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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA Aikewára e a mídi… · Às crianças Aikewára, pelo olhar, que eu guardo e me faz sonhar com um mundo melhor. Aos Karuwara. Aos meus amigos Umassú,

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  • UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

    MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA

    Os Aikewára e a Mídia:

    Relações de poder, cultura e mediação.

    Maurício Neves Corrêa

    Belém-Pará

    2013

  • Maurício Neves Corrêa

    Os Aikewára e a Mídia:

    Relações de poder, cultura e mediação.

    Dissertação apresentada à Banca

    examinadora da Universidade da

    Amazônia. Mestrado em Comunicação

    Linguagens e Cultura. Linha de

    pesquisa: Linguagem e Análise

    Discursiva de Processos Culturais.

    Orientadora: Profª. Drª. Marisa Mokarzel

    Belém-PA 2013

  • Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819

    306.08 C824a Corrêa, Maurício Neves. Os Aikewára e a mídia: relações de poder, cultura e

    mediação / Maurício Neves Corrêa. – Belém, 2013. 122f. il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,

    Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013.

    Orientador: Profª. Drª. Marisa Mokarzel.

    1. Sociedade indígena. 2. Cultura indígena-novas tecnologias. 3. Aikewára-mídia. 4. Índios Aikewára-inclusão digital. I. Mokarzel, Marisa. II. T.

  • Maurício Neves Corrêa

    Os Aikewára e a Mídia:

    Relações de poder, cultura e mediação.

    Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura

    BANCA EXAMINADORA:

    _____________________________________________________________________

    Presidente/orientador: Profª Drª Marisa Mokarzel (UNAMA)

    _____________________________________________________________________

    Professora Drª Maria do Rosário V. Gregolin (UNESP/Araraquara)

    _____________________________________________________________________

    Professor DrºAgenor Sarraf (UFPA)

    _____________________________________________________________________

    Professor Drº Nilton Milanez(UESB)

    Resultado _____________________________________________________________

    Belém, __________/ _________/ 2013

  • Dedico este trabalho às crianças da Terra Sororó e à

    Arihêra Suruí e os ou 32 Aikewára que resistiram.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço às energias boas que me envolvem, estas bolinhas de luz que

    não posso ver, mas posso sentir.

    À minha orientadora, que me levantou quando eu estava em fragmentos

    e pouco a pouco foi me pincelando com leveza. A Marisa cerziu minha

    dissertação com delicadeza, com todo cuidado para as agulhas não

    machucarem. Sempre quando eu, exasperado, corria até ela, me recebia com

    um sorriso e um abraço que me deram a paz e a confiança para terminar esta

    etapa, passar por este Caminho.

    À Arihêra Suruí, por ter divido comigo suas histórias e confiado a mim o

    trabalho de registrá-las. Eu nunca vou esquecer. Lembro todos os dias da

    Terra Sororó e daquela senhora doce, que apesar de tudo o que sofreu, me

    ensinava os caminhos da floresta com ternura e carinho. Um dia vamos nos

    reunir novamente e sob o céu estrelado, olhar mais uma vez o Tapi’i’rapé...

    Às crianças Aikewára, pelo olhar, que eu guardo e me faz sonhar com

    um mundo melhor.

    Aos Karuwara.

    Aos meus amigos Umassú, Api, Murué, Moreyru, Tonin, Taraí, Sari,

    Hércules, Tiapé, Sawarapi, Arikassu, Maria e Nego.

    À Rosario, por tudo que me ensinou. Tentei mil coisas e palavras para

    colocar aqui, mas nada parece suficiente. Ela é uma fada? Uma bruxinha do

    bem? Ela existe mesmo? Lembro que um dia desses qualquer, normal, chato,

    eu tava numa plateia todo murcho com a vida. Escutei uma voz forte... Depois

    veio o raio, cheio de luz e de força. Naquele dia, ainda tinha dúvida do que

    queria ser quando crescer. Quando eu ficar com o pescoço mais firme, quero

    ser parecido com a Rosario e aprender mais e mais com seus poderes, seus

    saberes e os seus cuidados de si e dos outros. As pessoas, os alunos que ela

    cuida no Brasil inteiro voando com suas asinhas e seus livros...

    Ao Nilton, pelas conversas que tivemos e pelos ensinamentos sobre a

    imagem em movimento. O Nilton além de ser um amigo é uma referência e

    uma inspiração.

    Ao professor Agenor que foi fundamental neste trabalho. Devo a ele

    muitas das leituras e dos pensamentos que dialogam nesta pesquisa. Agora eu

    vejo como aquelas aulas até meia noite foram preciosas.

  • Às professoras do mestrado; a querida Neusa, à Andréa e à Wilma .

    À Alda Costa por todos os momentos que dividimos, seja na aldeia ou na

    Universidade.

    A todos os professores desde o jardim até a graduação.

    À Universidade da Amazônia, por toda a trajetória que tive na instituição,

    desde a graduação até o mestrado.

    À Capes por todo o apoio.

    À Fidesa.

    Ao Michael Foucault, por tudo que escreveu e pelas aulas ditas e

    escritas.

    Aos meus amigos que me aturaram e deram força nestes dias, noites e

    madrugadas, felizes ou tristes: Larissa, Vivian, Adelaide, Tiago, Andréa,

    Angelina, João, Vanessa, Laura, Carol, Carla, Gabriela, Phellippey, Paulo,

    Rodolfo, Andreh Igor, Eliezer, Rodrigo Ig, Spok, Márcia, Kamila, Daniela,

    Renata, Michelle, Nassif,Wilton, Thais, Andrei, Rafael, Roberta, Victor e Néia.

    Ao Élito BG, por ter emprestado a sua voz aos Aikewára.

    Aos meus colegas de turma no mestrado.

    Ao querido Ricardo Catete in memorian. É tão estranho você ter partido!

    Ricardo foi o melhor aluno, o amigo da turma, em todos os trabalhos, tem um

    pouco dele. Foi um privilégio para todos nós do mestrado ter convivido com

    uma pessoa tão boa e talentosa. Ricardo, agradeço por ter te conhecido e visto

    as apresentações mais bonitas e criativas que só você sabe fazer.

    Aos amigos do grupo de projeto de pesquisa Narrativas Orais Tupi na

    Amazônia Paraense: performatividade: Adriana Azevedo Joel Pantoja,

    Valquíria Lima por tudo o que passamos nestes anos.

    Ao Pedro Leal, meu amigo, parceiro de todas as horas. O Pedrinho

    estava sempre lá. Os filmes e tudo o que produzimos é marcado pela

    criatividade e a bondade do Pedrinho. Obrigado, irmãozinho, por cuidar de

    todos nós. Que este coração imenso continue sempre assim, cheio de luz!

    À Shirley Penaforte, por todas as conversas e pela grande amizade que

    construímos ao longo destes anos. Ela me perturba, me enche, mas é

    “brodi”(tá nem sempre). Te adoro Penafraca!

    À Dilza, o Rodrigo, a Karol e à pequena Juliana, por cuidarem do papai e

    por tudo o que vivemos.

  • Ao meu padrinho Tadeu, ao Rodrigo, à Sol, à Raiara, ao tio Jr, ao tio

    Mário.

    Ao meu primo Kléber, que partiu deste plano, mas que me deixou tantas

    coisas boas. Guardo comigo com todo cuido a suas palavras e a sua alegria.

    Muito obrigado, meu primo, meu irmão, pelo amor que nos une esteja você

    onde estiver.

    Aos meus compadres por todos estes anos de amor e amizade e por

    terem nos presenteado com bebezinha mais linda e amada.

    À minha afilhada Maria Cecília, que eu tanto amo.

    Ao meu primo Gil, meu irmão, que dividiu comigo esta jornada na Aldeia.

    Esta pesquisa não seria possível sem ele. Obrigado por estar comigo neste

    momento tão especial.

    À minha querida Lariza. O tempo que passamos juntos está vivo no meu

    sorriso. Obrigado por cada segundo! Por ter segurado a minha barra no

    momento mais difícil. Nossos caminhos se separaram, mas o carinho vai durar

    até o silêncio me abraçar. Obrigado pelo amor...

    À minha avó Lindalva, por seu grande coração. Por ter cuidado de mim

    com tanto amor, por ter estado ao meu lado quando ninguém acreditava em

    mim. Minha vó amada.

    Ao meu pai, não existe homem que eu mais admiro. O nosso amor é tão

    forte, que nada o abala. Obrigado, papai, por todo o incentivo, por todo o

    carinho, por todo aprendizado. Ele não usa capa, mas é meu herói. Obrigado

    por ser essa pessoa que tu és, firme como um aço e doce e tolo como uma

    criança. Te amo.

    À minha avó Ivone, porque, independentemente do que aconteça, eu

    sempre vou estar protegido pelo carinho e pelo amor do colo da minha avó,

    minha votitinha. E todos os dias, mesmo quando eu não estou com ela, ainda

    posso sentir a vovó fazendo tranças no meu cabelo e dizendo que tá hora de

    cortar. Eu a amo tanto, tanto! Se eu pudesse, passava todos os dias ao lado

    dela. Obrigado por todos estes anos de amor! Obrigado pela dedicação, por

    gostar tanto de mim, por me embalar, pelos cuidados que só a senhora

    tem comigo!

