 1633: Galileu é forçado pela Igreja a abjurar a teoria heliocêntrica, até que (e se) surgissem evidências conclusivas dessa hipótese. 1641: Descartes publica as Meditações, início da filosofia moderna. 1677: A morte de Espinoza permite a publicação da Ética. 1687: Isaac Newton publica os Principia, introduzindo o conceito de gravidade. 1689: Locke publica o Ensaio sobre o entendimento humano. Início do empirismo. 1710: Berkeley publica os Princípios do conhecimento humano, levando o empirismo a novos extremos. 1716: Morte de Leibniz. 1739-40: Hume publica o Tratado sobre a natureza humana, conduzindo o empirismo a seus limites lógicos. 1776: Morre David Hume. Provavelmente de Câncer. 1781: Kant, despertado de seu "sono dogmático" por Hume, publica a Crítica da razão pura. Início da grande era do idealismo alemão. 1807: Hegel publica A fenomenologia do espírito: apogeu do idealismo alemão. 1818: Schopenhauer publica O mundo como vontade e representação. 1844: Marx escreve os manuscritos de filosofia e economia que dão origem a teoria Marxista. 1879: Gottlob Frege, publica a *Begriffsschrift*(*Conceitografia* ou *Ideografia*), um marco na história da Lógica e da tradição posteriormente conhecida como filosofia analítica. 1892: Gottlob Frege, publica *Uber Sinn und Bedeutung* (*Sobre Sentido e Referência*). 1889: Nietzsche, que afirmou que Deus estava morto* (*há controvérsias, favor verificar em "discussão", "quanto à cronologia"). 1898: G.E.Moore publica "The Nature of Judgment", uma das obras que inaugura a tradição da filosofia analítica na Inglaterra. 1903: Moore publica Principia Ethica. 1903: Bertrand Russell publica The Principles of Mathematics. 1905: Bertrand Russell publica seu artigo 'On Denoting', em que expõe pela primeira vez sua teoria das descrições definidas. 1910: Bertrand Russell e A.N. Whitehead publicam o primeiro volume de Principia Mathematica. 1921: Wittgenstein publica o Tractatus logico-phiosophicus, advogando a "solução final" para os problemas da filosofia. década de 1920: O círculo de Viena (capitaneado por Rudolf Carnap e Moritz Schlick, entre outros) apresenta o positivismo lógico.

1927: Heidegger publica Ser e tempo, anunciando a ruptura entre a filosofia analítica e a continental. 1928: Rudolf Carnap publica Der logische Aufbau der Welt. 1930: Kurt Gödel publica "The Completeness of the axioms of the functional calculus of logic" 1931: Gödel publica "On formally undecidable propositions of Principia Mathematica and related systems I". 1937: Carnap publica The Logical Syntax of Language. 1942: Camus publica "O Mito de Sisifo" onde ele começa a desenvolver filosoficamente o conceito do Absurdo, retomando criticamente o pensamento dos filósofos anteriores à ele que também questionaram sobre o absurdo da existência. 1943: Sartre publica O ser e o nada, avançando no pensamento de Heidegger e instigando o surgimento do existencialismo. 1950: Carnap publica "Empiricism, Semantic and Ontology". 1950: W.V.O.Quine publica "Two Dogmas of Empiricism", que contem um rejeição da distinção análitico/sintético. 1950: Peter Strawson publica "On Referring", criticando "aquele paradigma da filosofia"(como disse Frank Ramsey), a teoria das descrições definidas de Russell. 1952: Camus publica "O Homem Revoltado" onde analisa historicamente o conceito de revolta e critica ferozmente o marxismo. Este livro marca o rompimento definitivo de sua amizade com Sartre (que defendia uma colaboração com a URSS), com o qual Camus não podia concordar diante das noticias que saiam por baixo da cortina de ferro. 1953: Publicação póstuma de Investigações filosóficas, de Wittgenstein. Auge da análise lingüística. 1954: É publicado Doença Mental e Psicologia, de Michel Foucault. 1955: Morre Teilhard de Chardin, após a publicação de sua obra prima "O Fenômeno Humano" 1959: Strawson publica Individuals. 1960: Morre Albert Camus em um acidente de carro. 1962: Thomas Kuhn publica The Structure of Scientific Revolutions. 1965: Karl Jaspers publica "Kleine Schule Des Philosophischen Denkes" (Introdução ao pensamento filosófico) série de pequenos ensaios feitos para um programa de televisão da Baviera. 1969: Morre Karl Jaspers 1970: Morre Bertrand Russell. 1971: Saul Kripke publica "Identity and Necessity". 1972: Kripke publica a primeira edição de Naming and Necessity. 1975: Hilary Putnam publica "O Significado do 'Significado'". 1977: David Kaplan profere as conferências publicadas mais tarde (1989) com o título Demonstratives--An Essay on the Semantics, Logic ,Metaphysics, and Epistemology of Demonstratives and other Indexicals. 1979: Tyler Burge publica "Individualism and the Mental". Stanley Cavell publica The Claim of Reason. 1980: Richard Rorty publica Philosophy and the Mirror of Nature. 1980: Xavier Zubiri publica Inteligencia Sentiente: Inteligencia y Realidad 1980: Kripke publica a segunda edição de Naming and Necessity. 1980: Morre Jean-Paul Sartre. 1982: Kripke publica Wittgenstein on Rules and Private Language. 1985: Bernard Williams publica Ethics and the Limits of Philosophy. 1994: Robert B. Brandom publica Making It Explicit. John McDowell publica Mente e Mundo. 1998: João Paulo II publica Fides et Ratio 1999: Patrick Glynn publica o livro God the Evidence: The Reconciliation of Faith and Reason in a Postsecular World. 2007: Morre Richard Rorty

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2. O MITO E A FILOSOFIA GREGA

O Mito Um mito [do grego antigo µ ("mithós"), que

significa contar, narrar] assume sempre o formato de uma NARRATIVA que busca explicar os aspectos mais importantes da nossa vida. As origens do mundo e do homem, o papel dos deuses na criação do universo, a existência de semi-deuses, heróis e outras criaturas sobrenaturais, os fenômenos naturais, qual o sentido da vida e o papel que cumprimos no mundo, enfim, os principais acontecimentos da vida são explicados pelo Mito.

Em resumo, o mito seria uma narrativa tradicional, com caráter explicativo (tenta narrar uma história que ilustre como a realidade é), mas com uma dimensão simbólica profunda. Símbolo é tudo aquilo que serve para representar um objeto ou situação. Por exemplo, em nossa cultura a pomba branca é o símbolo da paz. Os mitos são símbolos de uma realidade e, por isso, não têm a pretensão de descrever a realidade como ela é.

Um outro exemplo ainda mais esclarecedor da dimensão simbólica do mito pode ser tirado da própria mitologia grega antiga. Zeus, o senhor do Olimpo (não o colégio), o deus supremo do céu e da Terra, é considerado como o deus do Tempo. Ele é associado a fenômenos naturais como tempestades, maremotos, raios, chuvas, etc. Esse mito tem uma dimensão simbólica porque, ao explicar os fenômenos naturais, não está preocupado em os descrever literalmente, mas contar uma história que dê sentido à sua ocorrência. Por que uma chuva destrói casas e mata pessoas? Por que Zeus está irado. Pode não ser uma boa explicação, do ponto de vista da ciência contemporânea, mas era a explicação que fazia sentido para os gregos antigos.

O mito é narrado por alguém que possui grande autoridade sobre todos (geralmente, líder religioso ou político). Daí, a explicação da relação profunda que o mito tem com a religiosidade. O elemento “autoridade” é importante para que o mito seja aceito, uma vez que ele não tem poder persuasivo. Aquele que narra o mito deve ser reconhecido pela sua comunidade como alguém dotado de grande sabedoria ou do poder especial de receber mensagens divinas. Quando o mito é narrado, ele se transforma em algo sagrado e, por isso, se torna incontestável (ninguém o nega) e inquestionável (ninguém o coloca em dúvida).

O mito não pode ser confundido com fábulas, contos de fadas ou lendas. A fábula (conto com animais), os contos de fada (contos que envolvem magia e fantasia) e as lendas (caráter fantástico e aventuresco) não são histórias com pretensões de explicar a realidade. Geralmente, têm um caráter moral, educativo ou simplesmente de diversão. O mito, ao contrário, tem compromisso com a realidade que tenta explicar.

A narrativa mitológica não se estrutura de forma racional (não busca fundamentar ou justificar suas explicações), mas procura apenas interpretá-la simbolicamente a partir de histórias sagradas. O discurso filosófico, que surge na Grécia Antiga, procura explicar a realidade com razão e lógica, usando o diálogo, a reflexão e a investigação como

ferramentas. A explicação mítica é avessa à explicação filosófica, ainda que as teorias filosóficas não excluam, completamente, elementos provenientes do mito (como veremos mais adiante).

O termo "mito" é, por vezes, utilizado de forma pejorativa para se referir às crenças comuns (consideradas sem fundamento objetivo ou científico, e vistas apenas como histórias de um universo puramente maravilhoso) de diversas comunidades. No entanto, até acontecimentos históricos podem se transformar em mitos, se adquirem uma determinada carga simbólica para uma dada cultura.

Na maioria das vezes, o termo refere-se especificamente aos relatos das civilizações antigas que, organizados, constituem uma mitologia - por exemplo, a mitologia grega e a mitologia romana. Entretanto, todas as culturas têm seus mitos, alguns dos quais são expressões particulares de arquétipos comuns a toda a humanidade. Segundo o alemão Carl Jung, criador da psicologia analítica, os arquétipos são imagens mentais que estão presentes em praticamente todas as culturas porque são imagens que invocam os primórdios da humanidade. Jung notou que certas imagens, como a do deus criador, da mãe natureza, do herói que se sacrifica pelo bem comum, estão presentes nos mais diferentes mitos dos mais diferentes povos.

A mitologia grega Na antiguidade, o homem grego foi, por séculos,

educado pelo mito. Admirado e amedrontado diante dos fenômenos que o cercam, – sem entender a passagem do dia para noite e novamente para o dia, as tempestades, a chuva, o terremoto, os eclipses, a origem do cosmos, a morte, o amor, entre outras coisas – o homem recorre aos mitos. Faz isso como primeira tentativa de situar-se no mundo, dando sentido à realidade, como fonte de explicação para o que vê.

Para o homem moderno, parece natural que a mitologia grega seja um modo inexpressivo de explicação da realidade, uma vez que não tem bases científicas e carece de sustentação racional. Contudo, não podemos ignorar o papel fundamental que o mito cumpriu nessa cultura. Além disso, na Grécia Antiga, os cânones do pensamento racional ainda não tinha sido completamente estabelecidos e o pensamento científico ainda não tinha sido consolidado e atingido o status de explicação oficial que possui nos dias de hoje.

Se o mito dava explicações verdadeiras ou precisas, isso já é uma outra questão. O que nos importa aqui é que por muito tempo e em várias sociedades, além da grega, ele serviu de fonte de explicação e conforto intelectual e de solidariedade social.

No mito, forças sobrenaturais são invocadas, deuses revestem-se de formas humanas (antropomorfismo) e se materializam nos mitos criados para desvendar grandes mistérios. Deuses são acometidos por paixões humanas, como ciúme, inveja, fúria e desejo de vingança. Vejamos um exemplo concreto dessas características no mito grego do Minotauro.

O MITO DO MINOTAURO Antes de Minos tornar-se rei, ele pediu ao deus grego Poseidon por um sinal, para assegurar-lhe que ele, e não seu irmão, assumiria o trono. Poseidon concordou em enviar um touro branco como sinal, na condição de que Minos sacrificasse o touro de volta ao deus. Surge entao um touro, de

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incomensurável beleza, saindo inexplicavelmente do mar. Minos, após vê-lo, achou-o tão belo que, ao invés dele, sacrificou outro touro, esperando que Poseidon não notasse a diferença.

Poseidon ficou bem furioso quando notou o que havia sido feito e fez com que a esposa de Minos, Pasífae, fosse dominada por uma loucura e se apaixonasse pelo touro. Pasífae, apaixonada pelo touro, procurou Dédalo em busca de assistência e ele inventou uma maneira dela satisfazer suas loucas paixões. Ele construiu uma vaca oca de madeira,e encobriu Pasífae com pele de vaca para que o touro pudesse montar nela. O resultado dessa união foi o Minotauro: criatura selvagem com corpo de homem e cabeça e cauda de touro.

Aflito com a nova criatura meio homem meio touro, Minos procurou o conselho do Oráculo de Delfos, que o mandou construir um labirinto gigante para conter o Minotauro. Este foi localizado sob o palácio de Minos em Cnossos.

Porém, ocorreu que Androceu, filho de Minos, foi morto pelos atenienses, que invejaram suas vitórias no festival panatináico. Para vingar a morte de seu filho, Minos declarou guerra contra Atenas e venceu. Ele então ordenou que sete jovens e sete damas atenienses fossem enviados anualmente para serem devorados pelo Minotauro.

Duas versões do mito grego do Minotauro. Versão digital contemporânea (acima) e pintura grega do ano de 415 a.C.

