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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Maurício Neves Corrêa
Belém-Pará
2013
Maurício Neves Corrêa
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Dissertação apresentada à Banca
examinadora da Universidade da
Amazônia. Mestrado em Comunicação
Linguagens e Cultura. Linha de
pesquisa: Linguagem e Análise
Discursiva de Processos Culturais.
Orientadora: Profª. Drª. Marisa Mokarzel
Belém-PA 2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819
306.08 C824a Corrêa, Maurício Neves. Os Aikewára e a mídia: relações de poder, cultura e
mediação / Maurício Neves Corrêa. – Belém, 2013. 122f. il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,
Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013.
Orientador: Profª. Drª. Marisa Mokarzel.
1. Sociedade indígena. 2. Cultura indígena-novas tecnologias. 3. Aikewára-mídia. 4. Índios Aikewára-inclusão digital. I. Mokarzel, Marisa. II. T.
Maurício Neves Corrêa
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________________
Presidente/orientador: Profª Drª Marisa Mokarzel (UNAMA)
_____________________________________________________________________
Professora Drª Maria do Rosário V. Gregolin (UNESP/Araraquara)
_____________________________________________________________________
Professor DrºAgenor Sarraf (UFPA)
_____________________________________________________________________
Professor Drº Nilton Milanez(UESB)
Resultado _____________________________________________________________
Belém, __________/ _________/ 2013
Dedico este trabalho às crianças da Terra Sororó e à
Arihêra Suruí e os ou 32 Aikewára que resistiram.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às energias boas que me envolvem, estas bolinhas de luz que
não posso ver, mas posso sentir.
À minha orientadora, que me levantou quando eu estava em fragmentos
e pouco a pouco foi me pincelando com leveza. A Marisa cerziu minha
dissertação com delicadeza, com todo cuidado para as agulhas não
machucarem. Sempre quando eu, exasperado, corria até ela, me recebia com
um sorriso e um abraço que me deram a paz e a confiança para terminar esta
etapa, passar por este Caminho.
À Arihêra Suruí, por ter divido comigo suas histórias e confiado a mim o
trabalho de registrá-las. Eu nunca vou esquecer. Lembro todos os dias da
Terra Sororó e daquela senhora doce, que apesar de tudo o que sofreu, me
ensinava os caminhos da floresta com ternura e carinho. Um dia vamos nos
reunir novamente e sob o céu estrelado, olhar mais uma vez o Tapi’i’rapé...
Às crianças Aikewára, pelo olhar, que eu guardo e me faz sonhar com
um mundo melhor.
Aos Karuwara.
Aos meus amigos Umassú, Api, Murué, Moreyru, Tonin, Taraí, Sari,
Hércules, Tiapé, Sawarapi, Arikassu, Maria e Nego.
À Rosario, por tudo que me ensinou. Tentei mil coisas e palavras para
colocar aqui, mas nada parece suficiente. Ela é uma fada? Uma bruxinha do
bem? Ela existe mesmo? Lembro que um dia desses qualquer, normal, chato,
eu tava numa plateia todo murcho com a vida. Escutei uma voz forte... Depois
veio o raio, cheio de luz e de força. Naquele dia, ainda tinha dúvida do que
queria ser quando crescer. Quando eu ficar com o pescoço mais firme, quero
ser parecido com a Rosario e aprender mais e mais com seus poderes, seus
saberes e os seus cuidados de si e dos outros. As pessoas, os alunos que ela
cuida no Brasil inteiro voando com suas asinhas e seus livros...
Ao Nilton, pelas conversas que tivemos e pelos ensinamentos sobre a
imagem em movimento. O Nilton além de ser um amigo é uma referência e
uma inspiração.
Ao professor Agenor que foi fundamental neste trabalho. Devo a ele
muitas das leituras e dos pensamentos que dialogam nesta pesquisa. Agora eu
vejo como aquelas aulas até meia noite foram preciosas.
Às professoras do mestrado; a querida Neusa, à Andréa e à Wilma .
À Alda Costa por todos os momentos que dividimos, seja na aldeia ou na
Universidade.
A todos os professores desde o jardim até a graduação.
À Universidade da Amazônia, por toda a trajetória que tive na instituição,
desde a graduação até o mestrado.
À Capes por todo o apoio.
À Fidesa.
Ao Michael Foucault, por tudo que escreveu e pelas aulas ditas e
escritas.
Aos meus amigos que me aturaram e deram força nestes dias, noites e
madrugadas, felizes ou tristes: Larissa, Vivian, Adelaide, Tiago, Andréa,
Angelina, João, Vanessa, Laura, Carol, Carla, Gabriela, Phellippey, Paulo,
Rodolfo, Andreh Igor, Eliezer, Rodrigo Ig, Spok, Márcia, Kamila, Daniela,
Renata, Michelle, Nassif,Wilton, Thais, Andrei, Rafael, Roberta, Victor e Néia.
Ao Élito BG, por ter emprestado a sua voz aos Aikewára.
Aos meus colegas de turma no mestrado.
Ao querido Ricardo Catete in memorian. É tão estranho você ter partido!
Ricardo foi o melhor aluno, o amigo da turma, em todos os trabalhos, tem um
pouco dele. Foi um privilégio para todos nós do mestrado ter convivido com
uma pessoa tão boa e talentosa. Ricardo, agradeço por ter te conhecido e visto
as apresentações mais bonitas e criativas que só você sabe fazer.
Aos amigos do grupo de projeto de pesquisa Narrativas Orais Tupi na
Amazônia Paraense: performatividade: Adriana Azevedo Joel Pantoja,
Valquíria Lima por tudo o que passamos nestes anos.
Ao Pedro Leal, meu amigo, parceiro de todas as horas. O Pedrinho
estava sempre lá. Os filmes e tudo o que produzimos é marcado pela
criatividade e a bondade do Pedrinho. Obrigado, irmãozinho, por cuidar de
todos nós. Que este coração imenso continue sempre assim, cheio de luz!
À Shirley Penaforte, por todas as conversas e pela grande amizade que
construímos ao longo destes anos. Ela me perturba, me enche, mas é
“brodi”(tá nem sempre). Te adoro Penafraca!
À Dilza, o Rodrigo, a Karol e à pequena Juliana, por cuidarem do papai e
por tudo o que vivemos.
Ao meu padrinho Tadeu, ao Rodrigo, à Sol, à Raiara, ao tio Jr, ao tio
Mário.
Ao meu primo Kléber, que partiu deste plano, mas que me deixou tantas
coisas boas. Guardo comigo com todo cuido a suas palavras e a sua alegria.
Muito obrigado, meu primo, meu irmão, pelo amor que nos une esteja você
onde estiver.
Aos meus compadres por todos estes anos de amor e amizade e por
terem nos presenteado com bebezinha mais linda e amada.
À minha afilhada Maria Cecília, que eu tanto amo.
Ao meu primo Gil, meu irmão, que dividiu comigo esta jornada na Aldeia.
Esta pesquisa não seria possível sem ele. Obrigado por estar comigo neste
momento tão especial.
À minha querida Lariza. O tempo que passamos juntos está vivo no meu
sorriso. Obrigado por cada segundo! Por ter segurado a minha barra no
momento mais difícil. Nossos caminhos se separaram, mas o carinho vai durar
até o silêncio me abraçar. Obrigado pelo amor...
À minha avó Lindalva, por seu grande coração. Por ter cuidado de mim
com tanto amor, por ter estado ao meu lado quando ninguém acreditava em
mim. Minha vó amada.
Ao meu pai, não existe homem que eu mais admiro. O nosso amor é tão
forte, que nada o abala. Obrigado, papai, por todo o incentivo, por todo o
carinho, por todo aprendizado. Ele não usa capa, mas é meu herói. Obrigado
por ser essa pessoa que tu és, firme como um aço e doce e tolo como uma
criança. Te amo.
À minha avó Ivone, porque, independentemente do que aconteça, eu
sempre vou estar protegido pelo carinho e pelo amor do colo da minha avó,
minha votitinha. E todos os dias, mesmo quando eu não estou com ela, ainda
posso sentir a vovó fazendo tranças no meu cabelo e dizendo que tá hora de
cortar. Eu a amo tanto, tanto! Se eu pudesse, passava todos os dias ao lado
dela. Obrigado por todos estes anos de amor! Obrigado pela dedicação, por
gostar tanto de mim, por me embalar, pelos cuidados que só a senhora
tem comigo!
À minha mãe, porque ela é minha voz, meu horizonte. Não houve
pessoa que sofreu mais e vibrou mais comigo. Ela é a minha poesia eu rego as
flores que ela espalha pelo caminho, sempre cuidando do seu jardim. Protejo
os sonhos dela, porque eu sonho junto. Obrigado por abrir as portas de casa
pra mim, obrigado por me amar e pela paciência! Por me abraçar e me acolher.
