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RIO DE JANEIRO DEZ/2002 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE” DOENÇA MENTAL E RELAÇÕES FAMILIARES - A INFLUÊNCIA DOS CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS AO LONGO DA HISTÓRIA por ARTÊMIA RABELO MEDEIROS Professor Orientador: Diva Nereida M. M. Maranhão

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RIO DE JANEIRO DEZ/2002

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E

DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE”

DOENÇA MENTAL E RELAÇÕES FAMILIARES - A INFLUÊNCIA DOS CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS AO LONGO DA HISTÓRIA

por

ARTÊMIA RABELO MEDEIROS

Professor Orientador: Diva Nereida M. M. Maranhão

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RIO DE JANEIRO DEZ/2002

RIO DE JANEIRO

Dez/2002

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E

DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE”

DOENÇA MENTAL E RELAÇÕES FAMILIARES - A INFLUÊNCIA DOS CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS AO LONGO DA HISTÓRIA

Monografia apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Terapia de Família para disciplina de Metodologia da Pesquisa. Por: Artêmia Rabelo Medeiros Professora Orientadora: Diva Nereida Marques M. Maranhão

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O louco “Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós”. ( Gibran Khalil Gibran)

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RIO DE JANEIRO DEZ/2002

RESUMO

Este trabalho terá como principal objetivo revisitar a história da loucura

até o momento em que é reconhecida como “doença mental” e, a partir do

conhecimento desse percurso, discutir as diferentes formas de concepção da

loucura assim como as várias formas de relações estabelecidas com a doença e

o doente desde a antiguidade até a modernidade. Assim, será enfatizado aqui

as mudanças ocorridas na concepção e visão da loucura pela sociedade, pela

comunidade médica e científica, pela família; concepções essas que

embasaram e ainda sustentam as diferentes formas de tratar o louco. Os

resultados dessa pesquisa, bibliográfica, mostram que o conhecimento sobre a

doença mental, apesar de bastante avançado, é, ainda, uma questão carecendo

respostas. Daí porque, uma série de significações e saberes se articulam na

constituição das práticas terapêuticas em busca da “cura” – indivíduos

inseridos e reconhecidos em seus direitos à convivência familiar, social e

profissional.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO CAPÍTULO I - A LOUCURA ATRAVÉS DOS SÉCULOS 1.1 Louco_ mensageiro dos deuses 1.2 A loucura ganha status de saber 1.3 Renascensa_ fascínio e início de uma consciência crítica 1.4 Modernidade_ sinônimo de aprisionamento 1.5 Razão x desrazão 1.6 Uma nova concepção de loucura CAPÍTULO II - A INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA 2.1 A prática asilar 2.2 Os tratamentos manicomiais CAPÍTULO III - A INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA NO BRASIL 3.1 Os primeiros tempos 3.2 A primeira instituição psiquiátrica 3.3 O hospício-colônia CAPÍTULO IV - PSICANÁLISE – A REFORMULAÇÃO DO CONCEITO DE LOUCURA 4.1 A loucura não está no corpo, mas no simbólico 4.2 A análise da psicose segundo Freud 4.3 A clínica da psicose CAPÍTULO V - FAMILIA E DOENÇA MENTAL 5.1 Conhecendo a família 5.2 Critério de saúde e doença 5.3 A família cindida 5.4 Relações familiares e sua influência no processo de estigma e ressocialização CAPÍTULO VI - UMA NOVA VISÃO, UM NOVO CAMINHO 6.1 A família como sistema 6.2 A teoria dos sistemas CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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23

33

41

56

6368

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INTRODUÇÃO

Antes mesmo do surgimento da psiquiatria, a loucura constituía um

enigma, o qual transcendeu por toda a história da humanidade, atravessando

vários séculos sem que se pudesse conceitua-la.

É na busca de respostas para essas e outras questões que o presente

trabalho procura conhecer, acompanhar e comparar os pensamentos, as

conclusões e deduções a que chegaram pesquisadores e estudiosos sobre a

doença mental e suas ligações com as interrelações sociais , uma vez que já

não existe a menor dúvida de que o sujeito se constitui e é formado a partir

dessas relações. O que aqui se tem, inicialmente, é uma narrativa dos

caminhos percorridos pela loucura até o momento de ser considerada doença

mental, focalizando as diferentes visões para uma postura de atendimento

carregadas , na maioria das vezes, de valores negativos e que

permanecem,ainda, arraigados na sociedade contemporânea.

O que aqui se buscou discutir com mais afinco foi o lugar da família,

sua visão, ações e reações frente ao “seu” doente, seus conceitos e pré-

conceitos sobre a doença mental.

Quando comecei a me aprofundar no conhecimento da loucura, pensei tratar-se de uma ilha, agora vejo que é um oceano. Simão bacamarte “O Alienista”, Machado de Assis.

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A partir da constatação da família como principal grupo social, portador

dr intenso significado emocional para o indivíduo, na maioria das sociedades,

é o grupo familiar o formador da personalidade e o principal elo de mediação

entre o indivíduo e a sociedade, sendo por isso mesmo imperioso reconhecer o

alto grau de sua influência no processo de conceituação, conscientização e

desdobramentos no tratamento do doente mental.

Acredita-se, portanto, e parte daí o interesse pelo tema, que é de

fundamental importância o aprofundamento nas questões que envolvem o

suporte da família para o doente mental em seu processo de “cura” e de

ressocialização.

Assim; o que aqui se busca é identificar a importância de uma estrutura

familiar sólida para o doente mental, reconhecendo e discutindo a influência

das relações e reações familiares no processo de acolhimento e tratamento

capaz de modificar e influenciar positivamente as reações de uma sociedade

mais ampla que, via de regra, comporta-se de maneira adversa e separatista

gerando, consequentemente , implicações como estigma, preconceito e

exclusão.

Quando a família fracassa na oferta desse suporte o que se verifica é um

doente mental discriminado em função de sua suposta incapacidade.

Considerado socialmente inferior, na maioria das vezes as relações são de

dominação, inclusive no seio familiar.

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Somente quando reconhece seus meios de ação e conseqüências pode a

família ser incentivadora e facilitadora na ressocialização do doente mental.

A importância desse suporte familiar é o que aqui se busca conhecer e

discutir na esperança de que as conclusões pessoais, familiares e profissionais

possam contribuir para uma visão mais humana e objetiva da doença mental.

Esse é, pois, o “pano de fundo” sobre o qual se tecerá esta reflexão que

se ancora numa pesquisa bibliográfica onde foram identificados os principais

autores nacionais e estrangeiros que discutiram o tema e influenciaram a

reflexão deste trabalho.

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I. A LOUCURA ATRAVÉS DOS SÉCULOS

1.1- Louco – mensageiro dos deuses.

Hoje, o enfoque da loucura – a forma de entender, tratar, lidar e olhar

para ela – não é o mesmo de séculos anteriores. Segundo Michel Foucault, a

loucura sempre fez parte das relações humanas, sempre existiu atravessando

os séculos. Assim, para realizar esse trabalho torna-se necessário uma rápida

narrativa histórica dos caminhos percorridos pela loucura, até o momento de

ser considerada doença mental, como a vemos na atualidade.

Na antigüidade, as doenças, como tantas outras coisas, eram atribuídas

aos deuses e a forças sobrenaturais. Os problemas mentais não eram

considerados doenças, a loucura era vista como obra do demônio e o doente

mental era visto como possuído pelo demônio e espíritos malignos.

Na Grécia Antiga, o louco era socialmente considerado uma pessoa

com poderes divinos. O que dizia era ouvido como um saber importante e

necessário, capaz mesmo de modificar os acontecimentos, interferir no destino

dos homens. Acreditava-se que as frases enigmáticas (na verdade,

incompreensíveis) por eles proferidas aproximavam os loucos das ordens dos

deuses que habitavam o Olimpo. Nesse período a loucura encontra espaço

para exprimir-se, não sendo necessário controlá-la ou excluí-la, já que

transformá-la pela cultura, torna-se instrumento necessário para a

compreensão das mensagens divinas. Assim é que, na Grécia Antiga, a

loucura exercia um papel de destaque. Os delírios de Ulisses e Ajax eram

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vistos como sonhos premonitórios que ajudavam os guerreiros em suas

batalhas.

O delírio do homem através dos tempos apresenta várias conotações –

como a loucura dos sábios, dos filósofos, dos bruxos e tantos outros que

ousaram dar asas à sua imaginação. Cabe ressaltar que esses estados de

delírio sempre foram vistos como algo diferente que variava segundo o

espaço, o tempo e a cultura. As alucinações vistas na Idade Clássica e até

mesmo na Idade Média seriam, em nossa época, tomadas como um surto de

loucura digno de estudo e tratamento.

1.2- A loucura ganha status de “saber”.

Antes dos séculos XV e XVI, a loucura não apresentava relevância, não

era considerada como algo que devesse ocupar a mente dos responsáveis pelo

bem estar da sociedade. A loucura era considerada sem maior importância na

escala dos flagelos que assolavam o mundo e principalmente a Europa. Na

Idade Média, marcada pela peste, a lepra e o medo de inúmeras ameaças deste

e de “outro mundo”, a loucura era entrevista como expressão das forças da

natureza, como algo não humano. Mais um vez os homens acreditavam que a

fala incompreensível dos loucos significava que estes entravam em contato

com o estranho e assim entendiam seus mistérios, ouviam a verdade do

mundo. A loucura é então exaltada. Porém, concomitantemente, existiam os

sentimentos de terror e atração provocados por algo que inspira receio: o

insano.

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Nesse período a loucura vagava entre os homens, transitava sem

destino de uma cidade a outra, livremente, onde eram ouvidos e admirados por

seus conhecimentos, sendo seus discursos atribuídos, algumas vezes, de

conotação profética. O louco era aquele que tinha um saber não sabido pelos

demais.

1.3- Renascença – fascínio e início de uma consciência crítica.

A loucura, que até o final da Idade Média, era antes exaltada do que

dominada, vai começar a enfrentar seus primeiros embates sociais.

Desde a Alta Idade Média até o fim das Cruzadas, o mal que assola a

Europa encarna-se na lepra. A fim de impedir o contágio os leprosos são

banidos da cidade e envolvidos por um círculo sagrado, que os torna tão

sacros quanto temidos – eles expressam a cólera e a bondade de Deus.

A lepra, que é sofrimento, purifica e castiga o pecador. A segregação

ritual do leproso abre-lhe as portas da salvação. Nesse caso, a exclusão

compreende outra forma de comunhão.

Com o fim das Cruzadas, a lepra acabou desaparecendo, mas os

valores e imagens ligados ao leproso não desapareceram. Assim, outros

personagens vão ocupar o espaço sagrado por ele deixado vazio: os pobres,

vagabundos, e os “cabeças alienadas”.

Entre os usos e costumes do Renascimento, encontra-se o de confinar

os loucos num navio – “a nau dos navegantes” – que os leva de uma cidade

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para outra. O sentido desse gesto de embarcação dos loucos é de caráter

simbólico e inscreve-se entre os exílios rituais – embarcar os loucos é

assegurar-se de que partirão para longe e serão prisioneiros de sua própria

partida.