    À minha mãe, porque ela é minha voz, meu horizonte. Não houve

    pessoa que sofreu mais e vibrou mais comigo. Ela é a minha poesia eu rego as

    flores que ela espalha pelo caminho, sempre cuidando do seu jardim. Protejo

  • os sonhos dela, porque eu sonho junto. Obrigado por abrir as portas de casa

    pra mim, obrigado por me amar e pela paciência! Por me abraçar e me acolher.

    Obrigado por tudo que você me ensinou e até pelos espinhos do caminho. Vou

    estar sempre ao seu lado regando seus sonhos e suas flores...

    “Na galeria, cada clarão

    É como um dia depois de outro dia

    Abrindo um salão

    Passas em exposição

    Passas sem ver teu vigia

    Catando a poesia

    Que entornas no chão”

    Eu te amo minha mãe.

  • RESUMO Esta pesquisa analisa os resultados do projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição

    e nas novos tecnologias na escola e a relação dos Aikewára com a mídia. Uma nova

    frente de contato a que está exposto o povo indígena Aikewára: a chegada nada pacífica

    da mídia a Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos teóricos precisam chegar a esta

    nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e os aspectos econômicos a que

    está submetida esta sociedade e que já foram bastante discutidos pela antropologia, mas

    que devem ir um pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que

    demanda novas categorias de análise. O objetivo deste trabalho é compreender, a partir

    da análise das relações de poder da Análise do Discurso e dos estudos de mediação

    propostos pelos Estudos Culturais e dos estudos de Fricção Interétinica, como se

    constitui a história do presente entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos

    meios de comunicação, mas mostrar que existe pontos de fuga, de produções de novos

    sentidos, como o projeto Crianças Suruí-Aikewára.

    Os Aikewára, também conhecidos como Suruí do Pará e Suruí-Aikewára, são índios

    castanheiros que moram no sudeste do Pará entre os municípios de São Domingos e São

    Geraldo do Araguaia. “Suruí” foi uma denominação imposta pelo não índio. Este

    povo tupi vive na Terra Indígena Sororó, um grande quadrado de floresta preservado em

    meio à devastação.

    Em meados dos anos de 1960, os índios Aikewára sofreram uma grande depopulação

    após o contato sistemático com a população das cidades vizinhas e chegaram a 33

    índios. Apesar de duramente perseguidos por fazendeiros e madeireiros da região, além

    de surtos de gripe e varíola, os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte

    dos não-índios, neste processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua

    alimentação, suas regras matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o

    rumo da história e da cultura desta sociedade indígena. Segundo o último senso da

    Aldeia, os Aikewára somam mais de 300 índios, sendo que a maioria são crianças e

    jovens.

    Palavras-Chave: Discurso, Cultura, Aikewára,Sociedades indígenas.

  • ABSTRACT

    This study analyzes the results of the project “Children Suruí-Aikewára: between

    tradition and the new technologies in school” and the Aikewára relationship with media.

    A new front of contact that it is exposed to the Native American people Aikewára: the

    arrival of the media to nothing peaceful to the Sororó land. Clashes theorists need to

    reach this new frontier, they cannot ignore the history and economics that is subject to

    this company and have already been extensively discussed by anthropology, but that

    should go a little further, because they speak from a reality mediatized, which requires

    new categories of analysis. The objective of this work is to understand, from the

    analysis relations of power of discourse analysis and studies of mediation proposed by

    cultural studies and studies Friction Interétinica, as is the history of this Aikewára

    between arrival and systematic and violent of the media, but show that there is

    vanishing points, productions of new meanings, as the project Children Suruí-Aikewára.

    The Aikewára, also known as Pará Suruí and Suruí-Aikewára, chestnuts are Native

    People to live in southeast Pará between the cities of Santo Domingo and Sao Geraldo

    do Araguaia. "Suruí" was a name imposed by no-native. This Tupi people living in

    Sororó Land, a large square of forest preserved amid the devastation.

    In mid-1960, the Aikewára suffered a great depopulation after systematic contact with

    the population of nearby towns, and arrived to 33 Aikewára. Although harshly

    persecuted by ranchers and loggers in the region, as well as outbreaks of influenza and

    smallpox, the Aikewára resisted. There was too much interference by non-native, in this

    case, which sought to change their religious practices, their food, their marriage rules,

    etc.. This moment has definitely changed the course of history and culture of this Native

    American society. According to the last census of the village, the Aikewára total more

    than 300 Indians, most of whom are children and youth.

    Key Words: discourse, culture, Aikewára, Native American People .

  • SUMÁRIO

    Apresentação Capítulo 1 - Novas frentes de contato entre os índios Aikewára: Modernidade, Ficção e Poder 1.1. Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso, devastação e guerra 1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates 1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma moderna Amazônia colonial à flor da Terra

    1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo 1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára. 1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó 1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na

    l Capítulo 2 - Os Aikewára, a floresta e uma filmadora: a construção do cinema da Casona. 2.1 Entre histórias, castanha e estrelas. 2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades. 2.2.1 A oficina de nutrição. 2.3 O primeiro filme Aikewára. 2.4 O cinema da Casona

    2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia. 2.6 O Sapurahai Karuwara. 2.7 As novas tecnologias e a apropriação 2.7.1 A oficina de fotografia. 2.7.2 A ultima viagem Capítulo 3 Memória, identidade e mídia: os Aikewára na imagem em movimento. 3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára: estrelas de TV?

    3.2 Silenciamentos da televisão.

    Considerações finais Referências

    14 23

    25

    28 30

    43

    50 53 59

    60 64 69 70

    73 76 83

    89 91

    94 98

    107

    112

    39

    116 119

  • ÍNDICE DE FIGURAS Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil

    Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”

    Imagem 03. Cena do filme coluna norte

    Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.

    Imagem 05 cena do filme Bye,Bye Brazil

    Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth

    Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth

    Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

    Imagem 09 . Terra Sororó

    Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel

    Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.

    Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

    Imagem 13. Cartaz Aikewára

    Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o Tapi’i’rapé

    Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e Ywyratynga.

    Imagem 16. Terra Indígena Sororó

    Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.

    Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme “A comida Aikewára”

    Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"

    Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier

    Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier

    Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier

    Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára

    Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé

    Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.

    Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.

    Imagem 28 . Menino Aikewára

    Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel

    Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa

    Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara

    Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.

    Imagem 34: Oficina de fotografia

    31 34

    34 35 37 40 40 41 42 43 51

    52 55

    60 61

    62 67 68 69 72

    73 75 76 78

    81 82 83 85 86 88 90 91

  • Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí

    Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí

    Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.

    Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.

    Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.

    Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial

    Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára

    Imagem 44 . cena do filme Sapurahia

    Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa

    Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional

    Imagem 47. Taraí no JN

    Imagem48. Cena do JN

    Imagem 49. Cena do JN

    Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier

    Imagem 51. Takes JN.

    Imagem 52. Umassú no JN

    92 93

    94 95

    100

    101

    102 103

    104 104

    105 108 109 110 110 113

    114 114

  • 14

    Apresentação

    Se só houvesse submissão, não haveria produção

    de novos sentidos.

    Rosario Gregolin

    Arihêra Suruí, uma senhora do povo indígena Aikewára, disse certa vez, numa

    de nossas longas conversas, que ela queria guardar uma história de sua mãe num filme.

    Ela contou que queria que a neta da neta dela soubesse como se fazia a rede tradicional

    antigamente. Arihêra supunha, que apesar de eles terem boa memória, assim ela poderia

    guardar esta história, para eles não perderem mais.

    No ano de 2010, durante a realização do projeto “Crianças Suruí-Aikewára:

    entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, várias vezes estive com os índios

    Aikewára, na Terra Indígena Sororó. Durante este período pude conhecer um pouco da

    história deste povo, em várias conversas com Arihêra, pude compreender o porquê da

    preocupação dela em “guardar” suas histórias em vídeos.

    A história recente dos Aikewára é profundamente marcada pelo contato deles

    com as populações das sociedades vizinhas. Esta integração deles ao mundo ocidental

    foi violenta, e mesmo no presente, ainda é tensa, conflituosa. As práticas culturais deste

    povo foram profundamente alteradas, quando sistematicamente foram inseridos na

    nossa sociedade.

    Em meados dos anos de 1960, quando se estabeleceu o contato, os Aikewára

    sofreram uma grande depopulação, chegaram a 33 índios. Apesar da implacável

    perseguição por fazendeiros e madeireiros da região, além de surtos de gripe e varíola,

    os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte dos não índios, neste

    processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua alimentação, suas regras

    matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o rumo da história e da cultura

    desta sociedade indígena.

    Isto explique talvez, as motivações de Arihêra em querer guardar suas memórias,

    pois novas formas de subjetivação estão em funcionamento na aldeia Aikewára. Este

    trabalho, que começo a tecer, é resultado da pesquisa que eu e um grupo interdisciplinar

    de pesquisadores fizeram entre eles, com o objetivo de buscar pontos de fuga e

    resistência, estratégias de apropriação da cultura Aikewára pelas novas tecnologias da

    informação.

  • 15

    Na primeira metade do século XX, as pesquisas com sociedades indígenas, no

    Brasil, passaram a se delinear pelo estudo das línguas indígenas, que ainda hoje

    privilegiam os aspectos descritivos das línguas, na linguística e pelas abordagens das

    teorias culturais, que num primeiro momento, produziram uma série de trabalhos

    voltada para os aspectos estruturais destas sociedades, preocupados com as estruturas

    sociais, relacionadas à organização do parentesco e à religião, profundamente

    influenciadas pela antropologia estrutural.