Obrigado por tudo que você me ensinou e até pelos espinhos do caminho. Vou
estar sempre ao seu lado regando seus sonhos e suas flores...
“Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão”
Eu te amo minha mãe.
RESUMO Esta pesquisa analisa os resultados do projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição
e nas novos tecnologias na escola e a relação dos Aikewára com a mídia. Uma nova
frente de contato a que está exposto o povo indígena Aikewára: a chegada nada pacífica
da mídia a Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos teóricos precisam chegar a esta
nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e os aspectos econômicos a que
está submetida esta sociedade e que já foram bastante discutidos pela antropologia, mas
que devem ir um pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que
demanda novas categorias de análise. O objetivo deste trabalho é compreender, a partir
da análise das relações de poder da Análise do Discurso e dos estudos de mediação
propostos pelos Estudos Culturais e dos estudos de Fricção Interétinica, como se
constitui a história do presente entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos
meios de comunicação, mas mostrar que existe pontos de fuga, de produções de novos
sentidos, como o projeto Crianças Suruí-Aikewára.
Os Aikewára, também conhecidos como Suruí do Pará e Suruí-Aikewára, são índios
castanheiros que moram no sudeste do Pará entre os municípios de São Domingos e São
Geraldo do Araguaia. “Suruí” foi uma denominação imposta pelo não índio. Este
povo tupi vive na Terra Indígena Sororó, um grande quadrado de floresta preservado em
meio à devastação.
Em meados dos anos de 1960, os índios Aikewára sofreram uma grande depopulação
após o contato sistemático com a população das cidades vizinhas e chegaram a 33
índios. Apesar de duramente perseguidos por fazendeiros e madeireiros da região, além
de surtos de gripe e varíola, os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte
dos não-índios, neste processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua
alimentação, suas regras matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o
rumo da história e da cultura desta sociedade indígena. Segundo o último senso da
Aldeia, os Aikewára somam mais de 300 índios, sendo que a maioria são crianças e
jovens.
Palavras-Chave: Discurso, Cultura, Aikewára,Sociedades indígenas.
ABSTRACT
This study analyzes the results of the project “Children Suruí-Aikewára: between
tradition and the new technologies in school” and the Aikewára relationship with media.
A new front of contact that it is exposed to the Native American people Aikewára: the
arrival of the media to nothing peaceful to the Sororó land. Clashes theorists need to
reach this new frontier, they cannot ignore the history and economics that is subject to
this company and have already been extensively discussed by anthropology, but that
should go a little further, because they speak from a reality mediatized, which requires
new categories of analysis. The objective of this work is to understand, from the
analysis relations of power of discourse analysis and studies of mediation proposed by
cultural studies and studies Friction Interétinica, as is the history of this Aikewára
between arrival and systematic and violent of the media, but show that there is
vanishing points, productions of new meanings, as the project Children Suruí-Aikewára.
The Aikewára, also known as Pará Suruí and Suruí-Aikewára, chestnuts are Native
People to live in southeast Pará between the cities of Santo Domingo and Sao Geraldo
do Araguaia. "Suruí" was a name imposed by no-native. This Tupi people living in
Sororó Land, a large square of forest preserved amid the devastation.
In mid-1960, the Aikewára suffered a great depopulation after systematic contact with
the population of nearby towns, and arrived to 33 Aikewára. Although harshly
persecuted by ranchers and loggers in the region, as well as outbreaks of influenza and
smallpox, the Aikewára resisted. There was too much interference by non-native, in this
case, which sought to change their religious practices, their food, their marriage rules,
etc.. This moment has definitely changed the course of history and culture of this Native
American society. According to the last census of the village, the Aikewára total more
than 300 Indians, most of whom are children and youth.
Key Words: discourse, culture, Aikewára, Native American People .
SUMÁRIO
Apresentação Capítulo 1 - Novas frentes de contato entre os índios Aikewára: Modernidade, Ficção e Poder 1.1. Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso, devastação e guerra 1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates 1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma moderna Amazônia colonial à flor da Terra
1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo 1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára. 1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó 1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na
l Capítulo 2 - Os Aikewára, a floresta e uma filmadora: a construção do cinema da Casona. 2.1 Entre histórias, castanha e estrelas. 2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades. 2.2.1 A oficina de nutrição. 2.3 O primeiro filme Aikewára. 2.4 O cinema da Casona
2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia. 2.6 O Sapurahai Karuwara. 2.7 As novas tecnologias e a apropriação 2.7.1 A oficina de fotografia. 2.7.2 A ultima viagem Capítulo 3 Memória, identidade e mídia: os Aikewára na imagem em movimento. 3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára: estrelas de TV?
3.2 Silenciamentos da televisão.
Considerações finais Referências
14 23
25
28 30
43
50 53 59
60 64 69 70
73 76 83
89 91
94 98
107
112
39
116 119
ÍNDICE DE FIGURAS Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil
Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”
Imagem 03. Cena do filme coluna norte
Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.
Imagem 05 cena do filme Bye,Bye Brazil
Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth
Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth
Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
Imagem 09 . Terra Sororó
Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel
Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.
Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
Imagem 13. Cartaz Aikewára
Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o Tapi’i’rapé
Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e Ywyratynga.
Imagem 16. Terra Indígena Sororó
Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.
Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme “A comida Aikewára”
Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"
Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier
Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier
Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier
Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára
Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé
Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.
Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.
Imagem 28 . Menino Aikewára
Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel
Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa
Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara
Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.
Imagem 34: Oficina de fotografia
31 34
34 35 37 40 40 41 42 43 51
52 55
60 61
62 67 68 69 72
73 75 76 78
81 82 83 85 86 88 90 91
Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí
Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí
Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.
Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.
Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.
Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial
Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára
Imagem 44 . cena do filme Sapurahia
Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa
Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional
Imagem 47. Taraí no JN
Imagem48. Cena do JN
Imagem 49. Cena do JN
Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier
Imagem 51. Takes JN.
Imagem 52. Umassú no JN
92 93
94 95
100
101
102 103
104 104
105 108 109 110 110 113
114 114
14
Apresentação
Se só houvesse submissão, não haveria produção
de novos sentidos.
Rosario Gregolin
Arihêra Suruí, uma senhora do povo indígena Aikewára, disse certa vez, numa
de nossas longas conversas, que ela queria guardar uma história de sua mãe num filme.
Ela contou que queria que a neta da neta dela soubesse como se fazia a rede tradicional
antigamente. Arihêra supunha, que apesar de eles terem boa memória, assim ela poderia
guardar esta história, para eles não perderem mais.
No ano de 2010, durante a realização do projeto “Crianças Suruí-Aikewára:
entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, várias vezes estive com os índios
Aikewára, na Terra Indígena Sororó. Durante este período pude conhecer um pouco da
história deste povo, em várias conversas com Arihêra, pude compreender o porquê da
preocupação dela em “guardar” suas histórias em vídeos.
A história recente dos Aikewára é profundamente marcada pelo contato deles
com as populações das sociedades vizinhas. Esta integração deles ao mundo ocidental
foi violenta, e mesmo no presente, ainda é tensa, conflituosa. As práticas culturais deste
povo foram profundamente alteradas, quando sistematicamente foram inseridos na
nossa sociedade.
Em meados dos anos de 1960, quando se estabeleceu o contato, os Aikewára
sofreram uma grande depopulação, chegaram a 33 índios. Apesar da implacável
perseguição por fazendeiros e madeireiros da região, além de surtos de gripe e varíola,
os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte dos não índios, neste
processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua alimentação, suas regras
matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o rumo da história e da cultura
desta sociedade indígena.
Isto explique talvez, as motivações de Arihêra em querer guardar suas memórias,
pois novas formas de subjetivação estão em funcionamento na aldeia Aikewára. Este
trabalho, que começo a tecer, é resultado da pesquisa que eu e um grupo interdisciplinar
de pesquisadores fizeram entre eles, com o objetivo de buscar pontos de fuga e
resistência, estratégias de apropriação da cultura Aikewára pelas novas tecnologias da
informação.
15
Na primeira metade do século XX, as pesquisas com sociedades indígenas, no
Brasil, passaram a se delinear pelo estudo das línguas indígenas, que ainda hoje
privilegiam os aspectos descritivos das línguas, na linguística e pelas abordagens das
teorias culturais, que num primeiro momento, produziram uma série de trabalhos
voltada para os aspectos estruturais destas sociedades, preocupados com as estruturas
sociais, relacionadas à organização do parentesco e à religião, profundamente
influenciadas pela antropologia estrutural.
Havia pouca preocupação em entender como acontecia o contato entre as
sociedades indígenas e a sociedade envolvente. A maior parte destes trabalhos ignorava
o estado de guerra em que se desenhavam estas fronteiras. Não é e nunca foi pacífico o
contato e esta situação não é uma particularidade das terras baixa da América do Sul.
Nas Cruzadas da Idade Média ou no Iraque de nossos dias, a belicosidade do contato
está nas armas, mas também encontra um campo de batalha nada pacífico no campo
discursivo e a mídia ocupa um papel vital nestas relações, legitimando discursos,
silenciando outros.