Na renascença a loucura teve sua fase áurea. Os pintores retratavam

com esmero a figura do louco, personagem de grande importância,

considerado sábio e representado também na literatura. Assim, a experiência

da loucura é celebrada no Renascimento de diversos modos – os ritos

populares, as artes plásticas, as obras de filosofia ou de crítica moral (Brant;

Erasmo) e os textos literários (Shakespeare; Cervantes) encarregaram-se de

testemunhar diferentemente o prestígio dessa loucura, cujos enigmas têm

sobre o homem um poder de atração.

Mas o Renascimento – séculos XV e XVI – foi também um período

de grandes dúvidas para o homem. Crenças e verdades antes tidas como

absolutas, ficaram abaladas. Os filósofos não eram mais vistos como os donos

da verdade, nem a Igreja, a senhora absoluta que podia traçar os caminhos dos

homens. As descobertas da ciência não deixavam dúvidas de que a Terra e o

homem não eram mais o centro do Universo. As freqüentes transformações

políticas e religiosas, lançavam assim o homem ao desamparo, carente de

certezas. Esse momento é marcado pelo encontro da racionalidade – o homem

volta-se para si mesmo em busca de algo palpável frente a sua fé tão abalada –

é um momento de consciência e de interiorização. A partir daí, a loucura

assumirá significações diversas conforme sua expressão se faça pela pintura

ou através da filosofia e da literatura. Na pintura, a experiência da loucura

instaura-se como uma “experiência trágica” e ao nível da literatura e da

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filosofia a loucura governa todas as fraquezas humanas ocupando então o

primeiro lugar na hierarquia dos vícios. Inserida num universo moral, a

loucura vê-se apreendida por uma “consciência crítica”, e acaba, então sendo

confiscada por uma razão dominadora. E, é aos olhos dessa razão, que a

verdade da loucura será posteriormente apontada como falta, defeito, doença.

1.4- Modernidade – sinônimo de aprisionamento

Na modernidade, a loucura deixa de ser instrumento das forças da

natureza e começa a ser entendida como o reverso da razão. No entanto, ainda

se busca conhecer a lógica de Deus através do discurso. A razão tenta penetrar

no mundo estranho que é a loucura e, a partir daí, inicia-se outra

transformação: – a loucura passa a ser vista como um conjunto dos vícios dos

homens – preguiça, avareza, por exemplo – e ganha assim um caráter moral,

passando a ser algo desqualificante.

Com o mercantilismo, período onde domina o pressuposto de

que a população é o bem maior que uma nação pode ter, começam a ser encarcerados todos aqueles que não podem contribuir para o movimento de produção, comércio, ou consumo. Essa exclusão

ocorre devido às ordens do mundo burguês em construção, à mudança na relação do homem com o trabalho, à necessidade de

uma disciplina e de um novo controle social.

Inicia-se então em toda a Europa, a criação de instituições de internação – Hospitais Gerais – que apesar do nome não têm

qualquer função curativa, para onde são enviados os velhos, os aleijados, os mendigos, os portadores de doenças venéreas e os

loucos.

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Esses locais eram verdadeiros depósitos humanos, destinados a limpar a cidade, nos quais não havia nenhuma intenção de

tratamento.

Os encarcerados eram obrigados a realizar trabalhos forçados, que serviam como punição ao então considerado o maior

vício da sociedade mercantilista: – a ociosidade. Essa “limpeza” das cidades perdurou por cerca de um século.

Nesses hospitais gerais a loucura se iguala a todos os

desviantes sociais e vai então partilhar de toda sorte de punições, maus tratos e torturas. A isso, acresce o fato de que, considerado como insano, o louco vai ser submetido a tratamentos “médicos”

brutais que em nada se diferenciam da tortura.

“Ainda inspirados nos princípios da medicina galênica, segundo os quais a doença resultava do

desequilíbrio entre os quatro humores do corpo, os tratamentos destinavam-se a livrar os doentes dos

maus humores, sangrando-os até o ponto de levá-los à síncope, ou purgando-os várias vezes por dia até que de seus intestinos nada mais saísse senão água rala e

muco.” (Resende, 2000, p.25)

1.5- Razão x Desrazão

No final do século XVII os desmandos da loucura começam a dividir

as opiniões e a loucura vive seu momento crítico.

A literatura e a filosofia questionam a loucura, vendo-a como

libertinagem e imoralidade. O discurso filosófico da época cartesiana aponta

para uma questão que vai mudar os rumos da humanidade – Descartes afirma

que o homem que não duvida não poderá chegar à verdade. Assim, na base do

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pensamento moderno, a loucura se vê privada do direito a alguma relação com

a verdade.

O discurso do louco, que antes era saber passa a ser um não-saber. O

que antes representava fascínio, torna-se agora um desvario, uma degeneração

do pensamento. O discurso do louco não é coerente nem com a verdade nem

com a razão.

“Aos desvarios e às incertezas da consciência no século XVI, segue-se a ordem da racionalidade da consciência no século XVII. O século XVII foi aquele que realizou a partilha entre a razão e a desrazão; foi um momento de emergência da loucura, ou melhor, foi um momento em que a razão produziu a loucura.” (L.A.Garcia-Roza, Freud e o Inconsciente, p.26-7)

A loucura sofre assim seu primeiro golpe.

A segregação é então imposta pela burguesia. Assim é que a fixação

da loucura em internamentos assegura um controle sobre esse mal.

Com a criação do Hospital Geral, e mais tarde de Asilos, a loucura é

afastada dos olhares da sociedade, sem contudo receber tratamento ou mesmo

despertar interesse médico – a internação tem como objetivo, apenas excluir e

silenciar.

1.6- Uma nova concepção de loucura

Uma nova visão começa surgir a partir da Revolução Francesa, em

1789, que trazia como lema as palavras de ordem “liberdade, igualdade e

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fraternidade”. Lema esse que obviamente não combinava com a forte exclusão

social anterior, a qual representava o antigo regime opressor.

A partir de então inicia-se um processo de reabsorção dos excluídos,

buscando-se alternativas para os “necessitados”, tais como auxílio financeiro e

atendimento médico domiciliar. Entretanto, os loucos ainda permanecem

encarcerados, já que poderiam ser violentos – perigosos portanto a familiares e

vizinhos. Apenas no final do século XVIII, com a nomeação de Pinel para a

direção de Bicêtre – um hospital francês – é que se difunde uma nova

concepção de loucura.

“Pinel na França, Tuke na Inglaterra, Chiarruggi na Itália, Todd nos Estados Unidos, entre outros, serão os principais protagonistas de um movimento de reforma através do qual, pela primeira vez, os loucos seriam separados de seus colegas de infortúnio e passariam a receber cuidado psiquiátrico sistemático. Alegadamente centrado em bases humanitárias,... o movimento generalizou-se com o nome de tratamento moral”. (Resende, 2000, p.25).

Pinel promove um ato iluminista soltando os doentes mentais dos

grilhões de La Salpêtriére e de La Bicêtre, mas os manteve dentro desses

hospícios. Pinel fundamenta a alienação mental como sendo um distúrbio das

funções intelectuais do sistema nervoso, define o cérebro como sede da mente,

onde se manifesta a loucura e divide os sintomas em categorias – mania,

melancolia, demência e idiotismo. A partir dessa reestruturação a loucura

passa a ter o estatuto de doença mental, que requer um saber médico e técnicas

específicas. Nesse momento fica constituída a psiquiatria como saber médico

específico.

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Assim é que, as casas de internamento transformam-se

rapidamente em asilos, e nesses, a figura do médico é solicitada. A loucura encontra finalmente seu lugar como objeto de conhecimento

científico.

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II. A INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA

2.1- A prática asilar

Impossível afirmar se na transformação das casas de internação para

asilo, exerceu a medicina um papel significativo. As mudanças ocorreram não

só pela modificação do ambiente e do tratamento, da liberdade de postura,

como pelo pensamento do próprio louco.

Nomes como Pinel na França e Samuel Tuke, na Inglaterra, ingressam

nos anais da história como os primeiros a implementar um tratamento mais

efetivo com o louco. Embora Tuke não fosse médico, tinha grande influência

por ser membro de uma associação protestante que dividia as opiniões da

época.

Os asilos montados por eles distinguiam-se em vários aspectos.

Embora o objetivo fosse a cura da loucura, os caminhos se divergiam.

O asilo de Tuke era a imagem do arrependimento, da obediência e da

humildade. O louco se reconciliava com a razão pela punição e a servidão

imposta pelo discurso religioso, que era dominante nesse contexto. E assim, os

loucos eram devolvidos às suas famílias de origem, como crianças que se

mostram arrependidas de suas faltas depois do castigo merecido.

Pinel, na França, usa recursos semelhantes, mas o discurso é

diferenciado. O paciente de Pinel era vigiado, suas pretensões eram

desestimuladas, seus delírios e seus erros eram ridicularizados. Os desvios e

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suas condutas desregradas deveriam ser observadas e punidas de imediato,

para que não caíssem no esquecimento do doente.

Pode-se daí concluir que o asilo não é um espaço neutro como foi sua

proposta inicial, nem se apresenta no seu interior como é visto no seu

exterior. É sim, uma casa de correção e humilhação, tal qual o Hospital Geral

sempre o foi.

O rompimento das correntes feito por Pinel libertou o louco

enfurecido, mas despertou um louco amedrontado, coagido e temeroso da

punição.

Por sua vez, o louco humilhado de S. Tuke não se diferencia em nada

do louco devedor de Pinel.

O que se pode deduzir de tudo isso é que o homem, libertado dos

grilhões que o acorrentavam na loucura, não se libertou do estigma que o

separava da sociedade.

Não se pode deixar de mencionar que Pinel demonstrou uma forma

toda especial de tratar com a loucura. Sua proximidade com o doente cria uma

relação de poder sobre este, método que até então não havia sido

experimentado por nenhum outro.

Pode-se dizer que Pinel fez uso do delírio de seus pacientes para

possibilitar uma convivência pacífica, como no caso do soldado Chevinge, que

se dizia capitão em seus desatinos. Pinel o transforma em um exímio

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colaborador, dizendo apenas algumas palavras que faziam parte desse delírio.

Pode-se definir essa disponibilidade de Pinel como escuta da loucura, que é a

tradução para que esse delírio pudesse ser vivenciado em sua plenitude.

O século XIX vai ser o herdeiro direto das práticas exercidas por Pinel

e Tuke – seus valores míticos são adotados pela psiquiatria do novo século.

Mas, o que é na verdade a loucura? A psiquiatria conseguiu, de um

certo modo, domá-la, através da exclusão e da dominação, mas não conseguiu

saber o que é verdadeiramente. Como ela se dá; como se instala na mente do

homem. É com essas dúvidas que chegamos ao século XIX.

A conclusão a que se chega através de experimentos, é que a loucura

se assemelha ao sonho.

“O sonho reproduz as mesmas características da loucura. O sonho é a loucura do indivíduo adormecido, enquanto os loucos são sonhadores acordados”. (L .A .Garcia-Roza, Freud e o inconsciente, p.30)

A relação da Psiquiatria deixa de ser estritamente de exterioridade

para uma relação mais direta com a própria loucura. Era este, segundo os

especialistas o verdadeiro caminho para a sua compreensão.