    Havia pouca preocupação em entender como acontecia o contato entre as

    sociedades indígenas e a sociedade envolvente. A maior parte destes trabalhos ignorava

    o estado de guerra em que se desenhavam estas fronteiras. Não é e nunca foi pacífico o

    contato e esta situação não é uma particularidade das terras baixa da América do Sul.

    Nas Cruzadas da Idade Média ou no Iraque de nossos dias, a belicosidade do contato

    está nas armas, mas também encontra um campo de batalha nada pacífico no campo

    discursivo e a mídia ocupa um papel vital nestas relações, legitimando discursos,

    silenciando outros.

    A partir dos anos de 1950, os trabalhos realizados por Roberto Cardoso de

    Oliveira e toda a geração de pesquisadores que ele orientou e influenciou, procuraram

    mostrar que além dos aspectos estruturais, tão caros aos primeiros estudos de

    antropologia realizados sobre as sociedades indígenas, as frentes de contato a que elas

    foram submetidas deveriam ser compreendidas com novas ferramentas de análise. As

    definições importadas da Europa de “aculturação” ou “mudanças culturais” passaram a

    ser contestadas por RCO1 e não davam conta das singularidades que o contato

    representava nas histórias destes povos. É a partir desta perspectiva que tem início uma

    das mais importantes e discutidas definições da antropologia brasileira: a fricção

    interétnica.

    Chamamos de “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e

    segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos

    competitivos, assumindo este contato muitas vezes proporções

    “totais”, isto é, envolvendo toda a comunidade tribal e não-tribal que

    passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto,

    esta situação pode apresentar as mais variadas configurações, todas

    elas definidas pelas características anteriormente mencionadas. Desse

    modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de

    expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão

    aspectos específicos. (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174)

    1 RCO é uma abreviação usual em livros e artigos de antropologia para Roberto Cardoso de Oliveira

  • 16

    No final dos anos de 1950, com o objetivo de sistematizar a análise sobre o

    processo de contato entre os índios da Amazônia e a sociedade nacional, RCO

    organizou, pelo Museu Nacional, o projeto Estudos de Áreas de Fricção Interétnica.

    Deste projeto fizeram parte Roque de Barros Laraia e Roberto DaMatta. Os dois se

    destinaram a estudar os índios do Médio Tocantins, envolvidos com indústria extrativa

    da castanha. Laraia se dedicou a dois grupos Tupi: os Suruí-Aikewára e os Assurini e

    Roberto DaMatta a um grupo Jê, os Gavião-Parakatejê . Deste trabalho resultou o livro

    Índios e Castanheiros: a empresa extrativa do Médio Tocantins (Laraia e DaMatta,

    1978).

    Contactados sistematicamente no século XX, os Assurini e os Parakatejê

    mantiveram relações com a sociedade nacional nos anos de 1920, enquanto os Aikewára

    se mantiveram arredios até 1952 (Laraia & DaMatta,1978:45). Seus contingentes

    populacionais já eram pequenos, mesmo antes do contato, em função de divisões

    internas e guerras com outros grupos indígenas. Com o contato, o número de mortes

    levou estes povos indígenas a um continente populacional de menos de 40 índios em

    cada grupo.

    Embora a extração da castanha, realizada pelos três grupos, constituísse o

    principal atrativo da sociedade nacional, o contato se deu de formas diferentes: Os

    Parakatejê se assumiram como os donos de seus castanhais, enquanto os Asuriní e os

    Aikewára acabaram sob o julgo dos comerciantes. De qualquer forma, embora hoje os

    Parakatejê sejam considerados os “índios ricos” da região, o resultado visível, àquela

    época, não os colocava em uma situação de miséria muito diferente. O cenário era tão

    caótico no início dos anos de 1960, que DaMatta e Laraia chegaram a anunciar o

    extermínio destas sociedades.

    Dos três grupos, o que menos sofreu com brigas internas foram os Aikewára. A

    estabilidade do grupo proporcionava uma reação mais amistosa diante dos estranhos. A

    resistência ao contato se devia mais ao receio do cacique Musena e só a partir de sua

    morte, em 1952, eles se aproximaram da sociedade nacional (Laraia &.DaMatta, 1978:

    81/85).

    A contribuição de Índios e Castanheiros (Laraia &.DaMatta, 1978) ao projeto

    Estudos de Áreas de Fricção Interétnica, deixa ver como contatos interétnicos, ainda

    que sejam estabelecidos por uma mesma frente econômica, não são regidos por uma

    sequencia linear de acontecimentos. RCO conclui no prefácio da primeira edição

    (Laraia & DaMatta, 1978, 46):

  • 17

    [n]este processo de integração ou de marginalização econômica,

    Roque de Barros Laraia e Roberto da Matta mostram qual o papel de

    duas variáveis importantes da situação de fricção interétnica: o caráter

    específico da frente nacional que encontrou e submeteu as populações

    indígenas; e o caráter da cultura tribal alcançada por esses segmentos

    da sociedade em expansão.

    A análise aqui apresentada está num espaço teórico que muito se aproxima da

    definição de fricção interétnica, já que trata de uma nova frente de contato: a chegada

    nada pacífica da eletricidade e da Mídia à Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos

    analíticos precisam chegar a esta nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e

    os aspectos econômicos a que está submetida esta sociedade, mas que devem ir um

    pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que demanda novas

    referências teóricas.

    Nos nossos dias, o pensamento ocidental pôde multiplicar os lugares de onde se

    olha para estas relações. Durante a maior parte do tempo, a história destas relações de

    contato dos povos indígenas foi oficializada por um único foco narrativo, hoje, no

    entanto, além dos trabalhos de alguns pesquisadores não índios, alguns poucos

    indígenas já chegaram às universidades e começam a mudar a direção das pesquisas.

    Por outro lado, as atuais teorias da cultura, ainda que continuem irradiadas pela Europa

    e pelos Estados Unidos, já construíram novos caminhos e é possível falar em

    Antropologia Brasileira ou Estudos Culturais Latino-Americanos.

    No ano de 2009, foi aprovado o projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a

    tradição e as novas tecnologias na escola, coordenado pela linguista e antropóloga

    Ivânia Neves e pela jornalista Alda Costa, professoras doutoras da Universidade da

    Amazônia (Unama), o projeto foi um dos selecionados pelo Criança Esperança da Rede

    Globo em parceria com a UNESO. O projeto atendeu mais de 100 jovens entre 5 e 18

    anos. Ao longo do projeto foram produzidos 6 filmes e 3 livros didáticos para escola

    Aikewára. O objetivo destes materiais era conciliar a tradição cultural dos Aikewára

    com as novas tecnologias, de tal maneira, que servissem de apoio à estrutura de ensino.

    Também foi criado o “aikewara.blogspot.com” além de uma série de artes, banners e

    cartazes.

    Fui um dos bolsistas selecionados para participar deste projeto, e entre o final de

    2009 e o início de 2011, várias vezes estive em Sororó. Participei intensamente na

    elaboração destes materiais. Por ter uma formação em Comunicação Social, com

    habilitação em Jornalismo, dirigi e co-dirigi os filmes, além de ter participado

    ativamente na edição dos livros e na construção do Blog. Por ser um projeto de pesquisa

  • 18

    e extensão de uma universidade, havia uma preocupação acadêmica e social na

    elaboração destas materialidades.

    O projeto alcançou segundo alguns Aikewára, como Tonin Suruí, um resultado

    muito positivo: “As crianças começaram a valorizar mais a nossa cultura depois que

    vocês chegaram com esses filmes, não só elas, mas toda a aldeia”. Relatou o jovem

    Aikewára, numa de minhas viagens à aldeia. O que motivou a existência deste projeto

    foi a situação em que os Aikewára se encontravam à época. Muitas casas em Sororó, já

    possuíam televisões e outros equipamentos como o rádio, mas quase nada da cultura

    Aikewára havia sido (re)produzido ou transportado para estas materialidades. Isto criava

    um conflito entre as gerações, uma crise de identidade, por todo o processo de contado.

    As crianças de Terra Sororó estavam expostas a estes dilemas.

    É importante deixar claro, nunca tivemos a pretensão de resgatar a cultura

    Aikewára, ela nunca esteve perdida. O nosso objetivo era valorizar esta cultura através

    destes filmes e livros. Nossa intenção era pensar numa mediação das tradições

    Aikewára com estas novas tecnologias, que já eram uma realidade na Aldeia. Não

    fomos nós que levamos a primeira televisão à Sororó, tão pouco, este processo é

    necessariamente maléfico. O uso destas tecnologias é que vai determinar seus impactos,

    benefícios ou degradações.

    Esta integração violenta dos Aikewára tem como um dos principais focos de

    conflito as mídias. Analisar as estratégias, as tácticas Aikewára a partir da mídia é o

    objetivo deste trabalho, um relato de pesquisa, onde analisarei como os saberes

    produzidos pelas materialidades midiáticas, criam poderes que alteram as relações como

    as práticas de si, remodelando as manifestações, os corpos e as identidades. Como as

    relações de poder agem, silenciando ou dando escuta aos Aikewára. Proponho uma

    arquegenealogia da construção das identidades Aikewára a partir das produções

    midiáticas produzidas pelo projeto e por outras instituições. Para Foucault (2007:172):

    A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição

    dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um

    empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é,

    torná−los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um

    discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos saberes

    locais − menores, diria talvez Deleuze − contra a hierarquização

    científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o

    projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a

    arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a

    genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim

    descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta

    discursividade. Isto para situar o projeto geral.