Os Trabalhos de Hércules Hércules (ou Héracles), o maior de todos os heróis gregos, era filho de Zeus e Alcmena. Alcmena era a virtuosa esposa de Anfitrião e, para seduzi-la, Zeus assumiu a forma de Anfitrião enquanto este estava ausente de casa. Quando seu marido retornou e descobriu o que tinha acontecido, ficou tão irado que construiu uma grande pira e teria queimado Alcmena viva, se Zeus não tivesse mandado nuvens para apagar o fogo, forçando assim Anfitrião a aceitar a situação. Nascido, o jovem Hércules rapidamente revelou seu potencial heróico. Enquanto ainda no berço, ele estrangulou duas serpentes que a ciumenta Hera, esposa de Zeus, tinha mandado para atacá-lo ao seu meio-irmão Íflico; enquanto ainda um menino, ele matou um leão selvagem no Monte Citéron. Na vida adulta, as aventuras de Hércules foram maiores e mais espetaculares do que as de qualquer outro herói. Por toda a antigüidade ele foi muito popular, o assunto de numerosas estórias e incontáveis obras de arte. Apesar das mais coerentes fontes literárias sobre suas façanhas datarem apenas do século III a.C., citações espalhadas por vários locais e a evidência de fontes artísticas deixam muito claro o fato que a maioria, se não todas, de suas aventuras era bem conhecida em tempos mais antigos. Hércules realizou seus famosos doze trabalhos sob o comando de Euristeu, Rei de Argos de Micenas. Existem várias explicações da razão pela qual Hércules se sentiu obrigado a

realizar os pedidos cansativos e aparentemente impossíveis de Euristeu. Uma fonte sugere que os trabalhos eram uma penitência imposta ao herói pelo Oráculo de Delfos quando, num acesso de loucura, matou todos os filhos de seu primeiro casamento. Enquanto os seis primeiros trabalhos se passam no Peloponeso, os últimos levaram Hércules a vários lugares na orla do mundo grego e além. Durante os trabalhos, Hércules foi perseguido pelo ódio da deusa Hera, que tinha ciúmes dos filhos de Zeus com outras mulheres. A deusa Atena, por outro lado, era uma defensora entusiasta de Hércules; ele também desfrutou da companhia e ajuda ocasional de seu sobrinho, Iolau. O primeiro trabalho de Hércules era matar o leão de Neméia. Como esta enorme fera era invulnerável a qualquer arma, Hércules lutou com ele e acabou estrangulando-o apenas com suas mãos. A seguir, ele removeu a pele utilizando uma de suas garras, e passou a utilizá-la como uma capa, com as patas amarradas ao redor de seu pescoço, as presas surgindo sobre sua cabeça, e a cauda balançando em suas costas. O segundo trabalho exigiu a destruição da Hidra de Lerna, uma cobra aquática com várias cabeças, que estava flagelando os pântanos perto de Lerna. Sempre que Hércules decepava uma cabeça, duas cresciam em seu lugar, e, como se isso não fosse um problema suficiente, Hera enviou um caranguejo gigante para morder o pé de Hércules. Este truque desleal foi demais para o

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herói, que decidiu pedir ajuda a Iolau; enquanto Hércules cortava as cabeças, Iolau cauterizava os locais com uma tocha flamejante, de modo que novas cabeças não pudessem crescer, e finalmente dando cabo do monstro. A seguir, Hércules embebeu a ponta de suas flechas no sangue ou veneno da Hidra, tornando-as venenosas. No Monte Erimanto, um feroz javali estava se portando violentamente e causando prejuízos. Euristeu rispidamente ordenou a Hércules que trouxesse este animal vivo à sua presença, mas as antigas ilustrações deste episódio, as quais mostram principalmente Euristeu acovardado refugiando-se num grande jarro, sugerem que ele veio a se arrepender desta ordem. Hércules levou um ano para realizar o trabalho a seguir, que era capturar a Corça do Monte Carineu. Este animal parecia ser mais tímido do que perigoso. Este animal era sagrado para a deusa Ártemis e, apesar de ser fêmea, possuía lindas aspas. De acordo com a lenda, Hércules finalmente aprisionou a Corça e a estava levando para Euristeu, encontrou-se com Ártemis, que estava muito zangada e ameaçou matar Hércules pelo atrevimento em capturar seu animal; mas quando ficou sabendo sobre os trabalhos, ela concordou em deixar Hércules levar o animal, com a condição que Euristeu o libertasse logo que o tivesse visto. Os Pássaros Estinfalos eram tão numerosos que estavam destruindo todas as plantações nas vizinhanças do Lago Estinfalo em Arcádia; várias fontes dizem que eles eram comedores de homens, ou pelo menos podiam atirar suas penas como se fossem flechas. Não está muito claro como Hércules enfrentou este desafio: uma pintura de um vaso mostra Hércules atacando-os com um tipo de estilingue, mas outras fontes sugerem que ele os abateu com arco e flecha, ou os espantou para longe utilizando um címbalo de bronze feito especialmente para a tarefa pelo deus Hefesto. O último dos seis trabalhos do Peloponeso foi a limpeza dos currais Augianos. O Rei Áugias de Élida possuía grandes rebanhos de gado, cujos currais nunca tinham sido limpos, assim o estrume tinha vários metros de profundidade. Euristeu deve Ter pensado que a tarefa de limpar os estábulos num único dia seria impossível, mas Hércules uma vez mais conseguiu resolver a situação, desviando o curso de um rio e as águas fizeram todo o trabalho por ele. Euristeu pede agora que Hércules capture o selvagem e fez touro de Creta, o primeiro trabalho fora de Peloponeso. Assim que Euristeu viu o animal, Hércules o soltou, este sobrevivendo até ser morto por Teseu em Maratona. A seguir, Euristeu enviou Hércules à Trácia para trazer os cavalos devoradores de homens de Diomedes. Hércules amansou estes animais alimentando-os com seu brutal senhor, e os trouxe de maneira segura a Euristeu. A seguir, ele foi imediatamente mandado, desta vez para as margens do Mar Negro, para buscar a cinta da rainha das Amazonas. Hércules levou um exército junto consigo nesta ocasião, mas nunca precisaria dele se Hera não tivesse criado problemas. Quando chegou à cidade das Amazonas de Temisquira, a rainha das Amazonas estava até feliz que ele levasse sua cinta; Hera, sentindo que estava sendo fácil demais, espalhou um boato que Hércules pretendia levar a própria rainha, iniciando-se uma sangrenta batalha. Hércules, é claro, conseguiu escapar com a cinta, mas após apenas duros combates e muitas mortes. Para realizar seus três últimos trabalhos, Hércules foi completamente fora das fronteiras do mundo grego. Primeiro foi mandado além da borda do Oceano para a distante Eritéia no extremo ocidente, para buscar o Rebanho de Gérião.

Gérião era um formidável desafio; não apenas tinha um corpo triplo, mas para ajudá-lo a tomar conta de seu maravilhoso rebanho vermelho também utilizava um feroz pastor chamado Euritão e um cachorro de duas cabeças e rabo de serpente chamado Orto. Orto era o irmão de Cérbero, o cão que guardava a entrada do Mundo Inferior, e o encontro de Hércules com Gérião é algumas vezes interpretado como seu primeiro encontro com a morte. Apesar de Hércules Ter se livrado de Euritão e Orto sem muito dificuldade, Gérião, com seus três corpos pesadamente armados, provou ser um adversário mais formidável, e apenas após uma terrível luta Hércules conseguiu matá-lo. Quando retornou à Grécia, Euristeu enviou para uma jornada ainda mais desesperadora, descer ao Mundo Inferior e trazer Cérbero, o próprio cão do Inferno. Guiado pelo deus mensageiro Hermes, Hércules desceu ao lúgubre reino dos mortos, e com o consentimento de Hades e Perséfone tomou emprestado o monstro assustador e de três cabeças para mostrá-lo ao aterrorizado Euristeu; isto feito, devolveu o cachorro a seus donos de direito. Mesmo assim, Euristeu solicitou um último trabalho: que Hércules lhe trouxesse os Pomos do Ouro de Hespérides. Estes pomos, a fonte da eterna juventude dos deuses, cresciam em um jardim nos confins da terra; foram um presente de casamento de Géia, a Terra, a Zeus e Hera. A árvore que dava as frutas douradas era cuidada pelas ninfas chamadas Hespérides e guardada por uma serpente. Os relatos variam sobre como Hércules resolveu este trabalho final. As fontes que localizam o jardim abaixo das montanhas Atlas, onde o poderoso Atlas sustenta os céus em suas costas, dizem que Hércules convenceu Atlas a pegar as maças por ele; enquanto fazia esta jornada Hércules sustentou, ele mesmo, o céu; quando Atlas retornou, Hércules teve algumas dificuldades em persuadi-lo a reassumir o seu fardo. Outra versão da estória sugere que o próprio Hércules foi ao jardim lutando e matando a serpente ou conseguindo convencer as Hespérides a lhe entregar as maças. As maças de Hespérides simbolizavam a imortalidade, e este trabalho final significaria que Hércules deveria ascender ao Olimpo, tomando seu lugar entre os deuses. Além dos doze trabalhos, muitos outros feitos heróicos e aventuras foram atribuídos a Hércules. Na sua busca do jardim das Hespérides, teve que lutar com o deus marinho Nereu para compelir o deus a dar-lhe as informações que necessitava; em outra ocasião enfrentou outra deidade marinha, Tritão. Tradicionalmente foi na Líbia que Hércules encontrou o gigante Anteu: Anteu era filho de Géia, a Terra, e ele era invulnerável enquanto mantivesse contato físico com sua mãe. Hércules lutou com ele e ergueu-o do solo; desprovido da ajuda de sua mãe, ficou indefeso nos braços poderosos do herói. No Egito Hércules escapou por pouco de ser sacrificado pelas mãos do Rei Busíris. Um advinho tinha dito a Busíris que o sacrifício de estrangeiros era um método infalível de se lidar com as secas. Como o advinho era Cipriota, tornou-se a primeira vítima de seu próprio conselho; quando o método se mostrou efetivo, Busíris ordenou que todo o estrangeiro temerário o suficiente a entrar em seu reino seria sacrificado. Na vez de Hércules, deixou-se ser aprisionado e levado ao local do sacrifício antes de se voltar contra seus agressores e matar uma grande quantidade deles. Hércules não raramente se envolvia em conflito com os deuses. Em uma ocasião, quando não recebeu uma resposta que estava esperando da sacerdotisa do Oráculo de Delfos, tentou fugir com o trípode sagrado, dizendo que iria criar um oráculo

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melhor por sua própria conta. Quando Apolo tentou detê-lo, ocorreu uma violenta discussão, que foi resolvida apenas quando Zeus arremessou um relâmpago entre eles. Hércules era muito leal aos seus amigos; mais do que uma vez ele arriscou sua vida para ajudá-los, sendo o caso mais espetacular o de Alceste. Admeto, Rei de Feres na Tessália, tinha feito um acordo com Apolo que, quando chegasse a hora de sua morte, poderia continuar a viver se encontrasse alguém que quisesse morrer em seu lugar. Entretanto, quando Admeto estava se aproximando da hora da sua morte, mostrou-se ser mais difícil do que tinha calculado arranjar um substituto; após seus parentes mais velhos terem egoisticamente se recusado ao sacrifício, sua esposa Alceste insistiu para que fosse a sacrificada. Quando Hércules chegou, ela já tinha descido ao Mundo Inferior, indo ele imediatamente atrás dela. Então lutou com a morte e venceu, trazendo-a de volta em triunfo ao mundo dos vivos. Hércules era o super-homem grego, sendo muitas das estórias de seus feitos interessantes contos de realizações sobre-humanas e monstros fabulosos. Ao mesmo tempo Hércules, assim como Ulisses, também atua como se fosse um homem comum, sendo suas aventuras como parábolas exageradas da experiência humana. Irritadiço, não extremamente inteligente, apreciador do vinho e das mulheres (suas aventuras amorosas são muito numerosas), era uma figura eminentemente simpática; e no geral seu exemplo deveria ser seguido, pois destruía o mal e defendia o bem, superando todos os obstáculos que o destino lhe colocou. Além de tudo, ofereceu alguma esperança para a derrota da ameaça última e crucial do homem, a morte. O fim de Hércules foi caracteristicamente dramático. Uma vez, quando ele e sua nova noiva Dejanira estavam atravessando um rio, o centauro Nesso ofereceu-se para transportar Dejanira, e no meio da correnteza tentou raptá-la. Hércules matou-o com uma de suas flechas envenenadas, e ao morrer, Nesso, simulando arrependimento, incentivou Dejanira a pegar um pouco de sangue do seu ferimento e guardá-lo; se Hércules algum dia parecesse cansado dela, deveria embeber um traje no sangue e dá-lo para que ele o vestisse; após isso, ele nunca mais olharia para outra mulher. Anos mais tarde Dejanira

lembrou-se deste conselho quando Hércules, voltando de uma distante campanha, mandou à frente uma linda princesa aprisionada pela qual estava evidentemente apaixonado. Dejanira mandou a seu marido um robe tingido pelo sangue; ao vestir a roupa, o veneno da Hidra penetrou na sua pele e ele tombou em terrível agonia. Seu filho mais velho, Hilo, levou-o ao Monte Eta e depositou seu corpo, retorcido porém ainda respirando, numa pira funerária, a qual acabou sendo acesa pelo herói Filoctetes. Entretanto, os trabalhos de Hércules asseguraram-lhe a imortalidade, assim ele subiu ao Olimpo e assumiu seu lugar entre os deuses que vivem eternamente.

O logos grego O logos [do grego , significando “palavra”] pode

ser entendido como um discurso com um estilo e linguagens bastante diferenciadas do mito. Não entenda “discurso” no sentido de discurso político, proferido para a multidão. O logos seria análogo à dissertação, ou seja, é um discurso com pretensões de veracidade, é uma descrição objetiva da realidade, preocupada com a sustentação argumentativa e estruturada racionalmente.

Neste sentido, note que o conceito de “narrativa” é oposto ao de “discurso”. Sendo assim, podemos dizer também que o mito se opõe ao logos.

A partir de filósofos gregos como Heráclito, a palavra logos passou a ter um significado mais amplo, passando a ser um conceito filosófico traduzido como “razão” ou “racionalidade”, em pelo menos duas acepções:

a) Capacidade individual de racionalização (razão, raciocínio); b) Princípio cósmico racional, que causa a ordem, harmonia e beleza observada no cosmo.

Note que, no segundo sentido, a palavra logos irá substituir as figuras divinas como causas da ordem e harmonia do universo. Os filósofos Pré-Socráticos, estudados a seguir, vão inaugurar o Logos grego a partir do discurso filosófico. Antes desse estudo, vejamos um quadro comparativo Mythos x Logos.

QUADRO COMPARATIVO Mythos Logos

Modo de explicação da realidade

Forma narrativa

Faz uso de elementos sobrenaturais

Caráter conotativo ou simbólico

Apela para autoridade como elemento de persuasão.

Tem ligação profunda com a cultura e religiosidade.

Dimensão sagrada, incontestável e inquestionável.

Modo de explicação da realidade

Forma discursiva

Faz uso de conceitos e argumentos

Caráter denotativo ou literal

Usa da argumentação como elemento de persuasão.

Tem postura crítica com relação a cultura e a religiosidade.

Dimensão crítica, sujeita ao debate crítico e ao questionamento.

3. Pré-Socráticos: o surgimento da filosofia na Grécia antiga

O surgimento da filosofia na Jônia No século VII a.C., na Jônia, região dominada pelos

gregos, o comércio se intensificava, gerando riquezas que favoreceram importantes progressos materiais e culturais. Grandes foram as transformações no modo de vida das

pessoas, principalmente com o surgimento de um expressivo cenário urbano. Neste ambiente cultural, surgiram questões para as quais as explicações mitológicas soavam cada vez mais insuficientes. O que são os deuses? Qual a sua natureza? Como foi feito o cosmo? De onde vieram os homens?

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Foi nesse cenário que surgiram os filósofos pré-

socráticos, assim chamados porque antecederam Sócrates, filósofo ateniense considerado uma marca divisória na história da filosofia (assim como a figura de Cristo o é para o calendário cristão).