Assim, no século XIX, a loucura adquire uma descrição psicológica,

tendo como principais representantes Pinel, Tuke e posteriormente Esquirol,

considerado um dos maiores teóricos dessa primeira escola psiquiátrica.

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2.2 - Os tratamentos manicomiais

O manicomialismo reconhece o doente mental como pessoa

necessitando de tratamento e reconhece que as medidas assistenciais devem

ser “humanas”. O hospício é um lugar para se isolar doentes (exclusão),

incapacitá-los de conviver com os normais (reclusão), e vigiar suas atitudes, a

fim de não oferecerem perigo a si e a outros (custódia).

A medicina organicista, acreditando que a doença nasce diretamente

do corpo, procura curá-la por intervenções físicas e químicas. Divide as

psicoses em exógenas e endógenas. As primeiras ocorrem por problemas

vindos de fora, como excesso de álcool, intoxicações e pancadas na cabeça

que alterem a consciência. As demais nascem de distúrbios bioquímicos

hormonais ou degeneração de células de dentro do cérebro.

A cadeira giratória inventada por Benjamin Rush nos Estados Unidos

é um exemplo dos tratamentos manicomiais. O paciente era amarrado a essa

cadeira e feito rodopiar, na tentativa de aumentar o suprimento de sangue à

cabeça, o que a faria funcionar melhor.

Outro tratamento utilizado era a hidroterapia – fazia-se o paciente

alternar banhos quentes e frios.

Manfred Sakel popularizou os choques insulínicos para

esquizofrênicos. Levava-os ao estado de coma, sucessivamente, recuperando-

os com glicose, num total de trinta a cinqüenta horas. Essa contínua regressão

fisiológica e psicológica levava os pacientes a assumirem comportamentos

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primários, muito simplificados. Tinha-se a esperança de elevar posteriormente

esse comportamento e remodelar a mente da pessoa, refazendo-a desde o

estado primitivo maior até o normal. Drogas convulsivas tinham credibilidade

como remédios para as psicoses. Faziam as pessoas terem ataques epiléticos

artificiais, em forma de convulsões da musculatura. Freqüentemente essas

convulsões planejadas eram tão violentas que causavam fraturas ósseas.

Além desses tratamentos os hospícios criaram toda uma tecnologia de

contenção física: camisas de força, amarras especiais, camas com cinturões,

quartos-fortes, celas incomunicáveis, etc.

Em 1935, Cerletti e Bini estabeleceram a dosagem de eletricidade

capaz de ser aplicada no cérebro humano sem matá-lo. Durante a década de

40, especialmente nos anos de fascismo italiano o choque elétrico tornou-se o

tratamento preferido dos hospícios. Menos perigoso e mais barato que a

insulina, ele rapidamente se difundiu pelo mundo.

Egas Moniz, português, difundiu na mesma época as cirurgias

cerebrais conhecidas por Lobotomias. Cortando o lóbulo pré-frontal do

cérebro, deixava-se os pacientes mais calmos e apáticos. Muitos ficavam

reduzidos à condição de plácidos zumbis, de mortos-vivos.

Outro tratamento muito usado é o de psicofármacos ou psicotrópicos.

Na medicina, desde 1850 usam-se sedativos sintéticos (hidrato de cloral,

brometos etc). Mais tarde descobre-se o alto poder calmante dos alcalóides.

Grandes recursos foram investidos nessa área de pesquisa, produzindo-se daí

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por diante, numerosos psicofármacos, antidepressivos, tranqüilizantes,

antipsicóticos, soníferos etc.

Evolui a pesquisa, muitos livros foram escritos, mas a vida do

paciente dentro dos hospitais continuou a mesma.

Por trás do chamado tratamento moral, a assistência psiquiátrica

estruturou-se num regime rígido e disciplinador, muitas vezes permissivo por

suas práticas obscuras e punitivas; violências veladas de ameaças e privações

tendo na instituição asilar, o elemento de ordem, o papel de vigiar, julgar e

punir.

Tudo é organizado para que o louco, em um ambiente de

racionalidade, seja vigiado, julgado, corrigido e, se preciso, for reprimido. O

asilo deixa de ser o local onde se espera a morte, tornando-se o lugar onde o

louco é observado, classificado, controlado e normatizado.

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III - A INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

3.1- Os primeiros tempos

No Brasil, na época colonial, os doentes mentais, assim como na

Europa dos séculos XV e XVI, tinham uma relativa liberdade. Compunham,

junto aos desocupados e desordeiros nas cidades, uma classe socialmente

ignorada, e por quase trezentos anos assim permaneceram até serem arrastados

pela rede de repressão aos obstáculos que se constituíam em ameaça ao

desenvolvimento econômico que estava a exigir uma nova ordem social.

“Nas ruas, a presença dos doidos (como de resto dos outros marginais) se fará notar pelos ‘seus grotescos andrajos’, seu comportamento inconveniente e pela violência com que, às vezes, reagem aos gracejos e provocações dos passantes”. (Resende, 2000, p.35).

O Brasil colônia inicia sua transformação a partir da chegada, em

1808, da corte portuguesa ao Rio de Janeiro.

A mão de obra, até então escrava, tem seu perfil alterado com a

chegada dos imigrantes. Após a abolição do tráfico negreiro, em 1850, da Lei

do Ventre Livre, em 1871, e da Abolição da Escravatura, em 1888, a

imigração apresenta grande crescimento. Inicia-se a criação de um operariado

urbano (mão de obra livre nas cidades) que, como poderá ser visto a seguir,

será a clientela predominante do primeiro hospício brasileiro, no início de sua

existência.

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Entretanto, qual a relação entre a chegada da Família Real no Brasil e

a criação do primeiro hospício brasileiro? O motivo não é o fato de a Família

Real possuir entre seus membros a rainha D. Maria I, mãe de D.João VI,

popularmente conhecida como a “rainha louca” (que morre em 1816, antes,

portanto, da criação do hospício).

A literatura existente sobre o assunto nos revela que a criação do

hospício está diretamente relacionada ao crescimento da cidade (urbanização)

e à necessidade de recolhimento dos habitantes desviantes que perambulavam

pelas ruas: os desempregados (imigrantes principalmente, que não aceitam as

condições de trabalho existentes), os mendigos, os órfãos, os marginais de

todo tipo e os loucos – os quais são recolhidos às prisões ou às Santas Casas

de Misericórdia. Pode-se dizer que não havia grande diferença em mandar o

doente mental para uma ou outra instituição.

3.2- A Primeira Instituição Psiquiátrica

O louco, no Brasil, emerge como problema social no século XIX, de

maneira semelhante à Europa, como um elemento de desajuste à ordem social

vigente, em meio a um contexto de desordem mendicância e ociosidade

presentes nas cidades. O crescimento deste grupo de indivíduos, constituía

uma ameaça para a paz social das cidades e da burguesia. Passam a ser

levados, inicialmente, à reclusão em Santas Casas de Misericórdia, sendo

jogados em porões, sem tratamento, e entregue a guardas e carcereiros

responsáveis pela sua tutela, onde os espancamentos e contenções em troncos,

de acordo com o comportamento de cada um, eram as formas controladoras

usuais.

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“As Santas Casas de Misericórdia incluem-nos entre seus hóspedes mas dá-lhes tratamento diferenciado dos demais, amontoando-os em porões ... entregues a guardas e carcereiros ... condenando-os literalmente à morte por maus tratos físicos,desnutrição e doenças infecciosas.” (Resende, 2000, p.35)

Nas prisões, os loucos são colocados no mesmo espaço que os

desviantes sociais, sendo ali também submetidos a maus tratos que,

freqüentemente, os levam à morte.

A diferença existente na história do louco enquanto doente mental,

nesses dois contextos, é que na Europa tal processo teve seu início com a

Revolução Industrial e no Brasil, ele se caracteriza em uma fase anterior, na

sociedade rural pré-industrialismo, e onde a propagação de tal recorte ocorreu

de uma forma mais lenta. Fato determinado pela dificuldade no continente, em

se dissolver as manifestações do que fosse alienação.

A loucura então desperta, após trezentos anos, sendo arrastada pela

rede de repressão à desordem, à mendicância, e à ociosidade, entrando na cena

social de enclausuramento, anteriormente vivenciado na Europa, com algumas

diferenças estruturais mas com a mesma força de coação.

Essa situação de maus tratos e violência nas instituições que abrigam

o louco, é motivo de críticas. A aparição de apelos humanitários começa a

mostrar a necessidade de se distinguir “o louco” dos demais marginalizados

sociais. Entretanto essa atitude não garante ao doente mental um tratamento

diferenciado dos outros grupos uma vez que ele, “o louco”, continuava sendo

visto como ameaça à ordem devendo, portanto, ser excluído.

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Um grupo de médicos higienistas, aliados ao provedor da Santa Casa,

José Clemente Pereira, iniciam, a partir de 1830, um movimento para criação

de um lugar específico para os loucos, onde os mesmos habitariam e teriam

assistência médica – movimento esse que pode ser entendido pelo lema “Aos

loucos, o hospício”.

Assim, por decreto do Imperador é criado em 1852, no Rio de Janeiro,

então Distrito Federal, o Hospício Pedro II.

Seguindo a tendência européia – da França, principalmente –, a

loucura passa a ser encarada como doença e, como tal, sujeita a tratamento

médico, tornando-se objeto da nova especialidade médica – a Psiquiatria.

Administrativamente coube à Santa Casa de Misericórdia a direção do

hospício. Como dependência da Santa Casa o Hospício Pedro II é construído

com capacidade para 350 pacientes e com o objetivo de atender pessoas de

todo o império. Pretensão essa que em muito pouco tempo revelou-se um

contra-senso, dadas não só as dimensões do império como a demanda que

rapidamente lotou o hospício e mostrava nas ruas, a necessidade de mais

verbas e mais hospitais.

“A exemplo do Rio de Janeiro, seguiram-se construções, nos anos e décadas seguintes, de instituições em São Paulo, Pernambuco, Bahia e Pará. A urgência que a situação exigia não permitia que se esperasse por hospitais definitivos, recorrendo-se a instalações provisórias ...” (Resende, 2000, p.38).

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Apesar da criação do hospício, persistem por parte dos médicos,

críticas aos maus tratos e a ausência de cura dos doentes – o hospital

psiquiátrico de fato não existia enquanto lugar de cura.

“... como no período anterior persistiram as denúncias de maus tratos, imundície, superlotação, baixa qualificação e truculência dos atendentes e falta de assistência médica. No Hospício D. Pedro II os doentes eram vítimas ‘das camisolas de força, os jejuns impostos, as cacetadas, os maus tratos e até o assassinato.’ Em Olinda, em alguns anos, a mortalidade ultrapassou os 50% da população internada e no Pará o beribéri era uma das mais importantes causas da morte”. (Resende, 2000, p. 39)

Não havia nenhum critério nosológico nessas instituições e o saber

médico não era chamado nem mesmo para referendar os processos de seleção

da clientela, que ficava antes, a cargo da autoridade pública. Também os

médicos não tinham poder administrativo, e no Rio de Janeiro – Hospital

Pedro II, – as irmãs de caridade eram diretoras do estabelecimento.