A partir dos anos de 1950, os trabalhos realizados por Roberto Cardoso de
Oliveira e toda a geração de pesquisadores que ele orientou e influenciou, procuraram
mostrar que além dos aspectos estruturais, tão caros aos primeiros estudos de
antropologia realizados sobre as sociedades indígenas, as frentes de contato a que elas
foram submetidas deveriam ser compreendidas com novas ferramentas de análise. As
definições importadas da Europa de “aculturação” ou “mudanças culturais” passaram a
ser contestadas por RCO1 e não davam conta das singularidades que o contato
representava nas histórias destes povos. É a partir desta perspectiva que tem início uma
das mais importantes e discutidas definições da antropologia brasileira: a fricção
interétnica.
Chamamos de “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e
segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos
competitivos, assumindo este contato muitas vezes proporções
“totais”, isto é, envolvendo toda a comunidade tribal e não-tribal que
passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto,
esta situação pode apresentar as mais variadas configurações, todas
elas definidas pelas características anteriormente mencionadas. Desse
modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de
expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão
aspectos específicos. (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174)
1 RCO é uma abreviação usual em livros e artigos de antropologia para Roberto Cardoso de Oliveira
16
No final dos anos de 1950, com o objetivo de sistematizar a análise sobre o
processo de contato entre os índios da Amazônia e a sociedade nacional, RCO
organizou, pelo Museu Nacional, o projeto Estudos de Áreas de Fricção Interétnica.
Deste projeto fizeram parte Roque de Barros Laraia e Roberto DaMatta. Os dois se
destinaram a estudar os índios do Médio Tocantins, envolvidos com indústria extrativa
da castanha. Laraia se dedicou a dois grupos Tupi: os Suruí-Aikewára e os Assurini e
Roberto DaMatta a um grupo Jê, os Gavião-Parakatejê . Deste trabalho resultou o livro
Índios e Castanheiros: a empresa extrativa do Médio Tocantins (Laraia e DaMatta,
1978).
Contactados sistematicamente no século XX, os Assurini e os Parakatejê
mantiveram relações com a sociedade nacional nos anos de 1920, enquanto os Aikewára
se mantiveram arredios até 1952 (Laraia & DaMatta,1978:45). Seus contingentes
populacionais já eram pequenos, mesmo antes do contato, em função de divisões
internas e guerras com outros grupos indígenas. Com o contato, o número de mortes
levou estes povos indígenas a um continente populacional de menos de 40 índios em
cada grupo.
Embora a extração da castanha, realizada pelos três grupos, constituísse o
principal atrativo da sociedade nacional, o contato se deu de formas diferentes: Os
Parakatejê se assumiram como os donos de seus castanhais, enquanto os Asuriní e os
Aikewára acabaram sob o julgo dos comerciantes. De qualquer forma, embora hoje os
Parakatejê sejam considerados os “índios ricos” da região, o resultado visível, àquela
época, não os colocava em uma situação de miséria muito diferente. O cenário era tão
caótico no início dos anos de 1960, que DaMatta e Laraia chegaram a anunciar o
extermínio destas sociedades.
Dos três grupos, o que menos sofreu com brigas internas foram os Aikewára. A
estabilidade do grupo proporcionava uma reação mais amistosa diante dos estranhos. A
resistência ao contato se devia mais ao receio do cacique Musena e só a partir de sua
morte, em 1952, eles se aproximaram da sociedade nacional (Laraia &.DaMatta, 1978:
81/85).
A contribuição de Índios e Castanheiros (Laraia &.DaMatta, 1978) ao projeto
Estudos de Áreas de Fricção Interétnica, deixa ver como contatos interétnicos, ainda
que sejam estabelecidos por uma mesma frente econômica, não são regidos por uma
sequencia linear de acontecimentos. RCO conclui no prefácio da primeira edição
(Laraia & DaMatta, 1978, 46):
17
[n]este processo de integração ou de marginalização econômica,
Roque de Barros Laraia e Roberto da Matta mostram qual o papel de
duas variáveis importantes da situação de fricção interétnica: o caráter
específico da frente nacional que encontrou e submeteu as populações
indígenas; e o caráter da cultura tribal alcançada por esses segmentos
da sociedade em expansão.
A análise aqui apresentada está num espaço teórico que muito se aproxima da
definição de fricção interétnica, já que trata de uma nova frente de contato: a chegada
nada pacífica da eletricidade e da Mídia à Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos
analíticos precisam chegar a esta nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e
os aspectos econômicos a que está submetida esta sociedade, mas que devem ir um
pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que demanda novas
referências teóricas.
Nos nossos dias, o pensamento ocidental pôde multiplicar os lugares de onde se
olha para estas relações. Durante a maior parte do tempo, a história destas relações de
contato dos povos indígenas foi oficializada por um único foco narrativo, hoje, no
entanto, além dos trabalhos de alguns pesquisadores não índios, alguns poucos
indígenas já chegaram às universidades e começam a mudar a direção das pesquisas.
Por outro lado, as atuais teorias da cultura, ainda que continuem irradiadas pela Europa
e pelos Estados Unidos, já construíram novos caminhos e é possível falar em
Antropologia Brasileira ou Estudos Culturais Latino-Americanos.
No ano de 2009, foi aprovado o projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a
tradição e as novas tecnologias na escola, coordenado pela linguista e antropóloga
Ivânia Neves e pela jornalista Alda Costa, professoras doutoras da Universidade da
Amazônia (Unama), o projeto foi um dos selecionados pelo Criança Esperança da Rede
Globo em parceria com a UNESO. O projeto atendeu mais de 100 jovens entre 5 e 18
anos. Ao longo do projeto foram produzidos 6 filmes e 3 livros didáticos para escola
Aikewára. O objetivo destes materiais era conciliar a tradição cultural dos Aikewára
com as novas tecnologias, de tal maneira, que servissem de apoio à estrutura de ensino.
Também foi criado o “aikewara.blogspot.com” além de uma série de artes, banners e
cartazes.
Fui um dos bolsistas selecionados para participar deste projeto, e entre o final de
2009 e o início de 2011, várias vezes estive em Sororó. Participei intensamente na
elaboração destes materiais. Por ter uma formação em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, dirigi e co-dirigi os filmes, além de ter participado
ativamente na edição dos livros e na construção do Blog. Por ser um projeto de pesquisa
18
e extensão de uma universidade, havia uma preocupação acadêmica e social na
elaboração destas materialidades.
O projeto alcançou segundo alguns Aikewára, como Tonin Suruí, um resultado
muito positivo: “As crianças começaram a valorizar mais a nossa cultura depois que
vocês chegaram com esses filmes, não só elas, mas toda a aldeia”. Relatou o jovem
Aikewára, numa de minhas viagens à aldeia. O que motivou a existência deste projeto
foi a situação em que os Aikewára se encontravam à época. Muitas casas em Sororó, já
possuíam televisões e outros equipamentos como o rádio, mas quase nada da cultura
Aikewára havia sido (re)produzido ou transportado para estas materialidades. Isto criava
um conflito entre as gerações, uma crise de identidade, por todo o processo de contado.
As crianças de Terra Sororó estavam expostas a estes dilemas.
É importante deixar claro, nunca tivemos a pretensão de resgatar a cultura
Aikewára, ela nunca esteve perdida. O nosso objetivo era valorizar esta cultura através
destes filmes e livros. Nossa intenção era pensar numa mediação das tradições
Aikewára com estas novas tecnologias, que já eram uma realidade na Aldeia. Não
fomos nós que levamos a primeira televisão à Sororó, tão pouco, este processo é
necessariamente maléfico. O uso destas tecnologias é que vai determinar seus impactos,
benefícios ou degradações.
Esta integração violenta dos Aikewára tem como um dos principais focos de
conflito as mídias. Analisar as estratégias, as tácticas Aikewára a partir da mídia é o
objetivo deste trabalho, um relato de pesquisa, onde analisarei como os saberes
produzidos pelas materialidades midiáticas, criam poderes que alteram as relações como
as práticas de si, remodelando as manifestações, os corpos e as identidades. Como as
relações de poder agem, silenciando ou dando escuta aos Aikewára. Proponho uma
arquegenealogia da construção das identidades Aikewára a partir das produções
midiáticas produzidas pelo projeto e por outras instituições. Para Foucault (2007:172):
A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é,
torná−los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um
discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos saberes
locais − menores, diria talvez Deleuze − contra a hierarquização
científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o
projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a
arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a
genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim
descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta
discursividade. Isto para situar o projeto geral.
19
Segundo Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de
Michel Foucault, o discurso é tomado como uma prática social, historicamente
determinada, que constitui os sujeitos e os objetos”. As produções da mídia da/sobre a
sociedade Aikewára, materialidades discursivas construídas historicamente, colocam em
circulação identidades, estereótipos, geram novos efeitos de sentido.