  • 19

    Segundo Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de

    Michel Foucault, o discurso é tomado como uma prática social, historicamente

    determinada, que constitui os sujeitos e os objetos”. As produções da mídia da/sobre a

    sociedade Aikewára, materialidades discursivas construídas historicamente, colocam em

    circulação identidades, estereótipos, geram novos efeitos de sentido.

    A partir desta perspectiva teórica, esta arquegenealogia, aqui proposta, em

    colocar em luta os saberes produzidos pelas diversas produções da mídia sobre o povo

    Aikewára, observando o lugar histórico de onde eles falam. De que forma os saberes

    desta cultura são tratados pelas produções não ficcionais como reportagens e

    documentários? Para Gregolin (2008:12), a função do arquegenealogista é “interpretar

    ou fazer a história do presente”. Este procedimento consistiria em mostrar que “as

    transformações históricas foram as responsáveis pela nossa atual constituição como

    sujeitos objetiváveis por ciências, normalizáveis por disciplinas”.

    Este trabalho fala de um lugar ainda novo em relação às sociedades indígenas,

    pois procura compreender, a partir da análise das relações de poder da Análise do

    Discurso e dos estudos de mediação propostos pelos Estudos Culturais e pelo projeto de

    fricção Interétnica da Antropologia Brasileira, como se constitui a história do presente

    entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos meios de comunicação. Mas,

    além disto, a motivação é mostrar que existe a fuga e não apenas a submissão, é mostrar

    que apesar de toda a perseguição e violência deste processo, foi possível a cultura

    Aikewára se apropriar de novas tecnologias para se fortalecer.

    A difícil conciliação entre autores de diferentes correntes é um exercício penoso,

    porém, todas estas correntes estão empenhadas em estudar os sujeitos e formas de

    deslocar as histórias do centro, colocar em dúvida as estratégias de dominação e apontar

    para novos rumos na margem, outras histórias que possibilitem a fuga, a resistências.

    O primeiro capítulo é dedicado a analisar como a história do presente, se

    (re)produz na Terra Sororó, na Amazônia Brasileira, uma região que a partir de uma

    modernização/colonização ocorrida a partir da metade do século XX é rasgada por

    estradas e grandes projetos. A partir do Pensamento Liminar, proposto por Walter

    D.Mignolo, apresento uma modernização amazônica como a outra face da colonização

    da região. A partir da análise de alguns vídeos produzidos pelo Estado Brasileiro para

    publicizar seus projetos na região, apoiado pela analítica do poder de Michel Foucault e

    pelos dos estudos de Mídia e Discurso de Maria do Rosario Gregolin, mostro como a

    mídia participou deste processo, produzindo efeitos de sentido que legitimavam a

    modernização/colonização.

  • 20

    A partir das memórias subterrâneas das narrativas orais Aikewára, mostro como

    este povo indígena se viu neste processo de modernização/colonização da Amazônia,

    pelo o qual a Terra Sororó passou. Como se deu fricção interétnica entre eles e a

    sociedade nacional. Seria a mídia uma frente de fricção? Procuro analisar como as

    novas frentes de contato entre os Aikewára e a sociedade envolvente são mediadas e.

    em que condições de produção elas se estabelecem. Termino o capítulo com a chegada

    da eletricidade à aldeia e suas consequências imediatas.

    No segundo capítulo, vou fazer um relato de pesquisa, meus primeiros contatos

    com os Aikewára, as motivações, o objetivos e as conclusões do projeto Crianças Suruí-

    Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola. Como se deu a criação do

    cinema Aikewára e quais os desafios enfrentados, tanto na parte cultural como criativa.

    Utilizo os estudos de Jesus Martin-Barbero sobre as mediações e as novas

    tecnologias e procuro mostrar de forma empírica a apropriação de novas tecnologias

    pela cultura. Como foi possível à cultura Aikewára se apropriar de vídeos, CDs livros e

    outras materialidades para negociar as fronteiras de identidade.

    No capítulo a partir das análises de Mídia, Discurso e identidade de Rosário

    Gregolin e das considerações de Michel Foucault sobre poder e discurso, além dos

    estudos de imagem e memória de J.Jacces Courtine e Nilton Milanez , analiso como as

    materialidades produzidas pelo projeto e por outras mídias, colocaram novas formas de

    funcionamento de poder em ação, dando novas formas de negociação dos Aikewára

    com suas identidades a sua própria cultura. Como se dá o embate neste campo, no que

    diz respeito às identidades Aikewára. Procurei analisar qual o impacto dos filmes, sobre

    a cultura Aikewára e as estratégia que este povo usa para resistir às pressões impostas

    pelos efeitos de sentido veiculados pelas mais diferentes mídias. O que foi silenciado e

    o que ganhou escuta na mídia?

    Este trabalho de pesquisa que apresento faz parte de um projeto maior e outros

    pesquisadores participaram deste processo. Então, divido com eles a autoria da

    pesquisa, um grupo de pessoas preocupadas em fazer pesquisa na Amazônia, mas de dar

    a estas pesquisas um sentido social, ao longo desta dissertação, trarei suas vozes ao

    texto. Este é um trabalho em conjunto, e agora, começo meu exercício de memória e

    análise.

    Existe uma inquietude de minha parte com tantas questões perturbadoras na

    região Amazônica. Uma brutal desigualdade social, que ainda hoje, atualiza o sistema

    colonial, enquanto a floresta queima. Esta inquietação é minha motivação, seja como

  • 21

    jornalista ou como pesquisador. As estratégias dos sujeitos amazônicos para enfrentar as

    dificuldades nesta região tão grande como plural me levam a escrever, filmar, produzir.

  • 22

  • 23

    Capítulo I

    Novas frentes de contato entre os índios Aikewára:

    Modernidade, Ficção e Poder.

    Pensando a mídia como prática discursiva, produto de linguagem e processo

    histórico, para poder apreender o seu funcionamento é necessário analisar a

    circulação dos enunciados, as posições de sujeito aí assinaladas, as

    materialidades que dão corpo aos sentidos e as articulações que esses

    enunciados estabelecem com a história e a memória. Trata-se, portanto, de

    procurar acompanhar trajetos históricos de sentidos materializados nas

    formas discursivas da mídia.

    (Rosário Gregolin)

    A mídia tornou-se nos últimos anos, um dos principais palcos de batalha entre os

    Aikewára e a sociedade envolvente, a chegada das parabólicas, foi mais um dos

    aspectos da fricção interétnica entre eles e a sociedade nacional, na medida em que foi

    um importante dispositivo de conflito das práticas culturais e das negociações das

    identidades. A partir da Análise do Discurso, com o método arquegenalógico proposto

    por Michel Foucault e os estudos de mídia e discurso de Rosário Gregolin podemos

    enxergar, através da névoa inteligível dos discursos, como o poder funciona através de

    efeitos de sentido que alteram as identidades, os corpos, as práticas. As produções

    discursivas midiáticas estão permeadas de relações de poder. Segundo Foucault

    (2007:101):

    [...]existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam

    e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem

    se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma

    acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há

    possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos

    discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla

    exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só

    podemos exercê−lo através da produção da verdade.

    Michel Foucault (2005:35) concebe o poder “como uma coisa que circula”, e só

    “funciona em cadeia”. Para o autor, o poder não é uma riqueza que pode ser

    conquistada, nem é um privilégio de poucos. “O poder se exerce em rede e, nessa rede,

    não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse

    poder e também de exercê-lo.” É neste movimento de poderes, o lugar das táticas, das

    estratégias, a partir das produções de verdade.

    Os sujeitos, não são passivos do poder, são seus fiadores, “jamais eles são o alvo

    inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários.” Foucault (2005). “Em

  • 24

    outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles”. Há, no poder,

    circulação e funcionamento, uma engrenagem inteligível e combativa de produção de

    verdade. O poder não é uma teia estável de produções de sentindo. Para Foucault

    (2007:142) “Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e

    relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em

    baixo, uma diferença de potencial”.

    Está dialógica cima/baixo, desigual e relativamente estabilizada, vai permitir os

    espaços de luta e resistência, que são múltiplos. Há sempre a perspectiva de o jogo virar.

    Nos embates provocados pela mídia, está uma relação constante nas construções das

    identidades, o silenciado pode, por motivos diversos da história, falar. As relações de

    poder nos seus limites de desigualdade relativamente estabilizada permitem o constate

    vai e vem de produções de verdade. Então, um grupo de sujeitos pode, nas movências

    históricas, ter sua posição discursiva (re)vista.

    Na história do Brasil, nas últimas décadas, a situação dos povos indígenas e a

    questão ambiental exemplificam as transitoriedades do poder. Existe uma série de

    produções de verdade que os legitimam como os “guardiões da floresta”, mas em outros

    momentos, a corrente de “inimigos do progresso” é que ganha força. Estas duas

    correntes coexistem de forma desigual e relativamente estabilizada no mesmo momento

    histórico, elas se tencionam e se invertem. Gregolin (2007:5) diz que:

    [...]em um momento histórico, há algumas ideias que devem ser

    enunciadas e outras que precisam ser caladas. Silenciamento e

    exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as

    verdades. Essas condições de possibilidade estão inscritas no discurso

    – elas delineiam a inscrição dos discursos em formações discursivas

    que sustentam os saberes em circulação numa determinada época.