Não se pode deixar de considerar que as denúncias que partiam da

classe médica tinham também em seu bojo um interesse em afirmar a

hegemonia de um poder e a exclusividade de um saber único, capaz de levar

adiante a proposta terapêutica do hospício, qual seja, o tratamento moral

recomendado por Esquirol, psiquiatra discípulo de Pinel.

Como resultado, o hospício é desanexado da Santa Casa de

Misericórdia em 1890. A partir daí, o poder das religiosas é substituído pelo

poder dos médicos. Nessa mesma época, o hospício é entregue ao Estado

passando a chamar-se Hospital Nacional de Alienados.

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Em 1903, Juliano Moreira é nomeado diretor do Hospital Nacional e

nesse momento, juntamente com Oswaldo Cruz a Psiquiatria se une à Saúde

Pública num trabalho de sanear a cidade, cabendo à saúde mental a função de

apenas reconhecer os doentes mentais, tentar repatriar os estrangeiros e ver as

possibilidades de cura.

“... nesta faina comum a que se lançaram a Saúde Pública de Cruz e a Psiquiatria de Moreira, coube a esta última apenas o papel complementar, secundário, menos espetacular para os registros da História, o de recolher as sobras humanas do processo de saneamento, encerrá-las no asilo e tentar, se possível, recuperá-las de algum modo”. (Resende, 2000, p.45)

3.2- O Hospício-Colônia

Em 1911/12, a psiquiatria torna-se autônoma e já se fala em

psiquiatria preventiva e higiene mental. Contudo, não há evidências de

implementação de qualquer prática preventiva.

Em função da decantada vocação agrária da sociedade brasileira, há

incentivos à criação de instituições que reproduzam a vida de uma

comunidade rural, onde, a praxiterapia e o chamado open door, pudessem ser,

ao mesmo tempo, meio e fim do tratamento. Surge assim, uma entusiástica

adesão à política de construção de colônias agrícolas que não acontece apenas

por exclusão das outras propostas terapêuticas mas também pelo atual

ambiente político e ideológico propício ao seu florescimento.

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Surgem assim, as primeiras colônias trazendo a praxiterapia como

proposta de trabalho terapêutico, visando levar o paciente a identificar seu

próprio lugar no processo laborativo e integrar-se com os demais participantes

do grupo, o que tem como intuito, recuperá-los. Exemplo disso é a colônia

Juliano Moreira que desenvolvia atividades rurais como plantio de frutas,

hortaliças, criação de animais e onde funcionava também, oficinas de ferraria,

mecânica, carpintaria, vassouraria, encadernação, etc.

Essas instituições eram construídas em lugares afastados, usando um

discurso de que este afastamento proporcionava ao doente mental

tranqüilidade e espaço para as suas atividades.

O que se esperava era que as colônias resolvessem o problema da

crescente quantidade de crônicos produzidos nas instituições “urbanas”.

Entretanto, as intenções contidas nas propostas dessas colônias, malograram, e

estas passaram a cumprir a única função, que já caracterizava a assistência ao

alienado, desde o seu início.

“... a de excluir o doente de seu convívio social e, a propósito de lhe proporcionar espaço e liberdade, escondê-lo dos olhos da sociedade”. (Resende, 2000, p.52)

Segundo Resende, a despeito do ingresso dos médicos nas instituições

psiquiátricas e das intenções de recuperação do doente, contidas nas propostas

dos criadores das colônias agrícolas, a assistência psiquiátrica no Brasil

permanecia tal como antes: – continuava identificada com sua função de

exclusão, quer excluindo o doente mental de seu convívio social, quer

aceitando em suas colônias, pessoas selecionadas e afastadas do meio social

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sem a utilização de critérios clínicos e sem nenhum trabalho terapêutico.

Permaneceram também os maus tratos, o que significa que o controle das

instituições psiquiátricas nas mãos dos médicos, em nada modificou o

tratamento dispensado ao doente mental no hospital de tempos atrás.

Além disso, os hospícios colônias, sempre situados distantes dos

centros urbanos, longe portanto dos locais de onde provinha sua “clientela”,

não exerciam a menor influência no processo seletivo daqueles que seriam

seus “hóspedes”. Ali chegavam desde doentes provenientes de outro hospital

psiquiátrico como indivíduos com histórias de vida as mais variadas,

“... quem se dispuser a examinar a população das nossas colônias de alienados vai encontrar, amalgamadas à massa de crônicos... indivíduos cuja história de vida consta, como determinante da internação, ‘doenças’ como a de moças namoradeiras que foram desvirginadas e desonradas, crianças órfãs, mendigos e arruaceiros.” (Resende, 2000 p. 52)

o que deixa claro que, apesar da substituição da psiquiatria empírica pela

psiquiatria científica, o hospício-colônia permaneceu com a mesma destinação

social do hospital psiquiátrico, permanecendo, inclusive os maus tratos como

nos primeiros tempos da assistência psiquiátrica. Sobre a situação dos internos

do Instituto Raul Soares em Belo Horizonte, Resende diz:

“Da maioria dos quartos, funcionando como prisões, partiam os gritos dos insanos, trancados, atados e imobilizados (...) cordas, correias, tiras, manchões, argolas, lonas e coleiras formavam o arsenal patético... Diariamente o chamado carro-forte da polícia despejava à porta do Instituto, com guias dos delegados, magotes de loucos de todo gênero.(...) Os loucos com os pés e mãos atados ... eram castigados por um

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calabrote de couro, com uma argola de ferro na ponta, o “relho mestre”, vibrados por braços de guardas habituados a tratá-los por meio de todo aquele instrumental de sevícias.” (Resende, 2000 p.53.)

No panorama nacional, as propostas e tentativas de mudanças na

assistência ao doente mental surgiram de forma isolada e não frutificaram.

Ulisses Pernambuco, por exemplo, preconizava na década de trinta, uma

organização assistencial abrangente, com ambulatórios, hospitais abertos a

atenção ao egresso. Porém, apesar dessas propostas, o cuidado ao doente

mental no Brasil permaneceu, nesse período, essencialmente restrito ao

interior dos asilos.

Em 1930, as instituições destinadas a atender os doentes mentais

passam às mãos do Ministério da Saúde e Educação.

Em 1941 é criado o Serviço Nacional de Doença Mental (SNDM),

autorizado a “realizar acordos” com as Secretarias de Estados da Federação

para ampliação de hospitais e ambulatórios de higiene mental e que, em 1974,

transforma-se em Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM).

A implantação dos ambulatórios de psiquiatria ocorreu em ritmo lento.

De acordo com Resende, os poucos ambulatórios psiquiátricos oficiais foram

criados depois dos anos quarenta e, em 1961, contavam-se apenas dezessete

ambulatórios em todo o país.

Ao final da década de cinqüenta, ainda de acordo com Resende, a

situação no panorama da assistência psiquiátrica no Brasil era caótica.

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“Superlotação, deficiência de pessoal, maus tratos, condições de hotelaria tão más ou piores do que nos piores presídios (...). As colônias agrícolas de há muito haviam abandonado o trabalho do campo como atividade terapêutica...” (Resende, 2000 p. 55)

Só muito lentamente a assistência psiquiátrica pública toma

conhecimento das importantes transformações sofridas pela prática

psiquiátrica na Europa e nos EUA, a partir da Segunda Guerra, quando então

se verificará o surgimento de experiências pioneiras desenvolvidas no campo

da assistência psiquiátrica no Brasil, no sentido de criar modalidades de

atenção alternativas à hospitalização psiquiátrica.

Sobre os novos rumos da assistência psiquiátrica no Brasil, falaremos

no capítulo referente ao movimento da Antipsiquiatria.

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IV – PSICANÁLISE – A REFORMULAÇÃO DO CONCEITO DE

LOUCURA

“A realidade do outro não está naquilo que ele revela,

mas naquilo que ele não lhe pode revelar. Portanto, se

você quiser compreendê-lo, escute não o que ele diz mas

o que ele não sabe dizer.”

Bernard Shaw

4.1- A loucura não está no corpo, mas no simbólico

Antes mesmo do surgimento da psiquiatria, a loucura constituía um

enigma pelo qual transcendeu por toda a história da humanidade, gerando

certas polêmicas, debates e críticas.

Filósofos, religiosos, alienistas, médicos, psiquiatras, psicólogos e

psicanalistas constituíam critérios pelos quais o ser humano veio a ser

condenado ou libertado por viver à margem de uma sociedade, ou seja, um ser

considerado diferente.

A psicanálise vai em busca de uma nova nosografia. A partir desse

momento a loucura não vai ser apenas um objeto de observação e

conhecimento; antes, recorrem-se a novos critérios com resultados mais

eficazes.

A loucura é inserida num contexto histórico e social onde as

instituições, as religiões, os pesquisadores e estudiosos ampliam os limites de

seus pensamentos.

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Contudo, a revolução que marcou a virada da consciência sobre a

loucura sucedeu no rompimento da psicanálise com a psiquiatria, com a

psicologia e com a neurologia do século XIX.

Freud não se prende ao fisiológico e vai em busca de novos critérios

que expliquem a vida psíquica.

A psicanálise revoluciona a ciência na medida em que não estabelece

diferença entre o que é normal e “anormal”. Antes, considera que somos

constituídos de uma vida psíquica composta de angústias, desejos, fantasias,

etc. A loucura é então inserida num universo simbólico.

Apesar da psicanálise ter nascido num contexto médico-científico, o

rompimento de Freud com a psiquiatria vai ser em busca de uma clínica que

não se comprometa em conclusões fenomenológicas mas busque abrir espaço

para novos critérios.

Freud levantou uma série de proposições a respeito da loucura, e em

seus trabalhos estabeleceu uma oposição conceitual e lógica entre a estrutura

da neurose e da psicose.

Embora os tratados psiquiátricos já tivessem falado delas

separadamente, não havia uma conceituação específica que limitasse seus

campos. Para as neuroses, por exemplo, se utilizava do conceito etiológico –

eram afecções funcionais do sistema nervoso, sem lesão orgânica detectável.

Enquanto que para as psicoses não havia uma conceituação precisa – eram as

patologias orgânicas, as funcionais, os delírios e até casos de neuroses.

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Percorrendo alguns dos conceitos sobre a suposição freudiana da

existência de uma enfermidade diferenciada das neuroses, a qual o autor

nomeia de psicose, algumas considerações vêm à tona.

Verifica-se a partir de Freud que tanto a neurose quanto a psicose se

dão num indivíduo por um conflito muito intenso entre duas instâncias. No

que diz respeito à neurose este conflito se apresenta entre o ego e o id. Este

último tem por objetivo a obtenção de prazer sem levar em conta as exigências

que são feitas ao ego pela realidade externa. No que diz respeito à psicose o

conflito se estabelece entre o ego e a realidade externa, pois ele não consegue

atender às exigências feitas por esta última.

Da teoria freudiana, conclui-se que o ego é a “peça” fundamental no

desenvolvimento de um ser humano. Ele deve, portanto, ser bem organizado e

suficientemente plástico para não se deixar dominar pelas outras instâncias

psíquicas pois é o modo como o ego se estrutura e se relaciona com tais

instâncias que determina o surgimento ou não de uma patologia.