A partir desta perspectiva teórica, esta arquegenealogia, aqui proposta, em
colocar em luta os saberes produzidos pelas diversas produções da mídia sobre o povo
Aikewára, observando o lugar histórico de onde eles falam. De que forma os saberes
desta cultura são tratados pelas produções não ficcionais como reportagens e
documentários? Para Gregolin (2008:12), a função do arquegenealogista é “interpretar
ou fazer a história do presente”. Este procedimento consistiria em mostrar que “as
transformações históricas foram as responsáveis pela nossa atual constituição como
sujeitos objetiváveis por ciências, normalizáveis por disciplinas”.
Este trabalho fala de um lugar ainda novo em relação às sociedades indígenas,
pois procura compreender, a partir da análise das relações de poder da Análise do
Discurso e dos estudos de mediação propostos pelos Estudos Culturais e pelo projeto de
fricção Interétnica da Antropologia Brasileira, como se constitui a história do presente
entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos meios de comunicação. Mas,
além disto, a motivação é mostrar que existe a fuga e não apenas a submissão, é mostrar
que apesar de toda a perseguição e violência deste processo, foi possível a cultura
Aikewára se apropriar de novas tecnologias para se fortalecer.
A difícil conciliação entre autores de diferentes correntes é um exercício penoso,
porém, todas estas correntes estão empenhadas em estudar os sujeitos e formas de
deslocar as histórias do centro, colocar em dúvida as estratégias de dominação e apontar
para novos rumos na margem, outras histórias que possibilitem a fuga, a resistências.
O primeiro capítulo é dedicado a analisar como a história do presente, se
(re)produz na Terra Sororó, na Amazônia Brasileira, uma região que a partir de uma
modernização/colonização ocorrida a partir da metade do século XX é rasgada por
estradas e grandes projetos. A partir do Pensamento Liminar, proposto por Walter
D.Mignolo, apresento uma modernização amazônica como a outra face da colonização
da região. A partir da análise de alguns vídeos produzidos pelo Estado Brasileiro para
publicizar seus projetos na região, apoiado pela analítica do poder de Michel Foucault e
pelos dos estudos de Mídia e Discurso de Maria do Rosario Gregolin, mostro como a
mídia participou deste processo, produzindo efeitos de sentido que legitimavam a
modernização/colonização.
20
A partir das memórias subterrâneas das narrativas orais Aikewára, mostro como
este povo indígena se viu neste processo de modernização/colonização da Amazônia,
pelo o qual a Terra Sororó passou. Como se deu fricção interétnica entre eles e a
sociedade nacional. Seria a mídia uma frente de fricção? Procuro analisar como as
novas frentes de contato entre os Aikewára e a sociedade envolvente são mediadas e.
em que condições de produção elas se estabelecem. Termino o capítulo com a chegada
da eletricidade à aldeia e suas consequências imediatas.
No segundo capítulo, vou fazer um relato de pesquisa, meus primeiros contatos
com os Aikewára, as motivações, o objetivos e as conclusões do projeto Crianças Suruí-
Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola. Como se deu a criação do
cinema Aikewára e quais os desafios enfrentados, tanto na parte cultural como criativa.
Utilizo os estudos de Jesus Martin-Barbero sobre as mediações e as novas
tecnologias e procuro mostrar de forma empírica a apropriação de novas tecnologias
pela cultura. Como foi possível à cultura Aikewára se apropriar de vídeos, CDs livros e
outras materialidades para negociar as fronteiras de identidade.
No capítulo a partir das análises de Mídia, Discurso e identidade de Rosário
Gregolin e das considerações de Michel Foucault sobre poder e discurso, além dos
estudos de imagem e memória de J.Jacces Courtine e Nilton Milanez , analiso como as
materialidades produzidas pelo projeto e por outras mídias, colocaram novas formas de
funcionamento de poder em ação, dando novas formas de negociação dos Aikewára
com suas identidades a sua própria cultura. Como se dá o embate neste campo, no que
diz respeito às identidades Aikewára. Procurei analisar qual o impacto dos filmes, sobre
a cultura Aikewára e as estratégia que este povo usa para resistir às pressões impostas
pelos efeitos de sentido veiculados pelas mais diferentes mídias. O que foi silenciado e
o que ganhou escuta na mídia?
Este trabalho de pesquisa que apresento faz parte de um projeto maior e outros
pesquisadores participaram deste processo. Então, divido com eles a autoria da
pesquisa, um grupo de pessoas preocupadas em fazer pesquisa na Amazônia, mas de dar
a estas pesquisas um sentido social, ao longo desta dissertação, trarei suas vozes ao
texto. Este é um trabalho em conjunto, e agora, começo meu exercício de memória e
análise.
Existe uma inquietude de minha parte com tantas questões perturbadoras na
região Amazônica. Uma brutal desigualdade social, que ainda hoje, atualiza o sistema
colonial, enquanto a floresta queima. Esta inquietação é minha motivação, seja como
21
jornalista ou como pesquisador. As estratégias dos sujeitos amazônicos para enfrentar as
dificuldades nesta região tão grande como plural me levam a escrever, filmar, produzir.
22
23
Capítulo I
Novas frentes de contato entre os índios Aikewára:
Modernidade, Ficção e Poder.
Pensando a mídia como prática discursiva, produto de linguagem e processo
histórico, para poder apreender o seu funcionamento é necessário analisar a
circulação dos enunciados, as posições de sujeito aí assinaladas, as
materialidades que dão corpo aos sentidos e as articulações que esses
enunciados estabelecem com a história e a memória. Trata-se, portanto, de
procurar acompanhar trajetos históricos de sentidos materializados nas
formas discursivas da mídia.
(Rosário Gregolin)
A mídia tornou-se nos últimos anos, um dos principais palcos de batalha entre os
Aikewára e a sociedade envolvente, a chegada das parabólicas, foi mais um dos
aspectos da fricção interétnica entre eles e a sociedade nacional, na medida em que foi
um importante dispositivo de conflito das práticas culturais e das negociações das
identidades. A partir da Análise do Discurso, com o método arquegenalógico proposto
por Michel Foucault e os estudos de mídia e discurso de Rosário Gregolin podemos
enxergar, através da névoa inteligível dos discursos, como o poder funciona através de
efeitos de sentido que alteram as identidades, os corpos, as práticas. As produções
discursivas midiáticas estão permeadas de relações de poder. Segundo Foucault
(2007:101):
[...]existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam
e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem
se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma
acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há
possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos
discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla
exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só
podemos exercê−lo através da produção da verdade.
Michel Foucault (2005:35) concebe o poder “como uma coisa que circula”, e só
“funciona em cadeia”. Para o autor, o poder não é uma riqueza que pode ser
conquistada, nem é um privilégio de poucos. “O poder se exerce em rede e, nessa rede,
não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse
poder e também de exercê-lo.” É neste movimento de poderes, o lugar das táticas, das
estratégias, a partir das produções de verdade.
Os sujeitos, não são passivos do poder, são seus fiadores, “jamais eles são o alvo
inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários.” Foucault (2005). “Em
24
outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles”. Há, no poder,
circulação e funcionamento, uma engrenagem inteligível e combativa de produção de
verdade. O poder não é uma teia estável de produções de sentindo. Para Foucault
(2007:142) “Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e
relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em
baixo, uma diferença de potencial”.
Está dialógica cima/baixo, desigual e relativamente estabilizada, vai permitir os
espaços de luta e resistência, que são múltiplos. Há sempre a perspectiva de o jogo virar.
Nos embates provocados pela mídia, está uma relação constante nas construções das
identidades, o silenciado pode, por motivos diversos da história, falar. As relações de
poder nos seus limites de desigualdade relativamente estabilizada permitem o constate
vai e vem de produções de verdade. Então, um grupo de sujeitos pode, nas movências
históricas, ter sua posição discursiva (re)vista.
Na história do Brasil, nas últimas décadas, a situação dos povos indígenas e a
questão ambiental exemplificam as transitoriedades do poder. Existe uma série de
produções de verdade que os legitimam como os “guardiões da floresta”, mas em outros
momentos, a corrente de “inimigos do progresso” é que ganha força. Estas duas
correntes coexistem de forma desigual e relativamente estabilizada no mesmo momento
histórico, elas se tencionam e se invertem. Gregolin (2007:5) diz que:
[...]em um momento histórico, há algumas ideias que devem ser
enunciadas e outras que precisam ser caladas. Silenciamento e
exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as
verdades. Essas condições de possibilidade estão inscritas no discurso
– elas delineiam a inscrição dos discursos em formações discursivas
que sustentam os saberes em circulação numa determinada época.
Tomando como referência as condições de possibilidade da história e a
circulação do poder, pretendo compreender como a relação entre a mídia e os Aikewára
se estabeleceu. Sem perder de vista que, apesar de suas singularidades históricas, eles
fazem parte de uma ordem social, e que, assim como outros povos indígenas, eles
estiveram no meio do caminho do “progresso” na Amazônia.