    Tomando como referência as condições de possibilidade da história e a

    circulação do poder, pretendo compreender como a relação entre a mídia e os Aikewára

    se estabeleceu. Sem perder de vista que, apesar de suas singularidades históricas, eles

    fazem parte de uma ordem social, e que, assim como outros povos indígenas, eles

    estiveram no meio do caminho do “progresso” na Amazônia.

    Neste primeiro capítulo, analiso como a construção de rodovias e a instalação de

    uma rede nacional de televisão e cinema, interferiu nos rumos da história Aikewára.

    Este povo passou por um violento processo de hibridização com a sociedade nacional,

    que sob o pretexto da “modernização” e do “progresso” da Amazônia, começou um

    corrida colonialista sobre a região.

  • 25

    1.1 Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso,

    devastação e guerra

    A eletricidade chegou à Terra Sororó, sistematicamente, a partir do ano de 2009,

    quando a maioria dos Aikewára adquiriu televisão e antena parabólica, mesmo assim,

    muito antes disto, eles já possuíam o contato com a TV, uma bomba que gerava

    eletricidade e havia algumas televisões em Sororó, mas eles se reuniam em grandes

    grupos para assistir. O que significa que eles conheciam os discursos que circulavam na

    mídia sobre eles. Como frequentam as cidades vizinhas, conheciam bem as fronteiras

    culturais e suas tensões e pela presença de missionários religiosos e da escola em

    Sororó, os Aikewára já entendiam as expectativas dos não índios em relação a eles.

    A experiência entre eles, que aconteceu a partir de um projeto de novas

    tecnologias, além de me mostrar como administravam suas fronteiras culturais,

    necessariamente me fez refletir sobre a importância das produções da mídia entre as

    sociedades indígenas e sobre a importância da (re)produção de estereótipos dos

    indígenas nesta tensão de produções de verdade. Para Gregolin:

    Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo

    discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”

    como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É

    ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa

    e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao

    passado e ao presente. (2007:11)

    Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos

    meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que

    a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas. Nas primeiras atividades do

    projeto, fizemos um levantamento dos filmes produzidos pelo cinema brasileiro

    comercial sobre temáticas indígenas no Brasil. Fora do circuito alternativo, encontramos

    alguns poucos filmes produzidos a partir de romances famosos na literatura brasileira

    como “O Guarani” e “Iracema” de José de Alencar.

    A realidade do Brasil é bem diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde

    há um número significativo de produções que abordam as histórias da conquista do

    Velho Oeste do país e a dizimação dos “vilanescos caras vermelha”. Segundo Shohat e

    Stam (2006), aproximadamente um quarto da produção de filmes longa-metragem

    americanos entre 1926 e 1967 foram sobre a temática de faroeste.

  • 26

    De uma maneira geral o faroeste hollywoodiano virou a história de

    ponta-cabeça ao apresentar os índios como intrusos em suas próprias

    terras, criando assim uma perspectiva paradigmática... Raramente os

    faroestes mostram os índios vivendo de maneira pacata no ambiente

    doméstico, embora a expansão para o Oeste tenha destruído, de modo

    brutal justamente esse estilo de vida, bem como os costumes desses

    nativos. (SHOHAT E STAM: 2006:177)

    Se por um lado, os filmes dos Estados Unidos abordam estas histórias, mesmo

    que glorificando, em muitos casos, o genocídio a que as populações indígenas de lá

    foram submetidas e invertendo os papéis, no cinema brasileiro, há um silenciamento

    bem mais evidente destas histórias de genocídio e colonização. A indústria cultural

    brasileira, historicamente, invisibiliza as histórias indígenas.

    Há também em circulação em diversas partes do mundo, disponibilizados pela

    indústria cultural, uma série de documentários produzidos por redes internacionais de

    comunicação voltadas para os povos Incas, Maias e Astecas. Estes impérios pré-

    colombianos causam muito interesse por parte tanto da mídia quanto das publicações

    didáticas, mesmo no Brasil. É muito possível que uma criança brasileira receba mais

    informações sobre estes povos do que sobre as populações que habitavam as regiões em

    que moram.

    Em relação à programação televisa brasileira, a situação não é tão diferente, mas

    atualmente, tanto em canais comerciais como nas TV públicas, já se produziu uma série

    de documentários e reportagens sobre sociedades indígenas. Há personagens indígenas

    célebres na teledramaturgia brasileira, mas isto não significa que nestas produções, de

    fato, as sociedades indígenas ganharam um espaço de escuta. Basta lembrar que os

    personagens indígenas normalmente são interpretados por atrizes e atores brancos.

    As produções audiovisuais também estão fortemente presentes na rede social

    YouTube e algumas delas estão voltadas para as sociedades indígenas Tupi da

    Amazônia. Neste novo espaço de construção de sentidos, a priori, as condições são mais

    democráticas, já que todos os usuários da web podem postar seus filmes. Mas isto não

    significa que estas produções não estejam filiadas a redes de memória que circulam nos

    meios massivos e talvez a diferença esteja no fato de mais pessoas terem a possibilidade

    de produzir conteúdos. Numa rápida pesquisa, há vários filmes postados produzidos por

    indígenas e por não índios. Não podemos, no entanto, acreditar que por serem

    indígenas, estes novos produtores não vão também reforças os estereótipos construindo

    historicamente sobre suas sociedades.

    Em relação aos Aikewára, a relação que estabelecem com a produção

    audiovisual é um pouco diferente. A partir da publicidade que eles ganharam com o

  • 27

    projeto, uma série de reportagens sobre eles, além dos filmes, livros e o blog

    aikewara.blogspot.com foi produzida. Esta condição gerou novos efeitos de sentido e de

    verdade tanto entre eles mesmos, mas também sobre o que pensa sobre esta sociedade

    além dos muros de Sororó. Nos movimentos da história, parte de suas memórias

    subterrâneas ganharam escuta na mídia.

    Neste novo momento, o processo de contato com a sociedade envolvente ganhou

    novos contornos nas desiguais e relativamente estabilizadas relação de poder. É

    importante destacar o movimento e as lutas deste povo na administração da produção de

    verdades através da mídia. Contudo é preciso buscar a história do presente entre os

    Aikewára, para entender quais os papéis da mídia nos caminhos desta sociedade, como

    os discursos, a partir da mídia, silenciaram ou/e legitimaram a violência, ou em outro

    momento histórico, fizeram o oposto.

    Os Aikewára estão inseridos numa narrativa maior, para entender os processos

    que levam ao contato sistemático, é preciso tratar a Terra Indígena Sororó, não como

    uma ilha, mas sim como um lugar que esteve atravessado por conflitos que mudaram o

    próprio desenho do país e da Amazônia Brasileira. É significativo assinalar que a mídia,

    mesmo antes de se estabelecer na aldeia, esteve nesta história do presente, legitimando

    processos de dominação e silenciamento.

    Um dos aspectos mais importantes nos estudos sobre as sociedades e os sujeitos

    Indígenas nesta situação de Fricção Interétnica é entender quais os discursos e de como

    seus funcionamentos legitimaram a “conquista da Amazônia” a partir da metade do

    século passado, momento em que se estabelece o contato sistemático entre várias

    sociedades indígenas da região, inclusive os Aikewára, e a sociedade envolvente. A

    bandeira da modernização/progresso da região é talvez, a grande justificativa, para a

    sociedade em geral, desta invasão, enquanto a integração/colonização verdadeiro

    objetivo.

    Segundo Foucault (2005:29) “Somos submetidos pelo poder à produção da

    verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”. O exercício de

    legitimação desta invasão da Amazônia foi uma composição orquestrada por vários

    setores da sociedade brasileira: governo, mídia, capital nacional, capital estrangeiro e

    imigrantes em busca de uma “vida melhor”. A modernidade/colonialidade, travestida de

    progresso/integração, teve um grande número de produções de verdade para autorizar a

    violência e a devastação. Como aconteceu este processo é o que pretendo discutir nos

    próximos tópicos.

  • 28

    1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates.

    O que é ser moderno? Esta pergunta certamente rende debates e teses

    infindáveis, e talvez divida epistemologias como grãos de areia, de tão variadas

    respostas. É possível, no entanto, fazer alguns recortes. Alguns autores vão se debruçar

    sobre os estudos da modernidade, e pretendo cerzir algumas de suas definições para

    subsidiar o debate da modernidade Amazônica. Para Bruno Latour (2009:15):

    A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou

    jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma

    ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno,

    assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma

    revolução do tempo. Quando as palavras “moderno”, “modernização”

    e “modernidade” aparecem, definimos, por contraste, um passado

    arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada

    em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e

    perdedores, os Antigos e os Modernos. “Moderno”, portanto, é duas

    vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do

    tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.

    Apesar de infindáveis conceitos do que é ser “moderno”, existe certa

    recorrência nas definições. A questão do tempo, certa altura, talvez tenha feito mais

    sentido, porém, existe um moderno mais moderno? O pós-moderno? O moderno pode

    ser velho, no que diz respeito exclusivamente ao tempo? Tentar alcançar o moderno

    como passagem de tempo é como tentar tocar no horizonte, a caminhada vai ser longa,

    mas circular, sem de fato conseguir tocar na linha. Isto se deve ao fato, de que o

    moderno, pressupõe o novo. Então o enunciado “o antigo tempo moderno” só se

    estabelece como metáfora ou antítese.