4.2- A análise da psicose segundo Freud

A psicanálise não procurou, logo de início, edificar uma classificação

que abrangesse a totalidade das doenças mentais que a psiquiatria precisa

conhecer. O interesse incidiu, em primeiro lugar, nas afecções mais

diretamente acessíveis à investigação psicanalítica e, dentro desse campo mais

restrito que o da psiquiatria, as principais distinções são as que se estabelecem

entre as “perversões, as neuroses e as psicoses”.

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Neste último grupo a psicanálise procurou definir diversas estruturas:

– paranóia (onde inclui, de modo geral, as afecções delirantes), esquizofrenia,

melancolia e mania. Fundamentalmente, é numa perturbação primária da

relação libidinal com a realidade, que a teoria psicanalítica vê o denominador

comum das psicoses, onde a maioria dos sintomas manifestos (particularmente

a construção delirante), são tentativas secundárias da restauração do laço

objetal.

O aparecimento do termo “psicose” no século XIX, vem pontuar uma

evolução que levou à constituição de um domínio autônomo das doenças

mentais, distintas não só das doenças do cérebro ou dos nervos, como doenças

do corpo, mas também diferentes daquilo que uma tradição filosófica milenar

considerava “doenças da alma”: – o erro e o pecado.

No decorrer do século XIX, o termo “psicose” espalha-se

principalmente na literatura psiquiátrica de língua alemã para designar as

doenças mentais em geral: a loucura, a alienação; sem implicar uma teoria

psicogenética da loucura.

Dentro do enfoque psicanalítico, tanto a psicose como a neurose,

resultam de reações defensivas do psiquismo, face a determinados conflitos,

acompanhados de regressão. Num neurótico um conflito intrapsíquico leva a

uma regressão, a qual se traduz por um perda da relação objetal

correspondente a um conflito. Nesse caso, a libido é introvertida para um

outro objeto fantasístico. Já na psicose, o conflito produz uma regressão muito

mais acentuada da que se traduz pela perda de uma gama maior de relações

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objetais – a libido é retirada de forma difusa. Essa energia libidinal difusa será

investida no próprio ego do paciente, produzindo idéias de grandeza,

onipotência, megalomania, etc, em vista do sujeito encontrar-se fixado

regressivamente no estado do narcisismo primário.

Por outro lado, a perda dos investimentos objetais levará à perda do

significado da realidade externa. Tal situação produzirá no sujeito sensações

internas de ruptura que se manifestam através de fantasias destrutivas (o

mundo é monótono, vazio, sem sentido, ele vai acabar). Num processo

patológico como o da psicose, a perda dos investimentos objetais culmina com

um a regressão narcisística, ou seja, ocorre um retorno da libido para o próprio

corpo ou parte dele. Este corpo agora, excessivamente invertido

libidinalmente, será sede de sensações hipocondríacas.

4.3- A clínica da psicose

No que diz respeito à clínica da psicose, Freud, apesar de toda sua

reticência em relação à possibilidade de seu tratamento pela psicanálise não

considerou impossível que mediante novas contribuições, alguns dos

obstáculos que até aquele momento se constituíam como contra-indicação ao

tratamento pudessem ser vencidos. É na análise do caso Schreber que Freud

pensa o delírio como uma tentativa e uma possibilidade de o psicótico

restabelecer os laços com o mundo externo. Nesse texto Freud considera como

ponto culminante do sistema delirante de Schreber a sua crença de ter a

missão de redimir o mundo e retribuir à humanidade o estado perdido de

beatitudes.

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Freud, na análise deste caso lança a construção delirante como uma

via de cura, afirmando que o delírio deve ser escutado por ser a possibilidade

de sentido à qual o psicótico se agarra.

A psicose, para Lacan, não se encontra num total rompimento com o

mundo, uma vez que o delírio denuncia uma outra realidade onde existe sim, a

exigência do significante.

Segundo Freud, a construção delirante de Schreber lhe forneceu uma

saída, a partir do momento em que se estabilizou nela, indo de encontro com

um novo sentido para sua vida, restabelecendo os laços com o mundo. Daí em

diante, foi capaz de levar uma existência independente lutando constantemente

por sua alta. No entanto, esta saída é radicalmente distinta da saída para a

neurose. Talvez seja pensando nesta idéia que Lacan vai afirmar que o delírio

não tem saída pois, apesar de Schreber ter restabelecido os laços com o

mundo, conseguindo sua alta no asilo, e publicando suas memórias, ele não

deixou de ser psicótico.

A partir daí, se pensa a respeito do tratamento na psicose, seu conceito

de cura, e como tratar psicanaliticamente um psicótico.

Na concepção lacaniana uma hipótese de tratamento é escutar o

delírio, pontuando pela linguagem, possibilidades de sentido. A cura não está

relacionada a uma mudança de estrutura, ou seja, o psicótico deve ser tratado

em sua singularidade e não como um neurótico. A cura está ligada à

possibilidade do psicótico, ao se agarrar em um delírio na busca de sentido,

poder viver melhor, sofrendo menos.

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Segundo Lacan, a condição básica para tratamento da psicose é

considerar a diferença que existe entre a demanda neurótica e a demanda

psicótica. Lacan caracteriza o delírio como “um campo de significação que

organizou um certo significante, de modo que, as primeiras regras de um bom

interrogatório e de uma boa investigação das psicoses poderiam ser a de deixar

falar o maior tempo possível”.

Percebe-se assim, que a psicanálise não pretende, tal qual a

psiquiatria, curar um psicótico, ao tempo que entende que o caminho a seguir

no processo de uma “cura” seja pela via do discurso, preocupada, sobretudo,

com a dimensão ética de todo tratamento possível da psicose.

A pesquisa psicanalítica elege o conceito de interpretação como

instrumento fundamental para apreender as manifestações “sem sentido” lá

onde se revelam como indicativas da verdade do sujeito.

Interpretação e linguagem passam a definir as operações da clínica e

permitem encaminhar os questionamentos desta.

Assim, a operacionalidade desta clínica importa no reconhecimento de

um lugar onde interpretar não significa aplicar um conhecimento já sólido,

mas sim dar um espaço para demonstrar as certezas e definir os enigmas,

causas de um sofrimento psíquico intolerável. Assim, associar livremente

implica comunicar uma idéia, mesmo que ela seja desagradável, que pareça

sem importância ou irrelevante para o que se busca, ainda mesmo que ela seja

julgada absurda.

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Nesta clínica, a entrada de uma palavra louca, sem sentido, é

constituinte do trabalho e este, só se afirma positivamente como tal, se puder

acolher os diversos meios de expressão. Essas idéias aparecem diversas vezes

ao longo da trajetória de Freud, constituindo mesmo uma referência central em

suas formulações.

Neste sentido, é importante ressaltar o lugar aí ocupado pela criação,

pela reconstrução ou mesmo pelo delírio, onde vai testemunhar a emergência

do sujeito.

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V- FAMÍLIA E DOENÇA MENTAL

5.1- Conhecendo a família

Falar de família constitui, na maioria das vezes, uma prática fácil e

corriqueira para todos nós, uma vez que somos atravessados por ela a todo

momento: pertencemos a ela, reclamamos dela, convivemos e trabalhamos

com ela direta ou indiretamente. Esta constatação nos dá a nítida impressão de

que todos conhecemos ou pelo menos temos uma noção do que seja a família.

Entretanto, pouco sabemos acerca desse grupo tão peculiar.

Como agrupamento social, esse núcleo apresenta-se bastante

revolucionário em sua inegável heterogeneidade. Até a década de cinqüenta a

supremacia estatística da família nuclear era indubitável. Atualmente, nem

tanto. O aumento do número dos divórcios, a presença de recasamentos, o

incremento de lares com chefia feminina, alternativa pacífica de ser mãe

solteira, a opção de ir morar sozinho... Todo esse manancial de novas

formações familiares atesta a emergência cada vez mais constante de arranjos

que escapam à lógica da reprodução e da padronização.

Tal revolução já aconteceu em outras épocas. No Brasil, a família

patriarcal, esteio da Colônia, já se transformou em família nuclear, trunfo da

urbanização e da industrialização. Nesse sentido, presenciamos a metamorfose

de uma sociedade de famílias, que se caracterizava por extensas redes de

parentelas dominadas pela figura do patriarca, tendo como fim último a

preservação da linhagem e do patrimônio. Numa sociedade moderna, onde a

família diminui não só em tamanho, mas também em função, esta passa a ser o

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centro da estruturação da vida psíquica, preocupada com questões de

afetividade e de relacionamento. A família, hoje, caracteriza-se como o

primeiro âmbito social do indivíduo, primeiro centro de convivência conjunta,

responsável pela vida privada dos sujeitos que a integram . Enquanto

construtora da personalidade, seus membros experimentam em seu seio grande

parte da gama de emoções que uma pessoa pode vivenciar ao longo de sua

vida. Com todas essas propriedades, a família comtemporânea apresenta-se

como senhora absoluta na mediação entre o indivíduo e a sociedade.

Mas, por que nada permanece o mesmo? Por que essa célula sempre se

transmuta e insiste em ir contra o que já existe? Porque a sociedade é assim. E

a família, como parte integrante desse imenso e infinito painel, não poderia ser

diferente. Na verdade, mais parece um território caótico, perpassado por

forças intensas, potentes e contraditórias, do que algo estanque e linear.

Também não existe essa abstração que é a família. O termo família acaba

designando agrupamentos sociais bastante diferentes entre si, não só entre

diferentes momentos históricos e entre diferentes sociedades, mas dentro de

uma mesma sociedade, entre classes sociais distintas e até mesmo dentro de

uma mesma classe social.

Entretanto, a família não muda só na sua relação com a sociedade,

influenciando e sendo influenciada pelas forças institucionais presentes nesse

embate. Ela também muda dentro de sua própria cotidianidade. A família,

enquanto um sistema humano composto por membros de diferentes gerações,

também passa, ao longo de sua existência, por um ciclo de vida

próprio,permeado pelas mais variadas tarefas, pelas mais distintas demandas e

adaptações. Esse ciclo possui características específicas de acordo com cada

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etapa a ser enfrentada e fundamenta o contexto primário onde o ser humano se

desenvolve.

Como um organismo composto por várias partes, é importante

ressaltar que, nessa trajetória, o ciclo de vida individual de cada membro

também está em processo e também ocorre dentro do ciclo da família.

Diferente das outras organizações humanas, a família incorpora novos

membros apenas pelo nascimento, adoção ou casamento, sendo que esses

membros só deixam de pertencer à sua organização familiar própria pela

morte. Mesmo que geograficamente distantes, ou optando pela não

convivência ou até mesmo renegando sua origem, é definitiva a pertença de

um indivíduo à família em que nasceu. Essa pertença não se dá por opção,

como no caso das amizades ou da escolha do cônjuge, mas por laços de

sangue indissolúveis. Nessa clausura sanguínea vai-se tecendo nossa

subjetividade: lá aprendemos, crescemos, relacionamo-nos e geralmente

morremos.

Da mesma forma que aflora o “novo” no tecido social, trazendo

consigo a relação do estabelecido, também dentro desse organismo vivo, que é

a família, quando surge uma nova etapa a ser enfrentada, essa avança contra a

transição, perdendo a perspectiva de processo vital, mumificando o presente.

Esse ímpeto de mortificação ou apóia-se em sentimentos imediatos e

imperativos de negação do que está acontecendo, ou pode projetar-se no

futuro, almejando que as dificuldades agora vividas tenham-se tornado

passado.