Neste primeiro capítulo, analiso como a construção de rodovias e a instalação de
uma rede nacional de televisão e cinema, interferiu nos rumos da história Aikewára.
Este povo passou por um violento processo de hibridização com a sociedade nacional,
que sob o pretexto da “modernização” e do “progresso” da Amazônia, começou um
corrida colonialista sobre a região.
25
1.1 Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso,
devastação e guerra
A eletricidade chegou à Terra Sororó, sistematicamente, a partir do ano de 2009,
quando a maioria dos Aikewára adquiriu televisão e antena parabólica, mesmo assim,
muito antes disto, eles já possuíam o contato com a TV, uma bomba que gerava
eletricidade e havia algumas televisões em Sororó, mas eles se reuniam em grandes
grupos para assistir. O que significa que eles conheciam os discursos que circulavam na
mídia sobre eles. Como frequentam as cidades vizinhas, conheciam bem as fronteiras
culturais e suas tensões e pela presença de missionários religiosos e da escola em
Sororó, os Aikewára já entendiam as expectativas dos não índios em relação a eles.
A experiência entre eles, que aconteceu a partir de um projeto de novas
tecnologias, além de me mostrar como administravam suas fronteiras culturais,
necessariamente me fez refletir sobre a importância das produções da mídia entre as
sociedades indígenas e sobre a importância da (re)produção de estereótipos dos
indígenas nesta tensão de produções de verdade. Para Gregolin:
Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo
discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”
como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É
ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa
e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao
passado e ao presente. (2007:11)
Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos
meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que
a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas. Nas primeiras atividades do
projeto, fizemos um levantamento dos filmes produzidos pelo cinema brasileiro
comercial sobre temáticas indígenas no Brasil. Fora do circuito alternativo, encontramos
alguns poucos filmes produzidos a partir de romances famosos na literatura brasileira
como “O Guarani” e “Iracema” de José de Alencar.
A realidade do Brasil é bem diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde
há um número significativo de produções que abordam as histórias da conquista do
Velho Oeste do país e a dizimação dos “vilanescos caras vermelha”. Segundo Shohat e
Stam (2006), aproximadamente um quarto da produção de filmes longa-metragem
americanos entre 1926 e 1967 foram sobre a temática de faroeste.
26
De uma maneira geral o faroeste hollywoodiano virou a história de
ponta-cabeça ao apresentar os índios como intrusos em suas próprias
terras, criando assim uma perspectiva paradigmática... Raramente os
faroestes mostram os índios vivendo de maneira pacata no ambiente
doméstico, embora a expansão para o Oeste tenha destruído, de modo
brutal justamente esse estilo de vida, bem como os costumes desses
nativos. (SHOHAT E STAM: 2006:177)
Se por um lado, os filmes dos Estados Unidos abordam estas histórias, mesmo
que glorificando, em muitos casos, o genocídio a que as populações indígenas de lá
foram submetidas e invertendo os papéis, no cinema brasileiro, há um silenciamento
bem mais evidente destas histórias de genocídio e colonização. A indústria cultural
brasileira, historicamente, invisibiliza as histórias indígenas.
Há também em circulação em diversas partes do mundo, disponibilizados pela
indústria cultural, uma série de documentários produzidos por redes internacionais de
comunicação voltadas para os povos Incas, Maias e Astecas. Estes impérios pré-
colombianos causam muito interesse por parte tanto da mídia quanto das publicações
didáticas, mesmo no Brasil. É muito possível que uma criança brasileira receba mais
informações sobre estes povos do que sobre as populações que habitavam as regiões em
que moram.
Em relação à programação televisa brasileira, a situação não é tão diferente, mas
atualmente, tanto em canais comerciais como nas TV públicas, já se produziu uma série
de documentários e reportagens sobre sociedades indígenas. Há personagens indígenas
célebres na teledramaturgia brasileira, mas isto não significa que nestas produções, de
fato, as sociedades indígenas ganharam um espaço de escuta. Basta lembrar que os
personagens indígenas normalmente são interpretados por atrizes e atores brancos.
As produções audiovisuais também estão fortemente presentes na rede social
YouTube e algumas delas estão voltadas para as sociedades indígenas Tupi da
Amazônia. Neste novo espaço de construção de sentidos, a priori, as condições são mais
democráticas, já que todos os usuários da web podem postar seus filmes. Mas isto não
significa que estas produções não estejam filiadas a redes de memória que circulam nos
meios massivos e talvez a diferença esteja no fato de mais pessoas terem a possibilidade
de produzir conteúdos. Numa rápida pesquisa, há vários filmes postados produzidos por
indígenas e por não índios. Não podemos, no entanto, acreditar que por serem
indígenas, estes novos produtores não vão também reforças os estereótipos construindo
historicamente sobre suas sociedades.
Em relação aos Aikewára, a relação que estabelecem com a produção
audiovisual é um pouco diferente. A partir da publicidade que eles ganharam com o
27
projeto, uma série de reportagens sobre eles, além dos filmes, livros e o blog
aikewara.blogspot.com foi produzida. Esta condição gerou novos efeitos de sentido e de
verdade tanto entre eles mesmos, mas também sobre o que pensa sobre esta sociedade
além dos muros de Sororó. Nos movimentos da história, parte de suas memórias
subterrâneas ganharam escuta na mídia.
Neste novo momento, o processo de contato com a sociedade envolvente ganhou
novos contornos nas desiguais e relativamente estabilizadas relação de poder. É
importante destacar o movimento e as lutas deste povo na administração da produção de
verdades através da mídia. Contudo é preciso buscar a história do presente entre os
Aikewára, para entender quais os papéis da mídia nos caminhos desta sociedade, como
os discursos, a partir da mídia, silenciaram ou/e legitimaram a violência, ou em outro
momento histórico, fizeram o oposto.
Os Aikewára estão inseridos numa narrativa maior, para entender os processos
que levam ao contato sistemático, é preciso tratar a Terra Indígena Sororó, não como
uma ilha, mas sim como um lugar que esteve atravessado por conflitos que mudaram o
próprio desenho do país e da Amazônia Brasileira. É significativo assinalar que a mídia,
mesmo antes de se estabelecer na aldeia, esteve nesta história do presente, legitimando
processos de dominação e silenciamento.
Um dos aspectos mais importantes nos estudos sobre as sociedades e os sujeitos
Indígenas nesta situação de Fricção Interétnica é entender quais os discursos e de como
seus funcionamentos legitimaram a “conquista da Amazônia” a partir da metade do
século passado, momento em que se estabelece o contato sistemático entre várias
sociedades indígenas da região, inclusive os Aikewára, e a sociedade envolvente. A
bandeira da modernização/progresso da região é talvez, a grande justificativa, para a
sociedade em geral, desta invasão, enquanto a integração/colonização verdadeiro
objetivo.
Segundo Foucault (2005:29) “Somos submetidos pelo poder à produção da
verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”. O exercício de
legitimação desta invasão da Amazônia foi uma composição orquestrada por vários
setores da sociedade brasileira: governo, mídia, capital nacional, capital estrangeiro e
imigrantes em busca de uma “vida melhor”. A modernidade/colonialidade, travestida de
progresso/integração, teve um grande número de produções de verdade para autorizar a
violência e a devastação. Como aconteceu este processo é o que pretendo discutir nos
próximos tópicos.
28
1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates.
O que é ser moderno? Esta pergunta certamente rende debates e teses
infindáveis, e talvez divida epistemologias como grãos de areia, de tão variadas
respostas. É possível, no entanto, fazer alguns recortes. Alguns autores vão se debruçar
sobre os estudos da modernidade, e pretendo cerzir algumas de suas definições para
subsidiar o debate da modernidade Amazônica. Para Bruno Latour (2009:15):
A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou
jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma
ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno,
assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma
revolução do tempo. Quando as palavras “moderno”, “modernização”
e “modernidade” aparecem, definimos, por contraste, um passado
arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada
em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e
perdedores, os Antigos e os Modernos. “Moderno”, portanto, é duas
vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do
tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.
Apesar de infindáveis conceitos do que é ser “moderno”, existe certa
recorrência nas definições. A questão do tempo, certa altura, talvez tenha feito mais
sentido, porém, existe um moderno mais moderno? O pós-moderno? O moderno pode
ser velho, no que diz respeito exclusivamente ao tempo? Tentar alcançar o moderno
como passagem de tempo é como tentar tocar no horizonte, a caminhada vai ser longa,
mas circular, sem de fato conseguir tocar na linha. Isto se deve ao fato, de que o
moderno, pressupõe o novo. Então o enunciado “o antigo tempo moderno” só se
estabelece como metáfora ou antítese.