    O moderno pressupõe o tradicional ou antigo. Como Latour expõe existe uma

    batalha entre eles como vitoriosos e derrotados. A tentação de olhar a modernidade por

    este prisma é grande, mas logo se exaure, pois esta não seja, talvez, uma batalha de

    exclusões, mas sim de choques equilibrados, que não se excluem, mas se misturam, sem

    se fundirem ou se anularem, uma luta sem fim e sem vencedores.

    ... não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem

    atribuir um prêmio aos vencedores. Nas inúmeras discussões entre os

    Antigos e os Modernos, ambos tem hoje igual número de vitórias, e

    nada mais nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos

    regimes ou os aperfeiçoam (LATOUR :2009:15)

  • 29

    Não adianta tentar buscar o moderno no horizonte do tempo, mas é possível

    entender a modernidade como uma projeto político de dominação, que inclusive

    atravessa o tempo como um raio-x. D. Mignolo (2003:80) apresenta estudos muito

    consistentes sobre a modernidade como desenho político “a colonialidade é constitutiva

    da modernidade”, no que ele define como “pensamento liminar”:

    ... visto da perspectiva subalterna, o lócus fraturado da enunciação

    define o pensamento liminar como uma reação à diferença colonial.

    “Nepantla”, palavra cunhada por um falante de Nahuatl na segunda

    metade do século 16, é outro exemplo do pensamento liminar . “Estar

    ou sentir-se entre”, como se poderia traduzir a palavra, pôde sair da

    boca de um ameríndio, não de um espanhol (cf Mignolo,1995b). A

    diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais

    se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fraturada,

    como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica. Assim o

    pensamento liminar é mais do que uma enunciação híbrida. É uma

    enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia

    territorial e hegemônica (isto é, ideologia, perspectiva). (2003:11)

    Para o autor, o desenho do sistema mundial moderno começa com as grandes

    navegações ibéricas,“a conexão do Mediterrâneo com o Atlântico através de um novo

    circuito comercial, no século 16, lança as fundações tanto para a modernidade quanto

    para a colonialidade”. As relações de trabalho, econômicas e sociais desta nova ordem,

    um “moderno sistema mundial” começam a se desenhar neste momento, mas segundo

    D. Mignolo (2003:80), é preciso repensar este modelo:

    A necessidade de concebê-lo como um sistema mundial

    colonial/moderno e de contar as histórias não apenas a partir do

    interior do mundo “moderno, mas também a partir de suas fronteiras.

    Estas não são apenas contra-histórias ou histórias diferentes, são

    histórias esquecidas que trazem para o primeiro plano, ao mesmo

    tempo uma nova dimensão epistemológica da, e a partir da margem do

    sistema mundial colonial/moderno, ou se quiserem, uma

    epistemologia da diferença colonial que é paralela a epistemologia do

    mesmo.

    Este trabalho, para trazer estas histórias esquecidas, das margens, recorta esta

    epistemologia colonialidade/modernidade como faces da mesma moeda. O

    colonialismo, no Brasil, não se extingue no grito do Ipiranga de Dom Pedro I. Este

    processo não seria muito mais a independência dos portugueses no Brasil? As teias do

    colonialismo na América Latina mudaram para as mãos de uma elite euro-americana,

    que depois ganhou outro contorno, mas manteve as práticas de colonialidade, o que

    segundo D. Mignolo (2003:129) não deve ser confundido como o período colonial.

  • 30

    A colonialidade do poder deve ser distinguida do período colonial,

    que se estende na América Latina do início do século 16 ao início do

    século 19, quando o Brasil e a maioria dos países de língua espanhola

    conquistam a independência da Espanha e de Portugal e começaram a

    constituir-se em estados-nações. O colonialismo, como observa

    Quijano, não se extinguiu com a independência porque a colonialidade

    do poder e do saber mudou de mãos, por assim dizer, subordinou-se à

    nova e emergente hegemonia epistemológica: não mais a Renascença,

    mas o iluminismo.

    Mas, como o autor apresenta, este processo não acabou, como podemos ver no

    caso da modernização dos povos indígenas e em muitas outras histórias do continente, a

    moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos constituídos desta

    memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e politicamente como o

    “novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia, são a grande “invenção”

    da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta e esta luta não é contra o

    “antigo” ou contra as “tradições”, mas sim uma luta pelo poder, uma batalha para

    desautorizar saberes e eleger outros sob o pretexto de uma lógica, legitimada por

    instituições e pessoas, uma luta pela subjetivação dos sujeitos, suas práticas e seu

    próprio corpo.

    As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje, talvez sejam a ultima

    fronteira da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é

    flutuante e progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da

    modernidade, e a mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o

    seu entorno. Não apenas pelo que causa entre eles na aldeia, mas também de como ela

    legitima ou agride os discursos sobre os povos e a floresta.

    1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma

    moderna Amazônia colonial à flor da Terra

    Bye bye, Brasil

    A última ficha caiu

    Eu penso em vocês night and day

    Explica que tá tudo okay

    Eu só ando dentro da lei

    Eu quero voltar, podes crer

    Eu vi um Brasil na tevê

    Peguei uma doença em Belém

    Agora já tá tudo bem

    Mas a ligação tá no fim

    Tem um japonês trás de mim

    Aquela aquarela mudou

    (Chico Buarque)

  • 31

    A epígrafe acima é um trecho da música Bye,bye Brasil, composta por Chico

    Buarque de Holanda, retrata um momento da história do Brasil, quando a televisão e as

    estradas buscavam unir o país. A época é a década de 1970 e o enunciado “Eu vi um

    Brasil na tevê”, reproduz um discurso muito forte neste período, em que se estabelecia

    uma rede nacional de telecomunicações, patrocinada pelo governo brasileiro. Era o

    tempo dos generais e o Brasil vivia sob o julgo da ditadura militar. Uma das principais

    estratégias de dominação dos ditadores era justamente a integração do país por meio das

    telecomunicações, que neste período estavam sob censura e se restringiam a veicular

    assuntos de interesse do governo. Para Souza:

    Com a censura, os telejornais se restringiam a exibir

    reportagens internacionais e institucionais. Na televisão,

    o Brasil era um país lindo, em paz e dinâmico. O próprio

    presidente na época, Emílio Garrastazu Médici, afirmava

    ver um país maravilhoso no Jornal Nacional. Era uma

    imagem falsa, como se não existisse crise social ou

    perseguição. A notícia só era divulgada se fosse liberada

    pela censura.(2009:5)

    A música de Chico Buarque é tema do filme,

    com o mesmo nome da composição Bye, Bye

    Brazil(1979) de Cacá Diegues. O filme conta a

    história da “caravana holidei”, um grupo de artistas

    mambembes, que cruza o Brasil fugindo das cidades

    aonde o neon das televisões chegou. Segundo a

    sinopse oficial da obra “fazendo espetáculos para

    camponeses, cortadores de cana, índios etc., sempre

    fugindo da concorrência da televisão. O grupo

    atravessa a Amazônia até chegar a Brasília, vivendo

    diversas aventuras pelas estradas do país”.

    Na imagem, o caminhão da caravana holidei

    trafega pela Rodovia Transamazônica, com o

    objetivo de chegar até Altamira, de acordo com o

    filme a “terra das oportunidades”. Pode-se notar a

    estrada ainda sem asfalto e a personagem se

    protegendo sol com sua sombrinha cruzando recém-

    aberto caminho.

    O filme retrata este período da integração

    Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil

  • 32

    nacional promovida pelo governo militar, como forma de controle e colonização,

    apoiado de silenciamento do momento que o Brasil atravessava. Em nome do progresso,

    florestas caíam dando lugar a cidades e estradas. Junto com estas estradas, vinham as

    antenas de TV, que neste momento, alteravam as práticas sociais e inibiam as produções

    locais, em nome de uma unidade nacional, maquiada pela TV como um “país lindo” nas

    palavras do próprio presidente militar Médici.

    A estruturação da televisão no Brasil, como rede nacional, por meio

    de microondas, deve-se ao sistema consolidado durante o período do

    regime militar, mais precisamente no final dos anos 60. Entretanto, o

    interesse do governo militar não era o progresso do país, como se

    pregava. Naquele momento se estruturava um sistema de poder das

    emissoras de TV e um controle que perdura até hoje.

    (SOUZA:2007:30)

    A nacionalização da televisão e até mesmo a sua concepção estão intimamente

    relacionadas ao poder governamental. É preciso olhar com atenção como se dá o

    processo e o funcionamento de uma rede nacional de telecomunicações e quais seus

    impactos, já que representava um poderoso legitimador de discursos pró

    desenvolvimento. Esta movimentação em relação às sociedades tradicionais da

    Amazônia, fazia da mídia, neste momento, mais uma frente de Fricção Interétnica

    (RCO).