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Nesse torvelinho de mutações sociais e vitais, a família movimenta-se.

Porém, apesar de toda essa metamorfose, todos possuímos um modelo de

família que permanece idealizado e distante do que realmente ocorre. Esse

modelo é formado no entrecruzamento do social, do familiar e do individual.

No que se refere ao social, os modelos veiculados pelo instituído dão a

impressão de que a família é eterna e imutável. No que se refere ao familiar, o

projeto que cada núcleo possui, de como deveria ser e de como deveria

funcionar, persegue um círculo harmônico de estabilidade, onde não existam

atritos nem tão pouco tensões. No que se refere ao individual, a história de

vida da pessoa com seus registros, seus códigos, seus anseios e seus medos,

embasa uma expectativa idealizada e traz o desejo de que, quando constituir

uma nova família, esta, com certeza, será diferente da sua família de origem.

Ao falarmos da vida de uma família, podemos afirmar que essa fala

traz encoberta sempre esse modelo, que é em si abstrato, em contraposição a

uma realidade, que é em si concreta. A família em seu dia- a- dia não segue

nenhum modelo, que existe apenas no imaginário, e vai-se montando como

consegue, circulando em seu modo particular de existir, lutando para

sobreviver frente às provações constantes. Na família ideal tudo ocorre de

maneira diversa. Nela não há dificuldades e tudo pode e funciona tal como foi

pensado.

Como as duas se relacionam? A questão é que, enquanto modelo

abstrato e impessoal, esse ideal pode servir de controle e instrumento de

dominação, impedindo a aproximação com o que existe. Isto porque há uma

grande distância entre a família vivida e a família pensada. Distância essa que

permite uma comparação,mesmo que não seja de forma direta e consciente.

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Nessa comparação, a dessemelhança passa a ser desqualificada e

discriminada. Além disso, não consegue viver o modelo idealizado por ser

sinônimo de incompetência privada, o que conduz a sentimentos de

inferioridade. Essa comparação tirânica desconsidera a situação real e aborta

as possibilidades de ação e enfrentamento dentro da mesma.

É importante pontuar novamente que não há uma definição única de

família. Também não há o modelo ideal de família. Cada família é única,

singular e deve ser abordada na sua diferença, não de uma forma comparativa,

onde a concretude perca sempre para a abstração.

Também importante é que nossa prática com famílias permita a

invenção de novos universos que contemplem novos territórios existenciais,

individuais e coletivos, que permitam a incorporação do impensado. Sem

acusar, julgar, oprimir com o conhecimento, culpabilizar, poderemos

contribuir para o surgimento de um devirfamília que se constitua enquanto

espaço aberto a ser explorado.

5.2- Critério de saúde e doença

Desde a antiguidade se pensou que a loucura era provocada por causas

naturais. Nos primeiros tempos ela foi atribuída a uma mistura não equilibrada

dos humores. Na Idade Média, foi atribuída aos demônios. A teoria

predominante no século passado foi a da degeneração: o natural dentro do

indivíduo. Aos poucos a ênfase foi deslocada para o histórico e a cultura,

entendendo-se como tal o mundo definido por regras, portanto, com atributo

de relatividade e particularidade. Neste contexto regra aparece como oposto a

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instinto. Atualmente reencontram-se as diferentes teorias predominantes no

passado sobre a causa da loucura. Entendemos o natural, do ponto de vista da

cultura, como aquilo menos regulado pelas regras do que por uma ordem

repetitiva e estabelecida como inata , sendo a cultura o definido pela presença

das regras. É preciso no entanto reconhecer que cada cultura define o que é

natureza. As condutas interpessoais estão reguladas por regras, encontram-se

do lado da cultura e esta é a perspectiva científica das relações interpessoais

porque inclui o desenvolvimento histórico e cultural.

Cultura e natureza são significações atribuídas pela cultura, que

aparece, portanto, como um sistema de significados. Quando passamos a

considerar o doente mental no seu contexto familiar e social, estamos

aplicando um significado cultural ao distúrbio mental. Considerar o doente

como um ente autônomo e perturbado é resultado da aplicação de um

significado natural.

O estudo da família se desenvolveu principalmente a partir da década

de cinqüenta, não obstante menções ocasionais ocorridas anteriormente que

merecem figurar mais na história da psiquiatria do que numa consideração

sistemática e científica.

Freud relacionou vários tipos de causas recíprocas por meio do sistema

das séries complementares. A combinação dos fatores congênitos e

hereditários e as experiências infantis no ambiente familiar ou social

determinavam a série da disposição, à qual, por influência dos motivos atuais

ou desencadiantes, condicionados por sua vez pela disposição, determinavam

o aparecimento do distúrbio mental. Desta forma, o criador da psicanálise

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antecipou uma causalidade estrutural no lugar da causalidade linear dominante

na época e ainda vigente na atualidade. Os trabalhos de Freud contribuíram

para dissolver a separação entre o sadio e o doente, o normal e o anormal.

Através do conceito de sexualidade infantil, equiparou o sintoma neurótico ao

desenvolvimento normal e seus obstáculos, com o que dissolveu uma cisão

para estabelecer, na verdade, as diferenças sobre aquilo que tinham em

comum.

Geralmente, na nossa cultura, a sociedade, os médicos e o grupo

familiar explicam o aparecimento do distúrbio mental como sendo um

acontecimento natural, biológico, autônomo e independente, o que é resultado

do isolamento e da ruptura da relação família/doente mental.

A definição explícita do problema mostra a família do doente mental

como senda um sistema dividido em sadios e doentes, embora esta última

categoria esteja ocupada por um só integrante. A família se queixa

freqüentemente de que o doente é a causa do desequilíbrio familiar, apesar de

que se aplicássemos o mesmo raciocínio ao contrário, estabeleceríamos a

suposição de que a família é a causa do distúrbio mental. Isto é

particularmente claro entre os autores que têm estudado as atitudes dos pais do

esquizofrênico. Pensar que a família determina o distúrbio mental de um dos

seus integrantes ou que o paciente determina por meio de sua doença “natural”

a organização familiar, supõe pensar em termos de causalidade linear. Estudar

a relação supõe a passagem a uma causalidade circular ou estrutural.

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5.3- A família cindida

O doente mental tem sido historicamente segregado. Sua família não o

reconhece como um de seus membros e o afasta, como uma forma de negar a

doença.

Estudos feitos com famílias têm demonstrado como elas atuam no

sentido de reforçar ou manter a enfermidade de um membro psicótico e isso

observa-se a partir do conceito do duplo vínculo, onde mensagens

contraditórias emitidas simultaneamente pela família operam como fator

desestruturante e enlouquecedor para quem as recebe.

Sobre o duplo vínculo podemos dizer que ele se caracteriza por uma

conduta de aproximação e de afastamento. A mãe apresenta um

comportamento afetivo positivo, uma oferta ou uma aproximação; a criança

responde, reduzindo assim a distância. A mãe exibe então, por um movimento

de recuo, seu temor de uma relação excessivamente íntima. Ao mesmo tempo,

destrói o sentido de sua mensagem, seja negando o próprio afastamento, seja

questionando o gesto da criança em relação a ela e o sentido que poderia ter.

Múltiplos contextos maternos e familiares e incontáveis determinantes

particulares podem dar origem ou existência patogênica – ao modelo

sistêmico do vínculo duplo. Trata-se de uma situação que diz respeito não

apenas à relação filho-mãe, como também, mais ainda, à relação indivíduo-

grupo familiar. Assim, não menos patogênico é o pai ausente ou mantido à

margem, incapaz de intervir na relação mãe-filho e de apoiar a criança face às

contradições utilizadas.

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Uma vez irrompida a psicose, esses modos de relação se mantêm, sem

dúvida mais fixos do que antes. Daí a importância de se trabalhar com a

família do psicótico a fim de poder sustentar as melhoras do sujeito apontado

como doente, uma vez que a dinâmica familiar opera no sentido de manter a

enfermidade circunscrita a um único membro. O trabalho individual com

pacientes psicóticos se beneficia quando acompanhado por um atendimento à

família que elicie modificações em sua dinâmica e estrutura. Estudos

comprovam que psicóticos internados tratados individualmente na instituição

podem adquirir um determinado grau de equilíbrio e autonomia mas, regridem

rapidamente quando devolvidos às suas famílias , precisando ser internados

novamente, sucedendo-se assim, internações e altas, sem que se consiga

interromper o circuito.

Na medida em que a família identifica um de seus membros como

doente mental, ela permanece excluída de seu próprio processo. Dessa forma,

divide-se entre “doente e sadios.”

“ Geralmente ,quando aparece uma crise no funcionamento mental de uma pessoa, os elementos de seu grupo familiar se definem como “sadios”, em oposição ao integrante definido como “doente”. ( Isidoro Berenstein. Família e doença mental. São Paulo, Escuta, 1988 p. 79)

Esta divisão acentua-se significativamente no caso de famílias com um

integrante psicótico, mas também pode ser observada em famílias que

apresentam outras patologias.

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Reconhece-se que essa divisão é falsa e que ocorra uma reação

defensiva através da qual a família espera “salvar-se”. Os membros “sadios”

receiam ser observados como participantes de uma situação possivelmente

doentia. Isso configura a necessidade de, num processo terapêutico, ampliar

esta perspectiva, não aceitando passivamente a divisão entre “sadios” e

“enfermos”, uma vez que a existência de um membro enfermo implica o

compromisso da estrutura familiar como um todo, onde cada membro

contribui para que a configuração familiar se caracterize e se mantenha como

tal.

O paciente a ser tratado é a família como um todo, e sob este ângulo

não existem divisões possíveis.

A aparição de um membro psicótico numa família denuncia pois, a

ruptura do equilíbrio do sistema.

Frente a aparição de sintomas psicóticos a família que se cinde em

dois grupos: o dos sãos e o do enfermo busca alcançar desse modo um novo

equilíbrio e, para defende-lo se opõem com força às interpretações que

tendem a mostrar a patologia familiar. Um trabalho com essa família não

consistirá em mostrar que ela é a causa do transtorno mental do paciente mas

assinalar-lhe o caráter relacional entre ambos os lados(família/paciente,

são/enfermo). Quando a ênfase é colocada na relação sustenta-se o critério de

uma causalidade circular. Assim, tanto o paciente como sua enfermidade

determinarão a organização familiar, bem como a família determinará o

transtorno mental de um de seus integrantes.

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5.4- Relações familiares e sua influência no processo de estigma e

ressocialização

Os gregos,que tinham bastante conhecimento de recursos visuais,

criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se

procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mal sobre o status

moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no

corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor_

uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada,especialmente

em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram

acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça

divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo,

uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de

distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um

tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria

desgraça do que à sua evidência corporal. Ou seja, o termo é usado em

referência a um atributo profundamente depreciativo.

Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em

primeiro lugar, há as abominações do corpo_as várias deformidades físicas.

Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca,

paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade,

sendo essas inferiores a partir de relatos conhecidos de, por exemplo,

distúrbio mental, prisão,vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego,etc.

Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser

transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de

uma família . Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, inclusive

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aqueles que os gregos tinham em mente, encontram-se as mesmas

características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente

recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode se impor à

atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de

atenção para outros atributos seus.