O moderno pressupõe o tradicional ou antigo. Como Latour expõe existe uma
batalha entre eles como vitoriosos e derrotados. A tentação de olhar a modernidade por
este prisma é grande, mas logo se exaure, pois esta não seja, talvez, uma batalha de
exclusões, mas sim de choques equilibrados, que não se excluem, mas se misturam, sem
se fundirem ou se anularem, uma luta sem fim e sem vencedores.
... não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem
atribuir um prêmio aos vencedores. Nas inúmeras discussões entre os
Antigos e os Modernos, ambos tem hoje igual número de vitórias, e
nada mais nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos
regimes ou os aperfeiçoam (LATOUR :2009:15)
29
Não adianta tentar buscar o moderno no horizonte do tempo, mas é possível
entender a modernidade como uma projeto político de dominação, que inclusive
atravessa o tempo como um raio-x. D. Mignolo (2003:80) apresenta estudos muito
consistentes sobre a modernidade como desenho político “a colonialidade é constitutiva
da modernidade”, no que ele define como “pensamento liminar”:
... visto da perspectiva subalterna, o lócus fraturado da enunciação
define o pensamento liminar como uma reação à diferença colonial.
“Nepantla”, palavra cunhada por um falante de Nahuatl na segunda
metade do século 16, é outro exemplo do pensamento liminar . “Estar
ou sentir-se entre”, como se poderia traduzir a palavra, pôde sair da
boca de um ameríndio, não de um espanhol (cf Mignolo,1995b). A
diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais
se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fraturada,
como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica. Assim o
pensamento liminar é mais do que uma enunciação híbrida. É uma
enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia
territorial e hegemônica (isto é, ideologia, perspectiva). (2003:11)
Para o autor, o desenho do sistema mundial moderno começa com as grandes
navegações ibéricas,“a conexão do Mediterrâneo com o Atlântico através de um novo
circuito comercial, no século 16, lança as fundações tanto para a modernidade quanto
para a colonialidade”. As relações de trabalho, econômicas e sociais desta nova ordem,
um “moderno sistema mundial” começam a se desenhar neste momento, mas segundo
D. Mignolo (2003:80), é preciso repensar este modelo:
A necessidade de concebê-lo como um sistema mundial
colonial/moderno e de contar as histórias não apenas a partir do
interior do mundo “moderno, mas também a partir de suas fronteiras.
Estas não são apenas contra-histórias ou histórias diferentes, são
histórias esquecidas que trazem para o primeiro plano, ao mesmo
tempo uma nova dimensão epistemológica da, e a partir da margem do
sistema mundial colonial/moderno, ou se quiserem, uma
epistemologia da diferença colonial que é paralela a epistemologia do
mesmo.
Este trabalho, para trazer estas histórias esquecidas, das margens, recorta esta
epistemologia colonialidade/modernidade como faces da mesma moeda. O
colonialismo, no Brasil, não se extingue no grito do Ipiranga de Dom Pedro I. Este
processo não seria muito mais a independência dos portugueses no Brasil? As teias do
colonialismo na América Latina mudaram para as mãos de uma elite euro-americana,
que depois ganhou outro contorno, mas manteve as práticas de colonialidade, o que
segundo D. Mignolo (2003:129) não deve ser confundido como o período colonial.
30
A colonialidade do poder deve ser distinguida do período colonial,
que se estende na América Latina do início do século 16 ao início do
século 19, quando o Brasil e a maioria dos países de língua espanhola
conquistam a independência da Espanha e de Portugal e começaram a
constituir-se em estados-nações. O colonialismo, como observa
Quijano, não se extinguiu com a independência porque a colonialidade
do poder e do saber mudou de mãos, por assim dizer, subordinou-se à
nova e emergente hegemonia epistemológica: não mais a Renascença,
mas o iluminismo.
Mas, como o autor apresenta, este processo não acabou, como podemos ver no
caso da modernização dos povos indígenas e em muitas outras histórias do continente, a
moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos constituídos desta
memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e politicamente como o
“novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia, são a grande “invenção”
da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta e esta luta não é contra o
“antigo” ou contra as “tradições”, mas sim uma luta pelo poder, uma batalha para
desautorizar saberes e eleger outros sob o pretexto de uma lógica, legitimada por
instituições e pessoas, uma luta pela subjetivação dos sujeitos, suas práticas e seu
próprio corpo.
As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje, talvez sejam a ultima
fronteira da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é
flutuante e progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da
modernidade, e a mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o
seu entorno. Não apenas pelo que causa entre eles na aldeia, mas também de como ela
legitima ou agride os discursos sobre os povos e a floresta.
1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma
moderna Amazônia colonial à flor da Terra
Bye bye, Brasil
A última ficha caiu
Eu penso em vocês night and day
Explica que tá tudo okay
Eu só ando dentro da lei
Eu quero voltar, podes crer
Eu vi um Brasil na tevê
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem
Mas a ligação tá no fim
Tem um japonês trás de mim
Aquela aquarela mudou
(Chico Buarque)
31
A epígrafe acima é um trecho da música Bye,bye Brasil, composta por Chico
Buarque de Holanda, retrata um momento da história do Brasil, quando a televisão e as
estradas buscavam unir o país. A época é a década de 1970 e o enunciado “Eu vi um
Brasil na tevê”, reproduz um discurso muito forte neste período, em que se estabelecia
uma rede nacional de telecomunicações, patrocinada pelo governo brasileiro. Era o
tempo dos generais e o Brasil vivia sob o julgo da ditadura militar. Uma das principais
estratégias de dominação dos ditadores era justamente a integração do país por meio das
telecomunicações, que neste período estavam sob censura e se restringiam a veicular
assuntos de interesse do governo. Para Souza:
Com a censura, os telejornais se restringiam a exibir
reportagens internacionais e institucionais. Na televisão,
o Brasil era um país lindo, em paz e dinâmico. O próprio
presidente na época, Emílio Garrastazu Médici, afirmava
ver um país maravilhoso no Jornal Nacional. Era uma
imagem falsa, como se não existisse crise social ou
perseguição. A notícia só era divulgada se fosse liberada
pela censura.(2009:5)
A música de Chico Buarque é tema do filme,
com o mesmo nome da composição Bye, Bye
Brazil(1979) de Cacá Diegues. O filme conta a
história da “caravana holidei”, um grupo de artistas
mambembes, que cruza o Brasil fugindo das cidades
aonde o neon das televisões chegou. Segundo a
sinopse oficial da obra “fazendo espetáculos para
camponeses, cortadores de cana, índios etc., sempre
fugindo da concorrência da televisão. O grupo
atravessa a Amazônia até chegar a Brasília, vivendo
diversas aventuras pelas estradas do país”.
Na imagem, o caminhão da caravana holidei
trafega pela Rodovia Transamazônica, com o
objetivo de chegar até Altamira, de acordo com o
filme a “terra das oportunidades”. Pode-se notar a
estrada ainda sem asfalto e a personagem se
protegendo sol com sua sombrinha cruzando recém-
aberto caminho.
O filme retrata este período da integração
Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil
32
nacional promovida pelo governo militar, como forma de controle e colonização,
apoiado de silenciamento do momento que o Brasil atravessava. Em nome do progresso,
florestas caíam dando lugar a cidades e estradas. Junto com estas estradas, vinham as
antenas de TV, que neste momento, alteravam as práticas sociais e inibiam as produções
locais, em nome de uma unidade nacional, maquiada pela TV como um “país lindo” nas
palavras do próprio presidente militar Médici.
A estruturação da televisão no Brasil, como rede nacional, por meio
de microondas, deve-se ao sistema consolidado durante o período do
regime militar, mais precisamente no final dos anos 60. Entretanto, o
interesse do governo militar não era o progresso do país, como se
pregava. Naquele momento se estruturava um sistema de poder das
emissoras de TV e um controle que perdura até hoje.
(SOUZA:2007:30)
A nacionalização da televisão e até mesmo a sua concepção estão intimamente
relacionadas ao poder governamental. É preciso olhar com atenção como se dá o
processo e o funcionamento de uma rede nacional de telecomunicações e quais seus
impactos, já que representava um poderoso legitimador de discursos pró
desenvolvimento. Esta movimentação em relação às sociedades tradicionais da
Amazônia, fazia da mídia, neste momento, mais uma frente de Fricção Interétnica
(RCO).
A história dos Aikewára está diretamente pautada a este processo de ocupação
que o governo militar promoveu na Amazônia, mas este projeto, porém não iniciou com
os militares. A rodovia Belém-Brasília, também conhecida como Transbrasiliana ou BR-
153, começou a ser construída ainda em 1960, durante a administração de Juscelino
Kubitschek, mas sua conclusão aconteceu em 1974, já durante o governo militar. A rodovia
se estende Marabá, no sudeste paraense, até Aceguá no Rio Grande do Sul. Outra rodovia
construída no mesmo período é a BR-230, também conhecida como Rodovia
Transamazônica, liga o estado da Paraíba ao Amazonas e atravessa horizontalmente o
estado do Pará. Esta BR também passa pelo município de Marabá. Estas rodovias e toda
a rede sentidos que se estabeleceram junto com elas mudaram a forma de vida
econômica e cultural nesta região.