Os filósofos pré-socráticos são chamados de Filósofos da Natureza, uma vez que essa primeira fase do pensamento grego é denominada “fase naturalista” ou “período cosmológico”. Isso porque a investigação desses filósofos era voltada para o mundo exterior, para a natureza, onde se acreditava ser possível encontrar o princípio de todas as coisas. A filosofia socrática, ao contrário, estará preocupada com o mundo interior, com o lado espiritual e moral do homem, abandonando a pesquisa do mundo natural. Arché

Podemos dizer que o objeto de investigação da filosofia pré-socrática é o arché, palavra grega usada para expressar o princípio de todas as coisas, aquilo que estaria em todos os seres existentes, que é comum a tudo (algo como a compreensão que temos do átomo, atualmente), que estaria presente em toda a natureza. Segundo os filósofos dessa época, a arché seria a chave para conhecer e explicar tudo o que existe no universo.

O período naturalista ou cosmológico confunde-se com os primeiros passos da filosofia no Ocidente e se origina da necessidade de explicar de maneira racional – e, portanto, não mítica – a ordem do mundo, da natureza, do cosmo (note que aqui as palavras “mundo”, “natureza” e “cosmo” são usadas num mesmo significado).

Physis A arché é o princípio de tudo o que existe. Para os

gregos antigos, havia ainda uma outra expressão para designar esse “tudo o que existe”, esse conjunto de todas as coisas chamado de Natureza: Physis. Essa palavra deu origem a expressões da língua portuguesa como a palavra “físico” ou o nome da ciência, Física.

Diversidade x unidade A expressão Physis surge com o significado de

Natureza para resolver um problema filosófico bem intrincado. As coisas que observamos no mundo tem um aspecto ou aparência bastante diferenciados. Ou seja, quando olhamos os objetos do mundo, eles não se parecem nada uns com os outros. Se prestarmos atenção aos detalhes, mesmos dois objetos aparentemente semelhantes são bastante diferentes. A essa diferença generalizada entre as coisas daremos o nome de “diversidade”.

Entretanto, como os filósofos pré-socráticos acreditavam numa Arché, um princípio único que rege todo o universo, não poderiam acreditar que apenas a diversidade reinaria no universo. O conceito de Physis será entendido por eles como a matéria que dá fundamento eterno e imutável de todas as coisas e, por isso confere a unidade do Universo. Assim, aparentemente a natureza seria diversa (múltipla, instável, transitória). Mas, na realidade, era composta de unidade (imutável, eterna).

Assim se expressa Heráclito de Éfeso, importante filósofo pré-socrático que estudaremos mais adiante.

A noite segue o dia. As estações do ano sucedem-se uma à outra. As plantas e os animais nascem, crescem e morrem. Diante desse espetáculo cotidiano da natureza, o homem manifesta sentimentos variados - medo, resignação, incompreensão, admiração e perplexidade. E são precisamente esses sentimentos que acabam por levá-lo à filosofia. O espanto inicial traduz-se em perguntas intrigantes: O que é essa natureza, que apresenta tantas variações? Ela possui uma ordem ou é um caos sem nexo?

QUADRO COMPARATIVO

Arché Physis

Princípio de todas as coisas

Tradução Forma narrativa

Faz uso de elementos sobrenaturais

Caráter conotativo ou simbólico

Apela para autoridade como elemento de persuasão.

Tem ligação profunda com a cultura e religiosidade.

Dimensão sagrada, incontestável e inquestionável.

Conjunto de todas as coisas

Forma discursiva

Faz uso de conceitos e argumentos

Caráter denotativo ou literal

Usa da argumentação como elemento de persuasão.

Tem postura crítica com relação a cultura e a religiosidade.

Dimensão crítica, sujeita ao debate crítico e ao questionamento.

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Os filósofos Pré-Socráticos são considerados pioneiros

da filosofia ocidental. O primeiro período do pensamento grego toma a denominação de período NATURALISTA, porque a especulação dos filósofos desse período é instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-se encontrar aí também o princípio unitário de todas as coisas.

Esse primeiro período tem início no início do VI século a.C., e termina dois séculos depois, mais ou menos, nos fins do século V. Surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido sem dúvida na sua obra crítica e especulativa pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico dessas sociedades. Os filósofos deste período preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas cosmológicos. Estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito são as questões mais importantes do período.

4. A Escola Jônica A Escola Jônica, assim chamada por ter florescido nas

colônias jônicas da Ásia Menor, compreende os jônios antigos e os jônios posteriores ou juniores. A escola jônica é, também, a primeira do período naturalista, preocupando-se os seus expoentes com achar a substância única, a causa, o princípio do mundo natural variado, múltiplo e mutável.

Os jônicos julgaram encontrar a substância última das coisas em uma matéria única; e pensaram que nessa matéria fosse imanente uma força ativa, de cuja ação derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una. Daí ser chamada esta doutrina hilozoísmo (matéria animada).

O filósofo moderno Friedrich Nietzsche (1844-1900), num importante estudo sobre os filósofos gregos, define Tales de Mileto como o primeiro filósofo:

"A Filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário determo-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida (estado latente, prestes a se transformar), está contido o pensamento: “Tudo é Um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e o mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego".

Friedrich Nietzsche, in A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos.

Os jônios antigos consideram o Universo do ponto de vista estático, procurando determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que são compostos todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto. Os jônios posteriores distinguem-se dos antigos por imprimirem outra

orientação aos estudos cosmológicos, encarando o Universo no seu aspecto dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação dos corpos.

a) Tales de Mileto (624-548 a.C.) – Água Tales de Mileto, fenício de origem, é considerado o

fundador da escola jônica. É o mais antigo filósofo grego. Tales não deixou nada escrito, mas sabemos que ele ensinava ser a ÁGUA a substância única de todas as coisas. A terra era concebida como um disco boiando sobre a água, no oceano. Cultivou também as matemáticas e a astronomia, predizendo, pela primeira vez, entre os gregos, os eclipses do sol e da lua.

No plano da astronomia, fez estudos sobre solstícios a fim de elaborar um calendário, e examinou o movimento dos astros para orientar a navegação. Provavelmente nada escreveu. Por isso, do seu pensamento só restam interpretações formuladas por outros filósofos que lhe atribuíram uma idéia básica: a de que tudo se origina da água. Para suportar as transformações e permanecer inalterada, a água deveria ser um elemento eterno.

Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. A cosmologia de Tales pode ser resumida nas seguintes proposições: A terra flutua sobre a água; A água é a causa material de todas as coisas. Todas as coisas estão cheias de deuses. O imã possui vida, pois atrai o ferro.

Segundo Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento dinâmico. Elemento Estático - a flutuação sobre a água. Elemento Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava todas as coisas da água. Tales sustentava ser a água a substância de todas as coisas. Fragmentos: “... a água é o princípio de todas as coisas...”. “... todas as coisas estão cheias de deuses...”. “... a pedra magnética possui um poder porque move o ferro..."

b) Anaximandro de Mileto (611-547 a.C.) - Ápeiron Anaximandro de Mileto,

geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e sucessor de Tales

e autor de um tratado Da Natureza, põe como princípio universal uma substância indefinida, o ápeiron

(ilimitado), isto é, quantitativamente infinita e qualitativamente

indeterminada. Deste ápeiron (ilimitado)

primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um processo de separação ou "segregação" derivam os diferentes corpos. Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos peixes em homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no ar.

Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e disto resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que constituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porém dando um passo a

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mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas particulares. Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron (ilimitado). Fragmentos: “... o ilimitado é eterno...” “... o ilimitado é imortal e indissolúvel...”

c) Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"

Segundo Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais condensadas do ar. As diversas

coisas que existem, mesmo apresentando qualidades diferentes entre si, reduzem-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida à matéria e identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres, os antigos jônios professavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista. Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar que a Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial das coisas é o ar. Fragmentos "O contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o frouxo (é assim que ele expressa) é quente". (Plutarco). "Com nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém". (Aécio).

d) Pitágoras de Samos (571 ou 570-497 ou 496 a.C) - O número

Os pitagóricos interessavam-se pelo estudo das propriedades dos números - para eles o número (sinônimo de harmonia) era considerado como essência das coisas - é constituído então da soma de pares e ímpares, noções opostas (limitado e ilimitado) respectivamente números pares e ímpares expressando as relações que se

encontram em permanente processo de mutação. Teriam chegado à concepção de que todas as coisas são números. “... o princípio das matemáticas é o princípio de todas as coisas...”

Os pitagóricos se dispersam e passam a atuar amplamente no mundo helênico, levando a todos os setores da cultura o ideal de salvação do homem e da Polis através da proporção e da medida. Pitágoras, o fundador da escola pitagórica, nasceu em Samos pelos anos 571-70 a.C. Em 532-31 foi para a Itália, na Magna Grécia, e fundou em Crotona, colônia grega, uma associação científicoético-política, que foi o centro de irradiação da escola e encontrou partidários entre os gregos da Itália meridional e da Sicília. Pitágoras aspirava - e também conseguiu - a fazer com que a educação ética da escola se ampliasse e se tornasse reforma política; isto, porém, levantou oposições contra ele e

foi constrangido a deixar Crotona, mudando-se para Metaponto, aí morrendo provavelmente em 497-96 a.C. Segundo o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas todas as coisas, é o número, ou seja, as relações matemáticas. Os pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei e matéria, substância das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro elemento.

Da racional concepção de que tudo é regulado segundo relações numéricas, passa-se à visão fantástica de que o número seja a essência das coisas. Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor.

Radical oposição esta, que explicaria o vir-a-ser e o múltiplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro. Como a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um progresso sobre a jônica. De fato, os pitagóricos afirmaram a esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a revolução dos corpos celestes em torno de um foco central, que não se deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim, dominam no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a filosofia pitagórica, e as práticas ascéticas e abstinenciais, com relação à metempsicose e à reincarnação das almas.

Para compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é impar, delimitado e ilimitado, inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas (formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade". Os pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e, portanto, também uma pluralidade".

À primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides.

Nela, é dito da Unidade (supondo que não existe pluralidade: 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) que

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tampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.

“O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.”

Salvação pela Matemática Pitágoras de Samos, que se tornou figura legendária na

própria Antiguidade, teria sido antes de mais nada um reformador religioso, pois realizou uma modificação fundamental na doutrina órfica, transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.

Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela foi objeto de uma série de relatos tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens e a seus contatos com culturas orientais. Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou uma confraria científico-religiosa.

Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a harmonia que preside à constituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades. Partindo de idéias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina, entre todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um "acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será qualificada como uma "harmonia", garantida pela presença do divino em tudo. Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns autores como o fundamento do "mito helênico" – o mal seja entendido sempre como desarmonia.

A grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na religiosidade órfica foi a transformação do processo de libertação da alma num esforço puramente humano, porque basicamente intelectual. A purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura

numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, entendido como unidade harmônica, sustentada pela ordem e pela proporção, e que se manifesta como beleza.

Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através inclusive de uma observação no campo musical: verificou no monocórdio que o som produzido varia de acordo com a extensão da corda sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão, da música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em relação à matemática.

"Todas as coisas são números". (Pitágoras)

Em Todas as Coisas, o Número. A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo

concebe a extensão como descontínua: constituída por unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica - que descreve o cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma – esse "intervalo" resultaria da respiração do universo que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão e mínimo de corpo, as unidades comporiam os números.

Estes não seriam, portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os números são reais, são essências realizadas (usando-se um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma das coisas", são entidades corpóreas constituídas por unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo e Demócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendo essa imitação (mimesis) num sentido realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura numérica inerente.

De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação figurada dos números, em substituição às representações literais mais arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A representação figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se um fator de avanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os primeiros números, representados figurativamente, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo de corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por sua própria notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagórica constitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos numéricos e geométricos, a quantidade e sua expressão espacial.

Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo. (Pitágoras)

e) Empédocles de Agrigento (495/490-435-430 a.C.) - Os quatro elementos

Empédocles acreditava que a natureza possuía quatro elementos básicos, ou raízes: a terra, o ar, o fogo e a água. Não é certo, portanto, afirmar que “tudo” muda. Basicamente, nada se altera. O que acontece é que esses quatro elementos diferentes simplesmente se combinam e depois voltam a se separar para então se combinarem novamente. O que unia e desunia os

quatro elementos eram dois princípios: o amor e o ódio.

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Os quatro elementos e os dois princípios seriam

eternos e imutáveis, mas as substâncias formadas por eles seriam pouco duradouras. Por isso, as verdades não seriam mais absolutas, como nos eleatas, mas proporcionais à medida humana. As coisas são imóveis, mas o que percebemos com os sentidos não é falso. Então, as duas forças atuariam nas substâncias, o amor e o ódio. O amor agiria como força de atração e união, o ódio como força de dissolução. Em quatro fases, existe a alternância dos dois. Estabelece um ciclo, com a tensão da convivência dessas forças motrizes.

f) Demócrito de Abdera (460-370 a.C) - Os átomos Os atomistas seguiram a

linha de que a natureza era comporta por partículas infinitas. Diziam que tudo que realmente existia era constituído de átomos e de vazio (este último os espaços entre os átomos). considera que nada pode surgir do nada, assim, os átomos eram eternos, imutáveis e indivisíveis. O que acontecia, era que eles eram irregulares e podiam ser combinados para dar origem aos corpos mais diversos.

De sua vida sabemos poucas coisas seguras, mas muitas lendas. Viagens extraordinárias, a ruína material, as honras que recebeu de seus concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma tradição tardia afirma que ele ria de tudo.

Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. Esse é seu ponto de ataque: o movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um espaço vazio, o que equivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o espaço é absolutamente pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois o pleno não pode acolher em si nada que lhe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois o menor poderia acolher em si o maior; 2) a rarefação e a condensação só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque o alimento penetra nos interstícios do corpo; 4) em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar tanta água quanta se ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água. O não ser é, portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o stereón. O pleno é aquilo que não contém nenhum Kenón. Se toda grandeza fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso que a divisão não possa ir ao infinito. Mas o movimento demonstra o ser, tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não haveria movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.

Mas, se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso que sejam de natureza idêntica. Demócrito afirma, portanto, como Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em todos os pontos. O ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o que o outro não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente nossos sentidos nos mostram coisas qualitativamente diferentes. São chamadas também idéai ou skhémata. Todas as

qualidades são nómo, os seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as qualidades a diferenças quantitativas. Elas só se distinguem pela forma (rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia posição (tropé, thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela posição. A principal diferença está na forma, que indica diferença de grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo (como medida de todas as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O ser, portanto, é definido como pleno, dotado de uma forma, pesado; os corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção que reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si mesmas, fora de nossa representação; não se pode fazer abstração delas; são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o número. Todas as outras qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades primárias sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as impressões: cor, som, gosto, odor, dureza, moleza, polido, rugoso, etc. Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.