    A história dos Aikewára está diretamente pautada a este processo de ocupação

    que o governo militar promoveu na Amazônia, mas este projeto, porém não iniciou com

    os militares. A rodovia Belém-Brasília, também conhecida como Transbrasiliana ou BR-

    153, começou a ser construída ainda em 1960, durante a administração de Juscelino

    Kubitschek, mas sua conclusão aconteceu em 1974, já durante o governo militar. A rodovia

    se estende Marabá, no sudeste paraense, até Aceguá no Rio Grande do Sul. Outra rodovia

    construída no mesmo período é a BR-230, também conhecida como Rodovia

    Transamazônica, liga o estado da Paraíba ao Amazonas e atravessa horizontalmente o

    estado do Pará. Esta BR também passa pelo município de Marabá. Estas rodovias e toda

    a rede sentidos que se estabeleceram junto com elas mudaram a forma de vida

    econômica e cultural nesta região.

    Com as estradas vieram também os conflitos com os povos que moravam na

    floresta. É neste cenário que Roberto Da Matta e Roque de Barros Laraia fizeram sua

    pesquisa com os índios castanheiros. Esta modernização está diretamente relacionada ao

    pensamento liminar. Não seria este processo uma atualização do discurso colonial e

  • 33

    estas construções justificadas pelo “desenvolvimento e progresso” não seriam novas

    práticas de colonialidade?

    A seguir uma sequência de cenas do filme Coluna Norte do período do governo

    de Juscelino Kubichek. O filme foi patrocinado pela indústria automobilística e mostra a

    construção da rodovia Belém-Brasília. A obra exalta a conquista do “pesadelo verde” da

    floresta Amazônica.

    O filme usa de várias práticas discursivas para justificar a construção da rodovia.

    Há uma seleção de imagens, sons e palavras que buscam emocionar o espectador. A

    trilha, a narração ufanista e bem pontuada, criam um clima épico. Os enquadramentos

    das cenas foram pensados para exaltar a conquista dos sujeitos que no filme o narrador

    chama de “pioneiros”. Os discursos da modernização e da integração da Amazônia

    estão fortemente exacerbados na produção. A seguir um trecho do texto do filme:

    A primeira árvore tombada... Um areal de rios, um mundo de sagas e

    mistérios. Um pesadelo cheio de duendes e ameaças separava o norte

    e o coração do Brasil. A estrada Belém-Brasília começava. Vinde

    meus filhos de desteimar! Segue em ordem. Nossas armas preparadas,

    vossos machados de gume cortante. Pioneiros, oh pioneiros! (coluna

    do norte)

    Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”

  • 34

    A imagem ao lado mostra o ônibus da

    Mercedes-Benz, produzido no Brasil segundo o

    filme. Podemos notar, no enquadramento da

    placa, um dos discursos mais difundidos pelo

    governo JK: a integração nacional. a película

    trabalha com memórias discursivas de conquista

    e retoma ideias coloniais:

    Por acaso as raças mais velhas hesitaram? Ou lá, no além mar,

    esmoreceram e encerram sua missão fatigados? Retomamos nós o

    perene fardo a tarefa e a lição... (COLUNA NORTE)

    O discurso colonial é atualizado, uma memória da atualidade, como a outra

    moeda da modernidade da Amazônia, a conquista do desconhecido. Sobre a memória

    discursiva Courtine esclarece:

    Toda produção discursiva se efetua em determinadas condições

    conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular

    formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória

    na atualidade de um acontecimento. (1981:78)

    A obra também faz clara alusão aos filmes de velho-oeste americanos. Em vários

    enunciados do filme como “Nítido vos vejo jovens do oeste, a caminhar com os mais

    avançados!”. Estes enunciados retomam memórias do cinema estadunidense, afinal

    estas produções eram muito difundas neste período como já dito. Estes discursos

    permaneceram fortes e foram bastante afirmados também durante o governo militar,

    com outras materialidades audiovisuais produzidas.

    A memória das imagens é uma genealogia como diria Courtine, no que ele

    define como intericonicidade. O governo militar vai recorrer a estas narrativas

    audiovisuais, em busca de algumas memórias, que vão ecoar no imaginário dos sujeitos,

    que recorrerão a sua própria lembrança, permeada por filmes hollywoodianos de

    faroeste e por filmes documentários ufanistas brasileiros de colonização. Sobre a

    intereconicidade Courtine explica:

    O campo da fala Pública está atravessado, saturado por imagens nas

    quais percebemos, ao mesmo tempo, a força de seu impacto e a

    instantaneidade de sua obsolescência. É crucial compreender como

    elas significam, como uma memória de imagens as atravessa e as

    organiza, ou seja, uma interconicidade que lhes atribui sentidos

    Imagem 03. Cena do filme coluna norte

  • 35

    reconhecidos e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na

    sociedade, no interior da cultura visual. (2008:17)

    Para Milanez:

    ... olhar para a imagem sob o efeito da intericonicidade é de uma

    arqueologia do imaginário humano, construída não sobre a

    cristalização homogeneizante de uma imagem única, mas sobre o

    movimento dos deslocamentos, sucessão, interposições, apagamentos,

    reestruturações de imagens que existem sob a batuta da regência dos

    movimentos nem sempre harmônicos da história.(2011:39)

    Os discursos apoiados por técnicas de produção imagética, colocam em

    funcionamento a memória e o desejo, como veremos nas próximas analises. A

    continuidade ao projeto de colonização da Amazônia continuou a legitimar o corte na

    Amazônia pelas produções audiovisuais. A imagem a seguir é uma compilação de cenas

    de um documentário cinevideo sobre a construção de outra rodovia que corta a mesma

    região; a transamazônica.

    O filme fala sobre uma visita do presidente/ditador Médici a Altamira para

    marcar o início da construção da estrada. Imagens, sons e palavras muito parecidos com

    as do vídeo anterior aparecem aqui: “A colonização da Amazônia é dificultada pela

    escassez relativa de transportes... A transamazônica é um passo imenso no sentido da

    ocupação racional de uma área que se caracteriza por um vazio demográfico só

    comparável ao das desoladas regiões polares.” A narração ufanista, mais uma vez fala

    em colonização, numa região sem pessoas, silenciando os povos já viviam por entre a

    mata.

    Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.

  • 36

    As imagens das árvores derrubadas ao som de batucadas e trompetes épicos,

    produzem sentidos de vitória do homem sobre a natureza selvagem, a conquista.

    Homens trabalhando, nordestinos (segundo o filme), tombando as enormes castanheiras

    com seus machados, também se encontram. A Amazônia é novamente apresentada

    como a terra sem dono, ávida por entregar suas riquezas ao homem pioneiro. O filme se

    apoia no discurso que Médici fez em Altamira e fala dos desafios enfrentados pelo país:

    “Dois desses problemas referidos na fala do chefe do estado são: o homem sem terras

    do nordeste e a terra sem homens da Amazônia”. Novamente existe o silenciamento dos

    povos amazônicos, seja os indígenas, ou mesmo as pessoas das cidades da região. Os

    dois filmes, procuram convocar o nordestino para colonizar a Amazônia, mas, em

    ambos, o estereótipo deste nordestino aparece na figura do homem simples, sem camisa

    e de chapéu cortando as árvores, mas com a promessa de um futuro de riquezas e

    conquistas.

    O governo na verdade convocava o nordestino como a mão de obra subalterna, e

    muito dificilmente, estas pessoas que vieram para a Amazônia, alcançaram riquezas,

    não houve uma repartição justa nesta invasão, mas sim as bases de uma

    reprodução/atualização do pacto colonial, que cortou a floresta indiscriminadamente,

    sem se preocupar com as populações que lá moravam, nem com o desenvolvimento das

    pessoas que vieram trabalhar nas estradas. Uma elite nacional, e multinacional foi quem

    realmente lucrou com esta invasão, que até hoje ainda se estabelece em nome do

    progresso como se observa em grandes projetos contemporâneos como a construção da

    hidroelétrica de Bello Monte.

    As cidades que surgiram ao redor destes projetos, possuem altos incides de

    desigualdades sociais e violência se comparadas as grandes metrópoles brasileiras, ou

    mesmo aos municípios do sul e sudeste do país. Mas no filme, apoiado pela linguagem

    de efeito de verdade do documentário existe o seguinte enunciado: “A transamazônica

    será uma vereda aberta ao nordestino para a colonização de uma região rica em vales

    férteis e promissoras jazidas minerais.”

    O filme Bye Bye Brasil, faz uma crítica a estas políticas do governo, e traz

    enunciados que revelam alguns discursos muito circulados à época. Na cena, Lorde

    Cigano, personagem do ator José Wilker, conversa com um caminhoneiro (homem de

    bigodes à esquerda), num bar de beira de estrada sobre a Altamira e a construção da

    transamazônica:

    Caminhoneiro: - Altamira!

    Lorde Cigano: - Como é que chama o lugar?

  • 37

    Caminhoneiro:- Altamira! é o centro da transamazônica tem

    gente do Brasil inteiro indo pra lá pra trabalhar na estrada e

    depois comprar terra. Abacaxi lá é do tamanho de uma jacá, e

    as árvores do tamanho de um arranha-céu.

    Lorde Cigano: - Exagero!

    Caminhoneiro:- Não, to falando sério! Tem minério, pedra

    preciosa, tudo ali à flor da terra. Floresta Amazônica! Nuca

    ouviu falar?

    Lorde Cigano: Já, mato puro né! E os índio? Tem muito índio

    lá?

    Caminhoneiro:- Tinha! Mas a maioria o pessoal já acabou

    com eles, tinha vez que o pessoal me enchia o saco, mas

    perdia mesmo a paciência e pegava o avião e jogava umas

    bananas de dinamite em cima da aldeia dos índios (risos). Ai,

    a “cabocada “saia toda pro meio do mato, mão na cabeça,

    pensando que era o fim do mundo, entendeu... Depois que

    fizeram a estrada, que lá virou lugar de branco, dinheiro pra

    todo mundo, todo mundo é rico.