Com as estradas vieram também os conflitos com os povos que moravam na
floresta. É neste cenário que Roberto Da Matta e Roque de Barros Laraia fizeram sua
pesquisa com os índios castanheiros. Esta modernização está diretamente relacionada ao
pensamento liminar. Não seria este processo uma atualização do discurso colonial e
33
estas construções justificadas pelo “desenvolvimento e progresso” não seriam novas
práticas de colonialidade?
A seguir uma sequência de cenas do filme Coluna Norte do período do governo
de Juscelino Kubichek. O filme foi patrocinado pela indústria automobilística e mostra a
construção da rodovia Belém-Brasília. A obra exalta a conquista do “pesadelo verde” da
floresta Amazônica.
O filme usa de várias práticas discursivas para justificar a construção da rodovia.
Há uma seleção de imagens, sons e palavras que buscam emocionar o espectador. A
trilha, a narração ufanista e bem pontuada, criam um clima épico. Os enquadramentos
das cenas foram pensados para exaltar a conquista dos sujeitos que no filme o narrador
chama de “pioneiros”. Os discursos da modernização e da integração da Amazônia
estão fortemente exacerbados na produção. A seguir um trecho do texto do filme:
A primeira árvore tombada... Um areal de rios, um mundo de sagas e
mistérios. Um pesadelo cheio de duendes e ameaças separava o norte
e o coração do Brasil. A estrada Belém-Brasília começava. Vinde
meus filhos de desteimar! Segue em ordem. Nossas armas preparadas,
vossos machados de gume cortante. Pioneiros, oh pioneiros! (coluna
do norte)
Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”
34
A imagem ao lado mostra o ônibus da
Mercedes-Benz, produzido no Brasil segundo o
filme. Podemos notar, no enquadramento da
placa, um dos discursos mais difundidos pelo
governo JK: a integração nacional. a película
trabalha com memórias discursivas de conquista
e retoma ideias coloniais:
Por acaso as raças mais velhas hesitaram? Ou lá, no além mar,
esmoreceram e encerram sua missão fatigados? Retomamos nós o
perene fardo a tarefa e a lição... (COLUNA NORTE)
O discurso colonial é atualizado, uma memória da atualidade, como a outra
moeda da modernidade da Amazônia, a conquista do desconhecido. Sobre a memória
discursiva Courtine esclarece:
Toda produção discursiva se efetua em determinadas condições
conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular
formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória
na atualidade de um acontecimento. (1981:78)
A obra também faz clara alusão aos filmes de velho-oeste americanos. Em vários
enunciados do filme como “Nítido vos vejo jovens do oeste, a caminhar com os mais
avançados!”. Estes enunciados retomam memórias do cinema estadunidense, afinal
estas produções eram muito difundas neste período como já dito. Estes discursos
permaneceram fortes e foram bastante afirmados também durante o governo militar,
com outras materialidades audiovisuais produzidas.
A memória das imagens é uma genealogia como diria Courtine, no que ele
define como intericonicidade. O governo militar vai recorrer a estas narrativas
audiovisuais, em busca de algumas memórias, que vão ecoar no imaginário dos sujeitos,
que recorrerão a sua própria lembrança, permeada por filmes hollywoodianos de
faroeste e por filmes documentários ufanistas brasileiros de colonização. Sobre a
intereconicidade Courtine explica:
O campo da fala Pública está atravessado, saturado por imagens nas
quais percebemos, ao mesmo tempo, a força de seu impacto e a
instantaneidade de sua obsolescência. É crucial compreender como
elas significam, como uma memória de imagens as atravessa e as
organiza, ou seja, uma interconicidade que lhes atribui sentidos
Imagem 03. Cena do filme coluna norte
35
reconhecidos e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na
sociedade, no interior da cultura visual. (2008:17)
Para Milanez:
... olhar para a imagem sob o efeito da intericonicidade é de uma
arqueologia do imaginário humano, construída não sobre a
cristalização homogeneizante de uma imagem única, mas sobre o
movimento dos deslocamentos, sucessão, interposições, apagamentos,
reestruturações de imagens que existem sob a batuta da regência dos
movimentos nem sempre harmônicos da história.(2011:39)
Os discursos apoiados por técnicas de produção imagética, colocam em
funcionamento a memória e o desejo, como veremos nas próximas analises. A
continuidade ao projeto de colonização da Amazônia continuou a legitimar o corte na
Amazônia pelas produções audiovisuais. A imagem a seguir é uma compilação de cenas
de um documentário cinevideo sobre a construção de outra rodovia que corta a mesma
região; a transamazônica.
O filme fala sobre uma visita do presidente/ditador Médici a Altamira para
marcar o início da construção da estrada. Imagens, sons e palavras muito parecidos com
as do vídeo anterior aparecem aqui: “A colonização da Amazônia é dificultada pela
escassez relativa de transportes... A transamazônica é um passo imenso no sentido da
ocupação racional de uma área que se caracteriza por um vazio demográfico só
comparável ao das desoladas regiões polares.” A narração ufanista, mais uma vez fala
em colonização, numa região sem pessoas, silenciando os povos já viviam por entre a
mata.
Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.
36
As imagens das árvores derrubadas ao som de batucadas e trompetes épicos,
produzem sentidos de vitória do homem sobre a natureza selvagem, a conquista.
Homens trabalhando, nordestinos (segundo o filme), tombando as enormes castanheiras
com seus machados, também se encontram. A Amazônia é novamente apresentada
como a terra sem dono, ávida por entregar suas riquezas ao homem pioneiro. O filme se
apoia no discurso que Médici fez em Altamira e fala dos desafios enfrentados pelo país:
“Dois desses problemas referidos na fala do chefe do estado são: o homem sem terras
do nordeste e a terra sem homens da Amazônia”. Novamente existe o silenciamento dos
povos amazônicos, seja os indígenas, ou mesmo as pessoas das cidades da região. Os
dois filmes, procuram convocar o nordestino para colonizar a Amazônia, mas, em
ambos, o estereótipo deste nordestino aparece na figura do homem simples, sem camisa
e de chapéu cortando as árvores, mas com a promessa de um futuro de riquezas e
conquistas.
O governo na verdade convocava o nordestino como a mão de obra subalterna, e
muito dificilmente, estas pessoas que vieram para a Amazônia, alcançaram riquezas,
não houve uma repartição justa nesta invasão, mas sim as bases de uma
reprodução/atualização do pacto colonial, que cortou a floresta indiscriminadamente,
sem se preocupar com as populações que lá moravam, nem com o desenvolvimento das
pessoas que vieram trabalhar nas estradas. Uma elite nacional, e multinacional foi quem
realmente lucrou com esta invasão, que até hoje ainda se estabelece em nome do
progresso como se observa em grandes projetos contemporâneos como a construção da
hidroelétrica de Bello Monte.
As cidades que surgiram ao redor destes projetos, possuem altos incides de
desigualdades sociais e violência se comparadas as grandes metrópoles brasileiras, ou
mesmo aos municípios do sul e sudeste do país. Mas no filme, apoiado pela linguagem
de efeito de verdade do documentário existe o seguinte enunciado: “A transamazônica
será uma vereda aberta ao nordestino para a colonização de uma região rica em vales
férteis e promissoras jazidas minerais.”
O filme Bye Bye Brasil, faz uma crítica a estas políticas do governo, e traz
enunciados que revelam alguns discursos muito circulados à época. Na cena, Lorde
Cigano, personagem do ator José Wilker, conversa com um caminhoneiro (homem de
bigodes à esquerda), num bar de beira de estrada sobre a Altamira e a construção da
transamazônica:
Caminhoneiro: - Altamira!
Lorde Cigano: - Como é que chama o lugar?
37
Caminhoneiro:- Altamira! é o centro da transamazônica tem
gente do Brasil inteiro indo pra lá pra trabalhar na estrada e
depois comprar terra. Abacaxi lá é do tamanho de uma jacá, e
as árvores do tamanho de um arranha-céu.
Lorde Cigano: - Exagero!
Caminhoneiro:- Não, to falando sério! Tem minério, pedra
preciosa, tudo ali à flor da terra. Floresta Amazônica! Nuca
ouviu falar?
Lorde Cigano: Já, mato puro né! E os índio? Tem muito índio
lá?
Caminhoneiro:- Tinha! Mas a maioria o pessoal já acabou
com eles, tinha vez que o pessoal me enchia o saco, mas
perdia mesmo a paciência e pegava o avião e jogava umas
bananas de dinamite em cima da aldeia dos índios (risos). Ai,
a “cabocada “saia toda pro meio do mato, mão na cabeça,
pensando que era o fim do mundo, entendeu... Depois que
fizeram a estrada, que lá virou lugar de branco, dinheiro pra
todo mundo, todo mundo é rico.