O estigma é um atributo depreciativo que envolve sistema de relações

entre o atributo e o esteriótipo que faz-se do sujeito deficiente.

Os símbolos do estigma do deficiente mental caracterizam –se por

estarem, na maioria das vezes, expostos à percepção do outro, em função de

seu comportamento alheio à padronização.

Todavia, o doente mental não pode simplesmente ser identificado

como um inútil, um ônus, um erro, mas sim um ser concreto, social, com

limitações,sim, mas com potencialidades, com os mesmos direitos dos demais

membros da comunidade, seja ela geográfica ou funcional.

A existência do estigma torna o doente mental um desacreditado o que

impede, muitas vezes a existência do feedback tão salutar na interação social.

Essa falta de comunicação leva o doente ao isolamento, gerando como

conseqüência, a hostilidade, a exclusão, a ansiedade e a confusão para o

doente o que acaba por representar uma deficiência quase que total do sistema

do “EU”.

Sabe-se que o comportamento do doente mental é modelado pelas

ações, atitudes e reações dos outros( família, grupos, vizinhança, comunidade)

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que delimitam e disvirtuam ou facilitam e potencializam o desenvolvimento

do doente.

Há uma tendência em se deduzir uma série de imperfeições a partir da

“perfeição” original, pois aqueles que possuem um estigma, de modo geral,

não são considerados completamente humanos. Dessa forma, através dos

vários tipos de discriminação reduz-se as chances de socialização e

capacitação do estigmatizado. O estigmatizado se afasta cada vez mais do

grupo que não o aceita e não apresenta disposição de estabelecer com ele

contato com bases iguais. Esse comportamento é freqüentemente encontrado

nas famílias. Daí porque, poder-se afirmar que a estigmatização e os

impedimentos para a ressocialização tem bases familiares.

A manipulação do estigma pela família, provoca muitas vezes uma

interação angustiada , pois o doente é tratado com exagero, ora aquém, ora

além de suas necessidades e limitações, ratificando a estereotipia ou o perfil

de doente mental. E essa manipulação do estigma pela família ocorre tanto na

criação de um círculo protetor exagerado quanto nas reações de desprezo e

rejeição.

A maior parte das famílias que têm um doente mental , sofre de

amargura crônica durante todo o decurso da vida, não importando se o doente

é conservado no lar ou “posto de lado em algum lugar”. A intensidade dessa

amargura varia de situação para situação e de uma família para outra. Certo é

que a família do doente mental se sentirá sempre sobrecarregada com as

exigências sem trégua do doente e sua incessante dependência.

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Assim como as pessoas com diferentes estigmas devem enfrentar

problemas e a eles se ajustar, também o problema de uma família com um

doente mental constitui um caso de experiência dolorosa , uma vez que tal

experiência traz decepção e crises familiares como angústias, ambições

frustradas e altos níveis de tensão. O problema básico com o qual a família se

defronta, é: como enfrentar tal situação de forma a estimular e não dificultar

o crescimento e desenvolvimento do seu familiar.

Sabe-se que a família é o principal agente intermediário através do

qual as unidades sociais mais vastas exercem suas influências sobre o

indivíduo. O que o doente é, individualmente, e o que ele faz, afeta todos os

membros da família; e o comportamento desta, por sua vez, afeta o doente.

Alguns dos mais correntes padrões de reação de uma família são:

encarar o problema de modo realista; negação da realidade; lamentações com

a sua própria sorte, ambivalência em relação ao doente, vergonha, depressão, e

padrões de mútua dependência. A presença de um doente mental na família

constitui um motivo de tensão e é provável que reações defensivas ocorram,

fazendo surgir uma fonte de conflito decorrente do fato de que a presença de

um doente mental na família suspende certos componentes do ciclo familiar,

uma vez que o doente pode ocupar permanentemente a posição social de um

“bebê” que não desenvolve a independência e autonomia da idade adulta.

A importância para a futura integração do paciente mental na

sociedade será fixada em suas vivências e treinamentos recebidos junto à

família. A impossibilidade de desenvolvimento das potencialidades do

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indivíduo e a frustração afetiva, provoca bloqueios que prejudicam seu

desenvolvimento e seu ajustamento social.

O comportamento da família encontra reciprocidade no doente.

Quanto mais favorável a atitude da família mais estável e tratável será o

doente.

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VI - UMA NOVA VISÃO, UM NOVO CAMINHO

6.1- A família como sistema

A formação de terapeutas ao longo das últimas décadas tem sido

marcada pela predominante influência das teorias psicanalíticas. Nos anos

mais recentes, importantes segmentos têm sido motivados pelos conceitos

sistêmicos oriundos da teoria da comunicação, da cibernética, das terapias

familiares, ecológicas ou contextuais. Inicialmente colocadas em oposição,

esses universos conceituais vêm se aproximando mais a cada dia, à medida

que vão se amenizando algumas diferenças.

A partir dessa idéia a família pode ser definida como um sistema

formado por pessoas ligadas por uma relação de parentesco. A Teoria Geral

dos Sistemas permite compreender a natureza dos sistemas interacionais e ,

entre estes, o familiar.

Podemos dizer que um sistema é um conjunto de objetos assim como

de relações entre os objetos e entre seus atributos. Os objetos são os

componentes ou partes do sistema, os atributos são as propriedades dos

objetos, e as relações asseguram a unidade do sistema. Os sistemas possuem

características que lhe são inerentes. Também podemos atribuir algumas delas

à família ao entende-la como um sistema:

Totalidade: Um sistema se comporta como um todo inseparável e coerente,

e não só como um composto de elementos independentes. A família é um

conjunto que tem uma propriedade que é algo mais do que se deriva da somo

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de seus membros. Dentro da família a conduta de cada indivíduo está

relacionada com a dos outros e depende dela. A modificação de um de seus

integrantes induz a do resto e produz a passagem do sistema de um estado a

outro.

Retroalimentação: Os sistemas familiares podem ser entendidos como

circuito de retroalimentação. A relação entre as partes é de circularidade e,

como conseqüência, a conduta de cada integrante afeta a de todos os outros e é

afetada por eles. A retroalimentação pode ser positiva ou negativa. A primeira

leva à perda de estabilidade e à mudança. A segunda, que caracteriza a

homeostase, desempenha um importante papel no conseguir a manutenção do

equilíbrio familiar. Ampliando este ponto de vista, podemos considerar que a

retroalimentação é positiva ou negativa, de acordo com a potência e não com o

crescimento. As famílias que funcionam com retroalimentação positiva não se

esteriotipam nos seus intercâmbios, conseguindo deste modo modificar-se de

acordo com as circunstâncias e afastar-se da repetição.

Homeostase: Outra das características do sistema é sua tendência à

homeostase, quer dizer, a manter um equilíbrio estável. O sistema familiar

passa, imprescindivelmente, por momentos de desequilíbrio que devem ser

considerados normais. Estes são conseqüências de crises naturais de

crescimento (nascimento de filhos, conflito da meia idade , ingresso no

colégio, filhos adolescentes, menopausa). As famílias normais se

transformam, se reestruturam e se adaptam no curso do tempo, tentando

encontrar, para cada nova etapa, o equilíbrio adequado que favoreça o

crescimento mental e os vínculos entre seus membros. As famílias

perturbadas, ao contrário, não podem enfrentar crises de crescimento. Frente

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aos desequilíbrios naturais reagem com violência, tentando fazer com que o

sistema volte ao modo de equilíbrio anterior. Um estado de equilíbrio que

num momento determinado pode resultar funcional, deixa de sê-lo logo que se

tenta mantê-lo à força. Um vinculo simbiótico entre uma mãe e seu bebê,

durante a primeira etapa de vida deste, é desejável e favorece seu

desenvolvimento. Mas se se perpetua porque a mãe necessita, por exemplo,

preencher um vazio proveniente da relação conjugal, sem tomar em conta as

novas necessidades do filho, tal vínculo passa a adquirir características

patogênicas. Impede a criança de continuar com seu crescimento que, neste

caso, se detém e cristaliza no que deveria ser só uma etapa dentro da evolução

normal. Pensando a família como sistema temos que pensa-la como sistema

vivo, que estabelece trocas. Entende-se que sistema familiar são dois ou mais

comunicantes no processo de definição da natureza de suas relações. No

conjunto de todos os objetos do sistema, quando uma mudança ocorre em um

dos atributos todo o sistema é alterado, uma vez que tido comportamento de

qualquer indivíduo de uma família está relacionado com o comportamento de

todos os outros. Na medida em que comportamento é comunicação, então,

influencia e é influenciado por todos. Assim, qualquer coisa que aconteça com

um membro do sistema vai mexer com todos os outros.

6.1- A teoria dos sistemas

A psicanálise, em sua fundação, há quase cem anos, através dos

primeiros trabalhos de Freud e seus colaboradores, estabeleceu um princípio

básico: a origem das patologias psicológicas estaria situada nos processos

ocorridos nos primeiros anos de vida, nas vicissitudes da sexualidade infantil e

do desenvolvimento da libido. Essa postulação, juntamente com a descoberta

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do inconsciente e de sua influência sobre o indivíduo significou um avanço

importante em relação aos conceitos vigentes até então. Estabeleceu-se uma

ruptura epistemológica ou o que hoje chamamos um novo paradigma na

medida em que, se estabeleceram a partir daí, enormes avanços na ciência

psicológica deste século.

Entretanto, a compreensão de todo o desenvolvimento normal e de toda

a patologia construiu-se sobre os conceitos da época que giravam em torno de

energia libidinal e de forças instintivas que determinariam, de modo linear, o

desenvolvimento dos indivíduos desde muito cedo, através da compulsão à

repetição. Freud, em sua genialidade, ainda assim deixou abertos caminhos

que podem ser desenvolvidos em diversos sentidos. Ao formular sua equação

etiológica, deixou espaço para os fatores genéticos e constitucionais, para as

vivências infantis e também para as situações atuais, na co-determinação da

patologia psicológica. Mas não tinha ao seu alcance os conceitos que hoje

informam nossa ciência, constituindo o que hoje pode ser definido como um

novo paradigma – a teoria dos sistemas.

O conceito de interrelação entre os indivíduos em qualquer campo,

desde os sistemas ecológicos até os sistemas familiares, tem modificado

profundamente a visão dos teóricos da psicologia humana. Mesmo entre os

autores psicanalíticos, vem ocorrendo uma crescente inclusão do relacional,

desde avanços como os de Winnicott, Mahler e Bowlby, até autores mais

recentes, como Cramer, Palácio-Espaso ou Daniel Stern. O conceito de

interação, que tem obtido um grande reforço a partir dos estudos objetivos do

relacionamento pais/bebês, vem modificando profundamente o modo de

conceituar o desenvolvimento dos indivíduos, no sentido de considerar cada

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vez mais o contexto familiar e social como parte relevante na determinação de

sua saúde ou de sua patologia.

Greenberg e Mitchell, em profunda revisão recentemente traduzida para

o português sob o título Relações objetais na teoria psicanalítica, assim se

referem a essa questão: “ a segunda estratégia para lidar com as relações

objetais mais radical é a de substituir o modelo teórico da pulsão por uma

abordagem conceitual fundamentalmente diferente, na qual as relações com

outros se constituem nos blocos de construção fundamentais da vida mental.