Uma coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece quando esse grupo se desfaz, muda quando muda a situação ou a disposição desse grupo ou quando uma parte é substituída por outra. Cresce quando lhe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa sobre outra se produz pelo choque dos átomos; se há separação no espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe-se, pois, que Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia quatro elementos; Demócrito esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma natureza. O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros elementos estão misturados átomos diversos; os elementos distinguem-se apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o ar podem nascer um do outro por dissociação.

Demócrito pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante. A teoria dos poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de partida de Demócrito, a realidade do movimento, lhe é comum com Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir da realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou matérias originais. Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele procede, é este que domina todas as suas concepções fundamentais. Ele retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença absoluta no movimento, a idéia de que todo movimento pressupõe uma contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.

De todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a mais estrita necessidade presente em toda parte, não há nem interrupção brusca nem intervenção estranha no curso natural das coisas. Só então o pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito, tem-se, enfim, uma hipótese cientificamente utilizável; esta hipótese, o materialismo, sempre foi da maior utilidade. É a concepção mais terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo de início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles, ultrapassar as forças mais simples. É um grande pensamento reconduzir às manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie mais comum, todo

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esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que se move segundo as leis mais gerais produz, com o auxílio de um mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de uma sabedoria suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu, p. 48.

Rosenkr.: ''Admito que a matéria de todo o universo está em um estado de dispersão geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substâncias se formarem em virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu movimento. Sinto o prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leis mecânicas bem conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os olhos que não posso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei então que a teoria de Lucrécio ou de seus predecessores, Epicuro, Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se poderia dizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a matéria, e eu vos farei um mundo'".

Eis como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos flutuam, perpetuamente agitados, no espaço infinito; censurou-se desde a Antigüidade esse ponto de partida, dizendo que o mundo teria sido movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito, que o "acaso cego" reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito pouco filosófica de se exprimir. O que é preciso dizer é que há uma causalidade sem finalidade, anánke sem intenções.

Não há acaso, mas um conjunto de leis rigorosas, embora não racionais.Demócrito deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e fazem subir os átomos leves com sua pressão. O movimento original é, bem entendido, vertical, uma queda regular e eterna no infinito do espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é infinito e a queda regular não há medida para essa velocidade...

Como os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na regularidade das combinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía na mesma velocidade, isso seria equivalente ao repouso absoluto; a velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos, produz-se um movimento giratório. Esse turbilhão aproxima, primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando os átomos em equilíbrio são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são repelidos para o vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros permanecem juntos, entrelaçando-se e formando uma espécie de conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos corpos primitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e perecerão.

Cada vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos heterogêneos se separou; as partes mais leves são empurradas para o alto; sob o efeito combinado de forças opostas, a massa entra em rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como uma película. Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas partes sendo atraídas para o centro pela rotação. Os átomos centrais formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Alguns formam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um rápido turbilhão; neste

eles secam pouco a pouco e se inflamam pela rapidez do movimento (astros).

Do mesmo modo, as partículas do corpo terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se acumulam em água nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco ela tomou uma posição fixa no centro do universo; no começo, quando ela era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua, em um estágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que se moviam em torno do núcleo terrestre e desse modo viram-se atraídos para nosso sistema sideral.

Nascimento dos seres animados. A essência da alma reside em sua força animadora; é esta que move os seres animados. O pensamento é um movimento. A alma deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, de átomos sutis, lisos e arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por todo o corpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de alma. Estes se movem perpetuamente. Por causa de sua sutileza e de sua mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar circundante. É disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de fora novos átomos de fogo e de alma para substituir os átomos desaparecidos e que prende no interior do corpo aqueles que quereriam escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a morte. Isso não acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja restaurada depois da desaparição de uma parte da alma. O sono - morte aparente...

Teoria das percepções dos sentidos. O contato não é imediato, opera-se por meio das aporrhoaí.

Estas penetram no corpo pelos sentidos e espalham-se por todas as partes; disso nasce a representação das coisas. Duas condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do órgão que a recebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos as coisas por meio das partes de nosso ser que lhes são análogas...

A percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações mecânicas da matéria da alma; se a alma é levada por esse movimento à temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, o pensamento é sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as representações são falsas e o pensamento é malsão. É aqui que começam as verdadeiras dificuldades do materialismo, porque ele próprio começa a sentir seu prõton pseudos. Tudo o que é objetivo, extenso, agente, portanto material, tudo aquilo que o materialismo considera como seu fundamento mais sólido, não passa de um dado extremamente mediato, um concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro e acomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às quais se apresenta como extenso no espaço e agente no tempo. É de um tal dado que o materialismo quer, agora, deduzir o único dado imediato, a representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o último elo aparece como o ponto de partida de que já dependia o primeiro elo da corrente. Assim, comparou-se o materialismo ao Barão de Crac (sic), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montaria apertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua peruca, que puxava para cima. O absurdo consiste em partir do dado objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinado de várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se faz abstração do sujeito. Por outro lado, o materialismo é uma hipótese preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que se descobriu o prõton pseudos; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e todos os seus resultados permanecem

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verdadeiros para nós, se não no absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso, para cuja produção cooperamos sempre.

Demócrito e suas teorias Demócrito fez uma tentativa bem independente de

reconstrução. Como Sócrates, seu contemporâneo, defrontou-se com as dificuldades referentes ao conhecimento, levantadas pelo seu concidadão Protágoras e outros, e, da mesma forma que ele, deu grande atenção ao problema do comportamento, ao qual também os sofistas deram impulsos. Ao contrário de Sócrates, porém, ele era um autor volumoso, e nós ainda podemos constatar, através dos seus fragmentos, que era um dos maiores escritores da Antigüidade. Para nós, contudo, é como se não tivesse escrito quase nada; de fato, sabemos menos a seu respeito do que de Sócrates. Isto deve-se ao fato de ele ter escrito em Abdera, e as suas obras na realidade nunca foram bem conhecidas em Atenas, onde teriam tido a possibilidade de serem preservadas, como aquelas de Anaxágoras e outrem, na biblioteca da Academia. Não é certo que Platão haja conhecido alguma coisa sobre Demócrito, pois que as poucas passagens no Timeu e alhures, no qual parece que o reproduz, são facilmente explicadas pelas influências pitagóricas que afetaram a ambos. Aristóteles, por outro lado, conhece bem Demócrito, pois era também jônio do Norte.

É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles.

Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C.

Parece, entretanto, cedo demais, visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras.

Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da

escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica.

Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola regular.

A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está precisamente na mesma linha que a de Sócrates.

5. Parmênides de Eléia (530-460 a.C) – O Ser Parmênides é também

um dos mais ilustres filósofos pré-socráticos. Ao investigar a physis (a natureza) e a arché (o princípio de todas as coisas), praticamente deu início às reflexões sobre a lógica e a ontologia (estudo do ser).

Seu pensamento está exposto num poema filosófico intitulado Sobre a Natureza, dividido em duas partes distintas: uma que trata do caminho da verdade (alétheia) e outra que trata do caminho da

opinião (dóxa), ou seja, daquilo onde não há nenhuma certeza.

De modo simplificado, a doutrina de Parmênides sustenta o seguinte: - Unidade e a imobilidade do Ser; - O mundo sensível é uma ilusão; - O Ser é Uno, Eterno, Não-Gerado e Imutável.

Devido a essas características, alguns vêem no poema de Parmênides o próprio surgimento da ontologia. Ao mesmo

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tempo, o pensamento de Parmênides é tradicionalmente visto como o oposto ao de Heráclito de Éfeso (que será estudado mais adiante), para alguns estudiosos Parmênides fundou a metafísica ocidental com sua distinção entre o Ser e o Não-Ser.

Enquanto Heráclito ensinava que tudo está em perpétua mutação, Parmênides desenvolvia um pensamento completamente antagônico: “Toda a mutação é ilusória”. Parmênides vai então afirmar toda a unidade e imobilidade do Ser. Fixando sua investigação na pergunta: “o que é ”, ele tenta vislumbrar aquilo que está por detrás das aparências e das transformações. Assim, ele dizia:

“Vamos e dir-te-ei – e tu escutas e levas as minhas palavras. Os únicos caminhos da investigação em que se pode pensar: um, o caminho que é e não pode não ser, é a via da Persuasão, pois acompanha a Verdade; o outro, que não é e é forçoso que não seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.”

Para ele, através dos sentidos, os homens percebem os mais diversos fenômenos naturais, constatam mudanças nas pessoas e nos seres vivos em geral; em resumo, testemunham um mundo que está em constante transformação. Entretanto, o que é percebido empiricamente não permite que o homem conheça realmente a verdade. É um conhecimento de aparências, ou seja, um conhecimento falso.

Essência e aparência Uma lenda conta que tribos antigas, que nunca tinham

visto cavalos, quando encontravam cavaleiros, confundiam-nos com deuses, com forma de homem e cavalo. Isso ocorria por que seus sentidos os enganavam: os cavaleiros, vistos de longe, davam a aparência de que homem e cavalo eram um só. Por que hoje em dia não nos confundimos ao olharmos para cavalo e cavaleiro? Porque conhecemos a essência que define um homem e a essência que define um cavalo. É esse conhecimento da essência (e não só da aparência) que, segundo Parmênides, que permite um conhecimento verdadeiro.

É o conhecimento da essência, acima do conhecimento dos sentidos, que nos dá um conhecimento preciso do mundo. Para Parmênides, confiar nos sentidos não nos leva a um conhecimento verdadeiro.

Aparência: é aquilo que muda, que é instável, o movimento. Através dos sentidos, percebemos o mundo como um movimento constante, que nunca nos dá a verdadeira natureza das coisas.

Essência: é aquilo que não muda, que é sempre o mesmo, a verdadeira natureza das coisas. Ex.: um ser humano nasce, cresce e morre (sua aparência muda constantemente), mas ele nunca deixa de ser aquilo que é: um ser humano (sua essência).

E essa essência imutável, que não muda nunca e que não pode ser percebida pelos sentidos, é o verdadeiro conhecimento que deve ser buscado pela filosofia. Esse só pode ser percebido pelo logos, pela razão humana, mas não pela via empírica.

Ao contrário de Heráclito, que acreditava na mudança constante e eterna, Parmênides acreditava na permanência

eterna. O que é real não muda, só as aparências. Parmênides é o primeiro filósofo a falar da oposição entre o ser e a aparência.

O ser e o não-ser - Racionalismo Parmênides comparava as qualidades umas com as

outras e as ordenava em duas classes distintas. Por exemplo, comparou a luz e a escuridão, e para ele essa segunda qualidade nada mais era do que a negação da primeira. Diferenciava qualidades positivas e negativas e, esforçava-se em encontrar essa oposição fundamental em toda a Natureza. Tomava outros opostos: leve-pesado, ativo-passivo, quente-frio, masculino-feminino, fogo-terra, vida-morte, e aplicava a mesma comparação do modelo luz-escuridão; o que corresponde à luz era a qualidade positiva e o que corresponde à escuridão, a qualidade negativa. O pesado era apenas uma negação do leve. O frio era uma oposição ao quente. O passivo em oposição ao ativo, o masculino em oposição ao feminino e, cada um apenas como negação do outro.

Por fim, nosso mundo dividia-se em duas esferas: aquela das qualidades positivas (luz, quente, ativo, masculino, fogo, vida) e aquela das qualidade negativas (escuridão, frio, passivo, feminino, terra, morte). A esfera negativa era apenas uma negação da esfera positiva, isto é, a esfera negativa não continha as propriedades que existiam na esfera positiva.

Ao invés das expressões “positiva” e “negativa”, Parmênides usa os termos metafísicos de “ser” e “não-ser”. O não-ser era apenas uma negação do ser. Mas ser e não-ser são imutáveis e imóveis. Na sua Metafísica, Aristóteles expõe esse pensamento de Parmênides:

“Julgando que fora do ser o não-ser é nada, forçosamente admite que só uma coisa é, a saber, o ser, e nenhuma outra... Mas, constrangido a seguir o real, admitindo ao mesmo tempo a unidade formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes (dois princípios) ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser.”

Um famoso aforismo de Parmênides, muito mal compreendido, diz o seguinte:

O ser é e o não-ser não é.

Em outras palavras, o não-ser, que seria o movimento, simplesmente não existe; é inconcebível mesmo para o pensamento, pois, se pudesse ser pensado, existiria pelo menos como idéia. Por outro lado, Parmênides afirma que o Ser é imutável e eterno, porque, se sofresse uma transformação qualquer, teria de deixar de ser (isto é, tornar-se não-ser) para tornar-se outra coisa. Mas isso seria impossível, pois nada pode surgir do não-ser.

“Nada nasce do nada, e nada do que existe se transforma em nada”.

Quanto às mudanças e transformações físicas, o Vir-a-Ser, que a todo instante vemos ocorrer no mundo, Parmênides as explicava como sendo apenas uma mistura participativa de ser e não-ser. O vir-a-ser é apenas uma ilusão sensível. Isto quer dizer que todas as percepções de nossos sentidos apenas criam ilusões, nas quais temos a tendência de pensar que o não-ser é, e que o vir-a-ser tem um ser.

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O Ser-Absoluto

Toda nossa realidade é imutável, estática, e sua essência está incorporada na individualidade divina do Ser-Absoluto, o qual permeia todo o Universo. Esse Ser é onipresente, já que qualquer descontinuidade em sua presença seria equivalente à existência de seu oposto – o Não-Ser. Ou seja, não pode haver vácuos, vazios, lacunas no universo (pois tais seriam o não-ser). O universo seriam Uno, ou seja, uma realidade contínua.

Uma outra conseqüência disso é afirmar que “tudo o que existe sempre existiu”. Ou seja, não pode haver algo que passou a existir no tempo x, uma vez que no tempo x – 1 esse algo não teria existido. E, para Parmênides, uma coisa não pode surgir do nada. Parece um princípio estranho, mas a ciência contemporânea aceita um princípio bastante semelhante: “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”. A diferença, aqui, é que Parmênides também não admite, no plano lógico, transformações.

Sobre as transformações que se pode observar na natureza... ”Achava que não seriam mudanças reais”. De acordo com ele, nenhum objeto poderia se transformar em algo diferente do que era. Usando os sentidos (tato, paladar, olfato, audição e, principalmente, visão), Parmênides admitia que percebia as coisas mudando e se transformando. Mas sua razão lhe dizia que logicamente impossível que uma coisa se tornasse diferente e, apesar disso, permanecesse de algum modo a mesma. Isso derrogaria um princípio fundamental do pensamento lógico: o princípio da não-contradição.