Lorde Cigano: - Morando no meio do mato eles não devem
ter muito onde gastar tanta riqueza.
O discurso de progresso da região é mais uma
vez retomado, atualizando os discursos da
modernidade/colonialidade. Como está filiado a outros
interesses, o filme não silencia a questão das sociedades indígenas como os filmes
ligados aos governos JK e militar, mesmo que tenha sido produzido durante o período
militar, quando havia censura, o longa revela as chacinas ocorridas na Amazônia,
utilizando a ironia e a denúncia. A “caravana holidei” faz a viagem em busca de
oportunidades, mas o que encontra em Altamira é um cenário de violência e miséria.
As produções audiovisuais, eram muito importantes naquele período, daí o
motivo de analisar estes vídeos, pois naquele momento histórico, certo enunciados
ganhavam força, reprimiam os conflitos, como já vimos, o Brasil que era apresentado ao
grande público, como um país maravilhoso, vivendo um milagre econômico e se
integrando através das estradas e da Televisão ou mesmo o cinema. Mas, estas
informações eram monitoradas e controladas pelo governo e por grupos empresariais,
midiáticos ou não. Muito provavelmente, boa parte da população brasileira sequer
tivesse esta informação, do que realmente ocorria na Amazônia. E justamente neste
período, segundo Ortiz (1988:14) que o cinema e a televisão vão se consolidar como
meios de comunicação de “massa”, os cine-documentários eram exibidos antes do
filmes no cinema, só para se ter ideia, segundo Ortiz2, na década de 1970 as salas de
cinema espalhadas pelo país contavam com mais de 200 milhões de espectadores por
2 Pesquisa disponível no endereço http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2012/Informe-anual-
2012-preliminar.pdf
Imagem 05 cena do filme Bye,Bye
Brazil
38
ano, para efeito de comparação segundo dados3 da Agência Nacional do cinema
ACINE, em 2011 pouco mais de 146 milhões de pessoas compareceram aos cinemas
brasileiros, levando em consideração que a população brasileira praticamente dobrou
dos anos de 1970 pra cá, podemos supor que o alcance do cinema era muito mais
abrangente :
Reconhece-se ainda a importância dos meios de comunicação de
massa, sua capacidade de difundir ideias, de se comunicar diretamente
comas massas, e, sobretudo, a possibilidade que têm em criar estados
emocionais coletivos. Com relação a esses meios, um manual militar
se pronunciava de maneira inequívoca: “bem utilizados pelas elites
constituir-se-ão em fator muito importante para o aprimoramento dos
componentes da Expressão Política: utilizados tendenciosamente
podem gerar e incrementar inconformismo”. O Estado deve,
portando, ser repressor e incentivador das atividades culturais.
(ORTIZ:1988:116)
Para Souza:
A televisão passava a ser peça chave na estrutura de domínio. É neste
cápitulo da história da TV que a atuação do regime militar, até então
discreta, indireta, torna-se completamente explicita e deixa claro que o
governo tem um projeto “a televisão no Brasil tornou-se a partir da
década de 60 o suporte dos discursos que identificam o Brasil para o
Brasil...”(2002:30)
O Jornal Nacional, primeiro programa exibido pela rede de microondas no Brasil
e consequentemente o primeiro produto televiso exibido para todo o território nacional,
apresentava em suas primeiras edições a logo “integrado o Brasil através da notícia” o
jornal compactuava com o plano militar, por motivos econômicos e políticos; além de o
governo ser o principal cliente das empresas da mídia no Brasil, uma emissora de
televisão, como já dito, por exemplo, precisa de uma concessão do congresso nacional
para poder funcionar. Ortiz (1988:118) esclarece que tanto os empresários da mídia
quanto os militares, tinham interesses na integração do país, mas por motivos diferentes
“...os militares propõem a unificação da política das consciências, os empresários
sublinham o lado da integração do mercado”.
Quais os impactos das produções de mídia e das construções das estradas na
Terra Indígena Sororó? Nos próximos tópicos vou mostrar como os Aikewára estão
diretamente envolvidos neste processo de colonização da Amazônia e as consequências
da ocupação da “terra sem homens”, como diz o vídeo do governo militar. O que eles
calaram é que por entre as árvores derrubadas, eles derrubaram pessoas...
3 ORTIZ (1988:125)
39
1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo
e Tocantins no sudeste do Pará, existe uma grande área
verde preservada em meio à devastação. Este lugar é conhecido
como terra Sororó, lar dos índios Aikewára.
Depois de tempos difíceis quando apenas 33 índios
mantiveram a chama da cultura Aikewára viva, a floresta e eles
ameaçados pelo fogo forasteiro resistiram. Hoje mais de 300
Aikewára vivem entre os troncos firmes dos castanhais da terra
indígena Sororó. Entre histórias, castanhas e estrelas...
(trecho do filme Tapi’i’rapé: O caminho da Anta)
Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE), publicados em agosto de 2012, existem no Brasil, 305 etnias, e 274
línguas indígenas. Os números desta pesquisa divergem com boa parte dos trabalhos
acadêmicos que davam conta 238 povos indígenas e suas 180 línguas nativas. Segundo
o IBGE, a maior parte destes povos vive na Amazônia e 200 povos Tupi, portanto, a
maior concentração destas sociedades, vive na região. Definir o que é uma sociedade
Tupi não é uma tarefa simples:
O nome “tupi” pode ser usado em três níveis de abrangência. No
sentido mais estrito, é o nome da língua falada pelos indígenas do
litoral, quando chegaram os europeus. Em outro nível, este nome é
agregado ao nome “guarani”, para denominar uma família linguística,
a tupi-guarani, da qual faz parte a referida língua litorânea. E, num
nível ainda mais elevado, “tupi” é o nome de um tronco linguístico,
além de outras mais. É, pois, necessário cuidar para que não se
confundam os diferentes sentidos do termo “tupi”. (MELATTI:
2007,61)
Os Aikewára, um povo Tupi que vive no sudeste do Pará, uma região permeada
por conflitos pela terra. Uma região impulsionada pela mineração, pecuária e por
madeireiras. Cidades crescem e florestas caem, o verde dá lugar ao cinza, e apesar de
toda “riqueza“ produzida pela devastação, com o enriquecimento de alguns, as
desigualdades sociais são evidentes, fortes. Houve e há muitas tensões sob aquela
região, e os Aikewára, estão nas fronteiras destes conflitos.
Os Aikewára, também conhecidos como Suruí, vivem na Terra Indígena Sororó
no sudeste do Pará, entre os rios Araguaia e Tocantins. Entre os Municípios de São
Domingos e São Geraldo do Araguaia. Nos mapas da página seguinte, nota-se a posição
de uma Terra Sororó preservada em às áreas cinzas.
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Nos mapas podemos ver Sororó, o maior ponto verde da região. Como podemos
ver no mapa, a Terra Sororó é uma área relativamente pequena, a menor aldeia do Pará.
A terra não faz fronteira com nenhum rio.
Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth
Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth
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No mapa 2 nota-se a rodovia transbrasiliana, também conhecida como Belém-
Brasília. Como já dito, esta rodovia, foi fundamental no processo de
colonização/modernização da Amazônia. Os “pioneiros” cruzaram por estes caminhos,
mas nesta terra, tinham pessoas...
Como Sororó é cortada pela BR-153, a Belém-Brasília, é permeada por todos as
complicações que vimos no tópico anterior. Esta é uma situação bastante difícil de
administrar, já que a rodovia causa muitos transtornos, em suas margens é comum haver
queimadas, segundo relatos dos Aikewára, os motoristas jogam pontas de cigarro acesas
e assim iniciam o fogo. Sororó está cercada por fazendas, é notável quando
atravessamos a BR-153, que até o clima muda. Na foto, observa-se as margens com
mato, mas na época das secas, esta vegetação costuma secar, devido também o contado
com o asfalto, o que facilita queimadas.
Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
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O mapa acima foi confeccionado por um grupo de jovens Aikewára e recebeu
um tratamento por nós. É muito interessante a precisão com a qual desenharam a Terra
Sororó, basta olhar os outros mapas nas páginas anteriores. Além da precisão e do
conhecimento apurado que eles tem da região, chama a atenção as partes vermelhas no
mapa, elas indicam as queimadas. Podemos obsevar como os vermelhos se concentram
nas fronteiras, e principalmente as margens da rodovia e das fazendas. Sororó é
ameaçada pelo fogo vindo das queimadas e das fazendas vizinhas.
Mas como esta situação se inscreveu? Nos próximos tópicos vou analisar
algumas narrativas orais Aikewára que dão conta da história deste contato. Por hora,
quero destacar que a Terra Sororó, está localizada bem perto da transamazônica, as duas
rodovias se cruzam em Marabá, os Aikewára estavam no rodo da
modernizaçã