A criação ou recriação de modos específicos de relacionamento com o outro

substitui a descarga pulsional como a força que motiva o comportamento

humano “.

Outros autores como Fairbaim e Sullivam realizaram trabalhos

significativos nesse sentido, buscando recolocar a teoria das relações objetais

no seu caminho mais consoante com as pesquisas atuais. Na visão de

Sullivam, nascemos, nos desenvolvemos e vivemos no contexto das relações

com outros, e nossa experiência é composta pela e relativa à configuração

destas relações. Seu foco de investigação enfatiza o interpessoal, o que

as pessoas fazem umas com as outras. Para Fairbaim, “ o conteúdo dos objetos

externos reais, fragmentados e recombinados, com certeza, mas sempre

derivando das experiências da criança com seus pais reais. Tanto Sullivan

como Fairbain fazem objeção ao enfoque na pessoa, a psique dentro da

clássica teorização psicanalítica, argumentando que isso estabelece uma base

artificial e enganosa para se ver a experiência humana, separando-a do seu

cenário relacional. Sullivan sugere que não se pode compreender uma

personalidade em isolamento.

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A visão interpessoal desses autores se aproxima bastante de uma visão

interacional sistêmica , postulada pela maior parte dos terapeutas familiares.

O modelo sistêmico nasceu dos trabalhos originais de Haley, Bateson,

Jackson e Watzlawick em Palo Alto, na Califórnia, há menos de quarenta

anos. Em seu início buscou definir-se em contraposição ao modelo histórico-

genético da psicanálise, centrando sua atenção nas interações do sistema

familiar e através delas buscando compreender os sintomas e encaminhar

soluções, sem necessidade de conhecer sua história, o que gerou muita

polêmica e radicalizaram posições entre o modelo psicanalítico e os chamados

terapeutas sistêmicos.

Hoje, no entanto, passados já quase quarenta anos desses trabalhos

pioneiros, podemos observar um movimento diferente, mais integrador, que

resgata e readapta algumas das conquistas mais importantes do modelo

psicanalítico. Um desses conceitos é exatamente a importância do histórico na

construção psíquica e na co-determinação da patologia do indivíduo.

O conceito de ciclo vital, um dos pilares da visão atual dos sistemas

familiares em desenvolvimento, é uma forma de conceitualização que valoriza

e resgata a história dos indivíduos em sua família.

O enfoque da família como sistema vivo, organismo, permite afirmar

que, como todo organismo, a família possui um ciclo vital, ela nasce, cresce,

amadurece e morre, podendo ou não dar nascimento a uma nova família. O

ciclo vital estaria ligado àqueles eventos nodais da vida familiar, tais como, o

nascimento dos filhos e seus cuidados , maturidade do casal e adolescência

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dos filhos, a saída deles da casa paterna (o ninho vazio), a aposentadoria, a

velhice, a morte.

O conceito de duplo vínculo e as teorias da comunicação são alicerces

de onde vai partir toda a teoria sistêmica. Duplo vínculo é um conceito

elaborado por Bateson em 1952_ é um padrão de comunicação repetitivo que

contém ordens contraditórias em diferentes níveis lógicos e que, junto com a

possibilidade do paciente abandonar o campo relacional com a família estaria

na base dos sintomas psicóticos. Bateson inova na medida em que, até então,

se falava das psicoses como vindas de um aspecto orgânico ou hereditário. As

comunicações analógica e digital podem se desencontrar na medida em que

funcionam como padrões que estão o tempo inteiro se repetindo mas são

contraditórias – o que é dito verbalmente não corresponde ou contradiz as

expressões e reações.

A criança não consegue fugir às mensagens contraditórias e fica

totalmente submetida àquela condição _ é o que acontece com o psicótico. Até

que se chegasse a essa visão, não existia ainda nenhum trabalho com a doença

mental no campo familiar. É Bateson que vai introduzir essa visão sistêmica –

se existe um elemento doente é porque todo o sistema está doente. Isto é

completamente diferente daquela postura familiar antes conhecida – tem um

membro doente? Isola. A teoria sistêmica está preocupada com os padrões de

comunicação – como é que se dão as relações no interior das famílias,

principalmente quando, na família, tem um membro esquizofrênico. Porque se

considera que a dimensão histórica da família é fundamental é que se entende

que há uma intersecção de fatores passados e atuais co-determinando algum

comportamento patológico.

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CONCLUSÃO

Dada a complexidade e envolvimento do tema escolhido, torna-se

necessário reconhecer que uma série de articulações foram apenas

mencionadas, uma vez que desdobra-las seria algo em torno do impassível,

para uma pesquisa que se propõe ao limite do curso.

Sabemos que o tema comporta inúmeras abordagens, podendo ser

investigado e debatido por diversos saberes. São discursos médicos,

pedagógicos, políticos, econômicos, psicopedagógicos, abordagens

psicológicas e psicanalíticas que pesquisam, discutem e trazem à luz conceitos

e conhecimentos inovadores e promissores para as experiências ainda tão

inóspitas sobre o adoecer psíquico.

A investigação foi iniciada buscando trilhar um pouco no caminho da

história da loucura, porque se considerou esta caminhada de fundamental

importância para o conhecimento das contribuições que saberes vários foram

acrescentando às implicações históricas, sociais e culturais que atravessam o

que hoje se conhece como doença mental.

Assim, a intenção foi procurar entender e refletir a problemática da

doença mental, bem como conhecer as implicações relacionadas a esse

fenômeno, e a trajetória das políticas de atendimento ao paciente. Para isso,

usou-se como ponto de referência as diferentes visões culturais da loucura que

acabaram por determinar as variadas formas da intrincada relação

loucura/família/sociedade e que estão, sem a menor dúvida , embutidas nas

diferentes formas de conceituar e tratar a loucura.É nesse ponto que muitas

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questões se colocam ao fim desta pesquisa e que podem estar na base de tudo

o que tem sido feito, pensado e experienciado sobre a loucura.

Uma questão que nos parece bastante pertinente para iniciar esta

conclusão diz respeito aos mecanismos, tão presentes na condição humana,

pelos quais os indivíduos são predispostos mentalmente para a aceitação e

reprodução de crenças.

Sabemos que desde o apogeu grego, o legado cultural trazido ao longo

da história carrega em seu bojo a possibilidade de povoar o imaginário

humano com uma gama imensa de mitos e crenças a partir dos quais muitas

reações e atitudes se estabelecem.Daí porque a loucura, nas diferentes épocas

e culturas, viu-se, ora livre, ora aprisionada, ocupando, como ainda se vê, uma

posição de passividade frente ao saber.saber esse que permanece devedor em

relação à doença mental, pois o que se pôde ver nesta pesquisa, é que a

loucura, durante toda a história da humanidade, mantém-se como um enigma

para os que estudam sobre os distúrbios mentais. Observa-se também que,

ainda hoje, a ciência padece de suas pechas, porque incapaz de dar respostas

claras às inquietações que se nos colocam os fenômenos apresentados pela

doença mental.

Pode-se abrir a lista dos comentários conclusivos, falando sobre a

família, – essa organização ou grupamento social – atravessado por uma

organização maior – a sociedade que como uma rede de instituições

articuladas, gerencia e ordena a vida dos homens sobre a Terra. A família é

pois uma organização onde instituições abstratas – jurídica, laboral,política,

religiosa, moral, pública, privada , se manifestam e deixam marcas.

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Na sociedade moderna ocidental, cuidar da família tornou-se uma tarefa

extremamente complexa e difícil em virtude das muitas exigências e deveres a

que os pais estão submetidos no que diz respeito à educação, à formação das

crianças até a idade adulta. Pais precisam estar constantemente informados e

atentos aos mínimos detalhes, aos menores desvios que envolvam o

desenvolvimento emocional, escolar, sexual, etc. Essa importância da família

como núcleo de relações e afetos fazem-na a construtora da personalidade e o

principal elo de mediação entre o indivíduo e a sociedade. Daí porque, o

adoecimento de um de seus membros representa, em geral, um forte abalo.

Para a maioria das pessoas a enfermidade significa uma grande ruptura na

trajetória existencial. Muitos familiares não estão preparados para enfrentar

os problemas, não sabem como agir. Encarando as dificuldades, tentando

explicar o aparecimento da doença, essas pessoas mergulham na turbulência

de suas dúvidas e conflitos.

Uma enfermidade mental gera muita tensão, estimula sentimentos de

impotência e vitimização, alimenta amarguras. O surto psicótico de um

familiar rompe e desorganiza a vida de muitas famílias. O evento representa,

de certa forma, o colapso dos esforços, o atestado da incapacidade de cuidar

adequadamente do outro, o fracasso de um projeto de vida, o desperdício de

muitos anos de investimento e dedicação.

A doença mental continua sendo, com freqüência, motivo de muita

vergonha para os familiares. E isto,sabemos, constitui-se num fator

preponderante no tratamento e trabalho de ressocialização, uma vez que esse

processo será talhado a partir das ações e atitudes da família e da sociedade

pois, a dinâmica familiar em torno do doente tanto pode limitar e distorcer

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como encorajar, facilitar e potencializar o desenvolvimento das capacidades

de estruturação do doente.

Na maioria das vezes, a primeira tentativa de tratamento que a família

busca é apenas médico-psiquiátrica e quase sempre essa tentativa é vivenciada

de maneira negativa e violenta por parte de todos os membros, desmotivando

e dificultando futuras possibilidades de tratamento. Além do que a experiência

frustrada com a psiquiatria acaba reforçando, de certo modo, a impotência e a

exclusão.

O que, por fim, se constata nesse estudo correlação à família e a doença

mental é que os aspectos objetivos e subjetivos dos familiares, assim como as

maneiras de lidar com as dificuldades, são decisivamente influenciadas pelos

valores e representações a cerca da loucura presentes em um determinado

momento histórico. Cada indivíduo, família ou comunidade apresenta formas

de olhar os fenômenos do mundo, que são reflexos de contextos culturais,

religiosos, ideológicos, econômicos ,etc.

Já foi muitas vezes observado que os significados e representações

sobre os transtornos mentais podem não ser compartilhados igualmente por

todas as pessoas que vivem numa mesma casa, o que resulta em diferentes

atitudes e vivências ante os problemas.

No relato dos familiares salta aos olhos a presença de um intenso

sentimento de culpa. Nesse sentido, um dos caminhos a ser explorado na

tentativa de seguir os rastros da culpabilização dos familiares aponta para o

processo de constituição da chamada família nuclear sentimental moderna.

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Uma das hipóteses a ser investigada busca articular a extrema

valorização e intensificação da família moderna, o fechamento da família

sobre se mesma, com os processos de culpabilização de seus membros. A

nossa sociedade ocidental investiu e idealizou intensamente o núcleo familiar.

Já que a família é tudo, também é responsável por tudo. Se tudo se remete à

família, tudo é culpa da família.

Entender o lugar especial da família nas sociedades ocidentais, e

conhecer o processo histórico e social que resultou numa estrutura familiar

com uma série de características e funcionamentos, pode contribuir para uma

análise mais rigorosa sobre as vivências dos familiares de pacientes com

transtornos mentais.

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