Quando se viu forçado a escolher entre confiar nos sentidos (o movimento existe) ou na razão (não há passagem do ser para o não-ser), escolheu a razão. Essa inabalável crença na razão humana recebeu o nome de racionalismo. Um racionalista é alguém que acredita que a razão humana é a fonte primária de nosso conhecimento do mundo. Levou essa tese tão a sério, que defendeu uma tese praticamente indefensável: o movimento não existe.

Outra caracterização que podemos fazer do Ser é que ele não pode ter sido criado por algo, pois isso implicaria em admitir a existência de um outro Ser, que seria criado por outro ser, numa cadeia infinita. Do mesmo modo, esse Ser não pode ter sido criado do nada, pois isso implicaria a existência do “Não-Ser”.

Dessa forma, o Ser simplesmente é, não podendo “passar a ser” nem “deixar de ser”. Isso quer dizer que o Ser-Absoluto não pode vir-a-ser. E não podem existir vários “Seres-Absolutos”, pois para separá-los precisaria haver uma lacuna, algo que não fosse um Ser. Consequentemente, existe apenas a Unidade eterna. Teofrasto relata assim esse raciocínio de Parmênides:

“O que está fora do Ser não é Ser; o Não-Ser é nada; o Ser, portanto, é Um.”

Aletheia e Doxa – o conhecimento Em seus poemas, Parmênides estabelece uma

distinção, duas vias do conhecimento da realidade: a via da verdade (aletheia) e a via da opinião (doxa).

A via da opinião ou da aparência, baseada nas informações recebidas pelos sentidos, podia fornecer conhecimento sobre o mundo sensível, mas, exatamente por captá-lo como múltiplo, instável e transitório, é uma via de conhecimento insuficiente e enganadora para compreender a sua verdadeira essência.

A essência só seria apreendida pela vida da verdade que, desprezando e recusando as informações fornecidas pelos

sentidos, fundava-se no uso da razão. Privilegiando a razão como meio de se obter a verdade, Parmênides foi obrigado a defender a tese da impossibilidade lógica da passagem do ser para o não-ser e disso concluir que o movimento não existe e o Universo é uno.

É importante frisar também que Parmênides identificou o ser à linguagem ou discurso do Logos. Para ele Ser, Pensar e Dizer seriam a mesma coisa. Não-ser, perceber e opinar teriam o significado oposto, nada representando perante o pensamento. Parmênides, na verdade, identificou 3 planos diferentes:

SER = REALIDADE / PENSAMENTO / LINGUAGEM (DISCURSO)

Isso quer dizer: o que é a realidade (Ser) se identifica com o que podemos pensar logicamente e, uma vez pensado, podemos também expressar tal pensamento na linguagem (discurso, logos).

7. Heráclito de Éfeso (540-470 a.C) - O devir Um

contemporâneo de Parmênides foi Heráclito, que era de Éfeso, na Jônia (Ásia Menor). Também conhecido como o “Obscuro”, por apresentar seu pensamento por meio de aforismos (sentenças curta com lições breves), com um estilo

propositadamente enigmático. De seus

escritos restaram poucos fragmentos, (encontrados em obras posteriores), os quais geraram grande número de obras explicativas.

Também se explica essa alcunha pelo fato de Parmênides desprezar a plebe, os poetas, os filósofos e a religião, além de recusar-se a participar da política (atividade essencial para os gregos). Em virtude da sua doutrina dos contrários, foi reconhecido como o pai da “dialética”.

Arché - Fogo Heráclito propunha que a matéria básica do Universo,

a arché, seria o Fogo. Para ele, "todas as coisas são uma troca do fogo, e o fogo, uma troca de todas as coisas, assim como o ouro é uma troca de todas as mercadorias e todas as mercadorias são uma troca do ouro", ou seja, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas.

Segundo Heráclito, o fogo é o elemento primordial de todas as coisas. Tudo se origina por rarefação e tudo flui como um rio. O cosmos é um só e nasce do fogo e de novo é pelo fogo consumido, em períodos determinados, em ciclos que se repetem pela eternidade.

Em seu livro: Do Céu, Aristóteles escreve:

“Concordam todos em que o mundo foi gerado; mas, uma vez gerado, alguns afirmam que é eterno e outros que é perecível, como qualquer outra coisa que por natureza se forma. Outros, ainda, que, destruindo-se, alternadamente é ora assim, ora de outro modo, como Empédocles e Heráclito de Éfeso. (...) Também Heráclito

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assevera que o universo ora se incendeia, ora de novo se compõe do fogo, segundo determinados períodos de tempo, na passagem em que diz – Acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.”

Para Heráclito, condensado o fogo se umidifica, e com mais consistência torna-se água, e esta, solidificando-se, transforma-se em terra e a partir daí, nascem todas as coisas do mundo. Este é o caminho que Heráclito define como sendo “para baixo”. Derretendo-se a terra obtém-se água. Água transforma-se em vapor, tal como vemos na evaporação do mar. E rarefazendo-se o vapor transforma-se novamente em fogo. E este é o caminho “para cima”. Dentro do pensamento de Heráclito, Deus não tinha a aparência de um homem nem de outro animal qualquer. Deus não era nem criador, nem onipotente. Heráclito limitava-se a identificá-lo com os opostos, os quais persistem apesar de suas mudanças e assim são capazes de compreender sua própria unidade.

“O Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; mas se alterna como o fogo, quando se mistura a incensos, e se denomina segundo o gosto de cada um.”

Nesse argumento, podemos ver que Heráclito considerava as diversas divindades da mitologia grega, que eram adoradas pelos homens de seu tempo, como sendo apenas fogo misturado a diferentes tipos de incensos.

Panta Rhei Pensava também que a mudança constante, ou o fluxo,

seria a característica mais elementar da Natureza. Os filósofos milesianos (Tales, Anaximandro, etc) haviam percebido o dinamismo das mudanças que ocorrem na physis, como o nascimento, o crescimento e o perecimento, mas não chegaram a problematizar a questão. Heráclito, inserido dentro do contexto pré-socrático, parte do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático. "Panta rhei", sua "máxima", significa "tudo flui", "tudo se move", exceto o próprio movimento.

Um homem não se banha duas vezes no mesmo rio porque nunca é o mesmo homem e nunca é o mesmo rio.

Tudo está em fluxo e movimento constante, nada permanece. Por conseguinte, “não entramos duas vezes no mesmo rio”. Quando entramos no rio pela segunda vez, nem nós nem o rio somos os mesmos. Parece fácil entender que o rio não é o mesmo, mas nós, seres humanos não deixamos de ser os mesmos quando entramos num rio. Compreendemos esse aforismo de Heráclito se nos lembrarmos que a biologia, mais tarde, acabou por descobrir que nossas células estão em constante renovação e nosso corpo nunca seria o mesmo.

Mas tal questão é apenas um pressuposto de uma doutrina que vai mais além. O devir, a mudança que acontece em todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam, coisas frias esquentam, coisas úmidas secam, coisas secas umedecem, etc. A realidade acontece, então, não em uma das alternativas, que são apenas parte da realidade, e sim da mudança ou, como ele chama, na guerra entre os opostos.

Esta guerra é a realidade, aquilo que podemos dizer que é. Mas essa guerra da qual fala Heráclito não tem essa conotação de violência ou algo semelhante. Tal guerra é que

permite a harmonia e mesmo a paz, já que assim é possível que os contrários possam existir: "A doença faz da saúde algo agradável e bom", ou seja, se não houvesse a doença, não haveria porque valorizar-se a saúde, por exemplo.

Ele ainda considera que, nessa harmonia, os opostos coincidem da mesma forma que o princípio e o fim, em um círculo, ou a descida e a subida, em um caminho. O quente é o mesmo que o frio, pois o frio é o quente quando muda (ou, dito de outra forma: o quente é o frio depois de mudar, e o frio, o quente depois de mudar). Enfim, quente e frio são "versões" diferentes da mesma coisa, duas faces da mesma moeda.

Parmênides e Heráclito defendiam dois pontos principais diametralmente opostos.

Parmênides dizia: a) nada muda, b) não se deve confiar em nossas percepções sensoriais.

Heráclito, por outro lado, dizia: a) tudo muda (“todas as coisas fluem”), e b) podemos confiar em nossas percepções sensoriais.

O devir eterno – o vir-a-ser Sua idéia central é o “devir eterno”, a transformação

incessante do universo, pela qual as coisas se constroem e se dissolvem em outras. Assim, a idéia absolutamente original trazida por Heráclito é a de que o mundo não é um lugar estático, mas um fluxo, uma mudança permanente de todas as coisas, um constante vir-a-ser. Para Heráclito, nada permanece o mesmo, nem por um instante. O que é hoje, amanhã não mais será. São frases dele:

O Sol é novo a cada dia. Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não

somos.

Tudo flui, tudo passa, tudo se move sem cessar. A vida se transforma em morte, a morte em vida; o úmido seca, o seco umedece; a noite torna-se dia, o dia torna-se noite; a vigília cede ao sono, o sono cede à vigília; o jovem torna-se velho, o velho se faz criança. O mundo é um perpétuo renascer e morrer, rejuvenescer e envelhecer. Nada permanece idêntico a si mesmo. Assim, para Heráclito, a essência verdadeira do universo está na “transformação”, na mudança ou devir.

Além disso, tudo tem o seu ser, ou seja, aquilo que define o que a coisa é. Mas tudo tem também o não-ser, o seu oposto. Um exemplo seria a luz (que tem na escuridão o seu não-ser, o seu oposto).

Tudo no universo está em permanente guerra contra o seu contrário. Um exemplo da guerra dos contrários é a vida e morte: seres vivos morreriam porque já trariam em si o seu contrário, ou seja, a morte.

Dialética O conhecimento da realidade se dá de maneira

dialética. Dialética, no contexto da filosofia de Heráclito, significa “através de contrários”. Conhecer qualquer coisa só é possível porque existe o seu contrário. Por exemplo: sabemos o que é a alegria porque experimentamos a tristeza, e vice-versa. Sabemos o que é certo por que já experimentamos o errado, sabemos o que é luz porque já vivenciamos a escuridão, e vice-versa. (Obs.: Vale lembrar que o pensamento dialético, abordado por outros pensadores como Sócrates, Platão, Hegel e Marx, para citar alguns nomes, adiquire significados diversos do que o aqui exposto).

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8. O PERÍODO SISTÊMICO

O segundo período da história do pensamento grego é o chamado período sistemático ou sistêmico. Com efeito, nesse período realiza-se a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão, que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno do homem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a esse segundo período do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.

Esse período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a decadência - teve duração bastante curta. Abraça, substancialmente, o século IV a.C., e compreende um número relativamente pequeno de grandes pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas socráticas menores, sendo principais a cínica e a cirenaica, precursoras, respectivamente, do estoicismo e do epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu, que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado logicamente o platonismo.

Para compreender o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles (que ocuparão nosso estudo com maior profundidade) é necessário antes de mais nada, localizá-lo na grande transformação por que passou o pensamento filosófico na Grécia com o surgimento dos Sofistas, inaugurando um período comumente chamado de Sistêmico.

Esse segundo período da história do pensamento grego é o chamado Período Sistemático. Com efeito, nesse período realiza-se, na Filosofia, a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão , que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza (Physis), mas em torno do homem e do espírito; da metafísica (estudo do ser) passa-se à gnosiologia (estudo do conhecimento humano) e à moral (definição do bem e do mal, da virtude).

Daí ser dado a esse segundo período do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.

8.1 Os Sofistas Os sofistas se compunham de grupos de mestres

gregos que viajavam de cidade em cidade realizando aparições públicas (discursos, palestras, aulas, etc.) para atrair estudantes, de quem cobravam taxas para oferecer-lhes educação. O foco central de seus ensinamentos concentrava-se no Logos ou discurso, com foco em estratégias de argumentação.

Os mestres sofistas alegavam que, ensinando técnicas e estratégias de argumentação, podiam tornar seus alunos pessoas “melhores”, ou seja, que seus ensinamentos possibilitavam um aprendizado moral. A tese implícita nessa alegação, que causa bastante polêmica até hoje, é a idéia de que a “virtude” pode ser ensinada.

De uma maneira geral, os sofistas eram questionadores das “verdades” aceitas pelos Gregos. Foi questionado, por exemplo, a idéia de que havia uma sabedoria recebida pelos deuses e a crença na supremacia da cultura

grega (uma idéia absoluta à época). Argumentavam, por exemplo, que as práticas culturais existiam não em função de desígnios divinos, mas em função de convenções ou “nomos” (normas morais impostas pelo próprio grupo), e que a moralidade ou imoralidade de um ato não poderia ser julgada fora do contexto cultural em que aquele ocorreu.

Tal posição questionadora levou-os a serem perseguidos, inclusive, por aqueles que se diziam amar a sabedoria: os filósofos gregos. Após uma crescente influência na política grega, os sofistas passaram a ser perseguidos, ameaçados e mesmo assassinados. Especialmente pelos filósofos (que acreditavam em uma "verdade universal" em contraposição à visão democrata relativista dos sofistas), os sofistas encontraram forte oposição.

Mesmo com o repentino "desaparecimento" dos sofistas (especula-se que tenham formado sociedades secretas, ou migrado para o oriente, onde teriam auxiliado na formação e propagação de diversas religiões), tais perseguições continuaram, mas de modo escrito, na medida em que toda e qualquer referência aos sofistas é feita de modo depreciativo. Fato que foi copiado por diversos filósofos modernos que, sem reflexão, continuaram a intitular os sofistas como inimigos da filosofia.

Os sofistas são os primeiros a romperem com a busca pré-socrática por uma unidade originária (a physis) iniciada com Tales de Mileto e finalizada em Demócrito de Abdera (que embora tenha falecido pouco tempo depois de Sócrates, tem seu pensamento inserido dentro da filosofia pré-socrática).

O homem é a medida de todas as coisas

A conhecida frase “o homem é a medida de todas as coisas” surgiu dos ensinamentos sofistas. Uma das mais famosas doutrinas sofistas é a teoria do contra-argumento. Eles ensinavam que todo e qualquer argumento poderia ser contraposto por outro argumento, e que a efetividade de um dado argumento residiria na verossimilhança (aparência de verdadeiro, mas não necessariamente verdadeiro) perante uma dada platéia.

Os Sofistas foram os primeiros “advogados” do mundo, ao cobrar de seus clientes para efetuar suas defesas, dada sua alta capacidade de argumentação. São também considerados por muitos os guardiões da democracia na antiguidade, na medida em aceitavam a relatividade da verdade (princípio básico para se sustentar um sistema democrático). Hoje, a aceitação do "ponto de vista alheio" é a pedra fundamental da democracia moderna.

Na atualidade, há uma tendência de revisão histórica dos sofistas, que passam a ser encarados como um grupo ultra-democrata numa era grega em que a democracia aplicava-se à política, mas não necessariamente às idéias.