    Lorde Cigano: - Morando no meio do mato eles não devem

    ter muito onde gastar tanta riqueza.

    O discurso de progresso da região é mais uma

    vez retomado, atualizando os discursos da

    modernidade/colonialidade. Como está filiado a outros

    interesses, o filme não silencia a questão das sociedades indígenas como os filmes

    ligados aos governos JK e militar, mesmo que tenha sido produzido durante o período

    militar, quando havia censura, o longa revela as chacinas ocorridas na Amazônia,

    utilizando a ironia e a denúncia. A “caravana holidei” faz a viagem em busca de

    oportunidades, mas o que encontra em Altamira é um cenário de violência e miséria.

    As produções audiovisuais, eram muito importantes naquele período, daí o

    motivo de analisar estes vídeos, pois naquele momento histórico, certo enunciados

    ganhavam força, reprimiam os conflitos, como já vimos, o Brasil que era apresentado ao

    grande público, como um país maravilhoso, vivendo um milagre econômico e se

    integrando através das estradas e da Televisão ou mesmo o cinema. Mas, estas

    informações eram monitoradas e controladas pelo governo e por grupos empresariais,

    midiáticos ou não. Muito provavelmente, boa parte da população brasileira sequer

    tivesse esta informação, do que realmente ocorria na Amazônia. E justamente neste

    período, segundo Ortiz (1988:14) que o cinema e a televisão vão se consolidar como

    meios de comunicação de “massa”, os cine-documentários eram exibidos antes do

    filmes no cinema, só para se ter ideia, segundo Ortiz2, na década de 1970 as salas de

    cinema espalhadas pelo país contavam com mais de 200 milhões de espectadores por

    2 Pesquisa disponível no endereço http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2012/Informe-anual-

    2012-preliminar.pdf

    Imagem 05 cena do filme Bye,Bye

    Brazil

  • 38

    ano, para efeito de comparação segundo dados3 da Agência Nacional do cinema

    ACINE, em 2011 pouco mais de 146 milhões de pessoas compareceram aos cinemas

    brasileiros, levando em consideração que a população brasileira praticamente dobrou

    dos anos de 1970 pra cá, podemos supor que o alcance do cinema era muito mais

    abrangente :

    Reconhece-se ainda a importância dos meios de comunicação de

    massa, sua capacidade de difundir ideias, de se comunicar diretamente

    comas massas, e, sobretudo, a possibilidade que têm em criar estados

    emocionais coletivos. Com relação a esses meios, um manual militar

    se pronunciava de maneira inequívoca: “bem utilizados pelas elites

    constituir-se-ão em fator muito importante para o aprimoramento dos

    componentes da Expressão Política: utilizados tendenciosamente

    podem gerar e incrementar inconformismo”. O Estado deve,

    portando, ser repressor e incentivador das atividades culturais.

    (ORTIZ:1988:116)

    Para Souza:

    A televisão passava a ser peça chave na estrutura de domínio. É neste

    cápitulo da história da TV que a atuação do regime militar, até então

    discreta, indireta, torna-se completamente explicita e deixa claro que o

    governo tem um projeto “a televisão no Brasil tornou-se a partir da

    década de 60 o suporte dos discursos que identificam o Brasil para o

    Brasil...”(2002:30)

    O Jornal Nacional, primeiro programa exibido pela rede de microondas no Brasil

    e consequentemente o primeiro produto televiso exibido para todo o território nacional,

    apresentava em suas primeiras edições a logo “integrado o Brasil através da notícia” o

    jornal compactuava com o plano militar, por motivos econômicos e políticos; além de o

    governo ser o principal cliente das empresas da mídia no Brasil, uma emissora de

    televisão, como já dito, por exemplo, precisa de uma concessão do congresso nacional

    para poder funcionar. Ortiz (1988:118) esclarece que tanto os empresários da mídia

    quanto os militares, tinham interesses na integração do país, mas por motivos diferentes

    “...os militares propõem a unificação da política das consciências, os empresários

    sublinham o lado da integração do mercado”.

    Quais os impactos das produções de mídia e das construções das estradas na

    Terra Indígena Sororó? Nos próximos tópicos vou mostrar como os Aikewára estão

    diretamente envolvidos neste processo de colonização da Amazônia e as consequências

    da ocupação da “terra sem homens”, como diz o vídeo do governo militar. O que eles

    calaram é que por entre as árvores derrubadas, eles derrubaram pessoas...

    3 ORTIZ (1988:125)

  • 39

    1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo

    e Tocantins no sudeste do Pará, existe uma grande área

    verde preservada em meio à devastação. Este lugar é conhecido

    como terra Sororó, lar dos índios Aikewára.

    Depois de tempos difíceis quando apenas 33 índios

    mantiveram a chama da cultura Aikewára viva, a floresta e eles

    ameaçados pelo fogo forasteiro resistiram. Hoje mais de 300

    Aikewára vivem entre os troncos firmes dos castanhais da terra

    indígena Sororó. Entre histórias, castanhas e estrelas...

    (trecho do filme Tapi’i’rapé: O caminho da Anta)

    Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatísticas (IBGE), publicados em agosto de 2012, existem no Brasil, 305 etnias, e 274

    línguas indígenas. Os números desta pesquisa divergem com boa parte dos trabalhos

    acadêmicos que davam conta 238 povos indígenas e suas 180 línguas nativas. Segundo

    o IBGE, a maior parte destes povos vive na Amazônia e 200 povos Tupi, portanto, a

    maior concentração destas sociedades, vive na região. Definir o que é uma sociedade

    Tupi não é uma tarefa simples:

    O nome “tupi” pode ser usado em três níveis de abrangência. No

    sentido mais estrito, é o nome da língua falada pelos indígenas do

    litoral, quando chegaram os europeus. Em outro nível, este nome é

    agregado ao nome “guarani”, para denominar uma família linguística,

    a tupi-guarani, da qual faz parte a referida língua litorânea. E, num

    nível ainda mais elevado, “tupi” é o nome de um tronco linguístico,

    além de outras mais. É, pois, necessário cuidar para que não se

    confundam os diferentes sentidos do termo “tupi”. (MELATTI:

    2007,61)

    Os Aikewára, um povo Tupi que vive no sudeste do Pará, uma região permeada

    por conflitos pela terra. Uma região impulsionada pela mineração, pecuária e por

    madeireiras. Cidades crescem e florestas caem, o verde dá lugar ao cinza, e apesar de

    toda “riqueza“ produzida pela devastação, com o enriquecimento de alguns, as

    desigualdades sociais são evidentes, fortes. Houve e há muitas tensões sob aquela

    região, e os Aikewára, estão nas fronteiras destes conflitos.

    Os Aikewára, também conhecidos como Suruí, vivem na Terra Indígena Sororó

    no sudeste do Pará, entre os rios Araguaia e Tocantins. Entre os Municípios de São

    Domingos e São Geraldo do Araguaia. Nos mapas da página seguinte, nota-se a posição

    de uma Terra Sororó preservada em às áreas cinzas.

  • 40

    Nos mapas podemos ver Sororó, o maior ponto verde da região. Como podemos

    ver no mapa, a Terra Sororó é uma área relativamente pequena, a menor aldeia do Pará.

    A terra não faz fronteira com nenhum rio.

    Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth

    Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth

  • 41

    No mapa 2 nota-se a rodovia transbrasiliana, também conhecida como Belém-

    Brasília. Como já dito, esta rodovia, foi fundamental no processo de

    colonização/modernização da Amazônia. Os “pioneiros” cruzaram por estes caminhos,

    mas nesta terra, tinham pessoas...

    Como Sororó é cortada pela BR-153, a Belém-Brasília, é permeada por todos as

    complicações que vimos no tópico anterior. Esta é uma situação bastante difícil de

    administrar, já que a rodovia causa muitos transtornos, em suas margens é comum haver

    queimadas, segundo relatos dos Aikewára, os motoristas jogam pontas de cigarro acesas

    e assim iniciam o fogo. Sororó está cercada por fazendas, é notável quando

    atravessamos a BR-153, que até o clima muda. Na foto, observa-se as margens com

    mato, mas na época das secas, esta vegetação costuma secar, devido também o contado

    com o asfalto, o que facilita queimadas.

    Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

  • 42

    O mapa acima foi confeccionado por um grupo de jovens Aikewára e recebeu

    um tratamento por nós. É muito interessante a precisão com a qual desenharam a Terra

    Sororó, basta olhar os outros mapas nas páginas anteriores. Além da precisão e do

    conhecimento apurado que eles tem da região, chama a atenção as partes vermelhas no

    mapa, elas indicam as queimadas. Podemos obsevar como os vermelhos se concentram

    nas fronteiras, e principalmente as margens da rodovia e das fazendas. Sororó é

    ameaçada pelo fogo vindo das queimadas e das fazendas vizinhas.

    Mas como esta situação se inscreveu? Nos próximos tópicos vou analisar

    algumas narrativas orais Aikewára que dão conta da história deste contato. Por hora,

    quero destacar que a Terra Sororó, está localizada bem perto da transamazônica, as duas

    rodovias se cruzam em Marabá, os Aikewára estavam no rodo da

    modernizaçã