O termo “sofista” tem uma conotação pejorativa nos dias de hoje, mas, na Grécia antiga, os sofistas eram profissionais muito bem remunerados e respeitados por suas habilidades.

A sofística Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o

império persa, houve um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os mestres de eloqüência.

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Os sofistas, ávidos por conquistar fama e riqueza no

mundo, tornaram-se mestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber disponível à época, toda a cultura, se firmando como uma espécie de enciclopédia universal, como meio para fins práticos e empíricos, mas bastante superficial.

A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles (495/492-429 a.C), capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.

Relativismo e ceticismo Em coerência com o ceticismo teórico, destruidor da

ciência, a sofística sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. A verdade se identifica com os sentidos (o que percebo com os sentidos é verdadeiro), assim como o bem se identifica ao sentimento (se “sinto” que algo é bom, então é bom mesmo). Verdade e bondade se ligam ao impulso, à intuição, à paixão de cada um em cada momento.

A tese acima descrita é chamada de relativismo (pois relativiza a verdade e a moral) e empirismo ou sensualismo (pois toma como critério de verdade e bondade os sentidos). As teses sofistas também foram classificadas como hedonismo (o prazer sensorial constitui o fim, o objetivo da vida) e utilitarismo ético (o única regra de conduta moral é o interesse particular, ou seja, o que for útil ao indivíduo é correto do ponto de vista ético).

Górgias (480-375), sofista ateniense, declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o homem.

Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal, instintiva.

E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares. Criticam também o fato das sociedades celebrarem a utilidade das leis: a submissão à lei nos torna mais felizes e nós protege contra a maldade. Para os sofistas, tiranos, os grandes malvados, mediante graves crimes, têm freqüentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é necessário justiça e retidão moral (fazer o que é certo), mas prudência e habilidade (fazer o que é conveniente).

Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e

os fracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o fraco em seu

proveito.

Protágoras de Abdera (480-410 a.C)

Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito , cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e

procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em praça pública.

Dos princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, deduziu o relativismo do conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula:

“O homem é a medida de todas as coisas”.

Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias.

Górgias de Leôncio Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou

na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloqüente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qual desenvolve as três teses: Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris. No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo, negador dos valores teóricos e morais,

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Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é verdadeiro e o que é bem!

O Sofisma como figura de argumentação Sofisma (do grego antigo s f s µa -at , derivado de

s f es f a

"fazer raciocínios capciosos") em Filosofia é um

raciocínio aparentemente válido, mas inconclusivo, pois é contrário às suas próprias leis. Também são considerados sofismas os raciocínios que partem de premissas verdadeiras ou verossímeis, mas que são concluídos de uma forma inadmissível ou absurda. Por definição, o sofisma tem o objetivo de dissimular uma ilusão de verdade, apresentado-a sob esquemas que parecem seguir as regras da lógica.

Historicamente o termo sofista, no seu primeiro e mais comum significado, é equivalente ao paralogismo matemático, que é uma demonstração aparentemente rigorosa que, todavia, conduz a um resultado nitidamente absurdo. Atualmente, no uso freqüente e do senso comum, sofisma é qualquer raciocínio capcioso ou inválido, mas que se apresenta com coerência e que tem por objetivo induzir outros indivíduos ao erro mediante ações de má-fé. Pode significar, também, a persuasão por efeito psicológico e não pela correção lógica do argumento.

Sofística era originalmente o termo dado às técnicas ensinadas por um grupo altamente respeitado de professores retóricos na Grécia antiga. O uso moderno da palavra, sugestionando um argumento inválido composto de raciocínio especioso, não é necessariamente o representante das convicções do sofistas originais, a não ser daquele que geralmente ensinaram retórica. Os sofistas só são conhecidos hoje pelas escritas de seus oponentes (mais especificamente, Platão e Aristóteles) que dificulta formular uma visão completa das convicções dos sofistas.

8.2 Sócrates

Tudo o que sabemos sobre a vida e o pensamento de Sócrates é proveniente dos comentários dos filósofos (principalmente Platão) que seguiram suas idéias, pois ele, assim como o Cristo, não deixou nenhum escrito. A figura de Sócrates era, com freqüência, associada à dos sofistas; contudo, o filósofo não vendia os seus ensinamentos – até porque afirmava não possuir nenhum: “Só sei que nada sei”, dizia Sócrates – e, ao contrário dos sofistas, buscava antes de tudo a “verdade” e não a “aparência” do saber. Certo é que valorizou a descoberta do homem como referência filosófica feita pelos sofistas, mas orientou essa descoberta para os valores

universais, para a verdade, segundo a via real do pensamento grego.

Sócrates nasceu em Atenas, provavelmente no ano de 470 a.C., e tornou-se um dos principais pensadores da Grécia Antiga. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade, em Atenas. A cena retratada acima dramatiza o momento de sua morte, quando condenado por influenciar negativamente a juventude de Atenas, é sentenciado à morte por envenenamento com cicuta. Contrariando a todos, ele se submete expontanemante à sua sentença, recusando-se a fugir.

O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica. A única ciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral

Mas, se o fim da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do teorético, no sentido de que o homem tanto age quanto conhece. Para ele, só age virtuosamente o sábio; o malvado é ignorante. O moralismo socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está contra todo voluntarismo (ação baseada apenas na experiência prática), sentimentalismo (ação baseada nos sentimentos, na intuição), pragmatismo, ativismo, etc.

Contudo, antes de querer persuadir os outros de suas idéias (como o faziam os sofistas), cada um deve, primeiro e antes de tudo, conhecer a si mesmo. A expressão “conhece-te a ti mesmo”, que estava gravada no pórtico do templo do deus Apolo, patrono grego da sabedoria, tornou-se o lema de Sócrates. O perfeito conhecimento do homem é o objetivo de toda a sua filosofia. Neste sentido, a moral (como o homem deve agir para ser Virtuoso) passa a ser o centro para o qual convergem todas as partes da filosofia.

Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das mais características da moral socrática, é conseqüência natural do erro psicológico de não distinguir a vontade (psicológico) da inteligência (lógico). Para ele, a grandeza moral e profundidade especulativa e intelectual, a virtude e a ciência (e por outro lado, a ignorância e o vício) são sinônimos.

"Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".

A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia (teoria do conhecimento) e à ética (teoria da moral), sem metafísica (cosmologia).

O Método Socrático A parte gnosiológica da Filosofia socrática foi

desenvolvida através de diálogos críticos com vários interlocutores (uns importantes figuras atenienses, outras nem tanto). Esses diálogos eram constituídos, de modo geral, por dois momentos: a ironia e a maiêutica (que veremos detalhadamente, a seguir). Nesses diálogos, Sócrates fazia perguntas sobre as idéias (plano intelectual) e valores (plano ético) nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas deixavam os interlocutores embaraçados, surpresos, percebendo que não sabiam responder

A morte de Sócrates, de Jacques Louis David

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e que nunca tinham pensado com maior profundidade suas crenças, seus valores e idéias.

Sócrates adotou vários procedimentos típicos dos sofistas: polemização via questionamento de valores, método filosófico via diálogo, valorização de temas voltados à natureza espiritual e moral do ser humano e rejeição por temas cosmológicos típicos do pré-socráticos. Entretanto, insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões sensoriais, os sofistas acreditavam na impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Já Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência. O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o variável e mutável. É o inteligível, o conceito que se exprime pela definição (que é invariável, perfeito, imutável).

Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa.

A Ironia Introspecção, ignorância, indução, definição. Antes

de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; este é o momento da ironia, isto é, da crítica. No início do diálogo, Sócrates convida seu interlocutor a filosofar sobre determinado assunto, a buscar a verdade acerca daquilo sobre o que falam. Geralmente, o filósofo começa com uma pergunta do tipo: “O que é a justiça?”. Ao receber as primeiras respostas, Sócrates passa a analisá-las para ver se ali encontra um conceito (definição) da coisa procurada.

Assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. Essa fase do diálogo, chamado de Ironia não pode ser entendida no sentido de humor ou descaso sarcátisco, mas apenas um discurso que visa demonstrar àquela pessoa que o que ela pensava saber sobre determinado assunto é, na verdade, aparência de saber, opiniões subjetivas, e não a definição buscada.

Na ironia, Sócrates atacava de modo implacável as respostas de seus interlocutores: com habilidade de raciocínio impressionante, procurava mostrar as contradições das afirmações e os novos problemas que surgiam como conseqüência de determinada resposta. Seu objetivo inicial era demolir o orgulho, a arrogância e a presunção gerados pela aparência do saber.

A primeira virtude do sábio é adquirir consciência da própria ignorância. A ironia socrática tinha um caráter purificador, na medida em que levava os discípulos a confessarem suas próprias contradições e ignorâncias, onde antes só julgavam possuir certezas e verdades. A intenção fundamental de Sócrates, com sua ironia, não era propriamente destruir o conteúdo das respostas dadas pelos interlocutores, mas fazê-los tomar consciência profunda de suas próprias respostas, das conseqüências que poderiam ser tiradas de suas reflexões, muitas vezes repletas de conceitos vagos e imprecisos.

A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade

tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.

A Maiêutica Após ter reconhecido a deficiência de sua

argumentação, os interlocutores de Sócrates estavam aptos para o segundo momento do diálogo: a maiêutica. A maiêutica, que Sócrates afirmava auxiliar os partos do espírito, como sua mãe parteira auxiliava os partos do corpo, é um termo de origem grega que significa “a arte de trazer à luz”, ou ainda “a arte de parturejar” (fazer o parto). Sócrates dizia-se um parteiro de idéias e evocava a imagem de sua mãe – que era parteira – para, numa linguagem metafórica, explicar seu papel de filósofo. Na qualidade de filho de uma parteira, Sócrates assiste ao parto dos espíritos, das idéias, dos pensamentos que eles – os espíritos ou mentes dos interlocutores – contêm sem o saber.

Conta-se que certa vez, Sócrates, fazendo perguntas precisas e traçando diante de um escravo figuras matemáticas na areia, levou-o a descobrir uma proposição da geometria. O escravo, que nunca tinha aprendido Matemática, começa por responder erradamente. No entanto, com o prosseguimento do diálogo, acaba por dar respostas corretas. Sócrates interpretou isso como prova evidente de que o escravo, assim como todos nós, possui conhecimentos matemáticos sem o saber.

Para além do enorme interesse filosófico desta demonstração, a resolução do problema proposto por Sócrates ao escravo é merecedora de atenção do ponto de vista da matemática, dando-nos uma idéia do desenvolvimento das matemáticas Gregas nos finais do século V a.C.

Enfim, Sócrates, por meio de perguntas, destrói o saber constituído para reconstruí-lo na procura da definição do conceito. Esse processo aparece bem ilustrado nos diálogos de Platão, e é bom lembrar que, no final do diálogo, nem sempre Sócrates tem a resposta: ele também se põe em busca do conceito e às vezes as discussões não chegam a conclusões definitivas ou não têm uma resposta precisa ou definitiva.

A Aporia Quando um diálogo não chega a uma resposta

definitiva, dizemos que ele apresenta uma Aporia. Na filosofia grega antiga, tal termo servia para designar contradições entre dois juízos (o que se chamaria depois, com mais propriedade, antinomia). Contemporaneamente, pode-se definir aporia como a tensão lógico-retórica que impede que o sentido de um texto se possa fixar.

Na aporia clássica de "Aquiles e a tartaruga", diz-se que o veloz Aquiles nunca conseguirá alcançar a tartaruga, porque, quando o atleta chegar ao ponto em que a tartaruga se encontrava no momento da partida, o animal terá tido tempo de mover-se e alcançar uma determinada distância de Aquiles. Esse, por sua, vez tentará alcançar esse novo ponto onde a tartaruga se encontrava, mas essa já terá se movido novamente, e assim por diante. Não é possível, neste caso, com precisão lógica, em que sentido Aquiles não alcançaria a tartaruga.

Num diálogo aporético não se chega nunca a uma definição do tema central. Em alguns diálogos, apenas pela refutação (desconstrução das idéias do interlocutor) de todas as tentativas de definição, Sócrates estaria em condições de dizer alguma coisa sobre aquilo que se quer discutir.

As aporias têm uma função heurística. Define-se procedimento heurístico como um método de aproximação das soluções dos problemas, que não segue um percurso claro, mas se baseia na intuição e nas circunstâncias a fim de gerar conhecimento novo. Assim, o interlocutor de Sócrates só estará

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em condições de aprender a verdade quando se der conta da sua ignorância. Tal reconhecimento é buscado através do uso heurístico das aporias. O método aporético de Sócrates pressupõe a purificação da falsa sophia do interlocutor.

O legado de Sócrates A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A

doutrina do conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias, exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.

8.3 Platão (428/427-347 a.C)

Diversamente de Sócrates, que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre família. Temperamento artístico e dialético - manifestação característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos.

Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e desfrutou por oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.

Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas

vezes – em 366 e em 361 a.C. – à Dion, esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utópica. Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou com a expulsão de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, mas foi libertado por Arquitas e pelos seus amigos.

O pensamento de Platão Inspirado em Sócrates, Platão vê na filosofia um fim

prático, moral: tornar o homem virtuoso. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência. Mas, ao contrário do mestre, que limitava a pesquisa filosófica, conceitual, ao campo antropológico e moral, Platão estende tal investigação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.

Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do senso comum e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, conceitual, universal e imutável. A gnosiologia (teoria do conhecimento) platônica, porém, tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas.

Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: a) o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo; e b) o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar.

A diferença essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, está nisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que é verdadeiro, donde pode cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo. Pode-se dizer também que o primeiro sabe que as coisas são do jeito que elas são, sem saber por que o são assim (sem conhecimento de causa), ao passo que o segundo sabe que as coisas devem ser necessariamente do jeito que são, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.

Deste mundo material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em que vivemos.

A teoria das idéias ou formas Para Platão, o processo do conhecimento se

desenvolve por meio de uma passagem progressiva do mundo sensível – da realidade material, corpórea – para o mundo inteligível – o mundo das idéias ou mundo das formas, mundo das essências imutáveis, imóveis, de pura perfeição. Com efeito, a realidade sensível (dos sentidos), da qual, obviamente, fazemos parte, não nos oferece a possibilidade do verdadeiro conhecimento, uma vez que a matéria de que as coisas sensíveis foram feitas tornam tais coisas imperfeitas, mutáveis, destrutíveis. O mundo material é contraditório e, por isto, dele

Platão apontando para cima (em alusão ao mundo das idéias), à esquerda de Aristóteles (que volta a mão para

baixo, em alusão ao mundo imanente).

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só nos chegam as aparências das coisas e sobre eles temos tão-somente opiniões, nunca conhecimento.

O mundo sensível não constitui a verdadeira realidade: é um pálido reflexo de uma realidade superior, de um mundo supra-físico, muito semelhante ao mundo dos entes matemáticos (os números, as operações e formas matemáticas). Não era mera coincidência que Platão mandou escrever, no pórtico da entrada de sua academia, os seguintes dizeres:

“Não entre aqui quem não souber Geometria”.

As formas matemáticas sempre o fascinaram, por que elas eram o que mais próximo existia da sua teoria sobre o mundo das idéias.

Quando vemos uma poltrona, por exemplo, ela pode mudar de cor, de tecido, de forma, de tamanho; contudo, a essência da poltrona

permanece sempre a mesma, em qualquer época ou lugar: é sempre a “idéia” de poltrona. Por ter uma essência, podemos conhecê-la,

mesmo através de objetos aparentemente diferentes.

A forma (essência) de um triângulo não deixa de existir se todos pararem de pensar sobre

ela. Ela é indestrutível e independente da existência de

objetos triangulares.

O mundo sensível só tem realidade na medida em que participa do mundo inteligível ou das idéias. As coisas materiais que nos rodeiam são como sombras das idéias, isto é, simulacros (imitações) das suas formas primordiais e modelos eternos que habitam o supra-físico. Esses modelos eternos, segundo Platão, são incorpóreos e imutáveis. Embora Platão os chame também de “idéias”, eles não existem na mente humana. Ao contrário, existem fora do pensamento e, principalmente, fora dos objetos, num plano ou dimensão que o filósofo denomina “Hiperurânio”: uma dimensão metafísica ao qual se tem acesso apenas pelo pensamento.

Quando vemos uma mesa, por exemplo, ela pode mudar de cor, envelhecer, se estragar; contudo, a essência da mesa permanece sempre a mesma, em qualquer época ou lugar é sempre a “idéia” de mesa. Da essência da mesa temos conhecimento (episteme), mas da mesa material, uma aparência percebida sensorialmente, temos apenas opinião (doxa). Assim, todo o nosso esforço deve ser concentrado na tentativa de acessarmos o mundo das idéias para transcendermos (ultrapassarmos) esse mundo de devir, vir-a-ser (mundo perecível e imperfeito).

O conhecimento verdadeiro deve, para Platão, ultrapassar a esfera das impressões sensoriais (mundo sensível) e penetrar na esfera racional do mundo das formas. Ora, de acordo com Platão, a dialética é, por excelência, o conhecimento verdadeiro, o método filosófico que pode nos levar, num processo ascendente, da realidade sensível – da crença e da opinião – para o plano supra-físico – das idéias e essências.

O método dialético promove uma espécie de separação da alma inteligível do corpo físico, fazendo com que a alma capte, num plano superior, as coisas totais e perfeitas: a bondade em si, a coragem em si, a sabedoria em si, entre outros.

Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na importância de explicar os atributos do absoluto de Parmênides.

O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está no vértice. Podemos pensar aqui numa pirâmide, onde a hierarquia platônica vai da idéias dos objetos menos abstratos (mesas, cadeiras, etc.), passando pelas idéias mais abstratas (as idéias matemáticas, os valores – justiça, virtude, etc.) e chegando ao vértice, que é a própria idéia de BEM, a mais abstrata e, por isso mesmo, aquela da qual todas as outras idéias derivam.

A alegoria da Caverna Para compreender o aspecto político da teoria

platônica das idéias, é necessário fazer uma analogia com o mito da caverna, segundo o qual os homens viviam, desde a infância, acorrentados no interior de uma caverna, onde só conheciam sombras do mundo real. O prisioneiro que se libertou das correntes (isto é, o filósofo), ao sair da caverna e contemplar a verdadeira realidade, passa do nível da opinião (doxa) ao nível da ciência (episteme).O filósofo deve retornar

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ao meio dos homens para orientá-los a fugir da caverna das sombras. Fazer política, para Platão, é saber influenciar os homens que não vêem a sair da escuridão. Cabe ao filósofo ensinar e governar os homens (papel do político). Portanto, para que o Estado seja bem governado, é preciso que “os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos”.

Platão propõe um modelo aristocrático de poder. No entanto, não se trata de uma aristocracia da riqueza, mas da inteligência, em que o poder é confiado aos melhores, ou seja, é uma sofocracia (governo dos sábios).

Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.

Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores. À classe dos filósofos cabe

dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das idéias, conhecem a realidade das coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente a contemplação das idéias.

À classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos.

À classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material.

Trecho do livro “A República”, de Platão O MITO DA CAVERNA

E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa natureza humana vive banhada em luz ou mergulhada em sombras.

Imagine seres humanos vivendo em um abrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se abre para a luz, que a atinge em toda a extensão. Aí sempre viveram, desde crianças, tendo as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem mover-se, e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedem de virar a cabeça.

Acima e por trás deles, um fogo arde a certa distância e, entre o fogo e os prisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olhares bem, verás uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se enquanto exibem os bonecos.

[...] Pois esses seres são como nós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou as sombras uns dos outros, que o fogo projeta na parede que lhes fica à frente.

Esquema dos dois mundos de Platão na Alegoria da Caverna Mundo visível

A sua geografia limita-se ao espaço sombrio da caverna.

Caracteriza-se pela escuridão, é um mundo de sombras, de lusco-fusco, de imagens imprecisas (ídolos).

Nele o homem se encontra encadeado, constrangido a olhar só para a parede na sua frente, ficando com a mente embotada, preocupando-se apenas com as coisas mesquinhas do seu dia-a-dia.

Homem dominado pelas sensações e pelos sentidos mais primários.

Em situação de desconhecimento e ignorância (agnosis).

Condição em que se encontra o homem comum.

Mundo Inteligível

É todo universo fora da caverna, o espaço composto pelo ar e pela terra inteira.

Dominado pela claridade exuberante de Hélio, o Sol que tudo ilumina com seus raios esplendorosos, permitindo a rápida identificação de tudo, alcançando-se assim a ciência (gnose) e o conhecimento (episteme).

Plenitude do homem liberto da opressiva caverna, podendo investigar e inquirir tudo ao seu redor conhecendo enfim as formas perfeitas.

Homem orientado pela inteligência (nous) e pela razão (logos).

Em condições de cultivar a sabedoria e a busca pela verdade e pelo ideal da junção do bem com o belo (kalogathia).

Condição do filósofo.

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Interpretação do Mito da Caverna

Platão não achava que nosso mundo era o melhor dos mundos. Para ele, o mundo que chamamos de real é uma espécie de prisão, onde ficamos trancafiados na escuridão e nas sombras. Mas além dessa prisão reside um brilhante e esperançoso mundo de verdades que ele chamou de mundo das idéias ou ideais, e é por isso que chamamos essa doutrina de idealismo.

Platão desenvolve suas doutrinas idealistas de forma notável na República, onde seu porta-voz, como de hábito, é seu mestre, Sócrates. (Desconhece-se até que ponto Sócrates realmente sustentava os pontos de vista de Platão.)

Sócrates compara nosso mundo cotidiano a um "abrigo subterrâneo", uma caverna onde somos mantidos acorrentados. À nossa frente ergue-se uma parede e atrás de nós, uma fogueira. Incapazes de virar a cabeça, vemos somente as sombras projetadas na parede pelo fogo, nada conhecendo além disso. Naturalmente acreditamos que tais sombras são a "realidade". Não existe, para nós, outra realidade além dessa.

Mas se pudéssemos nos libertar das correntes, se pudéssemos ao menos nos virar para a entrada da caverna, poderíamos constatar o nosso erro. A princípio, a luz direta nos seria dolorosa e perturbadora. Elas nos cegaria por um momento. Seria preciso coragem para suportá-la (suportar a verdade). Porém, logo nos adaptaríamos e começaríamos a perceber as pessoas e objetos reais, que só conhecíamos em forma de sombras.

Mesmo assim, devido ao hábito, correríamos o risco de nos agarramos às sombras, ainda acreditando que elas fossem reais, e suas fontes, apenas ilusões. Mas se fossemos tirados da caverna para a luz, cedo ou tarde chegaríamos à visão correta das coisas e lamentaríamos nossa antiga ignorância.

A analogia de Platão é um ataque aos nossos hábitos de pensamento. Estamos acostumados, diz ele, a aceitar os objetos concretos que nos cercam como "reais". Mas, para ele, não são. Ou melhor, eles são só cópias imperfeitas e menos "reais" das "formas" imutáveis e eternas. Essas formas, como Platão as define, são as realidades permanentes, ideais e originais a partir das quais (de alguma forma) são construídas cópias concretas imperfeitas. Por exemplo, cada cadeira em nosso familiar mundo de objetos é meramente uma imitação, ou "sombra", da Cadeira Ideal. Cada escrivaninha é uma cópia da Escrivaninha Ideal, que nunca muda, que existe pela eternidade, e na qual você nunca pode derramar café.

Essas cadeiras e escrivaninhas ideais, segundo Platão, não são fantasias; elas são de fato mais "reais" que suas imitações materiais, porque são mais perfeitas e universais. Entretanto, como nossos sentidos (visão, tato, paladar, olfato, audição) têm sido sempre enganados, nós somos cegos para o mundo dos ideais. Nossas mentes estão escravizadas a imitações que nós, desta maneira, confundimos com a realidade. Somos como os prisioneiros na caverna de Platão.

"No mundo do conhecimento, a idéia do bem aparece por último e é percebida apenas com esforço; mas, quando percebida, torna-se claro que ela é a causa universal de tudo que é bom e belo, o criador da luz e o senhor do sol neste mundo visível."

(Adaptado de Paulo Ghiraldelli)

O MITO DA CAVERNA (Extraído de "A República" de Platão, 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291)

SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro

parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem. GLAUCO - Imagino tudo isso. SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.

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GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos! SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira? GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida. SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras? GLAUCO - Não. SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam? GLAUCO - Sem dúvida. SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos? GLAUCO - Claro que sim. SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram. GLAUCO - Necessariamente. SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? GLAUCO - Sem dúvida nenhuma. SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais? GLAUCO - A princípio nada veria. SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia. GLAUCO - Não há dúvida. SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é. GLAUCO - Fora de dúvida.

SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões. SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram? GLAUCO - Evidentemente. SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia? GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga. SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto? GLAUCO - Por certo que o fariam. SÓCRATES - Pois agora, meu caro Glauco, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.

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8.4 Aristóteles (384-322 a.C)

Grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira (por isso, é chamado também de “o estagirita”), colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu. Seu pai era médico e pertencia a uma família em que os homens, ao longo das gerações,

tradicionalmente professavam a medicina. Aos dezoito anos, em

367, foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema. Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos.

A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de Andrônico de Rodes pela metade do último século a.C. Costuma-se classifica as obras doutrinais de Aristóteles do seguinte modo, tendo presente a edição de Andrônico de Rodes:

I. Escritos lógicos (Órganon ou instrumento) II. Escritos sobre a física: escritos sobre a cosmologia e a antropologia, e pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a metafísica. III. Escritos metafísicos: o nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de Andrônico, que a colocou depois da física. IV. Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros, além de outros escritos éticos e políticos. V. Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, em dois livros.

As obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam - manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o criador.

Aristóteles retoma a problemática do conhecimento e se preocupa em definir a ciência como conhecimento verdadeiro, conhecimento pelas causas, capaz de superar os enganos da opinião e de compreender a natureza do devir. Mas ao analisar a oposição entre o mundo sensível e o inteligível segundo a tradição de Heráclito, Parmênides e Platão, Aristóteles recusa as

soluções apresentadas e critica pormenorizadamente o mundo “separado” das idéias platônicas.

a) A Metafísica A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como

ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e necessários.

Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica aristotélica: a) potência e ato; b) matéria e forma; c) particular e universal; d) movido e motor.

A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria.

Ato e potência A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica aristotélica.

Potência = possibilidade, capacidade de ser, não-ser atualmente mas ser potencialmente.

Ato = realidade, perfeição, ser efetivo.

Todo ser (que não seja o Ser perfeitíssimo, Deus) é uma síntese de potência e de ato. Essa síntese se dá em diversas proporções, conforme o grau de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se, aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao ato é atualização de uma possibilidade, de uma potencialidade anterior. Por exemplo, a árvore é a atualização (ato) da semente. Por outro lado, a semente é potencialmente uma árvore, só que não atualizada.

Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada - e desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando desenvolve uma outra doutrina: a da matéria e da forma, que representam a potência e o ato no mundo material, na natureza em que vivemos.

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Matéria e Forma

Aristóteles não nega o vir-a-ser de Heráclito (o movimento de contrários do ser para o não-ser), nem o ser de Parmênides (a ilusão do movimento), mas une-os em uma síntese, já iniciada pelos últimos pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão.

Segundo Aristóteles, para que haja movimento e transformação, é necessário haver uma realidade imutável, que é de duas espécies: a) Forma da realidade: uma base comum, um elemento imutável que permite a mudança, onde a mudança se realiza.

b) Matéria da realidade: as determinações que efetivamente se realizam nesta base comum.

Aristóteles define, com essa divisão, a matéria (prima) e a forma (substancial) da realidade. o primeiro elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma (substancial). A matéria se identifica com a potência, possibilidade de assumir várias formas, imperfeição; a forma se identifica com a atualidade - realizadora, especificadora da matéria - perfeição.

A síntese (sinolo) da matéria e da forma constitui a substância, aquilo que torna a realidade imutável sem que, com isso, o movimento seja algo ilusório. Isso porque na substância também se sucedem os acidentes, as qualidades acidentais. A mudança, portanto, consiste ou na sucessão de várias formas na mesma essência, forma concretizada da matéria, que constitui precisamente a substância.

A matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero possível, não existe por si, é um absolutamente indeterminado. É a forma que introduz as determinações. Por exemplo, a escultura de Moisés (de Michalangelo) acima, dá formas precisas à matéria informe (mármore). Não é possível pensar na matéria sem forma, porque mesmo o bloco de mármore usado por Michelangelo tinha uma forma determinada. Não existe matéria atual que não tenha uma forma definida.

A matéria aristotélica, porém, não é o puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência do mundo sensível, pois ela é também condição indispensável para concretizar a forma (não há forma sem matéria), ingrediente necessário para a existência da realidade material, causa concomitante de todos os seres reais.

Diversamente da idéia platônica, a forma aristotélica não é separada da matéria (no mundo inteligível), mas imanente e operante nela. Ao contrário, as formas aristotélicas são universais, imutáveis, eternas, como as idéias platônicas.

Estes dois princípios (forma e matéria) não são suficientes para explicar o surgimento dos indivíduos e das transformações dos seres. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a causa eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A causa eficiente, por sua vez, deve operar para um fim, que é precisamente a síntese da forma e da matéria. Daí uma quarta causa, a

causa final, que dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.

b) Teoria das 4 causas As considerações feitas acima nos levam à

distinção dos diversos tipos de transformação e às causas dessas transformações: a teoria das quatro causas. Segundo essa teoria, as mudanças na matéria derivam de quatro tipos de causas: material, formal, eficiente e final.

a) A causa material

(ou matéria) é “aquilo de que é feita” uma coisa; por exemplo, a matéria dos animais são a carne e os ossos; a matéria da esfera é o bronze, da taça é o ouro, da casa são os tijolos e cimento, e assim por diante. Ou seja, as causas materiais do animal são a carne e ossos.

b) A causa eficiente

(ou motora) é aquilo que promove a mudança e o movimento das coisas; por exemplo, os pais são causa eficiente dos filhos, a vontade é a causa eficiente de várias ações do homem, e assim por diante.

c) A causa formal

é, como dissemos, a forma ou essência das coisas, a configuração dada a determinada matéria pela ação da causa eficiente. A causa formal dá sentido à matéria, torna a coisa cognoscível.

d) A causa final

ou teleológica constitui o fim ou objetivo das coisas e das ações; ela constitui aquilo em vista de que ou em função de que cada coisa é ou advém; e isso, diz Aristóteles, é o BEM de cada coisa. Por exemplo, a boa ação é a causa final da ação humana.

c) A Lógica Silogística A lógica Aristotélica, primeiro sistema

lógico sistematizado, tem uma influência sem precedentes na história do pensamento ocidental. Seu sistema lógico foi considerado “a” lógica até o final do século XIX, quando o matemático Gottlob Frege (1848-1925) sistematizou um sistema lógico diferenciado. O filósofo moderno Immanuel Kant (1724-1804) chegou a dizer que Aristóteles tinha descoberto tudo que precisaríamos saber sobre lógica.

A lógica não faz parte do esquema onde Aristóteles dividiu e sistematizou as ciências. A lógica é uma ferramenta, algo que deve ser dominado antes de se estruturar o discurso científico, um instrumento necessário à produção mental que origina as ciências. A lógica pretende mostrar como o pensamento procede quando pensa, qual é a estrutura do raciocínio, como são feitas demonstrações.

A lógica considera a forma (esquema) que deve ter qualquer tipo de discurso que pretenda demonstrar algo, e em geral queira ser probatório (oferecer uma prova). Aristóteles fez uma extensa lista de Silogismos que considerava racionalmente válidos.

Silogismo A lógica é ciência da correta argumentação,

através do Silogismo. O silogismo é um trio de sentenças

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(ou proposições), no qual a última sentença, que é a conclusão, contém uma verdade obtida através das outras duas sentenças, que são as premissas. Em outras palavras, a conclusão é inferida das premissas.

Do grego antigo s s µ , Silogismo significa "conexão de idéias", "raciocínio". Para Aristóteles, o silogismo designa a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das primeiras duas, chamadas premissas, é possível deduzir uma conclusão. A teoria do silogismo foi exposta por Aristóteles em Analíticos anteriores.

Nas premissas, o termo maior (predicado da conclusão) e o termo menor (sujeito da conclusão) são comparados com o termo médio, e assim temos a premissa maior e a premissa menor segundo a extensão dos seus termos.

Um exemplo clássico de silogismo é o seguinte:

Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.

Onde, Termo maior = Mortal Termo menor = Sócrates Termo médio = Homem.

Assim, esse silogismo tem a seguinte forma:

Todo (TERMO MÉDIO) é (TERMO MAIOR) (TERMO MENOR) É (TERMO MÉDIO) Logo, (TERMO MENOR) é (TERMO MAIOR)

Note que o termo médio “homem” é o termo de comparação entre Sócrates e Mortal, o que estabelece a ligação lógica entre eles.

Esquematizando o silogismo, facilitamos a visualização das relações lógicas entre os termos: 1. A é B, 2. C é A, 3. Portanto, C é B.

O silogismo também pode ser estruturado a partir da classificação das suas premissas:

Todo homem é mortal (premissa maior) homem é o sujeito lógico, e fica atrás da cópula; “é” representa a cópula, isto é, o verbo que

exprime a relação entre sujeito e predicado; mortal é o predicado lógico, e fica após a cópula.

Sócrates é homem (premissa menor) Sócrates é mortal (conclusão)

A lógica aristotélica trata da noção de dedução (sullogismos). Para Aristóteles, a dedução é um discurso (logos) onde, se certas coisas são supostas, diferentes coisas resultam necessariamente dessa suposição. Isso ele diz em uma de suas obras lógicas, Analíticos A Priori. As coisas supostas são proposições chamadas de premissas e o resultado necessário das suposições é uma proposição chamada de conclusão.

(Premissa): Todos os homens são mortais Suposições.

(Premissa): Sócrates é homem.

(Conclusão): Logo, Sócrates é mortal. Informação derivada logicamente das suposições.

O silogismo é uma estrutura de sentenças (ou proposições) que podem assumir dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso. Na terminologia de Aristóteles, as proposições são as asserções (apophanseis).

As sentenças, que compõe a estrutura do Silogismo, também têm uma estrutura interna. Elas podem ser subdividas em: a) Sujeito (hupokeimenon) b) Predicado.

As predicações O predicado tem a propriedade de afirmar ou

negar algo sobre o sujeito. Apesar da semelhança gramatical, essas noções tem particularidades que as diferenciam das entidades semânticas sujeito e predicado da gramática da língua portuguesa. Por exemplo, na sentença “Sócrates é um ateniense”, a expressão “Sócrates” é o sujeito da sentença, enquanto “ateniense” é o predicado. O verbo entra aqui apenas como uma cópula (ao contrário da gramática da língua portuguesa, onde o predicado contém o verbo ser: “é um ateniense”).

“Sócrates” é o sujeito. Dele se diz que é ateniense, ou seja, dele se predicou “ateniense”. O predicado afirma ou nega algo sobre o sujeito. No caso em questão, algo foi afirmado sobre o sujeito (que ele é ateniense).

Se a sentença contiver um predicado que afirma algo do sujeito sentença afirmativa

Se a sentença contiver um predicado que nega algo do sujeito sentença negatiava.

Para fins de esquematização, Aristóteles costuma dizer que a forma interna das sentenças é:

S é P (sujeito – verbo ou cópula – predicado).

Sujeitos e predicados são termos. Um termo (horos) pode ser:

a) termo individual, p. ex.: Sócrates, Platão, Lula (refere-se a um indivíduo particular).

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b) termo universal, p. ex.: homens, cães, animais, etc. (refere-se a uma classe de indivíduos).

Os sujeitos podem ser particulares ou universais, mas já os predicados podem ser apenas universais. Ex.:

Sócrates é mortal. Sujeito particular, predicado universal

Os homens são mortais. Sujeito e predicado universais

Os mortais são Sócrates. Sujeito universal e predicado particular (não faz sentido)

A expressão “universal” é oposta a “particular” porque se refere ao “todo dos indivíduos particulares”. Quando digo “Sócrates”, me refiro a um só indivíduo

(particular). Quando digo “homens”, me refiro a “todos” os indivíduos que tem a propriedade de serem homens.

Poderíamos pensar numa sentença do tipo: O homem que tomou cicuta foi Sócrates.

Aqui temos um exemplo de sentença onde o predicado parece ser um termo particular (Sócrates). Mas Aristóteles não a considera como uma genuína predicação. Para ele, essa frase teria o mesmo da sentença a seguir (essa sim, uma genuína predicação):

Sócrates tomou cicuta.

A predicação seria muito mais uma questão metafísica (a linguagem expressando o modo como a realidade está estruturada) do que gramatical. A razão pela qual “Sócrates” é um termo individual e não universal é que a entidade a que se refere esse nome é um individuo, não uma classe universal.

Contradição No seu livro Da Interpretação, Aristóteles

defende que toda afirmação corresponde exatamente ao mesmo que corresponde uma negação e vice-versa. Por exemplo, a afirmação “Sócrates tomou cicuta” corresponde à situação (1). A negação “Sócrates não tomou cicuta” corresponde à situação não-(1). A diferença entre as duas é apenas a negação, mas significam a mesma coisa, como se fossem duas faces da mesma moeda.

Uma contradição é o par de sentenças com mesmo significado (uma afirmando e outra negando). “Sócrates tomou cicuta” e “Sócrates não tomou cicuta”. O princípio da contradição, fundamento do pensamento lógico, afirma que uma sentença pode ser verdadeira ou falsa, mas não ambas ao mesmo tempo.

Quadrado Lógico ou Tábua das Oposições Definindo que as sentenças podem ser

afirmativas ou negativas (quanto à QUALIDADE) e universais e particulares (quanto à QUANTIDADE),

podemos estabelecer o quadrado lógico das proposições, estabelecendo as relações entre elas. Esse quadrado não foi criado por Aristóteles (provavelmente por Boécio), mas é geralmente atribuído a ele.

A – UNIVERSAL E AFIRMATIVA - Todo homem é mortal. E – UNVERSAL E NEGATIVA – Nenhum homem é mortal. I – PARTICULAR E AFIRMATIVA – Algum homem é mortal. O – PARTICULAR E NEGATIVA – Algum homem não é mortal.

A e E são Universais, I e O são Particulares. A e I são Afirmativas, E e O são Negativas.

As relações entre as premissas (do silogismo) são:

A é contrária de E (Todo homem é mortal é contrário a Nenhum homem é mortal). A é subalterna de I (Todo homem é mortal é subalterna de Algum homem é mortal). A é contraditória de O (Todo homem é mortal é contraditória de Algum homem não é mortal). E assim por diante.

Vale frisar que entre as proposições pode se estabelecer 4 relações lógicas distintas: elas podem ser contrárias, subalternas, subcontrárias e contraditórias entre si (note que “contrário” e “contraditória” são relações distintas).

Essas relações estabelecem as Leis de oposição entre as premissas:

a) Contraditoriedade: se um modo é verdadeiro, o outro é falso; b) Contrariedade: ocorre apenas nos modos A e E. As premissas contrárias entre si não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas podem ser falsas ao mesmo tempo. Se assim forem, a particular afirmativa será falsa por ser a contraditória da universal negativa e verdadeira, por ser a conversão da universal afirmativa (ver modos de conversão, abaixo). c) Subcontrariedade: as premissas não podem ser falsas ao mesmo tempo, mas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Se assim forem, as contrárias de quem elas são

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contraditórias serão simultaneamente verdadeiras, o que seria um absurdo.

Figuras e modos do silogismo Já vimos que um raciocínio dedutivo (o

silogismo) é composto por proposições. As proposições, por sua vez, são compostas por termos. A maneira pela qual as proposições estão dispostas é chamada de modo do silogismo. A posição que o termo médio assume no argumento (sujeito ou predicado), origina a figura do silogismo.

Existem quatro espécies de proposições: A, E, I, O. Entre estas proposições, é possível 64 combinações na estrutura do silogismo. Deste total, apenas 19 combinações são válidas, sendo que as demais violam uma ou mais regras do silogismo. Estas 19 combinações distribuem-se nas quatro figuras do silogismo.

Primeira figura A primeira figura não muda, por ser perfeita. Aqui, o termo médio ocupa a posição de sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor.

1º Su-pré Todo metal é corpo. BAR Todo chumbo é metal. BA Todo chumbo é corpo. RA

Nessa figura, os modos legítimos são: BAR-BA-RA (AAA); CE-LA-RENT (EAE); DA-RI-I (AII); FE-RI-O (EIO) Esses nomes foram dados pelo filósofo medieval, do séc. XII, Pedro Aberlado, com fins de memorização.

Segunda figura Na segunda figura, o termo médio ocupa a posição de predicado em ambas as premissas. 2º Pré-Pré Todo círculo é redondo. CAM Nenhum triângulo é redondo. ES Nenhum triângulo é círculo. TRES

Nessa figura, os modos legítimos são: CES-A-RE (EAE); CAM-ES-TRES (AEE); FES-TI-NO (EIO); BAR-OC-O (AOO).

Terceira figura Na terceira figura, o termo médio ocupa a posição de sujeito nas duas premissas. 3ºSu-Suoi Nenhum mamífero é pássaro. FE Algum mamífero é animal que voa. RIS Algum animal que voa não é pássaro. ON

Nessa figura, os modos legítimos são: DA-RAP-TI (AAI); FE-LAP-TON (EAO); DIS-AM-IS (IAI); BOC-AR-DO (OAO); DA-TIS-I (AII); FE-RIS-ON (EIO)

[editar] Quarta figura Na quarta figura, o termo médio ocupa a posição de predicado na premissa maior e de sujeito na premissa menor. 4ºPré-Su Pedro é homem. BAM Todo homem é mortal. A Algum mortal é Pedro. LIP Nessa figura, os modos legítimos são: BAM-A-LIP (AAI); CA-LEM-ES (AEE); DIM-A-TIS (IAI); FES-AP-O (EAO); FRES-IS-ON (EIO) [editar] Redução dos modos Todos os modos imperfeitos do silogismo, isto é, a segunda, terceira e quarta figuras, devem ser transformados em modos perfeitos da primeira figura, pois não respeitam a hierarquia dos termos. As palavras mnemônicas auxiliam na redução. Se as vogais indicam os modos, a quantidade e a qualidade das premissas, as consoantes S, P, M e C indicam a maneira para pela qual a redução será feita. As consoantes iniciais indicam o modo da primeira figura. Para isso, existem quatro possibilidades. (S) Conversão direta: troca-se o sujeito pelo predicado e vice-versa. Por exemplo: todo mortal é homem --> todo homem é mortal. (P) Conversão acidental: a premissa tem seu sujeito e predicado trocados entre si. Por exemplo: todo homem é mortal --> algum mortal é homem. (M) Transposição de premissas: se uma premissa for maior, passa a ser menor e vice-versa. (C) Redução por absurdo: da conclusão deste silogismo, elaboramos sua contraditória e substituímos a premissa assinalada com a consoante C, e concluímos novamente. [editar] Regras do silogismo Para que um silogismo seja válido, sua estrutura deve respeitar regras. Tais regras, em número de oito, permitem verificar a correção ou incorreção do silogismo. As quatro primeiras regras são relativas aos termos e as quatro últimas são relativas às premissas. São elas: 1) Todo silogismo contém somente 3 termos: maior, médio e menor; 2) Os termos da conclusão não podem ter extensão maior que os termos das premissas; 3) O termo médio não pode entrar na conclusão; 4) O termo médio deve ser universal ao menos uma vez; 5) De duas premissas negativas, nada se conclui; 6) De duas premissas afirmativas não pode haver conclusão negativa; 7) A conclusão segue sempre a premissa mais fraca; 8) De duas premissas particulares, nada se conclui.

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